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A Santa Sé

PRIMEIRAS VÉSPERAS DA SOLENIDADE


DE MARIA SANTÍSSIMA MÃE DE DEUS
E RECITAÇÃO DO "TE DEUM"

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI

Sábado, 31 de Dezembro de 2005

Caros irmãos e irmãs

No final de um ano, que para a Igreja e para o mundo foi riquíssimo de acontecimentos, ao
lembrar do mandamento do Apóstolo: "Caminhai... firmes na fé... transbordando em acções de
graças" (Cl 2, 6-7), esta noite encontramo-nos juntos para elevar um hino de agradecimento a
Deus, Senhor do tempo e da história. Meu pensamento dirige-se, com profundo e espiritual
sentimento, há doze meses quando, como nesta noite, o amado Papa João Paulo II, pela última
vez, se fez voz do Povo de Deus para dar graças ao Senhor pelos numerosos benefícios
concedidos à Igreja e à humanidade. Na mesma sugestiva moldura da Basílica Vaticana, agora é
a minha vez de recolher idealmente de todas as partes da terra o cântico de louvor e de
agradecimento que se eleva a Deus, ao concluir-se o ano de 2005 e na vigília de 2006. Sim, é
nosso dever, mais do que uma necessidade do coração, louvar e agradecer Àquele que, eterno,
nos acompanha no tempo sem jamais nos abandonar e vigia sempre sobre a humanidade com a
fidelidade do seu amor misericordioso.

Portanto, podemos dizer que a Igreja vive para louvar e agradecer a Deus. Esta mesma "acção
de graças", ao longo dos séculos, é testemunha fiel de um amor que não morre, de um amor que
envolve os homens de qualquer raça e cultura, disseminando de modo fecundo princípios de
verdadeira vida. Como recorda o Concílio Vaticano II, "a Igreja simultaneamente ora e trabalha
para que toda a humanidade se transforme em povo de Deus, Corpo do Senhor e templo do
Espírito Santo e, em Cristo, cabeça de todos, se dê ao Pai e Criador de todas as coisas toda a
honra e toda a glória" (Lumen gentium, 17). Sustentada pelo Espírito Santo, ela "prossegue a sua
peregrinação entre as perseguições do mundo e as consolações de Deus (Santo Agostinho, De
Civitate Dei, XVIII, 51, 2), haurindo força da ajuda do Senhor. Deste modo, com paciência e com
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amor, supera "as aflições e dificuldades internas e externas", e revela "fielmente ao mundo,
mesmo que sob a sombra dos sinais, o mistério do seu Senhor, até ao dia em que finalmente
resplandecerá na plenitude da luz" (Lumen gentium, 8). A Igreja vive de Cristo e com Cristo. Ele
oferece-lhe o seu amor esponsal, guiando-a ao longo dos séculos; e ela, com a plenitude dos
seus dons, acompanha o caminho do homem, para que aqueles que acolhem Cristo tenham vida
e a tenham em abundância.

Esta noite, faço-me voz sobretudo da Igreja de Roma, para elevar ao Céu o cântico comum de
louvor e de acção de graças. Ela, a nossa Igreja de Roma, nos doze meses transcorridos, foi
visitada por muitas Igrejas e Comunidades eclesiais, para aprofundar o diálogo da verdade na
caridade, que une todos os baptizados e experimentar juntas o mais vivo desejo da plena
comunhão. Também muitos crentes de outras religiões quiseram testemunhar a própria estima
cordial e fraterna a esta Igreja e ao seu Bispo, conscientes de que no encontro sereno e
respeitoso subjaz um espírito de acção concorde a favor da humanidade inteira. E o que dizer de
tantas pessoas de boa vontade que dirigiram o próprio olhar para esta Sede com a vontade de
um diálogo profícuo sobre os grandes valores concernentes à verdade do homem e da vida, para
a defender e promover? A Igreja quer ser sempre acolhedora, na verdade e na caridade.

No que diz respeito ao caminho da Diocese de Roma, agrada-me deter-me brevemente sobre o
programa pastoral diocesano, que este ano fixou a sua atenção na família, escolhendo como
tema: "Família e comunidade cristã: formação da pessoa e transmissão da fé". A família sempre
esteve no centro da atenção dos meus venerados Predecessores, em particular de João Paulo II,
que a ela dedicou múltiplas intervenções. Ele estava convicto, e em muitas ocasiões repetiu, que
a crise da família constitui um grave dano para a nossa civilização. Precisamente para acentuar a
importância da família fundada sobre o matrimónio na vida da Igreja e da sociedade, também eu
quis oferecer a minha contribuição intervindo, na tarde de 6 de Junho passado, no Congresso
diocesano de São João de Latrão. Estou feliz porque o programa da Diocese está a desenvolver-
se positivamente com uma minuciosa acção apostólica, que é realizada nas paróquias, nas
prefeituras e nas várias agregações eclesiais. Permita o Senhor que o esforço comum conduza a
uma renovação autêntica das famílias cristãs. Aproveito a ocasião para saudar os representantes
da Comunidade religiosa e civil de Roma presentes nesta celebração de fim de ano. Em primeiro
lugar saúdo o Cardeal Vigário, os Bispos Auxiliares, os sacerdotes, os religiosos e os fiéis leigos
provenientes das várias paróquias; saúdo também o Presidente da Câmara Municipal da Cidade
e as demais Autoridades. Estendo o meu pensamento à inteira comunidade romana, da qual o
Senhor me chamou para ser Pastor, e renovo a todos a expressão da minha proximidade
espiritual.

No início desta celebração, iluminados pela Palavra de Deus, cantámos juntos com fé o "Te
Deum". São muitos os motivos que tornam intensa a nossa acção de graças, fazendo dela uma
oração coral. Enquanto consideramos os múltiplos acontecimentos que assinalaram o decurso
dos meses neste ano que se está a concluir, quero lembrar de modo especial quem se encontra
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em dificuldade: as pessoas mais pobres e abandonadas, quantos perderam a esperança num
fundado sentido da própria existência, ou são vítimas involuntárias de interesses egoístas, sem
que se lhes peça a adesão ou opinião. Fazendo nossos os seus sofrimentos, confiemos-las a
Deus, que sabe dirigir todas as coisas para o bem; a Ele entreguemos a nossa aspiração para
que cada pessoa seja acolhida na própria dignidade de filho de Deus. Ao Senhor da vida
peçamos para aliviar com a sua graça as penas provocadas pelo mal e para continuar a dar vigor
à nossa existência terrena, doando-nos o Pão e o Vinho da salvação, para sustentar o nosso
caminho rumo à pátria do Céu.

Ao despedirmo-nos do ano que se encerra e encaminharmo-nos para o novo, a liturgia destas


primeiras Vésperas introduz-nos na festa de Maria, Mãe de Deus, Theotókos. A oito dias do
nascimento de Jesus, celebramos Aquela que "quando chegou a plenitude do tempo" (Gl 4, 4) foi
escolhida por Deus para ser a Mãe do Salvador. Mãe é quem dá a vida, mas também quem ajuda
e ensina a viver. Maria é Mãe, Mãe de Jesus, a quem deu o seu sangue, o seu corpo. E é ela que
nos apresenta o Verbo eterno do Pai, que veio habitar no meio de nós. Peçamos a Maria que
interceda por nós. A sua materna protecção nos acompanhe hoje e sempre, para que Cristo nos
acolha um dia na sua glória, na assembleia dos Santos: Aeterna fac cum sanctis tuis in gloria
numerari.

Amém!

© Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

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A Santa Sé

MISSA DA MEIA NOITE

SOLENIDADE DO NATAL DO SENHOR

HOMILIA DO SANTO PADRE BENTO XVI

Basílica Vaticana
Sábado, 24 de Dezembro de 2005

«O Senhor disse-Me: “Tu és meu filho, Eu hoje Te gerei”». Com estas palavras do Salmo
segundo, a Igreja dá início à Santa Missa da vigília de Natal, na qual celebramos o nascimento do
nosso Redentor Jesus Cristo no estábulo de Belém. Outrora, este Salmo pertencia ao ritual da
coroação dos reis de Judá. O povo de Israel, por causa da sua eleição, sentia-se de modo
particular filho de Deus, adoptado por Deus. Uma vez que o rei era a personificação daquele
povo, a sua entronização era vivida como um acto solene de adopção por parte de Deus, no qual
o rei ficava, de certo modo, envolvido no próprio mistério de Deus. Na noite de Belém, estas
palavras, que de facto eram mais a expressão duma esperança que realidade presente,
ganharam um sentido novo e inesperado. O Menino no presépio é verdadeiramente o Filho de
Deus. Deus não é perene solidão, mas um círculo de amor no recíproco dar-se e um dar-se sem
cessar. Ele é Pai, Filho e Espírito Santo. 

Mais ainda: em Jesus Cristo, o Filho de Deus, o próprio Deus Se fez homem. É a Ele que o Pai
diz: «Tu és meu filho». O hoje eterno de Deus desceu ao hoje efémero do mundo e arrasta o
nosso hoje passageiro para o hoje perene de Deus. Deus é tão grande que Se pode fazer
pequeno. Deus é tão poderoso que Se pode fazer inerme e vir ter connosco como menino
indefeso, para que O possamos amar. Deus é tão bom que renuncia ao seu esplendor divino e
desce ao estábulo para que O possamos encontrar e, assim, a sua bondade chegue também a
nós, se nos comunique e continue a agir por nosso intermédio. O Natal é isto: «Tu és meu Filho,
Eu hoje Te gerei». Deus tornou-Se um de nós, para que nós pudéssemos viver com Ele,
tornarmo-nos semelhantes a Ele. Como próprio sinal, escolheu o Menino no presépio: Deus é
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assim. Deste modo, aprendemos a conhecê-Lo. E em todo o menino brilha algo da luz daquele
hoje, da proximidade de Deus que devemos amar e à qual nos devemos submeter – em todo o
menino, mesmo na criança ainda não nascida. 

Ouçamos uma segunda palavra da liturgia desta Noite santa, tomada agora do Livro do profeta
Isaías: «Para os que habitavam na terra da escuridão, uma luz começou a brilhar» (9, 1). A
palavra «luz» permeia toda a liturgia desta Santa Missa. Aparece um novo aceno no texto da
carta de São Paulo a Tito: «Manifestou-se a graça» (2, 11). A palavra «manifestou-se» diz, em
língua grega e neste contexto, a mesma coisa que o hebraico exprime com as palavras «uma luz
brilhou»: a «manifestação» – a «epifania» – é a irrupção da luz divina no mundo cheio de
escuridão e de problemas insolúveis. Por fim, o Evangelho narra-nos que apareceu a glória de
Deus aos pastores e «cercou-os de luz» (Lc 2, 9). Onde aparece a glória de Deus, aí irradia a luz
pelo mundo. «Deus é luz e n’Ele não há trevas», diz-nos São João (1 Jo 1, 5). A luz é fonte de
vida. 

Mas luz significa sobretudo conhecimento, significa verdade em contraposição com a escuridão
da mentira e da ignorância. Deste modo, a luz faz-nos viver, indica-nos a estrada. Além disso,
enquanto gera calor, a luz significa também amor. Onde há amor, levanta-se uma luz no mundo;
onde há ódio, o mundo permanece na escuridão. É verdade, no estábulo de Belém, apareceu a
grande luz que o mundo espera. Naquele Menino deitado na manjedoura, Deus mostra a sua
glória – a glória do amor, em que Ele mesmo Se entrega em dom e Se despoja de toda a
grandeza para nos conduzir pelo caminho do amor. A luz de Belém nunca mais se apagou. Ao
longo de todos os séculos, envolveu homens e mulheres, «cercou-os de luz». Onde despontou a
fé naquele Menino, aí desabrochou também a caridade – a bondade para com todos, a carinhosa
atenção pelos débeis e os doentes, a graça do perdão. A partir de Belém, um rasto de luz, de
amor, de verdade atravessa os séculos. Se olharmos os Santos – desde Paulo e Agostinho até
São Francisco e São Domingos, desde Francisco Xavier e Teresa de Ávila até à Irmã Teresa de
Calcutá – vemos esta corrente de bondade, este caminho de luz que se inflama, sempre de novo,
no mistério de Belém, naquele Deus que Se fez Menino. Contra a violência deste mundo, Deus
opõe, naquele Menino, a sua bondade e chama-nos a seguir o Menino. 

Juntamente com a árvore de Natal, os nossos amigos austríacos trouxeram-nos também uma
pequena chama que tinham aceso em Belém, para nos dizer: o verdadeiro mistério do Natal é o
esplendor interior que irradia deste Menino. Deixemos que se comunique a nós esse esplendor
interior, que acenda no nosso coração a chama da bondade de Deus; todos nós levemos, com o
nosso amor, a luz ao mundo! Não deixemos que esta chama luminosa se apague por causa das
correntes frias do nosso tempo! Guardemo-la fielmente e demo-la aos outros! Nesta noite, em
que voltamos o nosso olhar para Belém, queremos também rezar de modo especial pelo lugar do
nascimento do nosso Redentor e pelos homens que lá vivem e sofrem. Queremos rezar pela paz
na Terra Santa: Olhai, Senhor, este ângulo da terra que, como pátria vossa, tanto amais! Fazei
que resplandeça lá a vossa luz! Fazei que lá chegue a paz!  
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Com o termo «paz», chegamos à terceira palavra-mestra da liturgia desta Noite santa. Ao Menino
que anuncia, Isaías chama-Lhe «Príncipe da paz». A propósito do seu reino, diz-se: «A paz não
terá fim». No Evangelho, é anunciado aos pastores: «Glória a Deus nas alturas e paz na terra…».
Outrora lia-se: «…aos homens de boa vontade»; na nova tradução, diz-se: «…aos homens que
Ele ama». Que significa esta mudança? Deixou de ter valor a boa vontade? Ponhamos melhor a
questão: Quais são os homens que Deus ama e porque é que os ama? Porventura Deus é
parcial? Porventura ama apenas certas pessoas, deixando as outras entregues a si mesmas? O
Evangelho responde a estas perguntas, mostrando-nos algumas pessoas concretas amadas por
Deus. Há pessoas individuais – Maria, José, Isabel, Zacarias, Simeão, Ana, etc. Mas há também
dois grupos de pessoas: os pastores e os sábios do Oriente, os chamados reis magos. Nesta
noite, detenhamo-nos nos pastores. Que espécie de homens são eles? No seu ambiente, os
pastores eram desprezados; eram considerados pouco sérios e, em tribunal, não eram admitidos
como testemunhas. Mas, quem eram na realidade? Certamente não eram grandes santos, se por
este termo entendemos pessoas de virtudes heróicas. Eram almas simples. O Evangelho
evidencia uma característica que mais tarde, nas palavras de Jesus, havia de ter um papel
importante: eram pessoas vigilantes. Isto vale primariamente em sentido exterior: de noite
vigiavam, perto das suas ovelhas. Mas vale também num sentido mais profundo: estavam
disponíveis à palavra de Deus. A sua vida não estava fechada em si mesma; o seu coração
estava aberto. De certo modo, no mais fundo de si mesmos, estavam à espera d’Ele. A sua
vigilância era disponibilidade – disponibilidade para ouvirem, disponibilidade para se porem
caminho. Estavam à espera da luz que lhes indicasse o caminho. E isto é o que interessa a Deus.
Ele ama a todos, porque todos são criaturas suas. Mas, algumas pessoas têm a sua alma
fechada; o seu amor não encontra qualquer acesso a eles. Pensam que não têm necessidade de
Deus; não O querem. Outros, que moralmente talvez sejam igualmente miseráveis e pecadores,
pelo menos sofrem com isso. Estes esperam Deus. Sabem que têm necessidade da sua
bondade, embora não tenham uma ideia precisa dela. No seu íntimo, aberto à expectativa, a luz
de Deus pode entrar, e com ela a sua paz. Deus procura pessoas que levem e comuniquem a
sua paz. Peçamos-Lhe para fazer com que não encontre fechado o nosso coração. Esforcemo-
nos por nos tornarmos capazes de ser portadores activos da sua paz – precisamente no nosso
tempo. 

Além disso, a palavra paz assumiu entre os cristãos um significado de todo especial: tornou-se
um nome para designar a Eucaristia. Nesta, está presente a paz de Cristo. Através de todos os
lugares onde se celebra a Eucaristia, estende-se uma rede de paz sobre o mundo inteiro. As
comunidades reunidas à volta da Eucaristia constituem um reino da paz largo como o mundo.
Quando celebramos a Eucaristia, encontramo-nos em Belém, na «casa do pão». Cristo dá-Se a
nós, e assim nos dá a sua paz. Dá-no-la para que levemos a luz da paz no nosso íntimo e a
comuniquemos aos outros; para que nos tornemos obreiros de paz e contribuamos assim para a
paz no mundo. Por isso, suplicamos: Senhor, realizai a vossa promessa! Fazei que, onde houver
discórdia, nasça a paz! Fazei que desponte o amor, onde reinar o ódio! Fazei que surja a luz,
onde dominarem as trevas! Fazei que nos tornemos portadores da vossa paz! Amen.
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© Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


DURANTE A CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
NA PARÓQUIA ROMANA DE SANTA MARIA CONSOLADORA

Domingo, 18 de Dezembro de 2005

Queridos irmãos e irmãs

Para mim é realmente uma grande alegria estar aqui convosco na manhã de hoje e celebrar a
Santa Missa convosco e para vós. Esta visita a Santa Maria Consoladora, primeira paróquia
romana que visito depois do Senhor me ter chamado para ser Bispo de Roma, é de facto para
mim, num sentido muito verdadeiro e concreto, um retorno a casa. Recordo-me muito bem
daquele 15 de Outubro de 1977, quando tomei posse desta minha Igreja titular. O pároco era o
Pe. Ennio Appignanesi, e os vice-párocos o Pe. Enrico Pomili e o Pe. Franco Camaldo. O mestre-
de-cerimónias que me tinha sido designado era Mons. Piero Marini. Eis que nos encontramos de
novo todos juntos aqui! Para mim, é realmente uma grande alegria.

A partir de então, o nosso vínculo recíproco tornou-se progressivamente mais forte, mais
profundo. Um vínculo no Senhor Jesus Cristo, de Quem nesta igreja celebrei muitas vezes o
Sacrifício eucarístico e administrei os Sacramentos. Um laço de afecto e de amizade, que
realmente aqueceu o meu coração e que o aquece também hoje. Um laço que me uniu a todos
vós, em particular ao vosso pároco e aos outros sacerdotes da paróquia. Trata-se de um vínculo
que não diminuiu, quando me tornei Cardeal titular da Diocese suburbicária de Velletri e Segni.
Um laço que adquiriu uma dimensão nova e mais profunda, pelo facto de ser já Bispo de Roma e
vosso Bispo.

Além disso, estou particularmente feliz porque a minha visita hodierna como o Pe. Enrico já disse
se realiza neste ano, em que celebrais o 60º aniversário da erecção da vossa paróquia, o 50º
aniversário da ordenação sacerdotal do nosso caríssimo pároco Mons. Enrico Pomili, e finalmente
o 25º aniversário de episcopado de D. Ennio Appignanesi. Portanto, um ano em que temos
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motivos especiais para dar graças ao Senhor.

Agora, saúdo com carinho precisamente Mons. Enrico, e agradeço-lhe as palavras tão amáveis
que me dirigiu. Saúdo o Cardeal Vigário, Camillo Ruini, o Cardeal Ricardo Maria Carles Gordó,
Titular desta igreja e portanto meu sucessor neste Título, o Cardeal Giovanni Canestri, outrora
vosso amadíssimo pároco, e o Vice-Gerente, Bispo do Sector Leste de Roma, D. Luigi Moretti; já
saudámos D. Ennio Appignanesi, que foi vosso pároco, e Mons. Massimo Giustetti, que foi vosso
vigário paroquial. Dirijo uma saudação afectuosa aos vossos actuais vigários paroquiais e às
religiosas de Santa Maria Consoladora, presentes em Casal Bertone a partir de 1932, preciosas
colaboradoras da paróquia e verdadeiras portadoras de misericórdia e de consolação neste
bairro, especialmente para os pobres e para as crianças. Com os mesmos sentimentos saúdo
cada um de vós, todas as famílias da paróquia e aqueles que, de vários modos, se prodigalizam
nos serviços paroquiais.

Agora, desejamos meditar brevemente o belíssimo Evangelho deste quarto Domingo do Advento,
que para mim é uma das páginas mais bonitas da Sagrada Escritura. E gostaria para não me
prolongar demasiadamente de reflectir apenas sobre três palavras deste rico Evangelho.

A primeira palavra que gostaria de meditar convosco é a saudação do Anjo a Maria. Na tradução
italiana, o Anjo diz: "Saúdo-te, Maria". Mas a palavra grega subjacente, "Kaire", significa por si só
"rejubila", "alegra-te". E aqui está o primeiro elemento que surpreende: a saudação entre os
judeus era "Shalom", "paz", enquanto a saudação no mundo grego era "Kaire", "alegra-te". É
supreendente que o Anjo, ao entrar na casa de Maria, cumprimente com a saudação dos gregos:
"Kaire", "alegra-te, rejubila". E quando os gregos, quarenta anos mais tarde, leram este
Evangelho, puderam ver nele uma mensagem importante: puderam compreender que com o
início do Novo Testamento, a que se referia esta página de Lucas, teve lugar também a abertura
ao mundo dos povos, à universalidade do Povo de Deus, que incluía não só o povo hebreu, mas
também o mundo na sua totalidade, todos os povos. Nesta saudação grega do Anjo manifesta-se
a nova universalidade do Reino do verdadeiro Filho de David.

Mas é oportuno relevar imediatamente que as palavras do Anjo são a retomada de uma
promessa profética do Livro do profeta Sofonias. Aqui encontramos quase literalmente aquela
saudação. O profeta Sofonias, inspirado por Deus, diz a Israel: "Alegra-te, filha de Sião; o Senhor
está contigo e acolhe-te na sua morada". Sabemos que Maria conhecia bem as Sagradas
Escrituras. O seu Magnificat é um tecido feito com os fios do Antigo Testamento. Por isso,
podemos estar persuadidos de que a Santa Virgem compreendeu imediatamente que estas
palavras eram do profeta Sofonias, dirigidas a Israel, à "filha de Sião", considerada como morada
de Deus. E agora o que é surpreendente, e que faz Maria reflectir, é que tais palavras
endereçadas a todo o Israel são dirigidas de modo especial a ela, Maria. E assim, manifesta-se-
lhe com clareza que é precisamente ela a "filha de Sião", de que o profeta falou, e que portanto o
Senhor tem uma intenção especial para ela, a qual está chamada a ser a verdadeira morada de
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Deus, uma morada não feita de pedras, mas de carne viva, de um coração vivo, que na realidade
Deus deseja tomar como seu verdadeiro templo precisamente ela, a Virgem. Que indicação! E
assim podemos compreender que Maria começa a reflectir com particular intensidade sobre o que
quer dizer esta saudação.

Mas detenhamo-nos agora sobretudo na primeira palavra: "rejubila, alegra-te!". Esta é a primeira
palavra que ressoa no Novo Testamento como tal, porque o anúncio feito pelo Anjo a Zacarias,
acerca do nascimento de João Baptista, é uma palavra que ainda ressoa no limiar entre os dois
Testamentos. Somente com este diálogo, que o anjo Gabriel tem com Maria, começa realmente o
Novo Testamento. Portanto, podemos dizer que a primeira palavra do Novo Testamento é um
convite à alegria: "rejubila, alegra-te!". O Novo Testamento é verdadeiramente "Evangelho", a
"Boa Nova" que nos traz alegria. Deus não está distante de nós, não é desconhecido, enigmático,
talvez perigoso. Deus está próximo de nós, tão próximo que se faz criança, e nós podemos tratar
este Deus por "tu".

