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RESUMO: Este artigo traça um percurso teórico analítico significativo. Como haste
rizomática, em um primeiro momento, a paisagem é tratada, em vistas da sua reformulação
conceitual nas linhas de conhecimento atuais. Em seguida, elementos da fenomenologia e
basilares do pensamento-paisagem de Michel Collot, principal fonte teórica desta análise, são
resgatados – conceitos gênese do Existencialismo de Jean-Paul Sartre, como o fenômeno e a
subjetividade. Enquanto isso, os contos “Funes, o Memorioso”, de Jorge Luis Borges, e
“Amor”, de Clarice Lispector, são costurados a conceitos do pensamento-paisagem. Isso
possibilita tanto um aprofundamento prático, quanto a abertura de novas leituras sobre a teoria
de Collot e alcance de limites que se referem à abrangência conceitual e prática de seu
pensamento-paisagem.
Num rizoma, [...] cada traço não remete necessariamente a um traço linguístico:
cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito
diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não
somente os regimes de signos, mas também os estatutos de estados das coisas
(DELEUZE e GUATTARI, 1995, P. 11).
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Artigo produzido para a disciplina Literatura e Paisagem, ministrada pelo professora Dr. Maria Luiza
Berwanger, no curso de doutorado acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Letras, especialidade em
Teoria, Crítica e Comparatismo, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Mestre em Literatura Brasileira, pela UFRGS, com a dissertação “Dos limites da existência: o existencialismo
em A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector”. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na linha de pesquisa Teoria, Crítica e Comparatismo (UFRGS).
Anterior aos organogramas, às hierarquias, às genealogias e, em Deleuze e Guattari,
principalmente, às árvores linguísticas de Chomsky, o rizoma é heterogêneo, seus
acoplamentos são múltiplos e se estendem não a partir de um caule ou de uma raiz. “O rizoma
nele mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial ramificada em todos os
sentidos até suas concreções em bulbos e tubérculos. Há rizoma quando ratos deslizam sobre
outros” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 15). Com isso, o rizoma não se contrapõe à
árvore, é seu a priori: aquém das ramificações que partem de uma raiz e de um caule (aquém
das árvores evolutivas, das genealogias, da linguística, da psicanálise, do estruturalismo, e até
da informática, em que, segundo Deleuze e Guattari, dominam a lógica binária e as relações
biunívocas), há ramificação: há mapa, não decalque2, como uma
E esta é uma nova cartografia: como haste rizomática, a paisagem, antes objeto de
estudo histórico-geográfico, acopla-se à fenomenologia, à estética, aos estudos comparatistas,
e encontra na literatura um amplo e complexo território de reconfiguração de bases – de
encontro com novas estruturas rizomáticas.
Compor aqui uma haste rizomática ao se levantar o pensamento-paisagem de Michel
Collot, na obra Poética e filosofia da Paisagem, é a possível emergência desta análise. E, nessa
linha, estabelecendo-a como O facto comparatista, de Pierre Brunel, a lei da flexibilidade, que
imerge nos corpos dos textos.
A obra de Collot é objeto e lente de observação a partir do conceito de modulação em
Brunel: a predisposição e modus operandi analítico sobre o pensamento-paisagem se modula
às obras literárias. Usa-se do “direito de lançar sobre um texto um olhar singular” que,
conforme Pierre Brunel, “é o que nós chamamos o direito à modulação” (BRUNEL, 2004, p.
42). Em Brunel, as modulações se colocam, primeiramente, como chaves de leitura possíveis
e, talvez, privilegiadas: observar a obra de Joyce como modulada à luz da Divina Comédia de
Dante.
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“Toda lógica da árvore é uma lógica do decalque e da reprodução. Tanto da Linguística quanto na Psicanálise,
ela tem como objeto um inconsciente ele mesmo representante, cristalizado em complexos codificados, repartido
sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura sintagmática. Ela tem como finalidade a descrição de um
estado de fato, o reequilíbrio de correlações inter-subjetivas, ou a exploração de um inconsciente já dado
camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela consiste em decalcar algo que se dá já feito, a
partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um eixo que suporta. A árvore articula e hierarquiza os
decalques, os decalques são como as folhas das árvores” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 21).
Devemos, talvez, desconfiar das aproximações demasiado fáceis. Dado que o nome
de Dante aparece em Retrato do Artista quando Jovem, de James Joyce, podemos
iniciar a busca de uma estrutura dantesca na obra. Dublin contém o seu inferno de
onde é necessário sair para encontrar um paraíso: a rosa que é evocada quase no final
do livro. Porém, Dante é o nome dado a uma personagem íntima da casa, Mrs.
