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As reflexões sobre o olhar estrangeiro têm sido frequentes nas últimas décadas, principalmente a partir da
crítica à formação de um imaginário repleto de exotismo e sensualidade associado aos trópicos. Não é, por-
tanto, exagero afirmar que o problema das representações, usos e abusos da imagem dos afrodescendentes
no Brasil, ao longo dos séculos, permanece como foco importante para se entender a história das relações
raciais no país. Nem sempre, contudo, procura-se o exótico nos trópicos. Este artigo procura analisar o
impacto do olhar de Pierre Verger sobre a construção do legado africano no Brasil.
Palavras-chave: Pierre Verger. Afrodescendentes. Relações raciais.
http://dx.doi.org/10.1590/S0103-49792016000100010 149
UM VERGER, DOIS OLHARES...
cenário intelectual e político, Verger exerceu pesca, o mar, as redes, as velas e os saveiros. A
grande influência na construção de um país maior parte das fotos retratava, portanto, pes-
que, aos poucos, vem modificando seus imagi- cadores e marinheiros da cidade de Salvador à
nários coletivos e reconhecendo as contribui- pequena distância. Apenas uma das fotos retra-
ções da cultura africana. tava mulheres conversando, e, mesmo assim,
Em que pese a intenção do artista, as foto- elas se posicionavam de costas para a máquina
grafias trazem, com elas, diversos significados. fotográfica.
Além disso, elas são apropriadas de diferentes
formas pelo público em geral. Como afirmou
o historiador Martin Lienhard (2006, p. 218)
a respeito da obra do fotógrafo moçambicano
Sergio Santimano, “Independente da vontade
dos fotógrafos, as mesmas fotos, portanto, au-
torizam discursos ou interpretações diversas”.
Considerando que as imagens sempre nos dão
algum testemunho, para além da intencionali-
dade de seu autor, procuramos investigar se ha-
via o sentido de oposição entre Rio de Janeiro
e Salvador no conjunto de fotografias deixado
por Pierre Verger, bem como o impacto de seu
olhar na construção dessa oposição.
A citada coluna do jornal fazia propagan-
da de uma exposição de fotos de Pierre Verger,
organizada pelo curador Mario Cohen, em um
dos corredores do mezanino do Hotel Copaca-
bana Palace. Nessa exposição, foram dispostas,
em duas fileiras, oito fotos do Rio de Janeiro e
oito fotos de Salvador. Dentre as fotos do Rio de
Janeiro, duas foram apresentadas pelo jornal: os
salva-vidas de boina e cinto e a jovem sorriden-
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Maurício Barros de Castro, Myrian Sepúlveda dos Santos
dores do Rio de Janeiro, vestidos formalmente tual do fotógrafo e a rede de relações mantidas
e aparentemente adaptados ao cotidiano da ao longo de sua vida. A última parte do artigo
cidade, e aqueles de Salvador, em roupas su- volta-se para a relação entre as seleções das fo-
márias e em contato direto com o mar. A par- tos expostas em Copacabana e no jornal cario-
tir da exposição, ficou a dúvida se esse duplo ca e o conjunto da obra de Verger, tendo como
olhar que separava as cidades de Salvador e do contrapartida o acervo fotográfico da Fundação
Rio de Janeiro estava presente em Verger, ou Pierre Verger, localizada em Salvador.
se fora construído pelo curador da exposição.
Alguns esclarecimentos preliminares
precisam ser feitos. Não temos a intenção de, UMA TRAJETÓRIA, UM OLHAR: a
neste breve espaço, apresentar uma trajetó- fotografia como registro
ria de vida detalhada de Verger, o que já tem
sido feito com competência por outros estudos No artigo do antropólogo Raul Lody so-
(Lühning, 1998-9, 2002 e Souty, 2011), mas bre o “olhador do mundo”, citações de Verger
apontar seu pertencimento a um grupo de in- sobre a fotografia se alternam com as de Ro-
telectuais franceses e brasileiros, bem como land Barthes (apud Lody, 2001, p. 11). Segun-
alguns fatos e eventos que marcaram sua che- do esse último:
gada tanto ao Rio de Janeiro como a Salvador.
