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Apresentação e tradução:
Guilherme Queiroz de Souza1 & Laryssa Alves da Silva2
Apresentação
Escrito em Paris (c. 1287-1289), o Livro das Bestas corresponde à sétima parte
do Livro das Maravilhas, obra enciclopédica do filósofo maiorquino Ramon Llull (c.
1232-1316). A história gira em torno da Raposa, personagem que busca alcançar a
posição de única conselheira do rei Leão, não sem antes manipular outros animais (o
Boi, o Elefante, o Coelho, o Pavão etc.). Os pesquisadores acreditam que Llull
desejava compor um “espelho de príncipes”, apontando as ameaças que cercavam o
governante francês daquele período – o capetíngio Filipe IV – e as qualidades morais
que ele deveria cultivar. Estamos diante de um texto metafórico, uma crítica à
sociedade dos homens.
Desde o fim da Idade Média, determinadas obras de Llull, como o Livro das
Bestas, tiveram uma ampla popularização e rapidamente foram traduzidas. As
adaptações infanto-juvenis produzidas a partir delas, por sua vez, surgiram no início
do século XX. Já naquela época, o alvo preferido foi o Livro das Bestas, que recebeu
uma versão para o público adulto (1905) e algumas para o público infantil, como a
edição El Llibre de les bèsties, contat als infants per Ana Rubies (1934). Durante a
comemoração do Any Llull (2015-2016), que marcou o sétimo centenário da morte
do filósofo, o processo adaptativo se intensificou: o Livro das Bestas ganhou várias
adaptações, com outras obras de Llull seguindo o mesmo caminho (Selfa Sastre, 2019:
74; Falguera Garcia & Selfa Sastre, 2020: 42-43).
Referências
Fontes
Libro de las Bestias (1986). Adaptação: Aurora Díaz Plaja. Barcelona: Ultramar Editores.
Ramon Llull (1990). Livro das Bestas. Tradução de Cláudio Giordano. São Paulo:
Editora Giordano; Edições Loyola.
Ramon Llull (2006). Livro das Bestas. Tradução de Ricardo da Costa. São Paulo: Editora
Escala.
Bibliografia
Falguera Garcia, E. & Selfa Sastre, M. (2020). El Llibre de les Bèsties (1287-1289) de
Ramon Llull: anàlisi d’adaptacions infantils i juvenils. Caplletra. Revista Internacional de
Filologia, 69, 39-60.
3Para introduzir o Livro das Bestas em sala de aula, ver as sugestões de Macedo (2003: 122-123) e Souza (2021:
544-545).
– Viemos de longínquas terras e, ao passar por uma planície, perto daqui, vimos uns
animais selvagens que pretendiam eleger um rei.
Félix, entusiasmado com a notícia, quis saber como era aquilo, para depois poder nos
explicar como as bestas se organizavam para eleger um rei. E eis aqui o que nos
contou:
O rei Leão
As bestas discutiam entre elas, e muitas acreditavam que o Leão era o mais indicado
para tornar-se rei, porque era forte e belo.
– Senhores, nosso rei deve ser grande, mas humilde, e, sobretudo, não pode trazer
danos a seus irmãos. Sendo carnívoro, o Leão come animais como nós. Elejam o
Cavalo, que é um animal grande e belo, não come carne e é uma besta ligeira e nada
orgulhosa.
Grande prazer causou o discurso do Boi às bestas que vivem somente de erva, como
o Cervo, o Cordeiro e a Cabrita. Mas foi aqui que a Raposa, a besta mais astuta e de
língua afiada, tomou a palavra e disse assim:
– Amigos, não devais dar ouvidos ao Boi, pois, se elegerdes o Cavalo como vosso rei,
tratando-se de uma besta nem valente nem forte, ele nunca nos defenderá quando
alguém mais forte nos atacar.
Quando o Cavalo e o Boi, desesperados ao verem que o rei havia comido os seus,
quiseram ir em busca do homem para pedir ajuda a fim de vingar-se do infame rei, o
homem simplesmente fez duas coisas: montar no Cavalo e colocar o Boi no arado,
fazendo-lhe trabalhar de sol a sol.