Sobretudo o mundo grego sentiu esta novidade, sentiu profundamente esta alegria, porque para
eles não era claro se existia um Deus bom ou um Deus mau, ou simplesmente nenhum Deus. A
religião dessa época falava-lhes de muitas divindades: por isso, sentiam-se circundados por
numerosas divindades, uma em contraste com a outra, a ponto de temerem que, se fizessem algo
em favor de uma delas, a outra podia ofender-se e vingar-se. E assim, viviam num mundo de
medo, circundados por demónios perigosos, sem jamais saber como se salvar de tais forças,
opostas entre si. Era um mundo de medo, um mundo obscuro. E então ouviram dizer: "Rejubila,
estes demónios nada são, existe o Deus verdadeiro e este Deus verdadeiro é bom, ama-nos,
conhece-nos, está connosco, está connosco a ponto de se ter feito homem!". Esta é a grande
alegria que o cristianismo anuncia. Conhecer este Deus é verdadeiramente a "boa nova", uma
palavra de redenção.

Talvez nós, católicos, que o sabemos desde sempre, não nos surpreendamos, não sintamos com
vivacidade esta alegria libertadora. Mas quando olhamos para o mundo de hoje, onde Deus está
ausente, devemos constatar que também ele é dominado pelos temores, pelas incertezas: é um
bem ser homem, ou não? É um bem viver, ou não? É realmente um bem existir? Ou porventura
tudo é negativo? E na realidade vivem num mundo obscuro, têm necessidade de anestesias para
poder viver. Assim, a palavra: "rejubila, porque Deus está contigo, está connosco", é uma palavra
que inaugura realmente um tempo novo. Caríssimos, com um acto de fé devemos aceitar e
compreender de novo, nas profundezas do coração, esta palavra libertadora: "rejubila!".

Esta alegria que o homem recebeu, não pode conservá-la somente para si mesmo; a alegria deve
ser sempre compartilhada. Uma alegria deve ser comunicada. Maria foi imediatamente transmitir
a sua alegria à prima Isabel. E desde que foi elevada ao Céu, distribui alegrias pelo mundo
inteiro, tornando-se a grande Consoladora; a nossa Mãe, que transmite alegria, confiança e
bondade, e que nos convida, também a nós, a anunciar a alegria. Este é o verdadeiro
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compromisso do Advento: levar a alegria aos outros. O verdadeiro presente de Natal é a alegria,
e não as prendas caras que exigem tempo e dinheiro. Nós podemos transmitir esta alegria de
modo simples: com um sorriso, com um gesto bom, com uma pequena ajuda, com um perdão.
Levemos esta alegria, e o júbilo distribuído voltará para nós. Em particular, procuremos transmitir
a alegria mais profunda, a de ter conhecido Deus em Cristo. Oremos para que na nossa vida
transpareça esta presença da alegria libertadora de Deus.

A segunda palavra que gostaria de meditar é também do Anjo: "Não tenhas medo, Maria!", diz
ele. Na realidade, havia motivo para ter medo, pois como era grande o peso de carregar agora o
fardo do mundo sobre si mesma, ser a mãe do Rei do Universo, ser a mãe do Filho de Deus! Um
peso acima das forças de um ser humano! Mas o Anjo diz: "Não tenhas medo! Sim, tu carregas
Deus, mas Deus carrega-te a ti. Não tenhas medo!". Esta palavra: "Não tenhas medo!" sem
dúvida penetrou profundamente no coração de Maria. Nós podemos imaginar como, em várias
situações, a Virgem voltou a reflectir esta palavra, ouvindo-a de novo. No momento em que
Simeão lhe diz: "Este teu filho será um sinal de contradição, uma espada traspassará o teu
coração", naquele momento em que ela podia ceder ao medo, Maria volta à palavra do Anjo e
sente interiormente o eco da mesma: "Não tenhas medo, é Deus quem te carrega!". E quando,
durante a vida pública, se desencadeiam as contradições ao redor de Jesus, e muitos dizem: "É
louco", ela volta a pensar: "Não tenhas medo!" e prossegue em frente. Por fim, no encontro ao
longo do caminho do Calvário e depois aos pés da Cruz, quando tudo parece terminado, ela volta
a ouvir no coração a palavra do Anjo: "Não tenhas medo!". E assim, corajosamente, permanece
ao lado do Filho moribundo e, sustentada pela fé, caminha rumo à Ressurreição, ao Pentecostes
e à fundação da nova família da Igreja.

"Não tenhas medo!", Maria diz-nos, também a nós, esta palavra. Já recordei que este nosso
mundo é um mundo de temores: medo da miséria e da pobreza, medo das enfermidades e dos
sofrimentos, medo da solidão e medo da morte. Neste nosso mundo, temos um sistema de
certezas muito desenvolvido: é bom que elas existam. Contudo, sabemos que no momento do
sofrimento profundo, na hora da última solidão da morte, nenhuma certeza poderá proteger-nos.
A única certeza válida em tais momentos é a aquela nos provém do Senhor, que nos diz também
a nós: "Não tenhas medo, eu estou sempre contigo". Nós podemos vacilar, mas no final caímos
nas mãos de Deus, e as mãos de Deus são benignas.

A terceira palavra: no fim do diálogo, Maria responde ao Anjo: "Eu sou a Serva do Senhor. Faça-
se em mim, segundo a tua vontade". Assim, Maria antecipa a terceira invocação do Pai-Nosso:
"Seja feita a vossa vontade". Ela diz "sim" à grande vontade de Deus, uma vontade
aparentemente demasiado grande para um ser humano; Maria diz "sim" àquela vontade divina,
coloca-se dentro desta vontade, insere toda a sua existência, com um grande "sim", na vontade
de Deus e assim abre a porta do mundo a Deus. Adão e Eva, com o seu "não" à vontade de
Deus, tinham fechado esta porta. "Seja feita a vontade de Deus": Maria convida-nos, também a
nós, a pronunciar este "sim", que às vezes parece tão difícil. Somos tentados a preferir a nossa
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vontade, mas Ela diz-nos: "Tem coragem, também tu diz: "Seja feita a tua vontade", porque esta
vontade é boa". Inicialmente, pode parecer um peso insuportável, um jugo que não é possível
carregar; mas na realidade, a vontade de Deus não é um peso; a vontade de Deus concede-nos
asas para voar alto, e assim com Maria também nós podemos ousar abrir a Deus a porta da
nossa vida, as portas deste mundo, dizendo "sim" à sua vontade, conscientes de que esta
vontade é o verdadeiro bem e nos orienta para a felicidade autêntica. Oremos a Maria
Consoladora, nossa Mãe, Mãe da Igreja, para que nos infunda a coragem de pronunciar este
"sim", que nos conceda também esta alegria de estar com Deus e que nos oriente rumo ao seu
Filho, à Vida verdadeira. Amém!

© Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


NO 40º ANIVERSÁRIO DO ENCERRAMENTO
DO CONCÍLIO VATICANO II
E SOLENIDADE DA IMACULADA CONCEIÇÃO

8 de Dezembro de 2005

Amados Irmãos no Episcopado


e no Sacerdócio
Queridos Irmãos e Irmãs!

Há quarenta anos, no dia 8 de Dezembro de 1965, na Praça diante desta Basílica de São Pedro,
o Papa Paulo VI concluiu solenemente o Concílio Vaticano II. Ele tinha sido inaugurado, segundo
a vontade de João XXIII, no dia 11 de Outubro de 1962, então festa da Maternidade de Maria, e
teve o seu encerramento no dia da Imaculada. Uma moldura mariana circunda o Concílio. Na
realidade, é muito mais do que uma moldura: é uma orientação de todo o seu caminho. Remete-
nos, como então remetia os Padres do Concílio, para a imagem da Virgem à escuta, que vive na
Palavra de Deus, que conserva no seu coração as palavras que lhe vêm de Deus e, reunindo-as
como num mosaico, aprende a compreendê-las (cf. Lc 2, 19.51); remete-nos para a grande
Crente que, repleta de confiança, se coloca nas mãos de Deus, abandonando-se à sua vontade;
remete-nos para a Mãe humilde que, quando a missão do Filho o exige, se põe de lado e, ao
mesmo tempo, para a mulher corajosa que, enquanto os discípulos fogem, permanece aos pés
da cruz. No seu discurso por ocasião da promulgação da Constituição conciliar sobre a Igreja,
Paulo VI tinha qualificado Maria como "tutrix huius Concilii" "protectora deste Concílio" (cf.
Oecumenicum Concilium Vaticanum II, Constitutiones Decreta Declarationes, Cidade do Vaticano
1966, pág. 983) e, com uma alusão inconfundível à narração do Pentecostes, transmitido por
Lucas (cf. Act 1, 12-14), disse que os Padres se tinham reunido na sala do Concílio "cum Maria,
Matre Iesu" e, também no seu nome, dele agora sairiam (Ibid., pág.985).

Permanece indelével na minha memória o momento em que, ouvindo as suas palavras: "Mariam
2
Sanctissimam declaramus Matrem Ecclesiae" "declaramos Maria Santíssima Mãe da Igreja",
espontânea e repentinamente os Padres se levantaram das suas cadeiras e aplaudiram de pé,
prestando homenagem à Mãe de Deus, à nossa Mãe, à Mãe da Igreja. Efectivamente, com este
título o Papa resumia a doutrina mariana do Concílio e oferecia a chave para a sua compreensão.

Maria não se coloca somente numa relação singular com Cristo, o Filho de Deus que, como
homem, quis tornar-se seu filho. Permanecendo totalmente unida a Cristo, Ela pertence também
de modo integral a nós. Sim, podemos dizer que Maria está próxima de nós como nenhum outro
ser humano, porque Cristo é homem para os homens e todo o seu ser é um "ser para nós". Como
Cabeça, dizem os Padres, Cristo é inseparável do seu Corpo que é a Igreja, formando juntamente
com ela, por assim dizer, um único sujeito vivo. A Mãe da Cabeça é também a Mãe de toda a
Igreja; ela é, por assim dizer, totalmente despojada de si mesma; entregou-se inteiramente a
Cristo e, com Ele, é entregue como dom a todos nós. Com efeito, quanto mais a pessoa humana
se entrega, tanto mais se encontra a si mesma.

O Concílio queria dizer-nos isto: Maria está tão entrelaçada no grande mistério da Igreja, que ela
e a Igreja são inseparáveis, da mesma forma que ela e Cristo são inseparáveis. Maria reflecte a
Igreja, antecipa-a na sua pessoa e, em todas as turbulências que afligem a Igreja sofredora e
fatigante, permanece sempre a sua estrela da salvação. Ela é o seu verdadeiro centro em que
confiamos, embora muitas vezes a sua periferia pesa na nossa alma. No contexto da
promulgação da Constituição sobre a Igreja, o Papa Paulo VI esclareceu tudo isto mediante um
novo título arraigado de modo profundo na Tradição, precisamente com a intenção de iluminar a
estrutura interior do ensinamento sobre a Igreja, que se desenvolveu no Concílio. O Concílio
Vaticano II devia expressar-se acerca dos componentes institucionais da Igreja: sobre os Bispos e
sobre o Pontífice, sobre os sacerdotes, os leigos e os religiosos na sua comunhão e nos seus
relacionamentos; devia descrever a Igreja a caminho que, "contendo pecadores no seu próprio
seio, (é) simultaneamente santa e sempre necessitada de purificação..." (Lumen gentium, 8). Mas
este aspecto "petrino" da Igreja está incluído no "mariano". Em Maria, a Imaculada, encontramos
a essência da Igreja de modo não deformado. Dela devemos aprender a tornarmo-nos nós
mesmos "almas eclesiais", assim se expressavam os Padres, para podermos também nós,
segundo a palavra de são Paulo, apresentar-nos "imaculados" diante do Senhor, assim como Ele
quis que fôssemos desde o princípio (cf. Cl 1, 21; Ef 1, 4).

Mas agora devemos perguntar-nos: o que significa "Maria, a Imaculada"? Este título tem algo a
dizer-nos? A liturgia hodierna esclarece-nos o conteúdo desta palavra com duas imagens
grandiosas. Em primeiro lugar, há a maravilhosa narração do anúncio a Maria, a Virgem de
Nazaré, da vinda do Messias. A saudação do Anjo é tecida com fios do Antigo Testamento,
especialmente do profeta Sofonias. Ele faz ver que Maria, humilde mulher de província que vem
de uma estirpe sacerdotal e traz em si o grande património sacerdotal de Israel, é "o santo resto"
de Israel ao qual os profetas, em todos os períodos de dificuldade e de trevas, fizeram referência.
Nela está presente o verdadeiro Sião, a morada pura e viva de Deus. O Senhor habita nela, e
3
nela encontra o lugar do seu repouso. Ela é a casa viva de Deus, que não habita em edifícios de
pedra, mas no coração do homem vivo. Ela é o rebento que, na obscura noite invernal da história,
brota do tronco abatido de David. É nela que se cumpre a palavra do Salmo: "A terra produziu o
seu fruto" (67, 7). Ela é o botão do qual deriva a árvore da redenção e dos redimidos. Deus não
fracassou, como podia parecer já no início da história com Adão e Eva, ou durante o período do
exílio babilónico, e como novamente parecia no tempo de Maria, quando Israel se tornou
definitivamente um povo sem importância, numa região ocupada, com poucos sinais
reconhecíveis da sua santidade. Deus não fracassou. Na humildade da casa de Nazaré vive o
Israel santo, o resto puro. Deus salvou e salva o seu povo. Do tronco abatido resplandece de
novo a sua história, tornando-se uma nova força que orienta e impregna o mundo. Maria é o
Israel santo; ela diz "sim" ao Senhor, coloca-se plenamente à sua disposição e assim torna-se o
templo vivo de Deus.

A segunda imagem é muito mais difícil e obscura. Esta metáfora tirada do Livro do Génesis fala-
nos de uma grande distância histórica, e somente com dificuldade pode ser esclarecida; somente
durante a história foi possível desenvolver uma compreensão mais profunda daquilo que ali é
mencionado. Prediz-se que durante toda a história continuará a luta entre o homem e a serpente,
ou seja, entre o homem e os poderes do mal e da morte. Porém, é também prenunciado que "a
estirpe" da mulher um dia vencerá e esmagará a cabeça da serpente, da morte; prenuncia-se que
a linhagem da mulher e nela a mulher e a própria mãe vencerá e que assim, mediante o homem,
Deus vencerá. Se, juntamente com a Igreja crente e orante, nos colocarmos à escuta diante deste
texto, então poderemos começar a compreender o que é o pecado original, o pecado hereditário,
e também o que é a tutela contra este pecado hereditário, o que é a redenção.

Qual é o quadro que nesta página nos é apresentado? O homem não confia em Deus. Ele
tentado pelas palavras da serpente, alimenta a suspeita de que Deus, em última análise, tira algo
da sua vida, que Deus é um concorrente que limita a nossa liberdade e que nós só seremos
plenamente seres humanos, quando O tivermos posto de lado; em síntese, somente deste modo
podemos realizar na plenitude a nossa liberdade. O homem vive na suspeita de que o amor de
Deus cria uma dependência e que é necessário libertar-se desta dependência para ser
plenamente ele mesmo. O homem não deseja receber de Deus a sua existência e a plenitude da
sua vida. Quer haurir ele mesmo, da árvore da ciência, o poder de plasmar o mundo, de se fazer
deus elevando-se ao nível d'Ele e de vencer com as próprias forças a morte e as trevas. Não quer
contar com o amor, que não lhe parece confiável; ele conta unicamente com a ciência, dado que
ela lhe confere o poder.

Em vez de visar o amor, tem como objectivo o poder com que deseja ter nas suas mãos, de modo
autónomo, a própria vida. E ao fazê-lo, confia na mentira e não na verdade, e assim mergulha
com a sua vida no vazio, na morte. Amor não é dependência, mas dom que nos faz viver. A
liberdade de um ser humano é a liberdade de um ser limitado e, portanto, ela mesma é limitada.
Só a podemos possuir como liberdade compartilhada, na comunhão das liberdades: a liberdade
4
pode desenvolver-se unicamente se vivermos do modo justo uns com os outros, e uns para os
outros.

Nós vivemos do modo justo, se vivermos segundo a verdade do nosso ser, ou seja, segundo a
vontade de Deus. Porque a vontade de Deus não é para o homem uma lei imposta a partir de
fora, que o obriga, mas a medida intrínseca da sua natureza, uma medida que está inscrita nele e
que o torna imagem de Deus e, assim, criatura livre. Se nós vivermos contra o amor e contra a
verdade contra Deus então destruir-nos-emos uns aos outros e aniquilaremos o mundo. Então,
não encontraremos a vida, mas defenderemos o interesse da morte. Tudo isto é narrado com
imagens imortais na história do pecado original e da expulsão do homem do Paraíso terrestre.

Estimados irmãos e irmãs! Se reflectirmos sinceramente sobre nós mesmos e sobre a nossa
história, devemos dizer que com esta narração se descreve não só a história do princípio, mas a
história de todos os tempos, e que todos trazemos dentro de nós próprios uma gota do veneno
daquele modo de pensar explicado nas imagens do Livro da Génesis. A esta gota de veneno,
chamamos pecado original. Precisamente na festa da Imaculada Conceição manifesta-se em nós
a suspeita de que uma pessoa que não peque de modo algum, no fundo, seja tediosa; que falte
algo na sua vida: a dimensão dramática do ser autónomo; que faça parte do verdadeiro ser
homem, a liberdade de dizer não, o descer às trevas do pecado e o desejar realizar sozinho; que
somente então seja possível desfrutar até ao fim toda a vastidão e a profundidade do nosso ser
homens, do ser verdadeiramente nós mesmos; que devemos pôr à prova esta liberdade também
contra Deus, para nos tornarmos realmente nós próprios. Em síntese, pensamos que o mal no
fundo seja bem, que dele temos necessidade, pelo menos um pouco, para experimentar a
plenitude do ser. Julgamos que Mefistófeles o tentador tem razão, quando diz que é a força "que
deseja sempre o mal e realiza sempre o bem" (J.W. v. Goethe, Fausto I, 3). Pensamos que
pactuar com o mal, reservando para nós mesmos um pouco de liberdade contra Deus, em última
análise, seja um bem, talvez até necessário.

Contudo, quando olhamos para o mundo à nossa volta, podemos ver que não é assim, ou seja,
que o mal envenena sempre, que não eleva o homem mas o rebaixa e humilha, que não o
enobrece, não o torna mais puro nem mais rico, mas o prejudica e faz com que se torne menor. É
sobretudo isto que devemos aprender no dia da Imaculada: o homem que se abandona
totalmente nas mãos de Deus não se torna um fantoche de Deus, uma maçadora pessoa
consencientemente; ele não perde a sua liberdade. Somente o homem que confia totalmente em
Deus encontra a verdadeira liberdade, a grande e criativa vastidão da liberdade do bem. O
homem que recorre a Deus não se torna menor, mas maior, porque graças a Deus e juntamente
com Ele se torna grande, divino, verdadeiramente ele mesmo. O homem que se coloca nas mãos
de Deus não se afasta dos outros, retirando-se na sua salvação particular; pelo contrário, só
então o seu coração desperta verdadeiramente e ele torna-se uma pessoa sensível e por isso
benévola e aberta.
5
Quanto mais próximo de Deus o homem está, tanto mais próximo está dos homens. Vemo-lo em
Maria. O facto de Ela estar totalmente junto de Deus é a razão pela qual se encontra também
próxima dos homens. Por isso, pode ser a Mãe de toda a consolação e de toda a ajuda, uma Mãe
à qual, em qualquer necessidade, todos podem dirigir-se na própria debilidade e no próprio
pecado, porque Ela tudo compreende e para todos constitui a força aberta da bondade criativa. É
nela que Deus imprime a sua própria imagem, a imagem daquela que vai à procura da ovelha
perdida, até às montanhas e até ao meio dos espinhos e das sarças dos pecados deste mundo,
deixando-se ferir pela coroa de espinhos destes pecados, para salvar a ovelha e para a
reconduzir a casa. Como Mãe que se compadece, Maria é a figura antecipada e o retrato
permanente do Filho. E assim vemos que também a imagem da Virgem das Dores, da Mãe que
compartilha o sofrimento e o amor, é uma verdadeira imagem da Imaculada. Mediante o ser e o
sentir juntamente com Deus, o seu coração alargou-se. Nela a bondade de Deus aproximou-se e
aproxima-se muito de nós. Assim, Maria está diante de nós como sinal de consolação, de
encorajamento e de esperança. Ela dirige-se a nós, dizendo: "Tem a coragem de ousar com
Deus! Tenta! Não tenhas medo d'Ele! Tem a coragem de arriscar com a fé! Tem a coragem de
arriscar com a bondade!

Tem a coragem de arriscar com o coração puro! Compromete-te com Deus, e então verás que
precisamente assim a tua vida se há-de tornar ampla e iluminada, não tediosa, mas repleta de
surpresas infinitas, porque a bondade infinita de Deus jamais se esgota!".

Neste dia de festa, queremos agradecer ao Senhor o grande sinal da sua bondade, que nos
concedeu em Maria, sua Mãe e Mãe da Igreja. Queremos pedir-lhe que ponha Maria no nosso
caminho, como luz que nos ajuda a tornar-nos também nós luz e a levar esta luz pelas noites da
história. Amém!

© Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


NA CELEBRAÇÃO DAS PRIMEIRAS VÉSPERAS
 DO I DOMINGO DO ADVENTO 

26 de Novembro de 2005

Queridos Irmãos e Irmãs!

Com a celebração das Primeiras Vésperas do I Domingo do Advento iniciamos um novo Ano
Litúrgico. Ao cantarmos juntos os Salmos, elevamos os nossos corações a Deus, colocando-nos
numa atitude espiritual que caracteriza este tempo de graça:  a "vigília na oração" e a "alegria no
louvor" (cf. Missal Romano, Prefácio do Advento II/A). Seguindo o exemplo de Maria Santíssima,
que nos ensina a viver em religiosa escuta da palavra de Deus, detenhamo-nos na breve Leitura
bíblica há pouco proclamada. Trata-se de dois versículos contidos na parte conclusiva da
Primeira Carta de são Paulo aos Tessalonicenses (1 Ts 5, 23-24). O primeiro exprime os bons
votos do Apóstolo à comunidade; o segundo oferece, por assim dizer, a garantia do seu
cumprimento. O bom voto consiste em que cada um seja santificado por Deus e se conserve
irrepreensível em toda a sua pessoa "espírito, alma e corpo" para a vinda final do Senhor Jesus; a
garantia que isto possa acontecer é oferecida pela fidelidade do próprio Deus, que não deixará de
realizar a obra iniciada nos crentes. Esta primeira Carta aos Tessalonicenses é a primeira de
todas as cartas de são Paulo, escrita provavelmente no ano 51. Nesta sua primeira carta sente-
se, ainda mais do que nas outras, o coração pulsante do Apóstolo, o seu amor paterno, aliás
podemos dizer materno, por esta nova comunidade. E sente-se também a sua ansiosa
preocupação para que não se apague a fé desta Igreja nova, circundada por um contexto cultural
em muitos sentidos contrário a fé. Assim Paulo conclui a sua Carta com um desejo, poderíamos
até dizer com uma oração. O conteúdo da oração que ouvimos é que sejam santos e
irrepreensíveis no momento da vinda do Senhor. A palavra central desta oração é "vinda".
Devemos perguntarmo-nos:  o que quer dizer vinda do Senhor? Em grego é "parusia", em latim
"adventus":  "advento", "vinda". O que é esta vinda? Envolve-nos ou não?
2
Para compreender o significado desta palavra e, portanto, da oração do Apóstolo por esta
comunidade e pelas comunidades de todos os tempos também por nós devemos olhar para a
pessoa graças à qual se realizou de modo único, singular, a vinda do Senhor:  a Virgem Maria.

