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Rev Saúde Pública 2006;40(2):310-7

Denise Siqueira PéresI

Laércio Joel FrancoI


Comportamento alimentar em
Manoel Antônio dos SantosII mulheres portadoras de
diabetes tipo 2

Eating behavior amongl btype 2


y
diabetes women Pu
jo
u la
P a A
a U Z
RESUMO
A n O
t o S
E
s
à dietatidetumulheres
OBJETIVO:
A
portadoras de diabetes
Dtipo 2. e comportamentos em relação
Conhecer os pensamentos, sentimentos

I n R
d o Foram entrevistadas oito mulheres
MÉTODOS: Trata-se de um estudo
N D portadoras
descritivo
.b rexploratório, de natureza qualitativa.
de diabetes tipo 2 em uma Unidade
de Básica X A de Ribeirão
de Saúde do município
o mdosPreto, SP, em janeiro de 2003. Foi utilizada

d a L E sociais.
entrevista semi-estruturada para
.
a cOs registros audiogravados
coleta dados. O referencial teórico adotado foi

rie a teoria das


Aà análise temática
representações
o o e transcritos foram

op ft r
submetidosa h de conteúdo.

P r p a
RESULTADOS: ya evidenciaram dificuldade no seguimento da dieta prescrita,
Os resultados

iso d o em x @ significados associados, tais como a perda do prazer de comer e


função dos diversos
e
l aversivoe daeliberdade
On ncia extremamente
beber, da autonomia para se alimentar. Assim, seguir a dieta adquire caráter
r a
t A freqüente ausência de sintomas foi citada como um dos aspectos que dificultam
cerceador, tendo representação de que realizá-la traz prejuízos à
e n u
saúde.

Lic ail: oo seguimento da dieta. Outra dificuldade foi tocar, olhar e manipular os alimentos durante
seu preparo e não poder ingeri-los. Os alimentos doces despontaram como algo
- m extremamente desejado. Transgressão e desejo alimentar estão igualmente presentes na
E vida das pessoas entrevistadas. Seguir o padrão dietético recomendado elicia tristeza, e o
ato de comer, muitas vezes, vem acompanhado de medo, culpa e revolta.
CONCLUSÕES: O comportamento alimentar da mulher portadora de diabetes tipo
2 é bastante complexo e precisa ser compreendido à luz dos aspectos psicológicos,
biológicos, sociais, culturais, psicológicos e econômicos para maior eficácia das
intervenções educativas.

DESCRITORES: Diabetes Mellitus tipo II, psicologia. Conduta na


I
Departamento de Medicina Social.
alimentação. Dieta para diabéticos. Educação e saúde.
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
Universidade de São Paulo (USP). Ribeirão
Preto, SP, Brasil

II
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras ABSTRACT
de Ribeirão Preto. USP. Ribeirão Preto, SP,
Brasil

OBJECTIVE: To explore type 2 diabetes women’s thoughts, feelings and behaviors


Correspondência | Correspondence: concerning diet.
Denise Siqueira Péres
Departamento de Medicina Social METHODS: A descriptive, exploratory qualitative study was carried out among
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto - eight type 2 diabetes women from a primary health care unit in Southeastern Brazil in
USP
Av. Bandeirantes, 3900 Monte Alegre
January 2003. A semi-structured interview was applied for data collection. The
14049-900 Ribeirão Preto, SP, Brasil theoretical reference was the theory of social representations. The interviews were
E-mail: desiperes@ig.com.br recorded, transcribed and then their thematic content was analyzed.
Recebido: 8/12/2005. Aprovado: 20/12/2005. RESULTS: The study results showed women’s difficulty in following the prescribed
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Péres DS et al

diet due to several associated meanings, such as loss of eating and drinking pleasure
and loss of eating autonomy and free choice. Following the diet elicits an extremely
aversive and restrictive attitude, and complying with it is associated to damage to
health. The frequent absence of symptoms was mentioned as one reason that prevents
compliance to the diet. Other difficulties reported were touching, looking at, and
handling food during their preparation but not being allowed to eat them. Sweet foods
revealed to be extremely desired. Transgression and food desire are equally present in
their life. Following the recommended diet brings sadness and the act of eating is
frequently accompanied by fear, guilt and anger.

