Você está na página 1de 20

DIREITO

CONSTITUCIONAL

DIREITO CONSTITUCIONAL E TEORIA DA


CONSTITUIÇÃO

Poder constituinte

1. Conceito e origem

O poder constituinte é aquele que cria a Constituição e se responsabiliza por suas


mudanças posteriores. A teoria do poder constituinte é responsável por explicar
juridicamente o surgimento de uma nova Constituição e as consequências jurídicas que
decorrem disso.

A origem do Poder Constituinte remonta ao sistema antigo da França, que era uma
monarquia absolutista. A sociedade francesa era composta por três grupos sociais, que
posteriormente passaram a ser chamados de “estados”. Assim, na França absolutista,
rotulavam-se os grupos sociais em 1º, 2º e 3º estados.

O primeiro estado corresponderia ao clero, ou seja, aos membros da Igreja Católica.


O segundo estado correspondia à nobreza, aqueles que, por hereditariedade ou
concessão de títulos de nobreza, possuíam bens. Normalmente eram definidos pela sua
relação com a terra. O terceiro estado seria constituído da população restante, ou
seja, a plebe e a burguesia; aqueles que não faziam parte da igreja, não tinham títulos,
vendiam a sua força de trabalho ou eram comerciantes. Os privilégios se concentravam
nas mãos do primeiro e do segundo estado.

Em 1788, em um livro chamado “O que é o terceiro Estado”, o autor Emmanuel Joseph


Sieyès, notou que, do ponto de vista social e econômico, as pessoas que integravam o
terceiro estado eram, na verdade, o sustento da França, enquanto os privilégios e o
poder de participação na vida política se restringiam ao primeiro e ao segundo estados.
Em seu manifesto, Sieyès questionava a legitimidade de distribuição dessa forma de

Curso Ênfase © 2021 1


poder e fazia os seguintes questionamentos:

1ª) O que é o Terceiro Estado? – Tudo.

2ª) O que tem sido ele, até agora, na ordem política? – Nada.

3ª) O que ele pede? – Ser alguma coisa.

Em suma, Sieyès traz a ideia de que “a nação não é escrava da Constituição, e por isso
a nação pode alterar a Constituição por meio de representantes”.

Além disso, Sieyès faz a distinção entre poder constituinte e poder constituído,
sendo este o ponto central da teoria do Poder Constituinte.

O poder constituinte é o poder inicial, o que cria a constituição. Já os poderes


constituídos são os poderes estabelecidos pela Constituição. Dessa forma, os poderes
constituídos derivam do poder constituinte.

Assim, buscando uma maior participação do terceiro estado na política da época, a


expressão “Poder Constituinte” surge de forma explícita no Constitucionalismo francês.

O poder constituinte é o instrumento que transforma a decisão política em uma norma


jurídica da mais elevada categoria, a norma jurídica constitucional.

De acordo com José Gomes Canotilho, “o poder constituinte situa-se na fronteira do


direito constitucional, onde o direito constitucional e a política se tocam, não se
sabendo onde termina um e onde começa o outro”.

2. Titularidade do poder constituinte

Observa-se que para Sieyès a titularidade do poder constituinte era da “Nação”, que
corresponde à organização pessoal e social de um povo.

Ocorre que, posteriormente, doutrinadores constitucionalistas aprimoraram a ideia e a


titularidade do poder constituinte passou a ser “do povo”.

Essa transição já foi explorada em provas, com a correta afirmativa de que a

Curso Ênfase © 2021 2


titularidade do poder constituinte, em sua gênese, foi atribuída à nação e,
posteriormente, a doutrina constitucional aprimorou essa ideia para dizer que
seu titular é o povo.

Em conclusão, poder constituinte é a energia ou forma política fundada em si mesma,


que expressa a vontade máxima de um povo no que diz respeito à organização de seu
Estado. Esse preceito é traduzido no texto do art. 1º, parágrafo único, da Constituição
Federal (CF/1988) que adotou a teoria da soberania popular: “Todo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos
desta Constituição”.

Muito importante!
--
É preciso destacar que o titular do poder constituinte é o povo, pois
só este tem legitimidade. No entanto, o exercício do poder
constituinte em um regime democrático ocorre pela assembleia
nacional constituinte, ou seja, o povo escolhe seus representantes que
são então incumbidos de elaborar a Constituição.

..

3. Natureza jurídica do poder constituinte

Quanto à natureza jurídica do poder constituinte, existem duas correntes: a corrente


juspositivista de Hans Kelsen e a corrente jusnaturalista liderada por Tomás de Aquino.