Maria pertencia àquela parte do povo de Israel que na época de Jesus esperava com todo o
coração a vinda do salvador. Pelas palavras, pelos gestos narrados no Evangelho, podemos ver
como realmente Ela vivia imersa nas palavras dos Profetas, estava inteiramente à espera da
vinda do Senhor. Contudo, não podia imaginar como teria sido realizada esta vinda. Talvez
esperasse uma vinda na glória. Muito surpreendente foi para ela o momento em que o Arcanjo
Gabriel entrou na sua casa e lhe disse que o Senhor, o Salvador, queria encarnar-se no seu
ventre, por ela e através dela, queria realizar a sua vinda. Podemos imaginar a trepidação da
Virgem Maria com um grande acto de fé, de obediência, diz sim:  "Eis a escrava do Senhor". E
assim, tornou-se "morada" do Senhor, verdadeiro "templo" no mundo e "porta" através da qual o
Senhor entrou na terra.

Dissemos que esta vinda é singular:  "a" vinda do Senhor. Todavia, não há somente a última
vinda no final dos tempos:  num certo sentido o Senhor deseja vir sempre através de nós. E bate
à porta do nosso coração:  estás disposto a conceder-me a tua carne, o teu tempo, a tua vida?
Esta é a voz do Senhor, que quer entrar também no nosso tempo, quer entrar através de nós. Ele
procura também uma morada viva, a nossa vida pessoal. Eis a vinda do Senhor. Queremos
novamente aprender isto no tempo do Advento:  o Senhor possa vir também através de nós.

Portanto, podemos dizer que esta oração, este bom voto expresso pelo Apóstolo contém uma
verdade fundamental, que ele procura inculcar nos fiéis da comunidade por ele fundada e que
podemos resumir desta maneira:  Deus chama-nos à comunhão consigo, que se realizará
plenamente com a vinda de Cristo, e Ele mesmo se compromete a fazer com que cheguemos
preparados a este encontro final e decisivo. O futuro, por assim dizer, está contido no presente,
ou melhor, na presença de Deus, do seu amor indefectível, que não nos deixa sozinhos, não nos
abandona nem sequer por um momento, como um pai e uma mãe nunca deixam de seguir os
próprios filhos no seu caminho de crescimento. Diante de Cristo que vem, o homem sente-se
interpelado com todo o seu ser, que o Apóstolo resume nos termos "espírito, alma e corpo",
indicando assim a inteira pessoa humana, como unidade articulada de dimensão somática,
psíquica e espiritual. A santificação é dom de Deus e iniciativa sua, mas o ser humano é chamado
a corresponder com todo o seu ser, sem que nada dele seja excluído.

Éprecisamente o Espírito Santo, que no ventre da Virgem formou Jesus, Homem perfeito, quem
realiza na pessoa humana o admirável projecto de Deus, transformando antes de tudo o coração
e, a partir deste centro, todo o resto. Assim, em cada pessoa se resume a inteira obra da criação
e da redenção, que Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, está a realizar desde o início até ao fim do
cosmos e da história. E como na história da humanidade, a primeira vinda de Cristo está no
centro e a sua vinda gloriosa no final, cada existência pessoal está chamada a comparar-se com
3
Ele de modo misterioso e multiforme durante a peregrinação terrena, para se encontrar "nele" no
momento do seu retorno.

Maria Santíssima, Virgem fiel, nos ajude a fazer deste tempo do advento e de todo o novo Ano
litúrgico um caminho de autêntica santificação, para louvor e glória de Deus Pai, Filho e Espírito
Santo.

© Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


NA SOLENE CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
EM SUFRÁGIO DOS CARDEAIS
E BISPOS FALECIDOS DURANTE O ANO

Sexta-feira, 11 de Novembro de 2005

Senhores Cardeais
Venerados Irmãos no Episcopado
e no Presbiterado

O mês de Novembro assume uma sua peculiar tonalidade espiritual pelos dois dias com que
inicia: a Solenidade de Todos os Santos e a Comemoração de todos os fiéis defuntos. O mistério
da comunhão dos santos ilumina de modo particular este mês e toda a parte final do ano litúrgico,
orientando a meditação sobre o destino terreno do homem à luz da Páscoa de Cristo. Nela tem o
seu fundamento aquela esperança que, como diz são Paulo, é tal que "não desilude" (cf. Rm 5,
5).

A celebração hodierna insere-se neste contexto, no qual a fé sublima sentimentos profundamente


inscritos no coração humano. A grande família da Igreja encontra nestes dias um tempo de graça,
e vive-o, segundo a sua vocação, estreitando-se em oração junto do Senhor e oferecendo o seu
Sacrifício redentor em sufrágio dos fiéis defuntos. De modo particular, nós hoje oferecemo-lo
pelos Cardeais e Bispos que nos deixaram durante o último ano.

Fiz parte por muito tempo do Colégio Cardinalício, do qual também fui decano por dois anos e
meio. Portanto, sinto-me particularmente ligado a esta singular comunidade, que tive a honra de
presidir também nos dias inesquecíveis a seguir ao falecimento do amado Papa João Paulo II. Ele
deixou-nos, entre outros muito luminosos, o exemplo muito precioso da oração, e também neste
momento nós recolhemos a sua herança espiritual, conscientes de que a sua intercessão
continua ainda mais intensa do Céu. Nos últimos doze meses os venerados Irmãos Cardeais que
2
passaram "para a outra margem" são cinco: Juan Carlos Aramburu, Jan Pieter Schotte, Corrado
Bafile, Jaime Sin e, há menos de um mês, Giuseppe Caprio. Hoje confiamos ao Senhor,
juntamente com as suas almas, as dos Arcebispos e Bispos que, neste mesmo período,
concluíram a sua jornada terrena. Elevemos juntos a oração por cada um deles, na luz da Palavra
que Deus nos dirigiu nesta liturgia.

O trecho do livro do Sirácide contém primeiro uma exortação à perseverança nas provações e,
por conseguinte, um convite à confiança em Deus. Ao homem que atravessa as vicissitudes da
vida, a Sabedoria recomenda: "Conserva-te unido a Ele ao Senhor e não te separes, para teres
bom êxito no teu momento derradeiro" (Sir 2, 3). Quem se coloca ao serviço do Senhor e dedica a
sua vida ao mistério eclesial não está livre das provas, aliás, encontra as mais insidiosas, como
demonstra amplamente a experiência dos santos. Mas viver no temor de Deus liberta o coração
de qualquer receio e emerge-o no abismo do seu amor. "Vós que temeis o Senhor, confiai nele...
contai com a prosperidade, a alegria eterna e a misericórdia" (Sir 2, 8-9).

Este convite à confiança relaciona-se directamente com o início da perícope do Evangelho de são
João há pouco proclamada: "Não se perturbe o vosso coração diz Jesus aos Apóstolos na Última
Ceia credes em Deus; crede também em mim" (Jo 14, 1). O coração humano, sempre inquieto
enquanto não encontrar um porto seguro na sua peregrinação, alcança finalmente a sólida rocha
onde parar e repousar. Quem confia em Jesus, põe em Deus a sua confiança. De facto, Deus é
verdadeiro Homem, mas nele podemos ter fé total e incondicionada, porque como afirma ele
próprio após ter-se dirigido a Filipe ele está no Pai e o Pai está nele (cf. Jo 14, 10). Nisto, Deus
veio verdadeiramente ao nosso encontro. Nós, seres humanos, temos necessidade de um amigo,
de um irmão que nos pegue pela mão e nos acompanhe até à "casa do Pai" (Jo 14, 2);
precisamos de alguém que conheça bem o caminho. E Deus, no seu amor "superabundante" (Ef
2, 4), enviou o seu Filho, não só para o indicar a nós, mas para se fazer ele mesmo o "caminho"
(Jo 14, 6).

"Ninguém pode ir até ao Pai senão por por mim" (Jo 14, 6), afirma Jesus. Aquele "ninguém" não
admite excepções; mas, considerando bem, é o equivalente de outra palavra, que Jesus
pronunciou ainda na Última Ceia quando, tomando o cálice, disse: "Este é o Meu sangue, sangue
da Aliança, que vai ser derramado por muitos, para perdão dos pecados" (Mt 26, 28). Também os
"lugares" na casa do Pai são "muitos", no sentido de que junto de Deus há lugar para "todos" (cf.
Jo 14, 2).

Jesus é o caminho aberto para "todos"; não existem outros. E os que parecem "outros", na
medida em que são autênticos, ou reconduzem a Ele, ou não levam à vida. Por conseguinte, é
inestimável o dom que o Pai fez à humanidade enviando o Filho unigénito. A este dom
corresponde uma responsabilidade, que é tanto maior quanto mais estreita é a relação que dele
deriva com Jesus. "A quem muito foi dado diz o Senhor muito será exigido; e a quem muito foi
confiado, muito será pedido" (Lc 12, 48). Por este motivo, enquanto damos graças a Deus por
3
todos os benefícios que ele concedeu aos nossos Irmãos defuntos, oferecemos por eles os
merecimentos da paixão e morte de Cristo, para que preencham as lacunas devidas à fragilidade
humana.

O Salmo responsorial (121/122) e a segunda Leitura (1 Jo 3, 1-2) dilatam os nossos corações


com a admiração da esperança, à qual fomos chamados. O Salmista faz-nos cantá-la como hino
a Jerusalém, convidando-nos a imitar espiritualmente os peregrinos que "subiam" à cidade santa
e, depois de um longo caminho, chegavam cheios de alegria às suas portas: "Que alegria quando
me disseram: / "Vamos para a casa do Senhor"! / Os nossos pés detêm-se / às tuas portas, ó
Jerusalém" (Sl 121, 1-2). O Apóstolo João, na sua Primeira Carta, expressa-a comunicando-nos a
certeza, repleta de gratidão, de nos termos tornado filhos de Deus e, ao mesmo tempo, a
expectativa da manifestação plena desta realidade: "Agora já somos filhos de Deus, mas não se
manifestou ainda o que havemos de ser... quando Ele se manifestar, seremos semelhantes a Ele,
porque o veremos tal como Ele é" (1Jo3, 2).

Venerados e amados Irmãos, com o coração voltado para este mistério de salvação, oferecemos
a Divina Eucaristia pelos Purpurados e Prelados que há pouco nos precederam na passagem
derradeira para a vida eterna. Invocamos a intercessão de são Pedro e da Bem-Aventurada
Virgem Maria, para que os acolham na casa do Pai, na confiante esperança de poder um dia
unirmo-nos a eles para gozar da plenitude da vida e da paz. Amém.

©Copyright - Libreria Editrice Vaticana


A Santa Sé

SOLENE CONCLUSÃO DA XI ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA


DO SÍNODO DOS BISPOS, DO ANO DA EUCARISTIA
E CANONIZAÇÃO DOS BEATOS:

JOSÉ BILCZEWSKI
CAETANO CATANOSO
SIGISMUNDO GORAZDOWSKI
ALBERTO HURTADO CRUCHAGA
FÉLIX DE NICÓSIA

HOMILIA DE SUA SANTIDADE BENTO XVI

Praça de São Pedro


Dia Missionário Mundial
Domingo 23 de outubro de 2005

Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio!
Queridos irmãos e irmãs!

Neste XXX Domingo do tempo comum, a nossa Celebração eucarística enriquece-se de diversos
motivos de agradecimento e de súplica a Deus. Concluem-se contemporaneamente o Ano da
Eucaristia e a Assembleia Ordinária do Sínodo dos Bispos, dedicada precisamente ao mistério
eucarístico na vida e na missão da Igreja, enquanto serão daqui a pouco proclamados santos
cinco Beatos:  o Bispo José Bilczewski, os presbíteros Caetano Catanoso, Sigismundo
Gorazdowski e Alberto Hurtado Cruchaga, e o religioso Capuchinho Félix de Nicósia. Além disso
celebra-se hoje o Dia Missionário Mundial, encontro anual que desperta na Comunidade eclesial
o impulso para a missão. Dirijo com alegria a minha saudação a todos os presentes, aos Padres
Sinodais em primeiro lugar, e depois aos peregrinos vindos de várias nações, juntamente com os
seus Pastores, para festejar os novos Santos. A liturgia de hoje convida-nos a contemplar a
2
Eucaristia como fonte de santidade e alimento espiritual para a nossa missão no mundo:  este
sumo "dom e mistério" manifesta e comunica a plenitude do amor de Deus.

A Palavra do Senhor, que há pouco ressoou no Evangelho, recorda-nos que no amor se resume
toda a lei divina. O dúplice mandamento do amor de Deus e do próximo contém os dois aspectos
de um único dinamismo do coração e da vida. Assim, Jesus leva a cumprimento a revelação
antiga, sem acrescentar um mandamento inédito, mas realizando em si mesmo e na própria
acção salvífica a síntese viva das duas grandes palavras da antiga Aliança:  "Amarás o Senhor,
teu Deus, com todo o teu coração..." e "Amarás o próximo como a ti mesmo" (cf. Dt 6, 5; Lv 19,
18). Na Eucaristia nós contemplamos o Sacramento desta síntese viva da lei:  Cristo entrega-nos
em si mesmo a plena realização do amor a Deus e do amor aos irmãos. Ele comunica-nos este
seu amor quando nos alimentamos do seu Corpo e do seu Sangue. Pode então realizar-se em
nós quanto escreve São Paulo aos Tessalonicenses na segunda Leitura de hoje:  "convertestes-
vos dos ídolos de Deus, para servirdes o Deus vivo e verdadeiro" (1 Ts 1, 9). Esta conversão é o
princípio do caminho de santidade que o cristão está chamado a realizar na sua existência. O
santo é aquele que, sentindo-se de tal forma atraído pela beleza de Deus e pela sua perfeita
verdade, progressivamente por ele é transformado. Por esta beleza e verdade está pronto a
renunciar a tudo, também a si mesmo. Para ele é suficiente o amor de Deus, que experimenta no
serviço humilde e abnegado do próximo, sobretudo de quantos não são capazes de retribuir.
Como é providencial, nesta perspectiva, o facto de que hoje a Igreja indique a todos os seus
membros cinco novos Santos que, alimentados por Cristo, Pão vivo, se converteram ao amor e
por ele orientaram toda a sua existência! Em diversas situações e com vários carismas, eles
amaram o Senhor com todo o coração e ao próximo como a si mesmos "tendo-vos assim tornado
modelo para todos os crentes" (1 Ts 1, 6-7).

O santo José Bilczewski foi um homem de oração. A Santa Missa, a Liturgia das Horas, a
meditação, o rosário e as outras práticas de piedade marcavam as suas jornadas. Dedicava um
tempo particularmente longo à adoração eucarística.

Também o santo Sigismundo Gorazdowski se tornou famoso pela devoção fundada na


celebração e na adoração da Eucaristia. Viver a oferta de Cristo estimulou-o a dedicar-se aos
doentes, aos pobres e aos necessitados.

O profundo conhecimento teológico, a fé e a devoção eucarística de José Bilczeski fizeram dele


um exemplo para os sacerdotes e uma testemunha para todos os fiéis.

Sigismundo Gorazdowski, ao fundar a Associação dos sacerdotes, a Congregação das Irmãs de


São José e muitas outras instituições caritativas, deixou-se sempre guiar pelo espírito de
comunhão, que se revela plenamente na Eucaristia.

"Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu coração... Amarás o teu próximo como a ti mesmo"
3
(Mt 22, 37.39). Foi este o programa de vida do santo Alberto Hurtado, que se quis identificar com
o Senhor e amar os pobres com o seu amor. A formação que recebeu na Companhia de Jesus,
consolidada pela oração e pela adoração da Eucaristia, levou-o a deixar-se conquistar por Cristo,
sendo um verdadeiro contemplativo na acção. No amor e na entrega total à vontade de Deus
encontrou a força para o apostolado. Fundou El Hogar de Cristo para os mais necessitados e
para os sem-tecto, oferecendo-lhes um ambiente familiar cheio de calor humano. No seu
ministério sacerdotal ele sobressaía pela sua sensibilidade e disponibilidade para com o próximo,
sendo uma imagem viva do mestre "manso e humilde de coração". No final dos seus dias, entre
as grandes dores da enfermidade, ainda teve forças para repetir:  "Estou contente, Senhor, estou
contente", expressando assim a alegria com que sempre viveu.

São Caetano Catanoso foi cultor e apóstolo da Sagrada Face de Cristo. "A Sagrada Face
afirmava é a vida. Ele é a minha força". Com uma feliz intuição ele conjugou esta devoção à
piedade eucarística. Assim se expressava:  "Se queremos adorar a Face real de Jesus...
encontramo-lo na divina Eucaristia, onde o Corpo e Sangue de Jesus Cristo se esconde sob o
branco véu da Hóstia a Face de Nosso Senhor". A Missa quotidiana e a frequente adoração do
Sacramento do altar foram a alma do seu sacerdócio:  com fervor e incansável caridade pastoral
ele dedicou-se à pregação, à catequese, ao ministério das Confissões, aos pobres, aos doentes,
ao cuidado das vocações sacerdotais. Às Irmãs Verónicas da Sagrada Face, que ele fundou,
transmitiu o espírito de caridade, de humildade e de sacrifício, que animou toda a sua existência.

São Félix de Nicósia amava repetir em todas as circunstâncias, alegres e tristes:  "Seja por amor
de Deus". Assim podemos compreender bem quanto era intensa e concreta nele a experiência do
amor de Deus revelado aos homens em Cristo. Este humilde Frade capuchinho, ilustre filho da
terra da Sicília, austero e penitente, fiel às mais genuínas expressões da tradição franciscana, foi
gradualmente plasmado e transformado pelo amor de Deus, vivido e concretizado no amor ao
próximo. Frei Félix ajuda-nos a descobrir o valor das pequenas coisas que enriquecem a vida e
ensina-nos a colher o sentido da família e do serviço aos irmãos, mostrando-nos que a alegria
verdadeira e duradoura, pela qual aspira o coração de cada ser humano, é fruto do amor.

Queridos e venerados Padres Sinodais, durante três semanas vivemos juntos um clima de
renovado fervor eucarístico. Gostaria agora, convosco e em nome de todo o Episcopado, de
enviar uma saudação fraterna aos Bispos da Igreja na China. Com profundo pesar sentimos a
falta dos seus representantes. Contudo, desejo garantir a todos os Prelados chineses que os
acompanhamos com a oração, assim como aos seus sacerdotes e fiéis. O difícil caminho das
comunidades, confiadas aos seus cuidados pastorais, está presente no nosso coração:  ela não
permanecerá sem fruto, porque é uma participação no Mistério pascal, para glória do Pai. Os
trabalhos sinodais permitiram que aprofundássemos os aspectos salientes deste mistério dado à
Igreja desde o início. A contemplação da Eucaristia deve estimular todos os membros da Igreja,
em primeiro lugar os sacerdotes, ministros da Eucaristia, a reavivar o seu compromisso de
fidelidade. Sobre o mistério eucarístico, celebrado e adorado, funda-se o celibato que os
4
presbíteros receberam como dom precioso e sinal do amor indiviso a Deus e ao próximo.
Também para os leigos a espiritualidade eucarística deve ser o motor interior de todas as
actividades e dicotomia alguma é admissível entre a fé e a vida na sua missão de animação cristã
do mundo. Ao concluir-se o Ano da Eucaristia, como não dar graças a Deus pelos numerosos
dons concedidos à Igreja neste tempo? E como não retomar o convite do amado Papa João
Paulo II a "recomeçar a partir de Cristo"? Como os discípulos de Emaús que, acalentados no
coração pela palavra do Ressuscitado e iluminados pela sua presença viva reconhecida ao partir
do pão, regressaram sem hesitações a Jerusalém e tornaram-se anunciadores da ressurreição de
Cristo, também nós retomamos o nosso caminho animados pelo desejo ardente de testemunhar o
mistério deste amor que dá esperança ao mundo.

Coloca-se bem nesta perspectiva eucarística o hodierno Dia Missionário Mundial, para a qual o
venerado Servo de Deus João Paulo II deu como tema de reflexão:  "Missão:  Pão repartido para
a vida do mundo". A Comunidade eclesial quando celebra a Eucaristia, sobretudo no dia do
Senhor, consciencializa-se cada vez mais de que o sacrifício de Cristo é "para todos" (Mt 26, 28)
e que a Eucaristia estimula o cristão a ser "pão repartido" para os outros, a comprometer-se por
um mundo mais justo e fraterno. Ainda hoje, perante as multidões, Cristo continua a exortar os
seus discípulos:  "dai-lhes vós mesmos de comer" (Mt 14, 16) e, em seu nome, os missionários
anunciam e testemunham o Evangelho, por vezes até com o sacrifício da vida. Queridos amigos,
todos devemos recomeçar a partir da Eucaristia. Ajuda-nos Maria, Mulher eucarística, a
inamorarmo-nos dela; ajuda-nos a "permanecer" no amor de Cristo, para sermos por Ele
intimamente renovados. Dócil à acção do Espírito e atenta às necessidades dos homens, a Igreja
será então, cada vez mais, farol de luz, de verdadeira alegria e de esperança, realizando
plenamente a sua missão de "sinal e instrumento... da unidade de todo o género humano"
(Lumen gentium, 1).

© Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


 NAS EXÉQUIAS DO CARDEAL GIUSEPPE CAPRIO

Terça-feira, 18 de Outubro de 2005

"Não se perturbe o vosso coração... vou preparar um lugar" (Jo 14, 1.2). As palavras do Senhor
Jesus iluminam-nos e confortam-nos, queridos e venerados Irmãos, nesta hora de triste oração,
que nos vê reunidos à volta dos despojos mortais do saudoso Cardeal Giuseppe Caprio, ao qual
damos a nossa extrema saudação. No sábado passado ele deixou-nos, no final de uma longa
peregrinação terrena, que o conduziu de uma pequena cidade da Irpínia a várias partes do
mundo e especialmente a Roma, ao serviço da Santa Sé, pela qual despendeu a sua vida. No
seu testamento reencontramos a confiança serena à qual Cristo convida os seus discípulos.
Precisamente no início ele escreve: "Agradeço à Santíssima Trindade ter-me criado, remido e
feito nascer numa família pobre de meios materiais, mas rica de virtudes cristãs, que desde os
primeiros anos da minha juventude me ensinou a amar a Deus e a obedecer à sua lei".

"Agradeço à Santíssima Trindade...": não se encontra porventura nestas palavras a síntese da


vida de um cristão? No final das jornadas terrenas, a alma recolhe-se numa atitude de gratidão
íntima e comovida, reconhecendo tudo como dom e preparando-se para o abraço definitivo com
Deus-Amor. É o mesmo sentimento de profunda confiança no Senhor da qual nos falou a primeira
Leitura, tirada do Livro do Sirácide: "Vós que temeis o Senhor, esperai a sua misericórdia; / ...
confiai nele / ... contai com a prosperidade, / a alegria eterna e a misericórdia" (2, 7.9). O temor ao
Senhor é o princípio e a plenitude da sabedoria (cf. Sir 1, 12.14). Daqui brota a paz (cf. Sir 1, 16),
sinónimo por sua vez daquela felicidade realizada e eterna que é fruto da misericórdia divina.
Quem vive no santo temor do Senhor encontra a verdadeira paz e, como diz ainda o Sirácide, "no
dia da sua morte será abençoado" (1, 13). Deus, na sua misericórdia, perdoe qualquer eventual
culpa do amado Cardeal Caprio e o receba no seu reino de luz e de paz, porque este nosso irmão
procurou servir fielmente a santa Igreja.