b y
CONCLUSIONS: Type 2 diabetes women’s eating behavior is very complex and

u jol
needs to be understood from its psychological, biological, social, cultural and economic
aspects for promoting more effective educational interventions.

a P
u l
KEYWORDS: Diabetes Mellitus type II, psychology. Eating behavior.
Pa
Diabetic diet. Health education
a Z A
n U
toA SO
st i t u DE
INTRODUÇÃO
I n R A
A teoria das representações sociais como referencial
teórico é definida como “um conjunto de conceitos,
d
O diabetes constitui um grave o problema de saúde ND b r
explicações e afirmações que se originam na vida
.
de altos custos financeiros
pública por sua alta freqüência na população, suas
X A om
diária, no curso de comunicações interindividuais.
a
complicações, mortalidade,
E c
São o equivalente aos mitos e sistemas de crenças das
.
ied no tratamento
e sociais envolvidos
nificativa darqualidade
e deterioração
A Lsig- oo sociedades tradicionais; poder-se-ia dizer que são a

op ft ra ah
de vida. versão contemporânea do senso comum”.14
r
P a dieta adequada p a y
Cumprir
is o Váriosé estudos
parte fundamental
o x
d à dieta recomenda- @
no tra- O presente trabalho objetivou identificar as dimen-
n
tamento do diabetes.
i a têm
l e
apontado
a
um sões do pensar, sentir e agir de mulheres portadoras de
O
baixo seguimento dos c
pacientes
t r
O ato de comerné bastante complexo
diabetes tipo 2 em relação à dieta prescrita, visando à
da.3,4,20

c e de nutrientes,
nifica apenas a iingestão n u mas envolve elaboração
e não sig- de intervenções mais eficazes, humanizadas

também uma L il: e sentimentos,


amplitude deaemoções
e mais próximas à realidade dos pacientes.

mespecíficos. Nesse sentido, MÉTODOS


E- simbolicamente o nervosis-
além de valores culturais
muitas vezes “come-se”
mo, a ansiedade e as frustrações do cotidiano. O com- Trata-se de estudo descritivo exploratório, com enfo-
portamento alimentar está relacionado tanto com as- que qualitativo. Foram selecionadas, mediante con-
pectos técnicos e objetivos (o que, quanto e onde co- sulta aos prontuários, pacientes do sexo feminino
memos), como também com aspectos socioculturais e usuárias de uma unidade básica de saúde (UBS), lo-
psicológicos.9 Há um sistema de valores, de símbolos calizada no município de Ribeirão Preto, portadoras
e significados que estão associados à dimensão do de Diabetes Mellitus tipo 2. Os critérios de seleção
comer e que precisam ser compreendidos pelos profis- das usuárias foram: terem recebido o diagnóstico de
sionais de saúde, para maior eficácia das ações com diabetes tipo 2 há pelo menos um ano; não apresen-
pacientes submetidos a rigoroso controle alimentar. tarem problemas psiquiátricos que dificultassem a
capacidade de comunicação e diálogo e concorda-
A escolha das representações sociais como referencial rem em participar da pesquisa.
teórico pode possibilitar maior compreensão dos sig-
nificados e dos aspectos psicossociais envolvidos no A decisão de incluir somente mulheres no estudo vi-
diabetes e seu tratamento. As representações que as sou a obter maior homogeneidade na casuística, ten-
pessoas elaboram acerca de sua enfermidade inter- do em vista as diferenças de gênero nesse comporta-
vêm nas escolhas do tipo de tratamento que se busca, mento. Historicamente, as mulheres procuram mais
na maneira de cuidar do próprio corpo e no segui- os serviços de saúde do que os homens. São elas que
mento do tratamento prescrito pelos profissionais. transmitem os saberes e práticas acerca da manuten-
Dessa forma, torna-se fundamental que os profissio- ção da saúde e também normalmente cuidam da saú-
nais de saúde conheçam tais representações, a fim de de dos seus familiares e mesmo vizinhos e amigos.
desenvolver intervenções mais eficazes no controle
do diabetes. A área de abrangência da UBS é de 13 mil habitantes e
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no período de coleta de dados, aproximadamente 11 ta devido ao inconformismo com seu caráter restritivo.
mil pacientes estavam cadastrados. A coleta de dados Parece haver uma imensa distância entre a dieta pres-
ocorreu em janeiro de 2003 e a seleção dos sujeitos da crita e aquela que é possível realizar.
pesquisa foi aleatória, por meio de sorteio realizado a
partir dos prontuários dos usuários da UBS seleciona- “Não estou mais como eu era, sem essa porcaria do
dos. Foi utilizado o critério de saturação dos dados diabetes (...) tudo que vai comer, a gente pensa, não
para a determinação do número de participantes, o que vou comer isso que vai me fazer mal (...) parece que
foi alcançado com oito mulheres entrevistadas. não, mas muda tudo.” (Laura)