[...] a fotografia separa a atenção da percepção, e liber-
Também não é nosso objetivo desenvolver um ta apenas a primeira, todavia impossível sem a segun-
estudo comparativo sobre a maior ou menor da; trata-se, coisa aberrante, de uma noese sem noema,
influência de práticas culturais e religiosas de um ato de pensamento sem pensamento, uma mirada
matriz africana no Rio de Janeiro e em Salva- sem alvo. No entanto, é esse movimento escandaloso
dor. Esses são estudos presentes no trabalho de que produz a mais rara qualidade de um ar.
diversos antropólogos e historiadores (Bastide O Pierre Verger fotógrafo tem sido des-
1960, Alencastro 2000), bem como do próprio crito por seu desapego às técnicas de pesquisa
Verger (Verger 1968). A terceira observação é a e pelo olhar desprendido que não procurava
de que partimos do pressuposto de que os con- compreender, nem explicar. Há uma aura em
ceitos de negritude e africanidade aqui trata- torno da fotografia e de sua capacidade de fixar
dos são construções inerentes a determinados o real em detrimento das intenções daquele
processos sociais e históricos. Independente- que tem a máquina em suas mãos.
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UM VERGER, DOIS OLHARES...
em 1932. Vinculado a agências fotográficas, ro- diferentes maneiras. Os objetos expostos pelo
dou o mundo como correspondente de diversos museu atraíam novos olhares. Nas primeiras
jornais e revistas. Após uma pequena viagem à décadas do século XX, teorias evolucionistas
Rússia, partiu para as ilhas do Pacífico, viajan- começaram a ser criticadas pelos próprios et-
do do Taiti até a Ilha de Páscoa. Em 1934, fez a nógrafos. Em outra vertente, a arte primitiva
volta ao mundo, passando pelos Estados Unidos, passou a fazer parte dos movimentos artísticos
canal do Panamá, Japão, China e Filipinas. No cubistas e fauvistas, que procuravam uma me-
ano seguinte, viajou pela Espanha de bicicleta. diação entre a realidade e forças sociais hostis.
Entre 1934 e 1940, Verger foi membro de uma Diversos artistas, entre eles o jovem Picasso,
agência fotográfica de prestígio, a Alliance Photo, foram influenciados pelos objetos expostos no
e foi colaborador de diversos jornais e revistas: Museu do Trocadéro. Artistas ligados ao mo-
Paris-Soir, em 1934; Daily Mirror, em 1935-36; vimento surrealista também prestigiaram as
Life, em 1937; e Match, em 1938. Entre 1935 e coleções expostas, colaborando com os etnólo-
1937, Verger trabalhou para o Musée d’Ethnogra- gos, apesar de seus interesses estarem vincula-
phie du Trocadéro (Musée de l’Homme, em 1937), dos à perspectiva estética dos objetos.2
instituição dirigida por Paul Rivet e voltada para O Museu do Trocadéro foi fechado duran-
o estudo e difusão da diversidade cultural. Verger te a Primeira Guerra Mundial, sendo reaberto
passou a se interessar pela etnografia após seu em 1928, já com uma perspectiva antievolu-
contato com esse museu, que foi o primeiro de cionista, a partir das atividades de Paul Rivet
caráter etnográfico a ser fundado em Paris (Rego, e Georges Henri-Rivière. Dez anos mais tarde,
1993). O impacto do encontro de Pierre Verger também após o evento de uma Exposição Uni-
com o grupo de pensadores que participava das versal, o Museu do Homem foi criado, tendo à
atividades do Museu do Trocadéro não foi peque- frente Paul Rivet e agregando às coleções do
no. Ele manteve intenso diálogo ao longo de sua antigo museu as coleções de antropologia física
vida com esses intelectuais que, como veremos, do Museu Nacional de História Natural. O mu-
exerceram uma grande influência sobre seu pen- seu tornou-se conhecido por preservar a cultura
samento. Não é por acaso que sua primeira via- material das sociedades não ocidentais.3
gem à África foi em 1936. Para Paul Rivet, as coleções do museu ti-