"Meu filho, se entrares para o serviço de Deus... conserva-te unido a Ele e não te separes, para
2
teres bom êxito no teu momento derradeiro" (Sir 2, 1.3). O jovem Giuseppe Caprio, proveniente
de Lapìo, apresentou-se para servir o Senhor no Seminário de Benevento. Ali iniciou os estudos,
que continuou em Roma, na Universidade Gregoriana, obtendo o Diploma em teologia e a
Licenciatura em Direito Canónico, e em 1938 foi ordenado sacerdote. Lemos no testamento:
"Agradeço [a Deus] com o coração repleto de confusão e de reconhecimento, ter-me chamado ao
sacerdócio". Também nós, na oração, nos associamos neste momento à sua acção de graças,
enquanto nos preparamos para oferecer pela sua alma o sacrifício eucarístico, centro e forma da
vida sacerdotal. Apraz-me pensar, especialmente nestes dias em que toda a Igreja está como que
concentrada no mistério eucarístico, que precisamente ali, no altar, a vida e o ministério do
Cardeal Caprio encontraram o seu ponto de profunda unidade, nas diversas deslocações que
para ele comportou o serviço diplomático da Santa Sé. De Roma a Nanquim, a Bruxelas, a
Saigon, a Taipé, a Nova Deli e, por fim de novo a Roma. A presença de Cristo ressuscitado foi
certamente o conforto nos momentos mais difíceis, como, em particular, o período de domicílio
forçado na Nunciatura em Nanquim, em 1951, e a sucessiva obrigação de deixar a China. No seu
testamento ele escreve: "elevo o meu pensamento reconhecido e devoto ao Sumo Pontífice, que
me concedeu a insigne honra de o representar em tantos países e os quais sempre servi com
fidelidade e amor filial". Não foi porventura da Eucaristia que o Cardeal Caprio pôde haurir a
energia espiritual para aceitar dia após dia a missão que lhe foi confiada pelos Superiores e para
a cumprir com amor até ao final?

"Pax in virtute": o saudoso Cardeal Caprio escolheu este mote quando, em 1961, o beato Papa
João XXIII o nomeou Arcebispo. Depois de ter participado no Concílio Vaticano II, transcorreu um
breve período como pró-Núncio na Índia, e depois regressou a Roma para o serviço directo à Sé
Apostólica em importantes cargos, entre os quais o de Substituto da Secretaria de Estado e de
Presidente da Administração do Património. Dele foram reconhecidas a visão de conjunto dos
problemas da Igreja e a preocupação constante em considerar os aspectos administrativos na
sua relação com os interesses superiores, em plena adesão ao espírito do Concílio.

"Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram" (1 Cor 15, 20). A luz de Jesus
ressuscitado ilumina as trevas da morte, "último inimigo" (1 Cor 15, 26), ao qual devemos pagar a
dívida contraída pelo pecado original, mas que já não domina os crentes, porque o Senhor a
venceu de uma vez para sempre. Em Cristo, todos receberão a vida; cada um na sua ordem:
primeiro Cristo, que é primícias; depois, com a sua vinda, os que são de Cristo (cf. 1 Cor 15, 22-
23). A liturgia aplica este trecho paulino à Virgem Maria na solenidade da sua Assunção ao Céu.

Apraz-me testemunhar aqui a devoção mariana do Cardeal Giuseppe Caprio, como sobressai no
seu testamento: "Confio escreve a minha alma à Santíssima Virgem de Pompeia, a fim de que, ao
apresentá-la ao seu Filho Jesus Cristo, me obtenha o perdão e a misericórdia". Façamos nossa
esta sua oração no actual momento de sofrimento e de profunda esperança. Com afecto e
gratidão acompanhamos este nosso irmão na última viagem rumo ao Oriente verdadeiro, isto é,
rumo a Cristo, sol sem ocaso, com a plena confiança de que Deus o receberá de braços abertos,
3
reservando-lhe um lugar preparado para os seus amigos, servos fiéis do Evangelho e da Igreja.

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


NA CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
DE ABERTURA DA XI ASSEMBLEIA GERAL
ORDINÁRIA DO SÍNODO DOS BISPOS

Domingo, 2 de Outubro de 2005

Irmãos no Episcopado
e no Sacerdócio!
Queridos Irmãos e Irmãs!

A leitura tirada do profeta Isaías e o Evangelho deste dia expõem diante dos nossos olhos uma
das grandes imagens da Sagrada Escritura: a figura da videira. Na Sagrada Escritura, o pão
representa tudo aquilo de que o homem tem necessidade para a sua vida quotidiana. A água dá
fertilidade à terra: é o dom fundamental, que torna possível a vida. O vinho, por sua vez, exprime
a excelência da criação, dá-nos a festa em que ultrapassamos os limites da quotidianidade: o
vinho "alegra o coração", diz o Salmo. Assim o vinho, e com ele a videira, tornaram-se imagem
também do dom do amor, em que podemos fazer alguma experiência do sabor do Divino. E
assim a leitura do profeta, que acabámos de ouvir, começa como cântico de amor: Deus criou
uma vinha para si esta é uma imagem da história de amor pela humanidade, do seu amor por
Israel, que Ele escolheu para si. Portanto, o primeiro pensamento das leituras hodiernas é este:
no homem, criado à sua imagem, Deus infundiu a capacidade de amar e, por conseguinte, a
capacidade de amar também Ele mesmo, o seu Criador. Com o cântico de amor do profeta
Isaías, Deus deseja falar ao coração do seu povo e também a cada um de nós. "Criei-te à minha
imagem e semelhança", diz-nos. "Eu mesmo sou o amor, e tu és a minha imagem, na medida em
que em ti brilha o esplendor do amor, na medida em que me respondes com amor". Deus espera-
nos. Ele quer ser amado por nós: um apelo semelhante não deveria, talvez, tocar o nosso
coração? Precisamente nesta hora em que celebramos a Eucaristia, em que inauguramos o
Sínodo sobre a Eucaristia, Ele vem ao nosso encontro, vem ao meu encontro. Encontrará Ele
2
uma resposta? Ou acontece connosco como aconteceu com a vinha, da qual Deus diz em Isaías:
"Ele esperou que produzisse uva, mas ela produziu uva azeda"? A nossa vida cristã não é,
porventura, muitas vezes mais vinagre do que vinho? Autocomiseração, conflito e indiferença?

Com isto chegámos, automaticamente, ao segundo pensamento fundamental das leituras


hodiernas.

Elas falam em primeiro lugar da bondade da criação de Deus e da grandeza da eleição com que
Ele nos procura e nos ama. Mas depois falam também da história que aconteceu sucessivamente
do fracasso do homem. Deus tinha plantado videiras excelentes e, todavia, amadureceu a uva
azeda.

Perguntamo-nos: em que consiste esta uva azeda? A uva boa que Deus esperava diz o profeta
consistiria na justiça e na rectidão. A uva azeda é, ao contrário, a violência, o derramamento de
sangue e a opressão, que fazem as pessoas gemer sob o jugo da injustiça. No Evangelho, a
imagem muda: a videira produz uva boa, mas os arrendatários conservam-na para si mesmos.
Não estão dispostos a entregá-la ao proprietário. Espancam e matam os seus mensageiros e
matam também o seu filho. A sua motivação é simples: querem tornar-se eles mesmos
proprietários; apoderam-se daquilo que não lhes pertence. No Antigo Testamento, em primeiro
plano há a acusação pela violação da justiça social, pelo desprezo do homem por parte do
homem. Porém, no fundo revela-se que, com o desprezo da Torah, do direito doado por Deus, é o
próprio Deus que é desprezado; deseja-se somente gozar do próprio poder. Este aspecto é
salientado plenamente na parábola de Jesus: os arrendatários não querem ter um patrão e estes
arrendatários constituem um reflexo também para nós. Nós homens, a quem a criação, por assim
dizer, é confiada para ser administrada, usurpamo-la. Queremos ser os seus senhores,
pessoalmente e sozinhos. Desejamos possuir o mundo e a nossa própria vida de modo ilimitado.
Deus é um obstáculo para nós. Ou faz-se dele uma simples frase devota, ou Ele é totalmente
negado, banido da vida pública, a ponto de perder todo o significado. A tolerância que, por assim
dizer, admite Deus como opinião particular, mas que lhe rejeita o domínio público, a realidade do
mundo e da nossa vida, não é tolerância mas hipocrisia. Porém, lá onde o homem se torna o
único senhor do mundo e proprietário de si mesmo, não pode existir a justiça. Lá só pode
predominar o arbítrio do poder e dos interesses. Sem dúvida, pode-se expulsar o Filho para fora
da vinha e matá-lo, para gozar egoistamente sozinho dos frutos da terra. Mas assim a vinha
transforma-se muito cedo num terreno inculto, devastado pelos javalis, como nos diz o Salmo
responsorial (cf. Sl 79,14).

Assim, chegamos ao terceiro elemento das leituras hodiernas. Tanto no Antigo como no Novo
Testamento, o Senhor anuncia o juízo à vinha infiel. O juízo que Isaías previa realizou-se nas
grandes guerras e exílios, por obra dos Assírios e dos Babilónicos. O juízo anunciado pelo
Senhor Jesus refere-se sobretudo à destruição de Jerusalém no ano 70. Mas a ameaça de juízo
diz respeito também a nós, à Igreja na Europa, à Europa e ao Ocidente em geral. Com este
3
Evangelho, o Senhor brada também aos nossos ouvidos as palavras que, no Apocalipse, dirigiu à
Igreja de Éfeso: "Se não... te arrependeres, virei ter contigo e retirarei o teu candelabro da sua
posição" (2, 5). Também de nós pode ser tirada a luz, e agimos bem se deixarmos ressoar esta
admoestação em toda a sua seriedade na nossa alma, bradando ao mesmo tempo ao Senhor:
"Ajuda-nos a converter-nos! Concede-nos a todos a graça de uma verdadeira renovação! Não
permitas que se apague a tua luz no meio de nós! Reforça a nossa fé, a nossa esperança e o
nosso amor, para podermos produzir bons frutos!".

Porém, nesta altura surge em nós a pergunta: "Mas não há qualquer promessa, qualquer palavra
de conforto na leitura e na página evangélica de hoje? A última palavra é a ameaça?". Não! Há a
promessa, e esta é a última e essencial palavra. Ouvimo-la no versículo do Aleluia, tirado do
Evangelho de João: "Eu sou a videira; vós, os ramos. Quem permanece em mim e Eu nele, esse
produz muito fruto" (Jo 15, 5). Com estas palavras do Senhor, João explica-nos o último, o
verdadeiro êxito da história da vinha de Deus. Deus não fracassa. No final Ele vence, vence o
amor. Uma alusão velada a isto já se encontra na parábola da vinha, proposta pelo Evangelho de
hoje e nas suas palavras conclusivas. Também ali a morte do Filho não é o fim da história,
embora não seja directamente narrada. Mas Jesus exprime esta morte mediante uma nova
imagem tirada do Salmo: "A pedra que os construtores rejeitaram transformou-se em pedra
angular..." (Mt 21, 42; Sl 117, 22). Da morte do Filho nasce a vida, forma-se um novo edifício,
uma nova vinha. Ele, que em Caná mudou a água em vinho, transformou o seu sangue no vinho
do verdadeiro amor e assim transforma o vinho no seu sangue. No cenáculo, antecipou a sua
morte e transformou-a no dom de si mesmo, num acto de amor radical. O seu sangue é dom, é
amor, e por isso é o verdadeiro vinho que o Criador esperava. Deste modo, o próprio Cristo
tornou-se a videira, e esta videira produz sempre bom fruto: a presença do seu amor por nós, que
é indestrutível.

Assim, estas parábolas levam finalmente ao mistério da Eucaristia, em que o Senhor nos oferece
o pão da vida e o vinho do seu amor, e nos convida para a festa do amor eterno. Nós celebramos
a Eucaristia, conscientes de que o seu preço foi a morte do Filho o sacrifício da sua vida, que nela
permanece presente. Cada vez que comemos deste pão e bebemos deste cálice, anunciamos a
morte do Senhor até que Ele venha, diz São Paulo (cf. 1 Cor 11, 26). Mas sabemos também que
desta morte brota a vida, porque Jesus a transformou num gesto oblativo, num acto de amor,
mudando-a assim no íntimo: o amor venceu a morte. Na Sagrada Eucaristia, a partir da Cruz Ele
atrai-nos todos a si (cf. Jo 12, 32) e torna-nos ramos da videira, que é Ele mesmo. Se
permanecermos unidos a Ele, então também nós produziremos fruto, então também de nós não
sairá mais o vinagre da auto-suficiência, do descontentamento em relação a Deus e à sua
criação, mas o vinho bom da alegria de Deus e do amor ao próximo. Rezemos ao Senhor para
que nos conceda a sua graça, para que nas três semanas do Sínodo que estamos a começar não
somente digamos belas palavras sobre a Eucaristia, mas sobretudo para que vivamos da sua
força.
4
Invoquemos este dom por intermédio de Maria, prezados Padres sinodais, a quem saúdo com
grande afecto, juntamente com as diversas Comunidades das quais vindes e que aqui
representais, para que dóceis ao Espírito Santo possamos ajudar o mundo a tornar-se em Cristo
e com Cristo a fecunda videira de Deus.
Amém!

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A Santa Sé

VIAGEM APOSTÓLICA A COLÓNIA


POR OCASIÃO DA XX JORNADA MUNDIAL DA JUVENTUDE

SANTA MISSA NA ESPLANADA DE MARIENFELD

HOMILIA DE SUA SANTIDADE BENTO XVI

Colónia, Esplanada de Marienfeld


Domingo, 21 de Agosto de 2005

Palavras do Santo Padre no início da Concelebração

Estimado Cardeal Meisner


Queridos jovens!

Gostaria de te agradecer cordialmente, amado Irmão no Episcopado, pelas tuas palavras


comovedoras que tão oportunamente nos introduzem nesta celebração litúrgica. Teria gostado de
percorrer com o "papamóvel" todo o território em comprimento e largura para estar possivelmente
próximo a cada um individualmente. Devido às dificuldades dos caminhos não era possível mas
saúdo cada um de vós de todo o coração. O Senhor vê e ama cada pessoa. Todos nós formamos
juntos a Igreja viva e agradecemos ao Senhor esta hora na qual Ele nos concede o mistério da
sua presença e a possibilidade de estar em comunhão com Ele.

Todos sabemos que somos imperfeitos, que não podemos ser para Ele uma casa apropriada. Por
isso começamos a Santa Missa reunindo-nos e pedindo ao Senhor que afaste de nós tudo o que
nos separa d'Ele e nos separa, a nós homens, uns dos outros. Que nos faça o dom de celebrar
dignamente os Santos Mistérios.

***
2
Caríssimos jovens!

Diante da Hóstia sagrada, na qual Jesus para nós se fez pão que do interior ampara e alimenta a
nossa vida (cf Jo 6, 35), começámos ontem à noite o caminho interior da adoração. Na Eucaristia
a adoração deve tornar-se união. Com a Celebração eucarística encontramo-nos naquela "hora"
de Jesus da qual nos fala o Evangelho de João. Mediante a Eucaristia esta sua "hora" torna-se a
nossa hora, a sua presença no meio de nós. Ele celebrou, juntamente com os discípulos, a ceia
pascal de Israel, o memorial da acção libertadora de Deus que tinha guiado Israel da escravidão
para a liberdade. Jesus segue os ritos de Israel. Recita sobre o pão a oração de louvor e de
bênção. Mas depois acontece uma coisa nova. Ele agradece a Deus não só pelas grandes obras
do passado; agradece-lhe a própria exaltação que se há-de realizar mediante a Cruz e a
Ressurreição, falando aos discípulos também com palavras que contêm a suma da Lei e dos
Profetas: "Isto é o Meu corpo dado em sacrifício por vós. Isto é o cálice da Nova Aliança no meu
Sangue". E assim distribui o pão e o cálice, e ao mesmo tempo, confere-lhes o mandato de dizer
e fazer sempre de novo em sua memória o que está dizendo e fazendo naquele momento.

O que está a acontecer? Como pode Jesus distribuir o seu Corpo e o seu Sangue? Ao fazer do
pão o seu Corpo e do vinho o seu Sangue, Ele antecipa a sua morte, aceita-a no seu íntimo e
transforma-a numa acção de amor. Aquilo que do exterior é violência brutal, torna-se do interior
um gesto de amor que se doa totalmente. Foi esta a transformação substancial que se realizou no
cenáculo e que estava destinada a suscitar um processo de transformações cuja finalidade última
é a transformação do mundo até àquela condição em que Deus será tudo em todos (cf. 1 Cor 15,
28). Desde sempre, de qualquer forma, todos os homens aguardam no seu coração uma
mudança, uma transformação do mundo. Pois este é o único acto central de transformação capaz
de renovar verdadeiramente o mundo: a violência transforma-se em amor e, por conseguinte, a
morte em vida.

E porque este acto transforma a morte em vida, a morte como tal já está superada a partir do seu
interior, já está presente nela a ressurreição. A morte está, por assim dizer, ferida intimamente, de
modo que jamais poderá ser ela a última palavra. Esta é, querendo usar uma imagem que
conhecemos muito bem, a cisão nuclear que o ser leva no seu íntimo a vitória do amor sobre o
ódio, a vitória do amor sobre a morte. Só esta íntima explosão do bem que vence o mal pode
suscitar depois a corrente de transformações que, pouco a pouco, mudarão o mundo. Todas as
outras mudanças permanecem superficiais e não salvam. Por isso, falamos de redenção: aquilo
que do mais íntimo era necessário concretizou-se, e nós podemos entrar neste dinamismo. Jesus
pode distribuir o seu Corpo, porque realmente se doa a si mesmo.

Esta primeira e fundamental transformação da violência em amor, da morte em vida arrasta


depois consigo as outras transformações. Pão e vinho tornam-se o seu Corpo e o seu Sangue.
Mas a este ponto, a transformação não deve deter-se, antes, é aqui que deve começar
plenamente. O Corpo e o Sangue de Cristo são-nos dados para que nós mesmos, por nossa vez,
3
sejamos transformados.

Nós próprios devemos tornar-nos Corpo de Cristo, seus consaguíneos. Todos comemos o único
pão, mas isto significa que entre nós nos tornamos uma só coisa. A adoração, dissémos, torna-se
união. Deus já não está só diante de nós, como o Totalmente Outro. Está dentro de nós, e nós
estamos n'Ele. A sua dinâmica penetra-nos e de nós deseja propagar-se aos outros e difundir-se
em todo o mundo, para que o seu amor se torne realmente a medida dominante do mundo.

Encontro uma alusão muito bela neste novo trecho que a Última Ceia nos concedeu na acepção
diferente que a palavra "adoração" tem em grego e em latim. A palavra grega ressoa proskynesis.

Ela significa o gesto da submissão, o reconhecimento de Deus como a nossa verdadeira medida,
cuja norma aceitamos seguir. Significa que liberdade não quer dizer gozar a vida, considerar-se
absolutamente autónomos, mas orientar-se segundo a medida da verdade e do bem, para, desta
forma, nos tornarmos nós próprios verdadeiros e bons. Este gesto é necessário, mesmo se a
nossa ambição de liberdade num primeiro momento resiste a esta perspectiva. Fazê-la
completamente nossa só será possível na segunda passagem que a Última Ceia nos apresenta.
A palavra latina para adoração é ad-oratio contacto boca a boca, beijo, abraço e, por conseguinte,
fundamentalmente amor. A submissão torna-se união, porque Aquele ao qual nos submetemos é
Amor. Assim, submissão adquire um sentido, porque não nos impõe coisas alheias, mas liberta-
nos em função da verdade mais íntima do nosso ser.

Voltemos de novo à Última Ceia. A novidade que ali se verificou, estava na nova profundidade da
antiga oração de bênção de Israel, que desde então se torna a palavra da transformação e nos
concede a participação na "hora" de Cristo. Jesus não nos deixou a tarefa de repetir a Ceia
pascal que, de resto, como aniversário, não é repetível a nosso bel-prazer. Deixou-nos a tarefa de
entrar na sua "hora". Entramos nela mediante a palavra do poder sagrado da consagração uma
transformação que se realiza mediante a oração de louvor, que nos coloca em continuidade com
Israel e com toda a sua história da salvação, e ao mesmo tempo nos dá a novidade para a qual
tendia por sua íntima natureza aquela oração. Esta oração chamada pela igreja "oração
eucarística" realiza a Eucaristia. Ela é palavra de poder, que transforma os dons da terra de
maneira totalmente nova na doação de si da parte de Deus e envolve-nos neste processo de
transformação. Eis por que chamamos a este acontecimento Eucaristia, que é a tradução da
palavra hebraica beracha agradecimento, louvor, bênção, e assim transformação a partir do
Senhor: presença da sua "hora".

A hora de Jesus é a hora em que o amor vence. Por outras palavras: foi Deus que venceu,
porque Ele é Amor. A hora de Jesus quer tornar-se a nossa hora e tornar-se-á a nossa hora se
nós, mediante a celebração da Eucaristia, nos deixarmos envolver por aquele processo de
transformações que o Senhor tem por finalidade. A Eucaristia deve tornar-se o centro da nossa
vida. Não é positivismo ou ambição de poder, se a Igreja nos diz que a Eucaristia faz parte do
4
domingo. Na manhã de Páscoa, primeiro as mulheres e depois os discípulos tiveram a graça de
ver o Senhor. Daquele momento em diante eles souberam que agora o primeiro dia da semana, o
domingo, teria sido o seu dia, o dia de Cristo. O dia do início da criação tornava-se o dia da
renovação da criação. Criação e redenção caminham juntas. Por isso o domingo é tão importante.

Ébelo que hoje, em muitas culturas, o domingo seja um dia livre ou, juntamente com o sábado,
constitua até o chamado "fim-de-semana" livre. Contudo, este tempo livre permanece vazio se
nele não está Deus. Queridos amigos! Algumas vezes, num primeiro momento, pode parecer
bastante incómodo ter que programar no domingo também a Missa. Mas se vos empenhardes,
verificareis depois que é precisamente isto que dá o justo centro ao tempo livre. Não vos deixeis
dissuadir de participar na Eucaristia dominical e de ajudar também os outros a descobri-la. Sem
dúvida, para que dela emane a alegria da qual temos necessidade, devemos aprender a
compreendê-la cada vez mais nas suas profundidades, devemos aprender a amá-la.
Comprometámo-nos neste sentido vale a pena! Descubramos a profunda riqueza da liturgia da
Igreja e a sua verdadeira grandeza: não somos nós que fazemos festa para nós, mas ao contrário
é o próprio Deus vivo que nos prepara uma festa. Com o amor pela Eucaristia redescobrireis
também o sacramento da Reconciliação, no qual a bondade misericordiosa de Deus permite
sempre um novo início para a nossa vida.
Quem descobriu Cristo deve conduzir a Ele os outros. Uma grande alegria não se pode ter para
si.

