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Aula 2
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1) Introdução
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econômicos por ausência de um termo melhor, ou seja. padrões que manifestariam ou
não um compromisso de princípio dessa forma com determinadas organizações
sociais, como de gênero, de hierarquias racializadas, valorizações e depreciações de
práticas sexuais, de trato com a natureza circundante.
Ora, nós vimos que, para Rahel Jaeggi, uma defensora de que o capitalismo se
constitui como forma de vida, e portanto não pode ser absolutamente neutro em si
mesmo, indiferente às normatividades particulares de formações sociais que o
envolvem, a ideia marxiana de capital como sujeito autorreferido, funcionando como
um sistema autonomizado, induz justamente àquela ideia de neutralidade. Nessa
medida, a tese da neutralidade sistêmica do capitalismo já estaria contida na
determinação -- essencial para a compreensão de capitalismo em Marx na minha visão
– de que o capital é fundamentalmente sujeito, valor que se valoriza a si mesmo.
À primeira vista, e aqui eu começo responder a algumas questões provocadas
pela primeira aula, parece um contrassenso atribuir a Marx uma tal perspectiva, já que
sabemos, de um modo ou de outro, que o capitalismo é para ele essencialmente
desigual, estruturado em classes sociais economicamente determinadas.
Logo, o capitalismo não seria neutro para Marx, uma vez que ele não é por
princípio socialmente igualitário. Na verdade, o terno “neutro” não pode ser traduzido
por “igual”; antes, estaria mais próximo de indiferente. O ponto da tese da
neutralidade não é exatamente esse. Que o capitalismo sempre se arma sobre uma
estrutura de distribuição desigual dos meios de produção, reservando à burguesia a
propriedade dos meios de produção, e ao proletariado a única propriedade restante da
força de trabalho -- o que pressupõe uma cisão fundamental do indivíduo trabalhador,
dividido em pessoa e propriedade -- não é exatamente o ponto da suposição da
neutralidade. O ponto consistiria antes na premissa segundo o qual tais conceitos de
classe reservariam, na medida em que são determinados fundamentalmente por
relações de produção, um espaço vazio sobre os grupos concretos que possam assumir
os papeis econômicos respectivos.
A tese da neutralidade talvez tenha ganhado força na medida em que o século
XX assistiu a um arrefecimento da luta até então candente entre organizações
operárias e burguesas, da luta de classes enfim; o chamado processo de
aburguesamento do proletariado, o sufrágio universal, a criação de redes de proteção
social, a obrigatoriedade do ensino, todos esses fenômenos tão conhecidos, alguns já
pretéritos, talvez tenha fomentado uma versão de que o capitalismo não cria
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obstáculos instransponíveis no que concerne à ascensão social e mesmo à troca de
papeis, e nesse sentido é neutro em si mesmo à concretude das biografias individuais e
coletivas. Porém, é justamente o mesmo estado de coisas que despertou reações
inversas, já que as formações sociais constituídas pelo capitalismo demonstrariam,
com diferenças de graus, seja exclusão, seja subordinação definidas por gênero, raça,
padrões de sexualidade. Além disso, os próprios papéis econômicos de comando, se
são assumidos por homens não brancos, são configurados para eles. Tudo isso nós
vamos retomar mais adiante, principalmente nas aulas dedicadas a Marcuse e Fraser.
O que me parece justificado na preocupação de Rahel Jaeggi é o
discernimento de que a perspectiva de o capitalismo ser um sistema que independe de
formas de vida se aloja no coração do conceito de capitalismo. Esse coração é o
capital. Nós temos então, esse é o raciocínio, de abordar o conceito de capitalismo em
Marx a partir dessa determinação efetiva, na qual poderíamos verificar uma certa
matriz da tese da neutralidade. É por conta disso que propus tomar como ponto de
partida os capítulos de O Capital em que o próprio capital emerge e se põe como
sujeito, como resultado do processo de circulação de mercadorias e em seguida como
pressuposto desse mesmo processo.
Essa constituição lógica do capital (posição e pressuposição, algo posto se
torna pressuposto daquilo que o pôs, para falar como Hegel na Ciência da lógica, mais
especificamente na Doutrina da essência) não é uma determinação secundária do
próprio conceito de capital. É justamente porque o capital é resultado que passa a ser a
condição do processo por meio do qual ele emergiu: ou seja, de que o fim repõe o
começo, que Marx é levado a dizer que o capital é sujeito. O capital é sujeito porque
faz do seu vir a ser movimento de si mesmo.