Conway. Talvez se trate de uma deformação da palavra “aunt” [tia]. Por outro lado,
se existem no texto referências explícitas a Dante, elas não remetem para A Divina
Comédia, mas para Vita nouva [Vida Nova] (os poemas para E. C.). Enfim, existem
muitas outras alusões literárias no romance: a Platão, por exemplo, com a conversa
socrática entre Lynch e Dedalus. Modular sobre um texto como este será privilegiar
uma dessas chaves, à escolha, ou, melhor ainda, tentar utilizá-las à vez (BRUNEL,
2004, p. 42-43).
Husserl não é realista: essa árvore colocada num pedaço de terra gretada não
constitui um absoluto que entraria mais tarde em comunicação conosco. A
consciência e o mundo surgem simultaneamente: exterior por essência, o mundo é
por essência relativo a ela (SARTRE, 1947, p. 29).
De todo modo, a fenomenologia é o estudo dos fenômenos – não dos fatos. E por
fenômeno convém entender “o que denuncia a si mesmo”, aquilo cuja realidade é
precisamente a aparência. “E essa ‘denúncia de si’ não é uma denúncia qualquer... o
ser do existente não é algo ‘atrás do qual’ há ainda alguma coisa que não aparece”.
De fato, existir, para a realidade-humana, é, segundo Heidegger, assumir seu próprio
ser num modo existencial de compreensão; existir, para a consciência, é aparecer a
si mesma, segundo Husserl (SARTRE, 2007, p. 24).
Sobre esse princípio que Collot propõe um aprofundamento nas estruturas que
constroem, interferem, configuram e reconfiguram a percepção paisagística, além de dualismos
cristalizados próprios da teoria clássica ocidental. O filósofo convida a uma imersão nas
dinâmicas e processos do pensamento imbricado à paisagem, um ser-paisagem como
fenômeno e apreensão do mundo.
Uma vez que levamos a sério a percepção da paisagem, como me proponho a fazer,
somos levados a nos libertar do dualismo arraigado do pensamento ocidental, a
ultrapassar um certo número de oposições que o estruturam, como as do sentido e do
sensível, do visível e do invisível, do sujeito e do objeto, do pensamento e da matéria,
do espírito e do corpo, da natureza e da cultura. Entre esses termos que nossa tradição
filosófica opõe ou subordina um ao outro, a paisagem instaura uma interação que nos
convida a pensar de outro modo (COLLOT, 2013, p. 18).
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“O olhar constitui uma primeira configuração dos dados sensíveis; à sua maneira, é artista, ‘paysageur’ antes de
ser paisagista. É um ato ‘ato estético’, mas também um ato de pensamento” (COLLOT, 2013, p. 18).
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“Minha primeira lembrança de Funes é muito perspícua. Vejo-o num entardecer de março ou fevereiro do ano
oitenta e quatro. Meu pai, esse ano, levara-me a veranear em Fray Bentos. Voltava eu com meu primo Bernardo
Haedo da estância São Francisco. Voltávamos cantando, a cavalo, e essa não era a única circunstância de minha
felicidade. Depois de um dia bochornoso, uma enorme tormenta cor de ardósia escondera o céu. Animava-a o
vento do Sul, as árvores já enlouqueciam; tinha o temor (a esperança) de que nos surpreendesse num
descampado a água elementar. Fizemos uma espécie de carreira com a tormenta. Entramos numa azinhaga que
se afundava entre duas veredas altíssimas de tijolo. Escurecera de chofre; escutei rápidos e quase discretos
passos no alto; alcei os olhos e vi um rapaz que corria pela acanhada e rota vereda como por uma estreita e rota
parede. Lembro-me da bombacha, das alpargatas, lembro-me do cigarro no duro rosto, contra o nuvarrão já sem
limites” (BORGES, 1974, p. 116).
pensamento, a percepção da paisagem (logo, o pensamento-paisagem) organiza elementos
expressos, ausentes e implícitos, o que Collot chama de dialética da coisa e seus horizontes.
Esta dialética da coisa e de seus horizontes faz, particularmente, com que todo
visível, segundo Merleau-Ponty, comporte uma parte de invisível, e isso vale
também para a paisagem, que jamais se apresenta como um panorama, mas como
uma cena móvel, animada por um jogo de sombras e luzes (COLLOT, 2013, p. 24).
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“Sabe-se que para aquém da perspectiva estreita do narrador-máscara há uma visão muito mais extensa e
dominadora, cujos limites serão demarcados pela oposição dos valores que veicularão na obra” (DAL FARRA,
1978, p. 23).
homem cego mascando chicles, teve sua perspectiva do mundo atingida 6. Frente às
construções sociais e paisagísticas das quais é composta, marca-se a desconstrução de um
pensamento-paisagem: de uma percepção “domesticada” e segura a uma composta pelo
inóspito e pelo imprevisível.
Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que
plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No
entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de
se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando
estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há
muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo seu gosto pelo
decorativo se desenvolvera a suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto
que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência
harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem (LISPECTOR, 1998, p. 19-
20).