O Museu do Trocadéro foi criado com o nham o compromisso de apresentar ao público
objetivo de preservar as coleções obtidas pe- a diversidade cultural e social presente nas ci-
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los viajantes franceses que eram enviados aos vilizações mundiais. Embora de formação mé-
diversos continentes com missões colonizado- dica, ele desempenhou um importante papel,
ras. Os antropólogos se voltavam para o estudo junto com Marcel Mauss e Lucien Lévy-Bruhl,
das sociedades ditas “primitivas”. O sucesso da entre outros, na criação de um laboratório de
exposição de objetos oriundos da África, Ásia, pesquisa, na Universidade de Paris, que envol-
América e Oceania, na Exposição Universal via a antropologia, a etnologia e a pré-história.
de 1878, facilitou a criação do museu. Ernest Revitalizou o ensino da etnologia, substituin-
Hamy, seu primeiro diretor, ao descrever as co- do a antropologia física por abordagens cultu-
leções que foram agregadas pelo museu, des- rais e humanistas. Investiu sistematicamente
tacou as coleções etnográficas que foram cole-
tadas a partir do reinado de Luís XVI (Hamy, 2
Em 2006, o Museu do Quai Branly foi inaugurado com
cerca de 300 mil peças da coleção etnográfica do Museu
1980). Apesar de as exposições procurarem do Homem, gerando muita controvérsia pelos critérios
mostrar a evolução contínua da humanidade estéticos adotados para a apresentação dos objetos sele-
cionados.
segundo a perspectiva científica da época, nar- 3
Na reorganização do acervo museológico, as coleções re-
rativas e coleções de objetos sempre trazem lacionadas à arte popular francesa foram transferidas para
o Museu Nacional de Artes e Tradições Populares, sendo
múltiplos sentidos e podem ser apropriadas de Rivière seu primeiro diretor.
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no estudo das línguas dos diversos povos, de- Nas palavras de Alfred Métraux, por
fendendo uma visão difusionista e procurando exemplo, a etnografia deveria ser destituída de
aprofundar o horizonte histórico das sociedades teoria, ou seja, de sistemas de conceitos exte-
não ocidentais. Foi um defensor incansável da riores aos fatos observados (Lühning 2004, p.
ideia de que todos os homens possuíam igual 63). Esses pensadores defendiam, em alterna-
capacidade inventiva e criadora.4 Em torno, pri- tiva às teorias que os antecediam, a resistência
meiro, do Museu do Trocadero e, depois, do Mu- a teorias pré-concebidas no desenvolvimento
seu do Homem, havia, portanto, um importante do trabalho de campo e a diversidade apresen-
grupo de intelectuais que se destacou tanto por tada nas práticas culturais de povos não euro-
renovar os estudos etnográficos como pela de- peus. Tratava-se, sem dúvida, de uma guinada
fesa de uma agenda antifascista e antirracista. teórica que procurava se desvencilhar de an-
Os princípios adotados por Verger, em tigos estereótipos e preconceitos incorporados
suas fotografias, não estavam distantes daque- às atividades ditas científicas. Embora a nova
les empregados pelos seus amigos etnógrafos abordagem procurasse, de alguma forma, re-
em seus trabalhos de campo. Para ele, a foto- velar o “real”, sem intermediações, ela, evi-
grafia deveria expressar a cumplicidade e o jogo dentemente, não era destituída de princípios
travado entre o fotógrafo e aquele que seria foto- teóricos. A renovação teórica que ocorria en-
grafado. A grande quantidade de closes tirados tre antropólogos tinha pontos de contato com
por Verger mostra que havia uma proximidade outros movimentos de artistas, literatos e cine-
muito grande entre seu olhar e o do “outro”. Sua astas, que rejeitavam teorias pré-concebidas e
fotografia, mais do que um momento, registrava procuravam, nas obras de arte, um valor que
uma relação. Podemos, dessa forma, compreen- lhes fosse intrínseco.