b y
jol
As pessoas sorteadas foram comunicadas por telefo- “Vontade de comer isso aqui, ah vou comer (...). En-
ne ou carta, solicitando uma data e horário para seu
comparecimento na UBS. As entrevistas aconteceram P u
quanto não come, não sossega.” (Joana)

em situação face-a-face e individual, na UBS, e dura- a por outro lado, também mostraram
ldificuldades
Alguns relatos,
u
ram, em média, 50 min.
doP
a
não haver em relação à dieta, pois quan-
A e acabam se
a
Utilizou-se como instrumento de coleta de dados a n alimentando um “pouquinho”. U Z
surge o desejo, torna-se difícil resistir

entrevista semi-estruturada, por permitir que o en-A O


Sde comer, vou comer um
t o E
itu
trevistado tivesse maior liberdade e espontaneida- “Estou com vontade
de, necessárias para o enriquecimento da tinvestiga-
s pouquinho. É onde D eu acho que para mim não se
ção. Para a realização das entrevistasn
I foi elaborado
R A
tornou difícil. ” (Joana)
um roteiro construído a partir de
d o uma revisão da
N D .b r
que comprovou sua adequação e
literatura. Esse roteiro foi submetido
d para
a um pré-teste
a população X A
Seguir
parece
a dieta recomendada
ter o m
significado de
para algumas mulheres
o como a “perda da liberdade”.
“perder o prazer de comer
a E . c
ied L o
investigada. e beber”, assim
r a A h o
p foram transcritos na aíntegra
oapós,
Os dados coletados r e li- ya“Pegou essa doença, acabou o prazer de comer e
P
teralmente re, foramf t submetidos àp temá-@ beber (...) estraga a vida da gente (...) não tem muita
análise
tica de conteúdo. Asis o
categorias
d o
temáticas foram x ela- liberdade mais.” (Ana)
boradas em três n a l e
Odo materialnce itratamento tdosraresulta- “A gente já não tem nada bom na vida, né (...) agora
16
etapas, segundo Minayo: pré-análi-
se, exploração
c e n u
i
dos obtidos e interpretação.
L i l : uma coisa que a gente tem, que pode desfrutar da-

O projeto de pesquisa foi m


a
aprovado pelo Comitê de
quilo, não pode, que é comer.” (Joana)

