Você está na página 1de 6

Analogia mecânica na política (I)

Na comparação com um órgão mecânico, a organização política seria o produto de um


artesão, que combinaria elementos(peças) da vida social para dar origem a um
todo articulado e operacional

Somente com o fim da Idade Média e com o desenvolvimento de invenções e inovações


tecnológicas, modelos mecânicos passaram a ser usados para descrever o mundo e as
relações sociais. Talvez não haja texto mais emblemático, desta nova visão da natureza,
que o escrito por William Harvey, anatomista inglês que, por primeiro, descobriu o
funcionamento da circulação do sangue no corpo humano. Harvey escreveu seu célebre
texto em 1628, alguns anos após Galileo descobrir os satélites de Júpiter, Francis Bacon
escrever sobre o "Avanço do aprendizado", alguns anos antes de Descartes escrever o
seu "Discurso sobre o método". Neste mesmo período morria Shekspeare, Rembrant
pintava uma de suas obras mestras, "Lição de anatomia", e Bernini reformava o
Vaticano.

O anatomista inglês William Harvey (1578-1657)

Nesta época de invenções e descobertas, Harvey escreve "Ensaio sobre os movimentos


do coração e do sangue", onde, em resumo, dizia que "o coração é uma bomba".
"Primeiro o aurículo se contrai, e, enquanto se contrai joga o sangue no ventrículo, o
qual, ficando cheio, faz com que as fibras do coração se tensionem e realizem uma
batida, por meio da qual o sangue é imediatamente enviado para as artérias, sendo que
o ventrículo direito envia a sua carga para os pulmões pelo vaso que é chamado de
'veia arteriosa', a qual, por sua estrutura e função, é uma artéria; e o ventrículo
esquerdo envia sua carga para a aorta, e, através dela para as artérias de todo o
corpo. Estes dois movimentos, dos ventrículos e dos aurículos, ocorrem
consecutivamente, mas de tal forma que (...) apenas um movimento é percebido. Não é
por outra razão que pode ser visto como uma peça de uma máquina, na qual embora o
movimento de uma engrenagem dê origem ao de outra, todas elas parecem mover-se
simultaneamente". (ênfase nossa)

Harvey prefacia o relato de suas descobertas, ao Colégio Real de Médicos da Inglaterra,


com cautelosas observações sobre o amor à verdade, sobre a obra dos antigos, que pode
e deve ser levada adiante por novas descobertas: "Pois o verdadeiro filósofo, aquele que
ama a verdade e o conhecimento, não admitem estar completa e totalmente informados
sobre uma matéria, que não possam dar as boas vindas a novas informações, venham
de onde vieram e de quem vierem; tampouco admitem eles que qualquer das artes e
ciências, transmitidas a nós pelos antigos, encontra-se em tal grau de completude e
atualidade que nada mais resta a descobrir pela engenhosidade e esforço de outros.
Muitos, ao contrário, sustentam que tudo que sabemos é infinitamente menor do que o
que aquilo que é ainda desconhecido".
Como Darwin, dois séculos mais tarde, Harvey teme a reação dos conservadores, que
viam qualquer mudança no conhecimento científico como uma ameaça às instituições e
à religião. E como Darwin, Harvey não estava fazendo pouco. Ele estava
dessacralizando o órgão mais nobre do corpo humano, a sede da sensibilidade e dos
sentimentos, o misterioso coração, território tornado sagrado pela religião, pelo amor,
pelos sentimentos mais fortes do ser humano, que, segundo ele argüia, devia ser visto,
prosaicamente, como uma "bomba" que impulsionava o sangue por todo o corpo.

William Harvey escreveu o "Ensaio sobre os movimentos do coração e do sangue"

O modelo que o "mecanismo" proporcionava, para descrever a natureza e as relações


sociais, opunha-se frontalmente, como se vê, ao modelo proporcionado pelo conceito de
"organismo". As noções de mudança irreversível, crescimento, evolução, e de propósito
inato - todas elas essenciais para o "organismo", nele não tinham lugar.

Um mecanismo implicava a noção de que o todo era completa e totalmente igual à soma
de suas partes. Que não importando o número de vezes em que fosse desmontado e
refeito, continuaria a se comportar de maneira exatamente igual à antes. Mais ainda, não
importava também a ordem em que a desmontagem ocorria e que a remontagem se
fazia. Finalmente, as partes podiam, em caso de necessidade, ser substituídas e trocadas
por outras iguais, e o mecanismo continuaria funcionando.

