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O BRASIL NA MONARQUIA HISPÂNICA (1580-1668)

Novas interpretações
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

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HUMANITAS
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Foi feito o depósito legal


Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Dezembro 2016
DOI: 10.11606/9788577323203

Ana Paula Torres Megiani


José Manuel Santos Pérez
Kalina Vanderlei Silva
(Organizadores)

O BRASIL NA MONARQUIA HISPÂNICA (1580-1668)


Novas interpretações

História Diversa, v. 2

HUMANITAS
São Paulo, 2016
Copyright 2016 dos Autores

História Diversa, v. 2

Catalogação na Publicação (CIP)


Serviço de Biblioteca e Documentação da FFLCH-USP

O Brasil na Monarquia Hispânica (1580-1668)[recurso eletrônico] :


B823 novas interpretações / organizadores, Ana Paula Torres Megiani,
José Manuel Santos Pérez, Kalina Vanderlei Silva. -- São Paulo
: Humanitas, 2016.
953Kb; PDF. (História Diversa ; v. 2)

ISBN 978-85-7732-320-3
DOI: 10.11606/9788577323203

1. História do Brasil. 2. Período colonial (1500-1822).


3. Monarquia (Portugal, Espanha). 4. Historiografia. I. Megiani,
Ana Paula Torres. II. Pérez, José Manuel Santos. III. Silva, Kalina
Vanderlei. IV. Série.

CDD 981.03

SERVIÇO DE EDITORAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO


editorafflch@usp.br

Coordenação Editorial
Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840

Preparação e Revisão
Catarine Aurora Nogueira Pereira

Capa
Carlos Colentuano

Projeto Gráfico e Diagramação


Selma Consoli – MTb n. 28.839

Projeto Gráfico
Ricardo Duarte Marques
Sumário

7 Introdução

23 Visita, residência, venalidade: as “práticas castelhanas” no Brasil de


Filipe III
José Manuel Santos Pérez

39 Redes comerciais cristãs novas no Brasil durante o reinado de


Filipe III
Ana Hutz

59 A Provedoria-mor: fiscalidade e poder no Brasil colonial


Pedro Puntoni

91 De senhores de engenho a cortesãos: conexões entre a América


açucareira portuguesa e a Monarquia Católica no século XVII
Kalina Vanderlei Silva

113 Os brutos também leem: livros e leitores na São Paulo do período


filipino (1580-1640)
José Carlos Vilardaga

145 O Brasil e Felipe IV: uma aproximação


Rodrigo Ricupero
157 O Retorno do Rei: Restauração Portuguesa e memória filipina no
Maranhão e Grão-Pará (1640-1652)
Alírio Cardoso

181 O Brasil no contexto da Guerra de Restauração Portuguesa


(1640-1668)
Ana Paula Torres Megiani
Introdução

A América portuguesa, como o resto dos territórios lusos de ultramar,


entrou na órbita da Monarquia dos Habsburgo depois da aclamação
de Felipe II de Espanha como I de Portugal, nas Cortes de Tomar de
1581-1582. Este fato abriu um período, de 1580 a 1640, no qual as duas
coroas, hispana e lusa, estiveram unidas no corpo físico de um só rei,
constituindo o que genericamente tem sido conhecido como “União
Ibérica”. Não é um tema menor.1 O império de Felipe II, já muito extenso
depois das incorporações americanas, convertia-se numa estrutura de
dimensões “globais”, nos termos de hoje, “universal” como diziam os
homens da época. O conjunto passaria a ser conhecido como “Monarquia
Católica”, ou seu sinônimo, “Monarquia Universal”, a grande defensora
da fé católica frente aos seus dois maiores inimigos: o Islã e os rebeldes
protestantes. O período marcou de maneira fundamental o entendi-
mento – ou a falta dele – entre as duas potências ibéricas. A ideia de um
Portugal submetido a uma tirania espanhola, divulgada inúmeras vezes
no período da Restauração, ficou até hoje gravada a ferro na consciência
nacional portuguesa. São muito numerosos os livros, artigos e ensaios
escritos sobre essa questão basilar para a constituição da identidade na-
cional portuguesa, e também fundamental para entendermos as difíceis

1
Dada a imprecisão terminológica existente, preferimos o uso de “União de
Coroas”, “União Dinástica” ou “Período Filipino” antes que “União Ibérica”,
por ser esta uma expressão praticamente ausente na documentação da época
do estudo.
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

relações entre as duas “irmãs” ibéricas, “siamesas unidas pelas costas”


e condenadas a nunca se compreenderem, como muitas vezes se diz.2
Porém, se a parte portuguesa da América, a “Terra de Santa Cruz,
que vulgarmente chamamos Brasil” como diria Gândavo em 1576, fazia
parte desse conjunto, e se esse fato teve quaisquer consequências, são
questões que têm tido um interesse bem menor por parte dos historia-
dores, em relação a outros períodos. Nem a historiografia portuguesa,
nem a brasileira, e menos ainda a espanhola, se interessaram de maneira
efetiva pelo período.
Tal desinteresse, entre outras razões, pode ser explicado porque
a historiografia, filha de seu tempo, tem sido especialmente afetada
pela relação peculiar que emergiu entre Espanha e Portugal a partir de
1640, e mais tarde pela distância que a memória brasileira marcou em
relação aos problemas do passado de sua própria metrópole desde 1822.
Desse modo, as historiografias brasileira e portuguesa ignoraram, por
razões diversas, o sentido do período filipino. De fato, a época da União
Dinástica foi tratada tradicionalmente pela historiografia portuguesa de
tipo nacionalista como um período velado, escuro, com um resultado
catastrófico para a situação de Portugal no cenário mundial. A negligên-
cia dos reis da Casa de Áustria com as possessões portuguesas, a sua
preocupação extrema com as guerras na Europa e a prata americana
teriam determinado a cadeia de perdas das primeiras quatro décadas
do século XVII, especialmente entre os anos 1621 a 1641. Nesse curto

2
Entre os clássicos livros nacionalistas portugueses estão MARTINS, J. F.
Ferreira. O domínio de Castela e o Império Oriental. Porto: Livraria Civilização,
1940; e vários textos de VELLOSO, J. M. de Queiroz. O Interregno. In: PERES,
Damião (Dir.). História de Portugal. Edição Monumental Comemorativa do
8o Centenário da Fundação da Nacionalidade. Barcelos: Portucalense Editora,
1933. v. 5: Terceira Época – 1557/1640; ______. A perda da independência:
fatores internos e externos que para ela contribuíram. In: CONGRESSO MUNDO
PORTUGUÊS. Publicações... [S.l.]: [s.n.], 1940. t. I, v. VI; ______. O reinado do
Cardeal D. Henrique: a perda da independência. Lisboa: Empresa Nacional
de Publicidade, 1946; e ______. O Interregno dos governadores e o breve reina-
do de D. António. Lisboa: Sociedade Industrial Tipográfica João Pinto, 1956.

8
introdução

período de duas décadas, os portugueses viram o império marítimo do


Estado da Índia, organizado em entrepostos comerciais na Ásia como
Ormuz, Goa e Malaca, construído com enormes esforços em homens e
dinheiro durante o século XVI, cair indefeso ante os ataques de ingleses
e holandeses. Ademais, perdia-se Pernambuco e as capitanias do norte
do Brasil, a mais importante região de produção açucareira do impé-
rio, sendo recuperada, já no período restauracionista pelos esforçados
colonos luso-pernambucanos. Como não culpar a desastrosa política dos
Habsburgo pela enorme perda?
Para os brasileiros, o período teve um significado diferente.
Empenhados em mostrar as diferenças com Portugal, visando construir
uma identidade própria, consideraram esse tempo do passado não como
uma ingerência de um país estrangeiro nos assuntos da “casa”, se não
como a época que marcou o início de dois processos coevos que, no
norte e no sul, serviriam como fenômenos embrionários em torno dos
quais se construiria a identidade brasileira, já que ambos contribuíram
de maneira importante para definir algumas das grandes questões
do Brasil contemporâneo. Esses dois fatos foram, primeiro: a invasão
holandesa das capitanias do norte, seguida da consequente resistência dos
moradores e sua posterior vitória “a custa de nosso sangue e fazendas”;3
e segundo: o fenômeno “bandeirante” no sul. Portanto, a historiografia
brasileira não atribuía importância à União Dinástica propriamente dita,
e sim ao desenvolvimento interno produzido durante esse período, e que
contribuiu para a formação da identidade nacional. É curioso notar que
não foram feitas relações de causa-efeito, ou de outro teor, com a realidade
política da União das Coroas Ibéricas. Conforme essas interpretações, não
houve uma relação entre o que estava acontecendo no cenário mundial e
os sucessivos avanços dos colonos para o interior do território americano.
A leitura desse passado atribui, no máximo, a lacuna a uma certa falta de
interesse pelo território por parte dos conquistadores europeus, interesse
este que teria se manifestado antes e depois da União das Coroas.

3
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: O imaginário da restauração pernam-
bucana. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.

9
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

No caso espanhol, o período era visto como a constatação da


decadência do império hispânico durante o século XVII. Os limites
cronológicos do período, 1580 e 1640, seriam os marcos da realidade
imperial, o verso e o reverso, o momento mais brilhante e o mais sombrio
do poder dos Habsburgo espanhóis. 1580 seria o momento culminante,
a realização plena do poder castelhano-espanhol que surgiu de forma
quase irresistível desde finais do século XV. A anexação de Portugal seria
a afirmação desse poder. Muito pelo contrário, o ano de 1640, represen-
tava o desmoronamento do formidável edifício de 1580, com a separação
de Portugal, o intento de secessão da Catalunha, as revoltas regionais,
as derrotas navais e militares e a desastrosa situação econômica. Se o
Brasil esteve, ou não, dentro desses processos é uma questão pela qual
os historiadores espanhóis não demonstraram interesse.
A partir dessas constatações prévias, entendemos que os temas
da União das Coroas e da Guerra da Restauração necessitam também
ser repensados para além dos desejos nacionalistas das historiografias
portuguesa e brasileira. No pós-Revolução dos Cravos (1974), identifi-
camos a abertura dos horizontes de entendimento das conexões mais
amplas nos âmbitos europeu e mundial, bem como a reorientação da
análise sobre os conflitos nelas envolvidos e segundo as lógicas do
Antigo Regime. Entre os trabalhos que abriram um leque de novas
percepções, devemos recordar os estudos de alto rigor documental de
Joaquim Veríssimo Serrão,4 João Francisco Marques e o livro do histo-
riador brasileiro Eduardo D’Oliveira França, que aportou uma leitura da
perspectiva cultural ao processo de independência portuguesa, aliada aos
processos político e econômico também contemplados na obra.5 Dessa

4
SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: Governo dos Reis
Espanhóis (1580-1640). Lisboa: Verbo, 1979. v. 4; ______. O tempo dos Filipes
em Portugal e no Brasil (1580-1668). Lisboa: Colibri, 1994.
5
MARQUES, João Francisco. A parenética portuguesa e a Restauração: 1640-
-1668, A revolta e a mentalidade. Porto: Instituto Nacional de Investigação
Científica, 1989; ______. A parenética portuguesa e a dominação filipina.
Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1986; FRANÇA, Eduardo

10
introdução

maneira, foram sendo reequacionados os olhares sobre a incorporação


de Portugal pela Monarquia Hispânica e as dinâmicas da ruptura desse
vínculo. Nas últimas décadas, somaram-se os trabalhos fundamentais
de Luis Reis Torgal, António de Oliveira, António Manuel Hespanha,6
e ainda os estudos de Mafalda Soares da Cunha, Diogo Ramada Curto e
Fernando Dores Costa, entre muitos outros.7
No tocante à historiografia espanhola, como dissemos, o silêncio
sobre a União com Portugal (1580-1640) foi quase absoluto ao longo
de praticamente todo o século XX, e o mesmo ocorre com a Guerra de
Restauração até o início da década de 1980. Foram autores estrangeiros
como John Elliott e John Lynch que dedicaram maior número de páginas,
refletindo acerca do papel do reino lusitano e suas conquistas na composi-
ção dos quadros do poder e soberania dos reinados Habsburgo.8 As guerras
de Nápoles e da Catalunha até recentemente despertaram sempre mais
interesse na historiografia que a rebelião de Portugal. Porém, nos últimos
anos, cresce cada vez mais o número de historiadores interessados nos
temas e problemas da presença e da ruptura portuguesa na Monarquia

D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo: Hucitec, 1997 (texto


original de 1951).
6
TORGAL, Luís Reis. Ideologia política e teoria do Estado na Restauração.
Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1981. 2 v.; HESPANHA, António
Manuel. As vésperas do Leviathan: Instituições e poder político – Portugal séc.
XVII. Coimbra: Almedina, 1994; OLIVEIRA, António. Poder e oposição política
em Portugal no Período Filipino (1580-1640). Lisboa; Rio de Janeiro: Difel;
Bertrand do Brasil, 1991.
7
CUNHA, Mafalda Soares da. A Casa de Bragança 1560-1640: Práticas senho-
riais e redes clientelares. Lisboa: Estampa, 2000; CURTO, Diogo Ramada.
O discurso político em Portugal (1600-1650). Lisboa: Centro de Estudos
de História da Cultura Portuguesa, Projecto Universidade Aberta, 1988;
______. Cultura política no tempo dos Filipes (1580-1640). Lisboa: Edições 70,
2011; COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração. 1641-1668. Lisboa:
Livros Horizonte, 2004.
8
ELLIOTT, John H. La España Imperial (1469-1716). 6. ed. Trad. J. Marfany.
Barcelona: Vicens Vives, 1998 (original em inglês de 1965); LYNCH, John.
España bajo los Austrias (1516-1700). 7. ed. Trad. Josep María Bernadas.
Barcelona: Ediciones Peninsula, 1993. 2 v. (original em inglês de 1965).

11
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Hispânica, com destaque para os inúmeros estudos fundamentais de


Fernando J. Bouza Álvarez; mas além deles o livro de Félix Labrador
Arroyo e os trabalhos de Rafael Valladares.9 Destacam-se também os textos
dos historiadores franceses Serge Gruzinski, que considera o tempo da
Monarquia Hispânica como a primeira mundialização, e Jean-Frédéric
Schaub, que dedicou vários trabalhos a Portugal no período do Conde-
-Duque Olivares, além de escrever uma das sínteses sobre o período.10
No Brasil, o período filipino e os temas da aclamação de João
de Bragança como D. João IV de Portugal em 1640 e da Guerra de
Independência de Portugal têm sido pouco destacados, já que os fatos
que deles decorrem acabaram sendo ofuscados pela importância dada
à presença holandesa em Pernambuco, à qual, como afirmamos acima,
foram dedicados incontáveis estudos desde Francisco A. Varnhagen em
1871.11 Dentre os mais conhecidos internacionalmente, estão os trabalhos
de José Antônio Gonçalves de Mello e Evaldo Cabral de Mello.12 De certo
modo, a ideia de uma efetiva restauração acabou sendo postergada para

9
BOUZA ÁLVAREZ, Fernando J. Portugal no tempo dos Filipes: política, cultura,
representações (1580-1668). Trad. Ângela Barreto Xavier e Pedro Cardim.
Lisboa: Cosmos, 2000, além de inúmeros artigos; LABRADOR ARROYO, Félix.
La Casa Real en Portugal (1580-1621). Madrid: Polifemo, 2009; VALLADARES,
Rafael. Portugal y la Monarquía Hispánica (1580-1668). Madrid: Arco Libros,
2000; ______. A Independência de Portugal: Guerra e Restauração 1640-
-1680. Trad. Pedro Cardim. Lisboa: A esfera dos libros, 2006.
10
GRUZINSKI, Serge. Les quatre parties du monde: Histoire d’une mondialisation.
Paris: La Martinière, 2004; SCHAUB, Jean-Frédéric. Portugal na Monarquia
Hispânica (1580-1640). Trad. Isabel Cardeal Lisboa: Livros Horizonte, 2001;
______. Le Portugal au temps du Comte-Duc D’Olivares (1621-1640). Madrid:
Casa de Velázquez, 2001.
11
Edição mais recente: VARNHAGEN, Francisco A. História das lutas com os holan-
deses no Brasil: desde 1624 até 1654. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército,
2002.
12
MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos
e o Nordeste. 1641-1669. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998; ______.
Olinda restaurada: Guerra e açúcar no Nordeste 1630-1654. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1998.

12
introdução

o final da guerra de expulsão dos holandeses de Pernambuco em 1654,


considerada por muitos, até hoje, a “verdadeira” restauração do Brasil.
E apesar da permanente insistência nos estudos sobre o Brasil holan-
dês, foram escassos, mas de grande importância, os trabalhos de Jaime
Cortesão, Veríssimo Serrão, Charles Ralph Boxer, Alice Piffer Canabrava
e Stuart Schwartz na abertura de caminhos sobre a América portuguesa
na Monarquia Católica.13 Já o próprio Stuart Schwartz, no artigo “Luso-
-Spanish relations in Habsburg Brazil, 1580-1640” de 1968,14 apontava
para as grandes carências que esse período tinha nos estudos do Brasil
colônia e oferecia importantíssimas sugestões para futuras pesquisas.
Assim como em Portugal e Espanha, as novas contribuições da his-
toriografia brasileira, e estrangeira, sobre Brasil na Monarquia Hispânica
têm se dedicado aos estudos do processo de recuperação do Brasil pela
coroa portuguesa, entendida no contexto mais geral dos conflitos e das
negociações, de 1640 até 1670, aproximadamente. Entre os autores que
mais se dedicam ao tema – destacamos os estudos de Guida Marques,15
Francisco Cosentino,16 Bruno Guilherme Feitler17 e Rodrigo Bentes

13
CORTESÃO, Jaime. Raposo Tavares e a formação territorial do Brasil. Rio de
Janeiro: MEC, 1958; BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e
Angola, 1602-1686. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Edusp, 1973;
CANABRAVA, Alice P. O comércio português no Rio da Prata (1580-1640). 2. ed.
São Paulo: Edusp; Itatiaia, 1984.
14
SCHWARTZ, Stuart. Luso-Spanish relations in Hapsburg Brazil, 1580-1640.
The Americas, v. 25, p. 33-48, 1968.
15
MARQUES, Guida. O Estado do Brasil na União Ibérica. Dinâmicas políticas no
Brasil no tempo de Filipe II de Portugal. Penélope, n. 27, p. 185-189, 2002.
16
COSENTINO, Francisco. Governadores Gerais do Estado do Brasil (séculos XVI-
-XVII): ofício, regimentos, governação e trajetórias. São Paulo: Annablume,
2009.
17
FEITLER, Bruno Guilherme. Usos políticos del Santo Oficio portugués en el
Atlántico (Brasil y África Occidental): el período filipino. Hispania Sacra,
n. 119, p. 269-291, 2007; ______. Nas malhas da consciência: Igreja e
Inquisição no Brasil, Nordeste 1640-1750. São Paulo: Phoebus; Alameda,
2008; ______. Continuidades e rupturas da Igreja na América Portuguesa
no tempo dos Áustrias. A importância da questão indígena e do exemplo

13
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Monteiro, que se voltaram para os problemas da administração filipina


na América portuguesa, a questão religiosa e a ruptura como processo
múltiplo a partir de 1640.18 Vale ainda recordar as contribuições de Roseli
S. Stella e de Rafael Ruiz.19 Além destes, o trabalho importante realizado
por um historiador brasileiro e que amplia os limites do debate e de re-
flexão foi o de Luiz Felipe de Alencastro que, dedicado a desentranhar as
relações entre Brasil e África, na dimensão do Atlântico Sul, descortina
a construção das rotas e redes do tráfico negreiro, surgidas na primeira
metade do século XVII.20 Muito recentemente três estudos aportaram
ainda novas perspectivas sobre o período, os de José Carlos Vilardaga,
Rodrigo F. Bonciani e Wolfgang Lenk.21 E a história do comércio do açúcar,

espanhol. In: CARDIM, Pedro; COSTA, Pedro Leonor Freire; CUNHA, Mafalda
Soares da. (Org.) Portugal na Monarquia Hispânica. Dinâmicas de integração e
de conflito. Lisboa: Cham, 2013, p. 203-230.
18
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O Rei no Espelho: A monarquia portuguesa e
a colonização da América (1640-1720). São Paulo: Hucitec, 2002. Cf. os
trabalhos recentes de ALMEIDA, Gustavo Kelly de. Herói em processo: escrita
e diplomacia sobre D. Duarte de Bragança (1641-1649). Niterói, 2011. 163 f.
Dissertação (Mestrado em História Social) – Instituto de Ciências Humanas
e Filosofia, Universidade Federal Fluminense; e FERREIRA, Letícia dos
Santos. Amor, sacrifício e lealdade: o donativo para o casamento de Catarina
de Bragança e para a paz de Holanda. (Bahia, 1661-1725). Niterói, 2010.
187 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas
e Filosofia, Universidade Federal Fluminense.
19
STELLA, Roseli S. O domínio espanhol no Brasil durante a monarquia dos
Felipes (1580-1640). São Paulo: UNIBERO, 2000; RUIZ, Rafael. São Paulo na
Monarquia Hispânica. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência
“Raimundo Lúlio”, 2004.
20
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no
Atlântico Sul. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
21
VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na órbita do império dos Felipes:
conexões castelhanas de uma vila da América portuguesa durante a União Ibérica
(1580-1640). São Paulo, 2010. 399 f. Tese (Doutorado em História Social) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo; ______. “Manhas” e redes: Francisco de Souza e a governança em São
Paulo de Piratininga em tempos de União Ibérica. Anais de História de Além-
-Mar, Lisboa: Cham, v. XI, p. 103-144, 2011. BONCIANI, Rodrigo F. O dominium

14
introdução

base dos clássicos de Schwartz e Frédéric Mauro, tem tido importantes


avanços nos livros de Leonor Freire Costa e Christopher Ebert.22
Nos últimos anos, uma nova vaga de pesquisadores, dentre a
qual nos encontramos, tem olhado de maneira diferente para o período,
seja do ponto de vista das elites, das relações políticas e/ou de poder,
da importância do Brasil para o império dos Habsburgo, ou da política
fiscal do período.23

sobre os indígenas e africanos e a especificidade da soberania régia no Atlântico:


da colonização das ilhas à política ultramarina de Felipe III (1493-1615). São
Paulo, 2010. 323 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; ______.
A disputa por gentios e escravos no Atlântico Sul (1600-1615). In: MEDINA,
Diego Lévano; MONTOYA ESTRADA, Kelly (Org.). Corporaciones religiosas y
evangelización en Iberoamérica. Siglos XVI-XVIII. Lima: Centro Cultural
de San Marcos, 2010, p. 23-60; LENK, Wolfgang. Guerra e pacto colonial: a
Bahia contra o Brasil Holandês (1624-1654). São Paulo: Alameda, 2013;
______. Empire-building and the Sugar Business in the South Atlantic
(1621-1654). In: BÖTTCHER, Nikolaus; HAUSBERGER, Bernd; IBARRA, Antonio.
(Org.). Redes y negocios globales en el mundo ibérico, siglos XVI-XVIII. Madrid:
Iberoamericana, 2011, p. 87-106. (Bibliotheca Ibero-Americana).
22
COSTA, Leonor Freire. O transporte no Atlântico e a Companhia Geral do
Comércio do Brasil (1580-1663). Lisboa: CNCDP, 2002; EBERT, Christopher.
Between Empires: Brazilian Sugar in the Early Atlantic Economy, 1550-1630.
Leiden; Boston: Brill, 2008.
23
SANTOS PÉREZ, José Manuel. A estratégia dos Habsburgo para a América por-
tuguesa. Novas propostas para um velho assunto. In: ALMEIDA, Suely C. C de;
SILVA, G. C. de Melo; SILVA, Kalina Vanderlei; SOUZA, G. F. C. de (Org.). Políticas
e estratégias administrativas no Mundo Atlântico. Recife: Editora Universitária
UFPE, 2012, p. 247-253; ______. Filipe III e a ameaça neerlandesa no Brasil:
medos globais, estratégia real e respostas locais. In: WIESEBRON, Marianne
L. (Ed.). Brazilië in de Nederlandse archieven / O Brasil em arquivos neer-
landeses (1624-1654). Leiden: Leiden University Press, 2013, p. 41-71. (Serie
Mauritiana, v. 5); ______. The strategy of Phillip III in the South Atlantic. In:
ANTUNES, Catia (Ed.). The Pursuit of Empire: the Dutch and Portuguese colony
of Brazil, 1621-1668. Leiden: 2013 (no prelo); MEGIANI, Ana Paula T. Contar
coisas de todas as partes do mundo: as Relaciones de Sucesos e a circulação de
notícias escritas no período filipino. In: ALMEIDA, Suely C. C de; SILVA, G. C.

15
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Finalmente, sobre o impacto da Restauração na vida dos colonos


e da produção de um elemento de justificação popular nas revoltas
que ocorreram no Brasil durante a segunda metade do século XVII, o

de Melo; SILVA, Kalina Vanderlei; SOUZA, G. F. C. de (Org.). Cultura e sociabi-


lidades no mundo Atlântico. Recife: Editora Universitária UFPE, 2012, p. 469-
-483. v. 2; ______. Política e letras no tempo dos Filipes: o Império português
e as conexões de Manuel Severim de Faria e Luis Mendes de Vasconcelos. In:
BICALHO, Maria Fernanda B.; FERLINI, Vera Lucia A. (Org.). Modos de Governar:
Ideias e práticas políticas no Império Português. Séculos XVI a XIX. São
Paulo: Alameda, 2005, p. 239-256; ______. O Rei Ausente: festa e cultura
política nas visitas dos Filipes a Portugal (1581 e 1619). São Paulo: Alameda,
2004; SILVA, Kalina Vanderlei. O Herói Virtuoso, Prudente e Dissimulado: O
Cortesão como Ideal Masculino nas Cortes Ibéricas dos séculos XVI e XVII.
História, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 231-250, 2013; ______. Fidalgos, capitães e
senhores de engenho: o Humanismo, o Barroco e o diálogo cultural entre
Castela e a sociedade açucareira (Pernambuco, séculos XVI e XVII). Varia
História, Belo Horizonte, v. 28, n. 47, p. 235-257, 2012; ______. A América
açucareira portuguesa no governo de Felipe IV de Espanha. In: ALMEIDA,
Suely C. C. de; SILVA, G. C. de Melo; SILVA, Kalina Vanderlei; SOUZA, G. F.
C. de (Org.). Políticas e estratégias administrativas no Mundo Atlântico. Recife:
Editora Universitária UFPE, 2012, p. 255-270; ______. Processos de habilita-
ção de ‘naturais de Pernambuco’ na Ordem de Calatrava: conexões entre a
América Açucareira Portuguesa e a Corte Filipina (1580-1640). In: SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, XXVII, 2013, Natal. Anais... Natal: [s.n.], 2013,
p. 1-15. v. 1; PUNTONI, Pedro. O Estado do Brasil, poder e política na Bahia colo-
nial – 1548-1700. São Paulo: Alameda, 2013; ______. No tempo dos flamen-
gos: memória e imaginação. In: VIEIRA, Hugo Coelho; GALVÃO, Nara Neves
Pires; SILVA, Leonardo Dantas. (Org.). Brasil Holandês: história, memória e
patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda, 2012, p. 31-46; ______. A
Mísera Sorte: a escravidão africana no Brasil holandês e as guerras do tráfico
no Atlântico Sul, 1621-1648. São Paulo: Hucitec, 1999; RICUPERO, R. O Tempo
Dourado do Brasil no final do século XVI. In: GARRIDO, Álvaro; COSTA, Leonor
Freire; DUARTE, Luís Miguel. (Org.). Economia, Instituições e Império: estudos
em homenagem a Joaquim Romero de Magalhães. Coimbra: Almedina,
2012, p. 337-348; ______. A formação da elite colonial: Brasil c. 1530 – c. 1630.
São Paulo: Alameda, 2008; CARDOSO, Alírio. A conquista do Maranhão e
as disputas atlânticas na geopolítica da União Ibérica (1596-1626). Revista
Brasileira de História, São Paulo, v. 31, n. 61, p. 317-338, 2011.

16
introdução

estudo de Luciano R. A. Figueiredo nos permite conceber as maneiras


como circularam as ideias de rebelião e de resistência local, enquanto se
reconstituíam os vínculos entre as partes da América portuguesa e sua
metrópole original.24
Este balanço historiográfico objetiva apresentar o que se tem pro-
duzido de mais relevante nos estudos sobre as relações entre Portugal,
Espanha e América portuguesa no período filipino, mas, sobretudo,
como modo de apresentar o quanto complexa foi se tornando a pesquisa
acerca dessas relações, ampliadas de maneira considerável nas últimas
décadas, com a possibilidade de já estar defasada quando este livro estiver
definitivamente impresso. No Brasil, vivemos atualmente uma fase de
superação do descobrimento historiográfico do período da União das
Coroas Ibéricas, com o aprofundamento das investigações nos arquivos
portugueses e espanhóis, agora muito mais acessíveis aos historiadores
brasileiros do que há algumas décadas. Além disso, a Restauração de 1640
e a Guerra de Independência se têm convertido em tópicos obrigatórios
para quem se dedica a escrever a história da América portuguesa nos fi-
nais do século XVI e durante o século XVII. Contudo, muito ainda precisa
ser tratado, escrito e investigado sobre essa época e suas problemáticas.
Chegados a esse ponto, precisamos nos perguntar o que é que
ainda pode ser feito na pesquisa sobre esse período do Brasil colônia.
Talvez a grande questão seja a escassez de fontes. Se a história da
América portuguesa é focada fundamentalmente no século XVIII, não
é simplesmente devido ao fascínio pelo ouro, ou pelas reformas do
período, ou pelas maravilhas da arquitetura “barroca”. Se olharmos para
os documentos do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa – o grande
repositório documental tradicionalmente usado pelos historiadores
modernistas, e que agora está sendo amplamente explorado pelos histo-
riadores jovens em razão da digitalização de parte do seu acervo realizada

24
FIGUEIREDO, Luciano R. A. O Império em apuros: notas para o estudo
das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império colonial
português, sécs. XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos
oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império
ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 197-254.

17
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

pelo Projeto Resgate – as fontes sobre o final do século XVI e a primeira


metade do XVII são, em comparação com as do século XVIII, muito es-
cassas. E se tirássemos do período anterior a 1650 as questões relativas
às guerras com os holandeses, o panorama seria ainda mais rarefeito.
Por isso, para avançarmos com a análise do período filipino da
América portuguesa, uma das primeiras ações deve ser abrirmos o leque
de acervos a serem utilizados. De um lado, em Portugal, o Arquivo da
Torre do Tombo e a Biblioteca da Ajuda possuem importantes fontes sobre
esse período. Vários dos últimos trabalhos publicados pelos historiado-
res especialistas, alguns deles presentes neste livro, têm visitado esses
arquivos. Naturalmente, os acervos espanhóis devem ser também mais
explorados: o Archivo General de Simancas foi a grande descoberta para
os historiadores brasileiros das últimas duas décadas. Ainda guarda muito
material a ser explorado, mas talvez já não seja a panaceia que parecia
ser dez anos atrás. O Archivo General de Indias, em Sevilha, continua
sendo o grande arquivo sobre a história da América hispânica, e é um
importante acervo também para assuntos da América portuguesa, seja
pelos contatos com Buenos Aires, seja pela quantidade de informações
econômicas, administrativas, militares e outras que atesoura nas suas
imensas e incontáveis prateleiras. O outro grande centro documental na
Espanha é a Biblioteca Nacional de Madrid. Nas coleções de manuscritos,
há importantes informações para o período da União de Coroas esperando
pelos historiadores. Nos últimos anos, foram publicados guias basilares
para o uso de fontes sobre o Brasil na Espanha que, sem dúvida, serão
de utilidade para os futuros pesquisadores.25
São muitos os temas a serem tratados no futuro. Um exemplo são
os assuntos fiscais, fundamentais para entendermos o papel do Brasil

25
GARCÍA LÓPEZ, María Belén. Fuentes para la historia colonial de Brasil en
los archivos españoles. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Guide du chercheur
américaniste, 2009. Disponível em: <http://nuevomundo.revues.
org/56980>; LÓPEZ GÓMEZ, Pedro; GARCÍA MIRAZ, Mª del Mar. Fuentes
archivísticas para la historia del Brasil en España (Siglos XV-XVII). Revista
de Indias, v. LX, n. 218, p. 135-179, 2000; GONZÁLEZ MARTÍNEZ, Elda E. Guía
de fuentes manuscritas para la historia de Brasil conservadas en España. Madrid:
Fundación MAPFRE TAVERA, 2002.

18
introdução

no conjunto do império dos Habsburgo. Além das questões relativas ao


poder, bem como sua configuração no império português e no âmbito
do conjunto maior das possessões dos Habsburgo.
Por sua vez, o estudo das elites coloniais em conexão com o
contexto da Monarquia Católica também tem se mostrado promissor.
Atualmente, a historiografia brasileira colonialista tem dado uma grande
ênfase a essas elites, mas em trabalhos que, em geral, têm se mantido
firmemente atrelados ao século XVIII. Poucos são aqueles historiadores
que se aventuram no século XVII, e menos ainda aqueles que procuram
pensar esses grupos sociais no período filipino. Entre aqueles que o
fazem, vale a pena destacar Regina Célia Gonçalves que, ao esmiuçar a
participação da elite açucareira no processo de conquista e consolidação
colonial na Paraíba, trouxe à tona os conflitos da elite mazomba com
os representantes do governo filipino.26 Outra perspectiva que merece
atenção é aquela que se debruça sobre a remuneração dos serviços pres-
tados pelos senhores de engenho durante as guerras holandesas. E se a
maioria dos trabalhos sobre o tema atenta para o período pós-Restauração
e as solicitações atendidas pelos Bragança,27 não podemos esquecer dois
importantes estudos, hoje clássicos, que abordam essas remunerações
no período da União Dinástica: S. Schwartz mais uma vez, com sua
“jornada dos vassalos” e Cleonir Xavier com seu detalhado levantamento

26
GONÇALVES, Regina C. O Capitão-Mor e o Senhor de Engenho: os conflitos
entre um burocrata do rei e um ‘nobre da terra’ na Capitania Real da Paraíba
(Século XVII). In: CONGRESSO INTERNACIONAL ESPAÇO ATLÂNTICO DE ANTIGO
REGIME: PODERES E SOCIEDADES, 2005. Actas... Lisboa: Instituto Camões, 2008,
p. 1-14. v. 1; ______. Guerras e Açúcares: política e economia na capitania da
Parayba – 1585-1630. São Paulo: Edusc, 2007.
27
Bom exemplo é o recente trabalho de Thiago Krause sobre os hábitos mi-
litares concedidos como remuneração da guerra holandesa a Pernambuco
e Bahia. KRAUSE, Thiago Nascimento. Em busca da honra: a remuneração
dos serviços da guerra holandesa e os hábitos das ordens militares (Bahia e
Pernambuco, 1641-1683). São Paulo: Annablume, 2012.

19
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

da cobrança de impostos no Pernambuco filipino e da aplicação desses


recursos na defesa.28
Nesse sentido, parece essencial uma reconstrução em termos com-
parados das relações de poder, nomeação e provisão de cargos, venalidade
e relações entre os distintos atores. Os projetos em andamento, coordena-
dos pelos organizadores do presente volume, estão tentando cobrir essas
lacunas na historiografia.29 E foi com base em tais projetos e preocupa-
ções que o presente livro foi se construindo. Originado de discussões e
inquietações frequentes, os textos foram tomando forma principalmente
a partir de dois encontros, ambos intitulados o Brasil na Monarquia
Hispânica, realizados em 2012, respectivamente em Salamanca e em
São Paulo. As reflexões frutificaram e levaram a novos trabalhos, como o
evento temático realizado no XXVIII Simpósio Nacional de História em
2013, em Natal (RN), e semeando as possibilidades para novos artigos e
projetos. Os autores participantes do volume são professores de diferentes
instituições envolvidas neste esforço, pesquisadores experientes e que

28
SCHWARTZ, Stuart B. The Voyage of the Vassals: Royal Power, Noble
Obligations, and Merchant Capital before the Portuguese Restoration
of Independence, 1624-1640. The American Historical Review, v. 96, n. 3,
p. 735-762, 1991; COSTA, Cleonir Xavier de Albuquerque da Graça e. Receita e
Despesa do Estado do Brasil no Período Filipino: aspectos fiscais da administração
colonial. Recife, 1985. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade
Federal de Pernambuco.
29
“Redes políticas, comerciantes y militares en Brasil durante la Monarquía
Hispánica y sus postrimerías (1580-1680)”, projeto financiado pelo
Ministerio de Economía y Competitividad da Espanha, coordenado por
José Manuel Santos Pérez e Kalina Vanderlei Silva. “Brasil en la Monarquía
Hispánica: cultura política, negocios y misiones durante la Unión de
Coronas Ibéricas y la Guerra de Restauración (1580-1668) / O Brasil na
Monarquia Hispânica: cultura política, negócios e missionação durante a
União das Coroas Ibéricas e a Guerra de Restauração (1580-1668)”, pro-
grama de cooperação USAL/USP, coordenado por Ana Paula Megiani e José
Manuel Santos Pérez. “Pernambuco no Processo de Mundialização da Idade
Moderna: As Conexões da América Açucareira com o Império Espanhol nos
Séculos XVI e XVII”, projeto coordenado por Kalina Vanderlei Silva e finan-
ciado pela FACEPE, 2013-2015.

20
introdução

contribuíram para a formulação das diversas frentes de trabalho que o


grupo pretende prosseguir investigando.30
Por tudo isso, a obra agora em suas mãos é tanto um convite a
um período que precisa ser revisitado, tradicionalmente conhecido como
Brasil Filipino, quanto um mapa para os possíveis caminhos abertos à
navegação no mesmo.
Boa leitura!
Os organizadores.

30
Além de professores da Universidade de Salamanca e Universidade de
São Paulo, que deram origem ao grupo por meio do convênio firmado em
2011, participam do volume professores da Universidade de Pernambuco,
Universidade Federal do Maranhão, Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo e Universidade Federal de São Paulo.

21
Visita, residência, venalidade: as “práticas
castelhanas” no Brasil de Filipe III*

José Manuel Santos Pérez1

Durante os últimos anos, trabalhamos sobre a questão do Brasil na


Monarquia Hispânica, fundamentalmente durante o período de Filipe
III, II de Portugal. A pergunta de “como era considerada a América por-
tuguesa dentro dos territórios ultramarinos dos Habsburgo?”, que guia
a maior parte dos nossos projetos, começa, aos poucos, a ser respondida.
O período de Filipe III foi escolhido porque é menos conhecido que o
seguinte, de Filipe IV, e porque os 23 anos do reinado foram muito im-
portantes para o desenvolvimento do território português na América.
Em outros textos e publicações foram já identificadas as questões
que consideramos mais relevantes para o período de Filipe III:2

*
Pesquisa financiada pelo projeto “Redes politícas, comerciantes y militares
en Brasil durante la Monarquía Hispánica y sus postrimerías (1580-1680)”
(HAR2012-35978) do Ministerio de Economía y Competitividad.
1
Professor de História do Brasil na Universidade de Salamanca.
2
SANTOS PÉREZ, J. M. A estratégia dos Habsburgo para a América portuguesa.
Novas propostas para um velho assunto. In: ALMEIDA, Suely C. C de; SILVA,
G. C. de Melo; SILVA, Kalina V.; SOUZA, G. F. C. de (Org.). Políticas e estraté-
gias administrativas no Mundo Atlântico. Recife: Editora Universitária UFPE,
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

1) A preocupação pela defesa do território;


2) A organização (falida) contra a ameaça holandesa, tanto militar
quanto econômica;
3) A ideia de Brasil como outro Peru e, em relação com esta
questão, uma mudança na política para com os indígenas e
os jesuítas;
4) E, finalmente, o desenvolvimento de uma reforma fiscal, com
uma maior centralização e controle por parte da coroa, junto
com um maior desenvolvimento institucional.
Achamos que um ponto importante para o melhor conhecimento
do período é aplicar um enfoque de tipo global e comparativo, sem fugir,
é claro, de análises micro. O jeu d’échelles é essencial para a análise que
nos ocupa.3
Dentro da questão comparativa, é fundamental o contraste
com o que está acontecendo na mesma época em outros territórios da
Monarquia Hispânica, e fazer uma interpretação da situação no Brasil
com o filtro das políticas postas em prática pela coroa para os outros
territórios ultramarinos dos Habsburgo. A eficácia da comparação já foi
provada em trabalhos anteriores que se ocuparam da política indígena
e a relação com as ordens religiosas, especialmente com os jesuítas.4

2012, p. 247-253; ______. Filipe III e a ameaça neerlandesa no Brasil: medos


globais, estratégia real e respostas locais. In: WIESEBRON, Marianne L. (Ed.).
Brazilië in de Nederlandse archieven / O Brasil em arquivos neerlandeses (1624-
-1654). Leiden: Leiden University Press, 2013, p. 41-71. (Serie Mauritiana,
v. 5); ______. Brazil and the Politics of the Spanish Hapsburgs in the South
Atlantic (1580-1640). In: ALENCASTRO, Luiz Felipe (Ed.). The South Atlantic,
Past and Present. Portuguese Literary & Cultural Studies 27. Massachusetts:
University of Massachusetts. (no prelo).
3
REVEL, Jacques (Ed.). Jeu d’échelles: La micro-analyse à l’expérience. Paris:
EHESS, 1996.
4
RUIZ, Rafael. La política legislativa con relación a los indígenas en la región
sur del Brasil durante la Unión de las Coronas (1580-1640). Revista de Indias,
v. 62, n. 224, p. 17-40, 2002; ______. São Paulo na Monarquia Hispânica.
São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência “Raimundo Lúlio”,

24
visita, residência, venalidade

Como hipótese geral para esse período de Filipe III, propomos


que o que se produz é uma aproximação com a estratégia que já estava
sendo implementada na América espanhola.5 É lógico pensar, e assim
parece do relato de alguns contemporâneos, que a América espanhola
era considerada o modelo melhor sucedido de exploração dos territórios
americanos a inícios do século XVII. Isso tinha a ver, naturalmente, com
a aparição das grandes minas de metais preciosos, mas também com uma
maneira de entender a estratégia e a organização do esforço conquistador
e colonizador. Algumas ideias que pareciam que funcionavam deviam ser
igualmente praticadas na América portuguesa, e isso era uma concepção
que estava não apenas na mente das autoridades europeias, como ainda
nas de alguns dos habitantes dos territórios americanos. Com certeza,
as instituições intermediárias portuguesas eram, às vezes, consultadas,
mas outras não, e isso levou a interessantes conflitos e debates sobre
as melhores formas de atuação. Algumas das estratégias que, na época,
estavam sendo praticadas na América hispânica eram:

2004; ______. The Spanish-Dutch War and the Policy of the Spanish Crown
Toward the Town of São Paulo. Itinerario, v. 26, n. 1, p. 107-125, 2002;
BONCIANI, Rodrigo. O dominium sobre os indígenas e africanos e a especificidade
da soberania régia no Atlântico: da colonização das ilhas à política ultramarina
de Felipe III (1493-1615). São Paulo, 2010. 323 f. Tese (Doutorado em História
Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo.
5
VILARDAGA, J. C. São Paulo na órbita do império dos Felipes: conexões castelha-
nas de uma vila da América portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640).
São Paulo, 2010. 399 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo; MARQUES,
Guida. L’Invention du Brésil entre deux monarchies: Gouvernement et prati-
ques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union ibérique. Paris, 2009.
Tese (Doutorado) – École de Hautes Études de Sciences Sociales; CARDOSO,
Alírio. Maranhão na Monarquia Hispânica: intercâmbios, guerra e navega-
ção nas fronteiras das Índias de Castela (1580-1655). Salamanca, 2012. 436 f.
Tese (Doutorado em História) – Universidade de Salamanca; COSENTINO,
Francisco Carlos. Governadores Gerais do Estado do Brasil (século XVI e XVII):
ofício, regimentos, governação e trajetórias. Niterói, 2005. Tese (Doutorado em
História) – Universidade Federal Fluminense.

25
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

– controle sobre as ordens religiosas, que apenas deviam cuidar


das almas e não das questões políticas;
– proibição da escravidão indígena, mas com uma organização
do trabalho forçado;
– maior presença da coroa no território, com uma maior expan-
são dos agentes da coroa;
– e uma política fiscal que ajudasse a pagar os grandes custos
do esforço imperial: a principal fonte de ingressos seria assim
o “tributo” indígena, seguido da alcabala e o quinto da prata
e os metais preciosos.
Várias destas estratégias começaram a ser aplicadas de igual
modo no território português na América. Por exemplo, sabemos que a
política das autoridades face aos indígenas no Brasil foi uma das grandes
questões da política imperial ao final do reinado de Filipe II e durante a
primeira década de Filipe III, e que teve um momento significativo com
a promulgação dos alvarás de 1609 e 1611 que, basicamente, acabavam
com o poder que os jesuítas tinham, de forma quase monopolística, na
organização das populações nativas. É nesse momento também que en-
tram as ordens religiosas concorrentes dos jesuítas, como beneditinos
e franciscanos. Vários autores têm analisado esta questão, notadamente
Rafael Ruiz e Rodrigo Bonciani, e não vou insistir mais nela, mas foi
uma das mais destacadas do período.6
Agora é importante salientar outros aspectos que, nessa análise
comparativa, devem render frutos no futuro. Dentro da ideia da buro-
cracia, em geral, e da colônia, em particular, existem vários aspectos que
parecem trasladar-se dos usos e costumes da América hispânica para a
América portuguesa. Destacamos entre estes a aparição da “visita” e a
“residência”. Para o controle dos burocratas reais nas Índias de Castela,
existiam duas figuras fundamentais: a “residência” (isto é, o julgamento
que um oficial fazia do seu antecessor no cargo) e a “visita” (o envio de um

6
RUIZ, Rafael. La política legislativa con relación a los indígenas en la región
sur del Brasil durante la Unión de las Coronas (1580-1640), op. cit.; BONCIANI,
Rodrigo, op. cit.

26
visita, residência, venalidade

oficial que tinha plenos poderes no território para investigar os possíveis


casos de corrupção). Tanto uma como outra figura foram introduzidas
na América portuguesa.
É interessante, para isso, a figura de Sebastião de Carvalho, já
conhecida, mas que não tem sido vista dentro deste enfoque comparatista:
em 1606, ele viajou com poderes especiais para Salvador e Recife, com a
missão principal de investigar os descaminhos do contrato do pau-brasil.
Carvalho chegou com a mesma capacidade para decidir e julgar que
tinham na América espanhola os “visitadores”, que eram encarregados
de missões do mesmo tipo. Por exemplo, a visita de Juan de Mañozca
e Juan Galdós de Valencia a Quito, em 1624, analisada por John Leddy
Phelan no clássico The Kingdom of Quito in the Seventeenth Century.7
Que Carvalho era uma figura especial, e que seus poderes eram os
do “visitador”, pode ser constatado numa carta de Filipe III ao Conselho
da Índia de 1606. Nela, o desembargador recebe uma nova ordem para
a inspeção no Brasil: além de pesquisar sobre os contratos do pau-brasil,
devia também ver o estado em que se encontravam as fortalezas e se o
estado delas era bom e defensável. Porém, como esse não era assunto
da especialidade do juiz, a coroa pedia que, nessa ocasião, a investigação
não tivesse forma de visita, mas somente de informação.8 No mesmo
documento, Carvalho é encarregado da missão de realizar a residência do
Ouvidor Geral e do Provedor-mor dos defuntos, junto com o Chanceler
da Relação, que estava já em preparativos para começar a funcionar.
Ademais, tinha a responsabilidade de fazer a residência de Francisco de
Sousa do seu período anterior como governador do Brasil, que, nesse
momento, tentava convencer às autoridades da existência de minas de
ouro no sul do Brasil.
Na América hispânica, a residência era uma investigação que
se fazia sobre o período de governo de um cargo da administração.

7
PHELAN, J. L. The Kingdom of Quito in the Seventeenth Century: Bureaucratic
politics in the Spanish Empire. Madison: The University of Wisconsin Press,
1967.
8
Biblioteca da Ajuda, (BA), Cod. 51-VII-15, f. 112.

27
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Normalmente era feita pelo sucessor, mas, às vezes, podia haver outras
pessoas encarregadas da missão. A figura da residência cumpre um papel
muito importante nesse período. A instituição foi introduzida em 1603
para todos os ofícios governativos em todos os territórios portugueses da
península e ultramar.9 Portanto, Francisco de Sousa devia ser o primeiro
governador que devia passar neste “exame” ao final do seu período de
governo. O qual não deixa de ser interessante porque, dentre os privilégios
que Francisco de Sousa havia conseguido no momento de ser nomeado
governador das Capitanias de Baixo, um era o de ser exonerado da resi-
dência devida como governador do estado do Brasil entre 1592 e 1602.
Consideramos que essa figura do “visitador” real e a generalização
da residência fazem entrar a América portuguesa dentro do modelo de
império que os Habsburgo tinham na América espanhola. Os reis da
Casa de Áustria confiavam muito nessas duas instituições da visita e re-
sidência para ter um controle efetivo nos domínios de ultramar. A velha
historiografia hispânica que estudava os órgãos administrativos consi-
derava essas figuras como os melhores exemplos da eficácia do império
burocrata renascentista dos Habsburgo. O historiador Leddy Phelan, nos
anos 1960, além de uma enorme quantidade de trabalhos nos anos 1970
e 1980, demonstrou que, apesar dos mecanismos de inspeção, a venda de
cargos e a corrupção generalizada e permitida pela coroa eram a essência
do império habsbúrguico de ultramar. Elas configuravam uma estrutura
na qual as redes familiares dominavam os cargos burocráticos para o seu
próprio proveito e manipulavam a seu favor as visitas e as residências.10
Se isso foi assim, ou começava a ser assim na América portuguesa,
é algo que ainda não sabemos e devemos avançar na pesquisa para um
melhor conhecimento.
Outra grande questão é a venalidade de cargos. São conhecidos
os argumentos dos homens da pós-Restauração portuguesa, segundo

9
VILARDAGA, J. C., op. cit., p. 182.
10
SANTOS PÉREZ, J. M. Élites, poder local y régimen colonial: El Cabildo y
los regidores de Santiago de Guatemala, 1700-1787. Cádiz: Servicio de
publicaciones de la Universidad de Cádiz, 1999.

28
visita, residência, venalidade

os quais o período dos Filipes teria sido um autêntico leilão de cargos.11


Também os pregadores de Portugal, durante o reinado de Filipe II,
mostravam-se alarmados de que “com tendas abertas e publicamente se
vendiam os cargos, os bispados, as comendas, os títulos, e toda a maneira
de cargos, ofícios e dignidades”.12 A ideia seria que o período dos Filipes
foi de um aumento muito significativo da venalidade em comparação
com o período prévio e com o período dos Bragança. Essas afirmações,
características da animada versão do período restauracionista, têm sido
contestadas por alguns autores recentes, que já demonstraram que
a venalidade teve um importante desenvolvimento desde meados do
século XVI, antes do período filipino.13 Porém, a venalidade na América
portuguesa continua sendo uma questão obscura, pouco estudada, se
compararmos com os estudos que foram realizados para a América
espanhola, e pior ainda se pensarmos no período da União das Coroas.
Pelo contrário, a questão da venalidade na Monarquia Hispânica
tem tido uma renovação historiográfica nos últimos anos, com os tra-
balhos de Andújar Del Castillo, fundamentalmente para o período dos
Bourbons.14 Temos já uma tipologia e alguns esclarecimentos conceituais.