Já nas primeiras linhas do capítulo 4 essa operação fantástica é inscrita na
ordem das condições histórias: o comércio mundial e o dinheiro como meio de
circulação são as condições do surgimento do capital, mas a gênese histórica do
capital é uma tarefa que pode ser dispensada porque todos os dias esse processo de
surgimento é recolocado pelo movimento do capital, ou seja, aquele movimento por
meio do qual o dinheiro gera mais dinheiro.
Sem dúvida, Marx não pensa aí sujeito como subjetividade pensante
individual, mas como atividade independente que se faz a si mesma; não como
autoconsciência, mas como movimento de autoconsciência, uma substância que se
dobra sobre si mesmo. O termo ‘automático’ já é suficiente nesse contexto para
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mostrar que estamos diante de um sujeito desprovido de consciência, que é puro
movimento. Por outro lado, mesmo assim, essa noção de sujeito não pode ser
subestimada, uma vez que, a princípio, somente o capital parece ser capaz de totalizar
o processo de si mesmo: a partir de um certo momento, ele passa a recriar todas as
condições que levaram a seu surgimento, não deixando nada de fora.
No entanto, ao mesmo tempo, essas páginas d’O capital já nos garantem de
algum modo que justamente aí encontramos a determinação fundamental do
fetichismo: o valor que se valoriza por si mesmo: eis o fetiche que atravessa toda a
realidade social capitalista. O valor que se valoriza a si mesmo e por si mesmo é
também uma ilusão, uma ilusão objetiva e necessária, mas ainda assim uma ilusão,
que se baseia em uma abstração de princípio sobre a concretude da produção de valor.
A valorização do valor, o mais-valor, ilude sobre os verdadeiros mecanismos de sua
produção. Por esse motivo, temos de nos assegurar da relação entre o trabalho morto e
o trabalho vivo em que se instaura a ilusão objetiva de que o capital é sujeito de si
mesmo e que forme um sistema a partir de si mesmo, indiferente àqueles que lhe
emprestam corpo e razão.
Tudo isso para justificar por que nosso primeiro passo tem de ser o
enfrentamento da teoria marxiana do fetichismo. Essa tarefa não é nem um pouco fácil
visto que a categoria de fetichismo encontra seu sentido ao sabor da exposição das
categorias da economia política clássica, burguesa, respaldada pela teoria do valor-
trabalho que filósofos e economistas burgueses passaram a defender ao menos desde o
século XVII. Locke, no Segundo tratado do governo civil, é um exemplo privilegiado,
ainda que a atividade de trabalho se confunda com a simples tomada de posse, ou seja,
falte aquele regularidade que define o trabalho industrioso que, em outra perspectiva,
Rousseau vai apreciar no Discurso sobre a desigualdade. Em todo caso, são Adam
Smith e Ricardo os representantes da economia política clássica que corporifica, para
Marx, a teoria do valor-trabalho, em detrimento da assim chamada economia vulgar,
que tantas vezes é associada às intenções ideológicas na sua acepção mais chinfrim,
como atender aos interesses imediatos das classes dominantes.
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Nessa exposição, a ideia de que o valor de uma mercadoria é determinado pelo
tempo de trabalho socialmente necessário em média para a sua produção é posta na
célebre seção do primeiro capítulo d’O capital sobre o caráter fetichista da mercadoria
e seu segredo, e mais ou menos pressuposta na exposição do dinheiro e do capital em
geral. O princípio fundamental da economia política burguesa clássica consiste na
identificação, para Marx correta em geral, entre trabalho e valor de troca das
mercadorias: o tempo de trabalho é a medida do valor de troca, de modo que cada
mercadoria é trocada por uma outra mercadoria que foi produzida no mesmo tempo de
trabalho – a exceção, a partir da qual se explica o funcionamento da regra, é a força de
trabalho que se submete a um processo de troca que foge à medida do valor como
determinado pelo tempo de trabalho. Tudo isso vai ser importante mais adiante quando
tratarmos da categoria chave de mais-valor (mais-valia).
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conceito de reificação que G. Lukács vai desenvolver mais tarde no ensaio “Reificação
e consciência do proletariado” --, ao passo que as coisas definem as relações sociais
entre os produtores, e nesse caso são em certa medida personificadas. A
“personificação da coisa e a coisificação das pessoas”, para utilizar uma expressão do
capítulo III do mesmo livro I, fetichismo e reificação, são correlatos: um não vem sem
o outro, um se traduz no outro, um se comenta pelo outro.