Dentro desta concepção, a organização política seria o produto de um "grande artesão",


que combinava elementos imutáveis da vida social (as partes, peças), de forma a que
dessem origem a um todo articulado e operacional. Como decorrência desta visão, a
sociedade não seria mais vista como uma realidade viva, com memória, tradição,
hábitos e costumes.

Ao contrário, a sociedade (e a política) possuía uma plasticidade que permitia moldá-la,


desde que se encontrassem os elementos básicos e imutáveis que a constituem, e que se
os montasse de maneira a construir um todo harmônico e operacional. A organização
política passava a ser uma construção de um cérebro inventor, não mais uma realidade
histórica em evolução, não mais um organismo.

Francisco Ferraz

A analogia mecânica na política II: o relógio como modelo


A analogia mecânica reduzia os indivíduos e suas criações sociais a peças que deviam
ser combinadas pela razão, de maneira a formar um "mecanismo" que funcionaria
à perfeição para os propósitos aos quais se destinava

A adoção de uma analogia mecânica para descrever e explicar o mundo dependia do


desenvolvimento de máquinas e operações mecânicas muito mais complexas que as da
antiguidade. Assim, foi o desenvolvimento da maquinaria hidráulica (bombas, canos,
válvulas) que permitiu a Harvey escrever seu clássico "De Motu Cordis", no qual
apresentou sua revolucionária teoria da circulação do sangue.

O domínio do tempo passou a ser uma obsessão dos pensadores ocidentais

O desenvolvimento do relógio, em curso desde o século XIII, iria proporcionar o


modelo clássico de mecanismo aplicado de forma quase universal para descrever o
universo (Sistema Newtoniano); o governo (Montesquieu e Locke); e o próprio corpo
humano (o livro de La Mettrie "O homem, uma máquina").

Porque o relógio exerceu esta função?

Por que o domínio do tempo passou a ser uma obsessão dos pensadores ocidentais. Há
5.000 anos, media-se, ainda que de formas diferentes, o ano, os meses, a semana e o dia.
Enquanto a humanidade viveu da agricultura e do pastoreio, estas medições eram
suficientes e satisfatórias.

O "dia útil" era o dia iluminado pelo sol. Medir o tempo útil era então medir as horas de
sol. A noite era a escuridão, que trazia consigo a impossibilidade de trabalhar.
Desnecessário medi-la.

Por isso os relógios de sol foram os primeiros instrumentos de medição do tempo.


Durante séculos, a sombra do sol foi a medida universal do tempo. Entretanto, não havia
avanço nas unidades de tempo menores que o dia.

O relógio de sol marcava as horas do dia, mas com muitas imperfeições e imprecisões.
A hora exata e uniforme é uma invenção moderna, e o minuto e o segundo são ainda
mais recentes. Este avanço, entretanto, dependia da identificação de uma unidade de
tempo formal - arbitrária e abstrata - que tivesse correspondência com a realidade
cósmica.

As unidades menores de tempo não podiam, pois, ser buscadas na natureza, e sim numa
convenção, isto é numa fórmula abstrata.
Para dominar o tempo então tornou-se necessário inventar um mecanismo de precisão: o
relógio mecânico. Como em tantas outras descobertas e invenções, o novo relógio,
capaz de fazer a medição mecânica do tempo, teve uma origem religiosa.

Os primeiros relógios mecânicos eram mais despertadores do que relógios propriamente


ditos. Sua principal função era soar as horas das orações monásticas.

Grosseiramente podiam ser descritos como máquinas movidas por pesos que faziam
soar um sino, dentro de intervalos regulares, correspondentes às 7 horas canônicas. A
queda dos pesos acionava o braço, que, ao bater no sino, produzia o som.

O dispositivo que impedia a queda livre dos pesos, permitindo a queda seletiva a
intervalos regulares, chamava-se "escape", que, ao exercer uma pressão de sentido
contrário, era capaz de interromper a queda livre dos pesos.

Os relógios de catedrais e dos campanários tinham a função de "dar as horas" aos


cidadãos

Alternadamente contendo e soltando os pesos, o "escape" garantia que o mecanismo


funcionasse, subordinado a intervalos regulares. As horas canônicas, entretanto, eram
apenas sete. Pouca ou nenhuma utilidade tinham fora de sua função religiosa. Mas um
mecanismo capaz de medir unidades de tempo menores havia sido inventado. Tratava-
se agora de estender a sua operação para a divisão do dia.

Foi em meados do século XIV que nasceu a nossa hora moderna, e que o dia foi
dividido em 24 partes iguais. Esta foi uma das grandes "revoluções silenciosas" da
história. Dar as horas iguais tornou-se um serviço público que o cidadão necessitava,
mas não podia proporcionar a si mesmo.