Épreciso transmiti-la. Em vastas partes do mundo existe hoje um estranho esquecimento de


Deus. Parece que tudo caminha igualmente sem Ele. Mas existe, ao mesmo tempo, também um
sentimento de frustração, de insatisfação de tudo e de todos. É espontâneo exclamar: não é
possível que esta seja a vida! Deveras, não. E assim, juntamente com o esquecimento de Deus
existe um "boom" do religioso. Não quero desacreditar tudo o que existe neste contexto. Pode
existir nisto também a alegria sincera da descoberta. Mas para dizer a verdade, não raramente a
religião se torna quase um produto de consumo. Escolhe-se aquilo de que se gosta, e alguns
sabem até tirar dela um proveito. Mas a religião procurada a seu "bel-prazer" no fim não nos
ajuda. É cómoda, mas no momento da crise abandona-nos a nós próprios. Ajudai, queridos
amigos, os homens a descobrir a verdadeira estrela que nos indica o caminho: Jesus Cristo!
Procuremos nós próprios conhecê-lo sempre melhor para poder de maneira convincente guiar
também os outros para Ele. Por isso, é tão importante o amor pela Sagrada Escritura e, por
conseguinte, é importante conhecer a fé da Igreja que nos apresenta o sentido da Escritura. É o
Espírito Santo que guia a Igreja na sua fé crescente e que a fez e faz penetrar cada vez mais nas
profundezas da verdade (cf. Jo 16, 13). João Paulo II, o querido Papa João Paulo II, deixou-nos
uma obra maravilhosa, na qual a fé dos séculos está explicada de maneira sintética: o Catecismo
da Igreja Católica. Eu mesmo pude, recentemente apresentar o Compêndio desse Catecismo,
que foi eleborado também a pedido do defunto Papa. São dois livros fundamentais que gostaria
de recomendar a todos vós.
5
Obviamente, os livros sozinhos não são suficientes. Formai comunidades com base na fé! Nos
últimos decénios surgiram movimentos e comunidades nas quais a força do Evangelho se faz
sentir com vivacidade. Procurai a comunhão na fé como companheiros de caminho que, juntos,
continuam a seguir o caminho da grande peregrinação que os Magos do Oriente, como pioneiros,
nos indicaram. A espontaneidade das novas comunidades é importante, mas é também
importante conservar a comunhão com o Papa e com os Bispos. São eles que garantem que não
se anda à procura de caminhos privados, mas que se está a viver, ao contrário, naquela grande
família de Deus que o Senhor fundou com os doze Apóstolos.

Devo voltar mais uma vez à Eucaristia. "Uma vez que há um só pão, nós, embora sendo muitos,
formamos um só corpo" diz São Paulo (1 Cor 10, 17). Com isto pretende dizer: porque recebemos
o mesmo Senhor e Ele nos acolhe e nos atrai para dentro de si, somos uma só coisa também
entre nós. Isto deve manifestar-se na vida. Deve mostrar-se na capacidade do perdão.

Deve manifestar-se na sensibilidade pelas necessidades do próximo. Deve manifestar-se na


disponibilidade para partilhar. Deve manifestar-se no compromisso pelo próximo, tanto pelo que
está perto como pelo que está externamente distante, mas que nos diz sempre respeito de perto.

Hoje, existem formas de voluntariado, modelos de serviço recíproco, dos quais precisamente a
nossa sociedade tem urgente necessidade. Não devemos, por exemplo, abandonar os idosos na
sua solidão, não podemos ignorar quantos sofrem. Se pensamos e vivemos em virtude da
comunhão com Cristo, então abrem-se os nossos olhos. Então deixaremos de nos adaptar a ir
vivendo preocupados unicamente com nós próprios, mas veremos onde e como somos
necessários. Vivendo e agindo assim bem depressa nos daremos conta de que é muito mais belo
ser úteis e estar à disposição do próximo do que preocupar-se unicamente das comodidades que
nos são oferecidas. Sei que vós, como jovens, aspirais pelas coisas grandes, que quereis
comprometer-vos por um mundo melhor. Demonstrai-o aos homens, demonstrai-o ao mundo, que
aguarda precisamente este testemunho dos discípulos de Jesus Cristo e que, sobretudo mediante
o vosso amor, poderá descobrir a estrela que nós seguimos.

Caminhemos em frente com Cristo e vivamos a nossa vida como verdadeiros adoradores de
Deus! Amém.

© Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


NA SOLENIDADE DA ASSUNÇÃO
CELEBRADA NA PARÓQUIA PONTIFÍCIA
DE S. TOMÁS DE VILLANOVA

Castel Gandolfo, 15 de Agosto de 2005

Caros Irmãos no Episcopado


e no Sacerdócio
Queridos Irmãos e Irmãs

Antes de tudo, dirijo uma cordial saudação a todos vós. É uma grande alegria para mim celebrar a
Missa nesta bela igreja paroquial no dia da Assunção. Saúdo o Cardeal Sodano, o Bispo de
Albano, todos os sacerdotes, o Presidente da Câmara e todos vós. Obrigado pela vossa
presença. A festa da Assunção é um dia de alegria. Deus venceu. O amor venceu. Venceu a vida.
Mostrou-se que o amor é mais forte do que a morte. Que Deus tem a verdadeira força e a sua
força é bondade e amor.

Maria foi elevada ao céu em corpo e alma: também para o corpo existe um lugar em Deus. Para
nós o céu já não é uma esfera muito distante e desconhecida. No céu temos uma mãe. E a Mãe
de Deus, a Mãe do Filho de Deus, é a nossa Mãe. Ele mesmo o disse. Ele constituiu-a nossa
Mãe, quando disse ao discípulo e a todos nós: "Eis a tua Mãe!" No céu temos uma Mãe. O céu
está aberto, o céu tem um coração.

No Evangelho ouvimos o Magnificat, esta grande poesia pronunciada pelos lábios, aliás, pelo
coração de Maria, inspirada pelo Espírito Santo. Neste cântico maravilhoso reflecte-se toda a
alma, toda a personalidade de Maria. Podemos dizer que este seu cântico é um retrato, é um
verdadeiro ícone de Maria, no qual podemos vê-la precisamente como é. Gostaria de realçar
somente dois pontos deste grande cântico. Ele inicia com a palavra "Magnificat": a minha alma
"engrandece" o Senhor, ou seja, "proclama grande" o Senhor. Maria deseja que Deus seja grande
2
no mundo, seja grande na sua vida, esteja presente entre todos nós. Não teme que Deus possa
ser um "concorrente" na nossa vida, que nos possa tirar algo da nossa liberdade, do nosso
espaço vital com a sua grandeza. Ela sabe que, se Deus é grande, também nós somos grandes.
A nossa vida não é oprimida, mas elevada e alargada: justamente então torna-se grande no
esplendor de Deus.

O facto de que os nossos antepassados pensassem o contrário foi o núcleo do pecado original.
Temiam que se Deus tivesse sido grande demais teria tirado algo da sua vida. Pensavam que
deveriam pôr Deus de lado a fim de ter espaço para eles mesmos. Esta foi também a maior
tentação da época moderna, dos últimos três ou quatro séculos. Sempre mais se pensou e
também se disse: "Mas este Deus não nos deixa a nossa liberdade, torna estreito o espaço da
nossa vida com todos os seus mandamentos. Portanto, Deus deve desaparecer; queremos ser
autónomos, independentes. Sem este Deus nós mesmos seremos deuses, fazendo o que
queremos nós". Este também era o pensamento do filho pródigo, o qual não entendeu que,
precisamente pelo facto de estar na casa do pai, era "livre". Foi-se embora para cidades
longínquas e consumiu o património da sua vida. No final compreendeu que, justamente por se
ter distanciado do pai, em vez de ser livre, tornou-se escravo; entendeu que somente retornando
à casa do pai teria podido ser livre verdadeiramente, em toda a beleza da vida. Assim é também
na época moderna. Antes pensava-se e acreditava-se que, afastando Deus e sendo autónomos,
seguindo somente as nossas ideias, a nossa vontade, nos tornaríamos realmente livres, podendo
fazer quanto quiséssemos sem que ninguém pudesse dar-nos alguma ordem. Mas, onde
desaparece Deus, o homem não se torna grande; ao contrário, perde a dignidade divina, perde o
esplendor de Deus no seu rosto. No fim resulta somente o produto de uma evolução cega e,
como tal, pode ser usado e abusado. Foi precisamente quanto a experiência desta nossa época
confirmou.

Somente se Deus é grande, o homem também é grande. Com Maria devemos começar a
entender que é assim. Não devemos distanciar-nos de Deus, mas tornar Deus presente; fazer
com que Ele seja grande na nossa vida; assim também nós nos tornamos divinos; todo o
esplendor da dignidade divina então é nosso. Apliquemos isto à nossa vida. É importante que
Deus seja grande entre nós, na vida pública e na vida privada. Na vida pública é importante que
Deus esteja presente, por exemplo, através da Cruz nos edifícios públicos, que Deus esteja
presente na nossa vida comum, porque somente se Deus está presente temos uma orientação,
uma estrada comum; se não os contrastes tornam-se inconciliáveis, deixando de existir o
reconhecimento da dignidade comum.

Tornemos grande Deus na vida pública e na vida privada. Isto quer dizer, dar espaço todos os
dias a Deus na nossa vida, começando de manhã com a oração, e depois dando tempo a Deus,
dando o domingo a Deus. Não perdemos o nosso tempo livre se o oferecermos a Deus. Se Deus
entra no nosso tempo, todo o tempo se torna maior, mais amplo, mais rico.
3
Segunda observação. Esta poesia de Maria o Magnificat é toda original; contudo, ao mesmo
tempo, é um "tecido" feito totalmente com "fios" do Antigo Testamento, feito de palavra de Deus.

Dessa maneira, vemos que Maria era, por assim dizer, "em casa" na palavra de Deus, vivia da
palavra de Deus, estava imbuída da palavra de Deus. Na medida em que falava com as palavras
de Deus, pensava com as palavras de Deus, os seus pensamentos eram os pensamentos de
Deus, as suas palavras as palavras de Deus. Era invadida pela luz divina e por isso era tão
esplêndida, tão bondosa, tão radiante de amor e de bondade. Maria vive da palavra de Deus, é
inundada pela palavra de Deus. E este estar imersa na palavra de Deus, este ser totalmente
familiar com a palavra de Deus dá-lhe também a luz interior da sabedoria. Quem pensa com Deus
pensa bem, e quem fala com Deus fala bem. Tem critérios de juízo válidos para todas as coisas
do mundo. Torna-se sábio, prudente e, ao mesmo tempo, bom: torna-se também forte e corajoso,
com a força de Deus que resiste ao mal e promove o bem no mundo.

E, assim, Maria fala connosco, fala a nós, convida-nos a conhecer a palavra de Deus, a amar a
palavra de Deus, a viver com a palavra de Deus, a pensar com a palavra de Deus. E podemos
fazê-lo de diversíssimos modos: lendo a Sagrada Escritura, sobretudo participando na Liturgia, na
qual no decurso do ano a Santa Igreja nos abre diante todo o livro da Sagrada Escritura. Abre-o
para a nossa vida e torna-o presente na nossa vida. Penso ainda no "Compêndio do Catecismo
da Igreja Católica", que recentemente publicámos, no qual a palavra de Deus é aplicada à nossa
vida, interpreta a realidade da nossa vida, ajuda-nos a entrar no grande "templo" da palavra de
Deus, a aprender a amá-la e a estar como Maria, imbuídos desta palavra. Desse modo a vida
torna-se luminosa e temos o critério como base para julgar, recebemos bondade e força no
mesmo momento.

Maria é elevada em corpo e alma à glória do céu e com Deus e em Deus é rainha do céu e da
terra. Porventura, está tão distante de nós? É verdadeiro o contrário. Precisamente porque está
com Deus e em Deus, está pertíssimo de cada um de nós. Quando estava na terra podia
somente estar perto de algumas pessoas. Estando em Deus, que está próximo de nós, que está
no "interior" de todos nós, Maria participa nesta aproximação de Deus. Estando em Deus e com
Deus, está perto de cada um de nós, conhece o nosso coração, pode ouvir as nossas orações,
pode ajudar-nos com a sua bondade materna e é-nos dada como disse o Senhor como "mãe", à
qual podemos dirigir-nos em todos os momentos. Ela escuta-nos sempre, está sempre perto, e
sendo Mãe do Filho, participa no poder do Filho, na sua bondade. Podemos confiar sempre toda
a nossa vida a esta Mãe, que não está longe de nós.

Neste dia de festa, damos graças ao Senhor pelo dom da Mãe e rezemos a Maria, a fim de que
nos ajude a encontrar o caminho justo todos os dias. Amém.

 
4
© Copyright 2005 - Libreria Editrice Vaticana

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


NA SOLENIDADE DOS SANTOS
APÓSTOLOS PEDRO E PAULO

Quarta-feira, 29 de Junho de 2005

Queridos Irmãos e Irmãs!

A festa dos santos Apóstolos Pedro e Paulo é ao mesmo tempo uma grata memória das grandes
testemunhas de Jesus Cristo e uma solene confissão em favor da Igreja una, santa, católica e
apostólica. É antes de tudo uma festa da catolicidade. É sinal do Pentecostes a nova comunidade
que fala em todas as línguas e une todos os povos num único povo, numa família de Deus e este
sinal tornou-se realidade. A nossa assembleia litúrgica, na qual estão reunidos Bispos
provenientes de todas as partes do mundo, pessoas de numerosas culturas e nações, é uma
imagem da família da Igreja distribuída sobre toda a terra. Estrangeiros tornaram-se amigos; não
obstante todos os confins, reconhecemo-nos irmãos. Com isto é levada a cabo a missão de São
Paulo, que sabia "ser para os gentios um ministro de Cristo Jesus, que administra o Evangelho de
Deus como um sacerdote, a fim de que a oferenda dos gentios, santificada pelo Espírito Santo,
lhe seja agradável" (Rm 15, 16). A finalidade da missão é uma humanidade que se tornou uma
glorificação viva de Deus, o culto verdadeiro que Deus espera: eis o sentido mais profundo da
catolicidade uma catolicidade que já nos foi doada e para a qual, contudo, nos devemos
encaminhar sempre de novo. A catolicidade exprime só uma dimensão horizontal, a reunião de
muitas pessoas na unidade; exprime também uma dimensão vertical: só dirigindo o olhar para
Deus, só abrindo-nos a Ele nos podemos tornar verdadeiramente uma coisa só. Como Paulo,
assim também Pedro veio a Roma, à cidade que era o lugar de convergência de todos os povos e
que por isso podia tornar-se antes de qualquer outra, a expressão da universalidade do
Evangelho. Empreendendo a viagem de Jerusalém para Roma, certamente ele sabia que era
guiado pelas vozes dos profetas, da fé e da oração de Israel. De facto, faz parte também do
anúncio da Antiga Aliança a missão a todo o mundo: o povo de Israel estava destinado a ser luz
para os povos. O grande salmo da Paixão, o salmo 21, cujo primeiro versículo "Meu Deus, meu
2
Deus, por que me abandonaste?" Jesus pronunciou na cruz, este salmo terminava com a visão:
"Hão-de lembrar-se do Senhor e voltar-se para Ele todos os confins da terra; hão-de prostrar-se
diante dele todos os povos e nações" (Sl 21, 28). Quando Pedro e Paulo vieram a Roma o
Senhor, que iniciara aquele Salmo na cruz, tinha ressuscitado; esta vitória de Deus devia ser
agora anunciada a todos os povos, cumprindo assim a promessa com a qual o salmo se concluía.

Catolicidade significa universalidade multiplicidade que se torna unidade; unidade que permanece
contudo multiplicidade. Da palavra de Paulo sobre a universalidade da Igreja já vimos que faz
parte desta unidade a capacidade que os povos têm de se superar a si mesmos, para olhar para
o único Deus. O verdadeiro fundador da teologia católica, Santo Ireneu de Lião, no século II,
expressou este vínculo entre catolicidade e unidade de maneira muito bonita, e cito-o. Diz: "A
Igreja espalhada em todo o mundo conserva esta doutrina e esta fé com diligência, formando
quase uma única família: a mesma fé com uma só alma e um só coração, a mesma pregação,
ensinamento, tradição como se tivesse uma só boca. São diversas as línguas segundo as
religiões, mas a força da tradição é única e a mesma. As Igrejas da Alemanha não têm uma fé ou
tradição diversas, nem as da Espanha, da Gália, do Egipto, da Líbia, do Oriente, nem as do
centro da terra; como o sol criatura de Deus é um só e idêntico em todo o mundo, assim a luz da
verdadeira pregação resplandece em toda a parte e ilumina os homens que desejam chegar ao
conhecimento da verdade" (Adv. haer. I 10, 2). A unidade dos homens na sua multiplicidade
tornou-se possível porque Deus, este único Deus do céu e da terra, se mostrou a nós; porque a
verdade fundamental sobre a nossa vida, sobre o nosso "de onde?", se tornou visível quando Ele
se mostrou a nós e em Jesus Cristo nos mostrou o seu rosto, a si mesmo. Esta verdade sobre a
essência do nosso ser, sobre o nosso viver e o nosso morrer, verdade que de Deus se tornou
visível, une-nos e faz de nós irmãos. Catolicidade e unidade caminham juntas. E a unidade tem
um conteúdo: a fé que os Apóstolos nos transmitiram da parte de Cristo.

Sinto-me feliz porque ontem na festa de santo Ireneu e vigília da solenidade dos santos Pedro e
Paulo pude entregar à Igreja uma nova guia para a transmissão da fé, que nos ajuda a conhecer
melhor e depois também a viver melhor a fé que nos une: o Compêndio do Catecismo da Igreja
Católica. O que no grande Catecismo, mediante os testemunhos dos santos de todos os séculos
e com as reflexões maduradas na teologia, é apresentado em pormenor, é recapitulado neste
livro, nos seus conteúdos fundamentais, que depois devem ser interpretados na linguagem
quotidiana e concretizados sempre de novo. O livro estrutura-se como diálogo de perguntas e
respostas; quatorze imagens associadas aos vários campos da fé convidam à contemplação e à
meditação. Resumem por assim dizer de modo visível o que a palavra desenvolve nos
pormenores. No início está um ícone de Cristo do século VI, que se encontra no monte Athos e
representa Cristo na sua dignidade de Senhor da terra, mas ao mesmo tempo, como arauto do
Evangelho, que tem nas mãos. "Eu sou aquele que sou" este misterioso nome de Deus proposto
na Antiga Aliança está ali representado como o seu próprio nome: tudo o que existe vem d'Ele;
Ele é a fonte originária de todos os seres. E por isso é único, também está sempre presente, está
sempre perto de nós e ao mesmo tempo precede-nos sempre: como "indicador" no caminho da
3
nossa vida, aliás, sendo Ele mesmo o caminho. Não se pode ler este livro como se lê um
romance. É preciso meditá-lo com calma em cada uma das suas partes e permitir que o seu
conteúdo, mediante as imagens, penetre na alma. Espero que seja acolhido desta forma e se
possa tornar uma boa guia na transmissão da fé.

Dissemos que catolicidade da Igreja e unidade da Igreja caminham juntas. O facto que ambas as
dimensões se tornem visíveis a nós nas figuras dos santos Apóstolos indica-nos já a
característica sucessiva da Igreja: ela é apostólica. O que significa? O Senhor instituiu doze
Apóstolos, assim como doze eram os filhos de Jacob, indicando-os como arquétipos do povo de
Deus que, tendo-se já tornado universal, daquele momento em diante abrange todos os povos.
São Marcos diz-nos que Jesus chamou os Apóstolos para que "andassem com Ele e também
para os enviar" (Mc 3, 14). Parece quase uma contradição. Nós diríamos: ou estão com Ele ou
são enviados e põem-se a caminho. Há uma palavra do Santo Papa Gregório Magno sobre os
anjos, que nos ajuda a desfazer tal contradição. Ele diz que os anjos são sempre enviados e ao
mesmo tempo estão sempre diante de Deus, e continua: "Onde quer que sejam enviados, onde
quer que vão, caminham sempre no seio de Deus" (Homilia 34, 13). O Apocalipse qualificou os
Bispos como "anjos" da sua Igreja, e por conseguinte, podemos fazer esta aplicação: os
Apóstolos e os seus sucessores deveriam estar sempre com o Senhor e precisamente assim
onde quer que vão estar sempre em comunhão com Ele e viver desta comunhão.

A Igreja é apostólica, porque confessa a fé dos Apóstolos e procura vivê-la. Existe uma unicidade
que caracteriza os Doze chamados pelo Senhor, mas existe ao mesmo tempo uma continuidade
na missão apostólica. São Pedro na sua primeira carta qualificou-se como "copresbítero" com os
presbíteros aos quais escreve (5, 1). E com isto expressou o princípio da sucessão apostólica: o
mesmo ministério que ele tinha recebido do Senhor continua agora na Igreja graças à ordenação
sacerdotal. A Palavra de Deus não está só escrita mas, graças às testemunhas que o Senhor, no
sacramento, inseriu no ministério apostólico, permanece palavra viva. Assim me dirijo agora a
vós, queridos irmãos Bispos. Saúdo-vos com afecto, juntamente com os vossos familiares e com
os peregrinos das respectivas Dioceses. Estais para receber o pálio das mãos do Sucessor de
Pedro. Fizemo-lo abençoar, como pelo próprio Pedro, pondo-o ao lado do seu túmulo. Agora ele é
expressão da nossa responsabilidade comum diante do "supremo pastor", Jesus Cristo, do qual
fala Pedro (1 Pd 5, 4). O pálio é a expressão da nossa missão apostólica. É expressão da nossa
comunhão, que no ministério petrino tem a sua garantia visível. Com a unidade, assim como com
a apostolicidade, está relacionado o serviço petrino, que reúne visivelmente a Igreja de todas as
partes e de todos os tempos, impedindo assim que todos nós escorreguemos para falsas
autonomias, que muito facilmente se transformam em particularismos da Igreja e podem
comprometer a sua independência. Com isto não queremos esquecer que o sentido de todas as
funções e ministérios no fundo é que "cheguemos todos à unidade da fé e do conhecimento do
Filho de Deus, ao homem adulto, à medida completa da plenitude de Cristo", para que cresça o
corpo de Cristo "para se construir a si próprio no amor" (Ef 4, 13.16).
4
Nesta perspectiva saúdo de coração e com gratidão a delegação da Igreja ortodoxa de
Constantinopla, que é enviada pelo Patriarca Ecuménico Bartolomeu I, ao qual dirijo um
pensamento cordial. Guiada pelo Metropolita Ioannis, veio a esta nossa festa e participa na nossa
celebração. Mesmo se ainda não concordamos sobre a questão da interpretação e do alcance do
ministério petrino, estamos contudo unidos na sucessão apostólica, estamos profundamente
unidos uns aos outros pelo ministério episcopal e pelo sacramento do sacerdócio e confessamos
juntos a fé dos Apóstolos como nos é dada nas Escrituras e como é interpretada nos grandes
Concílios. Neste momento do mundo cheio de cepticismo e de dúvidas, mas também rico de
desejo de Deus, reconhecemos novamente a nossa missão comum de testemunhar juntos Cristo
Senhor e, com base naquela unidade que já nos é dada, ajudar o mundo para que creia. E
suplicamos ao Senhor com todo o coração para que nos guie à unidade plena de forma que o
esplendor da verdade, a única que pode criar a unidade, se torne de novo visível no mundo.