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que se apresentam no mercado, têm de aparecer como fetiches. Os exemplos d’O
capital deveriam ter fixado isso: Marx raramente fala de produtos que chamam à
imaginação, mas antes de tecido, trigo, ferro, etc.
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Portanto, esses três usos com sentidos diferentes: o fetichismo da mercadoria
personificada, o fetichismo do dinheiro em poder por si mesmo trocar-se por qualquer
mercadoria, e finalmente o fetichismo do capital enquanto valor que gera valor,
dinheiro que gera dinheiro, têm como referência uma objetividade subjetivada. A coisa
(seja ela a mercadoria, o dinheiro, e mesmo o capital enquanto expresso em dinheiro)
possui poderes sobrenaturais, poderes que as coisas não poderiam ter em função de
suas propriedades naturais. A coisa é sempre mais do que suas qualidades materiais.
Esse algo mais não tem forma exterior, de modo que ela é aparece como intrínseca à
natureza material da coisa.
Aqui cabe uma passagem do capítulo 24 do livro III sobre o capital portador de
juros, que é valiosa pela capacidade de integração de todos esses aspectos. Não me
importa aqui o contexto do capítulo, a análise do capital portador de juros, mas
unicamente o momento em que Marx remete essa categoria ao fetichismo do capital, e,
de maneira indireta, ao fetichismo da mercadoria e do dinheiro:
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Essa passagem é preciosa por repor o fetichismo como uma inversão pela qual
a coisa detém um poder mágico que se exerce sobre as pessoas, inclusive sobre o
capitalista em suas diversas figuras, empresarial e banqueiro, e, simultaneamente,
mostrar a integração de todos os usos do fetichismo na forma máxima do fetichismo
do capital enquanto capital portador de juros, uma vez que o emprego da força de
trabalho sequer aparece aí. Além disso, a operação fetichista é um pouco mais
aprofundada, na medida em que se evidencia que o fetichismo coincide com uma
forma de apagamento e esquecimento: as cicatrizes provocadas pelo capital são
apagadas. Já nas primeiras linhas do quarto capítulo sobre a transformação do dinheiro
em capital Marx adianta esse aspecto decisivo do fetichismo: o resultado apaga o
processo por meio do qual ele veio a ser. Todas as mediações do surgimento do capital
a partir do dinheiro são apagadas na forma imediata do dinheiro como capital. O
dinheiro muda sua destinação mas impõe sua forma imediata. Eu gostaria de insistir
sobre esses três aspectos: 1) a coisa como dotada de poder; 2) a integração das formas
fetichistas sob a forma capital; 3) o fetichismo como esquecimento e apagamento das
fontes do valor.
Nesta referência à coisa como dotada de poder, Marx se vale da acepção usual
que fetiche e fetichismo terá em alemão. Os termos vêm de um pidgin, de um sistema
linguístico surgido na África entre mercadores portugueses e nativos, aparecendo em
relatos do século XVII. Havia desde o século XIII o termo português “feitiço”, de
onde parecem derivar fetiche e fetichismo. Enfim, esses novas palavras se referiam
aos objetos, usados pelos nativos da costa africana, de feitiço como instrumentos para
chegar a efeitos concretos e que também eram objeto de adoração. Os termos
despontam no discurso científico com Charles de Brosses, “Du culte des dieux
fetiches”, no séc. XVIII, e do francês migra para o alemão culto.
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Em outras ocasiões, ainda na juventude, o conceito se refere à adoração dos
europeus pelos metais preciosos, típico do período mercantilista. No texto da
“Introdução da Crítica da filosofia do direito de Hegel”, “feiticista” caracteriza o
estágio de desenvolvimento retardatário da Alemanha. Ela vai enfrentar a decadência
da Europa, sem viver seu apogeu, como um feiticista que é afetado pelas doenças do
cristianismo.