11
STUMPF, Roberta G. Formas de venalidade de ofícios na monarquia portu-
guesa do século XVIII. In: ______.; CHATURVEDULA, N. (Org.). Cargos e ofícios
nas monarquias ibéricas: provimento, controlo e venalidade (séculos XVII-
-XVIII). Lisboa: Cham, 2012, p. 279-298; ______. Venalidad de oficios en la
Monarquía portuguesa: un balance preliminar, e OLIVAL, Fernanda. Economía
de la merced y venalidad en Portugal (siglos XVII-XVIII). In: ANDÚJAR DEL
CASTILLO, F.; FELICES DE LA FUENTE, M. del Mar (Ed.). El poder del dinero: Ventas
de cargos y honores en el Antiguo Régimen. Madrid: Biblioteca Nueva, 2011,
p. 331-344, 345-357 (respectivamente).
12
Citado em STUMPF, Roberta G. Venalidad de oficios en la Monarquía
portuguesa: un balance preliminar, op. cit., p. 335.
13
SILVA, F. R. da. Venalidade e hereditariedade dos ofícios públicos em Portugal
nos séculos XVI e XVII. Alguns aspectos. Revista de História, v. 8, p. 203-213,
1988.
14
ANDÚJAR DEL CASTILLO, F. El sonido del dinero: Monarquía, ejército y vena-
lidad en la España del siglo XVIII. Madrid: Marcial Pons, 2004; ______.
Venalidad de oficios y honores. Metodología de investigación. In: STUMPF,

29
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Recentemente, encontramos na Biblioteca da Ajuda de Lisboa um


importante documento para o conhecimento dessa questão durante o pe-
ríodo da União das Coroas. Trata-se da “Relaçao dos officiosdapresentaçao
de S. Magde da Justiçae fazenda e o que valem de renda e de compra
em vida ao respto e reputaçao em que hoie estão ea o modo e forma
q dellesusaohoie os qe os servem”.15
Não existem estudos sobre essa questão para esse período. Mesmo
se alguns autores já citaram este documento, fazem-no como prova do
afã reformador existente na primeira etapa de Filipe III, e não tanto como
um exemplo do que está acontecendo com a venalidade.16 O contexto em
que se insere este documento é a grande onda de petições de informação
por parte das autoridades espanholas, que percorre os primeiros cinco
ou dez anos do século XVII para conhecerem a situação do Estado do
Brasil, fundamentalmente financeira, mas também em aspectos como
ofícios, contratos, fortalezas e outros.
Em várias cartas das autoridades ao Vice-rei e ao Conselho da
Índia, no ano de 1606, estão pedindo esclarecimentos sobre a questão
do “ordenado”, o salário atribuído aos oficiais que, às vezes, trata-se de
uma quantidade fixa; porém, em outras ocasiões, é uma porcentagem do
“orçamento” (ou seja, a quantidade que o contratista pagava à coroa pelo
arrendamento da arrecadação dos impostos nas capitanias).
“El rey” está pedindo que, em alguns casos, acabe esse tipo de prá-
tica, e pede também a supressão de alguns cargos, talvez por considerar
que existem demasiados abusos.

R. G.; CHATURVEDULA, N. (Org.) Cargos e ofícios nas monarquias ibéricas: provi-


mento, controlo e venalidade (séculos XVII-XVIII), op. cit., p. 175-198.
15
Biblioteca da Ajuda, Cod. 51-VI-54.
16
MARQUES, Guida. De um governo ultramarino: a institucionalização da
América Portuguesa no tempo da união das coroas (1580-1640). In: CARDIM,
Pedro; COSTA, Freire; CUNHA, Mafalda Soares da (Org.). Portugal na Monarquia
Hispânica: dinâmicas de integração e conflito. Lisboa: Cham, 2013, p. 235.

30
visita, residência, venalidade

Finalmente, em 1606, o governador Diogo Botelho e o provedor


Ferraz que, aliás, vai ter o seu cargo suprimido, realizam um exaustivo
estudo da situação dos ofícios de data de 2 de outubro de 1606.17 O rela-
tório chega ao Conselho da Índia no dia 24 de abril de 1607.
O documento consiste em seis folhas, com duas cópias, dividido
por capitanias, com a informação do “ordenado”, os “percalços” e o valor
de compra de todos os cargos das capitanias portuguesas (Ver tabela 1).
O preço de compra varia se é “em vida”, isto é “vitalício”, ou não, e
está relacionado diretamente com as quantidades que os diferentes ofícios
podem render através dos “percalços”, os benefícios extraordinários fora
do “ordenado”. O ofício pelo qual mais se paga é o de Escrivão da Fazenda
da Bahia (um conto e 10.000 réis). Vários ofícios dessa capitania, a que
possui mais cargos vendidos, estão à venda por um conto. Os preços
variam de 30.000 réis, o menor valor pago, até um conto e 10.000 réis,
comentado anteriormente. Os ofícios maiores (capitão, ouvidor geral) não
têm preço de compra, e parecem estar fora do “mercado”. São os postos
com mais capacidade para conseguir os “percalços” os que parecem ter
um preço maior, porém isto não é sempre assim. Há cargos, como o de
“Alcaide-mor”, que o próprio documento diz que se compra mais “pela
honra” que por razões econômicas.
Portanto, parece que os cargos são considerados como empresas
cujo benefício deve ser maximizado. De novo, a comparação com a
América espanhola é interessante. A lista lembra muito o que se fazia
na América espanhola com os cargos, fundamentalmente os que tinham
população indígena na jurisdição. No caso da América portuguesa, são os
portos, claramente com maiores operações econômicas, os que rendem
maiores benefícios, mas, nos dois casos, parece claro que a pessoa que
compra entende que deve maximizar o lucro, entendendo o cargo como
uma empresa... Mas como já falamos, nem sempre é assim, já que alguns
cargos só têm interesse na honra.

17
CARTA de S. M. ao Conselho da Índia. 30 de dezembro de 1606. Biblioteca da
Ajuda, (BA), Cod. 51-VII-15.

31
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Confirmaria este documento o que já apontou a historiografia


nacionalista sobre o período filipino e a grande venalidade nessa época?
Achamos que não é bem assim. O que esse documento demonstraria seria
que as vendas estavam sendo feitas pelos particulares entre si. Quando
Filipe II legalizou a venda de cargos na América espanhola (as regidurías
e os cargos de escrivão), no ano de 1591, o que estava fazendo não era
incentivar a realização das compras e vendas, mas passar a controlar, e
ganhar um rendimento, num negócio em que a coroa não estava levando
nada, já que eram os particulares quem faziam a compra-venda. Parece
que este documento que apresentamos tem a ver também com este
mesmo processo, com a ideia de um maior controle por parte da coroa.
A coroa estaria recebendo notícias precisas para conseguir uma maior
arrecadação e uma informação que não tinha, ou que era muito obscura,
sobre quem e de que maneira estavam ocupando os cargos.
A coroa devia ter ainda um interesse em aumentar a proporção da
América portuguesa nos ingressos totais do império. Nos últimos anos,
vários estudos mostram a pouca importância do território do Brasil no
total do império a inícios do século XVII, em comparação com o Estado
da Índia ou com a América hispânica. No total, o Brasil representava
apenas 4,7% do total da receita arrecadada pela administração portuguesa
do império espanhol em 1607.18
Em geral, esses estudos mostram que, no início do século XVII, o
Estado do Brasil era rentável e que gerava superávits no orçamento graças
à arrecadação do dízimo, com a indústria açucareira em crescimento,
e graças ao contrato do pau-brasil, o mais importante dos contratos da
coroa na região nessa época. Porém, essa situação seria excepcional,
talvez só para o ano de 1607, como aponta Carrara, pois as autoridades
imperiais hispânicas, no início do reinado de Filipe III, demonstram uma
preocupação com a arrecadação na América portuguesa, que achavam que
poderia ser maior, e essa é uma das razões dos abundantes relatórios que

18
CARRARA, Angelo A. Costos y beneficios de una colonia: introducción a La
fiscalidad colonial del Estado de Brasil, 1607-1808. Investigaciones de Historia
Económica, v. 6, n. 16, p. 21, feb. 2010.

32
visita, residência, venalidade

são enviados do Brasil para informar sobre impostos, receitas, despesas,


contratos, e todos os assuntos relativos à questão fiscal. Essa preocupação
seria ainda maior no momento da conquista do Maranhão, que teve de
ser financiada em parte com recursos de particulares, principalmente
moradores luso-pernambucanos.
Sabemos que o problema econômico não era menor, e que a
preocupação sobre a arrecadação ser menor do que podia ser potencial-
mente, percorre todo o período.
O documento que apresentamos mostraria, portanto, que as di-
versas formas de arrecadação que já tinha a América espanhola deviam
também ser praticadas na América portuguesa, incluindo a venda de
cargos. Controlando quem ocupava os ofícios, e tendo garantida uma
fonte de renda através das vendas de cargos, a burocracia da América
portuguesa se aproximaria assim ao modelo castelhano na América, que
também era fiscalizado pelas figuras do visitador e da residência.
Sabemos que a venda de cargos foi uma das razões da forte entrada
dos “criollos hispano-americanos” no governo colonial na América. Se
isso não foi assim na América portuguesa, segundo mostram os estudos
de Nuno Monteiro, talvez a venalidade tenha parado, ou foi menor, a
partir da Restauração, como indicavam os cronistas de inícios da mo-
narquia bragantina? Parece mais conveniente pensar que o fato de não
estarem à venda os cargos considerados grandes ou maiores, podia ser
uma razão, mas isso não impede pensar que alguns dos menores tinham
um grande rendimento...
Em conclusão, devemos aprofundar nesses enfoques, global e
comparativo, que, como vemos, estão já dando frutos para um melhor
entendimento do que foi considerado por alguns historiadores como o
“período crucial” da história do Brasil colonial.

33
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Tabela 1
ESTADO DO BRASIL. OFÍCIOS E VALOR DE COMPRA (1606).
Biblioteca da Ajuda (Cod. 51-VI-54), fols. 160-165.

Ofício Ordenado Percalços Valor de compra


Bahia (Justiça):
Escrivão do ouvidor geral Não 1.000 cruzados 3.000 cruzados (em vida)
Meirinho do ouvidor 300.000 rs. 3.000 cruzados
Inquiridor e contador do ouvidor 40.000 rs. 1000 cruzados.
Quatro tabeliães do judicial 250.000 rs. Um conto (cada um).
Inquiridor e contador do juizio e 200.000 rs. 2.000 cruzados
Escrivão da almotaçaria
Meirinho da Bahia Não 80.000 rs. 200.000 reis
Escrivão das execuções do cível e 300.000 rs. 2.500 cruzados.
da justiça
Escrivão da câmara da Bahia 8.000 rs. 12.000 rs. 200.000 reis
Juiz dos Órfãos da Bahia Não 50.000 rs. 400 cruzados
Escrivão dos órfãos da Bahia 300.000 rs. Um conto.

Bahia (Fazenda):
Provedor da fazenda 30.000 rs. 50.000 rs. Um conto
Escrivão da alfândega, provedoria e 500.000 rs. 4.000 cruzados
de defuntos (vão juntos).
Escrivão da fazenda 80.000 rs. 80.000 rs. Um conto e 10.000 reis
Contador mor do estado 100.000 rs. 100.000 rs. 2.000 cruzados
Escrivão dos feitos da fazenda 80.000 rs. 40.000 rs. 1.000 cruzados
Escrivão dos contos 40.000 rs. 20.000 rs. 300.000 reis
Tesoureiro Geral 80.000 rs. 80.000 rs. Um conto
Almoxarife dos armazens 30.000 rs. 40.000 rs. 1.000 cruzados
Escrivão do thesouro 40.000 rs. 40.000 rs. 1.000 cruzados
Escrivão do Almoxarifado 40.000 rs. 20.000 rs. 200.000 reis.
Meirinho do mar Não 300 cruzados. 1.000 reis
Patrão da Ribeira 24.000 rs. 24.000 rs. 120.000 reis
Procurador dos feitos da fazenda 15.000 rs. 50.000 reis
Porteiro da Alfândega 12.000 rs. 120.000 rs. 1.200 cruzados
Tesoureiro dos defuntos e ausentes 100.000 (6 %) 1.000 cruzados
Meirinho do provedor mor dos Não 25.000 rs. 80.000 reis
defuntos

34
visita, residência, venalidade

Juiz dos Índios forros 40.000 rs. 200.000 reis


Procurador dos índios forros 30.000 rs. 200.000 reis
Três Escrivãos do termo (Sergipe, 50.000 rs. (cada 200.000 reis (cada um).
Taboapina, Paripé) um)
Escrivão de Tabuapara 10.000 rs. 30.000 reis
Escrivão de [I]Taparica 30.000 rs. 100.000 reis

Capitania do Rio de Janeiro


(de S. M.)
Capitão 100.000 rs. s.d. s.d.
Capitão do forte da Lagem 80.000 rs. s.d. s.d.
Capitão do forte que está enfrente 30.000 rs. s.d. s.d.
Ouvidor 20.000 rs.
Meirinho Não 50.000 rs. 150.000 reis
Alcaide mor 20.000 rs. s.d. 1.000 cruzados
Dois tabeliães do judicial e notas 100.000 rs. 400.000 reis cada um.
Escrivão da câmara 20.000 rs. 100.000 reis
Escrivão da Almotaçaria 30.000 rs. 100.000 reis
Juiz dos órfãos Não 30.000 rs. 200.000 reis
Escrivão dos órfãos 80.000 rs. 250.000 reis
Provedor dos defuntos 50.000 rs. (3 %) 300.000 reis (se for
vitalicio. Normal: três
anos).
Escrivão dos defuntos 30.000 rs. 150.000 reis (se for
vitalicio. Normal: três
anos)
Tesoureiro dos defuntos 80.000 rs. (6 %) 400.000 reis (se for
vitalicio. Normal: três
anos)
Provedor da fazenda 300.000 rs. (2 %) 400.000 reis
Escrivão da fazenda 18.000 rs. 25.000 rs. 300.000 reis
Almoxarife do Rio de Janeiro 50.000 rs. 30.000 rs. 200.000 reis
Escrivão do almoxarifado s.d. 20.000 rs. 120.000 reis
Meirinho do mar e porteiro da 80.000 rs. 260.000 reis
alfândega

Sergipe de São Cristovão (de S. M.)


Capitão 100.000 rs. s. d. s. d.
Ouvidor 20.000 rs. s.d. s. d.
Dois tabeliães s. d. 20.000 rs. 100.000 reis (cada um)
(cada um)

35
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Provedor da fazenda e juiz da s.d. s. d. s. d.


alfândega
Escrivão da fazenda, alfândega e s. d. s. d. 100.000 reis
almoxarifado

Capitania da Paraíba (de S. M.)


Capitão 100.000 rs. s.d. s.d.
Ouvidor 20.000 rs. s.d. s.d.
Dois tabeliães 50.000 rs. 300.000 reis (each)
Escrivão da câmara s. d. 20.000 rs. 100.000 reis.
Juiz dos órfãos s.d. 30.000 rs. 200.000 reis
Escrivão dos órfãos s.d. 60.000 rs. 200.000 reis
Provedor dos defuntos e ausentes 30.000 rs. (3 %) s.d. 200.000 reis
Escrivão dos defuntos e ausentes s.d. 20.000 rs. 100.000 reis
Tesoureiro dos defuntos e ausentes 50.000 rs. (6 %) s.d. 250.000 reis
Provedor da fazenda e juiz 48.000 rs (2 %) s.d. Sem dados
d’alfândega
Escrivão da fazenda e almoxarife 48.000 rs s.d. S. d.
de alfândega
Almoxarife 48.000 rs. s.d. S. d.

Capitania do Rio Grande


Capitão 100.000 rs. s.d. s.d.
Almoxarife 50.000 rs. s.d. s.d.
Escrivão do almoxarifado e fazenda 40.000 rs. s.d. 200.000 reis.

Capitania de Pernambuco (de


Duarte Coelho de Albuquerque)
Provedor do selo s.d. 142.000 rs. s. d.
Almoxarife s.d. 40.000 rs. (?) s.d.
Escrivão da fazenda s.d. 244.400 rs. s.d.
Escrivão da Alfândega e s.d. 550.000 rs. s.d.
almoxarifado
Juiz do peso do pau brasil s.d. 140.000 rs. s.d.
Porteiro da alfândega s.d. 118.000 rs. s.d.
Escrivão das execuções e da vara s.d. 50.000 rs. s.d.
Meirinho da Alfândega s.d. 70.000 rs. s.d.

36
visita, residência, venalidade

Capitania de Itamaracá
(de Isabel de Lima)
Donatário 160.000 rs. (10 %)
Provedor da fazenda 32.000 rs. s.d. 400.000 reis
Almoxarife 48.000 rs. Não Sem valia.
Escrivão da fazenda 32.000 rs. s.d. 250.000 reis
Porteiro da alfândega 3.660 rs. s.d. s.d.

Capitania dos Ilhéus


(de Francisco de Sá)
Donatário 20.000 rs. s.d. s.d.
Provedor da fazenda 6.000 rs.(3 %) s.d. s.d. (sem valia)
Almoxarife 6.000 rs. (3 %) s.d. s.d. (sem valia)
Escrivão da fazenda 6.000 rs. (3 %) s.d. (sem valia)
Meirinho do mar 1.400 rs. s.d. s.d. (sem valia)

Capitania de Porto Seguro (do


Duque de Aveiro)
Donatário 10.000 (10 %) s.d. s.d.
Provedor da fazenda 3.000 rs. (3 %) s.d. s.d.(sem valia)
Almoxarife 3.000 rs. (3 %) s.d. s.d. (sem valia)
Escrivão da fazenda 3.000 rs. (3 %) s.d. s.d. (sem valia)
Meirinho do mar 1.400 rs. s.d. s.d. (sem valia)

Capitania do Espírito Santo


(de Francisco de Aguiar)
Donatário 102.000 rs. (10 %)
Provedor e juiz da Alfândega 30.600 rs. (3 %) 20.000 rs. 500.000 reis (em vida)
Escrivão da fazenda, alfândega e 20.400 rs. (2 %) 20.000 rs. 400.000 reis
Almoxarifado
Almoxarife 30.600 (3 %) s.d. 100.000 reis

Capitania de São Vicente


(de Lope de Sousa)
Donatário 21.400 rs. (10 %) s.d. s.d.
Provedor da Fazenda e juiz da 5.000 rs. 10.000 rs. s. d. (sem valia)
alfândega
Escrivão da fazenda e almoxarifado 7.000 rs. 15.000 rs. s. d. (sem valia)
Almoxarife 20.000 rs. s.d. s.d. (sem valia)
Porteiro 2.000 rs. s.d. s. d. (sem valia)

37
Redes comerciais cristãs novas no Brasil
durante o reinado de Filipe III

Ana Hutz1

“[...] Esta Junta no tiene noticia de la cantidad de dinero


con que la gente de la nanacionservio a Vuestra Magestad
por el perdon general, ny lo que se ha cobrado, ni en que se
ha despendido [...]”2

O presente artigo tem por objetivo expor brevemente algumas reflexões


sobre a relação entre dois temas bastante distintos, embora conexos: os
cristãos novos portugueses e o reinado de Filipe III, bem como os efeitos

1
Doutoranda em História Econômica pelo Departamento de História da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo. Agradeço ao departamento e a CAPES/CNPq pelo auxílio financeiro
concedido.
2
Trecho de carta datada de 1607 da Junta de Fazenda de Portugal ao rei Filipe
III, solicitando esclarecimentos sobre o dinheiro pago pelos cristãos novos.
Archivo General de Simancas (AGS), Secretarias provinciales, libro 1466, fol.
147 (foi mantida a grafia do documento).
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

dessa relação e sua repercussão no Brasil. A premissa a que nos propomos


parte do entendimento de que o reinado de Filipe III é singular para a
compreensão do processo histórico que permeou a denominada União
Ibérica, e particularmente especial para a história dos cristãos novos. É
comum atribuir-se ao valido de Filipe IV, o conde-duque de Olivares,
a tentativa parcialmente bem-sucedida de priorizar os cristãos novos
portugueses, sob o entendimento de que esses eram fundamentais para
a saúde financeira da Coroa espanhola. Há estudos, entretanto, demons-
trando que essa preocupação era anterior a Filipe IV, tendo sido o duque
de Lerma, favorito de Filipe III, o responsável por buscar parte da solução
dos problemas financeiros da Coroa no auxílio dos cristãos novos, o que
serviria de referência para o conde-duque nos anos subsequentes.3
No que diz respeito aos cristãos novos, trata-se de um aspecto
marcante de sua atuação econômica: a organização em redes de comércio.
Redes de comércio são, usualmente, caracterizadas como a maneira de
se comercializar em escala global entre os séculos XV e XVII. De modo
geral, as redes ibéricas eram compostas por diferentes membros de
uma mesma família que, dispersos ao longo do globo, atuavam como
agentes comerciais, representantes ou mesmo feitores do comerciante
principal, frequentemente estabelecido nos grandes centros, tais como
Lisboa ou Sevilha. Embora o foco principal de análise explorado neste
artigo esteja relacionado às redes comerciais estabelecidas pelos cristãos
novos portugueses em fins do século XVI e início do XVII, esse modelo de
atuação também pode ser observado em outras localidades importantes da
Europa, formado por diferentes grupos de atuação. Cite-se, por exemplo,
as empresas italianas do século XIV, que tinham sucursais espalhadas
por todo o continente e que eram encabeçadas por parentes próximos
dos sócios principais.4

3
CARRASCO VÁZQUEZ, Jesús. El relevante papel económico de los conversos
portugueses en la privanza del Duque de Lerma (1600-1606). Évora, 2005.
Comunicação apresentada no XXV Encontro da APHE.
4
LE GOFF, Jacques. Mercadores e banqueiros da Idade Média. Trad. Orlando
Cardoso. Lisboa: Gradiva, 1982.

40
redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

A atuação mercantil dos cristãos novos portugueses é comumente


citada como um excelente exemplo de rede comercial. O sucesso dessa
atuação seria perceptível, inclusive, em razão de muitos cristãos novos
terem se utilizado das redes comerciais como eficiente mecanismo de
proteção da perseguição inquisitorial promovida por Portugal e Espanha
junto a suas famílias e bens.
Noutro aspecto, vale observar ainda que a temática das redes
comerciais é tão profícua, quanto polêmica, não se esgotando com facilida-
de e há controvérsias que aqui só deixamos indicadas. Existem estudos de
caso que demonstram a necessidade das redes de comércio se manterem
no âmbito da família ao ponto de se criar parentesco onde antes não havia
e estudos que mostram que, muitas vezes, os laços das redes são dados
de maneira puramente profissional, como se pode perceber quando se
observa a presença de cristãos velhos em redes tipicamente de cristãos
novos.5 Esse segundo grupo de interpretação salienta as estratégias de
diversificação dos agentes, as quais serviriam para minorar os riscos
sobre o capital do mercador, além de possibilitar o aumento do grau de
competitividade entre os agentes, reduzindo seus custos.

A especificidade de Filipe III

Quando se considera os estereótipos do fim do século XVI e início


do XVII, bem como a interpretação de alguns historiadores,6 Filipe III

5
Um bom exemplo para o primeiro tipo de estudo é o trabalho de COSTA, Maria
Manuel Ferraz Torrão de Oliveira. Tráfico de escravos entre a costa da Guiné
e a América espanhola: articulação dos impérios ultramarinos ibéricos num
espaço atlântico (1466-1595). Lisboa: Instituto de Investigação Científica
Tropical, Centro de Estudos de História e Cartografia Antiga, 1999, p. 30-35.
Para o segundo tipo de interpretação ver STRUM, Daniel. Entre os embargos
e a Inquisição: cristãos-novos e “framenguos” na rota do açúcar. In: SIMPÓSIO
NACIONAL DE HISTÓRIA – ANPUH, 26, jul. 2011, São Paulo. Anais... [S.l.]: [s.n.],
2011.
6
Por exemplo John H. Elliott e F. C. Spooner.

41
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

pode ser considerado como a antítese de seu pai, Filipe II. Enquanto
esse último tem sido qualificado ora como um rei extremamente duro,
malévolo, capaz de sacrificar seu próprio filho (D. Carlos), ora como
um rei efetivamente comprometido com seu governo, a ponto de não
ter deixado seus secretários e ministros tornarem-se demasiadamente
atuantes; Filipe III, diferentemente do pai, é comumente associado à
figura de um rei débil que não governava de fato, mas que, em realidade,
era governado por um valido oportunista e corrupto. Contudo, o que se
observa em estudos mais aprofundados sobre o assunto7 é que essas
avaliações excessivamente estereotipadas e simplistas não seriam sufi-
cientes para a adequada compreensão acerca da complexidade histórica
do período analisado, tampouco para que se compreenda que o governo
de Filipe III, embora apresente importantes continuidades quando se
compara ao governo de Filipe II, tem igualmente marcadas diferenças
e especificidades. Esses dois aspectos são fundamentais quando se trata
de entender e situar alguns temas específicos, como é o caso do tema
dos cristãos novos portugueses.
Quando Filipe II assumiu o trono em 1556, a situação que en-
controu foi bem diversa da situação enfrentada por seu pai, Carlos V.
O mundo europeu vivia as tensões da Reforma e da Contrarreforma.
Espanha – Castela em particular – era um importante ator no violento
processo de repressão às chamadas heresias religiosas da época.8 Do
ponto de vista social, a limpeza de sangue passa a ser um elemento a mais
de distinção entre os vários segmentos da sociedade.9

7
FEROS, Antonio. El Duque de Lerma: realeza y privanza en la España de Felipe
III. Madrid: Marcial Pons, 2002.
8
R. B. Wernham caracteriza o período que compreende 1559 e 1610 como
um período extremamente brutal e intolerante, sobretudo no que diz res-
peito à religião. Cf. WERNHAM, R. B. Introduction. e SPOONER, F. C. The
Economy of Europe 1559-1609. Ambos artigos em: WERNHAM, R. B. (Ed.).
The New Cambridge Modern History – v. III: “The Counter-Reformation and
Price Revolution 1559-1610”. London: Cambridge University Press, 1968,
p. 1-13 e p. 14-43, respectivamente.
9
Toma-se como ponto de partida para a adoção dos estatutos de limpeza de
sangue o Estatuto da Catedral de Toledo de 1547. Até então a assimilação de

42
redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

Com a União das Coroas em 1580, surge um novo problema


associado à questão sociorreligiosa em Castela: a penetração do elemento
cristão novo português, geralmente via comércio. Se de um lado a conse-
quente ampliação do comércio pôde, em alguns casos, ser extremamente
bem-vinda, de outro lado sofria a resistência do próprio imaginário es-
panhol que se filiava à ideia de que os cristãos novos portugueses eram
seguidores da lei de Moisés.10 A penetração dos comerciantes portugueses
tendia a agradar, sobretudo, à própria Coroa, já que suas dificuldades
financeiras lhe ensinaram a ver com bons olhos a capacidade geradora
de riqueza que essa ampliação comercial trazia. Se a cada um desses
aspectos tomados individualmente – religioso e social ou econômico e
financeiro – parecia corresponder um comportamento perfeitamente
harmonizado com os interesses de seus representantes – já que do ponto
de vista religioso, procurava-se defender a fé católica e, do ponto de vista
da administração da Coroa, procurava-se defender a sanidade financeira
do Estado –; por outro lado, a ação conjunta dessas esferas de atuação
promovia constantes contradições, cujas tensões ultrapassavam muito
o espaço castelhano ou mesmo ibérico.
Tal contradição manteve-se e foi acirrada durante o reinado de
Filipe III, a partir de 1598. Herdeiro de uma Monarquia, que em termos
de extensão e poderio militar representava a maior potência do mundo:11
seu território se estendia pela península ibérica, pela Itália espanhola, por
parte do norte da África, pelos Países Baixos, parte da França e pelo Novo

judeus convertidos, isto é, cristãos novos, criara pouca discriminação por


parte dos cristãos velhos para aqueles que estavam efetivamente convertidos.
Descendentes de judeus estavam presentes nas cortes dos Reis Católicos e
de Carlos V e outros tantos tinham cargos eclesiásticos de peso.
10
Em realidade, havia mesmo uma sinonímia entre português e judeu. Como
se todo português fosse cristão novo e como se todo cristão novo fosse judeu.
Cf. MONTEIRO, Yara Nogueira. A presença portuguesa no Peru em fins do século
XVI e princípios do XVII. São Paulo, 1980. Dissertação (Mestrado em História
Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade
de São Paulo.
11
ELLIOTT, John H. España y su mundo (1500-1700). Madrid: Taurus, 2007,
p. 151.

43
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Mundo, inclusive o Brasil, e herdeiro de uma enorme estrutura burocrá-


tica que objetivava dar suporte à administração de todo esse território,
Filipe III herda também um Estado com grandes fontes de recursos, mas
que acabara de passar por uma bancarrota financeira. Some-se a isso o
fato de que seu vasto território era constantemente ameaçado, e protegê-lo
representava uma tarefa para a qual eram necessários vultosos recursos.
Não surpreende que uma nova bancarrota se fizesse sentir já em 1607.
A ascensão de Filipe III provocou, logo de início, uma série de
incertezas em sua Corte, pelas prováveis mudanças que ela poderia acar-
retar nos atores envolvidos no Poder. Esse temor se confirmou, pois tão
logo falece Filipe II, seu filho demonstrou, inicialmente através de gestos
simbólicos, em seguida, pela nomeação concreta de um novo conselheiro
de Estado,12 que haveria um novo favorito real: o duque de Lerma.
Vale assinalar, na linha de nossas considerações iniciais sobre
Filipe II e Filipe III, que o tratamento historiográfico em torno do reinado
de Filipe III e do favoritismo do duque de Lerma tem sido marcadamente
interpretado como um momento de enfraquecimento do poder real, de
corrupção sem limites por parte dos ministros reais, de consequente
crise financeira e de perda de territórios.13
Embora a questão do enriquecimento pessoal dos ministros de
Filipe III pareça ser um fato inconteste, seria extremamente exagerado
e simplista afirmar que ela constituiria razão suficiente para justificar as
inúmeras crises de seu governo ou, então, para ser considerada como a
grande característica de seu reinado. O historiador Antonio Feros, por
exemplo, que se dedicou a analisar com profundidade a privanza do
duque de Lerma, conclui que o enfraquecimento do poder real era so-
mente aparente e que, de outro modo, a nomeação de um favorito estava
totalmente de acordo com a cultura e prática da época e correspondia às
expectativas de seus súditos.14
Para compreendermos qual o alcance e o significado da relação
estabelecida entre o duque de Lerma e os cristãos novos, é necessário

12
FEROS, Antonio, op. cit., p. 110-111.
13
Ver SPOONER, F. C., op. cit., p. 14-43.
14
FEROS, Antonio, op. cit., p. 473.

44
redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

relembrarmos a situação financeira da Monarquia espanhola em prin-


cípios do reinado de Filipe III. Estima-se que havia um déficit de, ao
menos, 1,6 milhões de ducados em 1598, e que todas as rendas da Coroa
estavam hipotecadas.15
Enquanto a Fazenda espanhola experimentava toda a sorte de
problemas, os cristãos novos portugueses, inicialmente ávidos pela
possibilidade de comércio que a União das Coroas lhes poderia em teoria
proporcionar, continuavam receosos diante das dificuldades em manter
negócios num período em que, a qualquer momento, poderiam ver seus
bens confiscados pela ação da Inquisição. Diante dessa situação, alguns
comerciantes lisboetas tentaram, por algumas vezes, a obtenção de um
Perdão Geral que os protegesse do Santo Ofício. Uma dessas tentativas
obteve relativo sucesso, embora efêmero, como de costume. Trata-se do
Perdão Geral de 1605, concedido depois de uma negociação iniciada em
1598.
Representar ao conjunto dos cristãos novos não era, evidentemen-
te, uma tarefa fácil. Os procuradores foram trocados por diversas vezes:
Martín Álvarez de Castro foi o primeiro (negociou entre 1598 e 1600);
seguido por Rodrigo de Andrade e Jorge Rodrigues Solís (negociaram
entre 1600 e 1603); Gerónimo Castaño (negociou entre 1603 e 1604) e
Afonso Gomes (negociou no ano de 1604). Do lado de Filipe III, duran-
te a maior parte do tempo, a negociação se deu com Pedro Franqueza,
homem de absoluta confiança do duque de Lerma.16
Após o fim das negociações do Perdão Geral, ficou ainda mais claro
o problema da falta de representatividade dos cristãos novos, decorrente
da ausência de homogeneidade em posições políticas e no próprio com-
portamento do mesmo. Essa variedade de posições, aliás, é uma questão
recorrente nas preocupações de quem estuda os cristãos novos. Nesse
caso em especial, houve desde aqueles que disseram não ter o dever de
pagar por serem tão somente bisnetos de cristãos novos, como aqueles

15
CARRASCO VÁZQUEZ, Jesús, op. cit.
16
PULIDO SERRANO, Juan I. Las negociaciones con los cristianos nuevos en
tiempos de Felipe III a la luz de algunos documentos inéditos (1598-1607).
Sefarad, v. 66, n. 2, p. 347, jul.-dic. 2006.

45
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

que protestaram no próprio Santo Ofício para não ter que pagar pelo
Perdão Geral.17 Cerca de cinquenta cristãos novos, homens de negócio,
chegaram a se organizar para solicitar ao rei essa isenção, já que não se
consideravam representados pelos procuradores que foram à Castela.18
Da parte dos cristãos velhos, o descontentamento foi ainda mais
forte. Muitos receavam perder a preferência por cargos antes destinados
somente àqueles que cumprissem os estatutos de limpeza de sangue, fato
este que demonstrava haver o grande desconhecimento sobre o real
significado do Perdão Geral e o que ele realmente era capaz de conceder.19
Não surpreende o fato de que quando o Perdão fosse consumado, cristãos
velhos se lançassem às ruas para se queixar da soltura dos cristãos novos
dos cárceres da Inquisição.20
Nada obstante a não representatividade da totalidade dos cristãos
novos, e mesmo diante da recusa da população cristã velha quanto à
obtenção do Perdão Geral, este acabou sendo concedido por Filipe III,
apesar de seus efeitos terem durado pouco tempo. Essa concessão, en-
tretanto, foi fruto de uma árdua tarefa dos atores envolvidos, como bem
o demonstra o tempo demandado para as negociações (1598-1605). Já
mencionamos aqueles que se opuseram ao Perdão Geral depois de sua
concessão. Ocorre que, durante a negociação, a maior oposição foi for-
mada pela Igreja portuguesa e pelos governadores do reino português.
Os argumentos de recusa foram os mesmos por um longo período: os
cristãos novos teriam continuado a judaizar desde o último perdão; os
cristãos novos queriam que o perdão se estendesse aos que ainda estavam
presos (confirmando a ideia de que eram todos judaizantes); ou ainda,
a alegação de que aqueles que fugiram de Portugal seguiram praticando
abertamente o judaísmo. Alardeavam ainda o sentimento de que: mais

17
AGS, Secretarias provinciales, libro 1466, fol. 223 et seq.
18
PULIDO SERRANO, Juan I., op. cit., p. 367.
19
LÓPEZ-SALAZAR CODES, Ana Isabel. Inquisición portuguesa y monarquía
hispánica en tiempos del perdón general de 1605. Lisboa: CIDEHUS, 2010.
20
AGS, Secretarias provinciales, libro 1491, fol. 122 v et seq.

46
redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

do que a morte, os cristãos novos temiam a perda dos bens, de modo


que a perseguição era um incentivo a não judaizar.21
Apesar desses argumentos, os motivos de Filipe III para conce-
der o Perdão falaram mais alto. Afinal, em troca dele, os cristãos novos
pagariam 1.700.000 ducados à Coroa, o que representava uma soma
bastante razoável para a época.
Se essa foi uma questão na qual Filipe III claramente demonstra
uma atitude particular em relação aos cristãos novos, há ainda outro
problema que merece a nossa atenção. Recentemente, alguns historia-
dores – e aqui destacamos a contribuição de Leonor Freire Costa – têm
se debruçado em analisar quais as razões pelas quais durante o reinado
de Filipe III ocorre uma profunda renovação nas estruturas mercantis
das redes de comércio que envolviam a Monarquia espanhola em uma
escala global.
Para a referida autora, uma das singularidades do período de Filipe
III tem sua origem na crise que a economia brasileira vivia na época.
A crise do açúcar seria provocada, na visão de Leonor Freire Costa, não
por um problema relacionado à questão da oferta, como normalmente se
afirma, mas devido a uma desvalorização de preços que encarecia o preço
dos produtos essenciais e contraía a demanda dos gêneros supérfluos,
tais como o açúcar.22 Essa crise seria responsável por renovar o grupo
mercantil do açúcar. Pouco a pouco, os cristãos novos portugueses pas-
saram a penetrar no comércio asiático. A partir de 1610, não se encontra
mais registros nos contratos de viagem para o Brasil daqueles mesmos
comerciantes que antes figuravam em ambos os mercados.23
Vale observar, ainda, que esse é também o período em que se
verifica um aumento considerável do comércio dos cristãos novos por-

21
LÓPEZ-SALAZAR CODES, Ana Isabel, op. cit., p. 21-22.
22
COSTA, Leonor Freire. El imperio portugués: estamentos y grupos mercantiles.
In: MARTÍNEZ MILLÁN, José; VISCEGLIA, María Antonietta (Dir.). La monarquía
de Felipe III: Los reinos. Madrid: Fundación Mapfre, 2007-2008, p. 865.
v. IV.
23
Ibidem, p. 865.

47
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

tugueses para as Índias de Castela. Isso só foi possível com a permissão


da Coroa para que os cristãos novos “navegassem escravos africanos”
para lá. Essa permissão relaciona-se com a necessidade de mão de obra,
mas, sobretudo, com o rendimento que esse tráfico trazia não só para os
comerciantes, bem como para a Coroa que concedia os asientos. James
Boyajian afirma que boa parte do capital desses comerciantes foi adquirido
mediante a operação de engenhos de açúcar na Bahia e em Pernambuco.24
Se muitos negociantes deixaram de comercializar açúcar brasileiro
e passaram a ingressar na Carreira das Índias, Boyajian salienta ainda
que outras importantes famílias, antes responsáveis pelos negócios na
Ásia, passaram a se retirar desses contratos e a investir suas fortunas
em títulos “seguros” do governo, isto é, tornaram-se banqueiros de Filipe
III. Essa espécie de “dança das cadeiras” na estrutura mercantil da época
mereceria ser melhor explorada por um estudo que analisasse o conjunto
desses capitais.
A par dessa breve reflexão sobre o complexo pano de fundo político
e econômico em que se desenvolve a história dos cristãos novos portu-
gueses, inclusive daqueles que viveram no Brasil, concluiu-se que, mais
do que um pano de fundo, o panorama descrito influenciou as políticas
sobre os cristãos novos e foi, ao mesmo tempo, influenciado pela atuação
dos mesmos.

O Brasil cristão novo

Para compreender a presença cristã nova na América portuguesa,


ou seja, no Brasil em formação, é necessário relembrar que, sobretudo
após a conversão forçada dos judeus na Espanha, grande parte deles se
estabeleceu no reino vizinho, Portugal. Poucos anos depois foi a vez de
Portugal promulgar um decreto de conversão forçada, mas dessa vez
dificultando bastante a saída dessa população. Mesmo assim, muitos

24
BOYAJIAN, James. Portuguese bankers at the court of Spain 1626-1640. New
Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1983.

48
redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

já procuraram sair de Portugal durante a própria conversão, enquanto


outros o fizeram no período que se seguiu a ela. Os judeus e os cristãos
novos, ou seja, os judeus já convertidos, que conseguiram sair de Portugal,
emigraram para diversas localidades durante os séculos XV e XVI. Entre
elas, podemos citar a Itália, França, os Países Baixos e diversas cidades
do Império Turco. Muitos emigrariam para as Américas.
Tão logo assistimos ao efetivo início da colonização na América
portuguesa, o elemento cristão novo já é noticiado pela documentação
da época. Há uma questão que permeia toda história do povo judeu (e
que aqui também se faz presente) que diz respeito justamente ao fato
de que os judeus, e por consequência, os cristãos novos, seriam, em sua
totalidade, a população mais rica em qualquer país onde viviam.25 Essa
discussão pode ser transplantada para os estudos sobre o Brasil, pois
vários trabalhos discutem o grande capital trazido por cristãos novos
que desembarcavam nessas terras. A partir do que investigamos até o
momento, podemos perceber que os cristãos novos figuram entre a elite
de algumas capitanias, como Pernambuco e Bahia, mas que, quando com-
parados à totalidade de cristãos novos que aqui se estabeleceram, eles não
foram numericamente representativos, como não o foram em Portugal.
Com relação à elite de um modo geral, que naquele momento
significava basicamente os donos de engenhos, verificamos a presença
de cristãos novos portugueses de importância em Portugal, como os
Fernandes d’Elvas, os Évora e os Veiga.26 Um dos cinco primeiros en-
genhos do Brasil era de propriedade do cristão novo Diogo Fernandes.27
É com a ajuda da “arraia miúda” dos cristãos novos, entretanto,
que o território será, pouco a pouco, povoado. Os cristãos novos, vindo de

25
Vejam-se, por exemplo, os trabalhos de José Gonçalves Salvador. Em espe-
cial, vale citar: Os magnatas do tráfico negreiro (séculos XVI e XVII). São Paulo:
Pioneira; Edusp, 1981.
26
COSTA, Leonor Freire, op. cit., p. 866.
27
PORTO, Costa. Os cinco primeiros engenhos pernambucanos. Revista do
Museu do Açúcar, Recife, n. 2, 1969.

49
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

maneira legal ou ilegal para o Brasil, ou ainda, vindo como degredados,28


iriam exercer uma série de atividades ligadas tanto ao açúcar como ao
pequeno e médio comércio. O que facilitava a situação para os cristãos
novos era, sem dúvida, o fato de que, ao desembarcarem, já tinham,
muitas vezes, parentes instalados, de modo que a mobilidade social entre
esse grupo tendia a ser relativamente elevada.
A razão pela qual os cristãos novos vinham para o Brasil é igual-
mente um assunto relevante. Além dos negócios que se poderiam abrir na
Colônia, a própria distância de Portugal e Espanha era um fator que trazia
algum conforto no que diz respeito à perseguição inquisitorial. Isso não
significa dizer que todo cristão novo que vinha para o Brasil o fizesse com
o objetivo de judaizar. É importante lembrar que a Inquisição perseguia
cristãos novos acusados de judaísmo, não necessariamente judaizantes
de fato. Significa, portanto, que na colônia eles estavam, em teoria, mais
protegidos das garras inquisitoriais. Se as práticas judaizantes foram mais
intensas no Brasil do que em Portugal, acreditamos que só um estudo
sistemático – ainda por fazer – dos processos nos dois lugares poderia
comprovar ou refutar essa conclusão. Em outras palavras, parece-nos
que a vinda para o Brasil teria se dado por um conjunto de fatores e é
bastante provável que o interesse comercial, que também inclui proteger
os bens de um eventual confisco da Inquisição, fosse o mais significativo.
No que toca à integração dos cristãos novos na população da
colônia, é bastante profícuo que recorramos à pioneira análise da histo-
riadora Anita Novinsky. Os cristãos novos eram socialmente equiparados
ao negro pelos Estatutos de Pureza de Sangue. Sua situação, de fato, foi
muito diferente da do negro, pois o cristão novo, embora tivesse a mesma
“impureza de sangue” e, logo, nunca pudesse aceder a determinados
cargos e funções, jamais fora submetido às agruras de uma condição
escrava. De outro modo, o escravo liberto teria, em tese, igual estatuto
que o cristão novo. Contudo, a realidade seria bem outra: ao ter a cor de

28
SILVA, Janaína Guimarães da Fonseca e. Modos de pensar, maneiras de viver:
Cristãos-novos em Pernambuco no século XVI. Recife, 2007. 255 f. Dissertação
(Mestrado em História) – Centro de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal de Pernambuco.

50
redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

pele negra, diferente, portanto, dos cristãos velhos, esse homem teria
que se contentar com uma liberdade limitada e excludente, sem nunca
alcançar privilégios que somente um cristão velho poderia alcançar. Com
os cristãos novos, a situação era outra, e alguns entre eles puderam, efe-
tivamente, alcançar alguns desses privilégios, vindo a figurar na classe
dominante da sociedade colonial, a despeito do Estatuto.29 Uma análise
comparativa com o elemento negro na sociedade mereceria ser melhor
aprofundada. O objetivo aqui é somente assinalar que o Estatuto de
Pureza de Sangue tinha, de fato, exceções, e elas eram perfeitamente
aplicadas aos cristãos novos quando convinha.
Para corroborar essa ideia, vale lembrar a grande obra de Evaldo
Cabral de Mello, O nome e o sangue, que trata justamente da tentativa –
bem-sucedida – de se escamotear as origens cristãs novas de importantes
famílias da oligarquia pernambucana.30
Com relação aos cristãos novos que se estabeleceram em
Pernambuco, convém assinalar que o período aqui descrito é anterior
à ocupação holandesa no Brasil. Esse alerta é importante, pois, durante
o período holandês, “verdadeiros” judeus imigrarão de Amsterdã para
Pernambuco e a situação ganhará uma complexidade que ultrapassa os
limites desse artigo.31
Os primeiros cristãos novos chegaram a Pernambuco por volta
de 1542. Os cálculos feitos por José Antônio Gonsalves de Mello, com
base nos livros da Visitação do Santo Ofício de fins do século XVI e
em crônicas da época, estimam cerca de 910 cristãos novos para uma
população de 7.000 pessoas em Pernambuco em 1593. Ou seja, ao final
do século XVI cerca de 14% da população que vivia em Pernambuco era

29
NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, 1972, p. 59.
30
MELLO, Evaldo Cabral de. O nome e o sangue: uma parábola familiar no
Pernambuco colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
31
Uma excelente abordagem sobre o assunto nos é apresentada por VAINFAS,
Ronaldo. Jerusalém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

51
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

composta por cristãos novos.32 Trata-se de um número significativo, mas


que, evidentemente, não é suficiente para que se afirme a existência de
uma maioria cristã nova em Pernambuco.

A família Milão

O caso da família Milão nos parece importante nessa representa-


ção dos cristãos novos portugueses que viviam no Brasil e que, como já
se salientou anteriormente, mantinham relações de negócio em escala
mundial. Para situar essa família, é necessário voltar as atenções para um
dos mais conhecidos mercadores cristãos novos que passou pelo Brasil
no final do século XVI: João Nunes Correia.
A história de João Nunes Correia foi narrada diversas vezes e tem
sido frequentemente retomada e reinterpretada.33 Nascido no bispado
de Lamego, Portugal (não se sabe ao certo se em 1543 ou 1547), João
Nunes vivia em Olinda desde 1582 e trabalhava diretamente para o ir-
mão Henrique Nunes Correia, que vivia em Lisboa e era um importante
negociante e dono do capital com o qual João Nunes teria iniciado seus
negócios.34 Em Olinda também havia outros parentes de João Nunes:

32
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da nação: cristãos-novos e judeus
em Pernambuco, 1542-1654. Recife: Fundação Joaquim Nabuco; Editora
Massangana, 1996, p. 21-23.
33
São diversos os trabalhos sobre o comerciante. Pode-se citar desde o estudo
de Sonia Siqueira (O comerciante João Nunes. In: SIMPÓSIO NACIONAL DOS
PROFESSORES DE HISTÓRIA, 5, 1971, Campinas, São Paulo. Anais... [s.n.t.]) e o
próprio trabalho supracitado de José Antônio Gonsalves de Mello, até os
recentes trabalhos de Angelo Adriano Faria de Assis (João Nunes, um rabi
escatológico na Nova Lusitânia: sociedade colonial e inquisição no nordeste
quinhentista. São Paulo: Alameda, 2011) e de Silvia Carvalho Ricardo (As
redes mercantis no final do século XVI e a figura do mercador João Nunes Correia.
São Paulo, 2006. 153 f. Dissertação (Mestrado em História Econômica) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo).
34
MELLO, José Antônio Gonsalves de, op. cit., p. 65.

52
redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

seu irmão Diogo Nunes Correia e seu primo, Henrique. É possível que
tenham vindo ao Brasil fugidos da Inquisição de Lisboa. No entanto, o
fato de seu irmão ter permanecido por lá e dele próprio ser representante
dos negócios do irmão no Brasil sugere que a principal razão tenha sido
aumentar o alcance dos próprios negócios.35
Os negócios da família no Brasil eram vultosos. Diogo Nunes, por
exemplo, administrava dois engenhos na Paraíba, cuja propriedade dividia
com o irmão Henrique. João e Diogo Nunes Correia foram ainda alguns
dos financiadores da expulsão dos franceses da Paraíba.36 João Nunes
tinha ainda boas relações com o governador da Bahia – D. Francisco de
Souza – com quem tratava de negócios diretamente.
João Nunes foi denunciado à Inquisição durante a Primeira
Visitação do Santo Ofício (1591-1595), preso na Bahia em 22 de fevereiro
de 1592 e enviado à Lisboa em setembro do mesmo ano. Mesmo preso,
João Nunes continuou poderoso e em diversos momentos conseguiu
levar adiante seus negócios. Já em Lisboa, os inquisidores consideraram
que sua prisão fora precipitada e que não havia provas o bastante naquele
momento para prendê-lo e mandaram-no soltar mediante um acordo
(o que também ocorreu com outros presos). Quando solto, conseguiu
ainda uma licença para ir a Madrid tratar de negócios de interesse do
rei espanhol. Perto de outros presos que ficaram anos encarcerados, a
curta passagem de João Nunes Correia no Santo Ofício tem chamado a
atenção de estudiosos. Sua história não acaba por aí e inspirou outros
historiadores, que se dedicaram a contá-la. Para a análise aqui proposta,
vale a pena explorar alguns aspectos da vida deste comerciante, em sua
conexão com outros do mundo dos conversos.
Para que João Nunes fosse solto, foi necessário que se fizesse um
acordo e uma fiança como garantia de liberdade do preso. Nas palavras
de José Antônio Gonsalves de Mello:

35
RICARDO, Silvia Carvalho, op. cit., p. 125.
36
MELLO, José Antônio Gonsalves de, op. cit. e RICARDO, Silvia Carvalho, op. cit.

53
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Essa escritura de fiança é importante, dado os nomes das pessoas


que dela participaram. A escritura foi lavrada na casa de Rodrigo de
Andrade nas proximidades da Igreja de São Mamede, na encosta
do Castelo São Jorge (e não é a atual), na presença de Jerônimo
Henriques, morador fora da cidade de Lisboa, em Alcântara,
hipotecando aquele, com a assistência de sua mulher Ana de
Milão, duas casas na rua das Mudas e mais todas as terras que
tinha no termo da vila de Pombal e este a casa de sua residência
com o pomar e mais dependências naquele arrebalde. Serviriam
de abonadores aos dois fiadores e fiéis carcereiros Vasco Martins
da Veiga, Henrique Dias Milão, Vasco Martins de Castro e Manuel
Fernandes Anjo. [...]
Quem eram essas pessoas que atenderam ao apelo do irmão de
João Nunes? Rodrigo de Andrade, cristão novo, era descendente
de um dos irmãos Rodrigues de Évora, riquíssimos homens de
negócio de então e ele próprio grande proprietário em Leiria. Ana
de Milão, sua mulher, era cunhada de Henrique Dias Milão (um
dos abonadores), ambos cristãos novos, ela presa pela Inquisição
e libertada em 1605. Tanto ela quando o marido vieram a falecer
em Antuérpia, mas ela permaneceu fiel ao catolicismo até a
morte em 1613, com cerca de 72 anos de idade. O cunhado veio a
ser queimado aos 81 anos de idade, no auto-de-fé em Lisboa em
1609 e quatro de seus filhos e um genro viveram e comerciaram
em Pernambuco [...].37

De fato, as pessoas que correm ao auxílio de João Nunes eram


não só poderosos negociantes, como também importantes figuras no
mundo cristão novo. Como já foi mencionado, Rodrigo de Andrade foi,
ao lado de Jorge Rodrigues Solis, um dos procuradores dos cristãos novos
que, em 1600, saíram de Lisboa e foram a Madrid, chamados pelo mais
antigo representante dos conversos, Martín Álvarez de Castro, a ajudar
a melhorar as negociações com a Coroa, referentes a um Perdão Geral a
ser concedido aos cristãos novos portugueses. Segundo a documentação
da época, os dois novos procuradores eram considerados “los hombres

37
MELLO, José Antônio Gonsalves de, op. cit., p. 60-61.

54
redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

de la nación e más honrados”.38 Jorge Rodrigues Solis já era um dos mais


influentes homens de negócio do ultramar e, durante as negociações do
Perdão Geral, lhe foi exigido que tomasse um asiento para a construção
de naus às Índias. Ficou decidido que, a partir de 1602, durante nove
anos, ele seria o responsável por construir sete navios por ano, enviá-los
às Índias e de lá trazer pimentas e outras mercadorias orientais.39 Jorge
Rodrigues Solis era sogro de um outro importante homem de negócios
cristão novo, Antonio Fernandes d’Elvas, fidalgo da Casa Real portuguesa,
dono de asientos de escravos para as Índias de Castela e contratador de
escravos de Guiné-Cabo Verde e de Angola. Antonio Fernandes d’Elvas
tinha ainda importantes negócios no Brasil, cujas dimensões ainda estão
por serem estudadas.
Os dois procuradores não foram muito felizes em seu intento e
ainda demoraria algum tempo para que o Perdão Geral fosse concedido.
Jorge Rodrigues Solis saiu de Madrid com muito trabalho para fazer com
os asientos e Rodrigo de Andrade, por sua vez, parece ter sofrido uma
forte retaliação por parte da Inquisição portuguesa, pois sua esposa, Ana
de Milão, foi encarcerada por heresia e judaísmo. Rodrigo de Andrade
buscaria auxílio junto ao rei Filipe III, para que intercedesse perante o
Papa em busca da soltura de sua esposa.
Sabe-se que a intervenção de Rodrigo de Andrade para soltar Ana
de Milão gerou problemas e discussões sobre a jurisdição do Santo Ofício,
do Papa e do rei no que tange ao problema dos conversos. Entretanto,
há documentação que atesta que a própria Ana de Milão havia buscado
sua defesa, talvez por um caminho diferente do caminho de seu marido,
isto é, sem se utilizar do Perdão Geral.