O Evangelho deste dia fala-nos da confissão de São Pedro que deu origem ao início da Igreja:
"Tu és Cristo, o Filho de Deus vivo" (Mt 16, 16). Tendo falado hoje da Igreja una, católica e
apostólica, mas ainda não da Igreja santa, desejamos recordar neste momento outra confissão de
Pedro pronunciada em nome dos Doze no momento do grande abandono: "Por isso nós cremos e
sabemos que Tu és o Santo de Deus" (Jo 6, 69). O que isto significa? Jesus, na grande oração
sacerdotal, diz que se santifica pelos discípulos, fazendo alusão ao sacrifício da sua morte (Jo 17,
19). Com isto Jesus exprime implicitamente a sua função de verdadeiro Sumo Sacerdote que
realiza o mistério do "Dia da Reconciliação", não apenas nos ritos substitutivos, mas na
concretização do seu próprio Corpo e Sangue. A palavra "o Santo de Deus" no Antigo
Testamento indicava Aarão como Sumo Sacerdote que tinha a tarefa de realizar a santificação de
Israel (Sl 105, 16; cf. Sr 45, 6). A confissão de Pedro em favor de Cristo, que ele declara o Santo
de Deus, está no contexto do discurso eucarístico, no qual Jesus anuncia o grande Dia da
Reconciliação mediante a oferenda de si mesmo em sacrifício: "O pão que Eu hei-de dar é a
minha carne, pela vida do mundo" (Jo 6, 51). Assim, no quadro desta confissão, encontra-se o
mistério sacerdotal de Jesus, o seu sacrifício por todos nós. A Igreja não é santa por si só;
consiste de facto de pecadores todos nós o sabemos e vemos. Mas ela é sempre de novo
santificada pelo Santo de Deus, pelo amor purificador de Cristo. Deus não falou apenas: amou-
nos de modo muito realista, amou-nos até à morte do próprio Filho. É precisamente disto que se
nos mostra toda a grandeza da revelação que quase inscreveu no coração do próprio Deus as
feridas. Então, cada um de nós pode dizer pessoalmente com São Paulo: "Vivo na fé do Filho de
Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim" (Gl 2, 20). Peçamos ao Senhor para que
a verdade desta palavra se imprima profundamente, com a sua alegria e responsabilidade, no
nosso coração; rezemos para que irradiando-se da Celebração eucarística, ela se torne cada vez
mais a força que plasma a nossa vida.

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


NA CONCLUSÃO DO CONGRESSO
EUCARÍSTICO ITALIANO

Solenidade de Corpus Christi


Bari, 29 de Maio de 2005

Caríssimos Irmãos e Irmãs!

"Glorifica o Senhor, Jerusalém, louva, Sião, o teu Deus" (Salmo Responsorial). O convite do
Salmista, que ressoa também na Sequência, exprime muito bem o sentido desta Celebração
eucarística: reunimo-nos para louvar e bendizer ao Senhor. Eis a razão que levou a Igreja italiana
a encontrar-se aqui, em Bari, para o Congresso Eucarístico Nacional. Também eu me quis unir
hoje a todos vós para celebrar com particular realce a Solenidade do Corpo e do Sangue de
Cristo, e desta forma prestar homenagem a Cristo no Sacramento do seu amor, e ao mesmo
tempo, fortalecer os vínculos de comunhão que me ligam à Igreja que está na Itália e aos seus
Pastores.

Neste importante encontro eclesial também teria desejado, como sabeis, estar presente o meu
venerado e amado Predecessor, o Papa João PauloII. Sentimo-lo próximo de nós e connosco
glorifica Cristo, bom Pastor, que ele já pode contemplar directamente.

Saúdo com afecto todos vós que participais nesta solene liturgia: o Cardeal Camillo Ruini e os
outros Cardeais presentes, o Arcebispo de Bari, D. Francesco Cacucci, ao qual agradeço as
palavras gentis, os Bispos da Apúlia e os que vieram em grande número de todas as partes da
Itália; os sacerdotes, os religiosos, as religiosas e os leigos, em particular os jovens e também
todos os que, de várias formas, cooperaram para a organização do Congresso. Saúdo também as
Autoridades, que com a sua agradável presença realçam como os Congressos Eucarísticos
fazem parte da história e da cultura do povo italiano.

Este Congresso Eucarístico, que hoje chega à sua conclusão, quis apresentar o domingo como
"Páscoa semanal", expressão da identidade da comunidade cristã e centro da sua vida e da sua
2
missão. O tema escolhido "Sem o Domingo não podemos viver" leva-nos ao ano 304, quando o
imperador Diocleciano proibiu aos cristãos, sob pena de morte, de possuir as Escrituras, de se
reunirem ao domingo para celebrar a Eucaristia e de construir lugares para as suas assembleias.
Em Abitene, uma pequena localidade na actual Tunísia, 49 cristãos foram surpreendidos um
domingo enquanto, reunidos em casa de Octávio Félix, celebravam a Eucaristia desafiando as
proibições imperiais. Foram presos e levados para Cartago para serem interrogados pelo pró-
Cônsul Anulino.

Foi significativa, entre outras, a resposta que um tal Emérito deu ao pró-Cônsul que lhe
perguntava por que motivo violaram a ordem severa do imperador. Respondeu: "Sine dominico
non possumus": isto é, sem nos reunirmos em assembleia ao domingo para celebrar a Eucaristia
não podemos viver. Faltar-nos-iam as forças para enfrentar as dificuldades quotidianas sem
sucumbir. Depois de atrozes torturas, os 49 mártires de Abitene foram mortos. Confirmaram
assim, com a efusão do sangue, a sua fé. Morreram, mas venceram: agora, nós recordámo-los na
glória de Cristo ressuscitado.

Sobre a experiência dos mártires de Abitene também nós, cristãos do século XXI, devemos
reflectir. Também para nós não é fácil viver como cristãos, mesmo se não existem estas
proibições do imperador. Sob um ponto de vista espiritual, o mundo no qual nos encontramos,
muitas vezes marcado pelo consumismo desenfreado, pela indiferença religiosa, por um
secularismo fechado à transcendência, pode parecer um deserto não menos áspero do que
aquele "grande e assustador" (Dt 8, 15) do qual nos falou a primeira leitura, tirada do Livro do
Deuteronómio.

Deus, neste deserto, vai em auxílio do povo hebreu em dificuldade com o dom do maná, para lhe
fazer compreender que "nem só de pão vive o homem, mas de tudo o que sai da boca do Senhor"
(Dt 8, 3). No Evangelho de hoje Jesus explicou-nos para que pão Deus, através da doação do
maná, queria preparar o povo da Nova Aliança. Fazendo alusão à Eucaristia disse: "Este é o pão
que desceu do céu; não é como aquele que os antepassados comeram, pois eles morreram;
quem come mesmo deste pão viverá eternamente" (Jo 6, 58). O Filho de Deus, tendo-se feito
carne, podia tornar-se pão, e ser assim alimento do seu povo, de nós que estamos a caminho
neste mundo rumo à terra prometida do Céu.

Precisamos deste pão para enfrentar as fadigas e o cansaço da viagem. O Domingo, Dia do
Senhor, é a ocasião propícia para haurir a força d'Ele, que é o Senhor da vida. Por conseguinte, o
preceito festivo não é um dever imposto pelo exterior, um peso sobre os nossos ombros. Ao
contrário, participar na Celebração dominical, alimentar-se do Pão eucarístico e experimentar a
comunhão dos irmãos e irmãs em Cristo é uma necessidade para o cristão, é uma alegria, e
assim pode encontrar a energia necessária para o caminho que devemos percorrer todas as
semanas. Um caminho, aliás, não arbitrário: a via que Deus nos indica na sua Palavra vai na
direcção inscrita na própria essência do homem, a Palavra de Deus e a razão caminham juntas.
3
Seguir a Palavra de Deus e caminhar com Cristo significa para o homem realizar-se a si mesmo;
perdê-la equivale a perder-se a si próprio.

O Senhor não nos deixa sozinhos neste caminho. Ele está connosco; aliás, Ele deseja partilhar o
nosso destino até se identificar connosco. No diálogo que há pouco o Evangelho nos referiu, Ele
disse: "Quem realmente come a minha carne e bebe o meu sangue fica a morar em mim e Eu
nele" (Jo 6, 56). Como não se alegrar com uma promessa como esta? Contudo ouvimos que,
àquele primeiro anúncio, o povo, em vez de rejubilar, começou a discutir e a protestar: "Como
pode Ele dar-nos a sua carne a comer? (Jo 6, 52). Na verdade, aquela atitude repetiu-se muitas
outras vezes ao longo da história. No fundo, poderíamos pensar que o povo não queira Deus tão
próximo, ao seu alcance, tão partícipe das suas vicissitudes. O povo quer que ele seja grande e,
em definitiva também com frequência o queremos um pouco distante de nós. Levantam-se então
questões que pretendem demonstrar, no fim, que uma semelhante proximidade é impossível. Mas
permanecem em toda a sua clareza as palavras que Cristo pronunciou naquela ocasião: "Em
verdade, em verdade, vos digo: se não comerdes mesmo a carne do Filho do homem e não
beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós" (Jo 6, 53). Na verdade precisamos de um Deus
que esteja próximo. Perante os murmúrios de protesta, Jesus poderia ter optado por palavras
tranquilizantes: "Amigos, teria podido dizer, não vos preocupeis! Falei de carne, mas trata-se
apenas de um símbolo. O que pretendo dizer é unicamente uma profunda comunhão de
sentimentos". Mas Jesus não recorreu a semelhantes atenuações. Manteve firme a própria
declaração, todo o seu realismo, também diante da deserção de muitos dos seus discípulos (cf.
Jo 6, 66). Aliás, Ele demonstrou-se disposto a aceitar até a deserção dos seus próprios apóstolos,
para nada alterar do concreto do seu discurso: "Também vós quereis ir embora?" (Jo 6, 67),
perguntou. Graças a Deus, Pedro deu uma resposta que também nós, hoje, com plena
consciência fazemos nossa: "A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna" (Jo 6,
68). Precisamos de um Deus que esteja próximo, de um Deus que se coloca nas nossas mãos e
que nos ama.

Na Eucaristia Cristo está realmente presente entre nós. A sua presença não é estática. É uma
presença dinâmica, que nos prende para nos fazer seus, para nos assimilar a si. Cristo atrai-nos
a si, faz-nos sair de nós próprios para fazer de todos nós uma só coisa com Ele. Desta forma, Ele
insere-nos também na comunidade dos irmãos e a comunhão com o Senhor é também e sempre
comunhão com as irmãs e irmãos. E vemos a beleza desta comunhão que a Sagrada Eucaristia
nos proporciona.

Alcançamos aqui uma ulterior dimensão da Eucaristia, sobre a qual gostaria ainda de falar antes
de concluir. O Cristo que encontramos no Sacramento é o mesmo aqui em Bari como em Roma,
na Europa como na América, na África, na Ásia, na Oceânia. É o único e o mesmo Cristo que
está presente no Pão eucarístico de qualquer lugar da terra. Isto significa que nós só o podemos
encontrar juntamente com os outros. Só na unidade o podemos receber. Não foi porventura isto
que nos disse o apóstolo Paulo na leitura que há pouco ouvimos? Ao escrever aos Coríntios, ele
4
afirma: "Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos
participamos desse único pão" (1 Cor 10, 17). A consequência é clara: não podemos comunicar
com o Senhor, sem comunicar entre nós. Se nos quisermos apresentar a Ele, devemos também
mover-nos para irmos uns ao encontro dos outros. Por isso é preciso aprender a grande lição do
perdão: não deixemos que o nosso ânimo seja corroído pelo ressentimento, mas abramos o
coração à magnanimidade da escuta do próximo, abramos o coração à compreensão em relação
a ele, à eventual aceitação das suas desculpas, à generosa oferta das próprias.

A Eucaristia repetimo-lo é sacramento de unidade. Mas infelizmente os cristãos estão divididos,


precisamente no sacramento da unidade. Muito mais nos devemos, amparados pela Eucaristia,
sentir estimulados a tender com todas as forças para aquela unidade plena que Cristo desejou
ardentemente no Cenáculo. Precisamente aqui, em Bari, feliz Bari, cidade generosa que conserva
os ossos de São Nicolau, terra de encontro e de diálogo com os irmãos cristãos do Oriente,
gostaria de repetir a minha vontade de assumir como compromisso fundamental o de trabalhar
com todas as energias para a reconstituição da unidade plena e visível de todos os seguidores de
Cristo.

Estou consciente de que para isto não são suficientes as manifestações de bons sentimentos.
São necessários gestos concretos que entrem nos ânimos e despertem as consciências,
solicitando cada um àquela conversão interior que é pressuposto de qualquer progresso no
caminho do ecumenismo (cf. Mensagem à Igreja universal, Capela Sistina, 20 de abril de 2005).
Peço a todos vós que tomeis com decisão o caminho daquele ecumenismo espiritual, que na
oração abre as portas ao Espírito Santo, o único que pode criar unidade.

Queridos amigos que viestes a Bari de várias partes da Itália para celebrar este Congresso
eucarístico, nós devemos redescobrir a alegria do domingo cristão. Devemos redescobrir com
orgulho o privilégio de poder participar na Eucaristia, que é o sacramento do mundo renovado. A
ressurreição de Cristo aconteceu no primeiro dia da semana, que nas Escrituras é o dia da
criação do mundo. Precisamente por isto o domingo era considerado pela comunidade cristã dos
primeiros tempos como o dia em que teve início o novo mundo, aquele no qual, com a vitória de
Cristo sobre a morte, começou a nova criação. Recolhendo-se em volta da mesa eucarística, a
comunidade ía-se modelando como novo povo de Deus. Santo Inácio de Antioquia qualificava os
cristãos como "aqueles que alcançaram a nova esperança", e apresentava-os como pessoas
"viventes segundo o domingo" ("iuxta dominicam viventes"). Nesta perspectiva o Bispo
antioqueno perguntava: "Como poderemos viver sem Aquele, pelo qual também os profetas
esperaram?" (Epist. ad Magnesios, 9, 1-2).

"Como poderemos viver sem Ele?". Sentimos ressoar nestas palavras de Santo Inácio a
afirmação dos mártires de Abitene: "Sine dominico non possumus". Precisamente disto brota a
nossa oração: que também os cristãos de hoje reencontrem a consciência da importância
decisiva da Celebração dominical e saibam tirar da participação na Eucaristia o estímulo
5
necessário para um novo compromisso no anúncio, ao mundo, de Cristo "nossa paz" (Ef 2, 14).
Amém!

Copyright © Libreria Editrice Vaticana

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


NA SANTA MISSA POR OCASIÃO
DA SOLENIDADE DO SANTÍSSIMO CORPO
E SANGUE DE CRISTO

Basílica de S. João de Latrão


Quinta-feira, 26 de Maio de 2005

Amados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Queridos irmãos e irmãs!

Na festa de Corpus Christi, a Igreja revive o mistério da Quinta-Feira Santa à luz da Ressurreição.
Também a Quinta-Feira Santa conhece uma sua procissão eucarística, com a qual a Igreja repete
o êxodo de Jesus do Cenáculo para o monte das Oliveiras. Em Israel, celebrava-se a noite de
Páscoa em casa, na intimidade da família. Fazia-se assim memória da primeira Páscoa, no
Egipto da noite em que o sangue do cordeiro pascal, aspergido na arquitrave e nos portais das
casas, protegia contra o exterminador. Jesus, naquela noite, sai e entrega-se ao traidor, ao
exterminador e, precisamente assim, vence a noite, vence as trevas do mal. Só desta forma, o
dom da Eucaristia, instituída no Cenáculo, encontra o seu cumprimento: Jesus entrega realmente
o seu corpo e o seu sangue. Atravessando o limiar da morte, torna-se pão vivo, verdadeiro
maná,alimentoinexaurível para todos osséculos.Acarne torna-se pão de vida.

Na procissão da Quinta-Feira Santa, a Igreja acompanha Jesus ao monte das Oliveiras: a Igreja
orante sente um desejo profundo de vigiar com Jesus, de não o deixar sozinho na noite do
mundo, na noite da traição, na noite da indiferença de muitos. Na festa de Corpus Christi,
retomamos esta procissão, mas na alegria da Ressurreição. O Senhor ressuscitou e precedeu-
nos. Nas narrações da Ressurreição há uma característica comum e fundamental; os anjos
dizem: o Senhor "vai à vossa frente para a Galileia. Lá o vereis" (Mt 28, 7). Considerando isto
mais de perto, podemos dizer que este "preceder" de Jesus exige uma dupla direcção. A primeira
2
é como ouvimos a Galileia. Em Israel, a Galileia era considerada como a porta que se abre para o
mundo dos pagãos.

E na realidade precisamente na Galileia, no monte, os discípulos vêem Jesus, o Senhor, que lhes
diz: "Ide... fazei discípulos de todos os povos" (Mt 28, 19). A outra direcção do preceder, por parte
do Ressuscitado, aparece no Evangelho de São João, nas palavras de Jesus a Madalena: "Não
me detenhas, pois ainda não subi para o Pai..." (Jo 20, 17). Jesus precede-nos junto do Pai,
eleva-se à altura de Deus e convida-nos a segui-lo. Estas duas direcções do caminho do
Ressuscitado não se contradizem, mas indicam ao mesmo tempo o caminho do seguimento de
Cristo. A verdadeira meta do nosso caminho é a comunhão com Deus o próprio Deus é a casa
com muitas moradas (cf. Jo 14, 2s.). Mas só podemos subir a esta morada indo "em direcção à
Galileia" indo pelos caminhos do mundo, levando o Evangelho a todas as nações, levando o dom
do seu amor aos homens de todos os tempos. Por isso o caminho dos apóstolos prolongou-se até
aos "confins da terra" (cf. Act 1, 6s.); assim São Pedro e São Paulo foram até Roma, cidade que
na época era o centro do mundo conhecido, verdadeira "caput mundi".

A procissão da Quinta-Feira Santa acompanhou Jesus na sua solidão, rumo à "via crucis". A
procissão de Corpus Christi, ao contrário, responde de maneira simbólica ao mandamento do
Ressuscitado: precedo-vos na Galileia. Ide até aos confins do mundo, levai o Evangelho a todas
as nações. Sem dúvida, para a fé, a Eucaristia é um mistério de intimidade. O Senhor instituiu o
Sacramento no Cenáculo, circundado pela sua nova família, pelos doze apóstolos, prefiguração e
antecipação da Igreja de todos os tempos. Por isso, na liturgia da Igreja antiga, a distribuição da
sagrada comunhão era introduzida com as palavras: Sancta sanctis o dom sagrado destina-se
aos que são tornados santos. Deste modo, respondia-se à admoestação dirigida por São Paulo
aos Coríntios: "Portanto, examine-se cada um a si próprio e só então coma deste pão e beba
deste vinho..." (1 Cor 11, 28). Contudo, desta intimidade, que é dom muito pessoal do Senhor, a
força do sacramento da Eucaristia vai além das paredes das nossas Igrejas. Neste Sacramento, o
Senhor está sempre a caminho no mundo. Este aspecto universal da presença eucarística
sobressai na procissão da nossa festa. Nós levamos Cristo, presente na figura do pão, pelas
estradas da nossa cidade. Nós confiamos estas estradas, estas casas a nossa vida quotidiana à
sua bondade. Que as nossas estradas sejam de Jesus! Que as nossas casas sejam para Ele e
com Ele! A nossa vida de todos os dias estejam penetradas da sua presença. Com este gesto,
colocamos sob o seu olhar os sofrimentos dos doentes, a solidão dos jovens e dos idosos, as
tentações, os receios toda a nossa vida. A procissão pretende ser uma bênção grande e pública
para a nossa cidade: Cristo é, em pessoa, a bênção divina para o mundo o raio da sua bênção
abranja todos nós!

Na procissão de Corpus Christi, acompanhamos o Ressuscitado no seu caminho pelo mundo


inteiro como dissemos. E, precisamente fazendo isto, respondemos também ao seu mandamento:
"Tomai e comei... Bebei todos" (Mt 26, 26s.). Não se pode "comer" o Ressuscitado, presente na
figura do pão, como um simples bocado de pão. Comer este pão é comunicar, é entrar em
3
comunhão com a pessoa do Senhor vivo. Esta comunhão, este acto de "comer", é realmente um
encontro entre duas pessoas, é deixar-se penetrar pela vida d'Aquele que é o Senhor, d'Aquele
que é o meu Criador e Redentor. A finalidade desta comunhão, deste comer, é a assimilação da
minha vida à sua, a minha transformação e conformação com Aquele que é Amor vivo. Por isso,
esta comunhão exige a adoração, requer a vontade de seguir Cristo, de seguir Aquele que nos
precede. Por isso, a adoração e a procissão fazem parte de um único gesto de comunhão;
respondem ao seu mandamento: "Tomai e comei".

A nossa procissão termina diante da Basílica de Santa Maria Maior, no encontro com Nossa
Senhora, chamada pelo querido Papa João Paulo II "Mulher eucarística". Verdadeiramente Maria,
a Mãe do Senhor, ensina-nos o que significa entrar em comunhão com Cristo: Maria ofereceu a
própria carne, o próprio sangue a Jesus e tornou-se tenda viva do Verbo, deixando-se penetrar no
corpo e no espírito pela sua presença. Pedimos a Ela, nossa santa Mãe, para que nos ajude a
abrir, cada vez mais, todo o nosso estar na presença de Cristo; para que nos ajude a segui-lo
fielmente, dia após dia, pelos caminhos da nossa vida. Amém!

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A Santa Sé

HOMILIA  PAPA BENTO XVI


DURANTE A CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
PARA A ORDENAÇÃO DE 21 SACERDOTES
NA SOLENIDADE DE PENTECOSTES  

 Domingo, 15 de Maio de 2005

Queridos Irmãos no Episcopado


e no Sacerdócio
Caríssimos Ordenandos
Amados Irmãos e Irmãs!

A primeira leitura e o Evangelho do Domingo de Pentecostes apresentam-nos duas grandes


imagens da missão do Espírito Santo. A leitura dos Actos dos Apóstolos narra como, no dia de
Pentecostes, o Espírito Santo, sob os sinais de um vento poderoso e de fogo, irrompe na
comunidade orante dos discípulos de Jesus e dá assim origem à Igreja. Para Israel, o
Pentecostes, de festa da sementeira, tornou-se a festa que recordava a conclusão da aliança no
Sinai. Deus demonstrou a sua presença ao povo através do vento e do fogo e depois ofereceu-
lhe a sua lei, a lei dos 10 mandamentos. Só assim a obra de libertação, que começara com o
êxodo do Egipto, se tinha cumprido plenamente:  a liberdade humana é sempre uma liberdade
partilhada, um conjunto de liberdades.

Só numa ordenada harmonia das liberdades, que abre para cada um o seu âmbito, se pode ter
uma liberdade comum. Por isso o dom da lei no Sinai não foi uma restrição ou uma abolição da
liberdade mas o fundamento da verdadeira liberdade. E dado que um justo ordenamento humano
se pode reger apenas se provém de Deus e se une os homens na perspectiva de Deus, para uma
disposição ordenada das liberdades humanas não podem faltar os mandamentos que o próprio
Deus dá. Assim Israel tornou-se plenamente povo precisamente através da aliança com Deus no
Sinai. O encontro com Deus no Sinai poderia ser considerado como o fundamento e a garantia da
sua existência como povo. O vento e o fogo, que atingiram a comunidade dos discípulos de Cristo
2
reunida no cenáculo, constituíram um ulterior desenvolvimento do acontecimento do Sinai e
conferiram-lhe uma nova amplitude. Naquele dia encontravam-se em Jerusalém, segundo quanto
referem os Actos dos Apóstolos, "Judeus piedosos provenientes de todas as nações que há
debaixo do céu" (Act 2, 5). E eis que se manifesta o dom característico do Espírito Santo:  todos
compreenderam as palavras dos apóstolos:  "Cada um os ouvia falar na sua própria língua" (Act
2, 6). O Espírito Santo concede o dom da compreensão. Ultrapassa a ruptura que teve início em
Babel a confusão dos corações, que nos faz ser uns contra os outros o Espírito abre as fronteiras.
O povo de Deus que tinha encontrado no Sinai a sua primeira configuração, é agora ampliado até
ao ponto de já não conhecer fronteira alguma.

