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SIMEAO SASS - A noção de ego na obra de Sartre

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Simeão Sass
Universidade Federal de São Paulo
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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

A noção de ego na obra de Sartre

The notion of ego in Sartre’s work

Prof. Dr. Simeão Donizetti Sass206


Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO
O presente ensaio analisará três obras de Sartre, La Transcendance de l’ego (1936), L’Être et le
néant (1943) e Cahiers pour une morale (1983). Tentaremos demonstrar que esse percurso é,
ao mesmo tempo, a evolução e a manutenção de algumas teses enunciadas na primeira obra.
Identificaremos alguns dos objetivos da filosofia sartriana, tanto na moral quanto na política,
revelando o papel central do Ego nessa discussão, e, por fim, identificaremos as consequências
morais de uma nova concepção da consciência, do ego e da reflexão edificadas por Sartre ao
longo de sua trajetória.

PALAVRAS CHAVE
Ego; Espontaneidade; Solidariedade.

ABSTRACT
The given essay will analyze three of Jean Paul Sartre’s Works: La Transcendance de
l’ego (1936), L’Être et le néant (1943) and Cahiers pour une morale (1983). We will
demonstrate that this path is, at the same time, evolution and maintenance of some already
stated thesis of the first piece. We will also identify some objectives of Sartre’s Philosophy,
regarding moral and political issues, revealing the main role of Ego in this discussion. Finally,
we will trace the moral consequences of new concepts of consciousness, Ego, and the
reflection Sartre identifies throughout his trajectory.

206 E-mail: simeao78@gmail.com


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International Journal of Phenomenology, Hermeneutics and Metaphysics

KEYWORDS Descartes a Nietzsche, tal


Ego; Spontaneity ; Solidarity. conceituação oscilou entre a verdade
e o erro. Outro fator comum nessas
análises foi a identificação entre ego e
consciência moral. A reflexão
INTRODUÇÃO transformava-se em culpa, o exame
O conceito de ego ocupa um de consciência reproduzia o processo
lugar de destaque na filosofia de atribuição de culpa exatamente
ocidental. Sobretudo a partir do porque o termo consciência opunha-
pensamento moderno, tornou-se tema se a inconsciência. Se a primeira é a
obrigatório. O pensamento francês o memória do pecado, a segunda surge
tomou como objeto de discussão de como esquecimento de todo erro
forma aprofundada e até polêmica. A cometido. Algumas etiquetas foram
máxima “penso, logo existo”, produzidas a partir dos filósofos que
cunhada por Descartes, assumiu ares tomaram esse tema como objeto de
de verdade indubitável. O pronome suas reflexões. Idealismo,
eu, frequentemente, é subentendido racionalismo, subjetivismo, filosofia
como presença indispensável na da consciência, moralismo, e tantos
compreensão da fórmula cartesiana, outros rótulos, foram afixados em
ou seja, todo pensamento é fruto de filósofos que abordaram o tema em
um ego reflexivo. Fato que leva a crer questão. Defender o cogito como
que toda atividade de pensamento é ponto de partida filosófico
necessariamente reflexiva. representava a assunção do
Retomando uma frase de Alain, cartesianismo oficial.
“saber é saber se sabe”, podemos A fenomenologia lançou novas
afirmar que a máxima cartesiana luzes sobre essa discussão. Husserl
sintetiza atividade reflexiva. renovou o cartesianismo recolocando-
Outro lugar comum na o no centro do debate epistemológico
interpretação dessa máxima é e metodológico da filosofia
identificar consciência e ego. Em contemporânea. A filosofia de
outras palavras, só há ego se ocorre a Husserl, como toda corrente
reflexão e vice-versa. Por renovadora, foi interpretada de
conseguinte, consciência, ego e diversas maneiras, umas mais
reflexão tornam-se sinônimos. O ortodoxas, outras menos. Nosso
pensamento moderno explorou todas objetivo, nesse ensaio, é discutir a
as perspectivas dessa teoria. De posição de Sartre acerca do debate.

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A noção de ego na obra de Sartre