38
AGS – Câmara de Castilla, leg. 2796. no. 9, fol. 137r. apud PULIDO SERRANO,
op. cit., p. 345-376.
39
PULIDO SERRANO, op. cit., p. 358. Em documentação do AGS, vimos que Jorge
Rodrigues Solis precisou postergar o início desse contrato em um ano.
Cf. AGS, Secretarias provinciales – Portugal, libro 1466.

55
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Para o Bispo Vice Rey a 10 de mayo de 1607.


Em conformidade do que me lembrais por carta vossa de 11 do
mes passado tenho mandado escrever a dom Joseh de Mello,
que de minha parte falle ao sancto Padre, e lhe faça particular
instancia para que se não deffira ao requerimento que Rodrigo
de Andrade tem sobre se retirar do Juizoordinario da Inquisição
dessa cidade de Lisboa o processo que se fez contra Ana de Milão
sua molher por a culpa de eresia e judaismo porque foy presa,
antes a mande remeter ao dittoJuizo para nelle ser julgado, não
querendo a ditta Ana de Milão usar do Perdão geral: e tendo por
certo que sua (Santidade) o averaassy por bem, e a resposta que
vier ver mandareyavissar para o saberes. Escrita em Valladolid.40

O já mencionado cunhado de Ana de Milão, Henrique Dias Milão


(1528-1609), foi o patriarca dessa importante família de comerciantes,
que veio a ter negócios em Olinda durante o fim do século XVI e início
do século XVII. Henrique Dias Milão teve nove filhos com sua mulher (a
irmã de Ana de Milão) Guiomar Gomes: Manuel Cardoso Milão; Gomes
Rodrigues Milão; Fernão Lopes Milão; Antônio Dias Milão, Paulo de
Milão, Ana de Milão (possivelmente em homenagem à sua cunhada),
Beatriz Henriques Milão, Leonor Henriques e Isabel de Santiago.41 Desses
nove filhos, quatro viriam a residir em Pernambuco.
Manuel Cardoso Milão comandava os negócios de exportação de
açúcar de seu pai diretamente de Pernambuco, tendo sido o primeiro
dos filhos a chegar ao Brasil, em data incerta. Sua casa era frequentada
por importantes cristãos novos da sociedade pernambucana, entre eles
o mítico David Senor Coronel (1570-1650). Outros irmãos, Antônio Dias
Milão e Paulo de Milão, também viveram aqui a serviço do pai. A irmã
de Manuel, Ana de Milão, vivia em Olinda, embora provavelmente não

40
AGS, Secretarias provinciales – Portugal, libro 1491, fol. 166 verso.
41
VALADARES, Paulo. A Besta Esfolada. Disponível em: <http://bestaesfolada.
blogspot.com.br/2010/01/familia-milao-em-movimento-armado-ando.
html>. Acesso em: 2 fev. 2012.

56
redes comerciais cristãs novas no brasil durante o reinado de filipe iii

a serviço do pai, mas sim acompanhando seu marido, Manuel Nunes


de Matos.42
A presença dessa família no Brasil é conhecida porque grande
parte dela, incluindo alguns criados e agregados, foi processada pela
Inquisição na mesma época em que Ana de Milão (a primeira). Esse
processo levou o patriarca da família, Henrique Dias Milão, com 81
anos, à fogueira (o que, a despeito do imaginário sobre a Inquisição, era
bastante incomum). Além disso, levou ao menos dois de seus filhos a
buscar refúgio em outros países; levou também à fuga do filho de Ana de
Milão com Rodrigo de Andrade, Francisco de Andrade, e após a soltura
de Ana de Milão, ela mesma e seu marido foram viver em Amsterdã.43
Assim, a rede comercial intercontinental que envolvia os Dias Milão e
Rodrigo de Andrade foi profundamente abalada e teve seu centro principal
desviado dos reinos ibéricos.

Considerações finais

Nesse artigo, procuramos relacionar a temática das redes comer-


ciais de cristãos novos portugueses com o reinado de Filipe III (especial-
mente, sua decadência financeira). Dessa relação, emergem uma série de
mudanças na política relacionada aos cristãos novos e as tensões geradas
por essas mudanças. Nesse contexto, buscamos demonstrar que uma
das singularidades do reinado de Filipe III está justamente relacionada à
questão dos cristãos novos. Entre elas, salientamos a concessão do Perdão
Geral de 1605 e a modificação na estrutura mercantil de todo o império.
No que tange à temática do Brasil, destacamos que, embora a
inserção do elemento cristão novo na colônia tivesse se dado em todos
os segmentos da população livre, alguns elementos formaram redes de
comércio fundamentais para a manutenção dos negócios da época em
escala global. Entre essas redes, podemos salientar a poderosa rede da

42
MELLO, José Antônio Gonsalves de, op. cit., p. 16-17.
43
Ibidem, p. 60-61.

57
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

família Milão, ligada ao bastante conhecido comerciante João Nunes


Correia. Se, do ponto de vista econômico, essa família era poderosa e tinha
negócios no mundo todo, é importante mencionar que isso não bastou
para impedir a família de ser perseguida e sua rede de comércio signifi-
cativamente abalada pela Inquisição de Lisboa, no início do século XVII.
Algumas perguntas, no entanto, seguem presentes para investi-
gação e reflexão futuras. Entre elas: teria sido a perseguição em cascata
à família Milão uma retaliação pela participação de Rodrigo de Andrade
na negociação do Perdão Geral? Quais as consequências do frequente
desmantelamento de redes comerciais para o próprio desenvolvimento
econômico de Portugal e da Espanha? Como podemos interpretá-las?
Quais são as conexões entre o sentido econômico das perseguições e o
sentido religioso das mesmas?

58
A Provedoria-mor: fiscalidade e poder
no Brasil colonial1

Pedro Puntoni2

Com a criação, em 1534, de um sistema das capitanias hereditárias,


inicia-se a colonização das Américas por Portugal. As doações foram
estabelecidas por meio de cartas de doação e forais. Este arranjo polí-
tico, esta construção jurídica inovadora, estabelecia os marcos de um
projeto de colonização – pensado como uma oportunidade para efetiva
ocupação, povoamento e valorização daquele vasto território. O domínio
régio, legitimado por bulas e tratados, só estaria consolidado com a
presença efetiva dos súditos e a promoção dos meios para a conversão (e
conquista) dos povos autóctones. Segundo estes dois diplomas, repetidos
na prática para cada gesto de doação, ficava estabelecido que (1) seus
titulares seriam feitos capitães ou governadores (o capitão-governador
poderia nomear um lugar-tenente para tomar conta de sua donataria,
que receberia o título de capitão-mor); (2) as doações seriam feitas em

1
Este texto foi publicado como o capítulo 3 de meu livro O Estado do Brasil:
poder e política na Bahia Colonial, 1548-1700. São Paulo: Editora Alameda,
2013, p. 111-145.
2
Professor de História da Universidade de São Paulo, pesquisador do CNPq e
do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

termos hereditários, seriam indivisíveis e estariam dispensadas da Lei


Mental (1434); (3) as terras estariam isentas das jurisdições de correição
e alçada, conferindo ao capitão-governador senhorio sobre as justiças da
terra, com competência para nomear ouvidor, meirinho, escrivães, tabe-
liães e vetar os juízes ordinários; (4) os donatários receberiam poderes
para fundarem vilas e povoados; (5) os donatários seriam responsáveis
para defesa da terra; e, por fim, (6) os donatários poderiam (e deveriam)
conceder terras em conformidade com o regime das sesmarias. As terras,
repartidas seguindo o que estabeleciam as Ordenações, seriam doadas a
“quaisquer pessoas de qualquer qualidade e condição que sejam, contanto
que sejam cristãos”. Mais ainda, seus titulares as receberiam “livremente,
sem foro nem direito algum”, devendo pagar à Ordem do Mestrado de
Nosso Senhor Jesus Cristo somente o dízimo.3
Imposto de natureza eclesiástica, o dízimo era na América direito
da Monarquia.4 Como as terras no ultramar estavam sob o padroado ré-
gio, cabia ao rei a cobrança do dízimo, como recompensa e mecanismo
dos esforços para a expansão da fé. Assim, como lembrava Costa Porto,
pagava-se

menos sobre o solo do que sobre a produção – “os frutos que da


dita terra houverem” – ônus menor sobre o morador na qualidade
de proprietário, do que de cristão, como tal obrigado a concorrer
para o programa da “propagação da fé”.5

A conquista da terra, a implantação destes mecanismos institu-


cionais implicavam que outros tributos e direitos seriam então criados.

3
FORAL da capitania da Bahia, 26 ago. 1534. In: CHORÃO, Maria José Mexia
Bigotte (Ed.). Doações e forais das capitanias do Brasil: 1534-1536. Lisboa: IAN/
TT, 1999, p. 53-57.
4
Em razão do que estabelecia a Bula Praeclara cahrissimi, de 4 de janeiro
de 1551. Na ocasião, culminando um longo processo de crescente sujeição
ao poder régio, o Papa Júlio III concedeu a D. João III, e seus sucessores
in perpetuum, a união dos mestrados das três ordens militares à Coroa de
Portugal.
5
PORTO, José da Costa. O sistema sesmarial no Brasil. Brasília: Editora UNB,
1979, p. 96.

60
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Em linhas gerais, o sistema fiscal estabelecido era totalmente controlado


pelo donatário e previa uma partilha da arrecadação com a coroa. Cabia
à Fazenda do Rei: 1) o dízimo eclesiástico (10% dos produtos da terra);
2) o dízimo (chamado, mais comumente, de dízima) dos produtos ex-
portados e importados (10% de direitos alfandegários); 3) o quinto dos
metais e pedras preciosas (20% sobre a riqueza do subsolo); 4) o estanco
do pau-brasil (monopólio desta mercadoria); e 5) o dízimo dos pescados
(10% do que era pescado). O donatário receberia: 1) uma pensão anual
de 500.000 réis; 2) a vintena da dízima do pescado; 3) redízima (dos
tributos recolhidos – dízima e quinto – isto é, 1%); 4) vintena sobre a
exportação do pau-brasil (20% do valor exportado); 5) arrendamento das
terras reservadas; 6) direitos banais (moendas d’água, sal e engenhos
de açúcar); 7) rendimentos das alcaidarias-mor; direitos de passagem;
8) isenção do pagamento de certo número de escravos.6
Os forais estabeleciam que o capitão e os moradores poderiam
livremente comerciar com outros portos do reino e conquistas, respei-
tando, contudo, a cobrança devida às alfândegas (seguindo os direitos
reais).7 A dízima (10% das mercadorias) era recolhida seja no embarque
no reino ou no desembarque no Brasil. Do mesmo modo, as mercadorias
vendidas para fora do reino deveriam pagar a dízima no Brasil, antes de
serem embarcadas. No caso de se destinarem ao mercado metropolitano,
estavam (neste momento) isentas deste imposto. Os forais estabeleciam,
também, que as “pessoas estrangeiras” deveriam sempre (independente
do destino das mercadorias ou de pagamentos anteriores em alfândegas

6
FORAL da capitania da Bahia, 26 ago. 1534. In: CHORÃO, Maria José Mexia
Bigotte (Ed.), op. cit., p. 53-57. Para uma tentativa de quantificação des-
tes direitos dos donatários, veja o trabalho de GALLO, Alberto. Aventuras
y desventuras del gobierno señorial en Brasil. In: CARMAGNANI, Marcello;
HERNÁNDEZ CHÁVEZ, Alicia; ROMANO, Ruggiero (Coord.). Para una historia de
América. México: El Colegio de México; FCE, 1999, p. 236 et seq. v. II: Los
nudos.
7
ALMEIDA, Cândido Mendes. (Ed.). Codigo Philippino, ou Ordenações e leis do
Reino de Portugal (1603). Rio de Janeiro: Instituto Philomathico, 1870, livro
III, título XXVI, p. 13.

61
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

portuguesas) pagar a décima parte no desembarque ou no embarque.


Sobre estes ganhos, cabia ao capitão (como falamos) a décima parte.
Nestes anos iniciais, como se vê, era de responsabilidade do ca-
pitão (ou de seu loco-tenente) controlar, fiscalizar e contabilizar todo o
sistema fiscal, inclusive a parte da Coroa. Esta, na verdade, podia contar
com a presença de um oficial particular, o feitor e almoxarife. No caso
de Pernambuco, temos notícia da nomeação (ainda em 1534!) de Vasco
Fernandes para “arrecadar, feitorizar e aproveitar” a parte que cabia ao
rei. Este oficial, uma vez reconhecido e empossado por Duarte Coelho
receberia uma “comissão” de 3% de tudo que arrecadasse para a Fazenda
do rei.8 Havia, por outro lado, plena liberdade de comércio entre as capi-
tanias – isento que estava de quaisquer gravames.
Tal situação seria alterada com a criação do Governo Geral, em
1548, e com a introdução da provedoria-mor na América. O novo ofício
de “governador geral da dita capitania e das outras capitanias e terras da
costa do dito Brasil” estorvaria a jurisdição dos capitães donatários. Afinal,
o sistema das capitanias criara espaços em parte isentos da interferência
da Coroa, isto é, de seus corregedores e de “outras algumas justiças”.
Este modelo pouco funcionou – com algumas exceções, é claro – mas foi
sobreposto por poder que, apesar de não anular o espaço de autoridade
dos donatários, substitui-los-ia em algumas funções, notadamente fiscais
e fazendárias.9 Ao mesmo tempo que foi passado regimento do primeiro
governador, Tomé de Souza, foram instituídas as funções e poderes de
um ouvidor geral, Pero Borges, de um provedor-mor, Antonio Cardoso
de Barros, e de um alcaide-mor, Diogo Moniz Barreto. Assim, além do
que estabelecia o regimento de Tomé de Souza, outros dois diplomas
criaram e fixaram, conexo ao sistema do Governo Geral, um regime fiscal
e fazendário peculiar. O Regimento do Provedor-mor Antonio Cardoso de
Barros (Lisboa, 17 dez. 1548) e o Regimento dos Provedores da Fazenda

8
DH, v. 35, p. 35-37; CHANCELARIA-mor, D. João III. ANTT, livro 7, fls. 164.
9
COUTO, Jorge. A construção do Brasil: ameríndios, portugueses e africanos,
do início do povoamento a finais de Quinhentos. Lisboa: Edições Cosmos,
1998, p. 231-232.

62
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

(Lisboa, 17 dez. 1548) articulam-se com as normas existentes nos quadros


das capitanias e propõem mecanismos muito precisos de gestão de um
sistema de arrecadação e controle dos direitos da Fazenda real. Os dois
regimentos, feitos no mesmo dia, apresentam de forma entrelaçada as
suas disposições.10
Nesses princípios e nessas distâncias, a Fazenda se via natural-
mente esbulhada. D. João III, diante do desenvolvimento da produção
do açúcar (ainda que pouco significativo em comparação com as rendas
do Oriente), considerava a possibilidade de seus rendimentos crescerem
na América (“daqui em diante espero que com a ajuda de Nosso Senhor
irão em muito crescimento”). Neste sentido, e como (nas suas palavras)
as suas “rendas e direitos das ditas terras, até aqui, não foram arrecadas
como cumpriam, por não haverem quem provesse nelas”, resolveu por
nomear um provedor-mor de sua Fazenda. A escolha recaiu sobre o ca-
valeiro fidalgo Antonio Cardoso de Barros, então donatário da capitania
na costa norte do Brasil, no que seria o Ceará-Piauí. É da opinião de
Varnhagen que para indenizar seus pequenos (e malsucedidos) esforços
para ocupar estas terras, que a Coroa lhe fez mercê deste novo ofício.11
De partida, interessante é notar que tal ofício não corresponde
diretamente a nenhum existente no Reino. Em Portugal, os provedores
conhecem principalmente dos testamentos, das albergarias, capelas e
confrarias. Segundo Melo Freire, com a introdução do Direito Canônico
em Portugal, isto é, das Decretais,

surgiram os privilégios de causas pias, isenções dos clérigos, dis-


tinção entre bens eclesiásticos e seculares e outras coisas de igual
teor, em número tão elevado, que para as resolver os nossos reis
viram-se na necessidade de criar, em diversas épocas, magistrados

10
REGIMENTO do provedor-mor do Brasil, Antônio Cardoso de Barros, Almerim,
17 dez. 1548 e REGIMENTO dos provedores da Fazenda do Brasil, Almerim, 17
dez. 1548. In: MENDONÇA, M. C. de (Ed.). Raízes da formação administrativa do
Brasil. Rio de Janeiro: IHGB; CFC, 1972, p. 91-98; 99-116. t. 1.
11
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. São Paulo:
Melhoramentos, 1975, p. 197-198. t. I.

63
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

especiais, que defendessem e cuidassem de seus direitos e bens,


que julgassem em matéria de testamentos e causas pias, que
decidissem dos pupilos, órfãos, viúvas, capelas e confrarias, que
julgassem em assuntos náuticos e mercantis e de questões de
guerra em terra e mar.12

Assim, no Reino, os provedores deveriam cuidar sobretudo das


“fazendas dos ausentes”, tal como definido nas “Leis Extravagantes”
(1569)13 ou nas Ordenações Filipinas (1603).14 Com o tempo, mostra-
-nos António Manuel Hespanha, os provedores, entre funções ligadas
à administração dos interesses dos ausentes e da fazenda, assim como
de capelas e morgados, assumiram o controle da arrecadação das sisas,
impostos recolhidos no nível local, e das terças, que era a parte dos ren-
dimentos das câmaras que cabia ao governo central, sendo normalmente
utilizado no reforço das defesas das vilas e cidades.15
Com a expansão ultramarina, assistimos a uma redefinição do
papel deste provedor, quando posto nas margens da economia mercantil
do Império. Da “fazenda dos ausentes”, o provedor passa cada vez mais
a cuidar da fazenda real. Na ausência deste e, sobretudo, atento aos ren-
dimentos resultantes da atividade comercial e produtiva, quando conexa
ao comércio ultramarino.
O caso da Ilha da Madeira é particularmente interessante. A
implantação de um aparelho administrativo responsável pela percepção
das rendas no contexto de uma colonização baseada na produção agrícola

12
FREIRE, Pascoal José de Melo. Instituições de Direito Civil Português. Boletim
do Ministério da Justiça, n. 161-162, livro I, p. 114, 1966.
13
LIÃO, Duarte Nunes do. Leis Extravagantes Collegidas e relatadas pelo licenciado
Duarte Nunez do mandado do muito alto & poderoso rei Dom Sebastiam, nosso
senhor. Lisboa: António Gonçalvez, 1569, p. 38-43, título XV “Do provedor
das capelas” e título XVI “Dos provedores das comarcas”.
14
ALMEIDA, Cândido Mendes. (Ed.), op. cit., livro I, título 62, p. 116 et seq.
15
Ibidem; HESPANHA, António Manoel. As vésperas do Leviathan: instituições
e poder político – Portugal séculos XVI-XVIII. Lisboa: Pedro Ferreira Artes
Gráficas, 1986, p. 206 et seq.

64
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

revela um caminho que será depois, em parte, seguido pelo Brasil. Como
nos demostra o estudo de Susana Münch Miranda, em um primeiro
momento, a crescente integração da produção da Ilha nos circuitos co-
merciais europeus, levou à necessidade do “estabelecimento de estruturas
aduaneiras orientadas especificamente para a interpretação dos reditos
fiscais provenientes do comércio marítimo”.16 Em 1477, são criadas as
alfândegas de Funchal e Machico, subordinadas ao contador – oficial
responsável pelo exercício dos direitos fiscais do donatário (no caso o
Duque D. Manuel, feito rei em 1495 e, três anos depois, integrando os
direitos senhoriais à Coroa).17
Em 1508, o cargo de contador será ampliado com o acrescenta-
mento do ofício de provedor. O novo ofício, intitulado de Provedoria da
Fazenda, reunia essas competências. Ampliadas, talvez, pelo papel cada
vez mais importante da alfândega, da contabilidade e controle do seu
movimento e dos seus livros e, sobretudo, do arrendamento dos direitos –
cada vez menos percebidos diretamente. Hespanha havia considerado que
tal aproximação entre a contadoria e a provedoria era fenômeno corrente
no reino, sempre no nível das comarcas.18 Contudo, o que observamos
no Ultramar parece ser algo diverso. O estudo da institucionalização do
aparelho fiscal conexo ao comércio no Reino pode revelar mais da natu-
reza destes mecanismos do que a comparação com os espaços senhoriais
e interiores do continente.
Em 1516, o Regimento dos Vedores da Fazenda indicava o caminho
de centralização a autonomização da estrutura fiscal da Monarquia, pelo
menos na dimensão que efetivamente interessava: o comércio ultramari-
no. No caso do Brasil, o Regimento de Antonio Cardoso de Barros inovava
ao criar um sistema centralizado e articulado de controle dos direitos

16
MIRANDA, Susana Münch. A Fazenda Real na Ilha da Madeira: segunda me-
tade do século XVI. Funchal: Secretaria Regional do Turismo, Cultura e
Emigração – Cham (FCSH-UNL), 1994, p. 36.
17
Ver também VERÍSSIMO, Nelson. Relações de poder na sociedade madeirense
do século XVII. Funchal: Secretaria Regional do Turismo e Cultura, 2000,
p. 279-294.
18
HESPANHA, António Manoel, As vésperas do Leviathan, op. cit.

65
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

reais e da economia no espaço colonial. Se “a experiência é madre das


coisas”, não só as técnicas de fabrico do açúcar seriam para cá trazidas (e
aperfeiçoadas): também os mecanismos de controle dos direitos régios,
questão impositiva para a manutenção do aparelho de dominação que se
criava gravitando em torno do Governador Geral na Bahia.
Era esperado que Antonio Cardoso, assim que chegasse à Bahia,
se informasse da presença de outros oficiais da Fazenda real em cada
capitania do Brasil para realizar um perfeito diagnóstico da situação das
rendas e direitos existentes, o que era cobrado e de que forma. Deveria
estabelecer na Bahia uma alfândega, perto do mar, estabelecendo uma
“casa” para que se faça o “negócio de minha fazenda e contos”, onde possa
haver livros (contabilidade). O provedor-mor é feito, pelo Regimento, juiz
dos assuntos referentes à Fazenda, tendo jurisdição local até 10$000 réis
e respondendo pelas apelações e agravos de outras capitanias no que
superasse esse valor. Assim que o Governador fosse visitar as capitanias
do Brasil, o provedor-mor deveria acompanhá-lo para bem ordenar o
trabalho dos provedores, almoxarifes e demais oficiais da Fazenda que
houvessem. Na falta desses, por seu conselho, deveria o Governador no-
mear os necessários, criando assim, em cada capitania uma representação
da provedoria. Da mesma forma, em cada capitania, deveria existir uma
alfândega e uma casa de contos, para que o provedor-mor pudesse ordenar
todos os direitos régios em “ramos apartados” e, então, os arrendados
conseguirem melhores resultados. Para normalizar as provedorias nas
capitanias, na mesma ocasião, foi escrito o Regimento para os Provedores
e Oficiais. Como dizíamos, em cada capitania deveria agora existir uma
Casa dos Contos, em cujos livros seriam transcritos os direitos dos do-
natários e (re)escritos os direitos da Coroa. Certamente, não foi como
efetivamente se estabeleceram as jurisdições fazendárias, ainda incertas
e sobrepostas – com provedores de algumas capitanias assumindo o fisco
de outras, nas mais desprovidas de oficiais dedicados.19 De toda forma,

19
MENEZES, Mozart Vergetti de. Colonialismo em ação – fiscalismo, economia
e sociedade na Capitania da Paraíba (1647-1755). São Paulo, 2005. Tese
(Doutorado em História Econômica) – Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, p. 64 et seq.

66
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

a provedoria deve ser entendida não como parte das estruturas políticas
da capitania, mas como ramificação do sistema centralizado que tinha
a cabeça em Salvador e, em última instância, deveria estar sintonizado
com ou ainda responder aos comandos do Governo Geral.
Com o crescimento da produção do açúcar em Pernambuco e a
expectativa de implantação de mais engenhos na Bahia, com o estímulo
previsto pela presença do Governo Geral, a Coroa procurou estabelecer
um sistema bem ordenado para poder fazer fluir à Fazenda os ganhos
fiscais esperados. Ao mesmo tempo, era importante oferecer ao sistema
econômico um espaço de arbitragem dos conflitos e de integração da
classe produtora (leia-se senhores de engenho e lavradores). Neste mo-
mento inicial, para além do estanco do pau-brasil, duas são as principais
fontes de renda esperadas: (1) os dízimos dos frutos da terra e (2) as
dízimas das mercadorias.
O dízimo era o principal imposto da terra. Imaginado desde o
início da colonização, fora estabelecido na América ex ante da montagem
do sistema produtivo… A responsabilidade pela sua cobrança era do do-
natário em cada capitania. Na teoria, com o estabelecimento do Governo
Geral, passava-se a responsabilidade para um provedor de cada capitania,
supervisionado pelo provedor-mor; nomeado pelo Governador do Brasil.
Na correta opinião de Ângelo Carrara, em trabalho recente e essencial
para o estudo da fiscalidade colonial, o dízimo foi “a principal fonte de
rendas do Estado do Brasil até pelo menos 1700, quando a mineração
começou a alterar profundamente as estruturas fiscais da colônia”.20 A
cobrança, contudo, foi logo arrendada a particulares e resolvia-se num
esquema de ganhos compartilhados com a elite da açucarocracia.21 O me-

20
CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século
XVII. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2009, p. 39. v. 1.
21
“O arrendamento dos dízimos era um negócio ao qual participavam muitas
pessoas porque o contrato, uma vez arrematado, era retalhado e vendido.
Vendido uma primeira vez ‘por atacado’ pelo próprio contratador aos cha-
mados ‘ramistas’. Revendidos depois pelos ramistas, e enfim novamente
vendido ‘ao varejo’ nas paróquias, em porções minúsculas. Estas porções
eram mesmo minúsculas: a vigésima ou a trigésima parte dos dízimos de

67
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

canismo de arrecadação dos dízimos já estava estabelecido no Regimento


do Governador Geral. De acordo com este,

lavrador algum, nem pessoa outra que fizer açúcares nas ditas
terras, não tirará por si, nem por outrem, fora da casa de purgar
o dito açúcar, sem primeiro ser alealdado e pago o dízimo dele,
sob pena de o perder.22

O Regimento dos Provedores, no capítulo 52, estabelece que, “para


que o açúcar que nas ditas terras do Brasil se houver de fazer, seja da
bondade e perfeição que deve ser”, haja em cada capitania um alealda-
dor a) escolhido pelo provedor-mor; b) na falta deste, pelo provedor da
capitania com o capitão e a câmara. Este alealdador, para cada arroba que
“alealdar e se carregar para fora” ganharia um real à custa do produtor.
Era recomendado, naturalmente, que não se alealdasse açúcar “senão
sendo da bondade e perfeição que deve”.23 Até 1628, os contratos para a
arrecadação do dízimo foram feitos de forma centralizada, para todo o
Estado do Brasil. Sendo assim, cabia ao arrematados recolher o imposto
em todas as capitanias. Um alvará de 3 de junho de 1630 modificava o
sistema e determinava que o dízimo fosse arrecadado em cada capita-

uma paróquia, o que significa menos de 1% dos dízimos de uma capitania.


Em suma, em cada capitania eram centenas as pessoas que compravam os
dízimos”. GALLO, Alberto. Racionalidade fiscal e ordem colonial. In:
COLÓQUIO INTERNACIONAL ECONOMIA E COLONIZAÇÃO NA DIMENSÃO DO IMPÉRIO
PORTUGUÊS, 30 set. 2008, São Paulo. Disponível em: <http://www.fflch.usp.
br/cjc/eventos/textos/alberto_gallo.pdf>. Acesso em: 22 maio 2013.
22
Veja o capítulo 32. Assim, era obrigação do “lavrador ou pessoa outra que
tiver açúcar na dita casa do purgar o tiver feito e acabado” comunicar à
Provedoria que seu açúcar fora “já alealdado, de que mostrará certidão de
alealdador, e lhe requererá que vá receber o dízimo”. Se o almoxarife, ou
quem for, demorar mais de três dias da requisição, pagará vinte cruzados
(8$000) de multa, metade para o fabricante e outra “para uma obra pia que
o provedor ordenar”. Se reincidisse no atraso, outros vinte cruzados. Uma
vez separado o dízimo, deveria ser levado para onde fosse encaixotado…
MENDONÇA, M. C. de (Ed.), op. cit., p. 108. t. 1.
23
Ibidem, p. 117-116. t. 1.

68
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

nia – sob a supervisão da provedoria-mor.24 O papel do alealdador, com


o desenvolvimento do sistema econômico, passou, cada vez mais, a ser
exercido por outros indivíduos em sintonia com o arrendatário da co-
brança dos dízimos. Segundo o dicionário de Bluteau, o termo, corrente
nos séculos anteriores, não mais se usava no começo do século XVIII.25
Antonil [Andreoni], no seu Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas
e minas, explica que o caixeiro, trabalhador especializado e presente em
cada engenho, era quem deveria pesar o açúcar e reparti-lo com fidelidade
entre os lavradores e o senhor do engenho. Em acordo com o contratante,
era ele também que deveria tirar “o dízimo que se deve a Deus”.26
Como notou Koster, no início do século XIX, os impostos pesam
“sempre sobre as classes baixas e não alcançam quem os poderia suportar
desafogadamente”. O contrato do dízimo associava os interesses da elite
da açucarocracia com o dos arrendatários, uma vez que a cobrança (na
ponta da produção, no “chão da fábrica”, era sempre em espécie) que
ficava por conta dos senhores de engenho (isentos, por sua vez) resultava
em participação nos ganhos. Como notava o senhor de engenho Koster,
no caso do dízimo,

todas as taxas são negociadas ao melhor preço. Divididas em


distritos extensos são contratadas a preço razoável mas os pro-
prietários adquirem estas taxas em menores porções, que ainda
são retalhadas para outras pessoas e, como há sempre ganho em

24
ALVARÁ de 3 jun. 1628, DH, 15, 293; veja também CARRARA, Ângelo Alves.
op. cit., p. 39. v. 1.
25
“Lealdarse” era um termo do foral da alfândega, cujo regimento feito por D.
João III, estabelecia que “todo homem que mandasse trazer alguma merca-
doria para a sua casa, o fosse dizer primeiro ao provedor e oficiais, e estes
lhe dessem juramento, se aquilo que pedia se havia de gastar aquele ano em
sua casa, e sendo o que pedia conforme a razão, lho concedessem e se escre-
vesse em certos livros. Este negócio chamam ir lealdar” BLUTEAU, Raphael.
Vocabulario portuguez & latino: aulico, anatomico, architectonico... Coimbra:
Collegio das Artes da Companhia de Jesus, 1712-1728, p. 60. v. 4.
26
ANTONIL, André João [André João Andreoni]. Cultura e Opulência do Brasil,
por suas drogas e minas, etc. Lisboa: Officina real Deslandesiana, 1711,
p. 21-22. Livro I, VIII: Do caixeiro do engenho.

69
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

cada transferência, o povo deve ser, necessariamente, explorado


para que esses homens possam satisfazer seus superiores e en-
riquecer também. O sistema é por si mau e a partilha do espólio
o torna ainda mais vexatório.27

Quase três séculos entre a implantação deste sistema e as queixas


do engenheiro. Mas esse lamento já se via nos primeiros anos da coloni-
zação. Duarte Coelho, em carta ao rei de 1546, explicava que na cobrança
dos dízimos os “senhores de engenho queriam esfolar o povo”, afinal “a
negra cobiça do mundo é tanta, que turva o juízo aos homens”.28
É possível imaginar que a arrecadação dos dízimos era atividade de
fato lucrativa. Temos, contudo, muito poucos registros que nos permitam
corretamente avaliar o funcionamento desta cobrança. Há, no códice do
Livro primeiro do governo do Brasil, guardado no Itamaraty, um “[Papel em]
que se mostra o quanto rende assim os dízimos dele [Estado do Brasil]
como os direitos que as suas alfândegas se lhe [ao rei] pagam”,29 cuja
datação incerta pode ser estimada para 1627. Neste documento, é feita
uma avaliação da produção (que era exportada) da economia colonial nas
capitanias do Brasil – açúcar, sobretudo – e dos impostos arrecadados. O
quadro, ao lado, sumariza estas informações. Como se percebe, o açúcar
corresponde a 92% da produção colonial que era exportada. O dízimo,
neste ano, foi contratado por 44:000$00 réis, o que corresponde a apenas
3,1% do valor total do que era exportado. Já o valor efetivamente arreca-
dado – segundo o documento – foi de 83:750$000 réis, ou seja, 5,9%
do valor total. O contrato tinha resultado em um ganho de quase o valor
pago. Entretanto, a maior parte da arrecadação era obtida na Alfândega

27
KOSTER, Henry. Viagens ao nordeste do Brasil. Recife: Fundação Joaquim
Nabuco; Massangana, 2002 (1816), p. 106-107. v. 1.
28
CARTA de Duarte Coelho ao rei, 15 abr. 1546, MELLO, José Antonio Gonsalves
de; ALBUQUERQUE, Cleonir Xavier de (Ed.). Cartas de Duarte Coelho a El Rei.
Recife: Massangana, 1997, p. 103.
29
“[Papel em] que se mostra o quanto rende assim os dízimos dello [Estado
do Brasil] como os direitos que as suas alfândegas se lhe [ao rei] pagam”…
(c. 1627), SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana Münch. Livro primeiro do
governo do Brasil, 1607-1633. Lisboa: CNDP, 2001, fol. 27-31v.

70
Açúcar: estimativa da produção e da carga fiscal no
Estado do Brasil, c. 1627
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

que, de maneira geral, não configurava rendas consignadas diretamente


ao Estado do Brasil. Tal como veremos, os custos mais diretos da máqui-
na burocrática eram cobertos pelos dízimos e, em período posterior à
expulsão dos holandeses, também pelas câmaras municipais – sobretudo
a da Bahia e suas anexas – que arcaram com grande parte das despesas
para o sustento das tropas. Os recursos arrecadados pela alfândega têm
destinos outros – por vezes vinculados ao pagamento de algum direito ou
tença localmente –, mas ainda falta uma pesquisa mais sistemática que
esclareça este aspecto. Vale lembrar que outros tantos seriam cobrados
no reino, cobrados sobre a circulação destas mercadorias, cujos preços
ainda seriam majorados no mercado europeu.
No dizer de Brandônio, os rendimentos dos dízimos eram su-
ficientes para sustentar as estruturas políticas e militares do governo
da América. No começo do século XVII, o que se recebia dos frutos do
açúcar permitia que o rei não gastasse nem despendesse “na sustentação
do Estado um só real de sua casa, porquanto o rendimento dos dízimos,
que se colhem na própria terra, basta para sua sustentação”.30 Passados
poucos anos, o autor de um papel em “que se mostra o quanto rende
assim os dízimos dele [estado do Brasil] como os direitos que as suas
alfândegas se lhe [ao rei] pagam”… (posterior a 1624), incluso no códice
do Itamaraty, conhecido como Livro primeiro do governo do Brasil (1607-
-1633), esclarece que, com os rendimentos do dízimo (que montavam,
então, a 110 mil cruzados = 44.000$000),

[...] sustenta Vossa Majestade o clero, governadores, padres da


Companhia, provedor-mor e mais ministros da justiça e fazen-
da, e sustentava o presídio que havia na dita capitania antes de
ser tomada dos holandeses, e ainda paga nelas tenças e capitães
entretenidos por serviços que fizeram neste reino.31

30
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogos das Grandezas do Brasil (1618).
Recife: Editora UFPE, 1966, p. 74.
31
SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana Münch, Livro primeiro do governo do
Brasil, 1607-1633, op. cit., fol. 27.

72
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Podemos ver isso com detalhes no governo de Gaspar de Sousa.


Quando foi nomeado, o governador geral recebeu um regimento (31 de
agosto de 1612) no qual Filipe III mandara que, “para o bom governo do
dito Estado”, fosse

ordenado um livro no qual assentassem todas as capitanias dele,


declarando as que são da Coroa e as que são de donatários, como
as fortalezas e fortes que cada um tem e assim a artilharia que
nelas há, com a declaração necessária do número das peças, peso
e nome de cada uma, as armas, munições, que nelas ou nos meus
armazéns houvesse, gente que tem de ordenança, oficiais e minis-
tros, com declaração de ordenados, soldos e despesas ordinárias
que se fazem em cada uma das ditas capitanias, e assim do que
cada uma delas rende para a minha fazenda, pondo-se ao dito
Livro título de Livro do Estado.

Este livro extraordinário foi efetivamente preparado no ano de


1612 com o título de Livro que dá razão do Estado do Brasil.32 Na época,
eram sete as capitanias que importavam, cada qual com seus engenhos
de açúcar, rendendo dízimos e suportando gastos com os ofícios remu-
nerados. O quadro da página seguinte mostra como a maior parte da
produção concentrava-se em Pernambuco (99 engenhos) e na Bahia (50
engenhos), assim como a arrecadação: 42,65% do dízimo anual do Estado
do Brasil provinha da Bahia e 40,34% de Pernambuco.
Os dados, sumarizados na tabela, ainda mostram como havia
uma política financeira que permitia a sustentação de um aparato mili-
tar e burocrático em todas as sete capitanias, mesmo no caso de serem
deficitárias. Porto Seguro e Rio Grande eram grandemente deficitárias.
A primeira, gastando com ofícios mais de cinco vezes o que conseguia
arrecadar, com um único engenho moendo. A segunda, gastando uma
enorme soma (3:561$960 réis) e nada arrecadando. A maior parte des-

32
MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil [1612].
Edição crítica, com introdução e notas de Hélio Vianna. Recife: Arquivo
Público Estadual, 1955. O regimento de Gaspar de Sousa está publicado em
MENDONÇA, Marcos Carneiro de, op. cit., p. 413-436. t. 1.

73
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

te valor estava comprometida com os gastos militares: 92 postos que


consumiam, anualmente, 3:183$600 réis. A Bahia, sede do Governo
Geral, quase que empatava gastos e receitas. Mas, somando com as
capitanias do Centro do Brasil, suas anexas, temos um déficit de 722$33
réis por ano. As capitanias do Norte, Pernambuco e suas anexas (com
exceção do Rio Grande), por outro lado, garantiam bons resultados para a
Fazenda Real. No final, havia um ganho fiscal de 7:611$940 réis por ano.
No total, 76% do que era arrecadado com os dízimos serviam para cobrir
a folha de pagamento do clero, do governo, da fazenda e dos militares.
No quadro abaixo, podemos ter uma visão disto. Note que não estão
incluídos os 3:879$000 réis que eram gastos anualmente com direitos
dos donatários (redízima) e outras tenças e pagamentos a particulares.
O saldo, em 1612, foi positivo para a Coroa: 3:010$610 réis.

Quadro financeiro do Estado do Brasil em 1612


arrecadação qtde. de ofí- gastos razão
qtde. de
capitania anual dos cios remu- anuais com gastos /
engenhos
dízimos nerados os ofícios arrecadação
Porto Seguro 1 80$000 16 442$520 553%
Ilhéus 5 260$000 8 124$050 48%
Bahia 50 18:356$000 305 19:107$840 104%
Sergipe d’El Rei 1 580$000 5 323$920 56%
Pernambuco 99 17:360$000 137 10:311$500 59%
Itamaracá 10 2:400$000 9 432$840 18%
Paraíba 12 4:000$000 39 1:841$760 46%
Rio Grande 1 98 3:561$960  
TOTAL 179 43:036$000 617 32:533$390 76%

NOTA: Os valores estão em réis.

FONTE: MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil [1612]. Edição crítica, com
introdução e notas de Hélio Vianna. Recife: Arquivo Público Estadual, 1955. Foram corrigidos
alguns erros nas totalizações, a partir das indicações de Hélio Vianna na colação que fez nos
códices do IHGB e da Biblioteca do Porto. A região de São Francisco, apesar de não ser capitania,
foi contabilizada por Moreno. Incluimos seus dados nos da capitania da Bahia.

A Coroa, desde o início da colonização, criou subsídios e isenções


para estimular a implantação da economia açucareira. O principal deles

74
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

foi, sem dúvida alguma, a associação do instituto da doação das terras em


sesmarias com a doação patrimonial das capitanias hereditárias. Desde
1534, as terras das capitanias do Brasil, de acordo com os sucessivos forais,
deveriam ser (em grande parte, com exceção das que poderiam restar
com o donatário) doadas livremente, isentas de foro, aos particulares
interessados na colonização, isto é, na produção. A única condicionante,
como definia a lei de 1375, era a obrigação de colocar a terra a produzir.
Como mostrou Costa Porto, em Portugal medieval, o instituto da sesma-
ria fixava que “a cultura do solo é obrigatória tendo em vista o interesse
coletivo – o abastecimento”.33 Assim manteve-se, no reino, as sesmarias.
Nas Ordenações Filipinas, de 1603, fica claro que as

sesmarias são propriamente as dadas de terras, casais ou


pardieiros, que foram, ou são de alguns senhorios e que já em
outro tempo foram lavradas e aproveitadas, e agora o não são.
As quais terras e os bens assim danificados e destruídos podem
e devem ser dados de sesmarias pelos sesmeiros que para isso
forem ordenados.

Em nota à edição que preparou das Ordenações em 1870, o jurista


Cândido Mendes de Almeida comenta: “Como se vê, as dadas das terras
virgens do Brasil não se poderia chamar de sesmarias, mas como se acha-
vam desaproveitadas, assim foram também denominadas”. A provisão de
5 dezembro de 1653 declarava que as datas de sesmaria não se reputavam
bens da Coroa, embora estivessem lançadas nos livros dos Próprios.34
Desde a chegada do Governo Geral, a Coroa procurou estimular
a implantação de engenhos de açúcar. Um dos mecanismos utilizados
foram as isenções fiscais – sobretudo do dízimo, uma vez que as terras

33
PORTO, José da Costa, op. cit., 1979, p. 34.
34
ALMEIDA, Cândido Mendes de (Ed.), op. cit., livro IV, título 43, p. 822-826.
Sobre as sesmarias no ultramar, veja o capítulo 6 do excelente livro de
SALDANHA, António Vasconcelos de. As capitanias do Brasil: antecedentes, de-
senvolvimento e extinção de um fenómeno atlântico. Lisboa: CNCDP, 2001,
p. 281-325. Veja também RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial:
Brasil, 1530-1630. São Paulo: Alameda, 2009, p. 184 et seq.

75
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

doadas em sesmarias estavam livres de foros. O alvará de 21 de julho de


1551 estabelecia que

toda a pessoa que a sua custa e despesa se for a esta cidade e po-
voações para nelas viver e as povoar e aproveitar esta ano de [15]51
e no que virá de [15]52 e assim os que lá mandarem no dito tempo
e fazer de novo engenho de açúcares ou reformar os que tinham
nesta capitania da Bahia e da de Espírito Santo sejam escusos
de pagarem o dízimo de suas novidades por tempo de 5 anos.35

Estes mecanismos de isenção fiscal eram exclusivos para a elite da


açucarocracia (leia-se, para os senhores de engenho) que detinha o papel
de liderança na implantação do sistema econômico tal como projetado no
regimento de Tomé de Souza – isto é, com o partilhamento das atividades
agrícolas e manufatureiras (entre lavradores, dedicados apenas ao plantio
da cana, e senhores de engenho) –, de modo a garantir uma expansão
mais rápida da produção com menos ônus para o capital.
Uma provisão de 16 de março de 1570, no tempo do governador
Mem de Sá, alargou a isenção para dez anos, beneficiando “as pessoas
que no Brasil fizerem de novo engenhos de açúcares ou refizerem os
que lá estavam feitos”. A norma esclarecia que, para evitar “conluios e
enganos em prejuízo de meus direitos”, el-Rei ordenava que assim que
“for de todo acabado e estiver moente e corrente”, os engenhos fossem
assentados em “um livro que para isso haverá em cada capitania nume-
rado e assinado” pelo provedor.36 Desta maneira, certidões poderiam ser
passadas atestando que o açúcar que chegasse na alfândega provinha de
um engenho ainda em exercício da isenção.

35
INSTITUTO DO AÇÚCAR E DO ÁLCOOL. Documentos para a História do Açúcar. Rio
de Janeiro: Serviço Especial de Documentação Histórica, 1954, p. 111-112.
v. 3.
36
PROVISÃO de 16 mar. 1570, Translado autêntico do Livro Dourado da Relação
da Bahia, BPE, cod. CXV / 2-3, fls. 352v-353v. Veja também FERLINI, Vera Lúcia
Amaral. Terra, Trabalho e Poder. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 193.

76
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Na distância das Américas, com a conivência dos agentes da Coroa,


as fraudes, contudo, prosperavam. Diante da falta de pagamentos e dos
ardis e conluios resultantes do aproveitamento das inúmeras isenções
existentes, a Coroa procura melhor organizar a cobrança do imposto
sobre a produção. Em outubro de 1570, o rei fez uma lei para punir os
autores de “contratos simulados, conluios e encobrimento de fazendas
que se fazem em fraude do Fisco e minha Câmara Real”. Em janeiro
de 1573, pedia que tal provisão fosse enviada aos ouvidores.37 Em 17 de
setembro de 1577, é publicado o Regimento dos Dízimos do Brasil que
busca ampliar os poderes dos provedores nesta cobrança e melhor ordenar
a burocracia fiscal. Quando Gaspar de Sousa foi nomeado governador,
em 1612, o rei lhe passou uma carta em que informava que no “contrato
que hora ultimamente se fez dos dízimos daquele estado, houve nele
conluio e dano de minha fazenda”, tendo o provedor-mor hesitado em
assiná-lo. Tendo anulado o contrato, o rei pedia uma investigação para

saber com nesta matéria se procedeu e se ouve dar ou receberem


algumas peitas ou outro respeito, assim no arrendamento como no
mais procedimento, e se teve o contratador algumas inteligências
com alguma ministros da Relação por razão do qual se lhe deram
os despachos tão favoráveis e extraordinários.

O rei pedia que, tão logo chegasse, Gaspar de Sousa tirasse infor-
mação de “tudo isto” e, ouvidas algumas testemunhas, mandasse um
relatório para o Conselho das Índias.38
Passados dois anos, um alvará impunha um maior controle na
concessão destas isenções por dez anos. Em 1613, a rápida difusão de
uma mudança nas moendas da cana do açúcar havia contribuído para o
aumento da produtividade dos engenhos. A moenda “de palitos”, com

37
TRANSLADO autêntico do Livro Dourado da Relação da Bahia, op. cit., fol. 77v.
38
CARTA do rei para Gaspar de Sousa, 9 out. 1612. In: SALVADO, João Paulo;
MIRANDA, Susana Münch (Ed.) Cartas para Álvaro de Sousa e Gaspar de Sousa
(1540-1627). Lisboa: CNCDP, 2001, p. 155.

77
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

três cilindros verticais, vinha a substituir aquelas de “prensagem” ou de


dois eixos horizontais.39 Como o rei era agora

informado de que alguns meses a esta parte os moradores do dito


estado inventaram novo modo de moer açúcares, a que chamaram
engenho, com tão pouca fábrica e despesa, [...] e se nestes tais
engenhos se houvesse de estender a liberdade de vinte e dez por
cento ficaria minha fazenda de todo sem direitos; e pois as liber-
dades que concederam foi por respeito da muita fábrica e despesa
que faziam os moradores desta parte com os engenhos que têm, e
ora fazendo com tão pouca que não é de consideração, nem gasto,
vos mando que não consintais que em nenhuma das capitanias e
mais partes deste estado se registrem os trapiches por engenhos,
nem deles se passe certidão alguma para se haverem de guardar
nas alfândegas deste Reino como se guardam nas outras, nem
tenham nome de engenhos porquanto nestes se não entendem os
regimentos e provisões que sobre as ditas liberdades são [foram]

39
Nos Diálogos das Grandezas do Brasil (de Ambrósio Fernandes Brandão,
publicado em Leiden no ano de 1618), acompanhamos uma conversa entre
Alviano e Brandônio sobre esta novidade. Comentava este último: “Mas ago-
ra novamente se há introduzido uma nova invenção de moenda, a que cha-
mam palitos, para a qual convém menos fábrica, e também se ajudam deles
de água e de bois; e tem-se esta invenção por tão boa que tenho para mim
que se extinguirão e acabarão todos os engenhos antigos, e somente se ser-
viam desta nova traça”. Ao que respondeu Alviano: “Toda cousa que se faz
com menos trabalho e despensa se deve estimar muito, e pois nesse modo
dos palitos se alcança isto, não duvido que todos pretendam usar deles...”. Cf.
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes, op. cit., p. 85. A grande inovação não estava
somente no melhor aproveitamento da energia moente e, portanto, do caldo
da cana. A historiadora Vera Ferlini mostra, em seu estudo, que o novo siste-
ma possibilitou a economia de dois trabalhadores no processo, em razão da
maneira mais racional do repasse da cana (a cana devia sempre passar duas
vezes pelos cilindros, para o melhor aproveitamento do sumo). Cf. FERLINI,
Vera Lúcia Amaral, op. cit., p. 101-107, 113. A tecnologia do fabrico do açúcar
foi estudada por Ruy Gama, em seu livro Engenho e Tecnologia (São Paulo:
Livraria Duas Cidades, 1983) e pela própria Vera Ferlini no capítulo 3 de seu
livro ora citado.

78
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

passadas; e o oficial que o contrário fizer perderá o seu ofício, e


lhe será a mão cortada por haver cometido falsidade…40

Outras fraudes eram praticadas. No seu Inquérito à vida adminis-


trativa e econômica de Angola e do Brasil, escrito no final do século XVI, o
licenciado Domingos de Abreu e Brito denunciava o uso geral em todas
as capitanias do Brasil de artifícios. Senhores cuja isenção havia caduca-
do, logo arrumavam alguma maneira de fazer passar seu açúcar sem o
pagamento do dízimo – o que se faziam com o

uso e costume dos donos de engenhos de venderem os tais açúca-


res em segredo, fazendo concerto com os tais mercadores que lhe
compram os ditos açúcares e lhos dão foros [livres] de direitos.41

Em dezembro de 1613, o governador Gaspar de Sousa denunciava o


mesmo tipo de fraude, que se aproveitava justamente das liberdades que
haviam sido concedidas aos engenhos. A Coroa passara uma provisão, em
maio de 1614, para que os trapiches (engenhos menores movidos à força
animal) não fossem registrados como engenhos, isto é, passíveis da isen-
ção.42 Para atalhar todos estes enganos, o governador havia proibido que
outros açúcares que não os dos próprios senhorios do engenho fossem

40
ALVARÁ de 26 maio 1614, Lisboa, In: SALVADO, João Paulo; MIRANDA, Susana
Münch (Ed.), Cartas para Álvaro de Sousa e Gaspar de Sousa (1540-1627),
op. cit., p. 242-243. Provisão idêntica foi passada ao provedor-mor: “provisão
que os trapiches de fazer açúcar se não registre por engenhos em razão de
gozarem de liberdade de direitos concedidos aos engenhos de açúcares”,
datada de Lisboa, 24 maio 1614. TRANSLADO autêntico do Livro Dourado da
Relação da Bahia, op. cit., fols. 354-355.
41
BRITO, Domingos de Abreu e. Um Inquérito à vida administrativa e econômi-
ca de Angola e do Brasil, em fins do século XVI: segundo o manuscrito exis-
tente na Biblioteca Nacional de Lisboa. Ed. Alfredo de Albuquerque Felner.
Coimbra: Imprensa da Universidade, 1931, p. 60-61.
42
PROVISÃO que os trapiches de fazer açúcar se não registre por engenhos em
razão de gozarem de liberdade dos dividendos concedidos aos Engenhos de
Açúcar, Lisboa, 24 maio 1614. In: TRANSLADO autêntico do Livro Dourado da
Relação da Bahia, op. cit., fols. 354-355.