O novo povo de Deus, a Igreja, é um povo que provém de todos os povos. A Igreja desde o início
é católica, esta é a sua essência mais profunda. São Paulo explica e realça isto na segunda
leitura, quando diz:  "De facto, num só Espírito, fomos todos baptizados para formar um só corpo,
judeus e gregos, escravos e livres, e todos bebemos de um só Espírito" (1 Cor 12, 13). A Igreja
deve tornar-se sempre de novo aquilo que ela já é:  deve abrir as fronteiras entre os povos e
romper as barreiras entre as classes e as raças. Nela não podem haver esquecidos nem
desprezados. Na Igreja existem unicamente irmãos e irmãs livres em Jesus Cristo. Vento e fogo
do Espírito Santo devem infatigavelmente abater aquelas barreiras que nós homens continuamos
a erguer entre nós; devemos sempre de novo passar de Babel, do fechamento em nós mesmos,
para Pentecostes. Por isso, devemos continuamente pedir que o Espírito Santo nos abra, nos
conceda a graça da compreensão, de modo que nos possamos tornar o povo de Deus
proveniente de todos os povos ainda mais, diz-nos São Paulo:  em Cristo, que como único pão a
todos alimenta na Eucaristia e nos atrai para si no seu corpo martirizado na cruz, nós devemos
tornar-nos um só corpo e um só espírito.

"A paz esteja convosco":  esta saudação do Senhor é uma ponte que ele lança entre céu e terra
A segunda imagem do envio do Espírito, que encontramos no Evangelho, é muito mais discreta.
Mas precisamente por isso faz compreender toda a grandeza do acontecimento de Pentecostes.
O Senhor Ressuscitado entra através das portas fechadas no lugar onde os discípulos se
encontravam e saúda-os duas vezes dizendo:  a paz esteja convosco! Nós, continuamente,
fechamos as nossas portas; continuamente, queremos pôr-nos a salvo e não ser incomodados
pelos outros nem por Deus. Portanto, podemos suplicar continuamente o Senhor por isso, para
que ele venha ao nosso encontro vencendo os nossos fechamentos e trazendo-nos a sua
saudação. "A paz esteja convosco":  esta saudação do Senhor é uma ponte, que ele lança entre
céu e terra. Ele desce por esta ponte até nós e nós podemos subir, por esta ponte de paz, até
Ele. Nesta ponte, sempre juntamente com Ele, também nós devemos alcançar o próximo,
alcançar aquele que tem necessidade de nós. Precisamente descendo com Cristo, nós elevamo-
nos até Ele e até Deus:  Deus é Amor e por isso descida, abaixamento, que o amor nos pede, e
ao mesmo tempo é a verdadeira subida. Precisamente assim, abaixando-nos, saindo de nós
mesmos, nós alcançamos a altura de Jesus Cristo, a verdadeira altura do ser humano.
3
Àsaudação de paz do Senhor seguem-se dois gestos decisivos para o Pentecostes:  o Senhor
deseja que a sua missão continue nos discípulos:  "Assim como o Pai me enviou, também Eu vos
envio a vós" (Jo 20, 21). Depois disto, sopra sobre eles e diz:  "Recebei o Espírito Santo. Àqueles
a quem perdoardes os pecados, ficarão perdoados; àqueles a quem os retiverdes, ficarão retidos"
(Jo 20, 23). O Senhor sopra sobre os discípulos, e assim dá-lhes o Espírito Santo, o seu Espírito.
O sopro de Jesus é o Espírito Santo. Reconhecemos aqui, antes de mais, uma alusão à narração
da criação do homem no Génesis, onde está escrito:  "O Senhor Deus formou o homem do pó da
terra e insuflou-lhe pelas narinas o sopro da vida" (Gn 2, 7). O homem é esta criatura misteriosa,
que provém totalmente da terra, mas no qual foi posto o sopro de Deus. Jesus sopra sobre os
apóstolos e dá-lhe de maneira renovada, maior, o sopro de Deus. Nos homens, não obstante
todas as suas limitações, existe agora algo absolutamente novo o sopro de Deus. A vida de Deus
habita em nós. O sopro do seu amor, da sua verdade e da sua bondade. Assim podemos ver aqui
também uma alusão ao baptismo e à confirmação a esta nova pertença a Deus, que o Senhor
nos concede. O texto do Evangelho convida-nos a isto:  a viver sempre no espaço do sopro de
Jesus Cristo, a receber vida d'Ele, de modo que ele inspire em nós a vida autêntica a vida da qual
morte alguma pode privar. Com o seu sopro, com o dom do Espírito Santo, o Senhor relaciona o
poder de perdoar. Ouvimos anteriormente que o Espírito Santo une, abate as fronteiras, guia uns
para os outros. A força, que abre e faz superar Babel, é a força do perdão. Jesus pode conceder
o perdão e o poder de perdoar, porque ele mesmo sofreu as consequências da culpa e dissolveu-
as na chama do seu amor. O perdão vem da cruz; ele transforma o mundo com o amor que nos
doa. O seu coração aberto na cruz é a porta pela qual entra no mundo a graça do perdão. E
unicamente esta graça pode transformar o mundo e edificar a paz.

Se compararmos os dois acontecimentos de Pentecostes, o vento poderoso do 50º dia e o leve


sopro de Jesus na noite de Páscoa, podemos recordar-nos do contraste entre dois episódios, que
aconteceram no Sinai, dos quais nos fala o Antigo Testamento. Por um lado encontra-se a
narração do fogo, do trovão e do vento, que precedem a promulgação dos 10 Mandamentos e a
conclusão da aliança (cf. Êx 19 ss.); por outro, a narração misteriosa de Elias no Monte Oreb.
Depois dos dramáticos acontecimentos do Monte Carmelo, Elias tinha-se salvado da ira de Acab
e de Gezabele. Por conseguinte, seguindo o mandamento de Deus, peregrinou até ao Monte
Oreb. O dom da aliança divina, da fé no Deus único, parecia ter desaparecido em Israel. Elias, de
certa forma, deve reacender a chama da fé no monte de Deus e reconduzi-la a Israel. Ele
experimenta, naquele lugar, vento, terremoto e fogo. Mas Deus não está presente em tudo isto.
Então ele apercebe-se de um murmúrio doce e leve. E Deus fala-lhe com esse sopro leve (cf. 1
Re 19, 11-18). O que aconteceu na noite de Páscoa, quando Jesus apareceu aos seus Apóstolos
para lhes ensinar o que se deseja dizer? Não podemos porventura ver nisto a prefiguração do
servo de Jahwé, do qual Isaías diz:  "Ele não gritará, não levantará a voz, não clamará nas ruas"
(42, 2)? Não sobressai talvez assim a humilde figura de Jesus como a verdadeira revelação na
qual Deus se manifesta a nós e nos fala? Não são porventura a humildade e a bondade de Jesus
a verdadeira epifania de Deus? Elias, no Monte Carmelo, tinha procurado combater o
afastamento de Deus com o fogo e com a espada, matando os profetas de Baal. Mas desta forma
4
não pôde restabelecer a fé. No Oreb ele deve aprender que Deus não está no vento, no
terremoto, no fogo; Elias deve aprender a compreender a voz leve de Deus e, assim, a
reconhecer antecipadamente que venceu o pecado não com a força mas com a sua Paixão;
aquele que, com o seu sofrimento, nos doou o poder do perdão. Esta é a forma com a qual Cristo
vence.

Queridos ordenandos! Desta forma a mensagem de Pentecostes dirige-se agora directamente a


vós. O cenário de Pentecostes do Evangelho de João fala a vós e de vós. A cada um de vós, de
modo muito pessoal, o Senhor diz:  paz a vós paz a ti! Quando o Senhor diz isto, não doa uma
coisa qualquer mas doa-se a Si mesmo. De facto, ele mesmo é a paz (cf. Ef 2, 14). Nesta
saudação do Senhor, podemos entrever também uma referência ao grande mistério da fé, à
Santa Eucaristia, na qual ele se doa a nós continuamente e, desta forma, doa a verdadeira paz.
Esta saudação situa-se no centro da vossa missão sacerdotal:  o Senhor confia-vos o mistério
deste sacramento. No seu nome vós podeis dizer:  este é o meu corpo este é o meu sangue.
Deixai-vos atrair sempre de novo pela Santa Eucaristia, na comunhão de vida com Cristo.
Considerai como centro de cada um dos vossos dias poder celebrá-la de modo digno. Conduzi os
homens sempre de novo a este mistério. Ajudai-os, a partir dela, a levar a paz de Cristo ao
mundo.

Ressoa depois, no Evangelho que acabámos de escutar, uma segunda palavra do Ressuscitado: 
"assim como o Pai me enviou, também Eu vos envio a vós" (Jo 20, 21). Cristo diz isto, de modo
muito pessoal, a cada um de vós. Com a ordenação sacerdotal vós inseristes-vos na missão dos
apóstolos. O Espírito Santo veio, mas não é amorfo. É um Espírito ordenado. E manifesta-se
precisamente ordenando a missão, no sacramento do sacerdócio, com o qual continua o
ministério dos apóstolos. Através deste ministério, vós sois inseridos na grande multidão dos que,
a partir do Pentecostes, receberam a missão apostólica. Vós sois inseridos na comunhão do
presbitério, na comunhão com o bispo e com o Sucessor de São Pedro, que aqui em Roma é
também o vosso bispo. Todos nós somos inseridos na rede da obediência à palavra de Cristo, à
palavra daquele que dá a verdadeira liberdade, porque nos conduz nos espaços livres e nos
horizontes amplos da verdade. Precisamente neste vínculo comum com o Senhor nós podemos e
devemos viver o dinamismo do Espírito. Como o Senhor saiu do Pai e nos doou luz, vida e amor,
assim a missão deve continuamente pôr-nos em movimento, tornar-nos inquietos, para levar a
quem sofre, a quem está em dúvida, e também a quem hesita, a alegria de Cristo. Por fim, há o
poder do perdão. O sacramento da penitência é um dos tesouros preciosos da Igreja, porque só
no perdão se realiza o verdadeiro renovamento do mundo. Nada pode melhorar no mundo, se o
mal não for vencido. E o mal pode ser vencido unicamente com o perdão. Sem dúvida, deve ser
um perdão eficaz. Mas este perdão, só o Senhor o pode dar. Um perdão que não afasta o mal só
com palavras, mas realmente o destrói. Isto pode verificar-se unicamente com o sofrimento e
aconteceu realmente com o amor sofredor de Cristo, do qual nós haurimos o poder do perdão.

Por fim, queridos ordenandos, recomendo-vos o amor à Mãe do Senhor. Fazei como São João,
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que o acolheu no íntimo do próprio coração. Deixai-vos renovar continuamente pelo seu amor
materno. Aprendei dela a amar Cristo. O Senhor abençoe o vosso caminho sacerdotal! Amém.

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


DURANTE A CONCELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA
COMO BISPO DE ROMA NA BASÍLICA
DE SÃO JOÃO DE LATRÃO

Sábado, 7 de Maio de 2005

Estimados Padres Cardeais


Queridos Irmãos no Episcopado
Amados Irmãos e Irmãs

Neste dia, no qual posso pela primeira vez tomar posse da Cátedra do Bispo de Roma como
sucessor de Pedro, é o dia em que na Itália a Igreja celebra a Festa da Ascensão do Senhor. No
centro deste dia, encontramos Cristo. E só graças a Ele, graças ao mistério da sua elevação,
conseguimos compreender também o significado da Cátedra, que é por sua vez o símbolo do
poder e da responsabilidade do Bispo. O que nos quer dizer então a Festa da Ascensão do
Senhor? Não nos quer dizer que o Senhor foi para um lugar distante dos homens e do mundo. A
Ascensão de Cristo não é uma viagem no espaço em direcção aos astros mais remotos; porque,
no fim, também os astros são feitos de elementos físicos como a Terra. A Ascensão de Cristo
significa que Ele não já pertence ao mundo da corrupção e da morte que condiciona a nossa vida.
Significa que Ele pertence completamente a Deus. Ele o Filho Eterno guiou o nosso ser humano
até à presença de Deus, levou consigo a carne e o sangue numa forma transfigurada. O homem
encontra espaço em Deus; através de Cristo, o ser humano foi conduzido até ao interior da
própria vida de Deus. E dado que Deus abraça e ampara toda a criação, a Ascensão do Senhor
significa que Cristo não se afastou de nós, mas que agora, graças ao Seu ser com o Pai, está
próximo de cada um de nós, para sempre. Cada um de nós pode chamá-Lo por tu; todos os
podem chamar. O Senhor ouve-nos sempre. Podemos afastar-nos dele interiormente Podemos
viver voltando-lhe as costas. Mas Ele espera-nos sempre, e está sempre perto de nós.

Das leituras da liturgia de hoje aprendemos também algo mais sobre a solidez com que o Senhor
2
realiza este Seu estar perto de nós. O Senhor promete aos discípulos o Seu Espírito Santo. A
primeira leitura que escutámos diz-nos que o Espírito Santo será "força" para os discípulos; o
Evangelho acrescenta que será guia para a Verdade total. Jesus disse tudo aos Seus discípulos,
sendo Ele próprio a Palavra viva de Deus, e Deus não pode dar mais do que a Si próprio. Em
Jesus, Deus doou-se a nós completamente isto é deu-nos tudo. Além disto, ou paralelamente a
isto, não pode haver outra revelação capaz de comunicar em maior medida ou de completar, de
certa forma, a Revelação de Cristo. Nele, no Filho, tudo nos foi dito, tudo nos foi dado. Mas a
nossa capacidade de compreensão é limitada; por isso a missão do Espírito é introduzir a Igreja
de maneira sempre nova, de geração em geração, na grandeza do mistério de Cristo. O Espírito
nada acrescenta de novo nem de diverso ao lado de Cristo; não há qualquer revelação
pneumática ao lado da de Cristo como dizem alguns nenhum segundo nível de Revelação. Não:
"receberá do que é meu", diz Cristo no Evangelho (Jo 16, 14). E como Cristo diz apenas aquilo
que sente e recebe do Pai, assim o Espírito Santo é intérprete de Cristo. "Receberá do que é
meu". Não nos conduz a outros lugares, distantes de Cristo, mas conduz-nos cada vez mais
dentro da luz de Cristo. Por isso, a Revelação cristã é, ao mesmo tempo, cada vez mais antiga e
nova. Por isso, tudo nos é sempre e já doado. Ao mesmo tempo, cada geração, no encontro
inexaurível com o Senhor encontro mediado pelo Espírito Santo aprende sempre algo de novo.

Assim, o Espírito Santo é a força através da qual Cristo nos faz experimentar a sua proximidade.
Mas a primeira leitura diz-nos também uma segunda palavra: sereis minhas testemunhas. Cristo
ressuscitado precisa de testemunhas que O encontraram, de homens que o conheceram
intimamente através da força do Espírito Santo. Homens que, por assim dizer, tendo feito a
experiência directa d'Ele, O podem testemunhar. Foi assim que a Igreja, a família de Cristo,
cresceu de "Jerusalém... até aos extremos confins da terra", como diz a leitura. Através das
testemunhas foi construída a Igreja começando por Pedro e por Paulo, e pelos Doze, alcançando
todos os homens e mulheres que, repletos de Cristo, no decorrer dos séculos acenderam e
acenderão novamente de forma sempre renovada a chama da fé. Cada cristão, a seu modo, pode
e deve ser testemunha do Senhor ressuscitado. Quando lemos os nomes dos santos podemos
ver quantas vezes eles foram e continuam a ser em primeiro lugar homens simples, homens dos
quais emanava e emana uma luz resplandecente, capaz de guiar até Cristo.

Mas esta sinfonia é dotada também de uma estrutura bem definida: aos sucessores dos
Apóstolos, isto é, aos Bispos, compete a responsabilidade pública de fazer com que a rede deste
testemunho permaneça no tempo. No sacramento da ordenação episcopal são-lhe conferidos o
poder e a graça necessárias para este serviço. Nesta rede de testemunhas, compete ao Sucessor
de Pedro uma tarefa especial. Foi Pedro quem expressou primeiro, em nome dos apóstolos, a
profissão de fé: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo" (Mt 16, 16). Esta é a tarefa de todos os
Sucessores de Pedro: ser a guia na profissão de fé em Cristo, o Filho do Deus vivo. A Cátedra de
Roma é, em primeiro lugar, a Cátedra deste credo. Do alto desta Cátedra o Bispo de Roma deve
repetir constantemente: Dominus Jesus "Jesus é o Senhor", como escreveu Paulo nas suas
cartas aos Romanos (10, 9) e aos Coríntios (1 Cor 12, 3). Aos Coríntios, com particular ênfase,
3
disse: "Embora haja pretensos deuses, quer no céu quer na terra... para nós, contudo, um só é
Deus, o Pai...; e um só é o Senhor Jesus Cristo, por meio do qual tudo existe e mediante o qual
nós existimos" (1 Cor 8, 5-6). A Cátedra de Pedro obriga todos os que dela são titulares a dizer
como já fez Pedro num momento de crise dos discípulos quando muitos queriam afastar-se: "A
quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Por isso nós cremos e sabemos que
Tu é que és o Santo de Deus" (Jo 6, 68-69). Aquele que se senta na Cátedra de Pedro deve
recordar as palavras que o Senhor disse a Simão Pedro durante a Última Ceia: "... e tu, uma vez
convertido, fortalece os teus irmãos..." (Lc 22, 32). Aquele que é titular do ministério petrino deve
ter a consciência de que é um homem frágil e débil como são frágeis e débeis as suas próprias
forças constantemente necessitado de purificação e de conversão. Mas ele também pode ter a
consciência de que do Senhor lhe vem a força para confirmar os seus irmãos na fé e mantê-los
unidos na confissão de Cristo crucificado e ressuscitado. Na primeira carta de São Paulo aos
Coríntios, encontramos a narração mais antiga que possuímos da ressurreição. Paulo recolheu-a
fielmente das testemunhas. Esta narração fala primeiro da morte do Senhor pelos nossos
pecados, da sua sepultura, da sua ressurreição, ao terceiro dia, e depois diz: "apareceu a Cefas e
depois aos Doze" (1 Cor 15, 5). Assim, mais uma vez, é resumido o significado do mandato
conferido a Pedro até ao fim dos tempos: ser testemunha de Cristo ressuscitado.

O Bispo de Roma senta-se na Cátedra para dar testemunho de Cristo. É o símbolo da potestas
docendi, aquele poder de ensinar que faz parte essencial do mandato de ligar e desligar conferido
pelo Senhor a Pedro e, depois dele, aos Doze. Na Igreja, a Sagrada Escritura, cuja compreensão
aumenta sob a inspiração do Espírito Santo, e o ministério da interpretação autêntica, conferido
aos apóstolos, pertencem um ao outro de modo indissolúvel. Onde a Sagrada Escritura é
separada da voz viva da Igreja, torna-se vítima das controvérsias dos peritos. Sem dúvida, tudo o
que eles têm para nos dizer é importante e precioso; o trabalho dos sábios é para nós um grande
contributo para poder compreender aquele processo vivo com o qual a Escritura cresceu e para
compreender a sua riqueza histórica. Mas a ciência sozinha não nos pode fornecer uma
interpretação definitiva e vinculante; não é capaz de nos fornecer, na interpretação, aquela
certeza com a qual podemos viver e pela qual podemos até morrer. Por isso é necessário um
mandato maior, que não pode surgir unicamente das capacidades humanas. Por isso é
necessária a voz da Igreja viva, daquela Igreja confiada a Pedro e ao colégio dos apóstolos até
ao fim dos tempos.

Este poder de ensinamento assusta muitos homens dentro e fora da Igreja. Perguntam-se se ela
não ameaça a liberdade de consciência, se não é uma soberba em oposição à liberdade de
pensamento. Não é assim. O poder conferido por Cristo a Pedro e aos seus sucessores é, em
sentido absoluto, um mandato para servir. O poder de ensinar, na Igreja, obriga a um
compromisso ao serviço da obediência à fé. O Papa não é um soberano absoluto, cujo pensar e
querer são leis. Ao contrário: o ministério do Papa é garantia da obediência a Cristo e à Sua
Palavra. Ele não deve proclamar as próprias ideias, mas vincular-se constantemente a si e à
Igreja à obediência à Palavra de Deus, tanto perante todas as tentativas de adaptação e de
4
adulteração, como diante de qualquer oportunismo. O Papa João Paulo II fez isto quando,
perante todas as tentativas, aparentemente benévolas para com o homem, perante as erradas
interpretações da liberdade, realçou de maneira inequivocável a inviolabilidade do ser humano, a
inviolabilidade da vida humana desde a concepção até à morte natural. A liberdade de matar não
é uma liberdade, mas é uma tirania que reduz o ser humano à escravidão. O Papa tem a
consciência de que está, nas suas grandes decisões, ligado à grande comunidade da fé de todos
os tempos, às interpretações vinculantes que cresceram ao longo do caminho peregrinante da
Igreja. Assim, o seu poder não é superior, mas está ao serviço da Palavra de Deus, e sobre ele
recai a responsabilidade de fazer com que esta Palavra continue a estar presente na sua
grandeza e a ressoar na sua pureza, de modo que não seja fragmentada pelas contínuas
mudanças das modas.

A Cátedra é repetimos mais uma vez símbolo do poder de ensinamento, que é um poder de
obediência e de serviço, para que a Palavra de Deus a verdade! possa resplandecer entre nós,
indicando-nos o caminho da vida. Mas, falando da Cátedra do Bispo de Roma, como não recordar
as palavras que Santo Inácio de Antioquia escreveu aos Romanos? Pedro, vindo de Antioquia, a
sua primeira sede, dirigiu-se para Roma, sua sede definitiva. Uma sede que se tornou definitiva
através do martírio com o qual ligou para sempre a sua sucessão em Roma. Inácio, por seu lado,
permanecendo Bispo de Antioquia, estava destinado ao martírio que teria que sofrer em Roma.
Na sua carta aos Romanos refere-se à Igreja de Roma como "Àquela que preside no amor",
expressão muito significativa. Não sabemos com certeza o que Inácio pensava exactamente
quando usou estas palavras. Mas na Igreja antiga, a palavra amor, agape, referia-se ao mistério
da Eucaristia. Neste mistério o amor de Cristo torna-se sempre tangível entre nós. Nele, Ele
oferece-se sempre de novo. Nele, Ele deixa que trespassem o seu coração sempre de novo; nele,
Ele mantém a sua promessa, a promessa que, da Cruz, teria arrebatado tudo a si. Na Eucaristia,
nós próprios aprendemos o amor de Cristo. Foi graças a este centro e coração, graças à
Eucaristia, que os santos viveram, levando o amor de Deus ao mundo de maneiras e formas
sempre novas. Graças à Eucaristia a Igreja renasce sempre de novo! A Igreja mais não é do que
aquela rede a comunidade eucarística! na qual todos, recebendo o mesmo Senhor, nos tornamos
um só corpo e abraçamos o mundo inteiro. Presidir na doutrina e presidir no amor, no final,
devem ser uma só coisa: toda a doutrina da Igreja, no final, conduz ao amor. E a Eucaristia,
enquanto amor presente de Jesus Cristo, é o critério de qualquer doutrina. Do amor dependem a
Lei e os Profetas (Mt 22, 40). O amor é o cumprimento da lei, escrevia São Paulo aos Romanos
(13, 10).