E
Ética em Pesquisa do Hospital- das Clínicas da Facul- Há relatos que evidenciam dificuldade em realizar
dade de Medicina de Ribeirão Preto em 15/4/2002. uma alimentação antes de dormir, necessária para
Para garantir o anonimato das participantes, todos os evitar os episódios de hipoglicemia. Um dos proble-
nomes utilizados no presente estudo são fictícios. As mas de quem faz uso da insulina parece ser a perda da
entrevistas aconteceram após a assinatura de um ter- autonomia para se alimentar na hora que deseja.
mo de consentimento das participantes.
“Quando chega a hora de deitar tem que arrumar o
RESULTADOS lanche (...). Eu às vezes sinto preguiça de ficar arru-
mando leite, ah vou deitar. Não vou tomar leite não,
A idade das mulheres que fizeram parte do estudo é onde acontece às vezes dela abaixar.” (Laura)
variou de 49 a 76 anos. As mulheres apresentavam
baixo nível de escolaridade: até quarta série do en- Algumas entrevistadas parecem pensar que o fato de
sino fundamental. Quanto à remuneração, a renda seguir uma disciplina alimentar rigorosa pode ser pre-
familiar de cinco entrevistadas foi inferior a dois judicial à saúde, pois “dá fraqueza” e pode “ficar
salários-mínimos, sendo que a maior renda foi cor- amarelo”. Nesse sentido, não há associação desses
respondente a três salários-mínimos. Em relação à sintomas com os episódios de hipoglicemia.
ocupação, a maioria era do lar.
“Fraqueza que me dava ficar sem comer, eu era boba,
Dieta: “o único difícil é fechar a danada da boca” eu não comia, só comia um pouquinho.” (Laura)

A dificuldade em seguir a dieta recomendada esteve “O homem não come nada, está pior, está da cor
muito presente nas pessoas entrevistadas. Vários de- daquela parede ali, está amarelo. Muito regime é
poimentos mostraram incapacidade de realizar a die- bom, mas acaba com a gente também.” (Ana)
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Péres DS et al

Alguns relatos mostram uma percepção mais realista morrer (...) enquanto eu não como eu não sossego.”
acerca da importância da realização da dieta na bus- (Joana)
ca pelo controle glicêmico, como forma de evitar os
sintomas e as complicações provocadas pelo diabe- “Todo dia eu como doce (...) quando eu não acho um
tes descompensado. doce para comer, eu como até açúcar.” (Maria)

“A dieta vale muito, né.” (Laura) O proibido parece aguçar o desejo e, nesse sentido,
uma entrevistada referiu nunca ter gostado de doce,
“Ajuda, abaixa o diabetes, abaixa o peso.” (Maria) y
mas depois do diagnóstico de diabetes começou a ter
b
jol
mais desejo por alimentos doces.
A dieta prescrita permanece como um guia a ser se-
guido e apesar das dificuldades descritas, há relatos Pu
“Nunca gostei muito de doce, e agora por causa
de estratégias utilizadas para se conseguir obedecer à la
do diabete sempre me dá vontade de comer doce.”
u
Pa
dieta recomendada. (Lúcia)
Z A
a
“Eu nunca vou na panela na hora que eu estou comn
fome, eu deixo a fome passar, depois eu vou (...)A eu OUingerir
Algumas mulheres do estudo
que adotaram paraSevitar
relataram as estratégias
doces, como, por
t o exemplo, evitarEfazê-los ou comprá-los.
itu a fome
dobro a comida, a comida me dobra (...) você dá um
tempinho, bebe uma água, espera um pouco,
s t D
passa.” (Maria)
I n “Eu
R
não Afaço mais, muito doce não.” (Lúcia)

d D de fazer.bbolo,
ocom (...), às vezes fruta, N“Evito r fazer doce, evito de comprar.”
eu chupo muita laranja, d ebanana, essas coisas, o queXA (Maria)om
“Eu procuro disfarçar (a fome)

a LE oAlgumas
ir ed
tem na hora eu como, e disfarça a fome né.” (Lúcia)
A o.c mulheres relataram não usar adoçante, pois
Em um o p ficou claro que a ausência r a de sinto- ah não conseguem se acostumar e por não ser tão sabo-
masP r relato
ft que dificultam
é um dos aspectos p a o cumpri-y roso como o açúcar normal. Deixar de tomar refrige-
mento da dieta o
isde algum alimento,
estabelecida,
d o
já que muitas x @
vezes, rante (normal) também foi relatado como algo muito
n
após a ingestão i a os a l e
sintomas não difícil. Um mecanismo compensatório para a priva-
O n c t r
se manifestam.
e n u ção da ingestão de açúcar pôde ser evidenciado pelo