79
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

despachados por eles, a fim de se aproveitarem das liberdades concedidas


na alfândega. Gaspar de Sousa, pelo que podemos inferir, havia criado um
procedimento no qual os interessados em despachar desta forma seus
açúcares deveriam apresentar as suas procurações ao governador para
que este autorizasse as que lhe parecesse. O rei, contudo, na carta de 7 de
agosto de 1614, contesta tal decisão e diz que nem com o “cumpra-se” do
governador cabia permitir tal isenção.43 Passados menos de cinco anos,
um alvará ordenava que as justificações que devem fazer os senhores de
engenho para “gozar da liberdade”, isto é, não pagar o dízimo, deveriam
obrigatoriamente ser feitas ao provedor-mor e não diante de “ministros
a quem não pertencem” (estes assuntos).44 Com efeito, o governador,
D. Luis de Sousa, havia ordenado que todos os lavradores e senhores de
engenhos que “carregam açúcares de liberdade para o Reino” que vies-
sem, ao fim do ano, declarar sua produção ao escrivão da Fazenda dos
açúcares. Na ocasião, deveriam apresentar uma certidão do contratador
dos dízimos do açúcar, para se conferir com a dita conta. Como não
havia notícia deste acerto, o que atrasava a navegação e o comércio, o
rei ordenava que se oito dias ela não aparecesse, os navios já carregados
podiam partir sem o despacho da liberdade.45 Segundo Mauro, em maio
de 1644, discutiu-se um projeto do antigo capitão-mor da Paraíba, João
Rabello de Lima, que resultou na criação, em cada porto, de um registro
de engenhos, onde estariam inscritos aqueles que possuíam isenções.
Outras medidas foram tomadas e reforçadas em 1655. Os moradores que
possuíam hábitos das ordens militares, e no caso do Brasil a de Cristo
foi a mais comum, também reclamavam o privilégio de não pagar os

43
CARTA do rei para Gaspar de Sousa, 7 ago. 1614. In: SALVADO, João Paulo;
MIRANDA, Susana Münch (Ed.), Cartas para Álvaro de Sousa e Gaspar de Sousa
(1540-1627), op. cit., p. 244.
44
ALVARÁ sobre as justificações que se hão de fazer nos engenhos para efeito
de haver de gozar de liberdade, Lisboa, 12 jan. 1619. In: TRANSLADO autêntico
do Livro Dourado da Relação da Bahia, BPE, cod. CXV / 2-3, fls. 355v-356v.
45
CARTA ao governador, d. Luis de Sousa, 7 jan. 1619. In: SALVADO, João Paulo;
MIRANDA, Susana Münch, Livro primeiro do governo do Brasil, 1607-1633,
op. cit., fol. 247.

80
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

dízimos. O que será seguidamente contestado pela Coroa, preocupada


com os rendimentos da Fazenda.46 Como as ordens religiosas se viam
igualmente na ausência deste pagamento, muitas brechas poderiam
comprometer os ganhos fiscais, necessários para custear a máquina da
burocracia colonial.
No tempo dos Bragança, o açúcar já estabelecido como o princi-
pal produto e riqueza do império, as isenções ainda tinham lugar. Mais
acentuadas pela necessidade de reconstruir a economia na saída da
longa guerra contra os holandeses. Os gastos militares haviam crescido
de forma extraordinária nestes anos e o custo da defesa do Brasil exigia
uma nova atenção para a fiscalidade. Com efeito, um ano antes do golpe
de 1o de dezembro, Filipe IV havia promulgado um novo regimento para
provedor-mor do Brasil sobre as despesas das gentes de guerra.47 Com
a Restauração, o aperto fiscal dos Habsburgo não seria substituído por
anos melhores. Contudo, como mostrou Vera Ferlini, os senhores de
engenho ganhavam algum alívio. Segundo a historiadora,

a Coroa portuguesa voltou a reafirmar isenções de dízimo por dez


anos, estimulando a retomada da produção, mas se acautelando
do vício da proteção. Determinava ser o benefício apenas conce-
dido uma vez a cada engenho, evitando-se a presunção que havia
de, acabados os primeiros dez anos de liberdade, deixassem-nos
cair, para reedificá-los e tornar a gozar a mesma liberdade. Era
criado novo registro para investigar a necessidade de reformas
nos engenhos, sendo os senhores obrigados a fazer os consertos
necessários. A partir desta época a concessão da suspensão do
pagamento do dízimo se fez com maior vigor.48

46
MAURO, Frédéric. Portugal, o Brasil e o Atlântico, 1570-1670. Lisboa: Editorial
Estampa, 1989, p. 300-301. v. I.
47
REGIMENTO novo do Provedor mor sobre as despesas da Gente de Guerra
& outras cousas, Lisboa, 9 maio 1639. In: TRANSLADO autêntico do Livro
Dourado da Relação da Bahia, BPE, cod. CXV / 2-3, fls. 325v-339.
48
FERLINI, Vera Lúcia Amaral, op. cit., p. 195; SOBRE a forma de liberdade que
hão de gozar os senhores de engenho no Brasil, Lisboa, 17 dez. 1755, AHU,

81
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

A evolução dos valores arrecadados com os dízimos foi estudada


por Frédéric Mauro que publicou, em seu Portugal, o Brasil e o Atlântico
(1570-1670), um quadro-síntese de grande valor.49 Com algumas outras
informações, é possível desenhar o gráfico a seguir. Mais recentemente,
a partir de uma pesquisa exaustiva e de grande valor, Ângelo Carrara
apresentou um quadro relativamente diverso – que indica um movimento
decrescente no valor real, não no nominal, dos contratos do dízimo a
partir da expulsão dos holandeses. Isto depois de uma folga excepcio-
nal nos anos de 1655 e 1656, em razão da retomada de Pernambuco ao
sistema fiscal.50

Valores dos contratos dos dízimos na Bahia – em cruzados e em


marcos de ouro (deflacionados), 1608-1698

FONTE: CARRARA, Ângelo Alves. Receitas e despesas da Real Fazenda no Brasil, século XVII. Juiz de
Fora: Editora UFJF, 2009, p. 125-145 (anexo 1); CSS, 2. v., 1953, p. 117; DH 54, 30 e 183.

registro das provisões, cod. 92, 271v-272v.


49
MAURO, Frédéric, op. cit., p. 335-339. v. I.
50
CARRARA, Ângelo Alves, op. cit., p. 83-85.

82
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Se os dízimos eram então consumidos internamente, no sustento


da máquina política e eclesiástica responsável pelo governo dos povos,
outras receitas traziam ganhos importantes à Fazenda no reino. Entre
estas, a mais importante, sem dúvida, era a dízima das mercadorias.
Parte dos direitos reais, como definidos no título XXIV, livro segundo
das Ordenações afonsinas, as rendas e direitos que se costumam pagar nos
portos de mar pertencem ao rei como direitos majestáticos essenciais, na
opinião dos intérpretes do direito romano. Com o desenvolvimento do
comércio ultramarino e o papel central que o capital comercial desempe-
nha na expansão da economia portuguesa, as rendas sobre a circulação das
mercadorias tornam-se vitais para a sustentação do poder da Monarquia.
Em um primeiro momento, e falamos aqui do século XV, foi sobre
o comércio interno que a Monarquia pode assentar boa parte dos seus
ganhos fiscais. Magalhães Godinho, em estudo seminal, mostrava como
a generalização das sisas (então um imposto irregularmente lançado à
escala da comunidade concelhia) a partir da revolução de 1383-1385 trans-
formou-as em uma fonte assente de receita para o Estado. Mais ainda,

das sisas ninguém está isento; face a este imposto existe igualda-
de entre todos os que estão no reino [...] trata-se de um imposto
de origem concelhia que passa a ser o primeiro imposto geral,
definidor do Estado.

Como as sisas são um imposto que incide sobre a compra e venda


de toda sorte de bens, Godinho lembra que “é como dizer que este redito
público assenta na comercialização do próprio reino, na intensidade das
trocas do mercado interno, logo, na irradiação da economia urbana e de
mercado”. Sinal da sua importância, em 1402, a sisa representava ¾ da
receita total da monarquia. Contudo, ainda seguindo a argumentação de
Godinho, a “extraordinária contração das receitas do Estado”, observada
ao longo do século XV, teria sido o principal fator a compelir o Estado

a transformar-se ele próprio em agente econômico extremamente


ativo (como forçava as casas senhoriais a lançarem-se nos em-
preendimentos comercial-marítimos), buscando na navegação
oceânica e respectivos tráficos, bem como em certas atividades

83
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

industriais novas as rendas que a terra já não lhe dá em montante


que satisfaça as necessidades crescentes e que a contração econô-
mica lhe nega no mercado interno.51

Em 1518, o autor estima que 68,2% dos recursos do Estado ve-


nham do tráfico marítimo (alfândegas, estancos, consulado).52 Cem anos
depois, em 1621, esta razão se mantinha com as rendas do ultramar
representando cerca de 64% das rendas globais.53 Justamente os anos
iniciais do século XVI são o da “ordenação sistemática e completa” dos
mecanismos de administração financeira e econômica em novos moldes:
a emergência de um Estado burocrático e mercantilista.54
Na América, a criação da Provedoria em 1548 deve ser entendida
neste quadro mais amplo, articulado com a proposição de um sistema
político para o governo dos povos e o desenvolvimento da conquista. A
provedoria, braço fiscal e econômico do Governo Geral, dava condições
para organizar a cobrança dos direitos reais e centralizar as despesas com
o aparelho militar e administrativo alargado que se instalava na cidade
de Salvador, coração do Brasil. Para além dos rendimentos dos dízimos,
diretamente dependentes dos frutos da terra (leia-se, do açúcar) e con-
signados na sustentação do governo, os ganhos fiscais da monarquia se
ampliavam com a cobrança da dízima nas Alfândegas – agora também
estabelecidas na América. À provedoria cabia ampliar o controle sobre a
exportação e importação de mercadorias, fiscalizando a obrigatoriedade
de que toda circulação fosse feita através dos portos onde houvesse casa

51
GODINHO, Vitorino Magalhães. Finanças públicas e estrutura do Estado.
In: ______. Ensaios: sobre história de Portugal. Lisboa: Sá da Costa, [s.d.],
p. 44-45. v. 2.
52
Ibidem, p. 44, 49.
53
HESPANHA, A. M. A fazenda. In: MATTOSO, José (Ed.). História de Portugal.
Lisboa: Editorial Estampa, p. 223. v. 4.
54
Um estudo mais detalhado poderia acompanhar este movimento no início
do século XVI: (1497-1520) Reforma dos forais; (1502) Regimento dos ofi-
ciais das cidades, vilas e lugares destes reinos (1504); (1505) início do tom-
bamento de todas as capelas, hospitais e albergarias; (1509) Regimento das
Casas das Índias e Mina; (1512) Artigos das Sisas; (1521) Ordenações manue-
linas; (1520) Ordenações da Índia.

84
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

de alfândega, ou seja, neste momento e por muitos anos vindouros, em


Olinda e Salvador. No mesmo espírito do que definido nos forais das
capitanias, o rei reservava o direito de cobrar (em espécie) 10% das merca-
dorias que entrassem no Brasil e o mesmo das que saíssem. As isenções
eram relativas aos que já haviam pago a dízima no reino e, no caso das
exportações, para os moradores da terra. Definia-se, explicitamente, uma
sobretaxa destinada a proteger o mercado português e, nos termos de uma
política mercantilista, onerando a atividade de comerciantes estrangeiros.
Cornelis Jansz de Haarlem, que por mais de trinta anos trabalhou
com os portugueses – sendo condestável (oficial responsável pelo cuidado
com os cartuchos e a preparação da artilharia) em Pernambuco na véspera
da conquista holandesa (1630) – é autor de um dos fragmentos reuni-
dos no relatório de Jean de Laet. Neste papel, entregue aos diretores da
Companhia das Índias Ocidentais quando retornou à Holanda, Cornelis
apresenta uma descrição detalhada da fiscalidade no Brasil. Segundo ele,

todos os gêneros de mercadorias – sem exceção alguma – importa-


dos de Portugal não pagavam nenhum imposto em Olinda, desde
que trouxessem uma declaração dos cobradores dos portos donde
tinham saído de que o imposto devido ao rei tinha sido pago:
tratando-se de Portugal, 10% do valor que eles tinham custado
segundo as faturas da compra.

O condestável explica, ainda, que se alguém tivesse esquecido ou


não encontrasse esta declaração, poderia dar caução que apresentaria o
documento em seis meses ou pagar o valor devido. Quando em Portugal,
os açúcares pagam mais 23% na alfândega, como direitos de entrada: 20%
para o Rei e 3% para o consulado.55 Este último, um tributo, introduzido
por Filipe II no ano de 1592 (Alvará de 30 de julho de 1592), para que
se preparasse uma armada grossa de doze galeões, necessária para se

55
HAARLEM, Cornelis Jansz de. Os direitos que os portugueses costumam pa-
gar em Pernambuco (c. 1630). In: LAET, João de. Roteiro de um Brasil des-
conhecido: descrição das costas do Brasil. São Paulo: Kapa Editorial, 2007,
p. 16. O volume, com transcrição, tradução, introdução e anotação de B.
N. Teensma, é publicação integral do manuscrito “Descrição das costas do
Brasil”, pertencente à biblioteca John Carter Brown (codex DU. 1).

85
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

guardar a costa de Portugal e dar segurança às frotas das conquistas.56


Todos os produtos, vindos de outros países, pagavam os mesmos 23%
ao entraram em Portugal e pagariam outros 10% se fossem reexportados
para o Brasil, por exemplo.
Podemos ter uma visão mais clara do peso da fiscalidade na eco-
nomia do açúcar ao dimensionar a composição do custo da mercadoria
“desde que se levanta em qualquer engenho da Bahia até se por na
Alfândega de Lisboa, e pela porta dela afora”. O jesuíta Antonil, no seu
Cultura e Opulência, publicado em 1711, apresenta um rol no qual detalha
todos os custos de uma caixa padrão (35 arrobas) de açúcar. Como pode-
mos ver no quadro resumo a seguir, uma caixa de 35 arrobas, que fosse
vendida por 1.600 réis no engenho, implicava ainda em um conjunto
de custos que resultava em ter ela colocada na Alfândega em Lisboa a
um valor de 2.416 réis: uma majoração de 51%. Se o que se pagava ao
senhor de engenho representava 66,2% deste valor final, os custos com
o acondicionamento e transporte local (encaixotamento e deslocamento
do engenho até o trapiche e deste para dentro da nau) chegavam a 5% e
com o transporte atlântico a 14,2%. Os direitos da terra eram irrisórios:
0,4%, referentes ao subsídio da terra (taxa de 300 réis por caixa, arreca-
dada pela Câmara para auxiliar no sustento da tropa) e o direito do Forte
do Mar (pequena taxa de 80 réis por caixa para financiar a construção de
uma fortificação na praia, em Salvador).

56
Veja a nota de Andrée Mansuy sobre o consulado na sua edição de ANTONIL,
André João [André João Andreoni]. Cultura e Opulência do Brasil por suas
drogas e minas etc. [1711]. Introdução e notas de Andrée Mansuy Diniz Silva.
São Paulo: Edusp, 2007, p. 175. François Pyrard, nascido em Laval, ficou na
Bahia por dois meses (de 13/08/1610 até 7/10/1610), no curso de sua nave-
gação pelo mundo. Descrevendo a cidade e a sua vida naquele ano de 1610,
notava – com algum espanto – que não se cobrava nenhum direito sobre
as mercadorias vendidas a retalho na terra, assim como não se pagavam
nenhum foro ou direito pelo uso das terras. As mercadorias, na entrada e na
saída, pagam apenas 3% – “e todos os bens, sejam açúcares e outros frutos
que crescem no país, pagam somente o dízimo, que o rei da Espanha [sic]
obteve do Papa”. LAVAL, François Pyrad de. Voyage de François Pyrard de Laval,
contenant sa navigation aux Indes Orientales, Maldives, Moluques, & au Bresil...
Paris: Chez Louis Billaine, MDCLXXIX [1679], parte segunda, p. 202.

86
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

Custo de uma caixa de açúcar branco macho de 35 arrobas, 1711


1. Valor do açúcar réis % item % total
Por 35 arrobas de açúcar a 1$600 56.000   66,2%

2. Transporte local
Pelo caixão no engenho, ao menos 1.200 28,4% 1,4%
Por se levantar o dito caixão 50 1,2% 0,1%
Por 86 pregos para o dito caixão 320 7,6% 0,4%
Por carreto à beira-mar 2.000 47,3% 2,4%
Por carreto do porto do mar até o trapiche 320 7,6% 0,4%
Por guindaste no trapiche 80 1,9% 0,1%
Por entrada no mesmo trapiche 80 1,9% 0,1%
Por aluguel do mês no dito trapiche 20 0,5% 0,0%
Por se botar fora do trapiche 160 3,8% 0,2%
4.230 100,0% 5,0%
3. Transporte transatlântico
Por frete do navio a 20$ 11.520 95,9% 13,6%
Por descarga em Lisboa, para a alfândega 200 1,7% 0,2%
Por guindaste na ponte da alfândega 40 0,3% 0,0%
Por se recolher da ponte para o armazém 60 0,5% 0,1%
Por se guardar na alfândega 50 0,4% 0,1%
Por cascavel de arquear, por cada arco 80 0,7% 0,1%
Por obras, taras e marcas 60 0,5% 0,1%
12.010 100,0% 14,2%
4. Direitos da terra1*
Por direitos do subsídio da terra 300 78,9% 0,4%
Por direito para o forte do mar 80 21,1% 0,1%
380 100,0% 0,4%
5. Direitos do Reino
Por avaliação e direitos grandes, a 800 réis,
e a 20 por 100 5.600 46,9% 6,6%
Por consulado a 3 por 100 840 7,0% 1,0%

87
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Por combói a 140 réis por arroba 4.900 41,0% 5,8%


Por maioria 600 5,0% 0,7%
11.940 100,0% 14,1%

O que tudo importa 84.560 100,0%


*
“Subsídio da terra: imposto municipal para a manutenção da tropa da praça.
Constava de 300 réis por cada caixa de açúcar com 35 arrobas de peso, e de 80
réis por cada fecho com 12 arrobas” e “O Forte do Mar era um dos fortes que
defendiam a cidade da Bahia, à entrada do Recôncavo. Começado em 1623 por
ordem do governador Diogo de Mendonça Furtado, com planta do arquiteto
Francisco de Frias Mesquita, não foi acabado senão em 1728. Ao longo do tempo,
o financiamento das obras, muitas vezes interrompidas, foi assegurado graças a
vários impostos”. Notas de Andrée Mansuy sobre o consulado na sua edição de
ANTONIL, André João [André João Andreoni]. Cultura e Opulência do Brasil, por
suas drogas e minas etc [1711]. Introdução e notas de Andrée Mansuy Diniz Silva.
São Paulo: Edusp, 2007, p. 174.
FONTE: ANTONIL, André João [André João Andreoni]. Cultura e Opulência do Brasil,
por suas drogas e minas, etc. Lisboa: Officina real Deslandesiana, 1711, parte 1,
livro III, cap. IX.

O maior gravame era devido aos direitos alfandegários. Antonil


assim anota: “por avaliação e direitos grandes, a 800 réis, e a 20 por
100 = 5.600 réis”. Está referindo-se ao fato de que, tomando por base o
preço do açúcar pago ao senhor (1.600 réis) cobra-se 20% sobre metade
(800 réis). Em termos práticos, isto significava 10% do valor da caixa de
35 arrobas. Valor significativo era também o que se cobrava pelo combóy
(comboio). Esta taxa de 140 réis por arroba fora instituída em 1650 para
reforçar a segurança das armadas. O comboio era a forma como se deno-
minava os navios de escolta para as naus mercantes. Imposto criado na
conjuntura da guerra da Restauração, representava, na visão de Antonil,
5,6% do valor final do açúcar. Um gravame à altura das décimas cobradas,
na época, pelo Reino.57 Segundo Andrée Mansuy, a arrecadação inicial
deste imposto permitiu manter 26 naus de guerra. Depois da paz com

57
MAGALHÃES, Joaquim Romero. Dinheiro para a guerra: as décimas da
Restauração. Hispania, v. 64, n. 216, p. 157-182, 2004.

88
a provedoria-mor: fiscalidade e poder no brasil colonial

os holandeses em 1661, “foi reduzido a quatro naus, e logo a duas, sem


que os direitos cobrados para assegurar as despesas fossem diminuídos
ou suprimidos. Isto foi motivo de queixas dos senhores de engenho e
dos negociantes do Brasil”.58 Além disso, havia o consulado (no valor de
3%), que tinha, no fundo, o mesmo propósito. Criado pelo alvará de 30
de julho de 1592, o imposto garantia a formação de uma frota de doze
navios para a segurança do comércio marítimo. Era cobrado sobre qual-
quer mercadoria que fosse importada para o Brasil ou dele exportada.59
No total, os direitos cobrados pelo Reino correspondiam a 14,1% do valor
total da caixa de açúcar, tal como colocada no mercado no Reino. Isso,
antes da participação dos lucros dos comerciantes. Quando revendido
internamente, o açúcar poderia correr a preços majorados, mas agora
desembaraçado de impostos. Se fosse reexportado, pagar-se-ia outros
tantos 10% para a Alfândega.
O monopólio português implicava que todas as mercadorias
deveriam ser transportadas em navios sob esta bandeira, os únicos com
permissão para traficar no Brasil – com exceção dos ingleses, que tinham
privilégios garantidos pelos diversos tratados que culminam com o de
1661, referente ao casamento de Catarina, irmã de Afonso VI, com Carlos
II. Na verdade, o Tratado de 10 de julho de 1654 já havia confirmado o
limite de 23% dos direitos a serem pagos pelos comerciantes ingleses, o
que, praticamente, os igualava aos nacionais. De acordo com Boxer, este
tratado “estabeleceu inequivocamente as relações de força que iriam durar
por todo o século seguinte e que podem ser descritas com um autêntico

58
Veja a nota 101 de Andrée Mansuy sobre o combóy na sua edição de ANTONIL,
André João, op. cit., p. 175.
59
“O tributo do consulado. Entrando no governo do reino de Portugal el-rei
D. Filipe, o prudente, e vendo o muito que tinha despendido do patrimônio
Real com sua proteção, introduziu neste reino no ano de 1592, o tributo novo
chamado do Consulado, que são três por cento nas Alfândegas, para com ele
fazer todo os anos uma armada grossa de doze galeões, que pudesse guar-
dar a costa e trazer seguras as frotas das conquistas das Ilhas até Lisboa”,
BLUTEAU, Raphael, op. cit., p. 487. v. 2. Veja a nota 100 de Andrée Mansuy
sobre o consulado na sua edição de ANTONIL, André João, op. cit., p. 175.

89
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

diktat”.60 A fiscalização dos mercadores, fossem eles nacionais ou ingle-


ses, era feita por algumas chalupas e pelos oficiais encarregados. William
Dampier, corsário e navegador, esteve na Bahia em março de 1699, no
tempo do governo de João de Lencastro. Comandava o navio Roebuck,
prestando serviço para o Almirantado inglês, e descreve minuciosamente
a cidade de Salvador e vida no Brasil. Segundo seu relato, a Alfândega,
onde devem ser registradas todas as mercadorias que entram e saem
da Bahia, dispõe de cinco chalupas para fiscalizar e impedir as fraudes:
“fazem a ronda pelo porto, uma depois da outra, e visitam os navios que
suspeitam guardar mercadorias que não pagaram os direitos”.61
Os impostos resultantes do controle do comércio eram o modo
mais eficiente de conseguir resultados (eram formas de exercício do
exclusivo metropolitano) e, diferentemente do dízimo, não implicavam
em um acerto com as elites produtoras do Brasil. Muito pelo contrário.
Na verdade, se o dízimo acabava por financiar a reprodução das estru-
turas políticas e de mando (inclusive militar) no Brasil, a cobrança nas
alfândegas e os direitos como o comboio e o consulado são mecanismos
que permitem a extração quase direta de ganhos fiscais pela Monarquia.
Consumidos, em parte, pelo aparelho de controle do próprio exclusivo
metropolitano, já aparecem nestes difíceis anos da Restauração, como um
possível alívio nas contas apertadas da Fazenda – apurada com os gastos
da guerra na fronteira e com os custos (não só políticos) das alianças com
os ingleses e holandeses. Nesta segunda metade dos Seiscentos, o doce
açúcar, produzido com amargo sofrimento pelos escravos, parecia ser a
salvação do Brasil e, portanto, do Império.

60
BOXER, Charles R. The Portuguese Seaborne Empire, 1415-1825. Londres:
Hutchinson, 1969, p. 335. Outro historiador seria mais enfático: “Pelo trata-
do de 1654, Portugal tornara-se um virtual vassalo comercial da Inglaterra”,
MANCHESTER, Alan K. Preeminência inglesa no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1973 (1933), p. 30.
61
DAMPIER, William. Nouveau Voyage author du monde. Rouen: Chez Eustache
Herault, MDCCXV [1715], p. 47-48. v. 4. (Tradução minha).

90
De senhores de engenho a cortesãos: conexões
entre a América açucareira portuguesa e a
Monarquia Católica no século XVII

Kalina Vanderlei Silva1

A Monarquia Católica é um objeto de investigação apaixonante.


Recobre um espaço que reúne vários continentes; aproxima ou
conecta várias formas de governo, de exploração e de organização
social; confronta, de maneira às vezes bastante brutal, tradições
religiosas totalmente distintas. Foi, ainda, o teatro de interações
planetárias entre o cristianismo, o Islão e o que os ibéricos cha-
mavam de idolatrias, uma categoria que abarca arbitrariamente
os cultos americanos, os cultos africanos, ou ainda as grandes
religiões da Ásia.2

Nessa afirmação de Serge Gruzinski, reside o cerne de uma perspec-


tiva interpretativa que inspirou muitas das questões propostas neste

1
Professora de História da Universidade de Pernambuco. Esta pesquisa
foi desenvolvida junto ao Departamento de História Medieval, Moderna
e Contemporânea da Universidade de Salamanca, inserida no Grupo de
Investigación BRASILHIS, coordenado pelo Prof. Dr. José Manuel Santos
Pérez. Pesquisa financiada pela FACEPE.
2
GRUZINSKI, Serge. Os mundos misturados da monarquia católica e outras
connected histories. Topoi, Rio de Janeiro, p. 179-180, mar. 2001.
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

trabalho e que parte, em primeiro lugar, do entendimento da Monarquia


Católica como um espaço privilegiado de conexões culturais e políticas.
Tal perspectiva – defendida também por historiadores como Bartolomé
Yun Casalilla e José Javier Ruiz Ibañez, que vêm se debruçando sobre as
redes sociais estabelecidas entre os diferentes recantos do Império dos
Habsburgo de Espanha – tem guiado nossa leitura de uma série ampla de
documentos seiscentistas, relativos a uma determinada periferia desses
vastos territórios da Monarquia Católica: a América açucareira portuguesa.3
Esse espaço abrangia a área canavieira das capitanias do norte do
Estado do Brasil no século XVII; uma região classicamente observada
pela historiografia a partir de seus engenhos e canaviais, apesar de que,
recentemente, vem recebendo cada vez mais atenção pela complexidade
de suas estruturas urbanas.4 Estruturas essas, inclusive, que vivenciaram
uma intensa expansão e dinamização baixo os Habsburgo de Espanha.

3
Cf. YUN CASALILLA, Bartolomé. Entre el imperio colonial y la monarquía
compuesta. Élites y territorios en la Monarquía Hispánica (ss. XVI y XVII).
In: ______. (Dir.). Las Redes del Imperio: Élites sociales en la articulación
de la Monarquía Hispánica, 1492-1711. Madrid: Marcial Pons, 2009,
p. 12; e RUIZ IBÁÑEZ, José Javier. Servir segundo a dignidade: exílios políti-
cos e administração real na Monarquia Hispânica, 1580-1610. In: MONTEIRO,
Rodrigo B.; FEITLER, Bruno; CALAINHO, Daniela B.; FLORES, Jorge M. (Org.).
Raízes do privilégio: mobilidade social no mundo ibérico do Antigo Regime.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 105-132.
4
Entre os melhores exemplos da historiografia clássica para a caracterização
básica da América açucareira portuguesa está SCHWARTZ, Stuart B. Segredos
internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988. E para a nova historiografia que vem se de-
bruçando sobre os núcleos urbanos no mundo do açúcar ver: SOUZA, George
F. C. de. Tratos & mofatras: o grupo mercantil do Recife colonial (c. 1654-
-c. 1759). Recife: Editora Universitária UFPE, 2012; CAETANO, Antonio Filipe
Pereira (Org.). “Alagoas Colonial”: construindo economias, tecendo redes
de poder e fundando administrações (séculos XVII-XVIII). Recife: Editora
Universitária UFPE, 2012; SILVA, Kalina Vanderlei. Nas solidões vastas e assus-
tadoras: a conquista do sertão de Pernambuco pelas vilas açucareiras nos
séculos XVII e XVIII. Recife: CEPE, 2010; OLIVEIRA, Carla Mary S.; MENEZES,
Mozart Vergetti de; GONÇALVES, Regina Célia (Org.). Ensaios sobre a América
portuguesa. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2009; ALMEIDA, Suely

92
de senhores de engenho a cortesãos

Apesar disso, esse período, no que concerne ao mundo do açúcar, ainda


contabiliza mais lacunas que respostas, a despeito também da vastidão
de vestígios documentais então produzidos e do fato de que, por entre
esses registros, estão muitas pistas que levam às construções sociais,
culturais e políticas do Estado do Brasil baixo os Áustrias.5
E foi seguindo tais pistas que começamos a desenhar um novo
retrato das conexões entre a Corte dos Habsburgo e essa sua periferia. Um
retrato que, do ponto de vista documental, toma por base as trajetórias
de vida de personagens que circularam entre os dois lados do Atlântico e
que, quando relacionadas às estruturas sociais e culturais vigentes, des-
cortinam mais e mais esse enredo. Personagens como Bernadino Pessoa
de Almeida, filho de senhor de engenho de Pernambuco e médico da
Câmara de Olinda, formado pela Universidade de Salamanca; ou como
Jorge Lopes Brandão, senhor de engenho da Paraíba, transplantado para
a Espanha para combater os franceses em Navarra.6 Além dos vários
fidalgos luso-espanhóis que passaram temporadas no mundo do açúcar
durante o domínio filipino: do Governador Geral Diogo Botelho ao nobre

Creusa Cordeiro de. O sexo devoto: normatização e resistência feminina no


Império Português. Recife: Editora Universitária UFPE, 2005.
5
Para uma revisão da historiografia sobre o chamado “período filipino”, cf.
SANTOS PÉREZ, José Manuel. A estratégia dos Habsburgo para a América por-
tuguesa. Novas propostas para um velho assunto. In: ALMEIDA, Suely Creusa
Cordeiro de; SILVA, Gian Carlo de Melo; SILVA, Kalina Vanderlei; SOUZA,
George Felix Cabral de (Org.). Políticas e estratégias administrativas no mundo
Atlântico. Recife: Editora Universitária UFPE, 2012, p. 247-254.
6
Para mais detalhes sobre Bernadino Pessoa de Almeida, cf. MARCOS DE DIOS,
Angel. Estudiantes de Brasil en La Universidad de Salamanca durante los
siglos XVI y XVII. Revista de História, São Paulo, n. 105, p. 215-230, 1976 e
para Jorge Lopes Brandão, cf. SOBRE lo que escribe Don Luis de Rojas cerca
de las mercedes que se devem hacer a las personas que asisten en la guer-
ra de Phernambuco dineros que se deven lhe dar, y perdon que se devem
dar. Archivo General de Simancas (AGS), Secretarías provinciales, libro 1478,
fols. 37-39.

93
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

espanhol D. Luis de Rojas y Borja;7 sem falar nos muitos soldados, súditos
menores do rei da Espanha, que, enviados para lutar contra os holande-
ses, acabaram por lá se fixar e criar raízes: como Antonio Álvarez de La
Penha, soldado castelhano que passou a residir em Pernambuco depois
da guerra, afidalgando-se e enviando seu neto, muitos anos depois, para
estudar medicina na Universidade de Salamanca; ou Francisco Rodrigues
Salvaterra, “castelhano de nação” que foi embarcado para o Brasil em
1640 para combater os holandeses em Pernambuco, retornando ao reino
para lutar pelos portugueses em Badajós, só para voltar mais uma vez à
América onde se encontrava, em 1660, servindo no Ceará.8 Caso exem-
plar, esse de Salvaterra, que chegara à América no posto de soldado e fora
se afidalgando ao longo do tempo, a ponto de, décadas após sua vinda,
passar a assinar as petições com o Dom característico dos fidalgos. Ou,
por fim, Juan Lopes Sierra: autor de um panegírico fúnebre escrito, em
espanhol, em honra ao Governador Geral Afonso Furtado de Mendonza,
em Salvador da década de 1670. Sierra, que afirmava ter então 72 anos
de idade, muito provavelmente chegara à Bahia na esteira das tropas da
reconquista, na década de 1620.9

7
Para o Governador Geral, cf. DUTRA, Francis A. A New Look into Diogo
Botelho’s stay in Pernambuco, 1602-1603. Luso-Brazilian Review, v. 4, n. 1,
p. 27-34, 1967; e para D. Luis de Rojas y Borja, cf. SOBRE lo que escribe Don
Luis de Rojas cerca de las mercedes que se devem hacer a las personas que
asisten en la guerra de Phernambuco dineros que se deven he dar, y perdon
que se devem dar. Archivo General de Simancas, Secretarías provinciales,
libro 1478, fol. 37; MELLO, Evaldo Cabral de. Olinda restaurada: guerra e
açúcar no Nordeste, 1630-1654. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998.
8
Para os de La Penha, cf. SILVA, Kalina Vanderlei. Fidalgos, capitães e senho-
res de engenho: o Humanismo, o Barroco e o diálogo cultural entre Castela
e a sociedade açucareira (Pernambuco, séculos XVI e XVII). Varia Historia,
Belo Horizonte, v. 28, n. 47, p. 235-257, jan./jun. 2012; e para Salvaterra,
cf. INFORMAÇÕES [do conselho ultramarino] sobre serviços prestados por D.
Francisco Rodrigues Salvaterra, castelhano de nação, no período de 1649 a
1660, na capitania de Pernambuco. Arquivo Histórico Ultramarino (AHU),
Lisboa, ACL, CU 015, c 7, D. 622.
9
Cf. PÉCORA, Alcir; SCHWARTZ, Stuart B. (Org.). As excelências do governador: o
panegírico fúnebre a D. Afonso Furtado, de Juan Lopes Sierra (Bahia, 1676).

94
de senhores de engenho a cortesãos

Todos esses homens são vívidas ilustrações da intensa circulação


de gente entre a América açucareira portuguesa e outros territórios da
Monarquia Católica, e sugestivos, inclusive, de uma certa facilidade no
trânsito não apenas entre Portugal e Espanha, mas também entre os dois
reinos e o Estado do Brasil.10 Essa circulação, além disso, instigara a cria-
ção de redes de notícias, encarnadas na troca de correspondência entre
cortesãos, intelectuais, clérigos, senhores de engenho e administradores
dos dois lados do Atlântico, como aquela mantida pelo chantre de Évora,
Manuel Severim de Faria, com seus muitos informantes mundo à fora,
inclusive Frei Vicente de Salvador, na Bahia.11
Por outro lado, a presença dos súditos espanhóis nas vilas do
açúcar já era um fenômeno anterior ao período filipino. Súditos que
estavam, por exemplo, entre os mais atuantes dentre os missionários
jesuítas embarcados com o primeiro Governador Geral para a Bahia em
1549: caso de José de Anchieta e João Azpilcueta Navarro. No entanto,
aparentemente foi mesmo baixo o reinado de Felipe II de Espanha que tal
presença se fez mais marcante, principalmente com as tropas de Diogo

São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 38-40. Esses autores elaboram
várias especulações, bem fundamentadas no contexto do período, acerca das
possíveis origens desse personagem, não deixando de considerar que Juan
Lopes Sierra poderia ser simplesmente um pseudônimo para algum autor
baiano.
10
A historiografia que trabalha com a circulação humana dentro das
fronteiras da Monarquia Católica inclui os basilares trabalhos de Gruzinski
e Casalilla. Cf. GRUZINSKI, Serge. Las cuatro partes del mundo: Historia de
una mundialización. México: Fondo de Cultura Económica, 2010; YUN
CASALILLA, Bartolomé, op. cit., p. 11-35. Mas é importante ressaltar que existe
também uma historiografia brasileira que aborda a circulação interna na
América portuguesa: PAIVA, Eduardo França; IVO, Isnara Pereira; AMANTINO,
Márcia. Escravidão, mestiçagens, ambientes, paisagens e espaços. São Paulo:
Annablume, 2011; IVO, Isnara Pereira. Homens de Caminho: trânsitos
culturais, comércio e cores nos sertões da América portuguesa. Século
XVIII. Vitória da Conquista: Edições UESB, 2012.
11
Para a rede de notícias mantida por Faria, cf. MEGIANI, Ana Paula Torres. Das
palavras e das coisas curiosas: correspondência e escrita na coleção de notí-
cias de Manuel Severim de Faria. Topoi, v. 8, n. 15, p. 24-48, jul./dez. 2007.

95
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Flores Valdez na conquista da Paraíba, e a subsequente nomeação de


espanhóis para o governo dessa capitania.12 Uma situação que mostra o
quanto as regras estabelecidas em Tomar, acerca da separação das admi-
nistrações coloniais portuguesas e espanholas, foram letra morta desde o
início; pelo menos no que concernia aos territórios coloniais portugueses.
Ademais, as guerras holandesas no Brasil fomentaram um verdadeiro
boom de circulação humana entre o centro da Monarquia Católica e essa
sua periferia específica.
E se esse trânsito entre Espanha e as capitanias do norte do Estado
do Brasil não continuaria após a Restauração Portuguesa, deixaria ao
menos muitas pegadas encarnadas naqueles homens que se assentaram
em um ou outro espaço: os veteranos de Castela que haviam jurado
lealdade a D. João IV, ou os senhores do açúcar que haviam se tornado
fidalgos na Espanha. Mesmo em Portugal, os traços dessa forte conexão
cultural iriam se esvaindo com os Bragança, mas ainda seriam visíveis
na segunda metade do século XVII: caso do bilinguismo luso-espanhol,
uma constante em Portugal desde o século XV, e que desapareceria
com a última geração de nobres portugueses educados antes de 1640.13
E aparentemente o mesmo aconteceu com as redes culturais até então
existentes entre a América açucareira e a Corte dos Habsburgo: mesmo
no século XVIII, a América açucareira portuguesa ainda importaria
livros de autores espanhóis, como a Diana de Jorge de Montemayor, o
Manual de Confessores y Penitentes de Martín de Azpilcueta e os textos de
Baltasar Gracián.14

12
Para os espanhóis na conquista da Paraíba, cf. GONÇALVES, Regina Célia. O
Capitão-Mor e o Senhor de Engenho: os conflitos entre um burocrata do
rei e um ‘nobre da terra’ na Capitania Real da Paraíba (Século XVII). In:
CONGRESSO INTERNACIONAL ESPAÇO ATLÂNTICO DE ANTIGO REGIME: PODERES E
SOCIEDADES, 2005. Actas... Lisboa: Instituto Camões, 2008, p. 1-14. v. 1.
13
Para esse bilinguismo, cf. ROMO, Eduardo Javier Alonso. Português e caste-
lhano no Brasil quinhentista à volta dos jesuítas. Revista de Índias, v. LXV,
n. 234, p. 491-492, 2005.
14
Para os livros importados em Pernambuco no XVIII, cf. VERRI, Gilda Maria
Whitaker. Tinta sobre papel: livros e leituras em Pernambuco no século

96
de senhores de engenho a cortesãos

Todos esses vestígios, que sobreviveram em uma miríade de dife-


rentes acervos e em um largo rastro de papel, permitem que possamos
reconstruir a inserção dessa América açucareira portuguesa nas redes
políticas criadas entre a corte e os territórios periféricos da Monarquia
Católica no século XVII. E a cada personagem seguido, a cada trajetória
de vida reconstruída, chegamos mais perto de um desenho mais nítido
desse cenário. Considerando tudo isso, portanto, é que nos debruçamos
aqui sobre a trajetória de um personagem específico, ilustrativo dessas
conexões: D. Bartolomé de Mendoza, cortesão de Felipe IV, cavaleiro do
hábito da Ordem de Calatrava e natural de Pernambuco.
Os indícios até agora encontrados sobre esse personagem e sua
família são todos espanhóis e estão associados à prestigiosa Ordem de
Calatrava, mas os vinculam também ao grupo social que comandava o
mundo do açúcar português; aquele composto por senhores de engenho
e lavradores de cana de açúcar: a elite açucareira.15
Por causa dessa dupla conexão, a natureza de sua identidade é uma
questão importante a ser explorada, e o nível de inserção dessa família
de senhores de engenho no universo cultural cortesão pode ajudar a
esclarecer aspectos da complexidade das conexões políticas e culturais
entre essas duas regiões. E se os vestígios deixam na incerteza o fato
de D. Bartolomé ter chegado a residir em Pernambuco, por outro lado,
tornam bem estabelecido o fato de que seus pais e avós foram, de fato,
moradores naquela capitania, apesar de que sua família já residia, no
momento em que seu processo de habilitação corria junto ao Consejo de
Ordenes, na corte espanhola, e já contava inclusive com cavaleiros orde-

XVIII, 1759-1807. Recife: Editora Universitária UFPE, 2006. 2 v. E também


o INVENTÁRIO dos bens do Bispo de Pernambuco, D. Thomas da Encarnação
Costa eLima. AHU, ACL, CU, 015, CX 151. D. 10957. 1794, Maio, 4, Recife. E
para os livros recebidos pelos jesuítas nos Quinhentos, ROMO, op. cit.,
p. 502.
15
Para a definição de elite açucareira, cf. SILVA, Kalina Vanderlei. Festa e memó-
ria da elite açucareira no século XVII: a Ação de Graças pela Restauração da
Capitania de Pernambuco contra os holandeses. In: OLIVEIRA, Carla Mary S.;
MENEZES, Mozart Vergetti de; GONÇALVES, Regina Célia (Org.). Ensaios sobre a
América portuguesa. João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2009, p. 67-80.

97
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

nados: caso do pai de D. Bartolomé, D. Manuel de Mendoza, ele próprio


um cavaleiro de Calatrava, mas que havia servido em Pernambuco em
prestigiadas posições, tal como os cargos da afidalgante mesa regedora
da Santa Casa de Misericórdia.16
D. Manuel serve, assim, de ponte direta entre a capitania açucareira
e a corte da Monarquia Católica. Embora nada indique que ele ou seus
filhos, uma vez na corte, tenham continuado a sustentar suas conexões
americanas – e em vista do estado de guerra que haviam deixado para trás,
essa suposição é de fato complicada – eles ainda seriam representados
pela burocracia espanhola a partir de suas identidades americanas. Seus
vínculos com Calatrava, entretanto, sugerem que os Mendoza já deviam,
na década de 1640, atuar mais como cortesãos do que como senhores
de engenho; também sendo possível que sustentassem vínculos com os
fidalgos portugueses então expatriados na Espanha – um grupo de certa
influência em Madri17 –, em uma situação já vivenciada por personagens
que compartilhavam suas origens coloniais.18

16
Para as relações entre elite açucareira e Santa Casa de Misericórdia, cf.
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Fidalgos e filantropos: a Santa Casa da Misericórdia da
Bahia, 1550-1755. Brasília: Editora da UNB, 1981.
17
Para os fidalgos portugueses em Madri pós-Restauração, cf. BOUZA ÁLVAREZ,
Fernando. Entre dos reinos, una patria rebelde. Fidalgos portugueses en
la Monarquía Hispánica después de 1640. Estudis: Revista de historia mo-
derna, Universidad de Valencia, n. 20, p. 83-104, 1994. Em artigo recente,
Camenietzki, Saraiva e Silva fazem eco a Fernando Bouza Álvarez afirman-
do que metade da nobreza portuguesa permanecia fiel aos Habsburgo ainda
por ocasião da batalha de Montijo. CAMENIETZKI, Carlos Ziller; SARAIVA, Daniel
Magalhães Porto; SILVA, Pedro Paulo de Figueiredo. O papel da batalha: a
disputa pela vitória de Montijo na publicística do século XVII. Topoi, v. 13, n.
24, p. 11-12, jan./jun. 2012. Nesse trabalho, Bouza Álvarez, por sua vez, che-
gou a estabelecer uma classificação dos tipos de vassalos portugueses leais a
Felipe IV: homens de negócio, oficiais letrados, soldados, autoridades eclesi-
ásticas e nobres. Ele explora especialmente o grupo dos fidalgos, que haviam
vivenciado um apogeu com os Felipes, mas que caiu, após a Restauração
portuguesa, na contraditória situação de ser um grupo cuja existência se
justificava pela propriedade de terra, mas que então se encontrava sem terra.
18
Caso, por exemplo, de Duarte de Albuquerque Coelho e Matias de
Albuquerque, cortesãos que se apresentavam a partir de suas origens colo-

98
de senhores de engenho a cortesãos

Os processos de habilitação dos Mendoza na Ordem de


Calatrava

Os principais – para não dizer os únicos – indícios documentais


até agora encontrados acerca dos Mendoza são os relativos à sua presença
na Ordem de Calatrava; sejam seus próprios processos de habilitação,
sejam aqueles dos quais foram testemunhas.19 Mas se esses vestígios são
poucos, por outro lado, estão repletos de possibilidades, uma vez que, ao
mesmo tempo em que trazem informações biográficas sobre a família,
também desnudam sua inserção na cultura cortesã dos Habsburgo. E isso
graças ao detalhamento inerente a esse gênero documental: o processo
de habilitação para as ordens militares.
Principais facilitadoras do enobrecimento na sociedade ibérica
moderna, as ordens militares exerciam um forte atrativo para todos
aqueles que buscavam a ascensão às fileiras da nobreza. Justamente por
isso, todavia, e para garantir que continuassem prestigiosas, elas susten-
tavam algumas das regras mais rígidas dentre as instituições nobilitantes
daquele universo social, sujeitando seus aspirantes a rigorosas investi-

niais, sem que tivesse sequer nascido na América. Cf. DUTRA, Francis. Notas
sobre a vida e morte de Jorge de Albuquerque Coelho e a tutela de seus
filhos. Stvdia, Lisboa, n. 37, p. 265-267, dez. 1973.
19
Encontramos dois processos relativos a D. Bartolomé de Mendoza nos
arquivos do Consejo de Ordenes, no Archivo Historico Nacional de España,
e um relativo a seu irmão, D. Jerônimo de Mendoza no mesmo arquivo:
MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. Archivo Histórico Nacional, OM-
-EXPEDIENTILLOS, N.10316; MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. OM-Caballe-
ros_Calatrava, exp. 1618, fecha 1645. Archivo Histórico Nacional de España,
Consejo de Ordenes; MENDOZA de Mendoza, Jerónimo de. Archivo Histórico
Nacional, OM-CABALLEROS_CALATRAVA, Exp.1620 – 2 Recto – Imagen Núm: 3 /
110; e 7/110 Disponível em: <http://pares.mcu.es>. Acesso em: 3 out. 2014.
Além disso, encontramos referência a D. Bartolomé enquanto testemunha
no processo de um certo D. Diego Gutiérrez Barona, datado de 1654. Cf.
DÁVILA JALÓN, Valentín. Extractos de varios expedientes de nobleza y limpieza
de sangre, incoados por caballeros burgaleses en solicitud de ingreso en
las Órdenes Militares españolas [09]: Siglos XVI a XVIII. Bol. Com. Prov.
Monum. Inst. Fernán González ciudad Burgos, año 27, n. 104, 1948.

99
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

gações que terminavam por produzir processos extensos e detalhados,


como os da família Mendoza.20 O que não significa, entretanto, que esses
procedimentos estavam isentos de fraudes: em realidade, os Seiscentos
veriam as práticas de venda de hábitos e de compra de testemunhas se
tornarem comuns.21
Entre o momento de sua fundação, no século XIII, e quando os
Mendoza foram habilitados, no século XVII, as ordens militares ibéricas
vivenciaram grandes mudanças, perdendo muito de sua significação
militar e quase toda sua significação religiosa. Em sua origem, durante
o chamado processo de reconquista ibérica, elas tomavam a forma de
milícias compostas pela nobreza cavalheiresca e devotadas a regras de
ordens religiosas, tais como os beneditinos; configurando-se, assim, ao
estilo de ordens cruzadísticas como os Templários e Hospitalários, mas
diferenciando-se dessas por permitir o matrimônio de seus cavaleiros.22
No século XVII, por seu turno, já eram basicamente baluartes sociais
da fidalguia, apesar dos esforços da Coroa para que retomassem suas
obrigações militares.
Então, a situação política da Monarquia Católica, a complexificação
das estruturas sociais dentro de seu território e a necessidade de garantir
a fidelidade de grupos sociais bem mais diversificados do que a nobreza
cortesã haviam transformado a concessão de hábitos de ordens militares

20
Quem compara os hábitos das ordens militares com instituições tais como o
Santo Ofício e conclui por sua elevação na hierarquia nobiliárquica é OLIVAL,
Fernanda. Para um Estudo da Nobilitação no Antigo Regime: Os Cristãos-
-Novos na Ordem de Cristo (1581-1621). In: ______. As ordens militares e o
Estado Moderno: honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa:
Estar Editora, 2001, p. 233-244.
21
Cf. Idem. Mercado de hábitos e serviços em Portugal (séculos XVII-XVIII).
Análise social, v. 38, n. 168, p. 743-769, 2003.
22
Para as origens medievais das ordens ibéricas, e sua significação enquanto
milícias religiosas, cf. CUNHA, Maria Cristina. A Ordem de Avis e a Monarquia
Portuguesa até ao final do reinado de D. Dinis. Revista da Faculdade de Letras,
Porto, v. 12, p. 113-124, 1995. Também FERNÁNDEZ IZQUIERDO, Francisco. La
orden militar de Calatrava en el siglo XVI: infraestructura institucional –
sociología y prosopografía de sus caballeros. Madrid: CSIC, 1992, p. 13-14.

100
de senhores de engenho a cortesãos

em uma prática de remuneração. Por causa disto, e a despeito das rigo-


rosas regras estabelecidas para o ingresso nessas ordens, desde Carlos
V, o rei passara a se reservar o direito de, nelas, nomear cavaleiros; um
direito garantido por sua posição enquanto mestre das mesmas, e que
terminava por se sobrepor às próprias provanças que deveriam assegurar
a limpeza de sangue na cavalaria. Isso transformou a concessão de hábitos
por serviços prestados em um fenômeno constante baixo os Habsburgo de
Espanha no século XVII, e uma prática, inclusive, que alcançaria muitos
fidalgos provinciais, então convertidos em cortesãos.23
Cabia, nesse contexto, ao Consejo de Ordenes cuidar dos assuntos
dessas instituições, o que incluía a miríade de solicitações de hábitos e
as provanças necessárias para a concessão dos mesmos. E vultoso era o
volume de processos levados ao Consejo todo ano, a tal ponto tinha essa
prática se tornado importante na “economia das mercês” no mundo
espanhol. De fato, essa sua função, de remuneração aos servidores leais
da Coroa, transformara-se de tal forma no principal caminho para o
enobrecimento no mundo ibérico que, no século XVII, cerca de dez mil
pedidos de hábitos de ordens militares espanholas foram submetidos ao
Consejo de Ordenes.24 Porém, apesar de toda a longa tramitação ser res-
ponsabilidade do Conselho, a decisão final deveria caber mesmo ao rei.25
Por outro lado, não era apenas essa função de moeda de troca que
tornava o processo de concessão de hábitos tão importante para a Coroa,
mas o próprio significado que possuíam perante o imaginário fidalgo,

23
Para a concessão desses hábitos como prática vinculada à economia das
mercês, cf. KRAUSE, Thiago. Em Busca da Honra: os pedidos de hábitos
da Ordem de Cristo na Bahia e em Pernambuco, 1644-76. In: ENCONTRO
DE HISTÓRIA ANPUH-RJ, 13, 2008, Niterói. Anais... Niterói: [s.n.], 2008, p. 2.
Além disso, para os fidalgos coloniais que conseguiram essa mercê, ver YUN
CASALILLA, op. cit. e DUTRA, Francis A. Ser mulato em Portugal nos primór-
dios da modernidade portuguesa. Tempo, Niterói, v. 16, n. 30, p. 108, 2011.
24
ÁLVAREZ-COCA GONZÁLEZ, María Jesús. La concesión de hábitos de caballeros
de las Órdenes Militares: procedimiento y reflejo documental (s. XVI-XIX).
Cuadernos de Historia Moderna, n. 14, p. 287, 1993.
25
Ibidem.