Para os adeptos da corrente juspositivista, o poder constituinte é um poder de fato,


ou seja, é uma força fática e histórica que não possui como fundamento a norma
jurídica anterior. O poder constituinte é, então, pré-jurídico e dele decorrem todas as
normas jurídicas.

Para os que aceitam a corrente jusnaturalista, o poder constituinte é um poder de


direito e teria como base o “direito natural”. Assim, o poder constituinte teria
como fundamento algo jurídico, um direito anterior, e, por isso, é tido como um poder

Curso Ênfase © 2021 3


jurídico.

No Brasil, prevalece a corrente juspositivista de Kelsen, entendendo o poder


constituinte como um poder de fato. Nesse sentido se manifestou o Supremo Tribunal
Federal (STF):

A eficácia das regras jurídicas produzidas pelo poder constituinte (redundantemente


chamado de “originário”) não está sujeita a nenhuma limitação normativa, seja de
ordem material, seja formal, porque provém do exercício de um poder de fato ou
suprapositivo. Já as normas produzidas pelo poder reformador, essas têm sua validez e
eficácia condicionadas à legitimação que recebam da ordem constitucional. Daí a
necessária obediência das emendas constitucionais às chamadas cláusulas pétreas (ADI
nº 2.356 MC e ADI nº 2.362 MC, rel. p/ o ac. Min. Ayres Britto, julgado 25.11.2010,
P, DJe de 19.05.2011).

4. Espécies de poder constituinte

O poder constituinte pode ser originário ou derivado. Por sua vez, o poder constituinte
derivado pode ainda se subdividir em reformador e decorrente. Há ainda o poder
constituinte difuso, que consiste na alteração informal da Constituição e, atualmente, o
poder constituinte supranacional. Vejamos cada um deles.

4.1. Poder constituinte originário

Também chamado de genuíno, primário ou de primeiro grau, o poder constituinte


originário é aquele que cria ou permite a criação da primeira Constituição de um
Estado ou de uma nova Constituição para um Estado que já teve outra.

Suas características são as seguintes:

a) Inicial: pois não existe poder anterior ou superior a ele.

Diz-se inicial porque o exercício de um novo poder constituinte originário representa


um marco zero para o ordenamento jurídico. Isso não quer dizer que tudo será
destituído, ou que todas as leis deixarão de existir, pois a teoria da recepção nos
informa o que acontecerá com a ordem jurídica preexistente. Contudo, do ponto de
vista de fundamento de validade novo, a nova Constituição representa uma nova ordem

Curso Ênfase © 2021 4


jurídica por trazer um novo fundamento de validade para todas as normas
infraconstitucionais. Assim, diz-se que o poder constituinte originário é inicial porque
inaugura uma nova ordem jurídica, tendo como novo fundamento de validade aquela
nova Constituição.

b) Autônomo, pois tem autonomia para se desenvolver do modo como se entender


razoável.

c) Ilimitado juridicamente, por não ser subordinado a nenhuma ideia jurídica


preexistente, podendo dispor sobre o direito de forma livre.

O poder constituinte originário é juridicamente ilimitado porque não há, no seu


exercício, nenhum tipo de limite existente no direito anterior à nova Constituição. O
direito preexistente não traz nenhum tipo de limite material ao exercício do poder
constituinte originário.

No entanto, entende-se que o poder constituinte originário, apesar de não possuir


limites jurídicos, encontra limites nos valores e ideologias que informam a sociedade.
Assim, para ser exercido de forma legítima, esse exercício também deve encontrar
amparo e legitimidade nos titulares do referido poder.

d) Incondicionado, pois tem liberdade quanto aos procedimentos adotados na criação


da nova Constituição, não devendo atender a nenhuma regra preestabelecida.

O poder constituinte originário é incondicionado porque não há nenhum tipo de


procedimento preestabelecido para o seu exercício.

Cada vez que o poder constituinte originário se manifestar, ele mesmo preverá os meios
e termos do seu exercício. São as forças políticas daquele momento que dirão a maneira
como a nova Constituição será elaborada. Assim, não há como ter um detalhamento
prévio de como se dará uma Assembleia Nacional Constituinte, ou sequer se o poder
constituinte será exercido por meio de uma Assembleia.

Assim, o poder constituinte originário é incondicionado porque o seu procedimento e


suas formas de manifestação não são previstas por nenhuma norma jurídica anterior ao
seu exercício.

e) Permanente, pois não se esgota com a edição da nova Constituição, permanecendo


em latência para se manifestar novamente caso haja uma ruptura com a ordem

Curso Ênfase © 2021 5


estabelecida.