Lico que for,anãoil:sinto nada (...) a dia- pouquinho não faz mal”.
pensamento que parece ter predominado: “só um
“eu posso comer
m (...) quer dizer que fica “(Adoçante) também eu não acostumei.” (Joana)
bete sobe, não fico sabendo
por isso mesmo (...)Eé -onde acho assim, não tem pro-
blema não.” (Joana)
“Uso o açúcar mesmo (...) acho que o gostoso é o
Os aspectos emocionais foram relatados como um açúcar mesmo.” (Nair)
dos fatores que dificultam o cumprimento da dieta
prescrita. “Eu bebo do normal, o diet eu não gosto, não acos-
tumei (...) o bendito do refrigerante não tem jeito, é
“quando você está nervosa, você vai toda hora abre todo dia (...) algum ímã me puxa (...) só um pouquinho
a geladeira (...) estando ansiosa você come.” (Maria) não faz mal, um pouquinho eu posso tomar, quando
pensa que não, bebo mais um pouquinho durante o
“Por que que está comendo se não está fazendo bem dia.” (Joana)
pra gente (...) eu acho que é problema psicológico.”
(Joana) Vários depoimentos mostraram que ver ou ter em casa
um doce, um refrigerante, uma determinada comida,
Doces: “só um pouquinho não faz mal” e ter que realizar a dieta, é extremamente conflitivo e
penoso. Relataram a dificuldade de ver outras pesso-
O desejo de comer alimentos doces parece ser bastan- as se alimentando e não poderem comer.
te forte e muito presente no cotidiano da mulher por-
tadora de diabetes tipo 2. Assim, muitas entrevista- “porque se eu fizer, eu como né (...) se for guardar na
das referiram intensa dificuldade em deixar de inge- geladeira, de vez em quando eu estou comendo, está
rir doces. ali pertinho, geladinho.” (Lúcia)

“Parece que se eu não comer, parece que eu vou “É difícil a gente ver todos comendo (...) um vai, come,
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uhn está gostoso, essa tentação de estar gostoso é cados, tais como a perda do prazer de comer e beber,
onde a gente vai também, vai come, come, come, eu a restrição da autonomia e o cerceamento da liberda-
abuso.” (Nair) de para se alimentar como e quando desejar. As limi-
tações e proibições impostas pela doença e seu trata-
Uma entrevistada relatou que a família deveria aju- mento tiram a liberdade de fazer o que se tem vonta-
dar e colaborar com a dieta que precisava realizar, por de, o que provoca um viver triste.
exemplo, evitando fazer bolos e doces, já que é difí-
cil ver e não comer. Uma outra entrevistada declarou Os depoimentos dão ênfase naquilo que não deve ser
que os familiares a incentivavam a comer e beber o y
ingerido, o que indica que tanto a dieta prescrita pela
b
jol
que não deveria. ciência quanto o conhecimento popular estão liga-

“em casa também as pessoas não colaboram.” (Maria) P u


dos às representações alimentares subtrativas.13

u la que prescreve
Para as entrevistadas, o diabetes impõe uma série de
“pode comer, come um pedacinho, toma um copo só
(...) falo pra eles um pedacinho ou um pedação, faz
normasa e regras,
quePimpossibilita o controle deZ A vidas. Conside-
o quê e como comer, o
suas
mal a mesma coisa né.” (Cláudia) a
n rando as condições de vidaU material extremamente
A limitadas nas quais essas O
S que produz
mulheres vivem, conceber a
Aspectos financeiros: “regime é bom só para to E mais o espaço doinúmeras
rico” t i t u dieta como uma exigência
trições, “reduz D
ainda prazer e
res-
do
s
In como sendo lazer, já
R A
escassos pelas suas condições sociais”.8