101
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

e que era a razão primeira de serem tão concorridos: naquele universo


cultural, as ordens militares haviam se transformado no último reduto
dos valores cavalheirescos, desde que a nobreza perdera sua função militar
primeira, atrelada à cavalaria medieval.26
Consequentemente, suas exigências ainda eram bastante rígidas
nos Seiscentos, a primeira das quais era a necessidade do candidato ser
nobre e, desde o século XV, provar claramente sua limpeza de sangue,
com os conversos já excluídos das fileiras de Calatrava desde 1483.27 Fora
nesse momento que, baixo Fernando o Católico, essa ordem aprovara uma
série de medidas rigorosas para comprovar a valia de seus candidatos;
medidas que seriam consolidadas com Carlos V. Eram las pruebas, que
definiam ações investigativas das origens dos pretendentes, tais como
aquelas que especificavam que:

una persona de la orden, habiendo jurado su equidad en el


proceso, y sin recibir dádiva o promesa del candidato, con un
memorial conteniendo las preguntas que se formularían a los
testigos, habría de acudir a los lugares de donde el aspirante
decía proceder, para averiguar la veracidad de su genealogía y se
cumplían las cualidades impustes por los estatutos de la orden en
lo relativo a su nobles, limpieza de sangre y legitimidad.28

Associada a essa medida estavam os questionários que deveriam


deixar às claras as origens do aspirante, permitindo a exclusão não ape-
nas daqueles com descendência judia, moura ou gentil, mas também os
oficiais mecânicos e os filhos ilegítimos.29 Apesar disso, a rigidez de tais
pruebas não impedia que o próprio rei concedesse hábitos por serviços

26
Para Fernández Izquierdo, essa significação das ordens militares ficou mais
e mais forte a partir do governo de Felipe II. FERNÁNDEZ IZQUIERDO, Francisco.
¿Qué era ser caballero de una Orden Militar en los siglos XVI y XVII? Torre
de los Lujanes, Madrid: R.S.E.M., Amigos del Pais, v. 49, n. 1, p. 141-163, 2003.
27
Ibidem, p. 144-145.
28
Ibidem, p. 147-148.
29
Fernanda Olival descreve essas características dos questionários das or-
dens militares, especificamente portuguesas, no século XVII: OLIVAL,

102
de senhores de engenho a cortesãos

prestados, muitas vezes burlando as provanças. E aparentemente foi esse


privilégio que tornou possível que fidalgos de origem colonial, e logo fora
das linhagens nobres tradicionais espanholas, conseguissem acesso aos
concorridos hábitos.
Esse era o contexto que cercava a família Mendoza em seus es-
forços por ingressar na Ordem de Calatrava, uma das três ordens mili-
tares espanholas que estavam baixo o senhorio régio no século XVII.30
Fundada em Castela no século XII, juntamente com as de Santiago del
Espada e Alcântara – então chamada de San Julian del Pereyeo – e na
esteira e estilo da Ordem dos Templários, Calatrava foi a primeira dessas
três milícias a adotar as regras monásticas.31 Com o passar do tempo, as
três se aproximariam a ponto de seus cavaleiros chegarem a carregar as
mesmas insígnias: a cruz vermelha no peito. Na realidade, chegaram a
ser tão próximas que Calatrava terminou, no século XIII, por se impor
sobre Alcântara.32 Seja como for, no processo de consolidação do poderio
régio, logo seriam todas incorporadas ao patrimônio do rei.33
Foi nesse cenário que, em 1645, D. Bartolomé deu início a seu
processo de habilitação para Calatrava, apresentando-se como fidalgo
natural de Pernambuco e fornecendo informações sobre sua família para
estabelecer sua limpeza de sangue. A partir deste modo que sua linhagem
foi sendo reconstruída, começando com seus pais e avós, que ocupavam

op. cit.. E Fernández Izquierdo analisa as mesmas para as ordens espanho-


las: FERNÁNDEZ IZQUIERDO, La orden militar de Calatrava en el siglo XVI, op. cit.
30
Para os dados sobre os irmãos e irmãs Mendoza em Calatrava, ver o processo
de D. Jerônimo de Mendoza. MENDOZA de Mendoza, Jerónimo de. Archivo
Histórico Nacional, OM-CABALLEROS_CALATRAVA, Exp. 1620 – 2 Recto – Imagen
Núm: 3/110; e 7/110. Disponível em: <http://pares.mcu.es>. Acesso em:
3 out. 2014.
31
POSTIGO CASTELLANOS, Elena. “Las tres ilustres ordenes y religiosas cavallería”
Instituídas por los Reyes de Castilla y León: Santiago, Calatrava y Alcántara.
Studia histórica, Historia Moderna, n. 24, p. 57, 2002.
32
Postigo Castellanos afirma que Calatrava se impôs também sobre Avis.
Ibidem, p. 58-59.
33
Ibidem, p. 69-70.

103
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

posições afidalgantes na corte e na colônia: seu pai, o Capitão D. Manuel


de Mendoza, cavaleiro de Calatrava e fidalgo da Casa Real; sua mãe, D.a
Maria de Mendoza. Os avôs paternos, Capitão Antônio de Mendoza e D.a
Ana de Saraiva, e os maternos, o Mestre de Campo Domingos de Saraiva
e D.a Francisca de Mendoza; “todos los sobredichos padres y abuelos
y el mismo pretendiente naturales de Pernambuco en el Brasil”. Não
esquecendo que seu pai e seus dois avôs haviam servido também como
provedores e secretários da Santa Casa de Misericórdia de Pernambuco,
uma confraria na qual “ay distinción de los Nobles Hijos dalgo a los
mecanicos”.34 Mencionando-se ainda que eram, tanto seus pais, quanto
seus avós paternos e maternos, “primoshermanos”: ilustrações do in-
tenso processo de endogamia que Evaldo Cabral de Mello já afirmou ser
característico da elite açucareira no século XVII.35
Os redatores da habilitação escreveram ainda sobre as irmãs de
D. Bartolomé: D.a Serafina, D.a Elena, D.a Violante e D.a Manuela de
Mendoza, todas irmãs do hábito de Calatrava, “profesas en el convento
Real de Calatrava desta Corte”.36 Além de mencionarem outros parentes,
sempre aqueles cujo status contribuía para dar à linhagem dos Mendoza
um caráter fidalgo. Parentes como três de seus tios: Gaspar Mendoza,
Domingos de Mendoza, fidalgo da Casa Real, e Antonio de Mendoza,
provedor da Santa Casa da Paraíba, além de juiz e provedor na mesma
capitania; também um seu primo, D. Jacinto de Mendoza, cavaleiro da
Ordem de Cristo e fidalgo da Casa Real, e, é claro, Pedro de Mendoza,
primo de um de seus avôs, que fora inquisidor em Lisboa e que, segundo
os autos, “en Pernambuco celebró auto de fé habrá cosa de cincoenta
años”. E D. Bartolomé Saraiva de Herrera, outro tio, dito ter sido da
“inquisición que governó muchos años la jurisdición eclesiástica en

34
MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. OM-Caballeros_Calatrava, exp. 1618,
fecha 1645. Archivo Histórico Nacional de España, Consejo de Ordenes.
35
MELLO, Evaldo Cabral. O nome e o sangue: uma parábola familiar no
Pernambuco colonial. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000, p. 22.
36
MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. OM-Caballeros_Calatrava, exp. 1618,
fecha 1645. Archivo Histórico Nacional de España, Consejo de Ordenes.

104
de senhores de engenho a cortesãos

Pernambuco”.37 Esses e outros parentes são todos mencionados no intuito


de ressaltar fidalguia ou serviços prestados à Coroa:

todos sus parientes assídos [sic] siempre de la parte de los Nobles


Hijos dalgo lo qual es pu [sic] y notório el dicho Don Manuel de
Mendoça y su padre Antonio de Mendoza y su Abuelo el mestre
de Campo Domingo de Saraiva y el dicho Gaspar de Mendoça han
servido siempre los oficios nobles de la Republica.38

Os autos registravam ainda D. Manuel de Mendoza como testemu-


nha do filho, e não apenas como residente na corte espanhola, mas como
possuidor de “casas próprias” nessa cidade.39 Assim, em seu conjunto,
o processo de D. Bartolomé elaborava toda uma construção discursiva
que procurava formular, para esse aspirante ao hábito, uma linhagem o
mais nobre possível, sem que se questionasse, em nenhum momento, a
própria validade da situação desses hijos dalgo em Pernambuco.
Além disso, no mesmo período em que sua habilitação tramitava
junto ao Consejo de Ordenes, este analisava também a situação de um
seu parente próximo: seu irmão, D. Jerônimo de Mendoza, igualmente
registrado como natural de Pernambuco. D. Jerônimo já havia recebido,
em 1642, um certificado do rei que lhe concedia o hábito da Ordem de
Santiago, “con calidad expresa que aya de servirme la campaña deste año
en el Vatallón de la Cavallería de las dhas ordenes”: uma exigência ilus-
trativa do quanto a concessão desse hábito em particular estava em total
consonância com a política régia de ordenação como mercê por serviços
militares prestados. Pouco depois, todavia, o hábito de D. Jerônimo seria
transferido, em 1645, para Calatrava com a justificativa da “devoción
que tiene a S. Benito”.40 De fato, como seu pai e seus irmãos e irmãs já

37
Ibidem.
38
Ibidem.
39
MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. Archivo Histórico Nacional, OM-
-EXPEDIENTILLOS, N. 10316. Disponível em: <http://pares.mcu.es>. Acesso em:
3 out. 2014.
40
MENDOZA de Mendoza, Jerónimo de. Archivo Histórico Nacional, OM-
-CABALLEROS_CALATRAVA, Exp. 1620 – 2 Recto – Imagen Núm: 3/110; e 7/110.
Disponível em: <http://pares.mcu.es>. Acesso em: 3 out. 2014.

105
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

estavam ordenados em Calatrava, sem falar no processo tramitante de


seu irmão, fazia sentido que sua devoção lá residisse.
No caso de D. Jerônimo, seu processo em Calatrava afirmava, ao
tratar de sua transferência, que seu hábito em Santiago fora uma con-
cessão real por serviços prestados na cavalaria espanhola, mas não faz
referência ao local de atuação de seu batalhão, apenas que deveria servir
nas campanhas daquele ano de 1642. Se a origem das ordens militares
estivera conectada à cavalaria tanto enquanto instituição social da nobreza
ibérica, quanto enquanto corpo militar, no século XVII, essa função mili-
tar estava em franca decadência, o que levava a Coroa a tentar reavivá-la
através de concessões como essa feita a D. Jerônimo, em um momento
de acirrados conflitos territoriais e crescente carência de recursos.
No caso de D. Bartolomé, por outro lado, os autos não trazem ne-
nhuma indicação semelhante acerca das razões da concessão do hábito.
As únicas insinuações são aquelas que sugerem que las pruebas para
comprovar sua valia haviam sido todas seguidas à risca:

En La Villa de Madrid a diez días del mes de Mayo de mil y


seiscientos y quarenta y cinco años Don Fernando de Porras y
el Lizen[do] Frey Joan de Haro y Quesada Cavallero y religioso
profesos del orden de Calatrava nombrados por V. A para hacer
la informaciones de las calidades de nobles y limpieza y demás
requisitos de don Bartolomé de Mendoza natural de la villa de
Pernambuco en el Brasil, para el dicho habito de calatrava que
pretende y cumpliendo con la real provisión y decreto en que se
nos manda se hagan dichas informaciones en esta corte, hicimos
las diligencias siguientes y lo firmamos.41

Apesar disso, as mesmas provanças não incluíram o envio de


representantes ao Brasil para inquirir sobre a valia do candidato, como
exigiam as regras. Pelo contrário, uma justificativa foi posta, entre os
documentos do processo, explicando a ausência dessa diligência:

41
MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. Archivo Histórico Nacional, OM-
-EXPEDIENTILLOS, N. 10316. Disponível em: <http://pares.mcu.es>. Acesso em:
3 out. 2014.

106
de senhores de engenho a cortesãos

Señor.
Don Bartholomé de Mendoza diçe que V. Mg[de] le yço merced
del habito de la Horden de Calatraba y porque es natural de
Pernambuco en Brasil que ha tantos años esta ocupado de
olandeses no se puede ir allá a hacer las pruebas de el dicho
habito y por ser así VMg se sirbió de dispensar con Su Padre
Don Manuel de Mendoza y con cuatro hermanos que tiene con
habito de Calatraba [ ] mente con el Capitán Don Jeronimo de
Mendoza su hermano para que se ycressen [sic] en esta Corte por
patria común supplica a VMgd atento a lo referido le haga merced
mandar que las pruebas del dicho habito y todas las dependencias
se hagan en esta Corte adonde hay bastantes testigos de el Brasil
para decir en ellas en que recibirá merced.42

Os redatores justificavam, dessa forma, a ausência de uma in-


vestigação mais profunda das origens do candidato no Brasil alegando
dificuldades de comunicação com aquele território ocupado pelos inimi-
gos, e negando, nesse processo, a Restauração Portuguesa e o fato de já
não estar mais, todo aquele território, sob controle de Madri. Por causa
dessa situação, solicitavam permissão para substituir as investigações no
ultramar por outras que poderiam ser facilmente realizadas na corte, visto
que, segundo eles, muitos naturais do Brasil lá residiam; embasando seu
pedido sobre a respeitabilidade da família: ressaltando que não apenas D.
Manuel, pai do candidato, já era um cavaleiro de Calatrava, mas também
outros quatro de seus filhos, dentre os quais destacavam, D. Jerônimo,
apresentado como Capitão, provavelmente pelo reconhecimento que
serviços militares já lhe haviam angariado.
Assim foi que as inquirições sobre a família Mendoza foram
realizadas apenas na Corte, onde os encarregados de tais diligências, D.
Fernando de Porras e o religioso e licenciado Frei João de Quesada, de
fato encontraram testemunhas originárias de Pernambuco.

42
MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. Archivo Histórico Nacional, OM-
-EXPEDIENTILLOS, N. 10316. Disponível em: <http://pares.mcu.es>. Acesso em:
3 out. 2014.

107
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

O primeiro desses informantes foi D. Pedro Álvares de Acosta,


cavaleiro da Ordem de Cristo e também natural de Pernambuco, mas
então residente na corte espanhola, cuja primeira resposta ao inquérito
– em resposta do questionário tradicional em tais processos – nos apre-
senta a idade de D. Bartolomé: “veinte dos años poco más o menos”.
Após ter testemunhado que ele conhecia os pais de D. Bartolomé em
Pernambuco, os quais haviam sido vecinos naquela vila – provavelmente
Olinda –, e que os mesmos eram de fato casados, o que fazia do preten-
dente um filho legítimo, disse também ter conhecido os avós paternos,
todos naturais de Pernambuco, e primos irmãos que se haviam casado
com dispensa especial. Afirmando ainda, acerca da família, que eram
todos bem reputados:43

save que son y fueron cavalleros hijos dalgo notorios de sangre


segun fuero de españa sin rajas ni mesclas de villanos y esto lo
save porque demas de aver estado y estar siempre havidos y tenidos
por tales Cavalleros hijos dalgo = el dh[o] Capp[an] Don Manuel
de Mendoza Padre de el pret.[e] es cav[o] del orden de Calatrava y
Fidalgo de la Casa de Su Mag[d] ya sido cofrade de la cofradía de la
Misericordia en la dh[a] Villa de Pernambuco probedor y secretario
della la qual es de estatuto y en dha Cofradia ay distinsion de los
nobles hijos dalgo a los pecheros y los dos ofisios no se dan sino es
a los que son nobles con que se diferensian de los que no lo son.44

Essa reiteração da nobreza dos Mendoza em Pernambuco parece


tomar como ponto pacífico a existência de fidalgos nesse território colo-
nial, o que, por seu turno, nada tinha de consenso. Na verdade, as práti-
cas afidalgantes desses senhores e sua representação enquanto nobreza
parecem ser os elementos considerados, no processo dos Mendoza, por
suas testemunhas. Por sua vez, todas as respostas de Acosta se encaixa-
vam perfeitamente nas exigências de idade, linhagem e honorabilidade,
dos estatutos de limpeza de sangue das ordens militares.

43
MENDOZA de Mendoza, Bartolomé de. OM-Caballeros_Calatrava, exp. 1618,
fecha 1645. Archivo Histórico Nacional de España, Consejo de Ordenes.
44
Ibidem.

108
de senhores de engenho a cortesãos

Realmente, continuando seu testemunho, D. Pedro Álvares de


Acosta seguiu reafirmando a reputabilidade de D. Bartolomé a partir
da menção de um rol de seus parentes conhecidos, citando seus vários
títulos e cargos ocupados. Ademais, em resposta às perguntas seis e
sete do questionário de habilitação, atestou ser a família toda composta
por cristão-velhos, e usou como comprovação dessa limpeza o próprio
ingresso das irmãs de D. Bartolomé no Convento de Monjas de Calatrava,
na corte espanhola, além da existência de um seu parente inquisidor,45
não esquecendo ainda de defender que a família estava limpa também de
qualquer vínculo com os ofícios mecânicos, vivendo na corte apenas de
suas rendas.46 Informação que, infelizmente, não temos como comprovar.
As outras testemunhas entrevistadas por D. Fernando de Porras
e por Frei Quesada em tudo concordaram com as respostas de D. Pedro
Acosta; todos eles, em conjunto, atestando a veracidade daquela infor-
mação inicialmente posta no processo, acerca da facilidade de se en-
contrar, na corte espanhola, respeitáveis naturais de Pernambuco. Foram
eles: Pedro Mendes Sotto; Don Prudensio de Salvaterra; e D. Fernando
Pereira Corte Real, cavaleiro de Alcântara, capitão de couraças, fidalgo
da Casa Real, apresentado também como governador – apesar de não
ficar estabelecido de onde – e natural de Lisboa, mas que havia vivido
em Pernambuco mais de trinta anos.47
Por sua vez, todas essas diligências eram extremamente caras e
deveriam ser custeadas pelo próprio pretendente. E de fato os autos re-
gistram que D. Bartolomé foi responsável pelo depósito de, pelo menos,
cinquenta ducados em benefício das custas do processo, a serem pagos
aos cavaleiros e religiosos que haviam feito as referidas diligências.48
Uma quantia considerável que nos deixa a inquietação acerca da origem
dos recursos familiares, e da possibilidade da manutenção de seus laços
com o mundo colonial e os engenhos na então conflituosa capitania de
Pernambuco.

45
Ibidem.
46
Ibidem.
47
Ibidem.
48
Ibidem.

109
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Seja como for, D. Bartolomé foi ordenado, e parece ter sido atuante
junto à ordem já que as notícias posteriores a 1645 indicam que ele
testemunhou em outros processos de habilitação, por exemplo: no de D.
Diego Gutiérrez Barona, natural da vila de Castrojeriz, datado de 1654, no
qual Mendoza é descrito como caballero informante da limpeza de sangue
de Barona.49 Ou seja, uma década após seu ingresso em Calatrava, esse
cavaleiro natural de Pernambuco se tornara ele próprio um informante
do Consejo de Ordenes para a habilitação de outros, assumindo assim um
papel importantíssimo, pois eram esses informantes que forneciam as
“provas” acerca do caráter, linhagem e serviços prestados pelos supli-
cantes. Provas usadas pelos conselheiros na tomada de decisão acerca
da recomendação ou não da concessão dos títulos.50

Considerações finais

Então, à medida que, através da leitura crítica dos processos dos


Mendoza, fomos coletando indícios variados acerca da situação dessa
família na corte da Monarquia Católica, e tentando fornecer respostas
para as questões levantadas por eles, algumas reflexões gerais foram
sendo construídas. Em primeiro lugar, se por um lado os processos
deixam claro a fixação da família na corte e suas origens coloniais, por
outro, eles informam muito pouco acerca da continuidade desses laços
com o mundo do açúcar. Na verdade, sob certo ponto de vista, tais laços
parecem mesmo terem sido cortados, se considerarmos a própria situação
de Pernambuco, logo, fora dos limites do alcance espanhol.
Isso não parece ter impedido, todavia, que a representação dos
Mendoza na corte estivesse ainda associada ao mundo do açúcar. Sua
identidade continuava a ser, de fato, a de fidalgos provinciais, tão visível
em sua apresentação enquanto naturais de Pernambuco. Vale lembrar aqui
que, até 1668, os Habsburgo ainda reivindicariam seus direitos sobre o

49
DÁVILA JALÓN, op. cit.
50
ÁLVAREZ-COCA GONZÁLEZ, op. cit., p. 290.

110
de senhores de engenho a cortesãos

trono português e seus territórios, e até essa data continuariam a conceder


títulos de nobreza portugueses, como o de Marquês de Basto, conferido
ao desterrado donatário de Pernambuco, Duarte de Albuquerque Coelho.51
Nesse sentido, nada mais de acordo que os Mendoza, enquanto fidalgos
coloniais portugueses, continuassem a ser prezados no círculo cortesão.
Entretanto, se poucas são as pistas acerca da manutenção dos
vínculos com o mundo colonial, ou sobre a origem da riqueza da famí-
lia, que sua relevância cortesã estava vinculada a seus serviços militares
transparece principalmente no processo de D. Jerônimo de Mendoza,
visivelmente agraciado graças a seus serviços militares. Isso nos leva a
uma situação que se repetiria mais tarde com outro senhor de engenho
residente na Espanha, Jorge Lopes Brandão: Brandão, como D. Jerônimo,
receberia mercês e concessões das mãos do rei Habsburgo graças à
sua forte atuação nos muitos conflitos travados em território espanhol.
Ambos inserindo-se, assim, em uma categoria, a dos práticos de guerra,
extremamente presada na Península Ibérica seiscentista, e tema cons-
tante de diversos comandantes portugueses e espanhóis que haviam
servido no Brasil, e que em diferentes ocasiões haviam aconselhado suas
respectivas coroas a aproveitarem os servidos desses mazombos do outro
lado do Atlântico.52
Por fim, muito ainda há a ser explorado sobre esse cenário: das
irmãs Mendoza, ordenadas em um prestigioso convento espanhol, até
as próprias origens coloniais da família. E é exatamente essa riqueza

51
Cf. SILVA, Kalina Vanderlei. O herói virtuoso, prudente e dissimulado: o
cortesão como ideal masculino nas cortes ibéricas dos séculos XVI e XVII.
História, São Paulo, v. 32, n. 1, p. 243, jan./jun. 2013.
52
Em outro trabalho, tivemos a oportunidade de analisar Jorge Lopes Brandão
e sua associação com as guerras espanholas: Idem. Um senhor de engenho a
serviço do rei da Espanha: a América portuguesa e a Monarquia universal no
século XVII. (No prelo). E ainda sobre os conselhos de comandantes como
D. Luis de Rojas y Borja e Matias de Albuquerque para o uso ibérico dos
práticos de guerra coloniais: Idem. Francisco de Brito Freyre e a reforma mi-
litar de Pernambuco no século XVII. In: POSSAMAI, Paulo (Org.). Conquistar
e defender: Portugal, Países Baixos e Brasil – Estudos de história militar na
Idade Moderna. São Leopoldo: Editora Oikos, 2012.

111
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

em termos de indícios que transforma D. Bartolomé e seus parentes em


importantes elos na compreensão das conexões entre a elite açucareira da
América portuguesa e a corte dos Habsburgo, levantando ainda interes-
santes inquietações sobre as possibilidades em torno da transformação
de uma família de senhores de engenho da periferia dos territórios da
Monarquia Católica em fidalgos cortesãos em Madri.

112
Os brutos também leem: livros e leitores na São
Paulo do período filipino (1580-1640)

José Carlos Vilardaga1

Este texto busca apresentar uma breve história social da presença dos
livros e dos leitores na São Paulo do período filipino (1580-1640). É quase
uma obviedade afirmar que ao abordar tal tema trafegamos na raridade.
Em verdade, são poucos os livros e leitores conhecidos e é dificílimo
entrever as práticas de leitura. Para piorar tal quadro, muitas vezes as
fontes apresentam os títulos dos já poucos livros nomeados de maneira
estropiada ou incompleta. E como analisar um tema que oferece tantos
obstáculos? Optou-se por seguir os rastros e pistas deixados fragmen-
tariamente em documentos diversos, em especial nos inventários e
testamentos que referenciam a presença de alguns exemplares. Claro
que ancorar esta tarefa de pesquisa nos inventários impõe certa cautela:
imaginar possíveis erros do escrivão, cogitar que livros possam ter sido
omitidos, transitar na contínua incerteza sobre a efetiva leitura dos vo-
lumes arrolados, e ter clareza de que não só destes livros nomeados se

1
Prof. Dr. de História da América Colonial na Universidade Federal de São
Paulo.
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

compõe o repertório literário do sujeito.2 De todo modo, busca-se aqui


esboçar um perfil destes possuidores, apontar direções interpretativas
e clarear as situações obscuras que permeiam a trajetória dos livros no
aludido contexto. Enfim, desvendar o que havia para ser lido.
Ao pretender mapear os donos dos raros livros e identificar alguns
de seus leitores – se bem que o fato de alguém possuir livros nunca foi
garantia de sua efetiva leitura3 –, almeja-se encontrar alguma coerência
nessas diminutas bibliotecas. Ademais, a tarefa mais instigante talvez seja
imaginar se estas leituras fizeram parte de um universo livresco comum
ao período e inspiraram vivências e experiências na realidade colonial de
uma pequena vila de fronteira. Concorda-se, aqui, com as assertivas que
tratam o leitor como um mistério, e de que são praticamente insondáveis
os mecanismos de apropriação subjetiva da leitura; contudo, uma abor-
dagem contextual e aproximativa não pode ser descartada.4
Antes de continuar, vale ressaltar que livros existiram, com certeza,
nas bibliotecas das casas religiosas da vila: no Mosteiro de São Bento e,
especialmente, no Colégio de São Paulo da Companhia de Jesus que,
em função mesmo de sua atividade educacional – única na vila durante
largo período –, utilizaria os livros como instrumento pedagógico.5 Seus
conteúdos são, ainda hoje, uma incógnita, e deixa-se de lado, neste tra-

2
HAMPE MARTINEZ, T. La difusión de libros e ideas en el Perú colonial. Análisis
de bibliotecas particulares (siglo XVI). Bulletin Hispanique, v. 89, n. 1-4,
p. 55-84, 1987.
3
DARNTON, Robert. O beijo de Lamourette: mídia, cultura e revolução. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
4
“Apesar de uma volumosa literatura sobre sua psicologia, fenomenologia,
textologia e sociologia, a leitura continua a ser misteriosa” Ibidem, p. 127.
5
O padre Simão de Vasconcelos se referia ao papel educativo, em especial
no ensino da gramática, do Colégio dos Jesuítas em São Paulo na Chronica
da Companhia de Jesus do Estado do Brazil e do que obraram seus filhos nesta
parte do novo mundo (1663). O pioneiro trabalho de Alcântara Machado apre-
senta, através de inventários, alguns “mestres” de aulas particulares, como
Antônio Pereira da Costa e Diogo Mendes Rodrigues. MACHADO, Alcântara.
Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São
Paulo, 2006.

114
os brutos também leem

balho, uma abordagem sobre o tema. Rubens Borba de Moraes analisou


brevemente o assunto, ressaltando como as bibliotecas dos jesuítas, ex-
tensas pela própria natureza culta da ordem, eram abertas aos eventuais
consulentes. Ele recorda, pesaroso, o “golpe terrível” que os presumíveis
leitores sofreram com a expulsão da ordem dos territórios coloniais
portugueses no século XVIII.6 Ressalte-se, contudo, que de São Paulo
os jesuítas foram expulsos uma primeira vez em 1640, e que os bens da
ordem, aí obviamente incluídos os livros, tiveram destino incerto.7 De
qualquer forma, o que nos interessa aqui é a posse individual e privada
de livros.
Para começar, de quantos livros estamos a falar exatamente?
Alcântara Machado, em 1929, levantou 55 livros em 15 inventários entre
1578 e 1700, num universo de pouco mais de seiscentos inventários.
Ernani da Silva Bruno, na mesma documentação, encontrou referência
a livros em 17 inventários, sendo o primeiro deles em 1612.8 Estes nú-
meros foram encampados por outros estudiosos que se remeteram, ou
se referiram, aos livros de São Paulo, como Rubens Borba de Moraes
e mais recentemente Luiz Carlos Villalta.9 Nossa pesquisa não altera

6
MORAES, Rubens Borba de. Livros e bibliotecas no Brasil Colonial. São Paulo:
Secretaria do Estado da Cultura, 1973.
7
Os jesuítas foram expulsos da vila em 1640 em função de conflitos esta-
belecidos em torno do uso da mão de obra indígena e sua escravização –
eufemisticamente chamada, em São Paulo, de administração. A Ordem só
voltaria à vila, mediante acordo, em 1653. O colégio possuía, em 1640, cerca
de 150 alunos divididos entre aulas de português e latinidade, cf. FRANZEN,
Beatriz Vasconcelos. Jesuítas portugueses e espanhóis no sul do Brasil e Paraguai
coloniais. São Leopoldo: Unisinos, 2005.
8
BRUNO, Ernani da Silva. O equipamento da casa bandeirista segundo os antigos
inventários e testamentos. São Paulo: Prefeitura do Município de São Paulo,
1977.
9
Villalta lembra que, conforme pesquisa de Luiz Mott, a maior biblioteca
conhecida entre os séculos XVI e XVII é a do italiano Rafael Olivi, de Ilhéus,
que tinha 27 livros. Ele lembra ainda que os livros de São Paulo representam
“pouco mais do dobro do acervo de Rafael Olivi”. VILLALTA, Luiz Carlos. O
que se fala e o que se lê: língua, instrução e leitura. In: NOVAIS, Fernando A.;
SOUZA, Laura de Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano

115
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

significativamente estas quantificações, mas agrega alguns volumes,


encontrados em documentos não analisados pelos autores citados. Na
verdade, quanto aos números, a pesquisa conclui substancialmente o
mesmo: eram poucos. Mas, o que importa afirmar é que, neste largo
espectro temporal analisado pelos especialistas, as seis décadas do pe-
ríodo filipino compreendem a grande maioria deles, com 39 volumes.
Ao considerarmos que somente Matias Rodrigues da Silva, em 1710
(fora, portanto, do escopo deste trabalho), possuía 18 livros, vê-se como
o período filipino apresenta não só maior quantidade, como os volumes
eram melhores distribuídos, ao percorrer 11 inventários e dois processos.10
Mas o que podemos depreender dessa constatação? No período filipino
efetivamente se lia mais? Para além de se afirmar a importância que os
livros, e a palavra escrita, guardaram para a estrutura e organização do
império dos Filipes – legitimando carreiras, trajetórias, normas e socia-
bilidades –, deve-se indicar também a relevância de fenômenos de cunho
local para compreender essa concentração.11
Dentre estes, o primeiro a ser abordado é o das bandeiras. Não há
sinônimo mais atrelado à realidade colonial paulista dos seiscentos que o

e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras,


1997, p. 331-385. v. 1. MORAES, Rubens Borba de, op. cit.
10
Aqui elencamos livros extraídos de inventários, de uma referência em proces-
so inquisitorial, publicado em PEREIRA, Ana Margarida Santos. A inquisição
no Brasil: aspectos da sua actuação nas capitanias do Sul, de meados do séc.
XVI ao início do séc. XVIII. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra, 2006; e do processo movido contra Manoel Pinheiro Azurara,
em Assunção, por ocasião de sua prisão em 1606. Arquivo Nacional de
Assunção (ANA), Seccion Civil y Criminal, 1549, 4.
11
Sobre o papel dos letrados no contexto social do império espanhol dos
Felipes, e dos ibéricos em geral: ELLIOTT, John. España y su mundo (1500-
-1700). Madrid: Taurus, 2007; VILLAR, Pierre. O Tempo de Quixote. In:
DESENVOLVIMENTO econômico e análise histórica. Lisboa: Presença, 1982,
p. 255-268; BOUZA ÁLVAREZ, Fernando J. Del Escribano a la Biblioteca. Madrid:
Síntesis, 1997; e Corre Manuscrito: una historia cultural del Siglo de Oro.
Madrid: Marcial Pons, 2001; ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI, Ana Paula
Torres (Org.). O Império por escrito: formas de transmissão da cultura letrada
no mundo ibérico (séc XVI-XIX). São Paulo: Alameda, 2009.

116
os brutos também leem

chamado bandeirantismo. Expedições multifuncionais que percorreram os


territórios coloniais luso-castelhanos em demanda por índios, minérios
e oportunidades comerciais, envolveram praticamente toda a população
da Capitania de São Vicente entre finais do século XVI e o século XVII.
Não se pode, obviamente, falar numa categoria de homens intitulada
bandeirante, já que foi uma atividade largamente tocada por moradores
de diversos ofícios, níveis de riqueza e origens, em situações múltiplas
e variáveis ao longo das décadas abarcadas por esse processo.
Faceta importante da experiência bandeirante foi o uso da violên-
cia, especialmente quando participava de uma de suas atividades hege-
mônicas, qual seja, o descimento de indígenas.12 Para tanto, as bandeiras
foram cada vez mais longe e percorreram alguns caminhos inusitados
e temerários. Nesse sentido, a imagem do “bandeirante” representou
sempre a face mais visível da rusticidade, precariedade, marginalidade
e brutalidade da realidade colonial. Foram termos que bem definiram
uma parte da realidade da vila de São Paulo, pelo menos nos seus dois
primeiros séculos.13 E nada mais contrário a este mundo aparentemente
gerido pela mais básica sobrevivência, pelo pé descalço em demanda
do sertão mais hostil, que alguns livros. Por isso mesmo, a presença de
alguns volumes nessa “bruta” realidade sempre carregou certo ar excên-
trico. Esparsos, e em pequena quantidade, representaram um conteúdo
narrativo exótico da história da São Paulo colonial.14

12
Deve-se ressaltar que os sertanistas de São Paulo não se valeram somente
de meios violentos para o descimento de indígenas. Cf. MONTEIRO, John. Os
Guarani e a história do Brasil Meridional. Séculos XVI-XVII. In: CUNHA, M.
Carneiro da (Org.). História dos índios no Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1982, p. 475-498.
13
Muitas destas características eram, verdadeiramente, comuns à realida-
de colonial: NOVAIS, Fernando A. Condições de privacidade na colônia. In:
______.; SOUZA, Laura Mello e (Org.). História da vida privada no Brasil:
cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, p. 13-40. v. 1.
14
Essa presença de livros vista como “exótica”, é evidente em MACHADO, A., op.
cit.; TAUNAY, Afonso de E. São Paulo nos primeiros anos (1554-1601), São Paulo

117
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Entretanto, nos últimos anos, uma parcela da historiografia tem


se esforçado no sentido de relativizar essa imagem aparentemente uní-
voca de uma São Paulo marginal, isolada, predominantemente violenta
e povoada por rudes colonos. Assim, vem surgindo uma vila mais inse-
rida na lógica de circulação mercantil – mesmo que cumprindo funções
secundárias –; articulada por uma rede de caminhos e trânsitos e povoada
por colonos de diversas origens numa típica vivência colonial. Portanto, a
presença dos livros, nas mãos destes homens, também deveria acompa-
nhar uma história mais conectada, integrada e branda em seu cotidiano.15
Paradoxalmente, comecemos a apresentação do cenário dos livros
na São Paulo dos “bandeirantes” não através de uma presença, mas de
uma ausência: Os Lusíadas. Um livro que, na sua materialidade, não esteve
presente, mas se fez sentir no repertório de um morador da vila de São
Paulo que, diante de determinada situação, apropriou-se da literatura
como chave de compreensão da realidade, traduzindo sua experiência
em estrofes camonianas. Às vésperas da morte, Pedro de Araújo, ban-
deirante abatido por moléstia ou arma em pleno sertão, rememorou
trechos de Camões que fez questão de anotar numa folha avulsa, que
mais tarde serviria para registrar seus bens e últimas vontades. Se bem
que, numa probabilidade menor, possa ter sido o escrivão, num arroubo
poético, que enxergou no destino daquele sertanista algo próximo dos
versos do grande poeta quinhentista português. Enfim, é difícil precisar
a razão de um inventário sacramentado em 1617 receber, ao seu final,
as insignes estrofes em cópia manuscrita. Dentre os versos transcritos,
a estrofe VII, do Canto V:

no século XVI. São Paulo: Paz e Terra, 2003; e BRUNO, Ernani da S. Histórias
e tradições da cidade de São Paulo. São Paulo: Hucitec, 1984. v. 1.
15
Por exemplo: MONTEIRO, John M. Negros da terra: Índios e bandeirantes nas
origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998; MARANHO,
Milena Fernandes. A opulência relativizada: níveis de vida em São Paulo do
século XVII (1648-1682). Bauru, SP: Edusc, 2010; RUIZ, Rafael; THEODORO,
Janice. São Paulo de vila a cidade. In: PORTA, Paula (Org.). História da cidade
de São Paulo: A cidade colonial (1554-1822). São Paulo: Paz e Terra, 2004,
p. 69-113.

118
os brutos também leem

Passamos o limite aonde chega


O Sol, que para o Norte os carros guia,
Onde jazem os povos a quem nega
O filho de Climene a cor do dia.
Aqui gentes estranhas lava e rega,
Do negro Sanagá a corrente fria,
Onde o Cabo Arsinário o nome perde,
Chamando-se dos nossos Cabo Verde.

A folha, tão bem aproveitada em meio à generalizada carência


de papel naquelas remotas terras, fazia parte de um inventário e testa-
mento, lavrados no sertão do Paraupava, de um sujeito que o mandara
fazer por “andar a risco e aventuras”.16 O bandeirante Pedro de Araújo
era de Refóios do Lima, no norte de Portugal, onde deixara alguns bens
na guarda de sua mãe. Aventurara-se já pela Bahia, onde teria contraído
dívidas “de resto de umas cartas de jogar”. Casou-se, em São Paulo, com
a viúva Ana de Alvarenga, irmã de Antonio Pedroso de Alvarenga, ca-
pitão da bandeira que assistia seus últimos momentos. A bandeira era,
como tantas outras, familiar. O próprio Araújo carregava consigo naquela
aventura sertanista um filho de Sebastião de Freitas, ex-cunhado de sua
esposa. Afiliado aos “principais” da vila de São Paulo, Pedro de Araújo
tinha terras em Cabuçu (próximo a atual Guarulhos) e um plantel de
quinze “índios forros”, entre carijós, temiminós e tapuias. Participara
já de outras bandeiras ao sertão de Patos e era parente do provedor da
fazenda real em São Paulo, Sebastião Fernandez Correa, que assumiu a
tutela de seu filho depois de sua morte. Araújo era letrado, e disto não
resta dúvida, já que deixara entre seus pertences anotações de próprio
punho de suas dívidas. Muito provável, portanto, que ele mesmo tenha
anotado as estrofes nos papéis que, depois da sua morte, seriam utilizados
para inventariar seus bens no sertão. Possível prova definitiva é que, entre

16
A referência à carência de papel em São Paulo é apresentada por TAUNAY,
Afonso, op. cit. O testamento de Araújo: INVENTÁRIOS e Testamentos (I&T),
São Paulo: Divisão do Arquivo do Estado de São Paulo (DAESP), v. V. Segundo
Manoel Rodrigues Ferreira, em seu As bandeiras do Paraupava (São Paulo:
Prefeitura de São Paulo, 1977), tal sítio se localizava na região do Araguaia.

119
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

seus bens leiloados naquelas longínquas paragens, estava um tinteiro,


avaliado pelo escrivão em cem réis, e sem compradores declarados entre
os poucos sensibilizados integrantes da tropa.
O que nos causa espécie neste episódio é a ideia de uma tradução
literária da realidade feita pela pena de um teoricamente rude bandeirante.
De fato, naquele sertão, entre abril de 1616, data de seu testamento, e o
longínquo dezembro de 1617, Araújo ultrapassara definitivamente “os
limites onde chegava o Sol”, em meio a “gentes estranhas”. Realidade e
ficção se reuniam na experiência de Araújo. Irving Leonard, em trabalho
clássico, abordou como os romances de cavalaria – como Amadis – não
só eram presentes na América, apesar das proibições, como inspiraram
ações dos conquistadores.17 Os versos de Os Lusíadas, e a tradução em
versos da epopeia portuguesa em terras e mares distantes bem podem,
em escala menor, ter inspirado este erudito do sertão. Assim, se o livro
não consta dos inventários paulistas – fato sobremaneira lamentado por
alguns – está presente na memória de nosso letrado sertanista.18 Como
afirma Alberto Manguel: “Ao recordar o texto, ao trazer à mente um livro
que um dia teve nas mãos, esse leitor pode tornar-se o livro, no qual ele
e os outros podem ler.”19
Com esta mesma verve literária, ainda não se encontrou outro caso
semelhante nos documentos paulistas. Mas, no quesito leitura piedosa,
as bandeiras nos oferecem outro exemplo. Há pelo menos um possuidor
de livros entre os bandeirantes inventariados em pleno sertão. Trata-se

17
LEONARD, Irving A. Los Libros del Conquistador. México: Fondo de Cultura
Econômica, 1979. O controle dos livros que entravam na América espanho-
la foi constante. Desde o reinado de Isabel que “Amadis”, por exemplo, foi
proibida de entrar na América, pois poderia influenciar os indígenas. Em
1550, cédulas reais de Carlos V exigiram uma licença para todos os livros que
fossem embarcados para a América.
18
Referências ao lamento pela ausência de Camões: MACHADO, Alcântara, op.
cit.; BELMONTE. No tempo dos bandeirantes. São Paulo: Edições Melhoramentos,
[s.d.].
19
MANGUEL, Alberto. Uma história da leitura. São Paulo: Companhia das Letras,
1997, p. 75.

120
os brutos também leem

de Manoel Preto, o moço. Ele era membro de uma família com larga tra-
dição sertanista. Seu pai foi dono de terras e de muitos índios na região
de Nossa Senhora da Expectação do Ó, em São Paulo, e frequentava o
Guairá desde a primeira década do século XVI, de onde descera índios
temiminós. Mais tarde, o pai foi o líder dos ataques às reduções jesuíticas
do espaço guairenho a partir de 1628, e morreu por flechadas no atual
território catarinense em 1630. O moço, seguindo os passos bandeirantes
do pai, teve seu inventário feito no sertão em 1637, junto com seu irmão,
João Preto, ambos falecidos na mesma ocasião. Os juramentos para o
inventário foram feitos sobre “umas Horas”, na ausência de uma Bíblia,
imagina-se. Estes livros de “Horas”, que poderiam ser manuscritos ou
impressos, eram muito comuns desde a Idade Média e funcionavam
como um material de devoção portátil, substituindo a Bíblia em inúme-
ras situações. Para diversas famílias europeias ainda no século XVI era,
muitas vezes, o único livro existente e costumeiramente utilizado para
o ensino das primeiras letras.20 O seu conteúdo era composto de ofícios
de missa, hinos religiosos, calendário santo e orações diversas.
No entanto, se o livro sagrado faltava aos membros daquela ban-
deira, nos bens arrolados de Manoel estava um “livro velho de Heitor
Pinto”, muito provavelmente já surrado de uso, assim como outro “livro
velho” não nomeado.21 A obra, escrita pelo frei jeronimiano Heitor Pinto
(1528-1584), chamava-se Imagens da Vida Cristã e era dividida em duas
partes – mas não sabemos qual delas estava entre os bens de Preto –,
e foi obra popularíssima, tendo somente no século XVI vinte edições.
Encontra-se, em São Paulo, a obra em pelos menos mais dois inventários.
O texto, em estilo bastante livre, era composto em forma de diálogo, na
qual os debatedores conversavam sobre aspectos da beleza e grandeza
de Deus e sua criação. Cada diálogo se encerrava ao pôr do sol. Pode-se
imaginar um entardecer bandeirante repleto de lições morais! O problema
é que dentre os ensinamentos de Frei Heitor estava um que cerceava a

20
Ibidem.
21
I&T, 1638, v. XI.

121
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

liberdade de leitura. Dizia ele que “o principal estudo há de ser por livros
católicos, porque deixar os divinos pelos profanos é erro grave, em que
muitos embicam e outros caem”.22
Entre os outros bens de Preto, um “naipe”, isto é, um baralho. Os
livros poderiam compor, eventualmente, junto com a viola e o jogo de
cartas, formas de sociabilidade e lazer no cotidiano do sertão. Laura de
Mello e Souza, em excelente trabalho sobre o cotidiano das expedições
aos interiores da América portuguesa, mostra como, em meio à preca-
riedade, aos perigos e instabilidades do sertão, os membros buscavam
construir formas de sociabilidade e domesticidade que abrandassem os
estranhamentos.23 Ainda nos referindo à família dos Pretos, Sebastião –
tio do moço Manoel e sertanista dos mais afamados – deixou ao morrer,
em 1623, também vítima de flechada, uma viola e alguns livros, aparente-
mente todos de cunho religioso. É um daqueles casos, infelizmente, que
o nome abreviado, e comum, dificulta a tentativa de recuperar os títulos.24
Lá está um “Salve Rainha”, oração muitas vezes cantada; um “livro de São
João” e um intitulado Conquista de Jerusalém, que bem poderia ser, num
exercício de projeção literária, a Jerusalém Conquistada de Lope de Vega.
Contudo, parece remeter muito mais a uma típica biblioteca de cunho
milenarista, na qual se vê um vale de lágrimas marcado pela iminente
redenção do fim dos tempos.
Mas se as bandeiras dão um dos tons desta vila de São Paulo no
contexto filipino, outro é a demanda mineral e a busca pelo ouro. De
fato, um dos sentidos maiores das primeiras grandes bandeiras orga-

22
MENDES, António Rosa. A vida cultural. In: MATTOSO, José (Dir.). História de
Portugal – no alvorecer da modernidade (1480-1620). Lisboa: Estampa, 1993,
p. 405. v. 3. Frei Heitor se aliara, durante a crise dinástica portuguesa da dé-
cada de 1580, ao lado das pretensões de D. António, o Prior do Crato, o que
lhe rendeu um exílio no final de sua vida.
23
SOUZA, Laura Mello e. Formas provisórias de existência: a vida cotidiana
nos caminhos, nas fronteiras e nas fortificações. In: NOVAIS, Fernando A.;
______. (Org.). História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na
América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 41-82. v. 1.
24
I&T, 1623, v. XI.

122
os brutos também leem

nizadas no planalto foi exatamente a busca por metais e a averiguação


das notícias e boatos que circulavam sobre esta suposta riqueza. As tais
minas de São Paulo arrastaram polêmicas no século XVII e chegaram
a atrair o governador geral do Brasil, Dom Francisco de Souza, à vila.
O governador permaneceu em São Paulo entre 1599 e 1604, numa
primeira vez, e entre 1610 e 1611, numa segunda ocasião. Nesta última,
inclusive, ali faleceu, pobremente, segundo Frei Vicente de Salvador.
Souza, apesar de certa imagem de “Quixote mineral” que se construiu
sobre ele postumamente, vinha cumprir fielmente seu regimento e suas
ordens, emanadas de Felipe II, para demandar tais riquezas. Já apoiara
Gabriel Soares de Souza em suas expedições pelo São Francisco e depois,
guiado pelas notícias de ouro encontrado na região da Capitania de São
Vicente, ali se instalou. Não é necessário muito esforço para imaginar o
impacto que a presença dele teve para a pequena vila paulista. As Atas
da Câmara transparecem o rebuliço geral causado pela expectativa da
chegada do governador, obrigando os camaristas a normatizarem uma
série de questões, como direito a pesca, ofícios e um lugar para pouso,
comes e bebes. Na verdade, com o governador chegava não só a dignidade
da função, como também uma grande possibilidade de acesso a cargos,
mercês e negócios.25 Por fim, ainda vinha com o governador uma grande
comitiva. Esta, de acordo com as palavras de Francisco de Assis Carvalho
Franco, era a “mais douta, mais operosa e mais luzida que já vira a co-
lônia nascente”.26 Segundo Afonso Taunay, a chegada de Francisco de
Souza a São Paulo foi um verdadeiro “choque de civilização”.27 A vinda
desta comitiva revela outra dimensão fundamental, que é o incremento
populacional da vila. Ela deve ter causado verdadeira revolução na dinâ-
mica do povoado, pois interferiu na distribuição de datas e sesmarias,

25
VILARDAGA, José Carlos. “Manhas” e redes: Francisco de Souza e a gover-
nança em São Paulo de Piratininga em tempos de União Ibérica. Anais de
História de Além-Mar, Lisboa: Cham, v. XI, p. 103-144, 2010.
26
FRANCO, Francisco de Assis Carvalho. Dicionário de bandeirantes e sertanistas
do Brasil – séculos XVI, XVII, XVIII. São Paulo: Comissão do IV Centenário
da Cidade de São Paulo, 1954, p. 394.
27
TAUNAY, Afonso, op. cit., p. 410.

123
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

modificou o leque de ofertas de casamentos e alianças, e alterou os pa-


drões de consumo. Em 1589, São Paulo contava com um pouco mais de
170 moradores, passando, em 1600, para 308, portanto um acréscimo
de 80% numa década. Importante ressaltar que o padrão se repetiu na
segunda vinda do governador. Em 1605, quando não estava mais em São
Paulo, a vila totalizava 374 moradores, mas entre 1606 e 1610, quando
voltou, o aumento foi de 160 moradores, compondo um total de 534 no-
mes. Cerca de 40% de elevação.28 Assim, “a comitiva encheu a pequena
vila, o que não era difícil, e transformou profundamente os costumes
de seus habitantes”.29 Diríamos que não só os costumes, mas também
a paisagem física e cultural.
Dentre os membros da comitiva do governador, uma parte impor-
tante deles era composta por mineiros, peritos minerais e engenheiros
ou práticos no tema. A maioria deveria ser letrada. Neste grupo, antevê-
-se o que muito grosseiramente pode representar uma “elite” intelectual
na pequena vila. Remete-se, inicialmente, a Martins Rodrigues Tenório.
Castelhano, dono de uma vistosa criação de gado, atividade fundamen-
tal de São Paulo e fundidor de ferro na região de Santo Amaro, onde se
instalou uma “fábrica de ferro” em 1607. Tenório acabou desaparecido
numa bandeira no Paraupava, na qual era o capitão. Nosso fundidor,
e bandeirante, deixou listado em seu inventário, feito em 1613, quatro
livros: O Retábulo da Vida de Cristo, Mysterios da Paixão, uma Instrução de
Confessores e, para além da leitura religiosa, um livro intitulado a Cronica
do Grão Capitão.30 Tenório, em 1603, no sertão do Paracatú, talvez te-
mendo pela vida, já tinha lavrado um testamento. Nele, não constavam

28
Estes cálculos foram feitos a partir do trabalho de Nuto Sant’Anna, que fez
levantamento nominal, através da documentação, da população da vila.
SANT’ANNA, Nuto. Metrópole: histórias da Cidade de São Paulo, também cha-
mada São Paulo de Piratininga e São Paulo do Campo em tempos de el-Rei,
o Cardeal Dom Henrique, da dinastia de Avis. São Paulo: Departamento de
Cultura, 1953. v. III.
29
LUÍS, Washington. Na Capitania de São Vicente. São Paulo: Livraria Martins;
Brasília: MEC, 1976, p. 225.
30
I&T, 1612, v. II.