O poder constituinte originário se manifesta sucessivamente tantas vezes quantas


forem os chamados momentos constituintes ou momentos constitucionais.

a) Natureza jurídica do poder constituinte originário

Há quem diga, sobre a natureza jurídica do poder constituinte originário, que ele é um
poder de direito (corrente jusnaturalista) e há quem diga que se trata de um poder de
fato (corrente positivista), entendimento este que predomina.

Essa classificação se dá porque o poder constituinte não é informado, limitado ou


condicionado por normas jurídicas anteriores. O Direito não disciplina nem limita o
poder constituinte originário. Assim, é considerado um poder de fato, pré-jurídico,
anterior ao direito, criando-o. Assim, em questões de prova objetiva deve-se indicar a
alternativa que informa que o poder constituinte originário é um poder de fato.

Muito importante!
--
É importante destacar que, atualmente, critica-se a ideia de que o poder
constituinte originário é ilimitado, defendendo-se que o direito
internacional e os direitos humanos serviriam como limites jurídicos para
esse poder (TEIXEIRA, 1991). No entanto, esse não é o entendimento
que prevalece no Brasil, mas, sim, ainda predomina a perspectiva
ilimitada. Deve-se adotar, portanto, em provas, a ideia de que o poder é,
sim, ilimitado juridicamente.

..

b) Formas de manifestação

O poder constituinte originário é incondicionado, não existindo um procedimento


preestabelecido para a sua manifestação. Contudo, é possível apontar direções pelas
quais o poder constituinte é manifestado.

Curso Ênfase © 2021 6


Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza Neto, no livro Direito Constitucional:
teoria, história e métodos de trabalho, agrupam pelo menos oito formas de
manifestação, mas reconhecem que essa é apenas uma tentativa. Ou seja, não se trata
de rol taxativo, mas meramente didático, para que se visualizem maneiras pelas
quais uma nova Constituição pode ser elaborada.

Revolução vitoriosa

A primeira delas, segundo os juristas mencionados, é a revolução vitoriosa. O contexto


revolucionário significa uma ruptura abrupta e radical com o regime anterior,
normalmente com a transição de um regime autoritário para uma democracia.

Um exemplo de revolução é a francesa que causou a ruptura com o absolutismo e


resultou na segunda Constituição escrita do mundo.

Criação de um novo estado por agregação

Os referidos autores agrupam a formação de um novo Estado por agregação como uma
das formas de manifestação do poder constituinte originário.

Um exemplo foi a Constituição dos Estados Unidos de 1787 que teve como principal
objetivo unir as 13 colônias em uma federação.

Emancipação política

Uma terceira forma de manifestação do poder constituinte originário seria a


emancipação política, como aconteceu, por exemplo, no Brasil, com a Constituição de
1824 em virtude da declaração de independência, em 1822.

Colapso

Outra forma possível de manifestação do poder constituinte originário é no contexto de


colapso das instituições. Em um contexto de reconstrução do Estado, de pós-colapso,
novas constituições surgem como alternativas para reestruturar e reorganizar a
sociedade.

Grave crise

Uma diferença sutil no colapso é o contexto de grave crise, de instabilidade política e


social no qual há uma antecipação das forças políticas à situação insustentável do

Curso Ênfase © 2021 7


colapso. Antes do colapso, a crise demonstra a necessidade de uma nova Constituição.

Golpe de estado

Outra forma de manifestação do poder constituinte originário, não necessariamente


legítima, é o contexto de golpe de Estado, no qual algum grupo, normalmente por meio
da força ou de alternativas não democráticas, chega ao poder e institui uma nova
Constituição. Como ocorreu no Brasil em 1937 e 1967.

Transição pacífica

O poder constituinte originário também pode se manifestar no contexto de transição


pacífica, como o contexto de redemocratização do Brasil em 1988.

“Momentos constitucionais sem Constituição”

A última forma de manifestação seriam os “momentos constitucionais sem


Constituição”. Essa última classificação demonstra que é possível o exercício de um
poder constituinte em um momento histórico sem que o resultado seja necessariamente
uma Constituição escrita. Cita-se como exemplo a criação do Estado de Israel, que não
possui uma Constituição escrita. Apesar de não possuir uma Constituição formal, é
inegável que o momento político que levou à sua criação e os valores por trás do Estado
são parte do direito costumeiro e da jurisprudência aplicada no país, tendo
fundamentos de validade superiores à legislação ordinária.

Assim, é possível que o poder constituinte originário se manifeste e crie um Estado e


uma nova ordem jurídica sem que o resultado seja necessariamente uma Constituição
escrita.