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Ele afirma que sua filosofia não usa consciência, do ego e da reflexão
conceitos, mas noções. Tal distinção edificadas por Sartre ao longo de sua
epistemológica aproxima-o de uma trajetória. Devido aos limites do
visão da filosofia que não quer ser estudo, não teremos tempo de
como as ciências naturais, baseada em abordar as críticas de Sartre a
leis e normas, mas em uma atitude Husserl. Enunciaremos somente as
compreensiva e aproximativa, suas justificativas, reservaremos a
herança da fenomenologia que outro estudo a especificação do
pretendeu ser uma filosofia rigorosa debate entre Husserl e Sartre.
sem reeditar o positivismo comtiano. O percurso que escolhemos
Daí a diferença que fazemos entre a revelará três momentos da teoria
noção sartriana e o conceito de ego sartriana do ego. O primeiro
forjado ao longo do pensamento abordará a sua condição
moderno, que ainda persiste no transcendente, o segundo a sua
pensamento contemporâneo. A noção estrutura circular e o terceiro a sua
sartriana de ego é uma tentativa de condição libertária. As duas primeiras
repensar a teoria conceitual do ego. obras enunciadas, foram estudadas de
Como veremos, tal tentativa leva forma mais ampla e aprofundada, a
Sartre para bem longe do terceira, por ser póstuma, ainda não
cartesianismo ortodoxo. Sem, foi descoberta pelos estudiosos.
contudo, recair e irracionalismos, Poucas pesquisas abordam suas teses
preocupação constante do e um espectro significativo de
existencialista francês. intuições importantes ainda solicita
Tomaremos como objeto de trabalho de elucidação. Um aspecto
análise três obras, A transcendência do importante dessa análise histórica e
ego (1936), O Ser e o nada (1943) e conceitual é identificar a continuidade
Cadernos para uma moral (1983). do projeto enunciado na obra A
Tentaremos demonstrar que esse transcendência do ego; essa perspectiva,
percurso é, ao mesmo tempo, a por si só, já desperta um grande
evolução e a manutenção de algumas interesse. Ela rebate uma acusação
teses enunciadas na primeira obra. muito comum e infundada de que
Identificaremos alguns dos objetivos Sartre é um pensador idealista e, ao
da filosofia sartriana, tanto na moral mesmo tempo, dualista. A teoria
quanto na política, revelando o papel sartriana do ego, elucidada
central do Ego nessa discussão, e, por adequadamente, esclarece um
fim, identificaremos as consequências equívoco iniciado ainda nos anos 40,
morais de uma nova concepção da pela interpretação de Merleau-Ponty,

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consagrada nas páginas finais de A possível? Além, disso, faltaria a


Fenomenologia da percepção (1945). Bergson, uma visão mais acurada da
Análise dessas críticas foram feitas relação entre política e sociedade,
por mim em estudos anteriores; entre a tensão constante identificada
assim, não voltaremos a eles. na relação de cada pessoa consigo
Ao estudarmos atentamente a mesma e com a sociedade que a
reflexão sartriana voltada para o circunda. Estabelecer a distinção entre
estudo do ego, identificamos uma eu profundo e o eu superficial não
teoria muito bem urdida, que tem bastaria, segundo Sartre, para evitar
como um de seus objetivos os equívocos do solipsismo. Nem a
fundamentais criticar a chamada teoria do Herói, esboçada nas Duas
filosofia da intimidade, muito comum fontes resolveria o problema da
no início do século 20, na França. Um existência fática da relação entre seres
dos autores mais lembrados nessa humanos em sociedade. Os conflitos
crítica é Bergson. Sartre dedica a ele sociais não poderiam ser resolvidos a
vários estudos, em várias obras de partir da instauração de novos
sua produção intelectual. É valores inspirados por pessoas
importante deixar claro que ele não excepcionais. Faltaria uma efetiva
recusa a teoria bergsoniana em sua transformação da sociedade. A teoria
totalidade; ele a circunscreve ao plano bergsoniana do eu
daquilo que denomina psíquico. A profundo/superficial, nesse contexto,
perspectiva psíquica da existência somente explicitaria uma cisão na
humana, enunciada ao longo de pessoa, não a superação dessa cisão.
várias obras de Bergson, para Sartre, Assim, o eu seria um fluxo de
continua válida, assim como sua emoções, fato que pode ser visto
teoria das emoções, esboçada na obra como uma definição possível da
As duas fontes da moral e da religião psique, mas ele não seria a síntese
(1932). A objeção fundamental feita a totalizante chamada pessoa,
Bergson é de que o eu, oscila entre a necessária correlação entre
perspectiva dinâmica movente e a de interioridade e exterioridade. Nessa
um ser pleno. Hora ele aparece crítica sartriana da vida interior e da
definindo a pessoa, e em outros consequente exclusão da política,
momentos, inserindo-a no fluxo da estaria o campo incompleto da teoria
duração. Ou seja, a pessoa seria um bergsoniana. Ontologia, moral e
ser total ou movente inacabado, se política solicitariam uma
ambos os fatos, como isso seria reorganização, que inexiste na obra

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de Bergson. Mas, não trataremos aos interessados em esclarecer os


desse debate nesse estudo. equívocos e refutar teses
Tentaremos elucidar a posição de absolutamente inexistentes em seu
Sartre. discurso. A mais usual crítica feita a
Para tanto, é preciso identificar Sartre é a de ser um defensor do
as principais teses e os ajustes subjetivismo, da subjetividade isolada
empreendidos ao longo do percurso. do mundo, hipostasiação do sujeito.
É preciso também identificar o que Nada mais equívoco que isso. O
Sartre quer evitar. Na obra A estudo da noção sartriana de ego
transcendência recusa-se o solipsismo, revela a fragilidade dessa crítica.
em O Ser e o nada, critica-se a pessoa Revela também que ela é uma
desconectada do mundo e nos caricatura débil do pensamento
Cadernos o ego como coisa em-si, existencialista francês. Ela
como retificação da pessoa. desconsidera os ganhos que a
Compreender as críticas ajuda- fenomenologia representou para o
nos a esclarecer também os equívocos debate. Ignora igualmente que Sartre,
das interpretações dos adversários de ainda nos anos 30, criticava Husserl
Sartre. A conferência O existencialismo por defender o eu transcendental.
é um humanismo (1946), causou muitos Para Sartre, a consciência é um campo
estragos ao seu pensamento. Não transcendental impessoal, mas não a
porque suas teses sejam equivocadas, possuidora do ego, tampouco a
mas porque elas não foram produtora de eu transcendental. Para
devidamente explicitadas. Por ser Sartre, Husserl não se manteve fiel ao
uma conferência idealizada para o princípio da intencionalidade quando
público leigo, Sartre simplificou em fez uso do conceito de ego
demasia suas articulações conceituais. transcendental. Se fosse possível
Isso foi usado por seus adversários construir uma metáfora espacial, seria
para classificá-lo como um pensador admissível afirmar que a consciência
sem rigor e ingênuo. As críticas de circunscreve o ego, mas, jamais o
Heidegger a essa conferência contrário. A consciência não existe
reforçaram tais equívocos. Para porque cada pessoa tem um ego, ela
aqueles que comparam as teses dessa existe não para produzir o ego, mas
conferência com os escritos filosóficos para intencionar o mundo. A
sistematizados, fica evidente que as intencionalidade não é fruto do ego.
críticas desconhecem os fundamentos Ela é a essência da consciência. O ego
teóricos. É preciso, sobretudo, é objeto de reflexão para a consciência.
retornar aos textos, trabalho relegado Isso ocorre pelo simples fato de que a