124
os brutos também leem

livros de leitura, mas referências de um de contas, de sua autoria, em


que registrava toda sua contabilidade. O livro foi anexado ao inventário
mais de dez anos depois, e nele, seu autor, em castelhano, justificava sua
existência: “por quietud de mi memória para por elo saber na verdad lo
que debo”.31 Em seu testamento, fazia referência a um “bastardo”, filho
que tivera com uma índia em São Paulo. Encomendou a seu genro,
Clemente Alvarez, que fosse curador do garoto e o ensinasse primeiro
a ler e escrever, e depois seu ofício. Martins Rodrigues solicitava que se
fizesse cumprir as Ordenações de Vossa Majestade, que impunha ao tutor
dos órfãos a obrigação, dentre outras coisas, de ensinar os meninos “a
ler, a escrever e contar”, e às meninas “a coser, a lavar, a fazer rendas e
todos misteres femininos”.32 Anos depois, quando a morte de Martins
de fato ocorreu, o garoto acabou sob a tutela do outro genro, o flamengo
Cornélio de Arzão, que o iniciou na carpintaria.
Mas do que tratam os livros de nosso ferreiro castelhano? Por trás
do título profundamente piedoso do “Retábulo”, está a obra Retablo de la
vida de Christo, hecho en metro por un devoto frayle de la Cartuxa. O autor
era o frei sevilhano Juan de Padilla (1468-1520), que elaborou um poema
cristológico profundamente visual. Uma “pintura verbal” que narrava a
vida de Cristo, da Virgem Maria e de São João Baptista. Cumpria o efeito
de um sermão e foi o tipo de obra que caiu no gosto espanhol do século
XVI. Este mesmo livro teria inspirado o fundador da Companhia de Jesus,
Inácio de Loyola. Fazia parte de um rol de livros exemplares e de exaltação
da virtude. O Retablo foi editado à primeira vez em 1505, pelo mestre ti-
pógrafo alemão Jacobo Cromberger, e recebeu pelo menos vinte edições
no século XVI. Juan de Padilla lembrava como três coisas incitavam, e
serviam como tentação, aos corações dos homens: as grandes riquezas,
as beldades e o canto suave de doces canções. O frei ainda publicaria,
em 1521, outro livro chamado Doze trabalhos dos doze apóstolos, no qual

31
No seu livro de contas, Tenório justificava, em castelhano, a existência das
anotações: “por quietud de mi memória para por elo saber na verdad lo que
debo” (I&T, 1612, v. II).
32
VILLALTA, Luiz Carlos, op. cit., p. 351.

125
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

louvava a Espanha, as armas de Castela e principalmente a Reconquista.33


Esse campo das grandezas e glórias espanholas era familiar a Tenório,
que tinha ainda uma obra que se remetia a uma Espanha já nostálgica
dos heroicos feitos passados. A crise espanhola, cada vez mais evidente
desde o final do século XVI, deveria fazer com que a vida do Gran Capitan
Gonzalo de Mendoza e suas campanhas da Itália ainda em tempos de
Fernando de Aragão calassem fundo na alma deste castelhano em terras
de Piratininga.34 A Cronica del Gran Capitan Gonçalo Hernandez de Cordova
y Aguillar era um livro que compilava textos de Hernando Pérez de Pulgar,
e foi editado com este título em 1582 pelo impressor de Sevilha Andrea
Pescioni. Outra edição foi feita em 1584, pela casa do mercador de livros
de Alcalá de Henares, Hernan Ramirez.
Desta mesma editora, há o sugestivo título de Francisco Ortiz
Arias, Mysterios de la sacrosanta passion de Christo, de 1578. Entretanto,
nesse terreno só podemos especular. Fica-se aqui no reino da aproxima-
ção, já que obras com esse título não eram raras. Por fim, Tenório tinha
um livro intitulado Instrucção de Confessores. Este tipo de obra configurava
um verdadeiro modismo no pós Concílio de Trento (1545-1563), afinal
a normatização deste sacramento foi uma das pedras angulares da
Contrarreforma. Nesse sentido, esses manuais classificavam os pecados
e funcionavam como verdadeiros sumários do cristianismo. Tinham
um aspecto bem funcional e, especialmente nas regiões de conquista e
colonização, eram obras auxiliares no trabalho de catequese, se bem que
não parece que seja este o caso de Martins Tenório. Não à toa, o próprio
padre jesuíta José de Anchieta escreveu um Confessionário, também em
língua tupi, para auxílio missionário.35

33
RODRÍGUEZ FERRER, Rocío. Entre el poema y el sermón: el Retablo de la vida
de Cristo, de Juan de Padilla, el Cartujano. Revista Taller de Letras, n. 45,
p. 53-66, 2009.
34
A respeito da crise espanhola leia-se: VILAR, Pierre, op. cit. e ELLIOTT, J., op.
cit.
35
DELUMEAU, Jean. A confissão e o perdão: as dificuldades da confissão nos séculos
XIII a XVIII. Trad. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

126
os brutos também leem

O genro de Tenório, e perito em minério, Clemente Alvarez, dizia


ser, enquanto esteve preso em função de um processo que se seguiu ao
inventário do sogro, desprovido das letras. Não sabia ler nem escrever,
segundo ele próprio.36 Curiosa informação, pois o próprio deixaria, em
seu inventário, dois livros, dentre eles mais um Confessionário. O outro
livro – Contemptus Mundi – era, muito provavelmente, uma recompilação
de orações e exercícios devocionais, feita pelo frei dominicano Luiz de
Granada, editado pela primeira vez em Lisboa em 1573. Seria uma “tra-
dução” de Granada da obra Imitação de Cristo, conhecida vulgarmente
como Contentis Mundi, ou o desprezo do mundo, e atribuída a Tomás de
Kempis. Neste trabalho, Kempis dizia que “busquei a felicidade em toda
a parte, mas não a encontrei em nenhum lugar, exceto em um cantinho,
que abrigava um pequeno livro”.37
O livro é quase onipresente na América e foi um verdadeiro su-
cesso na Península Ibérica. Levantamento feito por José Torre Revello
sobre a entrada de livros impressos na América durante o período da
dominação colonial espanhola mostra o Contentis Mundi presente em
diversos carregamentos e embarques. Fernando Bouza Álvarez o encontra
na biblioteca de D. Duarte de Bragança e afirma ser esta uma das leituras
de Joana de Áustria, regente de Espanha.38 O frei Jerônimo de Mendieta
narra como encontrou uma tradução deste livro, em língua indígena,
feita por índios do Colégio de Santiago de Tlateloco, na Nova Espanha.
Livro muito difundido, ele era obra referencial da Devotio Moderna, que
apregoava uma religiosidade mais contemplativa, marcada por exercícios
de devoção, abnegação, introspecção e piedade popular. O livro chegou a

36
I&T, 1641, v. XIV.
37
Apud FISCHER, Steven Roger. História da Leitura. 1. ed. São Paulo: Editora
Unesp, 2005, p. 185.
38
TORRE REVELLO, José. Lecturas indianas (siglos XVI-XVIII). Thesaurus, t. XVII,
n. 1, p. 1-29, 1962. BOUZA ÁLVAREZ, Fernando. En la corte y en la aldea de D.
Duarte de Braganza. Libros y pinturas del Marqués de Frechilla y Malagón.
Península: Revista de Estudos Ibéricos, Porto: Instituto de Estudos Ibéricos,
n. 0, p. 261-288, 2003.

127
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

ser proibido pela Inquisição, mas foi depois retirado da lista.39 Se Kempis
já buscara no livro a suprema felicidade, Granada também tinha uma
visão livresca do mundo, já que considerava o livro uma metáfora da vida
cristã. A criação e a existência deveriam ser lidas como se lê um livro.
Este mesmo título aparece uma segunda vez entre peritos mine-
rais. Manoel Pinheiro Azurara, conhecido de Clemente Alvarez, com
quem deixara inclusive algumas amostras de prata certa ocasião, era
português e vivera cerca de 30 anos em Nova Granada, onde tinha família.
Chegou a São Paulo através de Francisco de Souza, que o mandou para a
vila ainda em 1597 para investigar os boatos a respeito dos minérios. Entre
1602 e 1604, andou por Valladolid, Madrid e Lisboa buscando mercês
e regulamentações para exploração mineral de São Paulo. Voltou como
mineiro-mor do Brasil em 1604. Em 1606, evadiu-se para o Paraguai pelo
“caminho proibido de San pablo” (dizia ele para chegar a Nova Granada),
onde comerciou tecidos e erva-mate. Foi acusado, na ocasião, de levar pelo
caminho dezenas de escravos negros e algum ouro contrabandeado de
São Paulo. Preso, teve seus bens inventariados.40 Dentre os arrolados, há
muito tecido, facas e objetos miúdos para provável resgate com os índios,
e muita erva-mate adquirida na passagem pelo Guairá. Uma de suas
testemunhas de defesa o chama abertamente de “tratante”. Entre seus
outros bens, estava uma carta de marear, um astrolábio e uma balestilha.
Óculos, caixas de diversos tamanhos, relógio de sol e utensílios variáveis
talvez revelem um perito mineral, meio mercador, meio mascate.
Este “navegante do sertão” carregava consigo alguns livros: um Livro
de Regimento (provavelmente o Regimento mineral expedido em Madri
em 1603), com claro sentido utilitário, já que, enquanto mineiro-mor,
ele fora o responsável por implantar o dito regimento em São Paulo; um
livro de memória, um de sermões, um “diurno” (livro de orações com as

39
BORGES, Célia Maia. As obras de frei Luís de Granada e a espiritualidade
de seu tempo: a leitura dos escritos granadinos nos séculos XVI e XVII na
Península Ibérica. Estudios Humanísticos. Historia, n. 8, p. 135-149, 2009.
40
Arquivo Nacional de Assunção (ANA), Seccion civil y criminal, 1549, 4.

128
os brutos também leem

Horas) e um Contentis Mundi. Por fim, possuía um livro nomeado somente


como Parayso. Sabe-se que Diego de la Vega editou seu livro de sermões,
Parayso de la gloria de los santos, em Toledo no ano de 1602, em Lisboa no
de 1603 e em 1604 em Barcelona, coincidindo com o tempo que nosso
amigo perambulou pelas cortes da Península Ibérica. Vale se questionar
ainda se Azurara era um homem somente piedoso, ou um piedoso comer-
ciante que vendia, dentre outras coisas, livros pelos interiores da América.
Livros, neste caso, claramente contrabandeados pelo caminho proibido.
Caso Azurara fosse também um mascate, vendia o que se pode imaginar
como mercadoria de venda fácil, como o best-seller Contentis.
Ainda no campo dos afeitos aos trabalhos com minérios, temos
Pedro Fernandes, que fez seu testamento em 1648, data que escapa
estritamente à cronologia deste trabalho, mas teve sua vida plenamente
abarcada nela. Suas últimas vontades foram registradas antes de descer
“rio abaixo” no Tietê, de onde partia do porto de Pirapetingy, próximo da
atual cidade de Salto.41 Entre homens, mulheres e crianças indígenas,
quando da sua morte em 1648, possuía quase 100, dentre elas uma do
“Piquiri” que havia trazido pessoalmente. Casado com Anna Tenório,
neta materna de Martins Rodrigues Tenório e filha de Clemente Alvarez,
esta legou ao marido, provavelmente via dote, os apetrechos do engenho
de ferro e instrumentos variados de marcenaria, como verrumas, esco-
pos, trados e garlopas. Era um homem de posses, inclusive de alguma
ilustração, já que seu testamento, escrito por ele próprio, denota algum
estilo. Só possuía, em inventário, um único exemplar: um singelo “livro
de sermões”, sem avaliação. Mas, em troca de duas redes que entregou
a Lucas da Costa, morador de Itanhaém, para vender no Rio de Janeiro,
recebeu “uma Arte e uma Cartilha”. Dentre estes manuais de alfabetização
nomeados no inventário de maneira bastante natural, pode-se crer que
está a popular Arte latina, do padre jesuíta Manuel Álvares (1523-1586).
A obra, editada pela primeira vez em 1572, chegou a ter 530 edições ao
longo do tempo. Era tão conhecida e comum que era chamada de “livro

41
I&T, v. XII.

129
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

único”, e servia como guia oficial de ensino do latim em todas as escolas


jesuíticas espalhadas pelo mundo.42
Porém o chamariz de rol de bens de Fernandes é que, listado entre
machados, foices e cunhas, aparece um “torno de emprensar livros”,
avaliado em 320 réis (um pouco menos valioso que três cunhas, avaliadas
em 360). A que poderia ter servido tal instrumento a Pedro Fernandes?
Teria ele mesmo utilizado ou lhe ficou de herança, encostado em alguma
choupana do sítio? O fato é que bem poderia ter animado a produção
de algumas cartilhas para alfabetização, panfletos e cartas impressas,
como as que no ano de 1639 andaram causando alvoroço na vila de São
Paulo por apregoar a volta do rei Sebastião.43 O pequeno negócio feito
em Itanhaém, e a presença do torno, podem sugerir um esboço de grá-
fico. De todo modo, lembremos que o Colégio dos Jesuítas servira como
principal meio de alfabetização e ensino na vila de São Paulo, e o uso de
cartilhas deveria ser o recurso principal desta educação.
Mas se os mineiros e envolvidos com as práticas minerais e si-
derúrgicas parecem ter demonstrado alguma inclinação à leitura, ou à
posse de livros, num outro diminuto grupo, estes também se fizeram
presentes. Trata-se dos boticários e “cientistas” da pequena vila. Além dos
cuidados com os corpos, revelaram igualmente um cuidado maior com
o espírito. O boticário, e sertanista, Mateus Leme possuía uma biblioteca
que podemos considerar como verdadeiramente renascentista. Natural

42
VERDELHO, Telmo. Historiografia linguística e reforma do ensino. A propósi-
to de três centenários: Manuel Álvares, Bento Pereira e Marquês de Pombal.
Brigantia, Bragança, v. II, n. 4, p. 347-356, out-dez. 1982.
43
A sessão da Câmara de 16 de abril de 1639 trazia um requerimento alarmante
do procurador Sebastião Gil a respeito de algumas cartas que circulavam pela
vila. Nelas, lia-se que o rei D. Sebastião, desaparecido em Alcácer-Quibir em
1578, estava voltando, e que o papa ameaçara de excomunhão todo aquele
que lhe impusesse qualquer resistência. Dizia ainda o procurador que, nas
ruas de São Paulo, as tais cartas causaram algum alvoroço e muitos saíram
aos “gritos dizendo viva el rei dom Sebastião” ATAS da Câmara da Vila de São
Paulo, 16 abr. 1639.

130
os brutos também leem

de São Vicente, falecido em 1633, deixou um largo inventário de bens.44


Ele foi casado em São Paulo com Antonia de Chaves, já falecida na altura
que fez seu testamento, por volta de 1620, quando partiu para o sertão
alegando que ia “buscando meu remédio”. Fez questão de relembrar a
todos de sua mortalidade e alegava deixar um rol de bens, atrelado ao
testamento. Em sua casa de roça, legou uma enormidade de ferramentas
agrícolas, ferro bruto, materiais de marcenaria, de botica, de extração de
dentes, de agulhas e lancetas, de produzir anzóis, além de muitos tecidos
e caixas de diversos tamanhos e madeiras. Deixou ainda quatros óculos,
peça esta, aliás, indispensável aos leitores míopes e estrábicos. Dentre os
bens que interessam aqui está sua pequena, mas significativa, e coerente
biblioteca composta de três livros.
O Livro dos Segredos da Natureza, avaliado em 160 réis, foi herdado
pela viúva Antônia Gaga, sua segunda esposa, com o valor de 320 réis.
Inflacionou 100% ao longo do inventário. Era provavelmente o livro in-
titulado Discursos sobre os Segredos da Natureza, do humanista e filósofo
italiano Giulio Cesare Vanini (1585-1619), e editado em 1616. O autor foi
queimado vivo em Toulouse, acusado pelos tribunais inquisitoriais de
ateísmo, em 1619. Um livre pensador, da linhagem de Giordano Bruno,
que transitou entre a medicina, filosofia e o naturalismo e que pagou
um alto preço por isso. De todo modo, foi uma obra condenada pela
ortodoxia católica e que pode ter animado alguma leitura herética deste
renascentista do sertão.
Além desta obra, Leme possuía um Tratado Prático de Arithmética,
avaliado em cem réis, e um livro chamado somente de Repertório, tam-
bém em cem réis. Estes dois últimos, igualmente inflacionados, ficaram
com o genro, e ourives, Cláudio Furquim. Mais caso da ânsia livresca
dos peritos em minérios.
O livro de Aritmética é provavelmente a obra de Gaspar Nicolas,
Tratado da Pratica de Arismétyca, publicado a primeira vez pelo editor
Germão Galharde, em 1519. Entre 1590 e 1592, a obra foi novamente

44
I&T, 1633, v. IX.

131
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

editada com o título de Tratado de Aristmética com muita diligência emen-


dado. A obra chamava a aritmética de “senhora das outras ciências” e
alertava como ela “abre as portas do entendimento”. Foi também muito
popular e teve pelo menos 11 edições entre 1519 e 1716. Era uma “arte
de contar” e um excelente manual prático de aritmética, simples e claro.
Tinha como característica o apelo ao lúdico, com curiosidades e utilidades
numéricas. Num destes exercícios, por exemplo, ensinava matemática
com a ajuda dos santos:

Digo que um homem entrou numa Igreja e não sabemos quanto


dinheiro levava.
Disse ao primeiro santo que lhe dobrasse o dinheiro que levava
e lhe daria 12 reais e o santo lho dobrou.
Deu-lhe 12 reais e ficou-lhe ainda dinheiro.
E foi-se ao outro santo que lhe dobrasse o dinheiro com que ficou
e que lhe daria 12 reais.
O santo lho dobrou e o homem deu-lhe 12 reais e ficou-lhe ainda
dinheiro.
E foi-se ao outro santo que lhe dobrasse o dinheiro com que ficou
e que lhe daria 12 reais.
O santo lho dobrou e o homem deu-lhe 12 reais e não lhe ficou
nada.
Ora eu pergunto: quanto dinheiro levava este homem?45

O terceiro livro deveria ser o Repertório dos Tempos. Era um ma-


nual de astrologia portuguesa, feito por André de Avelar (1546-1621). Na
verdade era uma tradução do espanhol, cuja fonte original, Repertorio de
los tiempos, era de Andrés de Ly, de 1495, e publicado em Saragoça pelo
editor Pablo Hures. A obra de Ly inspirou-se nos trabalhos do astrônomo
Abraham Zacuto e foi editada em Lisboa, uma primeira vez, em 1518, por
iniciativa do tipógrafo alemão Valentim Fernandes. Fora traduzido de Ly

45
Apud HENRIQUES, H. C.; ALMEIDA, C. O lúdico nas Aritméticas do século
XVI. In: MOREIRA, D.; MATOS, J. M. (Ed.). História do ensino da matemática em
Portugal. Lisboa: Secção de Matemática da Sociedade Portuguesa de Ciências
da Educação, 2005, p. 141-148.

132
os brutos também leem

com acréscimos de Valentim, uma prática bastante difundida na Europa


dos séculos XVI e XVII.46 Assim, a obra de Avelar era uma adaptação da
“tradução” da tradução, e foi publicada em 1585. Ela tinha natureza astroló-
gica, “com os estilos dos signos e com as condições do que faz cada signo”.
Objetivava ajudar na navegação, apresentava tabelas de declinação do sol e
tinha em seu conteúdo instruções sobre a agricultura e colheita em cada
signo. Era um “registro dos signos em linguagem português”. O livro de
Avelar foi aprovado pela Inquisição em 1610, mas novamente recusado
e perseguido em 1632. No seu calendário, guardava trechos como este:

Eu sou o Janeiro que o torresmo abano quem tome ao fogo o


vinho gostando.
Eu sou o Fevereiro, que engrosso a terra, quebro a geada para
crescer a erva.
Eu sou o Março, que as vinhas podando alegrias faço o tempo
andando.
Eu sou o Abril, do doce dormir, folgo com Boninas e Aves ouvir.
Eu sou o Maio que para folgar me vou com falcões e cães a caçar.
Eu sou o Junho que colho o grão porque o meu fruto a todos é são.
Eu sou o Julho que debulho as ervas para encher de trigo as
cidades e aldeias.
Eu sou o Agosto que amanho as cubas, pipas e quartos para o
sumo das uvas.
Eu sou o Setembro que de uvas maduras, faço bons vinhos en-
chendo as cubas.
Eu sou o Outubro que com bois lavrando, faço que a terra o trigo
vai dando.
Eu sou o Novembro, que a lua minguante, corto a madeira que
é coisa importante.
Eu sou o Dezembro que matando o porco triunfo a prazer, ale-
grando o meu corpo.47

46
BURKE, Peter. Culturas da tradução nos primórdios da Europa Moderna.
In: ______.; HSIA, R. Po-Chia. A tradução cultural nos primórdios da Europa
Moderna. São Paulo: Ed. Unesp, 2009, p. 13-46.
47
Apud SCHWARCZ, Lilia Moritz. Repertório do tempo. Revista USP, São Paulo,
n. 81, p. 18-39, mar.-maio 2009.

133
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Um ano antes do livro de Avelar, o sevilhano Jerônimo de Chaves


publicou o seu Repertorio de los tiempos, obra também popular em terras
espanholas de aquém e além-mar.48 Algumas semelhanças sugerem
que as duas tiveram as mesmas fontes. E ambas foram condenadas
pela Inquisição. A imaginar que a obra presente em Piratininga fosse a
portuguesa.
Mateus Leme era um homem dedicado à compreensão da natureza
e dos seus fenômenos. Possuía uma biblioteca de cunho renascentista, na
qual se buscava a descrição do mundo, a contagem precisa e regulada do
tempo, e a medição das distâncias, aprisionadas na aritmética. Procurava
desvendar, conforme o título de uma delas, os “segredos mais recônditos
da Natureza”. Em seu pequeníssimo acervo livresco, por outro lado, havia
fortes pretextos para uma perseguição inquisitorial, o que, na realidade
de São Paulo daqueles anos, não era uma possibilidade tão remota, já que
o licenciado da Inquisição andara pela vila entre 1627 e 1628.
Mas, se Leme parecia se aproximar perigosamente de um saber
excessivamente laico, outro homem envolvido com boticas e lancetas,
João da Costa, revela uma trajetória muito diferente. Quando sua esposa,
Inês Camacho, faleceu em 1623, no inventário do casal encontrava-se
uma Ordenação de Sua Magestade (provavelmente a Filipina), avaliada em
quatro mil réis.49 João da Costa fora mamposteiro-mor dos cativos em
São Paulo em 1608, e esteve ao lado do governador geral Francisco de
Souza, portanto as “Ordenações” eram parte de seu ofício e ferramenta
de trabalho. Contudo, em seu próprio inventário, dezesseis anos depois

48
COSTA, Adalgisa Botelho da. O Repertório dos tempos de André do Avelar e a
astrologia em Portugal no século XVI. In: MARTINS, R. A. et al. (Ed.). Filosofia
e história da ciência no cone sul: 3º Encontro. Campinas: AFHIC, 2004, p. 1-7.
49
I&T, 1639, v. XII. As ordenações eram livros valiosos. Em 1587, numa sessão
da Câmara de São Paulo, João Maciel clamava pelas ordenações – as manue-
linas – para saber o que fazer como almotacel. Descobriu-se que não havia
nenhuma; e pior, não havia dinheiro suficiente para adquirir uma. Na verda-
de, tratava-se de comprar uma nova, pois a sessão no ano seguinte, em 1588,
denunciava que Gonçalo Pires tinha retirado o livro da Câmara e “o dera não
o podendo dar” (TAUNAY, Afonso, op. cit.).

134
os brutos também leem

(1639), percebe-se um processo profundo de transformação interior. Já


conhecido e alcunhado de “ermitão”, Costa abandonara a vida profana e
refugiara-se na ermida de Santo Antônio, que varria e cuidava diariamen-
te. Entregara todos seus bens aos filhos, mantendo em sua posse somente
seu estojo com lancetas, ferros de dentes, botica, facas e frascos, toalhas
e bacias. Tinha ainda um moleque da Guiné e pelo menos dois gentios.
No testamento, afirmava ter construído o corredor e o quintal da Igreja, e
cuidava de varrê-la diariamente. O “cirurgião” Costa continuava a cuidar
dos corpos através de seus instrumentos de boticário, mas alimentava
uma extremada preocupação com sua alma, agora entregue aos cuida-
dos da ermida. Adquirira, presumisse nesse meio tempo, uma pequena
biblioteca formada por um “livro de São José”, um “livro de concertos”
que poderia animar as missas da igreja de Santo Antônio e um livro da
“Vida Christã”, mais um Heitor Pinto. As Ordenações desapareceram.
Costa foi do profano ao sagrado.
Foi neste universo de mineiros, práticos e boticários que prevale-
ceu a maioria esmagadora dos livros presentes nos inventários e testa-
mentos. Muitos destes homens foram ligados ao governador Francisco
de Souza, o que pode denotar uma espécie de “elite” de possuidores de
livros, pelo menos em seu sentido mais relativo:

Como es bien sabido, cualquier biblioteca revela en gran medida


el espíritu de su dueño, pero esta característica adquiere un
significado aun más grande en el contexto de comienzos de la
Edad Moderna, cuando la rareza de los libros y sus elevados
precios representaban inconvenientes mayores para la formación
de una biblioteca. En el período colonial de América la posesión
de bibliotecas privadas fue ciertamente un privilegio de clase.
El coleccionismo de libros era uma actividad accesible sólo para
miembros del clero, nobles, profesionales (burócratas, maestros,
abogados, médicos), algunos mercaderes y aun jefes indígenas. A
pesar de esto, sería equivocado considerar la divulgación de libros
e ideas procedentes de Europa como un fenómeno puramente
elitista, porque las creaciones literarias y doctrinas fundamentales
de los más celebrados autores circularon también entre la gente
de clase baja y los iletrados. Españoles y criollos pobres, mestizos

135
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

e incluso indios fueron instruidos mediante proverbios, cuentos


populares, baladas, canciones y tertulias, reuniones donde algún
pasaje novelesco o un comentario moral eran leídos en alta voz.50

Desta citação, passamos a outro interessante aspecto: a leitura em


voz alta. Como conta Manguel, “leituras públicas informais em reuniões
não programadas eram ocorrências bastante comuns no século XVII”.51
Um destes episódios, de compartilhamento de leituras, é um no qual
participa Sebastião de Freitas, natural do Algarve, Portugal. Sua história
pode ajudar a revelar um pouco mais das dinâmicas que cercavam estas
práticas de leitura.
Freitas estava em São Paulo desde o final do século XVI, e chegara
junto com Francisco de Souza. Mais um que deveria compor a “douta
e luzida comitiva”. Antes disso, percorrera o sertão do São Francisco
com Gabriel Soares de Souza, autor do Tratado descritivo do Brasil (1587).
Freitas foi vereador e capitão da vila de São Paulo e chegou a ser armado
cavaleiro em plena vila por D. Francisco em 1601, por serviços prestados.52
Foi ainda sertanista ativo e participou da grande bandeira ao Guairá de
1628. Em 1633, já viúvo, vivia como estancieiro próximo a Assunção.
O fato é que este ilustre morador de São Paulo acabou sendo
denunciado pela Inquisição, juntamente com outros moradores, e in-
vestigado pelo licenciado Pires da Veiga (visitador de Angola, Congo e

50
MARTÍNEZ, Teodoro H. La historiografía del libro en América hispana: un es-
tado de la cuestión. In: GARCÍA AGUILAR, María Idalia; RUEDA RAMÍREZ, Pedro
J. (Comp.). Leer en tiempos de la Colonia: imprenta, bibliotecas y lectores
en la Nueva España. México: UNAM; Centro Universitario de Investigaciones
Bibliotecológicas, 2010, p. 55-72.
51
MANGUEL, Alberto, op. cit., p. 141.
52
Francisco de Souza possuía o direito de armar cavaleiros através da jurisdi-
ção mineral que lhe foi concedida da herança das mercês de Gabriel Soares
de Souza que, em troca das eventuais descobertas minerais, ganhou uma
série de concessões reais. Francisco de Souza armou cavaleiro em São Paulo
Sebastião de Freitas e Antonio Raposo. REGISTRO Geral da Câmara da Vila de
São Paulo. (RGCSP), 16 mar. 1601 e 18 jun. 1601.

136
os brutos também leem

Estado do Brasil) em sua visitação às capitanias do Sul, em 1627.53 E o


que levou Freitas a ser investigado? Segundo a denúncia, e sua própria
confissão, ele teria feito comentários impróprios em relação à virgindade
de Maria, quando liam uma obra em grupo. Estavam entre vários mora-
dores na casa de um deles (João da Costa?) e um “se pos a ler um livro
de outavas da vida de S. Joseph”. Quando liam o canto da anunciação da
Virgem Maria, Freitas afirmou ser impossível tal coisa, pois algo assim
deveria ser “obra de varão”. Nas palavras do inquisidor, o investigado
disse que Maria “não poderia conceber sem homem ela fazer tal coisa”,
e dissera isso “por palavras mui desonestas e sujas”. Diante da gravidade
da acusação, foi questionado se era cristão-novo, o que negou. No dia
seguinte, arrependido, pediu ao reitor do Colégio dos Jesuítas que este
fosse ter com o visitador para dizer que ele, Freitas, era sim cristão-novo.
Sua denúncia não foi levada adiante, mas a partida do réu da vila de São
Paulo em direção ao mundo paraguaio pode ter se dado exatamente por
ocasião do susto que passou junto ao Santo Ofício.
O mais interessante deste caso é como ele revela uma prática
de leitura conjunta, em voz alta, e entre conhecidos. Nesta, os ouvintes
interagiam com o texto, transformando as leituras em verdadeiras “ter-
túlias”. Escrita e oralidade, nestes princípios da modernidade, estavam
profundamente imbricadas e se combinavam na construção dos sentidos
dos textos. A obra em questão, apresentada simplesmente como livro
“da vida de S. Joseph”, foi precisada pelo inquisidor, que a faz questão
de nomear como sendo o livro de Joseph de Valdevieso (1565-1638),
poeta e autor dramático do barroco espanhol, além de ser protegido de
Felipe III. Autor muito popular na chamada “Era de Ouro” espanhola,
seu livro com mais sucesso foi exatamente Vida, excelencias e muerte del
gloriosíssimo patriarca san José, editado em Toledo, em 1604. O livro foi
considerado o “poema épico más leído de su tiempo” e teve cerca de 40
edições ao longo do século XVII.54

53
PEREIRA, Ana Margarida Santos, op. cit.
54
MADROÑAL, Abraham. La primera edición de la Vida de San José del maestro
Valdivielso. Revista de Filologia Española, t. LXXXII, n. 3-4, p. 273, 2002.

137
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Contudo, ao lado da prática de leitura compartilhada, em voz


alta, existia a leitura privada, individualizada. Esta é de difícil aferição e
a documentação praticamente não nos fornece pistas, mas talvez possa-
mos fazer uma aproximação do tema junto a alguém que aparentemente
valorizava um tipo de privacidade e conforto doméstico. O morador
João Barroso pode ser um destes casos.55 Possuidor da maior biblioteca
privada de São Paulo nesse período, os livros aparecem no inventário de
Catarina de Siqueira, sua esposa, aberto por ocasião de sua morte em
1638. A biblioteca, eclética, é composta de 10 livros.
Como era comum à realidade feminina naquele contexto, Catarina
os possuía, mas não usufruía deles através da leitura direta, já que nem
assinar ela sabia. O marido, Barroso, era um sujeito próspero, mas isso
não o impediu de também partir em bandeira em 1637. Comerciante de
tecidos, que abundam no inventário, e dono de uma plantação de algo-
dão, João Barroso frequentava o Rio de Janeiro – de onde provavelmente
viera antes de instalar-se em São Paulo – e acabara de comprar uma terra
em Santos quando da morte de sua esposa. De qualquer forma, em sua
casa na vila, de dois “lanços grandes com seu quintal”, vivia a família em
relativo conforto. Baús, “cadeiras de estado” em couro, vasilhas, espelhos,
toalhas de mesa, um bufete que provavelmente servia de mesa e até um
latão para urinar configurava uma vida doméstica bastante razoável e
confortável. A estranhar, somente, a presença de 43 pratos de “louça do
reino”, com suas tigelas e pires, e suas 50 peroleiras onde guardava não
sabemos bem o quê.
De todo modo, dentre os bens domésticos da família, lá estavam
os 10 livros. Dois deles eram aparentemente novos, já que nomeados em
separado: o primeiro, valioso em seus mil réis, era a segunda parte do
livro de “Vilhegas”. Por essa informação, sabemos que não poderia ser
Francisco Gómez de Quevedo y Villegas (1580-1645), bastante popular
em sua época. Teríamos, contudo, pelo menos mais duas opções: Esteban
Manuel de Villegas (1589-1669), autor de Las Eroticas, o Amatorius,
de 1618, cujo livro granjeou ao autor a inimizade de Lope de Vega e

55
I&T, 1638, v. X.

138
os brutos também leem

Cervantes. O fato é que a obra de Esteban, uma miscelânea de poemas,


tinha duas partes. Uma primeira, de heptassílabos, voltada a enaltecer
os prazeres mundanos, e uma segunda parte, composta por um elogio
à Filosofia e recheada de temas históricos num estilo pesado. O outro
provável autor seria Alonso de Villegas (1533-1603), licenciado, teólogo,
professor na Universidade de Toledo e autor de Flos Sanctorum, outro
título bastante comum nas bibliotecas das colônias espanholas e portu-
guesas na América. Este Villegas publicou, em seis partes, entre os anos
de 1578 e 1603, uma espécie de atualização da Legenda Áurea do século
XIII. A narrativa hagiográfica, e de forte sentido exemplar de Villegas,
foi muitíssimo apreciada e teve amplíssima circulação.
Além da obra de Vilhegas, uma de Fernão Mendes Pinto, prova-
velmente a famosa Peregrinação, avaliada em 640 réis, narra de maneira
jocosa, e surpreendente, as peripécias teoricamente verídicas vividas pelo
aventureiro, soldado e marinheiro Fernão Mendes Pinto (conhecido pelos
detratores como Fernão, Mentes? Minto!) em águas e terras orientais. Esta
obra deve ter garantido, ao menos, boas risadas e devaneios de imaginação
por terras orientais distantes, mesmo que Barroso, em verdade, vivesse,
ele mesmo, suas peripécias em terras ocidentais distantes.
Somando a estas duas, temos ainda oito livros “em letra redonda” –
um modelo caligráfico que poderia ser tanto manuscrito quanto impresso
–, e já mais gastos pelo uso cotidiano. Valiam, no atacado, todas as oito,
o que valia sozinha a obra de Villegas: um conto de réis. Detalhe: quatro
deles têm seus nomes tornados ilegíveis pelas traças e pelo tempo. Uma
pena. Dentre os outros, legíveis, lá estão as duas partes do recorrente
Heitor Pinto e sua Imagem da Vida Cristã; um também onipresente
Confessionário e, por fim, um exemplar das saborosas Novelas exemplares
de honestíssimo entretenimento, de Miguel de Cervantes, ou somente
Novellas, como prefere o escrivão. É no mínimo instigante imaginar o
provável leitor João Barroso, percorrendo as linhas produzidas sobre a
América pelo afamado escritor espanhol, na novela El Celoso Extremeño.
Nela, o protagonista, um pequeno hidalgo empobrecido, tenta a sorte
em Sevilha, a cidade da perdição, mas depois ruma para o Peru, de onde
volta carregado de ouro:

139
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Acogió al remedio a que otros muchos perdidos de aquella ciudad


se acogen que es el pasarse a las Indias, refugio y amparo de los
desesperados de España, iglesia de los alzados, salvoconducto de
los homicidas, pala y cubierta de los jugadores (a quien llaman
cierto los peritos en el arte), añagaza general de mujeres libres,
engaño común de muchos y remedio particular de pocos.

João Barroso possuía uma biblioteca ainda modesta, mas bastante


diversificada e provavelmente uma das maiores dentre seus contem-
porâneos na pequena vila. Ela era composta por obras piedosas, filosofia,
uma narrativa da expansão portuguesa e um belo exemplar da literatura
da “Era de Ouro” espanhola. Não se sabe se foram efetivamente lidos,
mas as possibilidades de leitura do próspero Barroso, no estreito cenário
de livros da vila de São Paulo, eram amplas.
Além destes livros aqui apresentados, existem algumas obras es-
parsas em outros inventários. Manuel Pinto Suniga, cujo inventário foi
feito em 1627, tinha uma Aplicação da Bula da Santa Cruzada, pela qual
foi responsável.56 Um livro funcional, de uso prático atrelado ao ofício do
portador. Antonio de Almeida, morto em 1636, e segundo consta, pela
própria esposa, Maria Nunes, tinha em seu inventário, feito na cadeia
de São Paulo, um Horas de Rezar, mesmo livro que possuía o sertanista
Sebastião Paes de Barros, falecido na década de 1670.57
Por fim, um único livro, de título abreviado, causa ainda certo es-
panto. O flamengo Manuel Vandale, morto em São Paulo, em 1627, deixou
em seu testamento um livro nomeado pelo escrivão como La Divina.58
Na impossibilidade de saber se era, de fato, a obra fundamental de Dante
Alighieri, percebe-se que a trajetória de Vandale tinha muito de épica.
Enquanto o governador D. Francisco de Souza se preparava para
voltar ao Brasil, como governador da Repartição Sul, em 1609, Vandale,
que se dizia morador da Bahia de muitos anos, pediu em Madri o direito

56
I&T, 1627, v. VII.
57
I&T, 1636, v. X.
58
I&T, 1627, v. VII.

140
os brutos também leem

de ir com o governador, como “morador y poblador de las minas del Brasil


y lengua de los mineros estrangeros”. Foi proibido de ir ao ser identificado
como cunhado de um mercador flamengo rico da Bahia, na verdade Evert
Hulscher, importante negociante e produtor de açúcar, dono de engenho
em Itaparica, de navios e cabeça de uma ampla rede comercial formada
pelos irmãos: um em Olinda, outros em Lisboa, Antuérpia e Hamburgo.
Manuel foi acusado, num papel anônimo endereçado ao Conselho de
Portugal, em Madri, desses que “são providenciais e enviados por Deus”,
de que suas intenções eram ruins. As acusações davam conta de que
ele queria se embrenhar no sertão e passar de engenho em engenho
promovendo levantes de escravos contra seus amos. Por fim, sugeria-
-se que ele fosse “apertado” para confessar.59 Vandale, sem se dar por
vencido, ainda foi a Lisboa, solicitar para ir ao Brasil buscar sua mulher,
mas lá também suas pretensões lhe foram negadas.60 Seja como for, o
postulante embarcou assim mesmo, já que o governador geral Diogo de
Meneses comunicou em carta ao rei, que remetia a Lisboa, preso, o tal
Vandale, conforme sugeria provisão real.61 Mas este persistente flamengo
estava longe de esmorecer, pois estudos de Paul Mers identificaram um
tal Manuel Van Dale, vivendo em Santos em 1612, como representante
dos Schetz nos pleitos movidos por essa família contra os herdeiros de
Jerônimo Leitão em torno do Engenho dos Erasmos.62 Outros rastros de
Vandale estão em Eddy Stols, que o cita como um flamengo denunciado
à Inquisição, mas sem precisar as circunstâncias; e também em Oliveira
França, que o identifica como alguém que teria auxiliado os flamengos
no assalto à Bahia em 1624, o que parece bastante provável e explicaria

59
Archivo General de Simancas (AGS), Secretarias Provinciais, Libro 1463.
60
Biblioteca D’Ajuda, cód. 51-VII-15.
61
CARTA de Diogo de Meneses de 22 abr. 1609. In: CORTESÃO, J. (Comp.).
Pauliceae Lusitana Monumenta Historica (1494-1600). Lisboa: Real Gabinete
Português, 1956, p. 3-12. v. I.
62
MEURS, Paul. São Jorge dos Erasmos, the remains of an early multinational.
Arquitextos, ano 6, mar. 2006. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.
br/arquitextos/arq070/arq070_03.asp>. Acesso em: 28 abr. 2013.

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o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

como ele teria ido parar em São Paulo – provavelmente fugido –, local
onde morreu, deixando um rico e polpudo inventário.63
Dentre os bens legados por Vandale, estava o misterioso livro. Seu
inventário é emblemático pois é o único caso de uma mulher letrada nesse
tempo. Sua esposa, irmã de Evert Hulscher, é chamada no documento de
Magdalena (Manadela) Holsquor, participa ativamente do espólio e assina
petições. Outro caso de mulher letrada em São Paulo, perceptível a partir
dos testamentos e inventários, é Leonor de Siqueira, falecida em 1699.
É necessário considerar que trabalhar com estes documentos, em
São Paulo, oferece uma condição especial. É, sem dúvida, um locus privi-
legiado, já que, desde as primeiras décadas do século XX, muitos destes
inventários, testamentos, Atas da Câmara e documentos diversos vêm
sendo publicados pelo Arquivo Público do Estado de São Paulo. Nesse sen-
tido, a documentação paulista revela um microcosmo, bem documentado,
do amplo império colonial ibérico, neste caso específico, do império his-
pânico durante o período da União das Coroas Ibéricas. Claro deve estar
que a vila não foi um dos centros mais pujantes da economia, e da vida
colonial, nestes primeiros séculos. Portanto, a validade da generalização
do caso paulista, à realidade colonial como um todo, deve ser relativizada.
Assim, se não se pode negar uma pobreza relativa dos paulistas nestes
tempos, que demarcava uma vida cotidiana muitas vezes precária, por
outro lado, não se deve cair novamente na velha pecha da “marginalidade”.
De todo modo, é importante rejeitar, de forma peremptória, qualquer
assertiva sobre isolamento. A coerência destas diminutas, esparsas e
fragmentárias bibliotecas só revela a força e a presença de alguns dos
grandes processos históricos condicionantes deste período. Na realidade
paulista, encontra-se o espírito do Renascimento, a reação dogmática do
Contrarreformismo, as maravilhas do mundo reveladas pela expansão

63
STOLS, Eddy. A pintura flamenga e as riquezas açucareiras na América colo-
nial. In: VIEIRA, Alberto (Ed.). O açúcar e o quotidiano: Actas do III Seminário
Internacional sobre a História do Açúcar. Funchal: Centro de Estudos de
História do Atlântico, 2004, p. 363-384. FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Um
problema: a traição dos cristãos-novos em 1624. Revista de História, São
Paulo, n. 83, p. 21-71, 1970.

142
os brutos também leem

portuguesa e, o que parece mais peculiar, a presença de uma literatura


da “Era de Ouro” espanhola, denotativa do grau de influência cultural
de Espanha neste contexto. São Paulo participa, assim, do amplo quadro
de circulação de pessoas, bens, ideias e livros, situação propiciada pela
monarquia universal católica e suas malhas globais.64
Estes livros, objetos que aparecem em pequenas quantidades, fa-
zem parte do rol de bens de diversos e múltiplos moradores do planalto,
e se revelam em diversas situações. Estão presentes na sua dimensão
sagrada – em sua esmagadora maioria –, mas também na profana. Em
alguns casos, até profana demais. Eles, os livros, acompanham as bandei-
ras, organizam orações privadas e públicas, servem a leituras coletivas,
são comercializados, viabilizam funções, ensinam e deleitam. Foram
poucos, mas inegavelmente importantes. É um daqueles casos sobre o
qual, do pouco, se fez muito. Tornaram-se, como afirma Maria Beatriz
Nizza da Silva, um “fato social”, atrelando-se às dinâmicas várias da vida
cotidiana da vila paulista.65
Os livros não religiosos, minoritários, pertenceram, em sua
maioria, a um grupo de moradores vinculados ao trabalho mineral.66
Fizeram parte de uma “elite” letrada numa São Paulo articulada aos
rumos do império pela pesquisa mineral, tocada pelas bandeiras, e pela
presença do governador geral do Brasil em terras de Piratininga. Mas,
pode-se dizer que lia-se em São Paulo, o que se lia no Império, em menor
escala, obviamente. Lia-se num contexto diverso, com usos distintos e
relacionados a experiências sociais típicas de uma pequena vila colonial
portuguesa, dos interiores da América, em plena Monarquia Hispânica.

64
GRUZINSKI, Serge. O historiador, o macaco e a centaura: a “história cultural”
no novo milênio. Estudos Avançados, v. 17, n. 49, p. 321-342, 2003.
65
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Livro e sociedade no Rio de Janeiro (1808-
-1821). Revista de História, São Paulo, v. 94, p. 441-457, 1973.
66
Cf, estudo de Teodoro Hampe Martínez, 70% dos livros presente na América
eram religiosos. HAMPE MARTÍNEZ, T. Bibliotecas privadas en el mundo colonial:
La difusión de libros e ideas en el virreinato del Perú (siglos XVI-XVII).
Madrid: Iberoamericana, 1996.

143
O Brasil e Felipe IV: uma aproximação

Rodrigo Ricupero1

Qual o peso do Brasil na monarquia de Felipe IV?


Em 1622, um católico inglês a serviço da Espanha, D. Antonio Xerley,
escrevia um curioso documento que pode nos dar uma primeira resposta.
Tal documento endereçado ao Conde-Duque de Olivares, e conhecido
como Peso político de todo el mundo,2 descreve em mais de cem páginas
as várias partes do mundo, suas relações com a monarquia espanhola,
aproveitando para dar conselhos e fazer sugestões ao poderoso ministro,
de quem busca o favor. Contudo, o espaço dedicado por Xerley ao Brasil,
apenas duas passagens, algumas poucas linhas, sinalizaria a ínfima
importância do Brasil no conjunto imperial sob domínio Habsburgo.
O próprio testamento de Felipe III, de 1621, sequer menciona o
Brasil ao enumerar em uma longa lista seus reinos, senhorios e estados,
descrevendo dessa forma as possessões da Coroa portuguesa: “mis reynos
de Portugal y el Algarves y outros estados en Africa y en la Yndia Oriental

1
Professor Dr. de História do Brasil Colonial no Departamento de História da
Universidade de São Paulo.
2
XERLEY, D. Antonio. Peso político de todo el mundo del Conde D. Antonio Xerley
(1622). Madrid: Departamento de História Social; Instituto Balmes de
Sociologia, 1961.
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

islas y tierras y señorios en qualquier parte y forma perteneçientes a la


Corona Real de Portugal”.3
O monarca espanhol apenas seguia a mesma lógica dos monarcas
portugueses anteriores à União Ibérica, que como D. Manuel se intitu-
lavam “Rei de Portugal e dos Algarves daquém e dalém mar, em África
Senhor da Guiné e da conquista, navegação e comércio da Etiópia, Arábia,
Pérsia e da Índia”. Tal situação valeria um comentário mordaz de Frei
Vicente do Salvador, natural da capitania da Bahia e autor da primeira
história do Brasil (1627):

Disto [a dificuldade da ocupação e aproveitamento do território]


dão alguns a culpa aos Reis de Portugal, outros aos Povoadores:
aos Reis pello pouco cazo que ham feito deste tam grande estado,
que nem o titulo quizerão delle, pois intulando-sse senhores de
Guiné por hua caravelinha, que lá vai, e vem, como disse o Rey
de Congo, do Brazil não se quizerão intitular.4

Interessante também foi a forma como no começo do século XVII


o sargento-mor do Estado do Brasil, Diogo de Campos Moreno, em uma
espécie de relatório da situação das capitanias então existentes, definia
o Brasil: “[a] parte oriental do Peru, povoada na costa do mar Etiópico, e
repartida em partes a que chamam capitanias”,5 atestando dessa forma
uma posição secundária do território.
Essa percepção de uma certa marginalidade do território dentro
da lógica imperial pode ser percebida inclusive nos textos conhecidos

3
TESTAMENTO de Felipe III. Madrid: Editora Nacional, 1982, p. 39. É verdade,
diga-se, que os domínios castelhanos na América não merecem maior des-
taque, sendo simplesmente nomeados como “Indias y terra firme del mar
oceano”.
4
SALVADOR, Frei Vicente do. A História do Brazil. Edição crítica de Maria Lêda
Oliveira. Rio de Janeiro: Versal, 2008. v. 1, f. 4 verso (a publicação segue a
divisão do original).
5
MORENO, Diogo de Campos. Livro que dá razão do Estado do Brasil (1612).
Edição crítica, com introdução e notas de Hélio Vianna. Recife: Arquivo
Público Estadual, 1955, p. 107.

146
o brasil e felipe iv: uma aproximação

dos moradores das partes do Brasil na virada do século XVI para o


XVII. Particularmente em dois pontos: na falta de ajuda da Coroa para
o desenvolvimento da conquista e na falta de remuneração dos serviços
feitos na América.
Em relação à primeira questão, Frei Vicente do Salvador era categó-
rico “nem depoiz da morte Del-Rey D. Ioão terceiro, que o mandou povrar,
e soube estima-llo, houve outro, que delle curasse, senão pera colher suas
rendas, e direitos”.6 Frei Vicente compartilha assim da opinião de Gabriel
Soares de Sousa, que, em 1587, em um amplo memorial entregue em
Madrid para D. Cristóvão de Moura, no qual pretendia demonstrar as
grandezas do Estado do Brasil, afirmava:

[…] de que si los reyes pasados tanto descuidaron, Al Rey Nuestro


Señor, y á su buen servicio conviene mostrarle por esta relacion
los grandes merecimientos de este su Estado, las qualidades, y
estrañezas de el paraque ponga en él los ojos, y afianze con su
poder, con lo qual se engrandecería y extedenrá con la felicidad
que se engrandecieron todos los Estados que reynaron debajo de
su proteccion, porque está muy desamparado despues que El Rey
D. Juan El 3º pasó de esta a La eterna ...7

Sobre o segundo ponto, a remuneração dos serviços, tema funda-


mental para a época, disseminava-se nas partes do Brasil um significativo
discurso, que alicerçava as constantes reclamações dos vassalos envolvidos
na colonização do Brasil frente à Coroa e cuja formulação básica era a
de que os serviços feitos no Brasil nunca eram pagos e que podem ser
encontrados em quase todas as obras escritas no período. Por exemplo, na
citada obra de Gabriel Soares de Sousa, na qual, após narrar a participação
dos moradores da Bahia em diversos episódios da conquista do territó-

6
SALVADOR, Frei Vicente do, op. cit., 4 verso.
7
Na edição espanhola, SOUSA, Gabriel Soares de. Derrotero general de la Costa
del Brasil. Madrid: Ediciones Cultura Hispánica, 1958, p. 5. Para a edição bra-
sileira. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1987, p. 39.

147
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

rio, o autor queixava-se que estes permaneciam “até hoje [sem] ser dada
nenhuma satisfação a seus filhos”, ainda que tendo feito estes serviços
e muitos outros à própria custa, sem receberem soldo ou mantimentos,
ao contrário do que se costuma fazer na Índia, concluía afirmando: “e a
troco desses serviços e despesas dos moradores desta cidade não se fez
até hoje nenhuma honra nem mercê a nenhum deles, do que vivem mui
escandalizados e descontentes”.8
É falsa, contudo, a ideia de que os serviços feitos no Brasil nunca
recebiam pagamento, embora nem sempre as remunerações fossem
as que os vassalos reivindicassem, ou ainda que sua efetivação nem
sempre fosse fácil. O mais provável é que a posição secundária ocupada
até meados do século XVII pelas partes do Brasil dentro do Império
português – situação que começaria a mudar a partir do início da guerra
com os holandeses em Pernambuco – frente ao Oriente ou mesmo ao
Marrocos, áreas que inclusive atraíam a quase totalidade dos nobres de
maior estirpe, fez que os serviços realizados nestas últimas recebessem
um destaque muito maior que os prestados nas demais e, consequente-
mente, maiores recompensas.
O fato central é que para a Coroa portuguesa, antes e durante
o domínio Habsburgo, o Brasil era uma área secundária, fato que era
percebido inclusive pelos vassalos diretamente envolvidos no processo
de conquista e ocupação do território.9

8
SOUSA, Gabriel Soares de, Tratado Descritivo do Brasil em 1587, op. cit., p. 132.
9
O prólogo da História da província de Santa Cruz, primeiro livro publicado
sobre o Brasil, de Pero de Magalhães Gandavo, já destacava o descaso com
o Brasil, afinal sua história, passados mais de 70 anos do descobrimento,
“esteve sepultada em tanto silêncio, pelo pouco caso que os portuguezes
fizerão sempre da mesma província”. GANDAVO, Pero de Magalhães. História
da província de Santa Cruz e Tratado da Terra do Brasil (O primeiro de 1576 e
o segundo anterior, permaneceu inédito). São Paulo: Obelisco, 1964, p. 23.