Os aspectos financeiros foram referidos o D r


um dos itens que dificultavam d HáN um complexo.b
e
ta. Ter uma boa condiçãodfinanceira
o seguimento da die-
A
foi visto como X significadosoque
sistema de valores, de símbolos e
m estão associados à dimensão do co-
a E . c
ir ed L e nãooodeve ser vistavaiapenas
um facilitador e um estímulo positivo para se seguir a mer. A alimentação além da ingestão de nutrientes
dieta recomendada.
a A h pelo prisma biológico. 9,12

o p r
apara mim é, yaOs dados revelaram que o ato de comer está direta-
“A parteP dor regime é o difícil,
f t pelo menos p
s
entra dinheiro no imeio.o” (Maria)do x @ mente relacionado aos aspectos emocionais: “O ape-
e
alcomer, tite
Onaquelesndoce ciaque eu posso t r do homem civilizado (...) é mais de ordem psíqui-
“Nunca comprei
c edá vontade euncomo u um pou- a satisfação de suas necessidades de nutrição”.
ca e visa mais à satisfação do prazer de comer, do que
i
dietético. Aí no dia que
co do meu mesmo,Laçúcar mesmo. :
il” (Ana)
17

a
m tristeza com o Ou seja, os depoimentos evidenciaram que a ali-
Sentimentos: “eu tenho E -
uma mentação não é um fenômeno exclusivamente bio-
diabetes” lógico, mas sofre a influência de aspectos sociais,
culturais e emocionais. “A sabedoria em matéria ali-
Várias entrevistadas relataram alguns sentimentos mentar pode ser vista como vinda da experiência do
negativos que vivenciaram em relação à alimenta- gosto, não só dos alimentos, mas da vida social”.5
ção, por não poderem comer o que gostam. Na sociedade brasileira, praticamente não existe festa
sem farta provisão de comida. A alimentação per-
“Eu tenho uma tristeza com o diabetes (...) não tem meia diversas relações sociais, como casamentos,
vontade de viver mais (...) a gente não tem liberdade aniversários, batizados, ocasiões fúnebres, reuniões
assim de comer.” (Ana) familiares, políticas e religiosas.7 Em volta da mesa
se organizam as confraternizações, são transmitidos
“(doce) Eu fico possessa comigo, eu quero me segu- valores e crenças, são reforçados os vínculos e as
rar, mas não adianta.” (Maria) trocas afetivas.

DISCUSSÃO A dieta prescrita parece estar associada a prejuízos na


saúde: “dá fraquezas” e “fica-se amarelo”. Para Cam-
Uma parte substancial dos relatos evidenciou difi- pos5 (1982), a classe popular prefere alimentos consi-
culdade no seguimento da dieta prescrita pelos pro- derados “fortes”, como arroz, feijão e carne. Esses
fissionais, freqüentemente associada a uma imagem alimentos “enchem a barriga” e dão a sensação de
negativa, já que seguir o esquema alimentar prescrito poder passar um período de tempo longo sem comer.
por um período de tempo prolongado é tarefa extre- A alimentação está ligada ao trabalho; acredita-se
mamente penosa para algumas entrevistadas. Reali- que o corpo precise ingerir grandes quantidades de
zar a dieta recomendada reveste-se de vários signifi- alimentos para conseguir trabalhar, conforme ilustra
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Péres DS et al