O Boi pensou que realmente seria melhor sentir-se uma besta, livre e tranquila, do
que trabalhar sem descanso entre estranhos, com o risco de ser esquartejado.
As armadilhas da Raposa
– Vossa vontade me fez rei, mas haveis de saber que é um ofício muito difícil, e
necessito de uns conselheiros que, igualmente, tereis que escolher entre vocês.
A Raposa estava confiante de ser a escolhida como a conselheira principal por haver
ajudado na nomeação do Leão como rei, mas os outros animais, conhecendo sua
malícia, tiveram medo de seus truques e escolheram o Urso, o Leopardo, o Lobo e a
Pantera; todos eles animais fortes, belos e valentes. E, sobretudo, leais ao rei, pois
eram de sua mesma condição de carnívoros.
Então, a Raposa, vendo-se excluída, mudou de estratégia e tomou a defesa dos pobres
animais que se nutrem de erva.
Essa defesa inesperada que a Raposa fez dos animais menosprezados pelo rei ao
escolher seu conselho agradou tanto aos animais que comem erva, que eles se
sentiram agradecidos e dispostos a seguir os conselhos da Raposa.
Ela, para convencer o Elefante de que devia lutar para converter-se um dia em rei,
explicou-lhe uma fábula que dizia assim:
O Leão e a Lebre
Eis que uma vez, em um país distante, um Leão feroz aterrorizava todas as bestas do
território, pois cada dia comia uma delas, e todas viviam com a alma por um fio. Um
dia, decidiram negociar com o desalmado Leão:
– Te prometemos que cada dia encontrarás uma caça na entrada de tua cova se nos
assegurares de que nós estaremos livres de tua constante perseguição.
O Leão aceitou maravilhado aquele plano tão cômodo, e, desde então, cada noite as
outras bestas sorteavam entre elas a que devia ser a vítima na manhã seguinte.
Mas é aqui que, um dia, a má sorte recaiu em uma pequena Lebre, que se fez de difícil
na hora de ir à cova do Leão. Não lhe agradava, de nenhuma maneira, acabar seus
dias na barriga do Leão. Por isso, quando não teve escolha senão se aproximar da
cova, o Leão estava furioso, porque a fome lhe corroía as entranhas.
– Perdoai-me, senhor, pois, ao vir até aqui, me deparei com outro Leão que,
avidamente, queria me comer. Eu tive que convencê-lo de que isso era impossível,
pois já estava destinada a ser a vossa comida de hoje. Não consegui convencê-lo e tive
que correr o máximo que pude para escapar de suas garras.
– O Leão disse que era impossível que houvesse outro Leão na comarca.
O Leão espia por cima dos muros e fica surpreendido. Efetivamente, à sua frente,
olhando fixamente, há outro Leão. Abre a boca para comê-lo, e o outro também abre.
Então, furioso, se lança sobre o seu rival e, naturalmente, como o outro Leão era
apenas o seu reflexo, cai dentro d’água e se afoga.
Dessa maneira, a pequena Lebre, animal herbívoro e muito humilde, não apenas se
salvou de uma morte certa, mas salvou também todas as bestas da região que estavam
destinadas ao sacrifício diário na goela do Leão.
O retorno do Boi
Quando a Raposa percebeu que não convencia o Elefante, procurou atrair o Boi, que,
tendo escapado da tirania do homem, havia há pouco retornado e andava fugindo da
presença do rei Leão por medo de que ele não perdoasse a sua deserção. A Raposa
lhe aconselhou que se apresentasse com toda a humildade para solicitar o perdão e
estava segura de que o rei lhe perdoaria.
E assim foi. O Leão não só lhe perdoou, como também o nomeou seu camareiro
maior, o que deixou o Boi enormemente agradecido, jurando fidelidade eterna ao rei.
A Raposa não gostou do que tinha acontecido, pois pretendia valer-se do Boi para se
vingar do Leão, desejosa de provocar sua queda.
A Raposa, astuta e má besta, vendo que não conseguia do Boi a traição que pretendia
inculcar-lhe, decidiu sacrificá-lo com suas artimanhas.