148
o brasil e felipe iv: uma aproximação

O Brasil antes de 1621


Afinal o que eram exatamente as possessões herdadas por Felipe
IV em 1621, que tinham merecido figurar no testamento paterno apenas
como as demais terras em “qualquer parte” sujeitas à Coroa portuguesa?
As terras do novo mundo descobertas por Pedro Álvares Cabral
na segunda viagem portuguesa para a Índia em 1500 só começaram a
ser efetivamente ocupadas a partir da década de 1530, quando a Coroa,
movida pela crescente presença francesa na área, optou pela delegação
para alguns vassalos destacados da tarefa de ocupar e defender a costa
do Brasil.10
A magnitude da tarefa de ocupação e exploração do território,
acrescida da enorme resistência indígena, impediu o desenvolvimento
do processo de colonização. Na década seguinte, a intensificação da re-
sistência indígena levou à destruição de fazendas, engenhos de açúcar e
de alguns núcleos urbanos, com a morte de muitos portugueses e a fuga
dos sobreviventes. Ataques de grupos indígenas por toda costa colocaram
a presença portuguesa em cheque, obrigando a Coroa a intervir. Em 1548,
a Coroa retoma para si parte da tarefa de colonização, cria o Governo
Geral e manda uma grande expedição para a Bahia de todos os Santos,
que no ano seguinte fundaria a cidade do Salvador.
A intervenção direta da Coroa mudaria a correlação de forças no
litoral, mas o domínio das áreas litorâneas próximas aos centros urbanos
ainda era efêmero. Só a partir da década de 1560 é que os portugueses
conseguiram o domínio efetivo destas terras, dando início à expansão
da economia açucareira.
Em 1581, quando Felipe II é aclamado rei de Portugal, a presença
portuguesa na costa do Brasil se limitava a uma longa faixa litorânea in-
termitente entre a capitania de Itamaracá ao norte (hoje norte do Estado
de Pernambuco) e o sul da capitania de São Vicente (hoje sul do Estado
de São Paulo), com enormes vazios e pouco mais do que 10 núcleos

10
RICUPERO, Rodrigo. A formação da elite colonial: Brasil c. 1530 – c.1630. São
Paulo: Alameda, 2008, em especial o terceiro capítulo “Conquista e fixação”.

149
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

urbanos. Mais expressivo era apenas o domínio sobre a região da Bahia


de Todos os Santos, o litoral da capitania de Pernambuco e a região do
Rio de Janeiro. A ocupação do interior do território era praticamente
nula, salvo a vila de São Paulo, fato que permitiria, em uma comparação
implícita com as conquistas espanholas na América, o comentário de
Frei Vicente do Salvador:

Da Largura, que a terra do Brazil tem pera o sertão não tracto,


porque athe agora não houve quem a andasse por negligençia dos
Portuguezes, que sendo grande conquistadores de terras não se
aproveitão dellas, mas contentãosse de as andar arranhando ao
longo do mar como caranguejos.11

O processo de expansão e conquista iniciado a partir de 1560 iria


prosseguir até a segunda década do século XVII derrotando a resistência
dos grupos indígenas no litoral e expulsando os franceses da região.
Dada a dinâmica da luta na costa do Brasil, cada avanço frente
aos povos indígenas empurrava a fronteira militar para o interior do
continente, sem permitir uma vitória definitiva. As terras sob domínio
português foram se ampliando em torno dos núcleos originais e novas
áreas conquistadas. Sergipe, a região entre as duas capitanias mais im-
portantes – Bahia e Pernambuco –, é conquistada na década de 1580,
consolidando o núcleo central da colônia. Mais expressivo, contudo,
seria o movimento, iniciado também nesse momento, que estenderia o
domínio português de Pernambuco até a foz do Amazonas em 1616. A
costa foi sendo paulatinamente conquistada: Paraíba na década de 1580,
Rio Grande do Norte nos últimos anos do século XVI, Ceará no início
do XVII, Maranhão (com a expulsão dos franceses e a conquista de São
Luís) e, na sequência, o Pará (dominando a foz do Amazonas), ambas
na segunda década.
A herança de Felipe IV, dessa forma, seria maior do que a do avô
Felipe II. A faixa litorânea agora compreendia as terras desde a capitania
de São Vicente no Sul até a capitania do Pará no Norte, as áreas efetiva-

11
SALVADOR, Frei Vicente do, op. cit., f. 6 verso.

150
o brasil e felipe iv: uma aproximação

mente ocupadas eram significativamente maiores e o número de núcleos


urbanos dobrara no período, apesar dessa ampliação da colonização do
litoral, a ocupação do interior pouco avançara. Todavia, a grande diferença
entre os tempos de Felipe II e Felipe IV era o significativo aumento no
número dos engenhos de açúcar.
A conquista efetiva da faixa litorânea iniciada na década de 1560
permitiu o grande surto da economia açucareira no Brasil, pois as guer-
ras travadas pelos portugueses, ao mesmo tempo em que derrotavam a
resistência indígena, possibilitavam a ocupação e a exploração de áreas
mais amplas e o cativeiro de milhares de índios, mão de obra fundamental
para as fazendas e engenhos.
Os resultados das guerras empreendidas podem ser mensurados
pelo número de engenhos erguidos no período. Considerando apenas as
áreas mais significativas da economia açucareira – Bahia, Pernambuco e
regiões vizinhas – e, portanto, melhor documentadas, teríamos a seguinte
evolução: na década de 1570 os engenhos eram aproximadamente 55,
no final do século já eram o dobro. Pouco tempo depois, no começo da
segunda década do XVII, já seriam 150 e, em 1623, apenas para a região
em torno de Pernambuco atingiam a marca de 137 unidades.12
Foi um período de grande desenvolvimento para a colônia e pros-
peridade para os senhores de engenho. A demanda europeia pelo açúcar,
um dos grandes produtos comerciais da época, garantia mercados e
preços crescentes para a produção. A baixa tributação, a facilidade inicial
de obter terras e escravos indígenas completavam o cenário favorável,
que seria em parte turvado pela posterior necessidade de substituir os
indígenas dizimados pelos escravos africanos mais caros.13

12
Sobre a evolução da economia açucareira, veja-se, entre outros: MAURO,
Frédéric. Portugal, o Brasil e o Atlântico 1570-1670. Trad. Manuela Barreto.
Lisboa: Estampa, 1988. 2 v.; SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos
e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. Trad. Laura Teixeira Motta. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988 e FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Terra,
trabalho e poder: o mundo dos engenhos no Nordeste colonial. São Paulo:
Brasiliense, 1988.
13
Processo iniciado já no final do século XVI.

151
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

A prosperidade das camadas senhorias no período chamou a


atenção dos recém-chegados e foi destacada nos escritos dos moradores,
interessados em destacar os resultados da conquista.
Gabriel Soares de Sousa, no citado memorial, após descrever a
pujança da economia açucareira em Pernambuco, com seus 40 ou 50
navios anuais carregados de produtos da terra, sentenciava:

É tão poderosa esta capitania, que há nela mais de cem homens


que têm de mil até cinco mil cruzados de renda, e alguns de oito,
dez mil cruzados. Desta terra saíram muitos homens ricos para
estes reinos, que foram a ela pobres.14

O jesuíta Fernão Cardim, secretário do Visitador da Ordem na


década de 1580, dá cores aos números, quando descreve impressionado o
bem estar dos senhores de engenho, ainda que condenando os excessos:

Vestem-se, e as mulheres e filhos de toda sorte de veludos,


damascos e outras sedas e nisto tem grandes excessos. As
mulheres são muito senhoras, e não muito devotas... os homens
são tão briosos que compram ginetes de 200 e 300 cruzados...
São muito dados a festas... [em certo casamento] se vestiram
uns de veludo carmesim, outros de verde, e outros de damasco e
outras sedas de várias cores, e os guiões e selas dos cavalos eram
das mesmas sedas que iam vestidos. Aquele dia correram touros,
jogaram canas... são dados a banquetes... bebem cada ano 50 mil
cruzados de vinho de Portugal... Enfim em Pernambuco se acha
mais vaidade que em Lisboa.15

14
Optamos nesta passagem em não seguir a citada tradução espanhola do
século XVII. SOUSA, Gabriel Soares de, Tratado Descritivo do Brasil em 1587,
op. cit., p. 58.
15
CARDIM, Fernão. Tratados da terra e gente do Brasil (final do século XVI).
Lisboa: CNCDP, 1997, extratos da página 256. As cartas e relações dos jesuítas
são repletas de descrições das mais favoráveis condições com que os padres
são recebidos em suas visitas pelos engenhos no período.

152
o brasil e felipe iv: uma aproximação

Os Diálogos das Grandezas do Brasil, obra inédita e anônima de


1618, atribuída ao senhor de engenho Ambrósio Fernandes Brandão,
corroboram a visão de Cardim sobre a situação dos senhores de enge-
nho, indicando como a vida faustosa destes marcava os observadores. O
velho morador do Brasil, Brandônio, um dos personagens do diálogo,
afirmava para o recém-chegado Alviano, o outro personagem, que o
gasto dos senhores de engenho é “grandíssimo, com os muitos cavalos
ajaezados, librés e vestidos custosíssimos que tiram de ordinário para
si e seus filhos, porque a cada quatro dias fazem festas de touros, canas
e argolinhas”, e arrematava, talvez para não deixar dúvidas ao surpreso
Alviano, que “eu já vi afirmar a homens mui experimentados na Corte
de Madri, que se não traja melhor nela do que se trajam no Brasil os
senhores de engenho, suas mulheres ...”.16
A situação não passava despercebida também para os estrangei-
ros que visitavam a região. O francês Pyrard de Laval, retornando do
Oriente numa embarcação portuguesa, teve a oportunidade de passar
uma temporada no Brasil e nos deixou uma impressão favorável do de-
senvolvimento da colônia: “A riqueza dessa terra é principalmente em
açúcares ... porque não julgo que haja outro lugar em todo mundo, onde
se crie açúcar em tanta abundância como ali”, acrescentando ainda, com
certo exagero, “nunca vi terra onde o dinheiro seja tão comum, como e
nesta do Brasil, e vem do Rio da Prata ... não se vê ali moeda miúda, mas
somente peças de oito, quatro e dois reales ...”.17
A importância da economia açucareira em franca expansão e a
fama, exagerada ou não, das riquezas atraíram para a região aventureiros
e mercadores portugueses e estrangeiros, além de despertar a cobiça

16
DIÁLOGOS das Grandezas do Brasil (1618). Recife: Imprensa Universitária,
1962 (Primeira edição integral, preparada por José Antonio Gonsalves de
Mello, segundo o apógrafo de Leiden).
17
PYRARD DE LAVAL, Francisco de. Viagem de Francisco Pyrard de Laval. (Texto
do início do século XVII, em tradução portuguesa moderna de Joaquim
Heliodoro da Cunha Rivara). Porto: Livraria Civilização, 1944, p. 228 e 230.
v. 2.

153
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

dos inimigos da Coroa espanhola, em especial dos piratas ingleses que


começaram a se aventurar pelo Atlântico Sul no final do século XVI.18
A liberdade de comércio vigente na colônia em quase todo
século XVI, as intensas relações mercantis entre Portugal e outras áreas
europeias, em especial os Países Baixos19, a incapacidade da marinha
portuguesa em escoar a totalidade da produção contribuíram para a
penetração de comerciantes estrangeiros nos negócios do açúcar, bem
como a participação de embarcações estrangeiras no transporte entre o
Brasil e a Europa.
A escassez de fontes apropriadas dificulta uma compreensão mais
precisa destas relações, mas se estima que mercadores e embarcações
holandesas tenham ocupado um papel relevante na economia açucareira.
Contudo, no contexto da rebelião dos Países Baixos contra o domínio
Habsburgo, a Coroa espanhola procurou tolher as relações mercantis
dos rebeldes com o conjunto dos reinos sob seu domínio, para tanto,
uma série de leis e regulamentos foram promulgados a partir de 1585,
que, de acordo com a conjuntura do conflito, ora eram mais restritivos,
ora mais permissivos.
No caso do comércio colonial, a restrição à participação dos ho-
landeses favoreceu a presença de navios e comerciantes de outras áreas,
em especial alemães20, ainda que, para alguns autores, os holandeses
tenham recuperado parte dos seus interesses no comércio açucareiro
durante a trégua dos doze anos (1609-1621). Porém, a tendência geral
foi no sentido de uma restrição crescente ao comércio, levando, assim,
à constituição do que se convencionou chamar de “exclusivo comercial”,

18
Destaque-se, entre outros, os ataques de Drake, Cavendish e Lancaster.
19
No caso dos Países Baixos, tais relações seriam reforçadas pela migração de
judeus e cristãos que fugiam da ameaça da Inquisição.
20
O chamado “Livro das saídas dos navios e urcas” de Pernambuco indica
para o período entre 1595 e 1605 uma forte participação de embarcações ori-
ginárias de Hamburgo. Este documento foi publicado na Revista do Instituto
Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, v. LVIII, p. 21, 1993, com
um estudo introdutório de José Antonio Gonsalves de Mello.

154
o brasil e felipe iv: uma aproximação

impondo, portanto, a obrigação que o comércio do Brasil com a Europa


se realizasse apenas através dos portos portugueses.21
A chegada ao trono do novo monarca coincide com uma virada
na conjuntura internacional e também na da colônia. O início pouco
antes da Guerra dos Trinta Anos, o fim da trégua dos doze anos com os
holandeses, a recessão econômica na Europa, conformando o que a his-
toriografia posteriormente definiria como a Crise Geral do século XVII.
Na área colonial, o período seria marcado pelo fim da expansão
territorial e da expansão da economia açucareira, bem como pelo início
de uma fase da guerra contra os holandeses. Além disso, foi nesse mo-
mento que se estruturaram no Brasil os mecanismos do Antigo Sistema
Colonial, em especial com o estabelecimento do exclusivo comercial, e
também com o aumento da importância do tráfico africano de escravos
e com o acirramento da carga fiscal. Situação que levaria ao fim a grande
prosperidade do final do XVI e do início do XVII.

21
NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do Antigo Sistema Colonial
(1777-1808). 6. ed. São Paulo: Hucitec, 1995, especialmente o capítulo II.

155
O Retorno do Rei: Restauração Portuguesa e
memória filipina no Maranhão e Grão-Pará
(1640-1652)1

Alírio Cardoso2

Pois se Deus não quis que a sujeição de Portugal a Castela fosse perpé-
tua, porque hão-de querer e porfiar os homens em que o seja? Se Deus
limitou esta sujeição ao termo de sessenta anos, porque se não hão-de
conformar os homens com seus soberanos decretos?3

1
Este artigo é uma parte modificada do sétimo capítulo de minha tese de
doutorado. Para mais detalhes, ver: CARDOSO, Alírio. Maranhão na Monarquia
Hispânica: intercâmbios, guerra e navegação nas fronteiras das Índias de Castela
(1580-1655). Salamanca, 2012. 435 f. Tese (Doutorado em História da
América) – Facultad de Geografía e Historia, Universidad de Salamanca. O
autor agradece aos professores José Manuel Santos Pérez (Universidad de
Salamanca) e Pedro Cardim (Universidade Nova de Lisboa).
2
Professor Dr. na Universidade Federal do Maranhão, com especialidade em
História Militar e História Indígena.
3
VIEIRA, António. História do Futuro. Introdução, actualização do texto e notas
por Maria Leonor Carvalhão Buescu. Lisboa: Imprensa Nacional; Fundação
Calouste Gulbenkian, 1982 [1718], p. 117.
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Notícias da “Rebelião”

A pergunta que retrospectivamente fazia Vieira no seu História


do Futuro parece cobrar um sentido especial nas zonas de fronteira,
áreas que flertavam constantemente com a possibilidade efetiva de
uma união comercial hispano-lusa. Tal como ocorreu na Capitania de
São Vicente, ao Sul, também no extremo Norte da América portuguesa,
seus moradores nunca esconderam algumas altas expectativas em torno
da continuidade de uma aliança monárquica que muitos identificavam
como uma oportunidade de negócios e de abertura de novas frentes de
ocupação.4 É bom lembrar que o próprio Estado do Maranhão nasceu,
em 1621, como entidade política no seio da Monarquia Hispânica.5 Se
não considerarmos o período da França Equinocial (1612-1615), carente
de uma melhor definição jurídica no que diz respeito à configuração
territorial, é possível dizer que até então a região não havia conhecido
outra fórmula de existência institucional senão aquela dos Filipes.
Sabe-se que, inclusive, algumas autoridades luso-maranhenses
passaram a escrever informes diretamente em espanhol, de modo a
conduzir melhor o diálogo com a Corte, a exemplo dos memoriais pro-
duzidos por Bento Maciel Parente na década de 1630.6 Aliás, esta parece

4
O primeiro a fazer uma comparação entre os dois casos a partir da pers-
pectiva do alargamento da fronteira Oeste foi, mais uma vez, o velho Jaime
Cortesão. Cf. CORTESÃO, Jaime. São Paulo e Belém do Pará. In: _____.
Introdução à História das Bandeiras. Lisboa: Portugália Editora, 1964,
p. 70-80. v. I.
5
Sobre o tema, ver: CARDOSO, Alírio. A conquista do Maranhão e as disputas
atlânticas na geopolítica da União Ibérica (1596-1626). Revista Brasileira de
História, v. 31, n. 61, p. 317-338, 2011.
6
Por exemplo: MEMORIAL// Para conservar y aumentar la Conquista y
tierras del Marañon, y los Indios que en ellas conquistó el capitán Benito
Maciel Pariente// son necesarias las cosas siguientes// año 1630. [cópia].
Fundação Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, II-35, 28; MEMORIAL, para
conservar y augmentar la conquista y tierras del Marañon, y los indios que
en ellas conquistó el Capitan Maior Bento Maciel Parente, son necesarias y
convenientes las cosas siguientes. Revista do Instituto do Ceará, t. XXI, anno
XXI, p. 182-188, 1907; José Honório Rodrigues confirma a informação:

158
o retorno do rei

ser uma tendência mais alargada que a união dinástica não fez mais que
acelerar.7 Em outras crônicas e memoriais luso-maranhenses, considera-
-se claramente a história das conquistas ultramarinas portuguesas e
castelhanas como um continuum temporal, partes integradas de uma
mesma narrativa. Este foi o caso, por exemplo, dos textos escritos pelo
capitão Simão Estácio da Silveira entre as décadas de 1610 e 1620.8 Em
geral, estes moradores alimentavam muitas expectativas sobre a inserção
do Maranhão nos circuitos comerciais atlânticos, principalmente com
relação às rotas peruana e caribenha, cuja base retórica seria a condição
de “covassalagem” entre portugueses e espanhóis, luso-maranhenses e
hispano-peruanos.
O processo de expansão para Oeste do território também foi uma
política iniciada no período Habsburgo, primeiro com as expedições
contra holandeses e ingleses no rio Amazonas; depois, com a oferta de
sesmarias e os descimentos de índios através do sertão luso-maranhense.
Até mesmo as promessas reais de hábitos de Ordens Militares, como
recompensa aos conquistadores e aos combatentes na guerra contra os
holandeses, que no caso do Estado do Maranhão começa na década de
1620 nas campanhas do rio Xingu, têm suas primeiras concessões no
período da Monarquia Hispânica. Por tudo isso, o estudo de caso sobre
a recepção política à Restauração Portuguesa ganha importância. Não
obstante, a reação dos moradores do extremo Norte da América portu-
guesa deverá ser devidamente comparada com os diferentes territórios
ultramarinos.

PARENTE, Bento Maciel apud RODRIGUES, José Honório. História da História


do Brasil, 1ª parte: historiografia colonial. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1979, p. 82-84.
7
BUESCU, Ana Isabel. Aspectos do bilinguismo português-castelhano na época
moderna. Hispania, v. LXIV/1, n. 216, p. 13-38, jan.-abr. 2004.
8
Entre outras, ver: SILVEIRA, Simão Estácio da. Intentos da Jornada do Parâ,
Lisboa, 21 set. 1618. Biblioteca Nacional de España, mss 2349, flº 174v-175;
______. Relação Sumaria das Cousas do Maranhão. Escripta pello capitão
Symao Estácio da Sylveira. Dirigida aos pobres deste Reyno de Portugal
[1624]. In: SEPARATA dos Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro:
Biblioteca Nacional, 1976, p. 104-127. v. 94.

159
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

No Estado do Brasil, como se sabe, não houve nenhum problema


incontornável no processo de reconhecimento do novo rei. Apesar disso,
as reações foram mais diversas do que sugeriu a antiga historiografia
nacionalista portuguesa, presa a categorias analíticas que compreendiam
o movimento nos moldes de uma verdadeira “revolução”.9 Na Bahia, a
notícia chegou no dia 15 de fevereiro de 1641. Na ocasião, o vice-rei D.
Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão, foi bastante cauteloso ao
informar primeiro os portugueses mais influentes, para depois desarmar
os soldados castelhanos e italianos residentes na cidade de Salvador. A
partir da capital, tratou-se de difundir a notícia a outras capitanias do
Sul, principalmente Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente.10 Pouco
antes, em janeiro, o Conde-Duque já havia feito o possível para garantir
o Brasil na esfera de influência filipina, mas a adesão jesuíta aos projetos
brigantinos ajudou a minar rapidamente as pretensões de Madri.11 Na
ocasião, o vice-rei recebeu pressões diversas a favor de Filipe IV, inclusive

9
Para uma análise sobre as possibilidades interpretativas do Primeiro de
Dezembro, atenta também à forma como a historiografia nacionalista rein-
ventou de maneira retrospectiva o movimento, ver: SCHAUB, Jean-Frédéric.
La crise hispanique de 1640. Le modèle des “révolutions périphériques”
en question (note critique). Annales Histoire, Sciences Sociales, v. 49, n. 1,
p. 219-239, jan.-fév. 1994; BOUZA ÁLVAREZ, Fernando Jesús. Gramática de
la crisis. Una nota sobre la historiografía del 1640 hispánico entre 1940 y
1990. Cuadernos de Historia Moderna, n. 11, p. 223-246, 1991.
10
Entretanto, como se sabe, mais tarde o próprio Marquês de Montalvão seria
deposto do cargo. LENK, Wolfgang. Guerra e Pacto Colonial: exército, fiscalidade
e administração colonial da Bahia (1624-1654). Campinas, 2009. 296 f. Tese
(Doutorado em História Econômica) – Instituto de Economia, Universidade
Estadual de Campinas, p. 154-156.
11
VALLADARES, Rafael. La rebelión de Portugal, 1640-1680: Guerra, conflicto y
poderes en la Monarquía Hispánica. Valladolid: Junta de Castilla y León,
1998, p. 32. Ver também: VALLADARES, Rafael. Brasil: de la Unión de Coronas
a la crisis de Sacramento (1580-1680). In: SANTOS PÉREZ, José Manuel (Ed.).
Acuarela de Brasil, 500 años después: Seis ensayos sobre la realidad histórica
y económica brasileña. Salamanca: Aquilafuente; Ediciones Universidad de
Salamanca, 2000, p. 23-36.

160
o retorno do rei

dentro da própria família, mas acabou por aderir à rebelião de maneira


mais diligente do que era francamente esperado em Lisboa.12
Em São Paulo, a alteração mais conhecida foi mesmo a chamada
Aclamação de Amador Bueno, a quase mítica história deste personagem
de pai sevilhano e mãe portuguesa supostamente aclamado como “rei de
São Paulo” pelas elites locais. Sem dúvida, uma forma pouco ortodoxa de
escapar da confusão político-dinástica ocasionada pela separação entre
Portugal e Castela.13 Não por acaso, existe pouca credibilidade sobre esta
história, bem mais relacionada às aspirações nativistas dos autores brasi-
leiros do século XIX.14 Embaraços maiores eram esperados na Capitania
do Rio de Janeiro, onde seu capitão, Salvador Correia de Sá e Benevides,
tinha conhecidas ligações familiares, econômicas e políticas com os
espanhóis, sobretudo na área do rio da Prata. Apesar das insinuações
perigosas que afirmavam sua possível lealdade a Filipe IV, a Aclamação
no Rio ocorreu sem grandes incidentes.15

12
COSTA, Leonor Freire; CUNHA, Mafalda Soares da. D. João IV. Lisboa: Temas e
Debates, 2008, p. 139.
13
Aliás, na interpretação clássica de Jaime Cortesão, São Paulo seria a única
exceção à regra segundo a qual: “A Restauração foi recebida no Brasil com
aplauso geral e entusiástico” CORTESÃO, Jaime. O Ultramar Português depois
da Restauração. Lisboa: Portugália Editora, 1971, p. 106-108. Para um estudo
mais sistemático sobre o tema, ver: VILARDAGA, José Carlos. São Paulo na
órbita do império dos Felipes: conexões castelhanas de uma vila da América
portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). São Paulo, 2010. 400 f. Tese
(Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo.
14
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. A alegada proclamação de Amador Bueno em
1641. In: ______. O trato dos viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul,
séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 367-368;
MONTEIRO, Rodrigo Bentes. A Rochela do Brasil: São Paulo e a aclamação de
Amador Bueno como espelho da realeza portuguesa. Revista de História, São
Paulo, n. 141, p. 21-44, 1999.
15
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. A família de Salvador Correia de Sá e Benevides.
In: ______. O trato dos viventes..., op. cit., p. 365-366; VALLADARES, Rafael. La
rebelión de Portugal..., op. cit., p. 84-85. Sobre Salvador Correia de Sá, vale a
pena voltar ao clássico de Boxer: BOXER, Charles R. Salvador de Sá and the
struggle for Brazil and Angola, 1602-1686. Londres: Athlone Press, 1952.

161
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Em Angola e na Guiné, regiões fundamentais para o fornecimento


de escravos, a notícia chegou com atraso, mas não impediu que D. João
fosse aclamado entre março e abril de 1641. A partir da África, esperava-
-se que a informação chegasse mais rapidamente ao Estado da Índia.
Em março foram enviados navios ao Oriente com as novas do reino.
Goa celebrou o reconhecimento do novo rei em 9 de setembro de 1641.
Em Macau, apesar de uma Aclamação em 1642, D. João foi obrigado a
administrar as especulações que apontavam para um possível acordo
entre os poderes locais e Filipe IV, o que ameaçaria toda a soberania lusa
na Ásia. De modo geral, as relações existentes entre Macau e as Filipinas
garantiriam uma passagem de governo repleta de incertezas. No Oriente,
tal como ocorreu com o próprio Maranhão, o início do novo regime
também foi contemporâneo das invasões holandesas, o que complicava
sobremaneira o cenário.16
Nas ilhas, sobretudo em Açores, o reconhecimento de D. João IV
tomou rumos mais belicistas em função da presença de tropas caste-
lhanas naquelas águas. Tal como se sabe, os galeões espanhóis também
utilizavam esta rota como passagem obrigatória no retorno da carrera.
Na ilha Terceira, as tropas espanholas resistiram cerca de um ano até
cederem ao domínio militar brigantino.17
As primeiras notícias seguras sobre a independência de Portugal
chegaram ao Estado do Maranhão com bastante atraso, nos últimos dias
do mês de maio. Os moradores tiveram pouco tempo para absorver a
novidade. A informação chega poucos meses antes do início da invasão
neerlandesa a São Luís, evento que a partir de então passaria a monopo-
lizar a atenção das autoridades e dos cronistas. Não por acaso, na História
de Portugal Restaurado, do conde de Ericeira, os fragmentos reservados ao
Maranhão não tratam praticamente da Aclamação em si, ou da recepção
à notícia, reservando bem mais espaço para a análise das consequências
da invasão holandesa.18

16
VALLADARES, Rafael. Castilla y Portugal en Asia (1580-1680): Declive imperial
y adaptación. Leuven: Leuven University Press, 2001, p. 65-91.
17
VALLADARES, Rafael, La rebelión de Portugal…, op. cit., p. 33-36.
18
MENEZES, Dom Luis de, Conde da Ericeyra. Historia de Portugal Restaurado.
Lisboa: Officina de João Galrão, 1679, Livro quinto, p. 301-303, Livro sexto,

162
o retorno do rei

Coube a Pedro Maciel Parente, sobrinho do governador do Estado,


Bento Maciel, a honra de informar aos moradores do Maranhão que
Portugal tinha novo rei. Pedro acabava de chegar do reino para assumir
a Capitania do Grão-Pará e, supostamente, estaria inteirado de certos
detalhes sobre o ocorrido em Lisboa. Se acreditarmos nas palavras do
cronista Berredo, sem “outra alguma dificuldade” os moradores da ci-
dade de São Luís reconheceram a legitimidade de D. João, e o nome do
antigo duque de Bragança teria sido jurado na Câmara em presença do
governador e de autoridades militares e religiosas. Segundo o mesmo
cronista, foi uma cerimônia rápida, reservada apenas às grandes figuras
da terra, embora os cronistas portugueses posteriores insistissem em
caracterizar como popular.19
A cidade de Belém, na Capitania do Grão-Pará, teria recebido a
mesma informação no dia 13 de junho de 1641. O próprio governador,
Bento Maciel Parente, enviou uma carta ao então capitão-mor, Francisco
Cordovil Camacho, este último cavaleiro do hábito de Cristo e que, como
muitos, devia seu ascenso às políticas do regime anterior. Na carta, Bento
Maciel faz questão de informar que a obediência ao novo rei havia sido
obtida sem perda de sangue, a exceção de D. Miguel de Vasconcelos,
e que a aclamação já se encontrava estendida por todo o reino. Assim,
segundo Bento Maciel, o duque de Bragança já era reconhecido como
soberano inclusive nas ilhas atlânticas, e o próprio juramento da Câmara
de São Luís teria imitado exatamente o estilo da aclamação produzida
em Cabo Verde.20

p. 370-372, Livro setimo, p. 443-448. t. I.


19
BERREDO, Bernardo Pereira de. Anais Históricos do Estado do Maranhão. São
Luís: Alumar, 1988, p. 192, § 756.
20
Berredo transcreve a carta que o governador enviou ao capitão-mor Francisco
Cordovil Camacho: “Foi Nosso Senhor servido dar-nos rei português, o qual
é D. João IV, duque que até agora foi de Bragança; está jurado, e obedecido
geralmente em todo reino de Portugal, e suas ilhas, sem custar sangue, nem
morte mais que a de Miguel de Vasconselos: foi uma resolução milagrosa;
guarde-no-lo Deus muitos anos. Veio com este aviso, e ordens meu sobrino
Pedro Maciel despachado para servir o governo dessa capitania: aqui o acla-
mamos por rei na Câmara, onde fui com os oficiais reais, e mais pessoas
nobres, e prelados das ordens; e fizemos o negócio com juramento, pelo

163
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Testemunha ocular, Manuel Guedes Aranha era alferes nesta época


e estava no comando de uma Companhia no dia em que a notícia chegou
à cidade de Belém. Segundo conta o alferes, a novidade da “feliz restitui-
ção” foi recebida sem tumultos, passando rapidamente ao cerimonial de
reconhecimento do novo monarca. Manuel Guedes garante ainda que a
aclamação teve um caráter popular, prova disso seria a reação dos soldados
da infantaria que saíram pelas ruas da cidade a gritar entusiasticamente
o nome de D. João.21 As autoridades locais não descuidaram de outras
formalidades condizentes com a ocasião. É possível, como indica João
Francisco Marques, que sermões fossem pronunciados no colégio jesuíta
de Nossa Senhora da Luz da cidade de São Luís, tal como ocorreu em
muitas outras partes. O ritual era uma demonstração da conformidade
entre as esferas política e religiosa, fundamental no discurso de afirmação
social da Restauração.22 No dia 6 de julho foram enviados dois navios ao
reino, que tinham como capitães Francisco de Oliveira e Duarte Leão, para
dar constância a Lisboa da obediência luso-maranhense ao novo Monarca.

estilo que se fez em Cabo verde, de que vai cópia para Vossas Mercês lá
seguirem o mesmo: temos feito muitas festas; Vossas Mercês assim lá o de-
vem fazer, porque foi obra milagrosa, como Vossas Mercês saberão de meu
sobrino quando lá for, e o termo e papéis, que se hão de fazer para irem a
Sua Majestade, hão de ser pelo estilo, de que vai a cópia autêntica, mudando
a substância da terra, e nomes das pessoas”. Ibidem, p. 192-193, § 758-759.
21
REQUERIMENTO do capitão Manuel Guedes Aranha para o rei [D. João IV],
a solicitar sua nomeação para o cargo de sargento-mor da capitania do
Pará, pelos serviços prestados ao longo da sua vida. 25 jan. 1655. Arquivo
Histórico Ultramarino, Pará (avulsos), cx. 2, doc. 89; CONSULTA do Conselho
Ultramarino para o rei D. João IV, sobre a pretensão dos capitães Manuel
Guedes Aranha, Gaspar Gonçalves Cardoso, Simão Faria e Jerónimo
de Abreu e Vale ao cargo de sargento-mor da capitania do Pará, vago por
falecimento de Pedro Correia. Lisboa, 26 abr.1655. Arquivo Histórico
Ultramarino, Pará (avulsos), cx. 2, doc. 92.
22
Na sua impressionante cartografia dos sermões da Restauração, Marques
indica dois pronunciados no colégio dos jesuítas de São Luís. MARQUES,
João Francisco. A parenética portuguesa e a Restauração, 1640-1668: A re-
volta e a mentalidade. Porto: Instituto Nacional de Investigação Científica;
Universidade do Porto, 1989, p. 86. v. 1.

164
o retorno do rei

De modo geral, a versão que resumimos anteriormente é muito


mais baseada nos cronistas setecentistas, sobretudo Berredo. Com efeito,
a história da Aclamação brigantina no Maranhão possui lacunas nem
sempre esclarecidas pelas fontes coevas disponíveis. Não sabemos, por
exemplo, o que ocorreu com os espanhóis que estavam no Maranhão
nesta época. Também não há muitos detalhes a respeito da reação ime-
diata dos oficiais do Senado da Câmara das cidades de São Luís e Belém.
Infelizmente, os livros da Câmara que sobreviveram ao ataque holandês
são posteriores a 1646, de modo que não consta neles o juramento da
Aclamação de D. João. Assim, ainda faltam muitas perguntas por res-
ponder acerca do impacto do 1º de dezembro nessas terras.23
A Restauração Portuguesa no Maranhão deverá ser analisada a
partir dos vários interesses e projetos que já estavam em disputa no
tempo dos Filipes. Nesse sentido, os diversos grupos que formavam esta
sociedade, que incluíam portugueses brancos, mestiços pobres, índios
aliados, índios principais, missionários e, inclusive, “estrangeiros” (não
portugueses e não espanhóis), responderam de formas diferentes às
demandas da mudança de regime. Em muitos casos, houve perdas e
ganhos com o novo cenário.

Perdas e Ganhos
Não há dúvidas de que alguns colheram benefícios imediatos com
a ascensão de D. João IV. A boa acolhida ao novo governo não deixou
de ser lembrada nos processos de habilitação para as Ordens Militares,
o que demonstra mais uma vez a grande preocupação que existia a
respeito da adesão das conquistas ultramarinas. Em 1650, Aires de
Sousa Chichorro, capitão-mor do Grão-Pará, recebeu a promessa real do

23
Sobre a Câmara de São Luís e seu papel na conquista do Maranhão, ver:
CORRÊA, Helidacy Maria Muniz. Para aumento da conquista e bom governo dos
moradores: O papel da Câmara de São Luís na conquista, defesa e organização do
território do Maranhão (1615-1668). Niterói, 2011. 300 f. Tese (Doutorado em
História Social) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade
Federal Fluminense.

165
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

hábito de Cristo pelos serviços prestados no combate aos holandeses e


ingleses no Maranhão, mas também em função de seu comportamento
considerado exemplar, em 1641, “mostrando com a nova da Aclamação
que chegou aquelas partesgrande contentamento e zelo”.24 Quatro anos
depois, outro conhecido oficial luso-maranhense recebeu uma honra pa-
recida. Era Manuel Guedes Aranha, a quem o rei mandou lançar o hábito
de Santiago entre outras coisas por ser “das pessoas que daquelas partes
com maior zelo e contentamento celebraram a nova da aclamação”.25
Sabe-se que o tópos da fidelidade ao novo monarca estaria presente,
durante muito tempo, também no imaginário nativista pernambucano.
Com efeito, as crônicas do século XVIII reforçariam a versão segundo a
qual a Restauração Pernambucana (aos holandeses) havia sido um des-
dobramento dos acontecimentos da Restauração Bragantina. Assim, os
insurgentes foram, supostamente, incentivados a lutar contra o batavo
invasor por lealdade a D. João IV, e com o intuito de devolver os territórios
tomados ao seu monarca natural.26
O elogio à Aclamação passou a ser mais uma das fórmulas retóricas
utilizadas na petição de cargos e mercês. Em 1644, na apresentação de
nomes para ocupar o lugar de sargento-mor do Maranhão, Jerónimo de
Sousa Santiago alegou merecer o cargo por ter tido o valor de navegar
pelos rios da Guiné, em fevereiro de 1641, arriscando a própria vida para
avisar a Cacheu de que Portugal tinha novo rei.27 Anos depois, ocorreu o
mesmo a Luís de Magalhães, que foi governador do Estado do Maranhão

24
AYREZ de Souza Chichorro. Lisboa, 7 dez. 1650. Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, Mesa da Consciência e Ordens (consultas). Registro Geral de
Mercês (Portarias do Reino), livro II, flº 318.
25
M.el GUEDES Aranha. Alcântara, 6 jul. 1654. Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, Mesa da Consciência e Ordens (consultas). Registro Geral de
Mercês (Portarias do Reino, Consultas), livro III, flº 56v-57.
26
MELLO, Evaldo Cabral de. Rubro Veio: O imaginário da restauração pernam-
bucana. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1997, p. 119-121.
27
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João IV, sobre a nomeação de
pessoas para o cargo de sargento-mor do Estado do Maranhão. Lisboa, 28 abr.
1646. Arquivo Histórico Ultramarino, Maranhão (avulsos), cx. 2, doc. 193.

166
o retorno do rei

entre 1649 e 1652. Quando ainda era candidato à sucessão de Francisco


Coelho de Carvalho, o capitão Magalhães foi considerado pelo Conselho
Ultramarino como a melhor escolha por ter, segundo dizem: “conseguido
o merecimento de haver aclamado a Vossa Majestade com zelo de bom
e verdadeiro português”.28
Entretanto, os meses subsequentes à Aclamação de D. João IV não
transcorreram livres de dúvidas, mal-entendidos e confusões próprias
de uma troca tão repentina de poder. Para complicar mais a situação,
estavam aqueles que obtiveram certas vantagens políticas no regime
anterior. No caso do Maranhão, estava claro que uma das famílias mais
prejudicadas poderia ser a Albuquerque Coelho, concretamente a rama
pernambucana que passou ao governo maranhense e que tinha o seu
próprio nome estreitamente relacionado com a nova conquista. De fato, os
ganhos que esta família acumulou durante o período filipino colocariam
seus representantes rapidamente no ponto de mira dos brigantinos mais
exaltados. Um bom exemplo foi o mesmíssimo Matias de Albuquerque,
acusado em 1641 de participar na conspiração do marquês de Vila Real
contra D. João IV, depois inocentado no mesmo processo.29 Por outro
lado, foi exatamente a forte presença desta família na luta contra os
holandeses que garantiu a renovação das mercês durante o governo dos
primeiros Bragança, coisa evidente em qualquer consulta de habilitações
para Ordens Militares entre as décadas de 1640 e 1650.
Para os emergentes comerciantes luso-maranhenses que frequen-
tavam muitas vezes a mesma rota de regresso dos galeões espanhóis, a
Restauração também trouxe alguns inconvenientes. Em outras partes da
Monarquia foram, exatamente, os negociantes os indivíduos que mais

28
CONSULTA do Conselho Ultramarino ao rei D. João IV, sobre a nomeação de
pessoas para o governo do Estado do Maranhão, após a morte do governador
do dito Estado, Francisco Coelho de Carvalho. Lisboa, 9 jun. 1648. Arquivo
Histórico Ultramarino, Maranhão (avulsos), cx 3, doc. 255.
29
MENEZES, Dom Luis de, Conde da Ericeyra, op. cit., Libro Quinto, p. 272.
Sobre a conspiração de 1641, ver: WAGNER, Mafalda de Noronha. A casa de
Vila Real e a conspiração de 1641 contra D. João IV. Lisboa: Edições Colibri,
2007.

167
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

problemas acumularam com a repentina rebelião lusa. Estes homens de


negócio passam a sofrer com a desconfiança das duas partes, considerados
muitas vezes como agentes infiltrados, perigosos por serem indivíduos
que naturalmente circulavam entre os dois reinos.30 Um bom exemplo
foi o que ocorreu com dois comerciantes que voltavam do Maranhão em
direção ao reino, ainda em 1641. Jorge Franco Barbudo e Pedro Lopes
Cabral tiveram a embarcação em que viajavam confiscada por um dos
galeões da frota espanhola, na viagem de retorno. Questionados por
um capitão espanhol sobre a “rebelião”, os dois portugueses afirmaram
não terem notícia alguma sobre o tema argumentando que o Estado do
Maranhão recebia poucas informações da Europa. Ainda que jurassem
fidelidade a Filipe IV, o navio dos dois portugueses foi embargado em
Cádis e sobre ele foi realizado um inventário de bens, iniciando então
um longo processo. O caso foi tratado pela recém-formada “Junta de
Inteligencias del Reino de Portugal”.31 Esta Junta foi criada no mesmo
contexto da fundação de outros órgãos que, a partir de 1639, deveriam
substituir o Consejo de Portugal. Em 1641, a chamada Junta de Inteligências
passa a dedicar-se, em Madri, às ajudas financeiras aos portugueses
residentes na Espanha.32

30
VALLADARES, Rafael. El Brasil y las Indias españolas durante la sublevación
de Portugal (1640-1668). Cuadernos de Historia Moderna, n. 14, p. 161, 1993;
CARDIM, Pedro. O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e
os primeiros Bragança. Hispania, v. LXIV/1, n. 216, p. 139, jan.-abr. 2004.
31
JUNTA de Inteligencias del Reyno de Portugal, 1641-1642. Madrid, abr.
[1642?]. Archivo General de Simancas, Estado (Portugal), leg. 7041.
32
BOUZA ÁLVAREZ, Fernando Jesús. Portugal no tempo dos Filipes: política,
cultura, representações (1580-1668). Lisboa: Edições Cosmos, 2000, p. 188-
-189; LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de. La pervivencia del Consejo de Portugal
durante la Restauración: 1640-1668. Norba – Revista de Historia, n. 8-9,
p. 61-86, 1987-1988. Na mesma época, era estimado o número de cerca
de 2000 negociantes de origem portuguesa apenas na cidade de Sevilha,
um grupo que havia prosperado, sobretudo, no governo do Conde-Duque.
Ver: LUXÁN MELÉNDEZ, Santiago de. A Colónia portuguesa de Sevilha. Uma
ameaça entre a Restauração Portuguesa e a conjuntura de Medina Sidónia?
Penélope – Fazer e Desfazer a História, n. 9-10, p. 127-134, 1993; BOUZA
ÁLVAREZ, Fernando Jesús. Entre dos Reinos, una patria rebelde: fidalgos por-

168
o retorno do rei

Os espanhóis residentes no Maranhão tiveram igualmente seus


contratempos. Foi o caso dos religiosos que viviam nestas terras, resultado
de um intercâmbio missionário que estava apenas começando nos últi-
mos anos do período Habsburgo. Tudo teve início com a famosa jornada
de Pedro Teixeira (1637-1639). Na viagem de regresso de Quito, o capitão
Teixeira levou ao Grão-Pará dois jesuítas espanhóis, Cristóbal de Acuña
e André Artieda, e mais quatro mercedários da mesma nação, frei Pedro
de La Rua Cirne, frei Juan de la Merced, frei Diego da “Conceição” e Frei
Afonso de Armijo. Estes mercedários prosperaram em pouco tempo,
com as doações feitas pelos moradores do Estado, e chegaram a construir
dois conventos, um na Capitania do Maranhão e outro no Grão-Pará.
Com grande eficiência, os religiosos espanhóis teceram uma rede de
alianças com os habitantes da região, especializando-se no ensino aos
filhos das autoridades, mas também aos moradores pobres. Logo após a
Restauração, tem início um curioso processo para expulsá-los do Estado
do Maranhão. A pugna não foi iniciada pelos moradores, que já eram alia-
dos dos frades, mas pelos padres da Nossa Senhora da Trindade do reino
de Portugal, religiosos que nunca pisaram em terras maranhenses. Entre
1645 e 1646, os padres tridentinos levantaram sérias dúvidas a respeito da
lealdade dos religiosos castelhanos, chegando mesmo a solicitar a D. João
IV a expulsão da Ordem mercedária e o confisco de todos os seus bens,
incluindo os conventos.33 Ao final da querela, os mercedários acabaram
obtendo nova permissão real para seguir com o serviço apostólico na
região, sob a condição de que não receberiam novos frades espanhóis.34

tugueses en la Monarquía Hispánica después de 1640. Estudis – Revista de


Historia Moderna, n. 20, p. 83-103, 1994.
33
Ao que parece, a rede de alianças construída pelos mercedários espanhóis,
que incluía também outras Ordens religiosas da região, foi suficiente para
garantir a permanência dos frades, ao mesmo tempo em que as dúvidas a
respeito da lealdade ao novo monarca perdiam, pouco a pouco, sua força
retórica. Conto esta história com mais detalhes em: CARDOZO, Alírio. Sacras
intrigas: conflitos entre ordens religiosas no Maranhão e Grão-Pará (século
XVII). Revista Estudos Amazônicos, v. III, n. 1, p. 11-38, 2008.
34
Ver: CONSULTA do Conselho Ultramarino para o rei D. João IV, sobre os
requerimentos dos religiosos de Nossa Senhora das Mercês de Castela,

169
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Outra questão importante que deveria ser administrada pelo novo


rei era o desenvolvimento da guerra aos holandeses.35 No que concerne
ao conflito, o governo de D. João IV tomou decisões que não agradaram
a todos os vassalos do ultramar. Neste sentido, a trégua com os Países
Baixos, em 1641, causou mais de um embaraço importante.36 Na opinião
de Martim Soares Moreno e de André Vidal de Negreiros, líderes militares
envolvidos numa insurreição que não contava oficialmente com o apoio
do novo soberano, mais preocupado com as suas tropas na fronteira luso-
-espanhola, as ordens de desmobilização do exército em Pernambuco só
favoreceriam aos batavos. Uma prova disso seria exatamente a tomada
do Maranhão, logo após a assinatura da trégua, em 1641. Como se sabe,
as autoridades lusas que apoiavam a insurreição pernambucana integra-
vam uma facção política que começava a ser conhecida no reino como os
“valentões de Portugal”, formada por indivíduos contrários a qualquer
concessão aos holandeses.37

provenientes da província de Quito, em que pedem licença para residir no


convento da Santíssima Trindade, na cidade de Belém do Pará, durante a sua
viagem pelo rio das Amazonas, apesar da oposição dos religiosos tridentinos,
que alegam que os primeiros tinham sentenças apostólicas contrárias ao
pretendido. Lisboa, 24 jul. 1646. Arquivo Histórico Ultramarino, Pará
(avulsos), cx. 1, doc. 61; CONSULTA do Conselho Ultramarino para o rei D.
João IV, sobre o requerimento do comissário geral da Ordem de Nossa
Senhora das Mercês do Convento do Pará, padre fr. Pedro da Rua Cirne,
que solicitava ajudas de custo e concessão de passagem para os religiosos
da daquela Ordem que pretendiam seguir para a capitania do Pará. Lisboa,
3 set. 1646. Arquivo Histórico Ultramarino, Pará (avulsos), cx. 1, doc. 62.
35
Para um estudo sobre o impacto da guerra no mundo luso-brasileiro, ver:
SANTOS PÉREZ, José Manuel; SOUZA, George F. Cabral de (Org.). El Desafío
Holandés al dominio Ibérico en Brasil en el siglo XVII. Salamanca: Universidad
de Salamanca, 2006.
36
CESAR, Thiago Groh de Mello. A política externa de D. João IV e o Padre
Antonio Vieira: as negociações com os Países Baixos (1641-1648). Niterói, 2011.
152 f. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas
e Filosofia, Universidade Federal Fluminense, p. 73.
37
MELLO, Evaldo Cabral de. O Negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o
Nordeste. 1641-1669. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1998, p. 35-36.

170
o retorno do rei

Sabe-se também que, após a expulsão dos neerlandeses da ilha de


São Luís, em 1644, muitos militares luso-maranhenses prestaram auxílio
à insurreição pernambucana, iniciada com as alterações de junho de
1645. Numa carta enviada ao governador António Teles da Silva, assinada
por Martim Soares Moreno e André Vidal de Negreiros, ficava patente o
desagrado dos soldados com aquilo que poderia ser interpretado como
um sinal de debilidade do novo monarca: “Senhor, desengana-se Vossa
Senhoria que o poder e indústria do Mundo todo não há de persuadir estes
homens a que se fiem dos Holandeses”. Em outro trecho, os perigos desta
decisão sobre o ânimo da tropa ficavam mais evidentes ainda: “e estamos
com suspeitas de que estes homens depois que viram estas ordens de
Vossa Senhoria tem mandado pedir socorro a algum Príncipe Católico”.38
Retomava-se, assim, a memória dos primeiros tempos da “Guerra do
Brasil”, que contava com o apoio de Filipe IV na mobilização de tropas
castelhanas e napolitanas em Pernambuco. Evidentemente, este não era
um legado fácil de administrar nos primeiros anos do governo de D. João
IV. Apesar disso, o próprio Maranhão seria beneficiado com o envio de
armas e bastimentos nas décadas de 1640 e 1650, o que demonstra a
ambiguidade com que o Bragança considerou a função estratégica das
rebeliões luso-americanas.39
Neste debate, ganhava cada vez mais importância a opinião de
um religioso que dez anos mais tarde seria um dos moradores mais
famosos do Estado do Maranhão: o padre António Vieira. Bem antes
de 1653, início da atividade missionária do padre Vieira na região, este

38
CARTA dos Mestres de Campo Martim Soares Moreno e André Vidal de
Negreiros expondo a Antonio Telles da Silva as disposições em que es-
tão os soldados e moradores de Pernambuco de proseguir na guerra com
a Holanda. Pernambuco, 28 maio 1646. Biblioteca Nacional de Portugal,
Reservados, códice 7163. Publicado em: STUDART, Barão de. Documentos
para a História do Brasil, especialmente para a do Ceará. Revista do Instituto
do Ceará, doc. 248, p. 286, 1920.
39
É verossímil pensar, como interpretou Evaldo Cabral, que D. João esti-
vesse jogando com os dois cenários, de modo que a própria Insurreição
Pernambucana forçaria os Países Baixos a uma negociação mais favorável a
Portugal. MELLO, Evaldo Cabral de, O Negócio do Brasil, op. cit., p. 43 e 65.

171
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

religioso já tinha planos sobre a inserção do Maranhão e Grão-Pará no


novo governo brigantino.

Planos de António Vieira

Do ponto de vista político, não há motivos para pensar que Vieira


tivesse qualquer projeto universal para o império, embora acreditasse na
existência de um. Apesar dos seus escritos providencialistas, ainda que
tardios, e de seu esforço por descerrar o porvir da cristandade lusa, tal
projeto não dependia em nada dele, senão Daquele.40 Não há dúvidas de
que Vieira acreditava em projetos universais e no estreito vínculo entre
religião e devir político. Isto explica porque, nas vésperas da Restauração,
Vieira manifestava certo entusiasmo com o universalismo da Monarquia
Hispânica.41
Parece irônico que o universalismo vieiriano tenha atingido
um momento de inflexão, com escrita da famosa carta “esperanças de
Portugal”, em pleno coração da floresta amazônica, uma parte do império
tão diferente das Cortes europeias já familiares ao jesuíta.42 Entretanto,

40
Sobre o tema, vale a pena ver: HANSEN, João Adolfo. Vieira: tempo, alegoria e
história. Brotéria, v. 145, p. 541-556, 1997.
41
CARDIM, Pedro; SABATINI, Gaetano. António Vieira e o universalismo dos
séculos XVI e XVII. In: ______.; ______. (Ed.). António Vieira, Roma e o
universalismo das monarquias portuguesa e espanhola. Lisboa: Centro de
História de Além-Mar; Universidade Nova de Lisboa; Universidade dos
Açores; Università Degli Studi Roma Tre; Red Columnaria, 2011, p. 13-27.
42
Como se sabe, a famosa carta foi o eixo a partir do qual a Inquisição de
Coimbra reiniciou o processo contra Vieira. Ver: ESPERANÇAS de Portugal//
Quinto Imperio do Mundo// Primeira e segunda vida de El Rey D. João o
quarto escriptas Por Gonçalo Annes Bandarra, e comentadas pello Padre
Antonio Vieyra da Companhia de Jesus remetidas pello dito padre ao bispo
de Japam o padre Antonio Fernandes. Camutá do Rio das Amazonas vinte
e nove de abril de 1659 annos//O Padre Antonio Vieyra da Companhia de
Jesuz. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Casa de Palmela, livro 98,
flº 98-140v.