4.2. Poder constituinte derivado reformador

O poder constituinte derivado reformador é o poder de reformar a Constituição


Federal. É aquele que deriva e se desdobra do poder constituinte originário.

Quanto à reforma da Constituição Federal (CF/1988), no Brasil, manifesta-se na


edição de emendas constitucionais (art. 60, CF/1988). A sociedade, o povo e a
realidade mudam, exigindo adaptações da Constituição. Se essas mudanças forem
muito drásticas, o poder constituinte originário será acionado, e uma nova Constituição
será feita. Se não for esse o caso, reformas podem ser realizadas pelo poder

Curso Ênfase © 2021 8


constituinte derivado.

a) Características do poder constituinte derivado


reformador

Por decorrer do poder constituinte originário, o poder constituinte derivado é


secundário, limitado e condicionado. Vejamos cada uma das características:

− Secundário: o poder constituinte derivado é secundário porque sua manifestação


depende de expressa previsão de Constituição, fruto do poder constituinte originário.
São os termos da nova Constituição que disciplinarão como ela poderá ser reformada –
se puder ser reformada –, se há a possibilidade de instituir Constituições estaduais etc.
Evidentemente, é um poder secundário, pois se manifesta de forma complementar ao
poder constituinte originário, que estabelece os termos de seu exercício.

− Juridicamente limitado: o poder constituinte derivado é juridicamente limitado


pela nova Constituição, sendo um poder de direito (diferente do poder de fato que
informa o poder constituinte originário). Assim, o poder constituinte derivado não
“pode tudo”. Existem, por exemplo, os limites materiais de reforma expostos nas
cláusulas pétreas da Constituição da República. Isto é, existem coisas que o poder
constituinte derivado não pode fazer porque o poder constituinte originário retirou do
alcance até mesmo da emenda da Constituição.

− Condicionado: o poder constituinte derivado é condicionado, pois existem regras


bastante detalhadas, estabelecidas na Constituição Federal, que dizem de que maneira
esse poder será exercido. Isto é, a CF/1988 disciplina de forma detalhada o processo de
elaboração de emenda constitucional, a elaboração de uma Constituição estadual etc.

b) Limitações do poder constituinte derivado reformador

O poder constituinte apresenta limitações explícitas, aquelas expressamente previstas


na Constituição e as implícitas, não previstas expressamente, mas oriundas dos valores
e princípios constitucionais.

As limitações podem ser de cunho temporal, que impedem a reforma da Constituição


durante determinado lapso de tempo. Atualmente, a CF/1988 não prevê limitações
temporais.

Curso Ênfase © 2021 9


Podem, ainda, ser de cunho circunstancial, as quais impedem a alteração
constitucional quando presentes circunstâncias que exprimam momentos de
instabilidade do Estado. No Brasil, por exemplo, não se pode reformar a Constituição
durante estado de defesa, estado de sítio e intervenção federal.

Existem, ainda, limitações de cunho formal/processual/procedimental. Essas podem


ser subjetivas, quando se exigem legitimados específicos para a propositura de
emendas constitucionais; e podem ser objetivas, exigindo quórum qualificado para
a aprovação de propostas de emenda constitucional.

Conforme previsto no caput, do art. 60 da CF/1988, a Constituição pode ser emendada


por proposta:

I – de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado


Federal;

II – do Presidente da República;

III – de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação,


manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros.

Quanto aos limites formais objetivos, temos, na Constituição, a previsão, no art. 60, §
2º, de que “a proposta será discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional,
em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos
dos respectivos membros”.

Temos, ainda, limitações materiais/substanciais, manifestas na previsão de que


determinadas matérias não poderão ser alteradas. Em nossa ordem, são as chamadas
cláusulas pétreas, previstas no art. 60, § 4º, CF/1988:

§ 4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:

I – a forma federativa de Estado;

II – o voto direto, secreto, universal e periódico;

III – a separação dos Poderes;

IV – os direitos e garantias individuais.

Curso Ênfase © 2021 10


--
Muito importante!

A característica de ser o voto obrigatório não é cláusula pétrea, podendo


ser alterada para facultativa por emenda constitucional.

..

É importante destacar que o STF (ADPF nº 33-MC) já proferiu decisão adotando a


tese/teoria dos direitos análogos. Assim, apesar de formalmente os direitos e
garantias individuais serem apenas os presentes no art. 5º, existem direitos
individuais fora desse artigo, também protegidos pelo previsto no art. 60, § 4º, inciso
IV. Esses direitos teriam características análogas às dos direitos do art. 5º da CF/1988,
por isso a proteção.

