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Airbnb, gentrificação turística e injustiça espacial

Luís Mendes 1

É inegável que a cidade está a viver um pico de projeção internacional enquanto destino
turístico, ao mesmo tempo que o seu mercado de habitação adquire formatos de ativo
financeiro e atrai dinâmicas globais de procura e de investimento estrangeiro. Este
processo foi alavancado por programas governamentais e pela viragem neoliberal na
política urbana, que fomentaram a atração de uma elite transnacional e favoreceram a
financeirização do imobiliário e a reestruturação urbana na capital portuguesa. Assiste-se
agora a uma gentrificação turística, mediante a transformação dos bairros populares e
históricos da cidade centro em locais de consumo e turismo, pela expansão da função de
recreação, lazer ou alojamento turístico / arrendamento de curta duração que começa a
substituir gradualmente as funções tradicionais da habitação para uso permanente,
arrendamento a longo prazo e o comércio local tradicional de proximidade, agravando
tendências de desalojamento e segregação residencial. Os bairros são esvaziados da
população que os ocupou durante décadas ou impede-se a população de baixo estatuto
socio-económico de aceder à habitação nessas áreas, colocando em risco a
sustentabilidade social do centro histórico, à medida que parecem perder o tecido social e
económico que lhe conferia identidade, memória, enfim, a dita “autenticidade” de que se
fala tanto e não se chega a um consenso sobre o que é, mas que, justamente, constitui
recurso turístico.

Num estudo desenvolvido em Novembro de 2016 pela Nova School of Business and
Economics e pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa para a
Associação de Hotelaria de Portugal, conclui-se que, do ponto de vista económico, o
aumento da procura de imóveis para AL gera uma pressão para o aumento dos preços
do imobiliário, caso não seja acompanhado por um aumento da oferta. Tem ainda um
efeito de reafectação de propriedades do mercado do arrendamento tradicional para o
mercado de alojamento local. O modelo econométrico gerado apontou para um aumento
dos preços das rendas no valor de 13,2% e de 30,5% nos preços de venda de imóveis em
áreas onde o AL detêm uma percentagem maior de fogos, como é o caso das freguesias

1
Geógrafo, Centro de Estudos Geográficos e Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da
Universidade de Lisboa, email: luis.mendes@campus.ul.pt
da Misericórdia e Santa Maria Maior, onde o AL registado na plataforma Airbnb atinge
em média os 20% (1/5) do total dos alojamentos clássicos existentes. Este número foi
atualizado, em 2018, para 35%, de acordo com o estudo do turismo na cidade (CML,
2018). O nosso cálculo da correlação entre a evolução do índice de preços por m2 da
habitação no centro histórico de Lisboa (2008 a 2018) e a evolução do número absoluto
de estabelecimentos de AL na cidade no mesmo período é de 0,926, muito significativa,
portanto.

Ainda assim, e de acordo com números fornecidos pela Associação do Alojamento


Local em Portugal (ALEP) indicam que 60% dos imóveis estavam vagos e que 64% dos
apartamentos estavam em muito mau estado de conservação, antes de serem convertidos
em AL. O alojamento turístico pode ter efeitos positivos na regeneração dos centros
urbanos, na requalificação do património, na diversificação social, no complemento da
receita dos moradores, na criação de emprego e na recuperação económica, mas a sua
oferta excessiva reduz a oferta para arrendar a quem quer viver na cidade. O certo é que,
atualmente, muitos investidores compram prédios inteiros (muitos para reabilitar) para
os arrendar a turistas, principalmente nos centros de Lisboa e Porto.