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam
jantar – o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinado, olhava o cego
profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão.
Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento de mastigação fazia-o parecer
sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse
insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio
(LISPECTOR, 1998, p. 21-22).
aquela que faz a unidade natural e antepredicativa do mundo e de nossa vida, que
aparece nos nossos desejos, nas nossas avaliações, nossa paisagem, mas claro que no
conhecimento objetivo, e que fornece o texto do qual nossos conhecimentos
procuram ser a tradução em linguagem exata (PONTY apud COLLOT, 2013, p. 22).
termo, intraduzível, designa os recursos que certos objetos lhe oferecem e que dão
sentido e valor ao visível. De acordo com Gibson, “uma affordance não é nem uma
propriedade subjetiva nem uma propriedade objetiva: ela é, ao mesmo tempo, uma e
outra. Uma affordance transgride a dicotomia sujeito/objeto e nos ajuda a
compreender sua inadequação (COLLOT, 2013, p. 20);
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“Chego, agora, ao ponto mais difícil da minha narrativa. Esta (bom é que já saiba o leitor) não tem outro
argumento que esse diálogo de há meio século. Não tratarei de reproduzir suas palavras, no momento
irrecuperáveis. Prefiro resumir com veracidade as muitas coisas que me falou Irineu, o estilo indireto é distante e
fraco; sei que sacrifico a eficácia desse relato; que meus leitores imaginem os entrecortados instantes que àquela
noite me oprimiram” (BORGES, 1972, p. 120).
Sabia as formas das nuvens austrais do amanhecer do 30 de abril de 1882 e podia
compará-las na lembrança com as listras de um livro espanhol encadernado que vira
somente uma vez e com as linhas de espuma que um remo sulcou no rio Negro na
véspera da batalha de Quebracho (BORGES, 1972, p. 121).
O poeta português Fernando Pessoa ensaia conceitos de paisagem em nota preliminar de sua
obra Cancioneiro. Conforme Pessoa, ao ser humano e sua consciência são atribuídas duas
paisagens, a interna e a externa. Esta representa o que é objetivo, o que é apenas visível;
aquela é reflexo dos estados da alma e do espírito.
Todo o estado da alma é uma paisagem. Isto é, todo estado de alma é não só
representável por uma paisagem, mas verdadeiramente por uma paisagem. Há um
espaço interior onde a matéria de nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um
lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito (PESSOA,
1998, p. 161).
A seguir, o poeta conclui: “Assim tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do
nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, temos ao mesmo tempo consciência de
duas paisagens” (PESSOA, 1998, p. 161).
Sobre a experiência perceptivo-espacial de Ana, o escritor e crítico Osman Lins, na
obra Lima Barreto e o Espaço Romanesco, descreve a fusão de subjetividade e paisagem,
transmutação extrema imbricada ao pensamento-paisagem:
As coisas que cercam Ana – frutas, dálias, tulipas, vitórias-régias, pequenas flores
espalhadas na relva – são quase todas prestigiosas [...]. A personagem, atingida e
desorganizada pelo encontro com o cego, transmuda-as, segregando em torno de si,
a partir de elementos naturalmente aprazíveis, uma atmosfera de horror (LINS,
1976, p. 76).
O espaço, assim, não é apenas elemento externo, é interiorizado, está como que
incrustado à paisagem interna da personagem. É, com isso, transmutado. Nessa perspectiva,
personagem e espaço apresentam-se como unidade: essa relação não se coloca sob a ordem de
causa e efeito, mas sim é ação univalente. Ana é espaço, e ambos são pensamento-paisagem.
As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana
pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à
garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra.
Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo
faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores
espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e
escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas,
ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos, enviados pela vida mais
fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia
o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno
(LISPECTOR, 1998, p. 25).
REFERÊNCIAS
BORGES, Jorge Luis. Ficções. Trad. Carlos Nejar. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1972.
BRUNEL, Pierre. O fato comparatista. In: Compêndio de literatura comparada. Trad. Maria
do Rosário Monteiro e Helena Barbas. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian , 2004 , p21-
53.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. Trad.
Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São
Paulo: Edições Loyola, 1997.
LINS, Osman. Lima Barreto e o espaço romanesco. São Paulo: Ática, 1976.
LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. São Paulo: Círculo do Livro, 1980.
MOUTINHO, Luiz Damon Santos. Sartre: existencialismo e liberdade. São Paulo: Moderna,
1995.
SARTRE, Jean-Paul. Situações. Trad. Rui Mário Gonçalves. São Paulo: Europa-América,
1947. v. 1.
______. Esboço para uma teoria das emoções. Trad. Paulo Neves. Porto Alegre, RS:
L&PM, 2007.
______. O que é subjetividade? Trad. Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2015.