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fenomenologia ensinou que é possível intencionalidade. Não é porque a


a existência de uma consciência pessoa tem um ego que ela é
irrefletida. Esse é o ponto inicial que consciente, ao contrário, a existência
deve ser relembrado contra tais espontânea dessa pessoa caracteriza-
críticas. Se a consciência pode ser se pelo ato intencional. O ego passa a
irrefletida ou reflexiva, isso significa ser um objeto, dentre outros, para a
que o inconsciente é uma tese que não consciência. Tal tese inválida críticas
se sustenta. Mas isso significa de filósofos que insistiram em
também que há ato intencional sem o apregoar a supervalorização da
a priori da atitude reflexiva. Se essa subjetividade e a eliminação da
explicitação se fizesse presente nas objetividade no pensamento de
críticas a Sartre, elas deixariam de Sartre. Contra as teses que defendiam
fazer sentido. A atitude irrefletida da a existência material de um ego
consciência dilui tanto o conceito de coisista, inspirados pela psicologia
inconsciente quanto a exclusividade associacionista ou naturalista, Sartre
da reflexão. Após esses esvazia a consciência de todo
esclarecimentos iniciais, retomemos conteúdo. Contra a orientação
as teses centrais. transcendental do ego, Sartre situa a
consciência como um dos polos da
relação com o mundo. Tal concepção,
1. A TRANSCENDÊNCIA DO visa abandonar a convicção de que
todas as atividades cogitantes são
EGO acompanhadas necessariamente pelo
Essa obra foi a primeira
ego, como se fossem frutos de sua
publicada por Sartre nos anos 30, ela
atividade. Sartre tenta demonstrar
foi contemporânea do romance A
que o ego é o resultado da atividade
Náusea (1938). As duas obras
reflexiva da consciência, ele se torna
guardam profundas relações teóricas
um objeto para consciência. Além
ligadas à noção de intencionalidade
disso, Sartre descreve o ego como
da consciência. As considerações
uma síntese de atos, qualidades e
finais da Transcendência sintetizam
estados. Ele insere dois termos
algumas intuições tipicamente
fundamentais nessa exposição: o Je e o
sartrianas. A consciência, um campo
Moi. O Je envolve as ações humanas
transcendental impessoal, revela-se
em sua relação com o mundo, o Moi
como a realidade fundamental de
constitui a perspectiva reflexiva
todo ser humano. Essa consciência,
dessas ações. É importante ressaltar,
contudo, estrutura-se pela
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A noção de ego na obra de Sartre


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contudo, que a condição ativa do ser há pensamento sem cérebro, mas que
humano representa também a todo pensamento é muito mais que
perspectiva “coagulante” que tal atividade cerebral. A consciência
condição envolve. A historicidade das envolve todo o ser humano. Ser
ações envolve tanto o aspecto humano, para Sartre, significa existir
transiente de sua realização quanto a na forma da consciência,
dimensão social dessas ações. espontaneidade que intenciona o
Exatamente porque todo ser humano mundo circundante. Esse ser é tanto
existe no mundo, o sentido de suas corpo quanto consciência, é possível
ações não é decifrado ou enunciado falar de consciência/corpo em Sartre.
somente por seu autor. Sartre Se a consciência não é um invólucro,
imprime à noção de ego um certo se os atos humanos são uma relação
caráter de papel social. É por isso que de mão dupla entre o autor e o
o ego envolve a objetividade da ação, mundo, tudo o que é humano ressoa
ele é a dimensão em-si da consciência. esse vai e vem. Assim, o ódio, o amor,
Mas ele não pertence somente ao seu as chamadas emoções, para Sartre,
suposto Senhor, ele é a objetividade perdem a sua condição de afecção.
da pessoa porque mundano. Elas não são coisas que contaminam o
Uma segunda consequência interior do ser humano como
muito relevante da teoria sartriana do doenças. As emoções são relações
ego, nessa elaboração primeva, é a que cada ser humano estabelece com
sua incipiente teoria das emoções. Da os outros, no mundo. As emoções se
mesma maneira que não posso dizer fazem e se desfazem ao sabor das
que tenho um ego, não posso dizer situações. Não sou covarde ou
que sou o dono de minhas emoções. corajoso, faço-me, construo minha
Se a consciência foi purificada de todo personalidade sendo aquilo que faço.
o conteúdo, se ela é um nada de Portanto, não tenho ego e não sou
conteúdo, se toda perspectiva coisista dono de minhas emoções. Assim, a
foi eliminada de sua definição, nada espontaneidade da consciência
pode haver na intencionalidade da revela-se como o modo de ser
consciência que seja a priori dado fundamental do homem. O ego lhe
como conteúdo. A consciência não dá uma certa consistência advinda
existe como um cofre, nem como um dos juízos sociais. Esse ego, contudo,
arquivo. Ela é um movimento, não é não é um caráter imutável, ele pode
coisa ou o resultado único de um ser recusado, contestado, o veremos
cérebro, embora não exista fora de um futuramente. O ego é um construto
corpo. Bergson já esclarecia que não pessoal e social.