der a afirmação de Verger de que sua intenção Verger compartilhou, portanto, o mesmo
era fotografar sem ter hipóteses sobre seu ob- interesse que estava presente em um grande
jeto, evitando perguntas. Ele se interessava por número de intelectuais de sua época: apre-
captar sorrisos, rostos, expressões que se encon- sentar ao mundo, através de um novo olhar,
travam nos portos, nas ruas, nos bairros e em os povos não europeus em sua diversidade
festas populares. Diferentemente da tradição sociocultural. Como foi pontuado por Baradel
mantida no campo fotográfico, seu objetivo não (2002), as fotografias feitas por Verger ofere-
era produzir uma foto de composição; ele negli- ciam um verdadeiro ar fresco e novo para o pú-
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Latina, visitou as cidades de São Paulo e Rio de tornou um marco para seus praticantes. Parti-
Janeiro, procurando um trabalho que lhe per- ciparam do Congresso tanto os representantes
mitisse ficar no Brasil. Já se encontrava no Rio dos grandes candomblés da Bahia como inte-
de Janeiro Marcel Gautherot, também um fotó- lectuais envolvidos com sua defesa, entre eles
grafo francês que fora associado ao Museu do os brasileiros Edson Carneiro e Arthur Ramos,
Homem. Gautherot se dedicava às paisagens, conhecidos por seus estudos sobre religiões de
tinha um comprometimento estético mais apu- matriz africana, e os antropólogos norte-ame-
rado, e acabou por se integrar ao círculo de in- ricanos Donald Pierson e Melville Herskovits.
telectuais brasileiros ligados ao modernismo, Quando Verger chegou ao Brasil, encon-
que incluía Mario de Andrade, Lucio Costa, trou o regime autoritário de Getúlio Vargas,
Burle Marx, Carlos Drummond de Andrade e que estava em vigor desde 1937, e uma situa-
outros. Foi nesse período, portanto, isto é, em ção política tensa. Jorge Amado, por exemplo,
1941, que Verger chegou ao Rio de Janeiro e membro do Partido Comunista, saíra do país,
tirou suas fotos tanto de paisagens como de procurando exílio na Argentina e no Uruguai.
festas e bairros populares. Assim, após passar pelo Rio de Janeiro, em
Como vimos anteriormente, a dimensão 1941, Verger deixou a cidade e foi para Buenos
estética não era priorizada por Verger, que se en- Aires, colaborando com os jornais Argentina
contrava bem próximo das abordagens etnográ- Libre e Mundo Argentino. Esteve no Peru, entre
ficas e da valorização da diversidade cultural. 1942 e 1946, associado ao Museu Nacional de
Segundo declarações suas, ao chegar ao Brasil, Lima. Em 1946, já com o regime democrático
ele já havia lido Jubiabá, de Jorge Amado, obra instalado, voltou ao Brasil, e, após uma breve
que fora traduzido na França com o título de passagem pelo Rio de Janeiro, fixou residência
Bahia de tous-les-saints, e que divulgava, pelo em Salvador, num quarto de hotel na cidade
mundo, as tradições religiosas de matriz afri- alta, atualmente centro histórico, com vista
cana encontradas em Salvador (Rego, 1993). O para os telhados da cidade baixa e para o mer-
romance conta a história de Antonio Balduíno, cado. Para estabelecer-se no país, foi impor-
um herói popular, negro e pobre, que tira sua tante a obtenção da proposta de trabalho em
força de Jubiabá, o pai de santo do Morro do O Cruzeiro, revista de grande circulação, para
Capa Negro, que trazia sempre um ramo de fo- a qual contribuiu com suas fotos até 1951. Já
lhas e resmungava palavras em nagô. Jubiabá instalado em Salvador, partiu para o nordeste
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estava à frente dos rituais de candomblé, reza- em busca de reportagens e iniciou o conjunto
va os doentes que o procuravam, produzindo a de travessias entre Brasil e África, que foram
cura, e representava, para Balduíno, a liberdade mantidas ao longo de sua vida.