uma expressão popular muito difundida: “saco vazio A transgressão alimentar esteve muito presente nas
não pára em pé”. representações das pacientes e parece ser uma forma
compensatória de driblar as proibições vivenciadas e
As sensações corporais são vivenciadas com maior de “proteger-se das ordens difíceis de serem segui-
ou menor intensidade conforme a classe social das das. É a válvula de escape para sentir-se livre e vivo”.*
pessoas. As classes populares tendem a atribuir sen- Damasceno6 (1995), estudando portadores de diabe-
sações de estar “satisfeito”, “forrado”, de “recuperar tes tipo 2, também constatou que a transgressão ali-
as forças” a uma refeição rica em gorduras, ocorrendo mentar é freqüente e um dos principais problemas
preferência pelo toucinho e banha de porco.1 y
relativos à alimentação. “A transgressão parece ser
b
jol
necessária para livrar-se da situação de escravidão
Além do mais, as representações da obesidade são
vivenciadas de diferentes formas nas diversas classes
u
imposta pela doença, pois o diabetes não dá trégua”.*
P
sociais. O peso desejável pelas mulheres de nível so- Algunsla alimentos são muito valorizados como, por
u
a os doces, que surgiram
cioeconômico baixo é considerado sobrepeso para
os critérios científicos e para a classe socioeconômi- P
exemplo,
como algo extremamente desejado, A
Z quase
nos depoimentos
que cons-
ca mais elevada.8 Queiroz18 (2003) afirma que nas a
n (1989), os alimentos doces
tituindo uma espécie deU “fetiche”. Para Boltanski 1

classes populares “uma pessoa magra (...) é percebida A S O são apreciados principal-
como uma condição de fraqueza, de inadaptação para
u t o E e crianças.
mente por mulheres
o trabalho e, portanto, de doença”. t i t D
I n s RA entrevistadas,
Para algumas parece ser difícil deixar
A valorização da magreza, daoaparência física e da deD r para camuflar
comê-los, embora tenham sido relatadas algumas
beleza aumenta nas pessoasdcom nível socioeconô-
A N . b
1
mico mais alto. Apesar d e da associação dieta/prejuí- X
estratégias utilizadas
rimentar o m
um doce: “evitar fazê-los e
o desejo de expe-
comprá-los”.
a E . c
iedno controle da glicemiaa e,Aassim, L Oo
zos na saúde, várias entrevistadas relataram que fazer
r
uma dieta ajuda
p para conseguir sustentá-la. h o proibido parece acirrar o desejo, conforme afirma
buscam o
r estratégias
t a r y a faz mais doce
Santana** (2002, p. 54, 59): “(...) o sabor do proibido
P o f o p @ o mel (...). Da proibição surge o desejo,
is
O fato do diabetes tipo 2 ser
d geralmente x
assintomá-
l e e desse desejo surge a transgressão. Na verdade a proi-
tico dificultano seguimento a
i a ausência
do tratamentoa estabele-
cido, jáO
bição aguça o objeto do desejo, quanto mais proibi-
15 c t r
nsaúde e assim,u muitos pacien- são e o desejo alimentar
que freqüentemente de sinto- do mais desejado se torna.” Para a autora, a transgres-
e n
Lioctratamento :
mas está associada à estão sempre presentes na
tes não seguem i l
a foi citada como um mentar está sempre presente na vida do indivíduo
por se sentirem saudá- vida da pessoa portadora de diabetes. “O desejo ali-
m
veis. A ausência de sintomas
-
E
dos aspectos que dificultam a realização da dieta,
pois não apresentam manifestações de mal-estar após
diabético. Esse mesmo desejo o faz sofrer, reprimir,
salivar, esquecer, transgredir, mentir, negar, admitir,
se alimentarem. Algumas pessoas parecem precisar sentir prazer, controlar e sentir culpa”. A transgressão
de algo concreto, palpável e visível para facilitar e também parece funcionar como uma “válvula de es-
estimular o cuidado com a saúde. Dessa forma, apre- cape” para as atribulações diárias.
sentar um sintoma logo após se alimentar possibili-
ta a associação de que o alimento pode ter sido pre- Muitas vezes, a mulher é a responsável pela prepara-
judicial à saúde. ção dos alimentos no domicílio e a grande dificulda-
de parece ser o fato de tocar, olhar e manipular os
Para Garcia8 (1989), o cuidado com o corpo, muitas alimentos e não poder desfrutá-los. Algumas entre-
vezes, é dado somente quando há sintomas que difi- vistadas relataram que a ajuda e o apoio dos familia-
cultam a execução das tarefas diárias. Para Mercado res é de extrema importância para que se sintam
Martínez15 (1992), a ausência de sintomas no diabe- fortalecidas em seus esforços de aderir ao tratamento.
tes faz com que os familiares não dêem apoio e aten-
ção ao portador dessa enfermidade e, nesse aspecto, Para Wang & Fenske19 (1996) os familiares têm papel
as mulheres vivenciam mais essa falta de apoio. “Os relevante no tratamento do diabetes. O núcleo fami-
homens tendem a receber o apoio de suas esposas e liar pode ajudar o paciente diabético no envolvimen-
filhas, todavia as mulheres enfermas têm a obrigação to com as mudanças dos hábitos e para que aceite
de cuidar de seus cônjuges e netos”. mais a sua doença. Para Guimarães11 (1999, p. 40),