Como exemplo pode-se mencionar o princípio da anterioridade anual tributária, que


prega que um tributo não pode ser criado e cobrado no mesmo exercício financeiro. No
julgamento, o STF entendeu que qualquer proposta tendente a abolir essa
anterioridade tributária seria inconstitucional, pois esse é um direito individual análogo
àqueles direitos previstos no art. 5º da CF/1988 (STF, RE nº 587.008, rel. Min. Dias
Toffoli, julgado em 02.02.2011, Tribunal Pleno, DJe 06.05.2011, Tema nº 107)

Vale ressaltar que as cláusulas pétreas são protegidas apenas de serem abolidas ou de
terem seu núcleo essencial violado. Isso não significa que sejam imutáveis ou
intocáveis. É possível sua modificação para o seu aperfeiçoamento ou ampliação.
Exemplo disso é que o inciso LXXVIII, do art. 5º, CF/1988, foi inserido pela EC nº
45/2004. Se as cláusulas pétreas fossem intocáveis, nem sequer se poderia ter a
ampliação do rol dos direitos previstos nesse artigo.

Frise-se, então: o que se veta é a deliberação de proposta de emenda


constitucional tendente à abolição. Pode-se ter ampliação, correção de redação e
alterações que visem ao progresso das cláusulas pétreas.

Por fim, temos limites implícitos ao poder constituinte derivado, que seriam os
decorrentes do próprio sistema, ou seja, essenciais à manutenção das regras básicas.
São, portanto, regras que não constam no § 4º do art. 60 da CF/1988, mas que gozam
de proteção implícita.

Curso Ênfase © 2021 11


Implícita também é a vedação à chamada dupla revisão que consiste na revogação
da cláusula pétrea em um primeiro momento e a posterior abolição do direito por ela
protegido. A teoria da dupla revisão não é admitida no ordenamento jurídico brasileiro.

4.3. Poder constituinte derivado decorrente

O poder constituinte derivado decorrente está relacionado com o pacto federativo, pois
é aquele conferido aos Estados-membros para a edição de suas Constituições
Estaduais, conforme previsto no art. 25, caput, da CF/1988.

O poder constituinte derivado decorrente é o poder de criar e reformar


Constituições estaduais. Divide-se em poder constituinte derivado decorrente
institucionalizador, que diz respeito à criação de Constituições estaduais e poder
constituinte derivado decorrente de reforma, que possibilita a reforma das
Constituições Estaduais por meio das respectivas Assembleias Legislativas.

A capacidade dos estados de criar suas Constituições está prevista em dois dispositivos:
art. 25 da CF/1988 e art. 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT).

CF/1988, art. 25. Os Estados organizam-se e regem-se pelas Constituições e leis que
adotarem, observados os princípios desta Constituição.

ADCT, art. 11. Cada Assembleia Legislativa, com poderes constituintes, elaborará a
Constituição do Estado, no prazo de um ano, contado da promulgação da Constituição
Federal, obedecidos os princípios desta. (Grifos nossos.)

As expressões “observados os princípios” desses dispositivos indicam que o poder


constituinte derivado decorrente é limitado pelo originário.

Muito importante!
--
O poder constituinte derivado decorrente está sujeito aos mesmos limites
descritos anteriormente.

..

Curso Ênfase © 2021 12


O princípio da simetria é uma das limitações impostas ao poder constituinte derivado
decorrente, pois impõe que o modelo instituído pelas Constituições estaduais observe,
no que for cabível, a CF/1988.

A CF/1988 estabelece certas diretrizes e modelos que devem ser reproduzidos e


adotados de forma obrigatória nos Estados: são as chamadas normas de reprodução
obrigatória. Como exemplo de uma norma de reprodução obrigatória, temos o art. 2º
da CF/1988, que informa que são poderes da União, independentes e harmônicos entre
si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Assim, não pode uma Constituição estadual
subverter esse modelo e organização.

A jurisprudência do STF possui uma vasta jurisprudência acerca das normas de


reprodução obrigatória pelos estados. Vejamos:

a) Preâmbulo da Constituição Federal: o preâmbulo não possui valor normativo,


corresponde a uma carta de intenções ou uma maneira de o constituinte indicar de
forma mais clara suas convicções políticas e ideológicas para auxiliar o intérprete na
compreensão da Constituição. Nesse contexto, o STF entendeu que o preâmbulo não é
uma norma jurídica, bem como não é de reprodução obrigatória nas constituições
estaduais.

EMENTA: CONSTITUCIONAL. CONSTITUIÇÃO: PREÂMBULO. NORMAS CENTRAIS.