e a sabedoria das florestas africanas, uma vez
que a maior parte dos negros que morava no
morro havia sido submetida às leis da escravi- INTÉRPRETE DOS CULTOS E TRA-
dão, dos senhores brancos e ricos. DIÇÕES AFRICANAS DE SALVADOR
É importante destacar que, na década de
1940, o Brasil atraía a atenção de intelectuais Eu me deixei tomar completamente pela questão
e de estrangeiros que procuravam se distanciar dos cultos e tradições africanas na Bahia. É como
das teses eurocêntricas e evolucionistas e pro- se eu estivesse enfeitiçado e dedico-me quase que
curavam compreender a “democracia racial” exclusivamente a isto desde o meu retorno (Carta de
Verger para Alfred Métraux de 24/01/1948. Acervo
existente no país. Nesse contexto, assumia
Fundação Pierre Verger).
uma maior importância a presença da cultura
africana no Brasil. Em 1937, foi organizado, em
Salvador, o II Congresso Afro-Brasileiro, que se Uma vez finda a Segunda Guerra Mun-
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dial, em 1945, Paul Rivet assumiu novamente um dos maiores defensores do candomblé baia-
a direção do Museu do Homem e dedicou-se no.6 Segundo Mãe Stella de Oxóssi:
às investigações sobre América Latina, defen-
Jorge Amado, ateu que acreditava em Oxóssi, es-
dendo o lugar do índio nas diversas nações colhido como Obá de Xangô no Ilê Opô Afonjá,
andinas e posicionando-se contra o racismo. foi para nós um sacerdote ‘ministro da Justiça’ que
Também no ano de 1945, a Organização das atuou de maneira marcante, uma vez que foi através
Nações Unidas (ONU) foi formada. Três anos dele que o candomblé passou a ser constitucional-
depois, foi proclamada a Declaração Universal mente visto como religião, o que fez com que seus
adeptos não precisassem mais pedir licença à polí-
dos Direitos dos Homens, que afirmou que to-
cia para adorar Olorum – o Grande Criador – e os
dos os seres humanos, sem distinção, nomea- Orixás – as divindades auxiliares (Fundação Pierre
damente de raça, de cor, de sexo, de língua, de Verger, 2012, p. 34).
religião, de opinião política ou outra, nascem
livres e iguais em dignidade e direitos. Práticas Tal como Jorge Amado, Carybé e outros
discriminatórias em termos de raça tornaram- tantos intelectuais, Verger, embora agnóstico,
se mais difíceis de legitimação pela ciência ou adotou o candomblé, passando a admirar a
por políticas de Estado. No campo intelectual, imensa liberdade de sentimentos entre seus
combatia-se o racismo “científico”, isto é, teo- participantes. Em 1948, conheceu D. Maria
rias que afirmavam a superioridade biológica Bibiana do Espírito Santo, Mãe Senhora, a
ou genética da população europeia. Data desse Yalorixá do Ilê Axê Opô Afonjá, o que foi de-
período, o fortalecimento de movimentos na- terminante em sua vida. A partir da autodeter-
cionalistas africanos, que foram responsáveis minação dos povos africanos, os cultos propor-
pela independência de diversas nações colo- cionavam a seus adeptos o orgulho por suas
niais. Fazia parte da agenda desses movimen- origens e conferiam dignidade a seus partici-
tos, lado a lado do direito à autodeterminação, pantes, que passavam a ser respeitados por se-
a retomada dos mitos, dos rituais e dos orixás rem herdeiros de tradições orais e mitos mar-
africanos, que haviam sido substituídos pelos cados por complexidade e riqueza de detalhes.