N’O capital, porém, Marx faz duas operações que conferem um campo de
significação especial para o fetichismo. Ele alarga o sentido religioso do fetichismo
para o todo da religião e, com isso, extrapola esse domínio a ponto de abarcar o
âmbito econômico social. De um lado, “O mundo da religião” é constituído pelo
fetichismo: as criações religiosas têm vida própria, e Marx não parece distinguir
nenhuma religião em particular. O fetichismo caracteriza agora a totalidade do
fenômeno religioso, como se vê no primeiro capítulo. De outro lado, Marx empurra o
uso do termo para o universo das relações sociais econômicas: o fetichismo religioso
se converte no fetichismo da mercadoria; e, como vemos na passagem citada, também
no o fetichismo do capital e do dinheiro: formas que detêm poderes mágicos por si
mesmas na sua objetividade de coisa.
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com o conceito weberiano de capitalismo, cuja afinidade com o mundo da religião e
cujo destino à semelhança da religião são patentes.
Sem dúvida, há uma diferença decisiva nos enfoques das duas obras que não
posso aprofundar aqui, pois isso nos levaria muito longe. Com brevidade, essa
diferença remete à constatação de que o jovem Marx ainda lida com uma crítica da
sociedade civil burguesa a partir de uma ideia de atitude de alienação. O judaísmo
revela essa atitude, que é sem dúvida prática, mas subjetivamente carregada, algo
próximo do culturalismo. N’O capital, desdobra-se, a meu ver, uma considerável
inversão de método. O fetichismo se enraíza na coisa e se impõe aos seres humanos. A
atitude subjetiva dos envolvidos é algo bastante subordinada na análise do fetichismo,
ela aparece como na esteira da ordem das coisas, como configurações culturais que
pouco dizem sobre a ratio dessa ordem. Ao contrário, a subjetividade antes ilude sobre
ela, e nesse aspecto o fetichismo preserva a primazia do ser sobre a consciência que
Marx afirmava ao introduzir o conceito de ideologia, como vocês podem perceber
ainda no Prefácio de Para a crítica da economia política.
Nesse aspecto, uma outra diferença relevante diz respeito outro conceito
célebre de fetichismo, aquele oriundo da psicanálise. Freud também se vale do sentido
original de fetiche para designar aquilo em que consiste a fixação perversa por um
objeto, normalmente do vestuário feminino, porque o fetiche é um substituto para o
pênis da mulher, da mãe. Segundo o ensaio de Freud, a criança pequena, menino, se
recusa a tomar conhecimento de que a mulher não tem pênis, já que isso significaria
de algum modo a castração (a mulher foi castrada), e portanto um perigo para o
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próprio pênis. O fetiche se origina assim de uma recusa em relação à realidade. Mas
não uma recusa que nega a realidade percebida. O fetiche surge então como uma
solução de compromisso entre a percepção da realidade e o horror da castração. O
fetiche, como sapatos e roupas íntimas femininas, a última percepção antes daquela
sobre a falta de pênis, asseguram um triunfo e uma proteção contra a castração. Para
Freud, a maioria dos homens supera esse trauma e não se torna fetichista, embora seja
difícil explicar tal superação.
Ainda que aqui haja uma relação de substitutividade e uma dupla realidade do
objeto (ele é útil mas cumpre um valor simbólico) estamos longe da generalidade do
conceito em Marx e de sua objetividade. Apenas objetos específicos e apenas alguns
homens são afetados pelo fenômeno do fetichismo freudiano, ainda que Freud busque
no fetichismo o apoio para compreender a estrutura cindida de negação e aceitação da
realidade nas neuroses.
Em comparação com Marx, vale para o conceito freudiano o mesmo que dizia
de uma concepção hoje difundida pela crítica da indústria cultural. Para a análise da
mercadoria, não se leva em conta a fantasia, a imaginação, ou o estômago, a
mercadoria não é analisada a partir de uma atitude subjetiva ou de uma estrutura da
psique, por mais universal que possa ser, em relação à coisa. Portanto, o fetichismo
não se inscreve primeiramente no nível da subjetividade, como uma ilusão subjetiva,
por mais que sistematicamente induzida.
Vale a pena insistir nesse ponto, que é decisivo para compreender o texto
marxiano da maturidade. O fetichismo é uma ilusão objetiva. Essa expressão, que
vocês podem encontrar na última seção do primeiro capítulo. Nos Grundrisse,
encontra-se, em um contexto semelhante, a noção de ilusão necessária para
compreender o funcionamento da esfera de circulação de mercadorias como
aparentemente autônoma em relação à produção. Assim, o fetiche pode ser um sapato,
um relógio, mas também um humilde cotonete, na medida em que essas coisas são
mercadorias.