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A terceira característica que não é somente a sua atividade


destacamos da Transcendência, é o cogitativa filosófica, como se o ser
aspecto programático de suas humano sempre fosse uma realização
palavras finais. Sartre diz: perfeita ou imperfeita do ideal
filosófico. Não vivemos o tempo todo
E a relação de interdependência tentando descobrir verdades
que essa [consciência absoluta] indubitáveis. Simplesmente vivemos.
estabelece entre o eu/moi e o Se tomamos tal vida como objeto de
mundo basta para que o eu/moi reflexão, tal o movimento é a
apareça como ‘em perigo’ perante o
posteriori. Não há o a priori da
mundo, porque o eu/moi
reflexão na filosofia sartriana. A
(indiretamente e por meio dos
estados) tira do mundo todo o seu filosofia concreta que ela defende
conteúdo. Não falta mais nada tenta efetivar a verdade da máxima “a
para fundar filosoficamente uma existência precede a essência”, como
moral e uma política muito bem explicitou Heidegger em
absolutamente positivas (SARTRE, sua carta sobre o humanismo, num
2003, p. 87)207 sentido bem distinto daquele dado
pelo autor de Sein und Zeit (1927).
Tais afirmações deveriam servir Para Sartre, a existência é concretude
de respostas às críticas dos histórica, não a forma da interpelação
adversários de Sartre. Se a do Ser.
consciência é absoluta, isso se deve ao A moral e a política, que para
fato de que ela é um movimento Sartre são inseparáveis, somente
incessante do intencionar o mundo. podem ser fundamentadas na relação
Isso não significa que o ser humano é intrínseca e correlacional entre o
sempre reflexivo. A intencionalidade, homem e o mundo. Essa relação deve
como sabemos, é a essência da ser constante e não pode recair
consciência. Mas essa unicamente sobre um dos polos. Não
intencionalidade se dá sob dois é o homem que cria o mundo, não é o
modos fundamentais, a vivência e a mundo que determina absolutamente
reflexão. Na verdade, vivência é cada ser humano. Somos aquilo que
muito mais “comum” que atividade fazemos daquilo que fazem de nós. Esse
reflexiva na vida concreta de cada ser “vai e vem”, esse relacionamento
humano. O absoluto da consciência recíproco, não pode ser abandonado
ou esquecido, senão, recaímos nos
207Todas as traduções das obras de dogmatismos e nos determinismos.
Sartre são de nossa autoria.
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A noção de ego na obra de Sartre


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Tais críticas valerão também quando seres iguais a ele. Essa noção
Sartre avaliar as consequências do denomina-se ser-para-outrem. Essa
freudismo e do materialismo noção é flagrantemente negligenciada
mecanicista. Pois, nos dois casos, o pelos críticos de Sartre. O alegado
homem passa a ser fruto de forças dualismo não se sustenta diante da
internas ou externas determinantes e teoria sartriana que situa a necessária
impessoais. Como se estivéssemos no correlação entre o para-si, o em-si e o
plano da física newtoniana. O homem ser-para-outrem. Na verdade, Sartre
passa a ser agido, eliminando, assim, a considera essa última noção uma
sua espontaneidade. Tais estrutura do ser para-si, mas ela
consequências explicitadas por Sartre guarda características próprias,
rebatem as interpretações caricaturais dentre as quais, a necessária assunção
feitas por críticos ao longo das da existência fática de outrem.
últimas décadas. Retomando a noção existencial de
situação, Sartre pensa a subjetividade
O Ser e o nada humana a partir da noção de ipseidade.
A discussão acerca do Tão noção somente existe em
conceito de ego, abordado a longo da correlação com a situação concreta
história da filosofia, ganha destaque mundana. Na Segunda parte de O
na obra O Ser e o nada, tendo como Ser e o nada, Capítulo Primeiro, Seção
objetivo avançar e esclarecer alguns V, intitulada “O eu/moi e o circuito
pontos apresentados na de ipseidade”, Sartre afirma
Transcendência. Se objetivo, na obra categoricamente que “o ego não
anterior, era evitar o solipsismo, essa pertence ao domínio do para si”
intenção é aprimorada com a teoria (SARTRE, 1943, p. 142).
sartriana da pluralidade das Tal tese desencadeia várias
consciências. A elaboração de uma consequências. Primeira, o ego unifica
ontologia que distingue o ser e o as Erlebnisse, as vivências, e pertence
homem, em outras palavras, o modo ao em-si, ou seja, o ego aparece como
de ser distinto em cada um desses um existente do mundo, não como da
seres, solicita a abordagem da relação consciência. Segunda, é a consciência,
entre dois seres humanos, entre dois em sua ipseidade fundamental, que
seres que vivem ao modo do ser para- permite a aparição do ego como
si. Sartre erige uma noção para fenômeno transcendente dessa
descrever o modo de ser do para-si ipseidade.
que vive em sociedade, não só Nas palavras de Sartre,
envolto por coisas, mas também por