E eis que sendo aquele um inverno duríssimo, com muita neve e pouco alimento,
aproveitou a fome do rei para sugerir que ele comesse o Boi, pois era a maior besta
entre as muitas que existiam ao seu redor.
Então, a Raposa, dissimuladamente, foi ao encontro do Boi e lhe disse que o rei estava
tão faminto que ela e o Corvo haviam decidido se sacrificar, oferecendo-se como
iguaria. Contudo, ela afirmaria que a carne do Corvo era ruim, e o Corvo, por sua vez,
diria que a da Raposa era venenosa.
O Boi achou o plano muito bom. O Corvo, que era o porteiro e tinha de avisar ao rei
se houvesse alguma besta para comer, já estava de acordo com a jogada proposta pela
malvada Raposa.
O Boi, com sua boa-fé e lealdade ao Leão, ficou muito feliz em poder demonstrar-
lhe, sem nenhum risco, sua predisposição ao sacrifício.
O rei os recebeu com simpatia. O Corvo se ofereceu como primeira comida, mas a
Raposa desaconselhou ao rei que comesse a carne do Corvo, pois era muito má.
– Senhor, se a comida que o Corvo e a Raposa vos oferecem não é boa para vós,
pensai que a minha é abundante e muito farta. Se tendes fome, disponde de mim,
senhor.
O Corvo e a Raposa calaram-se como mortos. Ninguém abriu a boca para advertir
que a carne do Boi era pouco saudável. O silêncio era tão convincente que parecia
afirmar o contrário, que as palavras do Boi eram verídicas, sua carne era abundante e
boa para comer.
Por outro lado, sendo o próprio Boi que se oferecia, o rei tinha o direito de aceitar.
E, assim, o devorou.
Como vês, a Raposa seguia seu malvado plano, eliminando as bestas leais, e
conspirava a cada dia mais contra o rei. Faltava-lhe, porém, chegar ao triunfo final,
conquistando o trono. E voltou a intimidar o Elefante, prometendo-lhe a coroa se ele
a ajudasse a destronar o Leão. O Elefante não desejava reinar, mas não ousava
contradizer a Raposa, porque temia sua condenação, de modo que aparentou estar
convencido. Mas procurou avisar ao rei.
Mas o rei não se contentou com o que disse o Elefante sobre as armações da Raposa
e convocou outras bestas para que opinassem também. Os animais perderam o medo,
e todos se declararam contra a Raposa. O Coelho, o Pavão, o Corvo, o Porco Espinho
se manifestaram, contando as mil e uma trapaças da Raposa e como, por seu mau
conselho, o rei havia matado o bezerrinho e o jumentinho, havia comido o Boi e
como havia destroçado o lar do Leopardo, devorando sua fêmea e seus filhotes.
– Oh, senhor, meu rei. – ousava defender-se a Raposa – Isso não é de todo verdade,
pois sempre agia com boa intenção; tudo fazia com a finalidade do bem. Se provocava
o Elefante contra vós, era para provar se ele era fiel.
Mas, perante tanto cinismo, todos os animais, tanto carnívoros quanto herbívoros,
protestaram conjuntamente. E o rei decidiu matar a Raposa.
Desde então, o rei Leão reina em paz, rodeado de fiéis conselheiros e desprezando os
conselhos de falsos amigos.
– Que diabos estás fazendo? – perguntou o Papagaio. – Não vês que isso não é fogo?
O Macaco, sem fazer o menor caso, seguiu soprando com a maior vontade. O Corvo
disse ao Papagaio:
Cada noite se repetia a mesma coisa. O Macaco tentando acender a lenha em cima do
vagalume, o Papagaio buscando convencer-lhe de que era inútil tentar acender o fogo
e o Corvo querendo calar o Papagaio.
Mas, uma noite, o Papagaio não aguentou mais. Impaciente, desceu da árvore para
demonstrar ao Macaco seu erro. O Macaco, furioso, lhe acertou com um tronco e o
matou.
O Corvo tinha razão. Não há que dar conselhos a quem não os quer.