Só na freguesia de Santa Maria Maior, no centro de Lisboa, concentra-se o maior


número de AL em Lisboa, com 3 695 estabelecimentos, ou seja, mais de 25% do total
de unidades existentes legalmente em toda a cidade e cerca de 9% da oferta nacional.
No caso do bairro de Alfama, especificamente, o número de AL chega a atingir 55%
dos alojamentos clássicos. Nestes bairros históricos, é frequente haver mais turistas a
dormir do que moradores. A densidade geográfica do AL é alta, chegando a haver mais
de 2.500 alojamentos locais por cada quilómetro quadrado. A sua proliferação maciça e
desmesurada tem alimentado distorções e desequilíbrios no mercado de habitação para
aquisição de casa própria e na oferta de casas para arrendamento permanente ou de
longa duração, pondo em risco o direito à habitação na cidade centro. O problema não
está apenas nas rendas, mas sobretudo na inexistência de casas disponíveis para
arrendar. Segundo a Associação dos Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliária
de Portugal (APEMIP), o número de casas para arrendamento de longa duração caiu em
30% nos últimos cinco anos, afetando sobretudo duas cidades: Porto e, claro, Lisboa,
que viram a sua oferta de aluguer de casas habitacionais reduzida em 85 e 75%,
respetivamente. Todavia, em alguns bairros mais centrais, a diminuição chega a
ultrapassar os 90% nos últimos três anos.
As populações residentes destas áreas, confrontadas com estas significativas subidas dos
preços da habitação e do arrendamento, cujo rendimento não permite comportar, são
pressionadas a sair dos bairros onde sempre moraram, e veem-se colocadas numa
situação de atentado ao seu direito à habitação e direito ao lugar. Enquanto o
desalojamento direto se refere ao momento de despejo/deslocamento propriamente dito,
por subida rápida das rendas e dos valores imobiliários, que os atuais residentes não
conseguem mais suportar, o que aconteceu tanto em Lisboa como no Porto foi que o
grosso do processo foi de desalojamento indireto, que é um processo de longo prazo que
resulta de um conjunto de pressões que torna progressivamente difícil para moradores
de baixo rendimento permanecer mais tempo no bairro ou outros que queiram viver e
frequentar o bairro o possam fazer. Na capital, desde 2013, por exemplo, a freguesia de
Santa Maria Maior perdeu quase dois mil habitantes. Isto dá mais de um habitante por
dia, nos 4 anos que vão de 2013 a 2017. As freguesias do centro histórico de Lisboa
perderam 15% dos seus eleitores em cinco anos, calcula o "Estudo Urbanístico do
Turismo em Lisboa" feito pela CML (2018). É o caso das freguesias de Santa Maria
Maior e da Misericórdia – que integram os bairros de Alfama, Mouraria Castelo, Baixa,
Chiado, Bairro Alto e Madragoa – e que viram o número de eleitores cair 14,6% entre
2013 e 2017.

O despovoamento não é um fenómeno recente no centro histórico de Lisboa, sendo que


os registos estatísticos do INE indicam que esta sangria demográfica se iniciou nos anos
40 do século XX, onde residiam 160 mil habitantes, residem agora 40 mil. Este
processo durante o século passado relacionou-se sobretudo com a expansão da
suburbanização e consequente formação da Área Metropolitana de Lisboa. O último
recenseamento populacional de 2011 não capta a perda populacional nos últimos anos
agravada pelos despejos da nova lei das rendas de 2012 nem o impacto do AL no
mercado de habitação local. O número de desalojamentos recentes no centro histórico
de Lisboa é desconhecido, até pela falta de estudos diagnóstico que comprovem o que
me parece ser uma evidência clara, mas invisível aos olhos da opinião pública e
sociedade civil. Todavia, várias associações de moradores e de defesa do direito à
habitação falam no conhecimento de centenas de casos nos últimos anos, sobretudo nas
freguesias centrais de Santa Maria Maior, Misericórdia e São Vicente, o que num
universo de residentes de alguns milhares é bastante significativo, tratando-se, ainda
para mais, de populações vulneráveis e em risco social. Perante um cenário de rendas
cada vez mais altas, aliado ao facto de os salários serem baixos para a maioria dos
portugueses, o número de despejos disparou. De acordo com os últimos dados do Banco
Nacional de Arrendamento (BNA), os despejos duplicaram desde 2013 e, em média, são
despejadas por dia cerca de 5,5 famílias, em todo o país. Segundo os dados do
Ministério da Justiça, o número de pessoas despejadas em 2016 foi 91,7% superior ao
número contabilizado três anos antes, o que pode sugerir evidência das dinâmicas
descritas.

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