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Assim, desde quando ela surge, a ser visto por outra pessoa. A
consciência, pelo puro movimento alienação da consciência é o tema
nadificante da reflexão, se faz central aqui porque ela é vivida como
pessoal: porque aquilo que confere a interferência de outrem em meu ser,
um ser a existência pessoal, não é a
em minha liberdade. Ser visto e
posse de um ego - que é somente o
testemunhado como autor de ato
signo da personalidade - mas é o
fato de existir para si com a reprovável é ser atingido no âmago
presença a si (SARTRE, 1943, p. do próprio ser, é ser posto “em
143). perigo”.
Tal conclusão nos leva a
Com esse esclarecimento, fica compreender que a teoria da
evidente que a ipseidade é o alienação da consciência é a prova
movimento reflexivo que toma como existencial da presença de outrem.
objeto a presença a si. Isto é: “sem Não como um ser que eu instituo,
mundo, nada de ipseidade, nada de mas como ser que me testemunha,
pessoa; sem ipseidade, sem a pessoa, interferindo em minha liberdade,
nada de mundo”, (SARTRE, 1943, p. adentrando meu ser. A existência de
144), porque a palavra mundo outrem ganha estatuto de evidência
somente se faz com a presença do ser por ser constatada em uma situação
humano, sem ele, aquilo que passível de ser comprovada por
chamamos mundo seria a coleção de qualquer pessoa. Essa prova não
objetos em um espaço. A estrutura do exige demonstrações rebuscadas.
circuito de ipseidade é ilustrada por Constato a presença de outrem
Sartre com a descrição de uma pessoa concretamente por ser visado de fora,
que sente vergonha de outra por ter por um ser que não sou e que tem
sido flagrada praticando uma liberdade própria. Assim, completa-se
conduta reprovável. A vivência da a crítica do solipsismo. Um ser
vergonha ressalta a experiência de ser esvaziado de intimidade solipsista
visto. O exemplo dado por Sartre é o constata a própria existência ao ser
de ver pelo buraco da fechadura uma visado e manipulado por outra
cena íntima que se passa em um pessoa. Existo para outrem mesmo
quarto de hotel. Nela contra minha vontade.
compreendemos a passagem do je (eu Essa teoria da pluralidade das
irrefletido) ao moi (eu reflexivo). A consciências não tem nada de
presença alienante do para-si surge idealista, subjetivista, dualista ou
nessa experiência cotidiana de ver e metafísica. Ela está fundada na

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facticidade da existência. Essa Filosofia da UNESCO (Journée de la


consciência é uma totalidade philosophie à l’ UNESCO), em 21 de
movente, não fechada ou totalizada e, novembro de 2002 e publicada sob a
nesse sentido, distinta da filosofia direção de Moufida Goucha, Paris,
hegeliana. Essa facticidade do mundo UNESCO (Organisation des Nations
concreto, como relação experienciável Unies pour léducation, la science et la
e sempre comprovada, é o culture), em 2004. Ele sustenta que a
fundamento existencial de toda teoria do reconhecimento de Sartre,
pessoa. baseada na experiência da vergonha,
era somente negativa. Ela não teria o
aspecto positivo da integração e da
2. CADERNOS PARA UMA superação do conflito. Ricœur
apresenta, então, como teoria positiva
MORAL do reconhecimento, a filosofia de
Se as duas obras anteriores são
Marcel Mauss, consagrada na obra
desconhecidas pelo público
sobre a dádiva. É essa tese que
especializado, dado que a maioria das
desejamos analisar usando os
críticas filosóficas sequer chegam a
Cadernos para uma moral, escritos por
comentar textos literais de Sartre,
Sartre nos anos 40.
reproduzindo, via de regra, opiniões
Curiosamente, nos Cadernos,
descoladas da teoria, os Cadernos são
Sartre analisa longamente a obra
praticamente ignorados. Elaborados
sobre a dádiva de Marcel Mauss.
para serem desenvolvidos e
Essa análise aborda a amplitude e a
publicados ainda nos anos 40, foram
validade do fenômeno das trocas
abandonados posteriormente por
totais, exemplificado pelo ritual do
Sartre. Segundo o próprio
Potlatch. Interessa a Sartre avaliar a
existencialista, suas teses ainda não
ambiguidade -conceito fundamental do
haviam atingido o grau de concretude
fenômeno da dádiva – com o intuito
necessária para a exposição de uma
de discutir valores morais. Criticando
moral existencialista.
o utilitarismo e o contratualismo,
Um exemplo lapidar dessa
Sartre menciona a filosofia de Mauss
atitude intelectual que critica Sartre
como uma possível forma de
sem ao menos conhecer os seus
constituição do fenômeno da
fundamentos filosóficos, é a de
Solidariedade social.
Ricœur, na conferência - A luta por Essa análise da dádiva nos
reconhecimento e a economia do Cadernos desautoriza, em parte, a
dom - apresentada na Jornada de crítica de Ricœur a Sartre. Mas, esse