Constituição do Acre. I. Normas centrais da Constituição Federal: essas normas são de
reprodução obrigatória na Constituição do Estado-membro, mesmo porque,
reproduzidas, ou não, incidirão sobre a ordem local. Reclamações 370-MT e 383-SP
(RTJ 147/404). II. Preâmbulo da Constituição: não constitui norma central.
Invocação da proteção de Deus: não se trata de norma de reprodução
obrigatória na Constituição estadual, não tendo força normativa. III. Ação direta
de inconstitucionalidade julgada improcedente (ADI nº 2.076/AC, rel. Min. Carlos
Velloso, Tribunal Pleno, julgado em 15.08.2002, DJ 08.08.2003, PP-00086 EMENT VOL-
02118-01 PP-00218 – grifos nossos).

b) Comissões parlamentares de inquérito

Outra situação que costuma aparecer em provas é relativa às comissões parlamentares


de inquérito (CPIs), que consistem em órgãos de investigação do Congresso Nacional.
As conclusões das investigações conduzidas por uma CPI serão encaminhadas ao
Ministério Público, que atuará conforme sua convicção utilizando tais informações para
uma ação penal, por exemplo.

Curso Ênfase © 2021 13


A CF/1988 previu que basta um terço das assinaturas dos membros de cada casa para
criar uma CPI. O Supremo entende que esse quórum é ideal para representar as
minorias do parlamento, possibilitando que a abertura de uma CPI exija o mínimo de
votos a favor. Assim, não pode uma Constituição estadual, por meio de um quórum
maior, dificultar que as minorias exerçam controle sobre a maioria. Em suma, uma
Constituição estadual não pode determinar mais do que a metade, 2/3, para a criação
da CPI. O modelo federal de criação e instauração da CPI é matéria a ser
compulsoriamente observada pelas casas legislativas estaduais.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. ARTIGOS 34, § 1º, E 170, INCISO I,


DO REGIMENTO INTERNO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DE SÃO
PAULO. COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO. CRIAÇÃO. DELIBERAÇÃO DO
PLENÁRIO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. REQUISITO QUE NÃO ENCONTRA
RESPALDO NO TEXTO DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. SIMETRIA. OBSERVÂNCIA
COMPULSÓRIA PELOS ESTADOS-MEMBROS. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 58, § 3º, DA
CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. A Constituição do Brasil assegura a um terço dos
membros da Câmara dos Deputados e a um terço dos membros do Senado Federal a
criação da comissão parlamentar de inquérito, deixando, porém ao próprio parlamento
o seu destino. 2. A garantia assegurada a um terço dos membros da Câmara ou do
Senado estende-se aos membros das assembleias legislativas estaduais – garantia das
minorias. O modelo federal de criação e instauração das comissões
parlamentares de inquérito constitui matéria a ser compulsoriamente
observada pelas casas legislativas estaduais. 3. A garantia da instalação da CPI
independe de deliberação plenária, seja da Câmara, do Senado ou da Assembleia
Legislativa. Precedentes. 4. Não há razão para a submissão do requerimento de
constituição de CPI a qualquer órgão da Assembleia Legislativa. Os requisitos
indispensáveis à criação das comissões parlamentares de inquérito estão dispostos,
estritamente, no artigo 58 da CB/88. 5. Pedido julgado procedente para declarar
inconstitucionais o trecho “só será submetido à discussão e votação decorridas 24
horas de sua apresentação”, e, constante do § 1º do artigo 34, e o inciso I do artigo 170,
ambos da Consolidação do Regimento Interno da Assembleia Legislativa do Estado de
São Paulo (ADI nº 3.619/SP, rel. Min. Eros Grau, julgado em 01.08.2006, P, DJ
20.04.2007 – grifos nossos)

c) Emenda à Constituição

A CF/1988 prevê que a aprovação de emenda se dá por 3/5 dos membros em dois
turnos de cada casa do Congresso Nacional (Câmara dos Deputados e Senado Federal).
Ocorre que o modelo legislativo estadual é unicameral, ou seja, apenas a Assembleia

Curso Ênfase © 2021 14


Legislativa delibera. Assim, para que os Estados reproduzam a regra prevista na
CF/1988 acerca das emendas constitucionais, a votação deverá ser feita por 3/5 dos
membros, em dois turnos de votação na Assembleia Legislativa.

Algumas constituições, porém, preveem o quórum de 4/5 para a reforma da


Constituição estadual. O STF entendeu que esse quórum é inconstitucional, por
violar o princípio da simetria.