*Pinho LMO. Educação em saúde no quotidiano do ser diabético [Tese Doutorado]. Belo Horizonte. Universidade Federal de Minas Gerais;
2000.
**Santana MG. O desejo, o controle e o limite: possíveis enfrentamentos no quotidiano diabético. In: Santana MG, organizador. Rede de
saberes em diabete e saúde: um exercício de interdisciplinaridade. Pelotas: Edição Independente; 2002. p. 53-72.
316 Comportamento alimentar de diabéticas Rev Saúde Pública 2006;40(2):310-7
Péres DS et al

“compete à família cumprir horários de refeições, Para algumas entrevistadas, seguir a dieta recomen-
mudar hábitos alimentares, adotar estilos de vida mais dada provoca tristeza e amargura, dessa forma, o ato
saudáveis e melhorar a qualidade da relação e o pa- de comer muitas vezes vem acompanhado de senti-
drão de atenção oferecidas ao paciente”. mentos negativos como medo, culpa e revolta.
Garcia10 (1997, p. 53) afirma: “Já não é sem culpa que
A busca de uma alimentação saudável deve ser ini- nos sentamos à mesa para desfrutar da comida.”
ciada na infância. Para Busdiecker et al2 (2000), as
práticas alimentares utilizadas pelos pais possuem Em conclusão, apenas oferecer informações não é
uma grande influência nos hábitos alimentares de y
estratégia suficiente para a instalação de mudanças
b
jol
seus filhos. Pais que alimentam de forma saudável nos hábitos alimentares. O enfoque da abordagem
provavelmente terão filhos com os mesmos hábitos
alimentares. Pu
educativa não deve se restringir apenas à transmissão
de conhecimentos, é importante englobar também os
la
aspectos subjetivos e emocionais que influenciam
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Os aspectos financeiros foram evocados por algu- na adesão ao tratamento, indo além dos processos
mas entrevistadas como um entrave que dificulta o
a cognitivos. Z
cumprimento da dieta recomendada. O comporta-
An Os programas educativosOemUdiabetes devem ser ba-
mento alimentar é muito complexo e, portanto, não
t o Sdialógica e na troca de sabe-
E
titu
se deve buscar sua compreensão dando-se ênfase seados em uma postura
apenas ao aspecto financeiro, mas também não se res, promovendoDo intercâmbio entre o saber científi-
I n s
pode desconsiderá-lo. Campos5 (1982) afirma que
R A sendo que ambos, profissionais e pa-
co e o popular,

d o
oferecer à população um maior acesso aos alimen- D muito.borque ensinar e aprender.
cientes,
N
têm

de
tos não garante mudança automática nos padrões
alimentares. Para esse autor, há uma tendência cres-X A
Espera-se queomque
o presente trabalho possa contribuir
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ir ed L humanizadao
cente no sentido de se acreditar que o ato da alimen- com reflexões levem à assistência mais eficiente,
A
tação está cada vez mais associado às inquietações
a h o e mais próxima da realidade das mulhe-
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em relação à saúde.
a r ares portadoras de diabetes tipo 2.
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Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp - Processo n. 02/00751-1).
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Baseado na dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação Saúde na Comunidade, em 2004.
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