Coube às igrejas e catedrais esta função. Esta a origem dos famosos relógios de
catedrais e dos campanários das igrejas antigas. A partir deste momento, começa a
perseguição, empreendida por inventores e cientistas, do relógio perfeito, da máquina de
medir mecanicamente o tempo, absolutamente precisa e universal.

A descoberta da utilização do "pêndulo", por Galileu, vai dotar os mecanismos de medir


o tempo da precisão que buscavam. A descoberta de que a duração do movimento
oscilatório do pêndulo varia em função do seu comprimento e não da largura do espaço
por ele percorrido, foi a nova revolução.

Depois do pêndulo, o erro na medição do tempo caiu para 10 segundos por dia. A
medida em que novas máquinas aproximavam-se do modelo de relógio idealizado - uma
invenção do cérebro humano, isolada do seu ambiente, não modificável pela passagem
do tempo, capaz de ser montada e desmontada, de ter peças substituíveis - o paradigma
do mecanismo se universaliza, e passa a servir de referência para explicar e descrever o
universo, a natureza e a sociedade.

A analogia mecânica, aplicada à política, levava os pensadores a tentar descobrir,


intelectualmente, o conjunto de elementos, simples e imutáveis, que agiam em conjunto
e articuladamente em obediência a leis igualmente simples e imutáveis.

Estes elementos podiam ser os átomos e corpúsculos na física, as moléculas e elementos


na química, a noção de "homo oeconomicus" na economia, ou as formas de combinar
"unidades de dor e prazer" na ética e na política.

A organização política não seria mais, então, a obra da evolução de um "corpo vivo",
com memória e história, mas, ao contrário, seria o resultado de uma dedução produzida
pela razão e verificada pela observação. Em outras palavras, um mecanismo.

Neste espírito, Montesquieu, e mais tarde os constitucionalistas americanos, vão falar da


"divisão do poder" e da sua articulação e operação conjunta, mediante a ação dos "freios
e contrapesos" constitucionais. A competência de um dos poderes é controlada pela dos
outros, assim como o "escape" do relógio mecânico ora continha, ora liberava, a queda
dos pesos.

A elaboração constitucional e as leis ordinárias libertavam-se das "amarras" da tradição


e do costume. Nos marcos da concepção mecânica, elas são "invenções e descobertas"
da mente racional, ao conceber novas formas de "combinar as partes integrantes do
mecanismo social".

Burke: "nós, ingleses, somos pessoas de sentimentos não educados"

Em resumo, a analogia mecânica reduzia os indivíduos, suas criações sociais, os


costumes e tradições que as legitimavam, a peças que deviam ser combinadas pela
razão, de maneira a formar um "mecanismo" que funcionaria à perfeição, para os
propósitos aos quais se destinava.

Tratava-se de libertar a mente das "superstições" - tradições, hábitos e costumes - e


recorrer à razão, instrumentada pelo poder, para combiná-las da maneira certa. A
educação e o poder de punir assegurariam que as peças (indivíduos) funcionassem de
acordo com o plano.

O arranjo institucional (divisão do poder, pesos e contrapesos) seria acionado pela


energia da ação individual e coletiva, ao mesmo tempo em que a canalizava para
"mover o mecanismo" no sentido desejado.
A hegemonia desta analogia na política, durante a Era da Razão (1650/1790),
despertaria reações contrárias, fazendo ressurgir a analogia orgânica e os modelos
historicistas de interpretação da política.

Burke, o mais articulado defensor da analogia orgânica nesta nova fase, sinaliza o
combate ao atacar diretamente o postulado central do modelo mecanicista: a
superioridade da razão face à tradição: "Veja senhor que nesta era iluminada, eu sou
suficientemente atrevido para confessar que nós (os ingleses) somos, de maneira geral,
pessoas de sentimentos não educados. Ao invés de atirar fora os nossos antigos
preconceitos, nós os preservamos e apreciamos, e, para maior vergonha nossa, nós os
apreciamos por que são preconceitos. E, quanto mais antigos eles forem, e mais
amplamente prevaleceram, mais nós os apreciamos. Nós temos medo de deixar os
homens viverem e transacionarem entre si, apoiados apenas na sua própria reserva
privada de racionalidade, porque nós suspeitamos que esta reserva, em cada ser
humano, é pequena, e que portanto, seria melhor para eles abastecerem-se no grande
banco geral e no capital das nações e das épocas."

Francisco Ferraz

Você também pode gostar