Muito importante!
--
Nos municípios, não há manifestação do poder constituinte derivado
decorrente. Os Municípios se organizam com a edição de suas leis
orgânicas e não com Constituições Municipais.

..

Contudo, o Distrito Federal é um ente sui generis, pois sustenta o status de “Estado” da
Federação, mas se organiza por meio de lei orgânica e não de Constituição.

Apesar disso, o STF entende que, a Lei orgânica do Distrito Federal é fruto do poder
constituinte derivado decorrente e que ostenta status de uma verdadeira Constituição
Estadual (STF, ADI nº 3.756/DF).

4.4. Poder constituinte difuso

Poder constituinte difuso, chamado também de mutação constitucional, é a alteração do


sentido da norma constitucional sem que haja a alteração formal de seu texto. Trata-se
da mudança informal do texto da Constituição. O texto permanece intacto, mas o
sentido é modificado.

É o poder de fato que atua informalmente produzindo alteração do conteúdo, alcance e


sentido das normas constitucionais sem a modificação do texto.

A mutação constitucional pode ocorrer de diversas formas: pelos costumes, pelas


práticas sociais reiteradas, pela evolução da jurisprudência.

Curso Ênfase © 2021 15


É preciso saber que o poder constituinte difuso possui limites, assim, a interpretação e
a mudança informal de sentido das normas constitucionais por meio da mutação
constitucional não podem contrariar o próprio texto constitucional e os valores ali
contidos. Além disso, não pode ser exercido de forma a negar a força normativa da
Constituição.

4.5. Poder constituinte supranacional

O poder constituinte supranacional é uma concepção desenvolvida pelo professor


Daniel Sarmento e surge entrelaçado à ideia da existência das Constituições
Transnacionais. Assim, é o poder de fato encarregado de fazer e reformular as
constituições transnacionais, supranacionais ou globais.

A ideia de um constitucionalismo fora do Estado soberano vem sendo fortalecida por


alguns autores e está ligada a acontecimentos como o fortalecimento da proteção
internacional dos direitos humanos.

O poder constituinte supranacional descreve uma tendência que se observa


especialmente na União Europeia, que apesar de ainda não possuir uma Constituição,
caminha em processo gradual buscando espaço para normas jurídicas supranacionais
com fundamento de validade superior àqueles da soberania dos Estados.

5. Direito constitucional intertemporal

Quando ocorre uma nova manifestação do poder constituinte originário, surgindo uma
nova Constituição, existem alguns fenômenos que podem ser observados em relação ao
ordenamento jurídico anterior.

Passaremos a compreendê-los.

a) Revogação

Com o surgimento de uma nova Constituição ocorre a revogação integral da


Constituição anterior, ainda que não seja previsto expressamente.

Nesse ponto, cabe destacar que o ordenamento jurídico brasileiro não admite a tese da
inconstitucionalidade superveniente, assim, o Direito pré-constitucional existente

Curso Ênfase © 2021 16


resolve-se em juízo de revogação e não de análise de constitucionalidade.

Muito importante!
--
Vale lembrar que não se admite ação direta de inconstitucionalidade
(ADI) contra normas anteriores à Constituição, uma vez que o parâmetro
para a constitucionalidade daquelas seria a Constituição vigente à época
em que foram editadas, e não a atual. O que é admitido no STF (ADPF nº
33/PA) é a propositura de uma ADPF contra a norma, sendo discutida sua
recepção ou não recepção, e não sua constitucionalidade.

..

b) Desconstitucionalização

Segundo esse fenômeno, as normas da constituição anterior materialmente


constitucionais seriam revogadas e as normas apenas formalmente constitucionais que
não fossem incompatíveis com a nova Constituição poderiam ser recepcionadas com
status infraconstitucional.

Para que esse fenômeno ocorra, são necessários dois requisitos: somente pode se dar
com relação a normas formalmente constitucionais e só ocorre se houver previsão
expressa.

No Brasil, o fenômeno da desconstitucionalização, ou seja, tornar, na vigência da nova


Constituição, infraconstitucional uma norma constitucional, não é regra, devendo o
Constituinte, caso repute necessário, prever de modo expresso.

c) Recepção

A recepção corresponde ao fenômeno no qual as normas da ordem jurídica anterior são


recebidas e validadas em uma nova ordem constitucional. O critério para que a
recepção ocorra é a compatibilidade material com a nova Constituição. Se uma
norma for incompatível materialmente com a nova Constituição, ela não será
recepcionada, ocorrendo sua revogação. Importante ressaltar que o critério para que

Curso Ênfase © 2021 17


ocorra a recepção é a compatibilidade material com a nova Constituição, não sendo
necessário que exista compatibilidade formal. Exemplo disso é o Código Tributário
Nacional (CTN), editado na vigência da CF de 1946, sob a forma de lei ordinária. A
Constituição de 1967, assim como a CF/1988, exigia para a edição de normas gerais de
direito tributário, a forma de lei complementar. Não obstante, o Código foi
recepcionado, sendo atribuído a ele nova roupagem de lei complementar.