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Justamente porque é objetiva, a ilusão fetichista também assume sobre si os
processos reais de constituição do capital e de suas formas primárias, que são a
mercadoria e o dinheiro. O desafio do discurso marxiano reside sobretudo aí: a
camada conceitual dá conta da exposição de constituição da coisa, acusando ao mesmo
tempo o seu caráter fantasmagórico, como ele enfatiza no texto dedicado ao fetichismo
da mercadoria, mas também em tantos outros lugares d’O capital. Dessa maneira, o
modo de produção capitalista é ao mesmo tempo real e ilusório.
A aparência objetiva é assim uma aparência ou ilusão necessária. Por mais que
saibamos que coisas físicas não podem ter propriedades humanas, elas têm de aparecer
aos seres humanos desta maneira, de modo que nenhuma correção epistemológica
pode ter o efeito de um acerto fenomenológico. A necessidade da ilusão se funda no
processo objetivo de constituição da mercadoria: “as relações sociais entre os
trabalhos privados aparecem como aquilo que elas são, isto é, não como relações
diretamente sociais entre pessoas em seu próprios trabalhos, mas como relações
coisais (sachlich) entre pessoas e relações sociais entre coisas” (Marx, O capital;
boitempo: 148, economistas: 71, MEW, 87). Marx é taxativo: as relações sociais
aparecem como o que são, e ao mesmo tempo isso é uma ilusão.
De um lado, portanto, essa inversão, essa ilusão, não é um mero erro cognitivo,
não é um erro sensorial. O conceito marxiano de ilusão não é da ordem da percepção,
o que de certo modo o retira do registro na filosofia moderna. Não se refere a uma
precipitação do juízo em relação à percepção sensível. É verdade que em Kant
encontramos a ideia de uma ilusão necessária na dialética transcendental: por conta de
sua constituição, a razão humana não pode evitar a ilusão de conferir realidade para as
ideias que ela produz em função do conhecimento da totalidade da ordem dos
fenômenos. Mas mesmo nesse caso, o conceito de ilusão é próprio do sujeito, não está
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inscrito na ordem das coisas, como algo que se impõe a razão em função do objeto. A
necessidade do ilusório reside sempre no sujeito.
Dado que para Marx a necessidade do ilusório se funda no objeto, Marx pode
afirmar em diversos lugares a objetividade das categorias da economia política
burguesa, como no primeiro capítulo d’O capital ou na Introdução de Para a crítica
da economia política, mais tarde reunida nos Grundrisse. Elas são válidas para o
modo de produção de mercadorias, e ao mesmo tempo elas expressam o fetichismo.
Dizem a verdade ao dizer o falso, porque esse falso é objetivo. O discurso marxiano
acolhe assim o falso como um elemento de objetividade e de conhecimento. A crítica
da economia política está longe de ser uma condenação epistemológica ou
metodológica, pois os limites da teoria são dados pelos objetos da teoria. A mercadoria
afeta assim tanto os produtores como os cientistas.
Por outro lado, é preciso haver um critério para assinalar o caráter ilusório do
fetichismo. Esse critério é dado pela ciência da natureza. Uma vez que o fetichismo é a
inversão do humano em coisa, fundindo o social e o natural, já está dado por onde se
pode discernir seu caráter ilusório, socialmente necessário. A análise química das
mercadorias não encontra, como propriedade intrínseca do seu ser natural, material,
nada que não seja natural. Ou seja, nenhuma mercadoria, mesmo o diamante,
apresenta a molécula desse poder social que tem de aparecer como natural: o valor.
“Até agora, nenhum químico descobriu valor de troca em pérolas ou diamantes”. A
desmistificação que as ciências da natureza operam no saber da natureza propicia a
medida para atingir a mistificação operada pela produção de mercadorias. Ao mesmo
tempo, isso significa que a natureza, tornando-se compreensível segundo leis da
ciência, é acompanhada de uma incompreensibilidade, de um ocultamento, de um
ofuscamento da sociedade em relação a elas mesma. O que é resultado da obra
humana se torna inapreensível para os próprios homens.