Queridos Romanos, agora eu sou o vosso Bispo. Obrigado pela vossa generosidade, obrigado
pela vossa simpatia, obrigado pela paciência que tendes comigo! Como católicos, de certo modo,
todos somos também romanos. Com as palavras do Salmo 87, um hino de louvor a Sião, mãe de
todos os povos, cantava Israel e canta a Igreja: "De Sião há-de dizer-se: todos lá nascemos..." (v.
5). De igual modo, também nós podemos dizer: como católicos, de certa forma, todos nascemos
em Roma. Assim desejo procurar ser, de todo o coração, o vosso Bispo, o Bispo de Roma. E
5
todos nós desejamos procurar ser cada vez mais católicos cada vez mais irmãos e irmãs na
grande família de Deus, aquela família na qual ninguém é estrangeiro. Por fim, desejo agradecer
de coração ao Vigário para a Diocese de Roma, querido Cardeal Camillo Ruini, aos Bispos
auxiliares e a todos os seus colaboradores que, como fiéis, oferecem o seu contributo para
construir aqui a casa viva de Deus.

Amém.

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A Santa Sé

HOMILIA DO PAPA BENTO XVI


POR OCASIÃO DA VISITA À BASÍLICA
DE SÃO PAULO FORA DOS MUROS

Segunda-feira, 25 de Abril de 2005

Senhores Cardeais
Venerados Irmãos
no Episcopado e no Sacerdócio
Amados Irmãos e Irmãs no Senhor!

Dou graças a Deus que, no início do meu ministério de Sucessor de Pedro, me concede deter-me
em oração junto do sepulcro do apóstolo Paulo. Para mim, esta é uma peregrinação tão
desejada, um gesto de fé, que realizo em meu nome, mas também em nome da amada Diocese
de Roma, da qual o Senhor me constituiu Bispo e Pastor, e da Igreja universal confiada à minha
solicitude pastoral. Uma peregrinação, por assim dizer, às raízes da missão, daquela missão que
Cristo ressuscitado confiou a Pedro, aos Apóstolos e, de modo singular, também a Paulo,
estimulando-o a anunciar o Evangelho aos gentios, até chegar a esta Cidade, onde, depois de ter
longamente pregado o Reino de Deus (Act 28, 31), deu com o sangue o extremo testemunho ao
seu Senhor, que o tinha "conquistado" (cf. Fil 3, 12) e enviado.

Ainda antes que a Providência o guiasse até Roma, o Apóstolo escreveu aos cristãos desta
Cidade, capital do Império, a sua Carta mais importante sob o perfil doutrinal. Há pouco, foi
proclamada a parte inicial, um denso preâmbulo no qual o Apóstolo saúda a comunidade de
Roma apresentando-se como "servo de Jesus Cristo, apóstolo por vocação" (cf. Rm 1, 1). E mais
adiante acrescenta: "Por Ele [Cristo] recebemos a graça de sermos Apóstolos, a fim de levarmos
à obediência da fé todos os gentios" (Rm 1, 5).

Queridos amigos, como Sucessor de Pedro, estou aqui para reavivar na fé esta "graça do
apostolado", porque Deus, segundo outra expressão do Apóstolo dos gentios, me confiou "a
2
solicitude por todas as Igrejas" (2 Cor 11, 28). Encontra-se diante dos nossos olhos o exemplo do
meu amado e venerado predecessor João Paulo II, um Papa missionário, cuja intensa actividade,
testemunhada por mais de cem viagens apostólicas além dos confins da Itália, é verdadeiramente
inimitável. O que o impulsionava a um semelhante dinamismo a não ser o mesmo amor de Cristo
que transformou a existência de São Paulo (cf. 2 Cor 5, 14)? Que o Senhor alimente também em
mim um amor semelhante, para que eu não tenha paz perante as urgências do anúncio
evangélico no mundo de hoje. A Igreja é por sua natureza missionária, a sua tarefa primária é a
evangelização.

O Concílio Ecuménico Vaticano II dedicou à actividade missionária o Decreto denominado,


precisamente, "Ad gentes", o qual recorda que "os Apóstolos... seguindo as pegadas de Cristo
"pregaram a palavra da verdade e fundaram Igrejas" (S. Aug., Enarr. in Ps. 44, 23: PL 36, 508)" e
que "é obrigação dos seus sucessores perpetuar esta obra, a fim de que "a palavra de Deus seja
difundida e acolhida com honra" e o Reino de Deus seja anunciado e instaurado em toda a terra"
(n. 1).

No início do terceiro milénio, a Igreja sente com renovada vivacidade que o mandato missionário
de Cristo é actual como nunca. O Grande Jubileu do Ano 2000 conduziu-a a "voltar a partir de
Cristo", contemplado na oração, para que a luz da sua verdade seja irradiada a todos os homens,
antes de tudo com o testemunho da santidade. Apraz-me recordar aqui o mote que São Bento
escreveu na sua Regra, exortando os seus monges a "nada antepor absolutamente ao amor de
Cristo" (cap. 4). De facto, a vocação no caminho de Damasco levou Paulo precisamente a isto: a
fazer de Cristo o centro da sua vida, deixando tudo pela sublimidade do Seu conhecimento e do
seu mistério de amor, e comprometendo-se depois a anunciá-lo a todos, especialmente aos
pagãos, "para glória do seu nome" (Rm 1, 5). A paixão por Cristo levou-o a pregar o Evangelho
não só com as palavras, mas com a própria vida, cada vez mais conformada com o seu Senhor.

No final, Paulo anunciou Cristo com o martírio, e o seu sangue, juntamente com o de Pedro e de
tantas outras testemunhas do Evangelho, irrigou esta terra e tornou fecunda a Igreja de Roma,
que preside à comunhão universal da caridade (cf. S. Inácio de Ant., Ad Rom., Inscr.: Funk, I,
252).

O século XX, todos nós o sabemos, foi um tempo de martírio. Realçou bem isto o Papa João
Pualo II, ao pedir à Igreja para "actualizar o Martirológio" e canonizando e beatificando numerosos
mártires da história recente. Por conseguinte, se o sangue dos mártires é semente para novos
cristãos, no início do terceiro milénio é lícito esperar um renovado florescimento da Igreja,
sobretudo onde ela sofreu em maior medida pela fé e pelo testemunho do Evangelho.

Confiamos estes votos à intercessão de São Paulo. Que ele obtenha à Igreja de Roma, em
particular ao seu Bispo, e a todo o Povo de Deus, a alegria de anunciar e testemunhar a todos a
Boa Nova de Cristo Salvador.
3
 

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A Santa Sé

SANTA MISSA
IMPOSIÇÃO DO PÁLIO
E ENTREGA DO ANEL DO PESCADOR
PARA O INÍCIO DO MINISTÉRIO PETRINO DO BISPO DE ROMA

HOMILIA DE SUA SANTIDADE BENTO XVI

Praça de São Pedro


Domingo, 24 de Abril de 2005

Senhores Cardeais
Venerados Irmãos no episcopado e no sacerdócio
Distintas Autoridades
e Membros do Corpo Diplomático
Caríssimos Irmãos e Irmãs!

Por três vezes, nestes dias tão intensos, o cântico das ladainhas dos Santos nos acompanhou:
durante o funeral do nosso Santo Padre João Paulo II; por ocasião da entrada dos Cardeais em
Conclave, e também hoje, quando as cantamos de novo com a invocação: Tu illum adiuva
ampara o novo sucessor de São Pedro. Todas as vezes, de modo totalmente particular ouvi este
cântico orante como um grande conforto. Quanto nos sentimos abandonados depois da perda de
João Paulo II! O Papa que por 26 anos foi o nosso pastor e guia no caminho através deste tempo.

Ele cruzou o limiar para a outra vida entrando no mistério de Deus. Mas não deu este passo
sozinho. Quem crê, nunca está sozinho nem na vida nem na morte. Naquele momento nós
pudemos invocar os santos de todos os séculos, os seus amigos, os seus irmãos na fé, sabendo
que teriam estado no cortejo vivo que o teria acompanhado no além, até à glória de Deus. Nós
sabemos que a sua chegada era esperada. Agora sabemos que ele está entre os seus e está
verdadeiramente em sua casa. De novo, fomos confortados cumprindo a solene entrada em
conclave, para eleger aquele que o Senhor tinha escolhido. Como podíamos reconhecer o seu
2
nome? Como podiam, 115 Bispos, provenientes de todas as culturas e países, encontrar aquele
ao qual o Senhor desejava conferir a missão de ligar e desligar? Mais uma vez, nós o sabíamos:
sabíamos que não estávamos sós, que estávamos circundados, conduzidos e guiados pelos
amigos de Deus.

E agora, neste momento, eu, frágil servo de Deus, devo assumir esta tarefa inaudita, que
realmente supera qualquer capacidade humana. Como posso fazer isto? Como serei capaz de o
fazer? Todos vós, queridos amigos, acabaste de invocar todos os santos, representados por
alguns dos grandes nomes da história de Deus com os homens. Desta forma, também em mim se
reaviva esta autoconsciência: não estou sozinho. Não devo carregar sozinho o que na realidade
nunca poderia carregar sozinho. Os numerosos santos de Deus protegem-me, amparam-me e
guiam-me. E a vossa oração, queridos amigos, a vossa indulgência, o vosso amor, a vossa fé e a
vossa esperança acompanham-me. De facto, à comunidade dos santos não pertencem só as
grandes figuras que nos precederam e das quais conhecemos os nomes. Todos nós somos a
comunidade dos santos, nós baptizados em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, nós que
vivemos do dom da carne e do sangue de Cristo, por meio do qual ele nos quer transformar e
tornar-nos semelhantes a si mesmo.

Sim, a Igreja é viva eis a maravilhosa experiência destes dias. Precisamente nos tristes dias da
doença e da morte do Papa isto manifestou-se de modo maravilhoso aos nossos olhos: que a
Igreja é viva. E a Igreja é jovem. Ela leva em si o futuro do mundo e por isso mostra também a
cada um de nós o caminho para o futuro. A Igreja é viva e nós vemo-lo: experimentamos a alegria
que o Ressuscitado prometeu aos seus. A Igreja é viva ela é viva, porque Cristo é vivo, porque
verdadeiramente ele ressuscitou. No sofrimento, presente no rosto do Santo Padre nos dias de
Páscoa, contemplámos o mistério da paixão de Cristo e, ao mesmo tempo, tocámos nas suas
feridas. Mas em todos esses dias também pudemos, num sentido profundo, tocar o Ressuscitado.
Foi-nos concedido experimentar a alegria que ele prometeu, depois de um breve tempo de
obscuridade, como fruto da sua ressurreição.

A Igreja é viva saúdo assim com grande alegria e gratidão todos vós, que estais aqui reunidos,
venerados Irmãos Cardeais e Bispos, caríssimos sacerdotes, diáconos, agentes de pastoral,
catequistas. Saúdo a vós, religiosos e religiosas, testemunhas da transfigurante presença de
Deus. Saúdo a vós, irmãos leigos, imersos no grande espaço da construção do Reino de Deus
que se expande no mundo, em todas as expressões da vida. O discurso torna-se repleto de
afecto também na saudação que dirijo a quantos, renascidos no sacramento do Baptismo, ainda
não estão em plena comunhão connosco; e a vós irmãos do povo judaico, a quem nos sentimos
ligados por um grande património espiritual comum, que afunda as suas raízes nas irrevogáveis
promessas de Deus. O meu pensamento, por fim quase como uma onda que se expande dirige-
se a todos os homens do nosso tempo, crentes e não crentes.

Queridos amigos! Neste momento não temos necessidade de apresentar um programa de


3
governo. Alguns aspectos daquilo que eu considero minha tarefa, já tive ocasião de os expor na
mensagem de quarta-feira 20 de Abril; não faltarão outras ocasiões para o fazer. O meu
verdadeiro programa de governo é não fazer a minha vontade, não perseguir ideias minhas,
pondo-me contudo à escuta, com a Igreja inteira, da palavra e da vontade do Senhor e deixar-me
guiar por Ele, de forma que seja Ele mesmo quem guia a Igreja nesta hora da nossa história. Em
vez de expor um programa, gostaria simplesmente de procurar comentar os dois sinais com os
quais é representada liturgicamente a assunção do Ministério Petrino; contudo, estes dois sinais
reflectem também exactamente o que é proclamado nas leituras de hoje.

O primeiro sinal é o Pálio, tecido em lã pura, que me é colocado sobre os ombros. Este
antiquíssimo sinal, que os Bispos de Roma usam desde o século IV, pode ser considerado como
uma imagem do jugo de Cristo, que o Bispo desta cidade, o Servo dos Servos de Deus, assume
sobre os seus ombros. O jugo de Deus é a vontade de Deus, que nós aceitamos. Esta vontade
não é para nós um peso exterior, que nos oprime e nos priva da liberdade. Conhecer o que Deus
quer, conhecer qual é o caminho da vida eis a alegria de Israel, era o seu grande privilégio. Esta é
também a nossa alegria: a vontade de Deus não nos desvia, mas purifica-nos talvez de maneira
até dolorosa e assim conduz-nos a nós mesmos. Desta forma, não servimos só a Ele mas à
salvação de todo o mundo, de toda a história. Na realidade o simbolismo do Pálio é ainda mais
concreto: a lã do cordeiro pretende representar a ovelha perdida ou também a doente e frágil, que
o pastor coloca sobre os ombros e conduz às águas da vida. A parábola da ovelha perdida, que o
pastor procura no deserto, era para os Padres da Igreja uma imagem do mistério de Cristo e da
Igreja. A humanidade todos nós é a ovelha perdida que, no deserto, já não encontra o caminho. O
Filho de Deus não tolera isto; Ele não pode abandonar a humanidade numa condição tão
miserável.

Levanta-se de ímpeto, abandona a glória do céu, para reencontrar a ovelha e segui-la, até à cruz.
Carrega-a sobre os ombros, leva a nossa humanidade, leva-nos a nós mesmos Ele é o bom
pastor, que oferece a sua vida pelas ovelhas. O Pálio diz antes de tudo que todos nós somos
guiados por Cristo. Mas ao mesmo tempo convida-nos a levar-nos uns aos outros. Assim o Pálio
se torna o símbolo da missão do pastor, de que falam a segunda leitura e o Evangelho. A santa
preocupação de Cristo deve animar o pastor: para ele não é indiferente que tantas pessoas vivam
no deserto. E existem tantas formas de deserto. Há o deserto da pobreza, o deserto da fome e da
sede, o deserto do abandono, da solidão, do amor destruído. Há o deserto da obscuridão de
Deus, do esvaziamento das almas que perderam a consciência da dignidade e do caminho do
homem. Os desertos exteriores multiplicam-se no mundo, porque os desertos interiores tornaram-
se tão amplos. Por isso, os tesouros da terra já não estão ao serviço da edificação do jardim de
Deus, no qual todos podem viver, mas tornaram-se escravos dos poderes da exploração e da
destruição. A Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo, devem pôr-se a caminho,
para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus,
para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude. O símbolo do cordeiro tem ainda outro aspecto.
No Antigo Oriente era costume que os reis se designassem como pastores do seu povo. Esta era
4
uma imagem do seu poder, uma imagem cínica: os povos eram para eles como ovelhas, das
quais o pastor podia dispor como lhe aprazia. Enquanto o pastor de todos os homens, o Deus
vivo, se tornou ele mesmo cordeiro, pôs-se do lado dos cordeiros, daqueles que são esmagados
e mortos.

Precisamente assim Ele se revela como o verdadeiro pastor: "Eu sou o bom pastor... Ofereço a
minha vida pelas minhas ovelhas", diz Jesus de si mesmo (cf. Jo 10, 14 s). Não é o poder que
redime, mas o amor! Este é o sinal de Deus: Ele mesmo é amor. Quantas vezes nós
desejaríamos que Deus se mostrasse mais forte. Que atingisse duramente, vencesse o mal e
criasse um mundo melhor. Todas as ideologias do poder se justificam assim, justificando a
destruição daquilo que se opõe ao progresso e à libertação da humanidade. Nós sofremos pela
paciência de Deus. E de igual modo todos temos necessidade da sua plenitude. O Deus, que se
tornou cordeiro, diz-nos que o mundo é salvo pelo Crucificado e não por quem crucifica. O mundo
é redimido pela plenitude de Deus e destruído pela impaciência dos homens.

Significado da entrega do anel do pescador: conquistar os homens para o Evangelho


Uma das características fundamentais deve ser a de amar os homens que lhe foram confiados,
assim como ama Cristo, a cujo serviço se encontra. "Apascenta as minhas ovelhas", diz Cristo a
Pedro, e a mim, neste momento. Apascentar significa amar, e amar quer dizer também estar
prontos para sofrer. Amar significa: dar às ovelhas o verdadeiro bem, o alimento da verdade de
Deus, da palavra de Deus, o alimento da sua presença, que ele nos oferece no Santíssimo
Sacramento. Queridos amigos neste momento eu posso dizer apenas: rezai por mim, para que eu
aprenda cada vez mais a amar o Senhor. Rezai por mim, para que eu aprenda a amar cada vez
mais o seu rebanho vós, a Santa Igreja, cada um de vós singularmente e todos vós juntos. Rezai
por mim, para que eu não fuja, por receio, diante dos lobos. Rezai uns pelos outros, para que o
Senhor nos guie e nós aprendamos a guiar-nos uns aos outros.

O segundo sinal, com o qual é representado na liturgia de hoje o início do Ministério Petrino, é a
entrega do anel do pescador. A chamada de Pedro para ser pastor, que ouvimos no Evangelho,
acontece depois de uma pesca abundante: depois de uma noite, durante a qual tinham lançado
as redes sem pescar nada, os discípulos vêem na margem do lago o Senhor Ressuscitado. Ele
ordena-lhes que voltem a pescar mais uma vez e eis que a rede se enche tanto que eles não
conseguem tirá-la para fora da água; 153 peixes grandes: "E apesar de serem tantos, a rede não
se rompeu" (Jo 21, 11). Esta narração, no final do caminho terreno de Jesus com os seus
discípulos, corresponde a uma narração do início: também então os discípulos não tinham
pescado nada durante toda a noite; também então Jesus tinha convidado Simão a fazer-se ao
largo mais uma vez.

E Simão, que ainda não era chamado Pedro, deu a admirável resposta: Mestre, porque tu o
dizes, lançarei as redes! E eis o conferimento da missão: "Não tenhas receio; de futuro, serás
pescador de homens" (Lc 5, 1-11). Também hoje é dito à Igreja e aos sucessores dos apóstolos
5
que se façam ao largo no mar da história e que lancem as redes, para conquistar os homens para
o Evangelho para Deus, para Cristo, para a vida. Os Padres dedicaram um comentário muito
particular a esta tarefa. Eles dizem assim: para o peixe, criado para a água, é mortal ser tirado
para fora do mar. Ele é privado do seu elemento vital para servir de alimento ao homem. Mas na
missão do pescador de homens acontece o contrário. Nós homens vivemos alienados, nas águas
salgadas do sofrimento e da morte; num mar de obscuridade sem luz. A rede do Evangelho tira-
nos para fora das águas da morte e conduz-nos ao esplendor da luz de Deus, na verdadeira vida.
É precisamente assim na missão de pescador de homens, no seguimento de Cristo, é necessário
conduzir os homens para fora do mar salgado de todas as alienações rumo à terra da vida, rumo
à luz de Deus. É precisamente assim: nós existimos para mostrar Deus aos homens. E só onde
se vê Deus, começa verdadeiramente a vida. Só quando encontramos em Cristo o Deus vivo,
conhecemos o que é a vida. Não somos o produto casual e sem sentido da evolução. Cada um
de nós é o fruto de um pensamento de Deus. Cada um de nós é querido, cada um de nós é
amado, cada um é necessário. Não há nada mais belo do que ser alcançados, surpreendidos
pelo Evangelho, por Cristo. Não há nada de mais belo do que conhecê-Lo e comunicar com os
outros a Sua amizade. A tarefa do pastor, do pescador de homens muitas vezes pode parecer
cansativa. Mas é bela e grande, porque em definitiva é um serviço à alegria, à alegria de Deus
que quer entrar no mundo.

Gostaria de realçar aqui mais uma coisa: quer na imagem do pastor quer na do pescador
sobressai de maneira muito explícita a chamada à unidade. "Tenho ainda outras ovelhas que não
são deste redil. Também estas Eu preciso de as trazer e hão-de ouvir a minha voz; e haverá um
só rebanho e um só pastor" (Jo 10, 16), diz Jesus no final do sermão do bom pastor. E a narração
dos 153 grandes peixes termina com a gloriosa constatação: "apesar de serem tantos, a rede não
se rompeu" (Jo 21, 11). Ai de mim, amado Senhor, agora ela rompeu-se! Poderíamos dizer que
sofremos. Mas não não devemos estar tristes! Alegremo-nos pela tua promessa, que não
desilude, e façamos o possível para percorrer o caminho rumo à unidade, que tu prometeste.
Façamos memória dela na oração ao Senhor, como pedintes: sim, Senhor, recorda-te de tudo o
que prometeste. Faz com que sejam um só pastor e um só rebanho! Não permitas que a tua rede
se rompa e ajuda-nos a ser servos da unidade!

Neste momento a minha recordação volta ao dia 22 de Outubro de 1978, quando o Papa João
Paulo II deu início ao seu ministério aqui na Praça de São Pedro. Ainda, e continuamente,
ressoam aos meus ouvidos as suas palavras de então: "Não tenhais medo, abri de par em par as
portas a Cristo!" O Papa dirigia-se aos fortes, aos poderosos do mundo, os quais tinham medo
que Cristo pudesse tirar algo ao seu poder, se o tivessem deixado entrar e concedido a liberdade
à fé. Sim, ele ter-lhes-ia certamente tirado algo: o domínio da corrupção, da perturbação do
direito, do arbítrio. Mas não teria tirado nada do que pertence à liberdade do homem, à sua
dignidade, à edificação de uma sociedade justa. O Papa falava também a todos os homens,
sobretudo aos jovens. Porventura não temos todos nós, de um modo ou de outro, medo, se
deixarmos entrar Cristo totalmente dentro de nós, se nos abrirmos completamente a Ele, medo de
6
que Ele possa tirar-nos algo da nossa vida? Não temos porventura medo de renunciar a algo de
grandioso, único, que torna a vida tão bela? Não arriscamos depois de nos encontrarmos na
angústia e privados da liberdade? E mais uma vez o Papa queria dizer: não! Quem faz entrar
Cristo, nada perde, nada absolutamente nada daquilo que torna a vida livre, bela e grande. Não!
Só nesta amizade se abrem de par em par as portas da vida. Só nesta amizade se abrem
realmente as grandes potencialidades da condição humana. Só nesta amizade experimentámos o
que é belo e o que liberta. Assim, eu gostaria com grande força e convicção, partindo da
experiência de uma longa vida pessoal, de vos dizer hoje, queridos jovens: não tenhais medo de
Cristo! Ele não tira nada, ele dá tudo. Quem se doa por Ele, recebe o cêntuplo. Sim, abri de par
em par as portas a Cristo e encontrareis a vida verdadeira. Amém.

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