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não é o tema que desejamos discutir. moral, possibilitam uma interpretação


Interessa-nos a teoria positiva do distinta. Essas obras tentam esboçar a
reconhecimento. A questão do moral prometida nas últimas páginas
reconhecimento surge na obra O ser e O Ser e o nada. Ocorre que essa moral
o nada a partir da análise da figura da foi classificada pelo próprio Sartre
relação entre o senhor escravo. É como Idealista, os Cadernos foram
evidente que essa relação ressalta o publicados postumamente. A moral
conflito entre as partes. A intenção da sartriana jamais foi elaborada
análise de Sartre, entretanto, visa definitivamente. Parece, então, que a
elucidar aquilo que ele chama de relação intersubjetiva é, unicamente, a
pluralidade das consciências. Pensada do conflito.
em um plano mais amplo, a ontologia Estudo mais aprofundado dos
de O Ser e o nada estabelece que a Cadernos, entretanto, revela a intenção
relação intersubjetiva frequentemente de Sartre de ultrapassar essa
é determinada pela luta de vida e existência alienada. Esses cadernos
morte entre as consciências. A peça esboçaram algumas ideias
teatral Entre quatro paredes (1944) fundamentais acerca de uma proposta
retrata figurativamente essa teoria. moral em bases existencialistas. A
Sua tese final tornou-se um ícone do partir da página 430 dos Cadernos é
existencialismo: “o inferno são os possível notar que Sartre retoma a
outros”. A pergunta que se coloca é se discussão sobre o tema do amor e a
essa conclusão encerra o debate clássica ambiguidade do
acerca da Moral e da teoria sartriana sadismo/masoquismo. O próprio
da intersubjetividade. Perguntamos: Sartre afirma, nessa passagem, que
teria Sartre constatado, ele não chegou a tratar na obra O Ser e
inevitavelmente, que os seres o nada, do problema do
humanos somente podem viver reconhecimento das liberdades, ou
tentando anular a liberdade alheia? seja, de como uma pessoa poderia
Resumindo, a existência humana seria reconhecer a liberdade de outrem sem
inevitavelmente alienada e alienante? tentar aniquilá-la e sem se sentir
Seria a luta pelo reconhecimento a invadido. Nesse momento, ele
anulação da liberdade do outro para- aproxima a questão do amor da teoria
si? da dádiva, tendo como exemplo o
Estudos de obras Potlatch. Essas experiências
posteriores, como O existencialismo é exemplificariam a ambiguidade
humanismo e os Cadernos para uma fundamental a toda moral

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estabelecida entre o desafio e a amizade. tema interessante, a conversão, palavra


Característica central do Potlatch. clássica do pensamento cristão. A
Em seguida, Sartre retoma a conversão remete ao conceito de
teoria do ego situando-a no âmbito da autenticidade, debatido longamente
liberdade. O ego, enquanto, em-si, por Sartre. Para entender essa nova
representaria o papel que devo questão, Sartre inicia afirmando que
assumir ou recusar perante outrem. outra pessoa “cola em nós uma
Em suma, o papel alienante que o etiqueta”, que interiorizamos. Essa
outro exerce sobre minha pessoa objetivação pode ser de cunho
poderia ser concebido de forma psíquico ou aparecer na forma do em-
distinta se vivêssemos em uma si-para-si.
sociedade na qual as classes sociais Para entender melhor tais
não fossem organizadas na forma do asserções, devemos relembrar que
conflito. É nesse momento que ele uma das teses centrais que Sartre
menciona o exemplo do amor, pois tenta esclarecer desde o romance A
ele é um projeto que cada pessoa Náusea é a da contingência da
constrói ao longo de sua existência. O existência. Tal tese parte do princípio
amor que não é possessivo pois confia de que o ser humano não é
na liberdade do outro para-si. Da absolutamente nenhuma de suas
mesma maneira, o ego não se condutas isoladamente. O autodidata
constitui como um ser transcendente não é inteligente ou pederasta,
imposto pelo outro, sendo, ao Roquentin não é inseguro ou criativo.
contrário, o âmbito da absoluta A tese da contingência estabelece que
Liberdade. Usando a imagem da o ser não é, ele se faz. Essa é uma das
magia, Sartre afirma que o ego não principais contribuições da Ontologia
pode existir como um ser escurecido sartriana ao pensamento filosófico. O
pelo espírito da coisidade, dado que a ser humano não pode ser pensado a
consciência não pode ser o reflexo da partir da ontologia do ser em-si
vontade alheia. É nesse momento que somente, enquanto ser que é aquilo
ele critica a noção freudiana de que é e nada mais, ele é um ser para-
inconsciente, porque ela seria a si, ou seja, seu modo de ser é o fazer-se.
concretização do outro que se impõe a Nesse sentido, ser autêntico é renunciar
cada um de nós. Desejo que tem a ser uma coisa estática. Ser um projeto
objeto mas que não tem sujeito, ação é fazer algo e não ser algo. Um
sem autor. projeto somente pode ser pensado em
O momento seguinte da situação concreta, sempre podendo
exposição dos Cadernos aborda um ser modificado. Se o ser humano é