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O debate sobre essa questão, que tanto calor causou nos anos 1960 a partir de
Althusser ao estabelecer uma ruptura do Marx maduro com o período de juventude,
esse debate eu não posso retomar aqui. O conceito de ser genérico que
fundamentalmente acompanha aquele de alienação sem dúvida já não desempenha um
papel chave em O capital, cujo grau de logicidade e historicidade parece não dar lugar
a uma perspectiva antropológica essencialista, o que não significa dizer que não
contenha nenhuma perspectiva antropológica. O conceito de trabalho como
metabolismo com a natureza representa justamente tal perspectiva, mas não
encontramos aí, de modo geral, aquelas conotações antropologicamente normativas
que provinham de Feuerbach: o ser genérico como a base de uma sociabilidade
comunitária que implicava a integração entre o ser humano com a natureza.
O que me parece mais acertado nesse longo debate é o patamar crítico adotado
pelo marxismo uspiano segundo o qual a estrutura lógica da alienação aparece despida
de um fundamento metafísico para explicar justamente a metafísica do real, como quer
Ruy Fausto, ou o processo reflexionante do capital por meio do qual ele se põe como
pondo suas próprias condições, como sustenta José Arthur Giannotti.
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Dessa maneira, o modo de integração dos sentidos do fetichismo tem a ver com
condições por meio das quais o Capital se põe como sujeito automático de sua própria
reprodução e com isso do processo de produção e circulação de mercadorias.
Na ordem da exposição, o capital emerge não apenas como uma forma social a
mais em que apontam de um modo ou de outro a circulação da mercadoria e a
circulação de dinheiro. O capital se apresenta necessariamente como sujeito da
circulação de mercadoria e dinheiro, de tal modo que tanto a forma mercadoria como a
forma dinheiro se reportam ao capital como seu sujeito, sendo elas mesmas o seu
duplo predicado. Marx vai dizer em uma passagem decisiva do quarto capítulo, que
vou citar a seguir, em que trata da transformação do dinheiro em capital: O capital é
mercadoria, o capital é dinheiro.
A dupla predicação espelha um processo ontológico em que a condição passa a
ser condicionada, a pressuposição é posta por aquilo que condicionava. Já esse
movimento de inversão de pressuposição e posição deve ser visto como índice de
subjetividade, no sentido mais geral de uma atividade de reflexão que, tendo início em
um outro, acaba produzindo esse outro a partir de si mesmo, e o que era início se torna
fim. A atividade de reflexão consiste justamente nessa incorporação reflexiva das
condições marginais de emergência do sujeito, de modo que a atividade passa a bastar
a si mesma. Em outras palavras, como já em Fichte, nas suas tantas exposições da
doutrina da ciência: o sujeito é aquele que põe a si mesmo e seu outro unicamente a
partir de si mesmo.
Essa capacidade de agir sobre si mesmo, como que se transformando a si
mesmo, é o que caracteriza o capital já em sua primeira aparição enquanto forma.
Uma longa citação desse capítulo se faz aqui necessária tanto para a compreensão do
fetichismo do capital como de sua capacidade de totalização.
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forma a outra, sem se perder nesse movimento, e, com isso, transforma-se no
sujeito automático do processo. Ora, se tomarmos as formas fenomênicas
particulares que o valor que se autovaloriza assume sucessivamente no
decorrer de sua vida, chegaremos a estas duas proposições: capital é dinheiro,
capital é mercadoria. Na verdade, porém, o valor se torna, aqui, o sujeito de um
processo em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma,
aparecendo ora como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria
grandeza e, como mais-valor, repele [abstösst] a si mesmo como valor
originário e valoriza a si mesmo. Pois o movimento em que ele adiciona mais-
valor é seu próprio movimento; sua valorização é, portanto, autovalorização.
Por ser valor, ele recebeu a qualidade oculta de pôr valor. Ele pare filhotes, ou
pelo menos põe ovos de ouro.
Como sujeito abrangente de tal processo, no qual ele assume ora a forma
do dinheiro, ora a forma da mercadoria, porém conservando-se e expandindo-
se nessa mudança, o valor requer, sobretudo, uma forma autônoma por meio
da qual sua identidade possa ser constatada. E tal forma ele possui apenas no
dinheiro. Este constitui, por isso, o ponto de partida e de chegada de todo
processo de valorização.
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Essa passagem é significativa porque apresenta a emergência do capital como
transformação do dinheiro e ao mesmo tempo acentua que reside aí uma operação
fetichista que não meramente se soma às formas anteriores, mas é antes uma maneira
de repô-las, pois a mercadoria e o dinheiro, que foram analisados anteriormente como
formas próprias, independentes do capital – e a rigor o capital não podia ser objeto da
exposição – agora são formas do próprio capital, forma universal no caso do dinheiro,
forma particular no caso da mercadoria.