deuses dos povos colonizadores. Certamente, Para toda uma geração de intelectuais, provar
toda essa conjuntura política teve repercussões a africanidade desses cultos representava uma
no olhar de Pierre Verger sobre o Brasil, país em postura política, pois desafiava as teorias eu-
que os cultos religiosos de matriz africana es- rocêntricas que postulavam a fácil assimilação
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São Paulo. A pesquisa apontou uma integração canas em solo brasileiro, e não mais a superiori-
dos indivíduos de cor às classes médias, uma dade de uma cultura sobre outra.
vez que os autores compreenderam que os pro-
cessos capitalistas de seleção de mão de obra
não estariam relacionados à cor ou raça. As FLUXOS E REFLUXOS: para além
diferenças raciais foram compreendidas como da interpretação
resultado das exclusões que haviam ocorrido
na sociedade escravista. Bastide foi responsá- A escolha de Verger por Salvador e o
vel por dois capítulos desse livro, com análises desdobramento de seu trabalho foram ante-
que assinalavam que a industrialização não re- 9
Ver Bastide e Fernandes 1955. Ainda para uma análise
presentava rompimento com o passado e que sobre obra de Roger Bastide, ver Peixoto 2000.
havia a convivência entre sobrevivências da 10
Ver a apresentação de Lévi-Strauss, de 26 de maio de
1956, sobre a relação entre a mitologia e o ritual, seguida
sociedade escravista e inovações da sociedade de debate com diversos participantes, entre outros Louis
capitalista. Tal tema foi desenvolvido nos tra- Dumont, Alfred Métraux, Jacques Lacan, Maurice Mer-
leau-Ponty e Lucien Goldmann. Philosophie des sciences,
699-722. http://pt.scribd.com/doc/27390069/Levi-Strauss-
8
Sobre a formação do projeto UNESCO e seus desdobra- Sur-les-rapports-entre-la-mythologie-et-le-rituel, acessado
mentos no Brasil, ver Maio, 1999. em 15/04/2013.
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Sobre o tema, ver Guimarães, Antonio Sergio A. Comen-
tários à correspondência entre Melville Herskovits e Ar-
thur Ramos (1935-1941). http://www.fflch.usp.br/sociolo-
gia/asag/Coment%E1rios%20%E0%20correspond%EAn-
cia%20entre%20Herslovits%20e%20Ramos.pdf. Acesso
em 20/12/2013.
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Para uma análise desse debate e suas repercussões no
Brasil, ver Sansone (2012).
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marcas que têm sido reiteradas e reinventadas uma diversidade de imagens referente a três
nas últimas décadas, na construção política e séculos de registro do negro no Brasil, do XVII
econômica de cidades que se tornaram símbo- ao XIX (Moura, 2000), a sensação mais comum
los seja da “mestiçagem”, seja da “africanida- transmitida pelo encontro entre estrangeiros e
de”. Para evitar esses dualismos, é interessante descendentes de africanos tem sido a de des-
lembrar que a “Maria Lata D´água”, representa- conforto latente.