Quanto à recepção de normas constitucionais, temos a possibilidade de esta ocorrer de


forma transitória e expressa. Isso se deu em nossa atual ordem constitucional, como
se observa no art. 34, do ADCT, que previu a recepção provisória do sistema tributário
da Constituição de 1967.

d) Repristinação

Repristinação, por sua vez, é o fenômeno no qual ocorre o restabelecimento da vigência


de uma lei que havia sido revogada, em virtude da revogação da norma que a revogou.
Esse fenômeno, em nome da segurança jurídica, só poderia ocorrer por previsão
expressa, conforme indicado no art. 2º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas do Direito
Brasileiro – LINDB (Decreto-Lei nº 4.657/1942):

Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a
modifique ou revogue. (...)

§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei
revogadora perdido a vigência.

Muito importante!
--
É preciso saber que repristinação não é a mesma coisa que efeito
repristinatório. Efeito repristinatório, segundo o STF (ADI nº 2.215/PE),
seria a retomada da vigência de uma norma, em razão da declaração de
inconstitucionalidade da norma que a havia revogado. Esse efeito seria
inerente à declaração de inconstitucionalidade, pois a lei inconstitucional
é nula e nunca teve eficácia, de forma que nunca revogou nenhuma
norma.

Curso Ênfase © 2021 18


..

e) Constitucionalidade superveniente

Trata-se do fenômeno que ocorre quando o vício de


inconstitucionalidade de uma norma é sanado pelo surgimento
de uma nova Constituição ou emenda. Esse fenômeno não é
admitido em nossa ordem Constitucional.

A constitucionalidade de uma norma deve ser analisada com relação ao momento de


sua edição, de modo que, se for inconstitucional naquele momento, é nula, e não pode
viger. O vício de inconstitucionalidade é sempre congênito, ou seja, existe desde o
momento de edição da norma, sendo insanável.

Uma nova Constituição não pode, portanto, tirar o vício de uma norma que é
inconstitucional segundo o parâmetro constitucional de quando foi editada. Para o STF,
diz-se, ainda, que “a lei ou é constitucional ou não é lei” (STF, ADI nº 2/DF, rel. Min.
Paulo Brossard, Tribunal Pleno, julgado em 06.02.1992, DJe em 21.11.1997).

f) Retroatividade da norma constitucional

Na doutrina (LENZA, 2019, p. 236) são definidos três níveis de retroatividade: máxima,
média e mínima. A retroatividade máxima, também chamada restitutória, ocorre
quando a norma prejudica coisa julgada ou fatos jurídicos já consumados. A
retroatividade média ocorre quando a norma nova atinge efeitos pendentes de atos
que ocorreram antes dela. Já a retroatividade mínima, também chamada temperada
ou mitigada, se dá quando a nova norma atinge apenas efeitos de fatos anteriores que
ocorreram após sua vigência. O STF tem adotado o entendimento de que as normas
constitucionais têm, via de regra, retroatividade mínima (AI nº 258.337-AgR/MG, rel.
Min. Moreira Alves, 1ª Turma, julgado em 06.06.2000, DJe 04.08.2000).

Desse modo, seriam aplicáveis apenas a fatos ocorridos após sua promulgação, ainda
que referentes a negócios passados.

Contudo, nada impede o poder constituinte originário de adotar retroatividade


média ou máxima, se assim expressamente definir. Isso se dá porque esse poder é
ilimitado e incondicionado.

Curso Ênfase © 2021 19


No entanto, o mesmo não ocorre com relação ao poder constituinte decorrente, quando
da edição de Constituições Estaduais. Estas seguem a regra da irretroatividade da lei
(art. 5º, XXXVI, da CF/1988), sendo essa a regra aplicável, inclusive, às Emendas
Constitucionais (poder constituinte derivado reformador) e a quaisquer outras
normas do ordenamento jurídico.

Obra coletiva do Curso Ênfase produzida a partir da análise estatística de incidência


dos temas em provas de concursos públicos.
A autoria dos e-books não se atribui aos professores de videoaulas e podcasts.
Todos os direitos reservados.

Curso Ênfase © 2021 20

Você também pode gostar