172
o retorno do rei

é possível dizer que o alcance do providencialismo vieiriano incluía


também o Maranhão. Algo não muito comentado pela historiografia,
e pela fortuna crítica de António Viera, o interesse do famoso jesuíta
pelas terras do Maranhão é bem anterior à sua chegada a São Luís, em
1653. Vieira, de fato, faz diversas referências à região nos documentos
produzidos durante a movimentada década de 1640, com as conturbadas
e improfícuas negociações com os holandeses. Seus escritos anteriores
a 1653 não tratam, ainda, especificamente do problema da liberdade do
índio, mas sobre o papel que jogaria o Maranhão na nova conjuntura.
Vieira participou ativamente do esforço diplomático português no
pós-Restauração, momento em que D. João IV enviou seus representantes
a várias partes da Europa, desesperado por apoio militar e reconhecimento
político.43 Nessa época, a situação do Brasil Holandês estava longe de
uma solução vantajosa para Portugal. A própria trégua assinada em 12
de junho de 1641, entre Portugal e as Províncias Unidas, intermediada
pelo embaixador Tristão de Mendonça Furtado, não garantia claramente
uma futura devolução dos territórios do Brasil, tema que aos poucos
tornar-se-ia tabu para os neerlandeses.44 Os detalhes de uma futura paz
seriam negociados apenas em Vestfália, mas as opções do novo soberano
de resolver a crise sem grandes despesas eram cada vez menores.
A partir de 1645, a crise tornou-se mais interessante ainda. Duas
novidades deveriam ser levadas em consideração em qualquer tentativa
de negociação com os holandeses: em primeiro lugar, o Maranhão não
era mais território batavo; em segundo lugar, teve início a Insurreição
Pernambucana contra os Países Baixos, que também contaria com o
apoio de militares luso-maranhenses. Ainda assim, o ciclo de negocia-
ções diplomáticas na Europa não cessou, e as propostas sobre o que

43
CARDIM, Pedro. Entre Paris e Amsterdão: António Vieira, legado de D. João
IV no Norte da Europa (1646-1648). Oceanos, n. 30-31, p. 134-154, set. 1997;
CESAR, Thiago Groh de Mello, op. cit.
44
MELLO, Evaldo Cabral de, O Negócio do Brasil, op. cit., p. 31-33; VAINFAS,
Ronaldo. Guerra declarada e paz fingida na Restauração Portuguesa. Tempo,
v. 14, n. 27, p. 82-100, 2009; CESAR, Thiago Groh de Mello, op. cit., p. 65-70.

173
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

fazer com o Brasil Holandês continuavam a chegar aos ouvidos de um


indeciso D. João IV.
Algumas destas propostas incluíam sugestivas referências ao
extremo Norte da América portuguesa. Numa das cartas escritas em
Haia ao marquês de Niza, D. Vasco Luís da Gama, Vieira comenta que o
Maranhão poderia ser bastante útil no prolongamento da guerra contra
Castela. De acordo com o jesuíta, com o apoio da França, Portugal po-
deria ameaçar Espanha no seu bem mais precioso, o comércio da prata
através do Peru e da Nova Espanha. Segundo esta hipótese, o Maranhão
seria a região mais adequada para o envio de socorro militar, em função
da facilidade de navegação para as Índias de Castela. Não por acaso, em
Sevilha, desde o início da rebelião lusa, existia o temor de que portugueses
pudessem organizar ataques à frota da prata na saída de Cartagena de
Índias.45 Por outro lado, estava claro que, em consonância com outros
agentes diplomáticos brigantinos, o próprio Vieira não confiava no apoio
francês e lembrava convenientemente das tentativas passadas de ocupação
das capitanias do Rio de Janeiro e do Maranhão.46
Vieira tinha consciência de que o Maranhão pertencia a outra zona
da navegação oceânica, diferente daquela do Brasil. Para o jesuíta, estas
condições naturais deveriam ser, com o tempo, devidamente exploradas.
Em caso de não existir a possibilidade de intercâmbio com as Índias espa-
nholas, enquanto durasse a Guerra de Restauração, Vieira sabia que outras
rotas deveriam ser incentivadas. Em outra proposta sobre a utilização do
capital cristão-novo, o jesuíta defende que a navegação atlântica portu-
guesa deve adaptar-se às diferenças entre as macrorregiões americanas.
Na linha Norte-Sul, navegariam embarcações de grande porte, ligando
Índia, Brasil e Angola; e na linha Leste-Oeste, navegariam caravelas
que pudessem interligar as regiões de São Tomé, Cabo Verde, Açores,

45
SCHWARTZ, Stuart B. Prata, açúcar e escravos: de como o império restaurou
Portugal. Tempo, v. 12, n. 24, p. 212, 2008.
46
AO MARQUÊS de Nisa. Haia, 20 jan. 1648. In: VIEIRA, António. Cartas do Padre
António Vieira. Coordenadas e anotadas por João Lúcio de Azevedo. Lisboa:
Imprensa Nacional, 1970, p. 129-130. t. I.

174
o retorno do rei

Madeira e Maranhão.47 O jesuíta também deveria estar bem informado


sobre o perfil das embarcações que navegavam para o Maranhão, e sua
necessidade constante de fazer a transição entre o mar e os braços de
rio. Esta informação, aliás, já constava das cartas e memoriais de outro
companheiro jesuíta, o padre Luís Figueira.48
O eixo Andes-Maranhão também não foi descartado por António
Vieira como possibilidade futura. No parecer em que defendeu a compra
do Brasil, Angola e Guiné aos holandeses existem referências à possibili-
dade de exploração deste caminho, segundo os novos interesses em jogo.
A história do parecer de 1647 é bem conhecida. Para Vieira, a melhor
forma de resolver o impasse com os holandeses seria a compra, por cerca
de três milhões de cruzados, de todas as praças ocupadas pelos batavos no
Atlântico português. Esta negociação deveria incluir um gordo suborno
aos conselheiros das Províncias Unidas, “comprar as vontades e juízos”,
antes de comprar as terras, foi o argumento usado pelo famoso padre.
Segundo ele, uma das consequências desta negociação seria “o cresci-
mento do Maranhão” que passaria a ser, num contexto de paz, uma escala
obrigatória “onde os castelhanos ou outras nações amigas ou neutrais,
possam ir comprar negros e navegá-los”, pagando os impostos devidos
ao rei de Portugal.49 Assim, o Maranhão seria finalmente convertido em
porto de livre navegação entre as Índias ocidentais e a Europa, legalizando
atividades que já eram desenvolvidas ali desde o final do século XVI, isto
sim, na forma de contrabando e pirataria.

47
RAZÕES apontadas a El-Rei D. João IV a favor dos Cristãos-Novos, para se lhes
haver de perdoar a confiscação de seus bens, que entrassem no comércio
deste Reino. In: VIEIRA, Padre António. Obras escolhidas. Lisboa: Sá da Costa,
1951, p. 70. v. IV.
48
Ver CARDOSO, Alírio; CHAMBOULEYRON, Rafael. Fronteiras da Cristandade:
Relatos jesuíticos no Maranhão e Grão-Pará (século XVII). In: PRIORE,
Mary Del; GOMES, Flávio (Org.). Os Senhores dos Rios: Amazônia, Margens e
História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003, p. 33-60.
49
PARECER sobre se Restaurar Pernambuco e se Comprar aos Holandeses, Ano
1647. Lisboa, 14 mar. 1647. VIEIRA, Padre António, Obras escolhidas, op. cit.,
p. 11. v. III.

175
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Com relação ao Portugal rebelde, o cenário para o ano de 1648 não


era promissor. Havia poucas alternativas postas na mesa, pioradas com a
evidente fragilidade lusa no Congresso de Münster, ocasião em que ficou
patente a ambiguidade do apoio francês.50 Foi exatamente neste contexto
que o Norte da América lusa passou a integrar algumas propostas menos
ortodoxas. No final de 1648, o jesuíta escreve seu famoso parecer em que
defendeu a necessidade de renunciar ao Brasil holandês para renunciar à
guerra. Chamado de Papel Forte, a proposição impressa neste documento
é hoje bem conhecida: fazer cessar a Insurreição Pernambucana, que
aliás nunca contou com o apoio explícito do soberano, e transferir os
luso-pernambucanos com seus escravos e fazendas para outras praças
do Brasil, principalmente Bahia e Rio de Janeiro. Na defesa de uma tão
controvertida proposta, Vieira lembra que os próprios castelhanos, por
absoluta necessidade, tinham feito exatamente o mesmo com seus ter-
ritórios nos Países Baixos.
Na verdade, a proposta nem era tão nova. Sabe-se que, logo após
o 1º de dezembro, o Conde-Duque teria oferecido às Províncias Unidas o
reconhecimento do Brasil holandês, do Ceará ao rio São Francisco, como
estratégia para isolar D. João IV, privando-o desta última cartada num
possível acordo com os holandeses.51 Para Vieira, existiriam poucos incon-
venientes na entrega do Brasil aos holandeses. Os assuntos da fé não eram
entraves, pois em Pernambuco, segundo o jesuíta, “não há conversão de
gentios”. Os portugueses não entregariam ricas terras aos batavos, pois
aquilo que os holandeses tomaram florescente, com engenhos e escravos,
agora estaria quase em ruínas por dívidas e pelo declínio do comércio
açucareiro. No final das contas, os batavos nem mesmo contariam com
escravos de Angola, recuperada pelos portugueses em 1648.52

50
CARDIM, Pedro. Os “Rebeldes de Portugal” no Congresso de Münster (1644-
-1648). Penélope – Fazer e Desfazer a História, n. 19-20, p. 101-128, 1998.
51
MELLO, Evaldo Cabral de, O Negócio do Brasil, op. cit., p. 29.
52
PAPEL a Favor da Entrega de Pernambuco aos Holandeses, 1648. VIEIRA,
Padre António, Obras escolhidas, op. cit., p. 29-113. v. III. Sobre a recupera-
ção de Angola e o Rio de Janeiro na união dinástica, ver: SANTOS PÉREZ, José
Manuel. Brasil durante la Unión Ibérica. Algunas notas sobre el intercambio

176
o retorno do rei

É verdade que no Papel Forte pouco se fala especificamente do


Maranhão, o alcance verdadeiramente global que ganha o documento
não o permite. Contudo, tal como se apresentava a proposta, estava
claro que a América portuguesa seria integrada, ao final, por Maranhão,
Grão-Pará, costa do cabo de Santo Agostinho, uma parte de Sergipe,
mais Bahia, Rio de Janeiro, São Vicente e as demais Capitanias do Sul.
Nesta suposta configuração, fazenda, população e cabedal redistribuídos
a partir de Pernambuco deveriam ser reinvestidos na defesa marítima
e na fortificação da costa. Neste quadro hipotético, o extremo Norte da
América lusa seria beneficiado, pois, segundo Vieira:

O Maranhão em que (segundo se diz) há tantos tesouros encober-


tos, e cujas drogas novas vão já cheirando aos estrangeiros, não
têm mais que setenta soldados; os moradores em todo o distrito
serão quatrocentos.53

Para o jesuíta, com esta nova configuração espacial, Portugal pode-


ria investir melhor na capacidade de intercâmbio e circulação marítima
de algumas de suas regiões, francamente São Paulo e o rio Amazonas.
A teoria era: separar para unir melhor.54
Evidentemente, esta “história do futuro” nunca se concretizou,
e a solução mais improvável na perspectiva de Vieira, o prolongamento
da Insurreição Pernambucana, acabou dando boa conta dos holandeses

cultural entre las dos orillas del Atlántico. In: MONTEJO NAVAS, Adolfo et
al. Brasil e Espanha: diálogos culturais [España y Brasil: diálogos culturales].
São Paulo: Fundação Cultural Hispano-Brasileira, 2006, p. 49-80; SANTOS
PÉREZ, José Manuel. La historia de la Unión Ibérica y su importancia en las
relaciones España-Brasil: viejos asuntos, nuevas (y buenas) noticias. Revista
de Cultura Brasileña, n. 3, p. 125-142, mar. 2005; SANTOS PÉREZ, José Manuel.
São Sebastião do Rio de Janeiro durante la Unión Ibérica, 1580-1640. Los
años cruciales. In: BRUNETTO, Carlos Javier Castro (Ed.). Río de Janeiro,
Estética de una ciudad. Santa Cruz de Tenerife: Oristán y Gociano editores,
2008, p. 51-66.
53
PAPEL a Favor da Entrega de Pernambuco aos Holandeses, 1648. VIEIRA,
Padre António, Obras escolhidas, op. cit., p. 87. v. III.
54
Ibidem, p. 105-106.

177
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

no Brasil. Entretanto, o Papel Forte ainda que claramente debilitado


no seu argumento fundamental, em função dos acontecimentos em
Pernambuco, deu margem à criação, em 6 de fevereiro de 1649, dia do
aniversário do jesuíta, da Companhia Geral de Comércio do Brasil, que
abria espaço finalmente ao capital cristão-novo. Esta foi considerada uma
vitória pessoal de Vieira frente aos seus principais inimigos, incluindo a
Inquisição portuguesa, esta última considerada uma instituição perigo-
samente próxima de interesses filipistas.55

Conclusão: Monarquia Hispânica e expansão para Oeste

Não são poucos os testemunhos do período que sugerem que, no


que concerne a certas práticas, não houve nenhuma grande mudança
nos primeiros anos do novo governo. Ao contrário, em muitos aspectos
D. João IV parece ter seguido exatamente o mesmo roteiro deixado pelo
regime anterior. O novo rei não hesitou em seguir, por exemplo, a mesma
política fiscal dos últimos dois Filipes, agravada pela situação de guerra.56
Ao mesmo tempo, como sugere Schwartz, o suposto entusiasmo popu-
lar com relação à Restauração nunca passou no teste dos impopulares
recrutamentos militares brigantinos.57
No caso do Maranhão, é possível dizer que as políticas brigantinas
mais significativas já estavam em curso no período filipino. Em concreto,
quatro políticas que já ganhavam destaque pouco antes da rebelião de
Portugal foram mantidas ou ocasionalmente ampliadas no reinado de
D. João IV: 1. A expansão civil-militar para zonas do sertão Ocidental; 2.
A doação de sesmarias a particulares como fórmula para defesa e cres-

55
CESAR, Thiago Groh de Mello, op. cit., p. 118-119; VALLADARES, Rafael, La
rebelión de Portugal…, op. cit., p. 75.
56
CARDIM, Pedro. O governo e a administração do Brasil sob os Habsburgo e os
primeiros Bragança. Hispania, v. LXIV/1, n. 216, p. 150, jan.-abr. 2004.
57
SCHWARTZ, Stuart B., Prata, açúcar e escravos: de como o império restaurou
Portugal, op. cit., p. 201-223.

178
o retorno do rei

cimento econômico;58 3. O reforço da estratégia de reconhecimento das


autoridades indígenas; 4. A construção de mecanismos de controle sobre
o trabalho nativo, com inserção da autoridade missionária. Em geral, do
ponto de vista administrativo o novo governo inovou pouco, ao menos
nos primeiros anos. A criação do Conselho de Guerra, por exemplo, era
praticamente inevitável no contexto do conflito hispano-luso. E o próprio
Conselho Ultramarino era, como é bem sabido, herdeiro direto do velho
Conselho da Índia (1604-1614), de vida curta durante o período filipino.59
No Maranhão, é bem verdade, surgiu uma efêmera inovação. Em
1652, as duas capitanias reais, Maranhão e Grão-Pará, foram divididas
em dois governos autônomos. A mudança produziu pouco efeito práti-
co e tinha alguns opositores de peso. Pouco tempo depois, em 1654, as
duas capitanias voltariam à velha fórmula de um só Estado cuja cabeça
continuava a ser a cidade-ilha de São Luís.60 Esta tentativa de divisão juris-
dicional nem mesmo pode ser considerada uma fórmula legitimamente
brigantina. Durante quase todo o reinado de Filipe III, as duas capitanias
também estavam divididas, modelo de administração que durou na prá-
tica até a chegada do novo governador, Francisco Coelho de Carvalho,
em 1626. Além disso, não se pode esquecer que, virtualmente, as duas
capitanias já formavam dois governos separados durante o período do
Maranhão holandês.

58
Sobre as estratégias econômicas posteriores a 1640, ver: CHAMBOULEYRON,
Rafael. Povoamento, ocupação e agricultura na Amazônia colonial (1640-1706).
Belém: Editora Açaí, 2010.
59
BARROS, Edval de Souza. Negócios de tanta importância: O Conselho
Ultramarino e a disputa pela condução da guerra no Atlântico e no Índico
(1643-1661). Lisboa: Universidade Nova de Lisboa; Cham, 2008, p. 28.
Ver também: MARQUES, Guida. L’Invention du Brésil entre deux monarchies.
Gouvernement et pratiques politiques de l’Amérique portugaise dans l’union
ibérique (1580-1640). Paris, 2009. 523 f. Tese (Doutorado em História e
Civilizações) – École des Hautes Études en Sciences Sociales, p. 257-267.
60
SAMPAIO, Patrícia Melo. Administração Colonial e legislação indigenis-
ta na Amazônia Portuguesa. In: PRIORE, Mary Del; GOMES, Flávio, op. cit.,
p. 123-139.

179
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Qual foi, então, o impacto da Restauração? Esta não é uma per-


gunta fácil de responder à luz da documentação disponível. No caso do
Maranhão, será necessário analisar de que forma os seus moradores
comparavam a nova situação política com a memória recente dos dois
últimos soberanos. Afinal de contas, Filipe III era o rei da conquista aos
franceses, em 1615, responsável pela primeira distribuição de recompensas
aos moradores; Filipe IV, por outro lado, foi o soberano da expansão para
Oeste, em seu nome foram organizadas as primeiras grandes expedições
ao rio Amazonas, inclusive a famosa jornada de Pedro Teixeira. Não se
pode esquecer que foi também na época do Conde-Duque que ocorreu o
combate efetivo aos holandeses, fortificados nas regiões do rio Xingu e
no Cabo do Norte no início da década de 1620. Este era o legado de êxitos
filipinos que os bragancistas do reino teriam de administrar no Maranhão.
A Restauração Portuguesa no Maranhão, como em outras partes,
não é uma história local, senão oceânica. Não se compreende estes acon-
tecimentos sem uma reflexão global e integrada. Portanto, a correspon-
dência com os processos ocorridos em Lisboa, Madri, França, Holanda,
mas também Quito, Lima, Cabo Verde e Guiné, é fundamental para o
entendimento do impacto da mudança de regime sobre o Atlântico equa-
torial. Nesse mesmo sentido, Rafael Valladares já havia reivindicado a
necessidade de entender a ruptura ibérica na sua incontornável dimensão
atlântica, e menos na tradicional representação como crise europeia.61
Por fim, sobre a expansão do território, a Restauração Portuguesa
alterou a ênfase e o tom, mas não mudou significativamente a essência.
No final das contas, a política de ampliação do território amazônico não foi
obra de D. João IV, mas sim o resultado de uma iniciativa já em curso, que
os moradores do Grão-Pará e do Maranhão relacionavam francamente, e
sem constrangimentos, ao regime anterior. Este sentimento de nostalgia,
igualmente encontrado na documentação sobre a guerra contra os Países
Baixos, reivindica um outro olhar sobre a noção clássica que descreveu a
rebelião de Portugal como um evento previsível e amplamente aguardado.

61
VALLADARES, Rafael. Historia Atlántica y ruptura ibérica, 1620-1680. Un
ensayo bibliográfico. In: PARKER, Geoffrey (Ed.). La crisis de la Monarquía de
Felipe IV. Barcelona; Valladolid: Editorial Crítica; Universidad de Valladolid,
2006, p. 327-350.

180
O Brasil no contexto da Guerra de Restauração
Portuguesa (1640-1668)

Ana Paula Torres Megiani1

O objetivo deste artigo é abordar aspectos do contexto da recepção da


Aclamação de D. João de Bragança na América portuguesa, ocorrida a
partir de fevereiro de 1641. Não se trata de um tema inédito, já anterior-
mente abordado por outros historiadores.2 Trata-se, contudo, de uma
reflexão que pretende somar-se a estas já conhecidas. A ruptura dos
laços políticos acordados em Tomar, 1581, que mantiveram atados os
territórios portugueses à Monarquia Hispânica durante os sessenta anos
da União das Coroas, talvez ainda seja um dos processos de mais difícil
análise pela historiografia dos seiscentos. Noções de forte apelo no senso
comum, como vínculo de identidade, apego nacionalista ou sentimento
de usurpação, já não podem mais ser levadas em conta quando se procura
entender os motivos que conduziram, em pouco tempo, a que todas as
conquistas portuguesas no ultramar se declarassem fiéis à Aclamação de

1
Professora Dra. de História Ibérica no Departamento de História da
Universidade de São Paulo.
2
Ver Introdução deste livro e especialmente: MONTEIRO, Rodrigo Bentes. O
Rei no Espelho: A monarquia portuguesa e a colonização da América (1640-
-1720). São Paulo: Hucitec, 2002.
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

D. João IV, exceto Ceuta, ainda que nelas estivesse em ação uma intensa
conflitualidade.
A guerra que se desenrola em território peninsular até 1668, e
concluída com a Paz dos Pirineus3, não se experimenta da mesma ma-
neira nos domínios ultramarinos, pois nesses espaços são vivenciados
outros conflitos bélicos, inclusive com motivos bastante distintos daqueles
travados entre as coroas de Portugal e Espanha. O avanço neerlandês
sobre as rotas de navegação do Atlântico e do Índico era considerado
uma ameaça muito mais perigosa por aqueles que lutavam nos espaços
coloniais que o desejo, ou risco, de permanência da coroa na cabeça de
Felipe IV de Habsburgo.4
O entendimento dessa conflitualidade presente nos territórios
portugueses da América exige que retomemos alguns elementos que
remontam ao processo de ocupação e exploração do território. Do ponto
de vista administrativo, a América portuguesa se estrutura em meados do
século XVI. Criado em 1549 por D. João III, o Governo Geral do Estado
do Brasil foi instituído, como se sabe, pelo regimento de Tomé de Souza
– primeiro Governador Geral –, cargo exercido por um governador no-
meado diretamente pelo monarca. Em 1621, durante o reinado de Felipe
III de Espanha, segundo de Portugal, foi criado o Estado do Grão-Pará e
Maranhão, com o objetivo de cuidar particularmente da região norte do
território que possuía características muito distintas das outras partes e
exigia outras estratégias de gestão e comando. Entre 1580 e 1640, foram
mantidos no cargo de Governador Geral os portugueses natos, tal como
estabelecia o Acordo de Tomar de 1581. Os nomeados, contudo, deveriam
manter vínculos de fidelidade com Madrid, fato que contribuiu para o
aparecimento de fragilidades no tocante à autoridade do governador. Por

3
Ver os livros de COSTA, Fernando Dores. A Guerra da Restauração. 1641-1668.
Lisboa: Livros Horizonte, 2004. e VALLADARES, Rafael. A Independência de
Portugal: Guerra e Restauração 1640-1680. Trad. Pedro Cardim. Lisboa: A
esfera dos livros, 2006.
4
Para as guerras em território africano ver ALENCASTRO, Luiz Felipe. O Trato
dos Viventes: Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo: Companhia
das Letras, 2000.

182
o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

isso, a administração do Brasil durante a União das Coroas continua a


desafiar os historiadores, já que revela o crescimento das redes e cone-
xões de poder no interior do próprio território americano, eliminando
completamente os limites antes estabelecidos, mas jamais respeitados,
do célebre Tratado de Tordesilhas de 1496.5
Durante as décadas da União das Coroas Ibéricas, alargaram-se
consideravelmente, em direção ao oeste, os territórios das seguintes
capitanias, superando as primeiras dimensões da divisão interna dos
estados portugueses na América. No Estado do Grão-Pará e Maranhão –
capital São Luís de Maranhão, três capitanias: Pará, Maranhão e Ceará.
No Estado do Brasil – capital Salvador da Bahia, capitanias: Rio Grande
do Norte, Paraíba, Itamaracá, Pernambuco, Sergipe del Rei, Bahia, Ilhéus,
Porto Seguro, Rio de Janeiro, São Vicente (incluindo Santo Amaro e
Itanhaém).6 Todas elas tiveram seus espaços territoriais ampliados no
período da Monarquia Hispânica graças às conexões internas fortaleci-
das entre colonos lusos e espanhóis, bem como aumento das redes de
contrabando de mercadorias, caça e exploração de nativos habitantes do
sertão profundo.
A existência de conflitos e tensões no território americano marcou
todo o período da ocupação e colonização (séculos XVI-XIX), nunca tendo
deixado de ser dura a realidade da vida cotidiana da gente nativa, dos
escravos ameríndios e africanos, ou dos que ali se estabeleceram como
colonos. Durante os anos do período filipino, a conflitualidade interna
adquire outros matizes, não porque os espanhóis fossem os novos se-
nhores, mas sobretudo porque são ampliadas as relações de produção
e exploração agrícola, com grande ênfase na cultura da cana-de-açúcar,
que exige o aumento do número de trabalhadores.7 Por isso houve a

5
Sobre a gestão e as elites deste período ver RICUPERO, Rodrigo. A formação da
elite colonial: Brasil c. 1530-c. 1630. São Paulo: Alameda, 2008.
6
BOXER, Charles R. Salvador de Sá e a luta pelo Brasil e Angola, 1602-1686. São
Paulo: Companhia Editora Nacional; Edusp, 1973, p. 307.
7
Para o tema do desenvolvimento da produção do açúcar no período cf.
SCHWARTZ, Stuart. Segredos internos: Engenhos e escravos na sociedade

183
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

intensificação, por um lado, do tráfico de africanos e, por outro, da caça


aos nativos, aos “negros da terra”.8
Os habitantes das capitanias do sul (Espírito Santo, Rio de Janeiro e
São Vicente) intensificaram, a esta altura, suas relações com os peruleiros,
portugueses que se especializaram em fazer negócios entre as duas
partes da América ibérica. Segundo Rafael Ruiz González, as leis mais
importantes do período foram as de 1609 e de 1611, definidas a partir
do projeto da Coroa de transformar a vila de São Paulo em outro Peru:
“Era un proyecto acariciado desde hacía mucho tiempo atrás, pues las
noticias sobre la plata y el oro en la región de la cuenca del Plata y del
Paraná llegaron a Europa poco antes de 1530”.9
Os portos de Santa Catarina, Santos e Buenos Aires foram, dessa
maneira, conectados por redes de “contrabandos” de prata e de produtos
comprados no interior da América do Sul. Um grande número de colonos
castelhanos estabeleceu seus negócios com os habitantes das capitanias
do sul, sobretudo com os mal vistos paulistas.

O trajeto realizado desde o Alto Peru até Santa Catarina seria muito
melhor que o escarpado caminho real por Salta, Tucumán, Juju
até Buenos Aires. Além disso, o porto de Santa Catarina estava
em melhores condições que a difícil saída por Mar del Plata,
permitindo a entrada de um número maior de barcos [, sendo
muito mais econômico também do que a] “Carrera de Índias”,
porque “la navegación desta mar desde el dicho puerto de Sancta
Catalina a España asimismo breve y de menos tormentas”.
O caminho tinha duas ramificações: uma até Santa Catarina e outra
até São Paulo, um caminho que já existia mas estava oficialmente

colonial (1550-1835). Trad. Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
8
Para o tema referimos, basicamente, MONTEIRO, John M. Negros da Terra:
Índios e bandeirantes nas origens de São Paulo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
9
RUIZ GONZÁLEZ, Rafael. La política legislativa con relación a los indígenas en
la región sur del Brasil durante la unión de las coronas (1580-1640). Revista
de Indias, v. 62, n. 224, p. 17-40, 2002.

184
o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

fechado. [...] Na prática, durante os primeiros vinte anos do século


XVII [...] o comércio entre a região do Prata, passando pelo Brasil
até chegar a Angola esteve aberto durante todo o tempo.10

Tais relações mercantis por meio das conexões estabelecidas


pela população da repartição sul, e todo poder construído no interior do
continente, podem ser indicadas como elementos de grande relevância
que marcaram os reinados de Felipe III e Felipe IV de Espanha (Felipe
II e III de Portugal), enquanto nas capitanias do norte as populações das
vilas e governos se ocupavam de proteger o território, principalmente dos
ataques holandeses. Entre os anos de 1624-1625, a Bahia e todas as suas
adjacências conviveram com a guerra externa, conflito que exigiu o envio
de grandes contingentes de soldados para combater a ocupação.11 Depois
da invasão holandesa em Salvador da Bahia, tornou-se fator fundamental
garantir a defensa da costa de modo a evitar novos ataques. Entretanto,
a preservação só seria bem sucedida, como se sabe, até o ano de 1631,
quando o novo ataque alcança Pernambuco.
Em dezembro de 1640, quando ocorre a Aclamação de D. João
IV, o território do Brasil era um conjunto de realidades muito díspares,
o que parecia impedir que houvesse uma imediata adesão à causa dos
Bragança. Na prática, não foi o que aconteceu.
Já em janeiro de 1641 partiu de Lisboa para Salvador, em missão
sigilosa, a notícia da Aclamação do Duque de Bragança como rei de
Portugal e suas conquistas. Fora recebida de forma oficial em 15 de feve-
reiro, cabendo ao governador geral e vice-rei, D. Jorge de Mascarenhas
– Marquês de Montalvão –, a tarefa de enviar mensageiros a todas as
capitanias com as novas de Lisboa. Salvador Correia de Sá e Benevides,
governador das Capitanias do Sul, deveria ser o segundo homem a ser
informado dos fatos, com o intuito de que apoiaria imediatamente a

10
Ibidem, tradução nossa.
11
Acerca da circulação de notícias desta guerra ver nosso artigo: MEGIANI, Ana
Paula Torres. Das palavras e das coisas curiosas: correspondência e escrita
na coleção de notícias de Manuel Severim de Faria. Topoi, Rio de Janeiro,
v. 8, n. 15, p. 24-48, 2007.

185
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

posição do governador geral e trazendo consigo toda a adesão da parte


sul do Brasil.12 O jesuíta Manuel Fernandes foi o portador da carta, tendo
chegado ao Rio de Janeiro em 10 de março.13 A notícia da Aclamação do
novo rei parece ter sido recebida com obediência por Montalvão e Correia
de Sá, não tendo sido identificada qualquer resistência nas fontes dis-
poníveis. Entretanto, no Rio de Janeiro foi necessária a confirmação por
parte dos membros da Câmara municipal antes do governador anunciar
seu apoio definitivo.
Uma relação publicada em Lisboa sobre o evento descreve o acon-
tecimento na cidade do Rio de Janeiro, dando ênfase ao modo como se
praticou a eleição e uma procissão em direção à igreja da Sé ocorrida
em seguida:

E seguindose os votos de todos igualmente foraõ do mesmo sem


que em nenhum ouuesse neutrae,lidadde [sic] que o Gouernador
mandou fizesse Auto, que logo fez o Escriuão da Camara, &
assinado elle primeiro fizerão o mesmo os mais, & acabado,
aclamaraõ todos em gêral á imitaçaõ do Gouernador, que deu
principio, viua El Rey Dom Ioaõ o IV. de Portugal. E mãdando logo
trazer o Pendaõ Real da Camara sairão do Collegio em Procissão,
& vnidos foraõ à Sê Matriz, donde feito hum Altar Cruzeiro della
sobre hum Missal, fez o Gouernador, & a seu exemplo todos os
mais solene juramento [sic], preito & menagem de ter, manter e
reconhecer, & obedecer ao Senhor Rey Don Ioaõ IV. Duque que
hauia sido de Braganã, por verdadeiro Rey, & Senhor de Portugal,
repetindo muitas vezes o viua que o Pouo pluralizaua com notauel
aplauzo [...]14

12
Sobre Salvador Correia de Sá e Benevides ver ainda: NORTON, Luis. A dinastia
dos Sás no Brasil: a fundação do Rio de Janeiro e a restauração de Angola. Ed.
comemorativa do 4o centenário da fundação da cidade de S. Sebastião do Rio
de Janeiro. Lisboa: Agência Geral do Ultramar, 1965.
13
BOXER, C. R., op. cit., p. 158.
14
Ver RELAÇAM da aclamação que se fez na Capitania do Rio de Janeiro do
Estádo do Brasil, & nas mais do Sul, ao Senhor Rey Dom João o IV. por
verdadeiro Rey, & Senhor do seu Reyno de Portugal, com a felicissima

186
o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

Foi, contudo, na vila de São Paulo que se localizou a única reação


contrária à Aclamação de D. João de Bragança como rei de Portugal e
suas conquistas em território americano.15 Segundo a versão que ficaria
consagrada pela historiografia dos séculos XVIII, XIX, e XX, essa reação
havia sido comandada por um poderoso potentado local, Amador Bueno
da Ribeira, que teria sido aclamado pelos moradores da vila como uma es-
pécie de rei local, uma passagem que ficou conhecida como Aclamação de
Amador Bueno. Para Rodrigo Monteiro e Luiz de Alencastro, a Aclamação
de Amador Bueno deve ser entendida mais como expressão de conflitos
antigos entre os habitantes de São Paulo e os jesuítas, sempre contrários
ao apresamento e à escravização dos indígenas praticados pelos mora-
dores da vila, do que uma questão de fidelidade dos habitantes de São
Paulo ao rei de Espanha Felipe IV.16 Devido a esses conflitos, os padres da
Companhia de Jesus chegaram a ser expulsos da vila em junho de 1640,
depois da promulgação do Breve do Papa Urbano VIII contra a escravi-
zação dos ameríndios.17 Em meados de 1641, os residentes espanhóis de
São Paulo, ao receberem a notícia da Restauração Portuguesa que chegava
da Bahia e do Rio de Janeiro, resistem. Amador Bueno, segundo relatos
pouco precisos das fontes da Câmara, foi chamado pelos espanhóis próxi-
mos para ser o rei de São Paulo, e prestar lealdade ao monarca Felipe IV
de Espanha. Todavia, uma disputa entre portugueses e espanhóis acaba
frustrando a rebelião e Amador Bueno se declara leal a D. João IV com
medo de ser castigado por crime de traição e lesa majestade.18

restituiçaõ, q[ue] delle se fez a sua Magestade que Deos guarde, &c. – Em
Lisboa : por Iorge Rodrigues : a custa de Domingos Alures livreiro, 1641.
Exemplar da Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em: <http://purl.
pt/12091>. Acesso em: fev. 2014.
15
BOXER, C. R., op. cit., p. 158 et seq.
16
MONTEIRO, R. B., op. cit.; ALENCASTRO, L. F., op.cit.
17
BOXER, C. R., op. cit., p. 143 et seq.
18
Para o tema de São Paulo na União Ibérica ver a tese de VILARDAGA, José
Carlos. São Paulo na órbita do Império dos Felipes: conexões castelhanas de uma
vila na América Portuguesa durante a União Ibérica (1580-1640). São Paulo,

187
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Não existem outras comprovações de que de fato as coisas tenham


ocorrido assim. O episódio foi tema de muitas reformulações posteriores,
sobretudo no final do século XVII e início do XVIII, quando os paulistas
se tornam incômodos para a Coroa portuguesa devido à descoberta de
ouro em Minas Gerais por eles mesmos.19
Tratados às vezes como traidores, outras como vassalos fiéis ao rei
de Portugal, e frequentemente considerados violentos caçadores de índios,
inimigos de padres, de sangue mestiço, utilizados em toda a segunda
metade do século XVII como os soldados mais agressivos da coroa por-
tuguesa contra todos os tipos de ameaças ao seu território americano, na
Aclamação de Amador Bueno, os colonos paulistas recebem um tratamento
de apologia heroica, exaltadora de sua bravura. O relato do frei Gaspar
da Madre de Deus, Memória para a História da Capitania de São Vicente,
do século XVIII, por exemplo, afirma que Amador Bueno foi aclamado
pelos espanhóis sem seu conhecimento, e que não queria ser rei, mas
que as pessoas o gritavam com grande entusiasmo.20
Relacionado diretamente com o problema da vinculação dos habi-
tantes da vila de São Paulo estava Salvador Correia de Sá, o governador
do Rio de Janeiro. Suas relações familiares e de negócios no território
espanhol da América eram muito bem conhecidas, inclusive na corte,
o que lhe causaria graves dificuldades no início do longo processo de
reconhecimento da independência portuguesa.21 Filho e neto de go-
vernadores do Rio de Janeiro, pertencia à família Sá, grandes senhores
da corte de Avis e vinculados à colonização do Brasil desde meados do
século XVI, tendo como antepassados Mem de Sá e Estácio de Sá. Seu

2010. 398 f. Tese (Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
19
ROMEIRO, Adriana. Leituras de um vassalo rebelde: o Portugal Restaurado e o
imaginário político do levante emboaba. In: ALGRANTI, Leila Mezan; MEGIANI,
Ana Paula Torres (Org.). O Império por escrito: formas de transmissão da
cultura letrada no mundo ibérico. (Séc. XVI-XIX). São Paulo: Alameda,
2009, p. 453-467.
20
Apud MONTEIRO, R. B., op. cit., p. 36.
21
NORTON, L., op. cit.

188
o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

pai, Martim de Sá, capitão geral de São Vicente e governador do Rio de


Janeiro, era casado com uma senhora anglo-espanhola, sua mãe – Dona
María de Mendoza y Benavides, filha do governador de Cádiz.22 Salvador
de Sá esteve algumas vezes na Corte, em companhia de seu avô e de seu
pai. Participou da armada que defendeu a Bahia contra os holandeses
em 1625, experiência que lhe daria grandes oportunidades de destaque
diante do reconhecimento por parte de Felipe IV.
No ano de 1631 ou 1632, durante uma de suas expedições a
Asunción, incumbido de conduzir uma prima para casar-se com o go-
vernador do Paraguai, Céspedes de Xería23, Salvador de Sá acaba também
por se casar com uma criolla herdeira de grande riqueza e prestígio na
sociedade hispânica colonial: Dona Catalina de Ugarte y Velasco. Segundo
Charles Boxer, Dona Catalina era descendente da nata dos conquistadores
espanhóis na América e viúva mais rica da província de Tucumán, o que
aumentaria muito a fortuna de Salvador de Sá, também ele proprietário
de inúmeras terras no Rio de Janeiro.24
Era fiel à política de defesa da coroa espanhola, tendo sido cha-
mado a socorrer a armada portuguesa comandada por D. Fernando de
Mascarenhas, o Conde de la Torre, aportada em Pernambuco em 1640,
que tentava atacar a cidade Maurícia, e recuperá-la para o domínio luso-
-espanhol. O número de combatentes portugueses foi aumentado e
abastecido graças à colaboração de Salvador de Sá, que mandou homens
e alimentos desde as capitanias do sul.
Mesmo sendo um grande potentado do sul, o governador do Rio
de Janeiro era favorável à liberdade dos índios e à presença dos jesuítas,
o que lhe garantia grande popularidade na região, convulsionada pelos
conflitos entre padres e paulistas por esse motivo. Em 1641, desloca-se

22
BOXER, C. R., op. cit., p. 22.
23
CAVENAGHI, Airton José. Nossa herança imperceptível: uma análise
historiográfica da obra Collectanea de mappas de cartographia paulista antiga,
organizada por Afonso de E. Taunay, em 1922. In: SIMPÓSIO IBEROAMERICANO
DE HISTÓRIA DA CARTOGRAFIA, 3., abr. 2010, São Paulo.
24
BOXER, C. R., op. cit., p. 109 et seq.

189
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

pessoalmente a São Paulo para resolver os conflitos em torno da suposta


Aclamação de Amador Bueno. Chegando a Santos encontra muita resis-
tência, com os paulistas temendo que se formasse uma revolta indígena,
acusam-no de ser colaborador dos espanhóis, devido a seu matrimônio
anteriormente referido. Em 1642, consegue o apoio da Câmara de São
Vicente contra São Paulo. Apesar disso, D. João IV limita os poderes de
Salvador de Sá temendo por sua ambiguidade, Salvador pede ao novo
Vice-rei para permanecer no cargo de governador, o que ocorre em 1643.
Foi recebido pelo rei D. João IV em Évora em outubro de 1643, passando
a orbitar a corte e o Conselho Ultramarino de Portugal com a esperança
de alcançar nova nomeação. Depois de várias tentativas, em 1647, pede
ao monarca o direito de fundar uma nova capitania entre São Vicente
e o Rio da Prata, ampliando dessa maneira o Brasil. A proposta não foi
aceita pela coroa, mas o monarca termina nomeando Salvador de Sá
novamente como Governador das Capitanias do Sul, que chega de volta
ao Rio de Janeiro em janeiro de 1648.25 O destino de Salvador de Sá o
levou a ocupar outros cargos e papéis determinantes no processo de
autonomização de Portugal em relação à Espanha e, principalmente, na
luta contra invasores de terras lusas na África, como se sabe. Neste con-
texto, o que nos interessa demonstrar é a situação de ambiguidade que
vivera no momento da Restauração, e que certamente não experimentou
sozinho. Outros casos de vassalos fiéis aos Filipes, e que passaram a servir
D. João IV à força, podem ser encontrados no período.
Um desses personagens, por exemplo, foi D. Jorge de Mascarenhas
(1597-1652), Conde de Castelo Novo e Marquês de Montalvão, que fora
recém nomeado, em 1640 por Felipe IV, como primeiro Vice-rei do
Brasil, cargo que não existia antes dele na administração do território,
mas ainda ocupado em caráter simbolicamente honorífico, ou seja, sem
poderes especificamente designados. No fundo, Montalvão continuava
atuando como Governador Geral quando ocorre a Restauração. Recibido
em Salvador da Bahia pelo Padre Antônio Vieira, que lhe dedica um ser-
mão de boas-vindas, Montalvão encontra a região de Pernambuco tomada

25
BOXER, C. R., op. cit., p. 234 e 266.

190
o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

pelos holandeses, ali estabelecidos desde 1631, e as forças luso-espanholas


residentes bastante desestruturadas. Sobre esse estado de ânimos predica
Vieira: “Como levantaria arcos triunfais a cabeça de uma província ven-
cida, assolada, queimada e de tantas maneiras consumida? Prudente se
mostrou em suas alegrias esta cidade por não desmentir seu estado”. E
ainda completa Vieira: “Ocorreu a Vssa. Exc. com o Brasil o que a Cristo
com Lázaro; chamaram-no para curar a um enfermo, e quando chegou
foi necessário ressuscitar a um morto”.26 No entanto, sua permanência
no cargo foi breve, interrompida pela notícia da Restauração.
Pertencente a uma família que ascendera na corte filipina, D.
Jorge de Mascarenhas era casado com D. Francisca Villena, pai de oito
filhos, entre eles D. Jerônimo Mascarenhas27, bispo e confessor da rainha
esposa de Felipe IV. Tal proximidade e distinção concedida a seus fami-
liares provoca, inicialmente, desconfiança por parte da corte brigantina,
que convoca D. Jorge para regressar a Lisboa no intuito de substituí-lo
por um novo governador. Surpreendentemente, mesmo tendo aderido
muito rapidamente à notícia da ruptura com Madrid, Montalvão foi
substituído. Seu outro filho, D. Fernando de Mascarenhas, portador da
notícia da Aclamação de D. João IV nas vilas e cidades do Brasil, também
foi preso ao desembarcar em Lisboa. Após regressar, e tendo passado
por diversas situações de desconfiança por parte da corte brigantina, o
Marquês de Montalvão morre prisioneiro no Castelo de São Jorge em
Lisboa em 1652.28

26
SERMÃO da Visitação, predicado em honra ao Marquês de Montalvão, apud
AZEVEDO, João Lúcio de. História de Antônio Vieira. São Paulo: Alameda,
2008, p. 65. v. 1.
27
Sobre Jerônimo Mascarenhas ver: MEGIANI, Ana Paula Torres. Memória e
conhecimento do mundo: coleções de objetos, impressos e manuscritos nas
livrarias de Portugal e Espanha, séculos XV-XVII. Anais do Museu Paulista,
São Paulo, v. 17, n. 1, p. 155-171, 2009. Disponível em: <http://dx.doi.
org/10.1590/S0101-47142009000100010>. Acesso em: fev. 2014.
28
Sobre seu filho Jerônimo Mascarenhas, Fernando Bouza Álvarez comenta:
“Este filho de Jorge de Mascarenhas, Marquês de Montalvão e antigo Vice-rei
do Brasil, constitui um bom exemplo do que a obediência a Felipe IV poderia

191
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

Por outro lado, a conflitualidade externa afeta igualmente o am-


biente da Restauração Portuguesa na América a partir de 1641, porque a
presença de franceses, ingleses e holandeses aumenta a cada década de
forma ostensiva, exigindo da Coroa altos investimentos em um sistema
defensivo, tanto terrestre quanto marítimo, que ocorre em toda a costa
desde o Rio de Janeiro até o Maranhão. Os mesmos paulistas apresadores
de índios são usados pelas forças militares luso-espanholas para que aju-
dassem a aumentar os contingentes de soldados, no esforço de impedir a
penetração de invasores, o que nem sempre foi um plano bem sucedido.29
Toda a guerra e as negociações diplomáticas que envolveram a
devolução de Pernambuco a Portugal foram exaustivamente estudadas
por Evaldo Cabral de Mello, embora estejam surgindo novas pesquisas
de jovens historiadores sobre o assunto. Segundo este autor:

se na América a repercussão do movimento restaurador não foi si-


milar [a Portugal e Espanha], foi porque os interesses envolvidos não
exerciam influência no conselho municipal. Dominado por grupos
de cristãos-novos, ex-judeus portugueses que tinham negócios
muito lucrativos com a Companhia das Índias Ocidentais, a WIC,
do ponto de vista da Coroa [portuguesa], o levante luso-brasileiro
poderia ser descrito como um sucesso e um fracasso em termos
que diplomaticamente era um verdadeiro desastre.30

Dessa maneira, são enviados embaixadores portugueses para


realizar as negociações de compra o venda do “nordeste” do Brasil. Em
1648, em uma das propostas apresentadas pelos emissários da Coroa

proporcionar a um hidalgo português que por culpa dessa obediência ficara


sem pátria e sem propriedades, mas que, apesar disso, poderia continuar
a tirar algum proveito da graça régia [...]” BOUZA ÁLVAREZ, Fernando Jesús.
Portugal no tempo dos Filipes: política, cultura, representações (1580-1668).
Trad. Pedro Cardim. Lisboa: Cosmos, 2000, p. 282.
29
Cf. GONÇALVES, Regina Célia. Guerras e Açúcares: Política e economia na
Capitania da Parayba, 1585-1630. Bauru: Edusc, 2007.
30
MELLO, Evaldo C. O negócio do Brasil: Portugal, os Países Baixos e o Nordeste,
1641-1669. 2. ed. Rio de Janeiro: TopBooks, 1998, p. 61. (Tradução nossa).

192
o brasil no contexto da guerra de restauração portuguesa (1640-1668)

portuguesa à Holanda, Francisco de Sousa Coutinho e o Padre Antônio


Vieira, a Coroa entregaria à WIC, durante dez anos, o equivalente a 10
mil caixas de açúcar branco, ou 600 mil cruzados em seis anos, sendo a
metade em Amsterdã em moeda holandesa e a outra metade em Recife.31
Para o Padre Antônio Vieira, era necessário estabelecer um acordo
de Paz. Mas, na corte de D. João IV, havia grandes interessados na guerra,
sobretudo um grupo de oposição às ideias defendidas por Vieira. Contudo,
declarar guerra à República holandesa equivalia a fazer o jogo da Espanha.
A Coroa portuguesa não tinha condições de custear as guarnições de
fronteira. Portugal não podia defender o Alentejo e queria defender o
Brasil.32 A questão só se resolve com a Guerra em Pernambuco até 1654
e com os tratados de Paz de 1669.
Na segunda metade do século XVII, o fim da guerra contra os
holandeses em Pernambuco fecha um grande período de conflitos bé-
licos externos, e inaugura, efetivamente, a guerra contra os gentios no
interior das capitanias do norte – a Guerra dos Bárbaros, estudada por
Pedro Puntoni.33 Nela, seriam mescladas as práticas antes utilizadas na
guerra contra os invasores estrangeiros, agora dedicadas a eliminar os
grupos silvícolas do sertão; os principais combatentes são, novamente,
os paulistas.
Por outro lado, o imaginário da Restauração e produção escrita
que dela resultou seriam ainda elementos de fundamentação política
em outro episódio conflitivo de destaque nos inícios do século XVIII, a
Guerra dos Emboabas (1708-1709), da qual participaram portugueses do
reino e colonos, como se sabe. A exemplo do que ocorreu em São Paulo
com a suposta aclamação de Amador Bueno, em Minas seria alçado ao
cargo de governador Manoel Nunes Viana, comandante do grupo de
rebelados. Segundo Adriana Romeiro34, Nunes Viana, apesar de ser um

31
Ibidem, p. 111-112.
32
Ibidem, p. 138.
33
PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos indígenas e a colonização do
sertão nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec; Edusp, 2002.
34
ROMEIRO, Adriana, op. cit., p. 457.

193
o brasil na monarquia hispânica (1580-1668)

homem de origem pobre, teria prosperado na atividade pecuária e os


negócios a ela vinculados, além de ser o principal potentado da região,
de modo a comandar e desafiar funcionários e determinações régias
que buscavam reprimir e controlar os colonos envolvidos na extração do
ouro. Para Romeiro, Nunes Viana possuía, entre outras, como principal
referência a leitura da obra História de Portugal Restaurado do Terceiro
Conde da Ericeira (D. Luis de Menezes), publicada em 1697.35 Neste novo
contexto, afirma Romeiro, “ao partido emboaba não foi difícil formular
as linhas mestras da fundamentação política do levante nos termos de
uma restauração cujo modelo principal era, sem dúvida, a Restauração
de 1640”.36 Uma questão que merece ser mais aprofundada... certamente
em outra oportunidade.
Apesar da distância temporal dos acontecimentos, o fato é que, no
início do século XVIII, a Restauração podia ser considerada um sucesso
político-militar, passado o duro período da guerra peninsular, da perse-
guição aos funcionários e cortesãos adeptos da Coroa espanhola, bem
como das dificuldades de reconhecimento da independência de Portugal
e expulsão de invasores. Utilizando a oposição liberdade versus tirania,
esses colonos foram buscar, na ruptura com Espanha, a fundamentação
política de suas rebeliões, e seriam, paradoxalmente, reprimidos com
grande violência.37

35
MENEZES, Dom Luis de, Conde da Ericeyra. Historia de Portugal Restaurado.
Lisboa: Officina de João Galrão, 1679-1698. 2 t.
36
ROMEIRO, Adriana, op. cit., p. 459.
37
Cf. FIGUEIREDO, Luciano R. A. O Império em apuros: notas para o estudo
das alterações ultramarinas e das práticas políticas no Império colonial
português, séculos XVII e XVIII. In: FURTADO, Júnia Ferreira (Org.). Diálogos
oceânicos: Minas Gerais e as novas abordagens para uma história do Império
ultramarino português. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, p. 197-254.

194
Série História Diversa

1 | Representações do Sertão: poder, cultura e identidades


Renato da Silva Dias e Jeaneth Xavier de Araújo (Org.)
Livraria Humanitas

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Ficha técnica
Formato 14 x 21 cm
Mancha 10,5 x 18,5 cm
Tipologia Scala 10 e ScalaSansPro 15
Impressão e Acabamento Printing Solutions & Internet 7
Número de páginas 198

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