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projeto e é fundamentalmente recusa se dá como coisa, mas como


de ser, ele não é nada, ele é o que não empreendimento situado. Existir
é, ele é um lançar-se em direção a autenticamente é viver um projeto
seus projetos, esse lançar-se aberto, situar-se no plano da
caracteriza suas ações. Existir é fazer- perspectiva. O para-si não é a soma
se, tese repetida em O Existencialismo de suas afecções, ele é o seu ser
é um humanismo. Essa condição colocado em questão (Erlebnis). Um
empreendedora serve também para conjunto movente que perpetuamente
decifrar os sentimentos, as emoções e se coloca em questão. Nesse sentido,
as crenças. A existência humana ser reflexivo significa querer a
autêntica sempre mantém a tensão existência e não a sua definição
entre o projetar e o fazer. Esse absoluta. A Autonomia radical é o
empreendimento é sempre uma Projeto autêntico. Se a reflexão pura
possibilidade. Postular uma amizade conduz à autenticidade, ela tem um
é construí-la cotidianamente através aspecto negativo e um positivo:
de condutas. Nunca posso dizer que negativo porque é a recusa de
sou amigo de alguém ou não, nunca unificação, positivo porque se dá
posso ter total certeza acerca dessa como síntese, uma espécie de acordo
relação. Esse projeto é uma escolha que estabeleço comigo. Existir é
intencional de fazer, fato que vale tomar-se como tema, como questão.
também para os sentimentos. Nesse sentido, a reflexão é um
A perspectiva da psique, nessa projeto. A existência humana
existência autêntica, se dissolve autêntica é renúncia de ser causa de si
enquanto em-si. De um lado, é pura ou em-si-para-si. Se a existência
vivência, de outro, é aquilo que precede a essência, ela se constitui a
assumo perante o outro. Meus posteriori, como questão. Existo
sentimentos e minhas emoções não respondendo à questão, decidindo
são afecções, não são coisas que me continuar. A existência autêntica
afetam, são empreendimentos. Raiva expressa, concomitantemente,
e amor são juramentos. A teoria autonomia e contingência. Ela aceita
sartriana das emoções situa no plano assumir o seu modo de ser
da Liberdade essas vivências, diaspórico. Ela é retomada de si na
classificando-as como “sentimentos contingência.
problemáticos”. Para Sartre, amar é Em resumo: o existente é
querer amar. O amor autêntico é projeto e a reflexão é o projeto de
aquele que mantém a tensão, que não assumir esse projeto. A conversão,

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A noção de ego na obra de Sartre


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portanto, é renúncia a categoria de Retomando as palavras finais de


apropriação, ao para-si que quer ser A transcendência do ego, Sartre
coisa, capturando-a. Ser não é ter, ser postulou, desde os anos 30, a
é fazer-se. elaboração de uma filosofia que
A existência autêntica solicita a tentava conciliar a moral e a política,
relação solidária entre as pessoas. A pensando a correlação necessária
solidariedade supera a busca de ser entre a interioridade e a exterioridade
que se esgota na apropriação. A do ser humano. Teoria sofreu
solidariedade, surge, assim, como a face alterações ao longo do tempo. Se
positiva do reconhecimento. Valor considerarmos as obras posteriores à
central da moral existencialista. primeira redação dos Cadernos, a
Talvez, tenha sido essa a lição que grande alteração sentida será a
Sartre aprendeu lendo a obra de inclusão do Marxismo e
Marcel Mauss. Ricœur poderia inserir posteriormente do Estruturalismo
Sartre entre os defensores de uma nessa teoria concreta da relação entre
teoria positiva do reconhecimento, se o homem e a sociedade.
tivesse lido os Cadernos. Existencialismo, Fenomenologia,
Marxismo, Estruturalismo, Psicologia
social, Antropologia, Psicanálise,
CONCLUSÕES Gestalt, e tantas áreas das ciências
Ao final, é possível constatar humanas, foram sintetizadas na obra
que a teoria sartriana do ego não é a publicada por Sartre ao longo do
simples repetição do cartesianismo, século 20. Se quiséssemos encontrar
não é uma filosofia da subjetividade um tema aglutinador de tantos temas
hipostasiada, não é uma filosofia que correlatos, poderíamos intitulá-lo
afirma o sujeito sem o contraponto da “questões de método”.
objetividade, não é uma filosofia Evidentemente, a formulação
idealista da consciência moral, não é a sartriana recebeu exatamente esse
defesa do dualismo irreconciliável nome. Esse ensaio, que foi usado
entre em-si e para-si, não é a defesa posteriormente como prefácio da
da teoria negativa do reconhecimento, Crítica da razão dialética (1960),
não é uma teoria da subjetividade sintetiza o percurso teórico iniciado
desconectada da sociabilidade. Enfim, em A transcendência do ego. Fica
é uma filosofia muito distinta daquela evidente – no momento em que Sartre
que seus opositores tentam esboçar faz um breve balanço histórico
em caricaturas mal elaboradas. daquilo que ele chamava de filosofia
concreta – em um dos capítulos de