Se o capital é o fetiche de ser valor que se valoriza por si mesmo, então ele é,
de um lado, o desdobramento do fetichismo da mercadoria, como condição originária
de toda objetividade valor, como algo que pertence à ordem das coisas. Ao dizer que o
valor recebe a qualidade oculta de valorizar-se porque é valor, Marx se refere antes de
tudo ao caráter místico do valor que define a mercadoria desde o início. Por outro
lado, dado que o capital se torna sujeito e a mercadoria, um predicado do sujeito, o
fetichismo da mercadoria se torna momento desse todo fetichizado – o capital.
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processo de pôr-se a si mesmo como valor objetificado no corpo da mercadoria, para
se tornar de novo valor no corpo universal da forma dinheiro.
Isso no que diz respeito às formas do capital. Mas, além disso, só é possível
uma autorreferência se há identidade dada com o dinheiro. Pelo dinheiro é possível a
operação pela qual o capital se mede a si mesmo a partir de um resultado, sem perder
de vista que é justamente esse resultado o que confere de novo sentido ao ponto de
partida inicial, o que lhe confere a significação de ser capital.
O capital é valor que se valoriza, enquanto tal tem sua identidade de referência
na sua forma universal de dinheiro, mas tem também sua alteridade, certamente um
disfarce, mas também um valor de uso sempre ignorado, na forma particular da
mercadoria. E a rigor, o capital-dinheiro só é valor que se valoriza na medida em que
se torna capital-mercadoria, torna-se um outro de si mesmo e volta a si mesmo, maior
do que era antes, mais ainda, realizando o que ele é realmente, conferindo o seu
sentido como capital. Se não há filho sem pai, é o filho que confere sentido ao
conceito de pai (e a mãe é dispensada): o mais valor que resulta do processo explica
assim o sentido do valor. Só é possível falar de capital quando emerge a figura do
valor.
A identidade do valor se dá na e pela negação das formas que assume, mas não
se pode falar que o capital toma seu ponto de partida unicamente a partir da
mercadoria. E com esse passo, encontramos mais uma razão da identidade por meio do
dinheiro. As mercadorias só sabem ser trocadas por mercadorias de mesmo valor,
ainda que haja margem para acidentes e falcatruas. O desvio nesse caso não atinge
profundamente a “lei da troca de mercadorias”. O princípio da equivalência a que
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estão submetidos quase todas as mercadorias é por si mesmo o obstáculo para a
emergência do valor que se valoriza. Onde há igualdade, não há lucro, diz o adágio.
Logo, o dinheiro é uma forma necessária para que o valor se torne capital.
Se o valor não continua essa série ele deixa de ser capital. O que significa tão-
somente que a autovalorização é o fim em si mesmo do capital. Na fórmula da
circulação de mercadorias, vender para comprar, o fim não está na própria circulação,
na troca, mas no consumo: compro para consumir. Na circulação do dinheiro que se
valoriza, o fim está nesse mesmo próprio processo, compro para valorizar meu capital.
Esse é o “impulso vital” do capital, como Marx diz no capítulo 8 do primeiro livro.
Esse impulso confere automatismo para o capital. Assim, o capital é idêntico a si
mesmo o seu ser outro e nas suas mudanças de grandeza, é fim em si mesmo, é
automático. E nessas condições, ele se interioriza, passa a ter uma forma reflexiva, que
Marx chama de relação privada consigo mesmo. O processo reflexionante só acaba
com o resultado que dá sentido ao começo, o filho que cria o pai. O capital busca o seu
fim, seu objetivo, que lhe dá sentido, como uma reflexão busca o conceito que confere
sentido a um dado ainda indeterminado, e apenas nesse conceito se estabelece o
sentido do percurso.
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Marx aborda o processo de valorização, e isso significa: finalmente determinar a
mediação oculta do fetichismo do capital no conceito de mais-valor. O capítulo V é
assim o começo da teoria crítica do mais-valor, que, como vimos, no fetichismo
aparece como fruto do capital em virtude de seu próprio poder. Marx realiza essa
crítica a partir de uma contraposição entre o processo de trabalho, o processo de
formação do valor e o processo de valorização, em uma dialética de trabalho vivo e
trabalho morto, que será o assunto da nossa próxima aula.
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