da como um tipo carioca, traz elementos de uma No século XIX, aqueles que chegaram
prática bastante presente na África, tanto antiga, à cidade do Rio de Janeiro não economizaram
como contemporânea, que é a de carregar objetos seus elogios à natureza deslumbrante, que in-
na cabeça. Mais do que mero hábito utilitário, cluía a mata e, muitas vezes, os povos indí-
esse costume está presente em práticas rituais. genas. O mesmo não acontecia na descrição
É o que mostra o quadro exibido no Museu Na- dos escravos. Na missão composta por artistas
cional do Gana. Nele, uma rainha coloca peque- franceses, na década de 1820, destacaram-se
nos vasos sobre as cabeças de jovens enfileiradas as obras de Jean-Baptiste Debret e Johann Mo-
como parte de um ritual de iniciação. ritz Rugendas. Não se pode negar que é muito
mais conhecida no país a imagem de Debret,
que mostra um indivíduo levando chibatadas
no Pelourinho, chamada Açoite, do que outra
que mostra um grupo festivo tocando instru-
mentos musicais num cortejo de domingo, in-
titulada Marimba. No período republicano, em
que a escravidão já havia sido abolida, man-
teve-se, para descrição da escravidão, a ênfa-
se nas imagens que reproduziam os castigos
e mutilações impostos aos corpos dos indiví-
duos escravizados. Não se trata de amenizar o
passado violento da escravidão, mas de apon-
tar os processos seletivos de fotografias no pe-
ríodo pós-abolicionista.
Contemporaneamente, abre-se espaço
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Essa mudança do olhar para o passado ALENCASTRO, Luís Felipe. O trato dos Viventes.
A Formação do Brasil no Atlântico Sul. São Paulo,
colonial e seu sistema escravista deve muito aos Companhia das Letras, 2000.
trabalhos de Pierre Verger, que se inseriu no de- BARADEL, Alex. Um Fotógrafo Livre. In LODY, Raul;
Baradel, ALEX (eds). O olhar viajante de Pierre Verger.
bate racial, inicialmente, com um conjunto im- Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002. p. 18-23.
portante de imagens sobre práticas religiosas, e, BASTIDE, Roger; FERNANDES, Florestan. Relações
raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo,
logo depois, com uma tese e vários artigos sobre Anhembi, 1955.
os fluxos migratórios e o intercâmbio cultural _______. Le Candomblé de Bahia (rite Nagô). Paris:
Mouton, 1958.
entre Benin e Salvador. Embora nem a matéria
_______. Les religions africaines au Brésil. Paris: Presses
jornalística nem a exposição do Copacabana Pa- Universitaires de France, 1960.
lace tenham destacado a importância da cultura FUNDAÇÃO PIERRE VERGER. Caribé, Verger & Jorge:
africana no cotidiano das duas cidades, ainda Obás da Bahia. Salvador: Fundação Pierre Verger/Lauro de
Freitas: Sisluna Editora, 2012.
que com suas especificidades, certamente esse HAMY, E.T. Les origines de Musée d’ethnographie, histoire
foi o ponto de partida do fotógrafo. et documents. Paris: Ernest Leroux Éditeur, 1890. Disponvel
em: http://archive.org/stream/lesoriginesdumus01hamy.
No Brasil contemporâneo, a reprodução e Acesso em: 11 jul. 2013.
a seleção de imagens sobre a população afrodes- LAURIÈRE, Christine. Paul Rivet (1876-1958), le savant
et le politique. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, 2007.
cendente apresentadas ao grande público acon- Disponível em: http://nuevomundo.revues.org/3365.
tecem, na maioria das vezes, a partir de perspec- Acesso em: 11 jul. 2013.
tivas que criam estereótipos, infantilizam indi- LIENHARD, Martin. Sergio Santimano: o Moçambique
dos “pobres” ou a escola da vida. In:_________(org.)
víduos e tornam invisível a questão racial. Na Discursos sobre (l)a pobreza: America Latina y/e países
luso-africanos. Madrid: Iberoamericana, p. 217-224, 2006.
matéria jornalística que deu início a este artigo,
LODY, Raul. O olhador do mundo. In: LODY, Raul;
observamos o último caso. Nela, não estava pos- BARADEL, Alex (eds). O olhar viajante de Pierre Verger.
Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002. p. 10-15.
ta a oposição entre duas cidades, mas a invisi-
LÜHNING, Angela E. Pierre FatumbiVerger e sua Obra.
bilidade da negritude, que certamente está rela- Afro-Ásia, n. 21, 1998-9. p. 315-364.
cionada ao racismo à brasileira. Em oposição ao ______. Uma biografia diferente. In: LODY, Raul;
BARADEL, Alex (eds). O olhar viajante de Pierre Verger.
olhar de Verger, que estava interessado em desta- Salvador: Fundação Pierre Verger, 2002. p. 201-203.
car, de forma positiva, a presença de práticas, há- ______. (Org). Verger-Bastide: dimensões de uma amizade.
na no Brasil, a matéria traduz aquelas imagens ______. Pierre Verger: repórter fotográfico. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2004.
como “tipos urbanos”. Independentemente do MAIO, Marcos Chor. O projeto UNESCO e a agenda
fotógrafo e de sua obra, que apesar de ganharem das ciências sociais no Brasil dos anos 40 e 50. Revista
Brasileira de Ciências Sociais, n. 41, 1999. p. 141-158.
significados distintos ao longo do tempo, foram
MOURA, Carlos Eugênio Marcondes de. A travessia da
responsáveis pelo fortalecimento de um novo Calunga Grande: três séculos de imagens sobre o negro no
Brasil. São Paulo: Edusp, 2000.
olhar sobre a questão racial no Brasil, invertendo
MÉTRAUX, Alfred; VERGER, Pierre. Le pied à l’étrier.
a valorização negativa atribuída a algumas práti- Correspondance 1946-1963. Paris: Éditions Jean-Michel
Place, 1994.
cas e retirando da invisibilidade muitas outras,
O GLOBO, Segundo Caderno, Coluna Gente Boa. 16. mar.
continuamos a conviver, no Brasil, com silêncio 2013. p. 3.
e estereótipos nas representações que temos de PEIXOTO, Fernanda Arêas. Diálogos brasileiros: uma
populações afro-brasileiras. análise da obra de Roger Bastide. São Paulo: Edusp/Fapesp,
2000.
PITREZ, Maria Cláudia. 23 de Abril – festa de São Jorge:
um estudo sobre a oficialização da festa de um dia santo
Recebido para publicação em 13 de agosto de 2014 em feriado municipal na cidade do Rio de Janeiro. Rio de
Aceito em 23 de novembro de 2014 Janeiro: UFRJ/IFCS (dissertação de mestrado no Programa
de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia), 2007.
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UM VERGER, DOIS OLHARES...
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Maurício Barros de Castro, Myrian Sepúlveda dos Santos
ONE VERGER, TWO LOOKS: the construction of UN PIERRE VERGER, DEUX REGARDS: la
Brazilian africanity by a foreigner construction de l’africanité brésilienne par un étranger
Over the last decades a reflection upon the foreign Les réflexions faites sur le regard étranger ont
look has become frequent, mainly from the point été fréquentes au cours des dernières décennies,
of view of critics to the creation of an imaginary surtout si l’on prend en considération les critiques
filled with exoticism and sensuality associated to sur la formation d’un imaginaire rempli d’exotisme
the tropics. So it is not an exaggeration to state that et de sensualité associé aux tropiques. Il n’est
the problems with the representations, uses and donc pas exagéré de dire que le problème des
overuses of the image of Brazilian afro-descendants représentations, de l’utilisation et des abus faits de
throughout the centuries is still an important focus l’image des descendants africains au Brésil, tout
for understanding the history of racial relations au long des siècles, constitue toujours un élément
in the country. However, it is not always that the important pour la compréhension de l’histoire des
exotic is sought in the tropics. This article analyzes relations raciales dans le pays. On n’est cependant
the impact of the look of Pierre Verger on the pas toujours à la recherche de l’exotisme sous les
construction of the African legacy in Brazil. tropiques. Cet article essaie d’analyser l’impact
du regard de Pierre Verger sur la construction de
l’héritage africain au Brésil.
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