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Questões de método, que algumas instigante quanto os seus desvios


intenções haviam sido forjadas desde conceituais. Todas essas propostas de
a publicação de A náusea. A mais constituição de um método para as
originária delas, a noção de ciências humanas equivocaram-se
contingência, influenciou uma das quando tentaram reproduzir a
teses mais importantes de seu inspiração científica positivista do
existencialismo, a formulação da tese século 19. A necessidade de
da espontaneidade da consciência. encontrar uma causa material única
Essa teoria tem como base dois para explicação de fenômenos sociais
princípios elementares: a liberdade e contaminou a metodologia dessas
a ação. Tais princípios jamais foram ciências. Ao tentar substituir a
denegados ao longo de toda a história filosofia pelas ciências naturais, as
do pensamento sartriano. Eles chamadas “ciências do espírito”
forjaram tanto as teses originais foram transformadas em arremedos
quanto as apropriações das referidas de discursos científicos. Literalmente,
teorias elencadas acima. A temática o primeiro a morrer foi o homem. Ele
sartriana pode ser pensada, portanto, deixou de ser objeto das chamadas
a partir da questão metodológica das ciências humanas. Sob muitos
ciências humanas. Nesse contexto, aspectos, tais ciências forjaram o seu
ação e liberdade devem fazer parte objeto ao invés de descrevê-lo. A
dessa fundamentação metodológica. segunda metade do século 20 viu
É nesse sentido que surge a nascer uma proposta de ciências
Antropologia sartriana, tentativa de humanas que inverteu a relação entre
sintetizar Marxismo e Estruturalismo. ciência e objeto. A ciência não era
Tal síntese, contudo, também é uma mais a descrição, análise e
crítica a aspectos centrais dessas compreensão dos fenômenos por ela
teorias. A degradação do Marxismo estudados. Ao contrário, o objeto
em dialética da natureza e a surgia do discurso científico. Em
transformação do Estruturalismo na alguns casos, o objeto se tornou o
filosofia da morte do homem discurso. O discurso ocupou o lugar
converteram intuições do objeto. Foi nesse contexto que a
profundamente profícuas em dogmas célebre frase que afirmava ser o
injustificáveis. Podemos acrescentar a homem uma invenção recente e
psicanálise freudiana a esse conjunto fadada ao desaparecimento, como
de teorias fundamentais do século 20, desenhos na areia da praia, encontrou
tanto naquilo que ela tem de sua formulação. Sob um modo

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A noção de ego na obra de Sartre


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distinto do de Sartre, a literatura entre a ação e liberdade. Se teorias


passou a ocupar o lugar do discurso como o descolonialismo conservam
científico, sendo a linguagem e até a algum sentido, é porque a libertação
linguística as novas ferramentas ainda se faz exigência em nosso
criadoras de um discurso chamado tempo. Essa atualidade necessita
homem. A filosofia transmutou-se em somente ser evidenciada a partir de
retórica. As ciências humanas uma leitura crítica das interpretações
passaram a ser uma arqueologia das débeis acerca do existencialismo
estruturas. Vimos nascer na sartriano.
Psicologia, no Marxismo, na
Psicanálise, na História, na Sociologia
e em todos os campos dos saberes REFERÊNCIAS
humanos a voz do inconsciente, a ADRIÁN ESCUDERO, J. Guía de lectura de
ciência do inconsciente. O homem Ser y tiempo de Martin Heidegger (vol. 1).
morria para deixar nascer o Barcelona: Herder, 2015.
inconsciente estruturado como BERGSON, H. Les deux sources de la morale
linguagem. et de la religion. Paris: Félix Alcan, 1932.
HEIDEGGER, M. Sein und Zeit. Tübingen:
Contra a transformação das Max Niemeyer Verlag, 1967.
ciências humanas na versão adaptada HUSSERL, E. Idéias para uma
do método das ciências naturais, fenomenologia pura e para uma filosofia
Sartre defendeu a atitude fenomenológica. São Paulo: Ideias & Letras,
compreensiva. Retomando a longa 2006.
tradição iniciada por Dilthey, Sartre, MAUSS, M. “Essai sur le don”. Paris, Anée
Sociologique, 1923-1924,
como dissemos, recusou a filosofia
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de
dos conceitos e revalorizou, a noção, la Perception. Paris: Gallimard, 1945.
o ensaio, o esboço, a descrição das RICŒUR, P. La lutte pour la reconnaissance
perspectivas do fenômeno. et l’économie du don. Paris: Unesco, 2004.
Concluindo, a análise da noção SARTRE, J.-P. Cahiers pour une morale,
sartriana de ego revela que o estudo Paris: Gallimard,1983.
SARTRE, J.-P. Critique de la raison
atento de sua filosofia resguarda
dialectique. Paris: Gallimard, 1960.
ainda certa atualidade centrada em SARTRE, J.-P. Huis clos. Paris: Gallimard,
noções como: correlação entre 1947.
pessoalidade e sociabilidade; entre SARTRE, J.-P. L’être et le néant. Paris:
solidariedade e moralidade ou na Gallimard, 1943.
interdependência entre interioridade SARTRE, J.-P. L’Existentialisme est um
e exterioridade. A Antropologia humanisme. Paris: Nagel, 1946.
sartriana repercute nos dias atuais a
necessidade de afirmar a interconexão

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SARTRE, J.-P. La nausée. Paris: Gallimard, Submetido: 16 de julho 2017


1938.
SARTRE, J.-P. La transcendance de l’ego. Aceito: 25 de julho 2017
Paris: Gallimard, 1936.

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