Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SALVADOR
2008
2
JURACY MARQUES
SALVADOR
2008
3
TERMO DE APROVAÇÃO
JURACY MARQUES
AGRADECIMENTOS
À Universidade do Estado da Bahia (UNEB), da qual fui aluno e agora sou Professor,
por todo o incentivo e apoio.
Ao Frei Luiz, por seu gesto ecológico, espiritual e político, que de uma forma
bastante estranha, me ensinou a intensidade da ecologia profunda.
7
Aos meus alunos e alunas, pelos quais também me movo nessa “fome
epistemológica”, uma estimulante e perigosa armadilha da alma. Entretanto, é nessa
esperança de poder compartilhar “o isso” que está nos centros acadêmicos, que me
arrisquei nessa lama semântica que é esta tese.
Aos meus Amigos/as: Felipe, Joelma, Renata, Marcelo, Josilda, Edílson, Roseane,
Dorival, Dilma, Valda, Maurício, Fátima, Antão, Francisco, Ilza, Albertina, Ricardo,
Clécio, Edmar, Duda, Jailson, Zezinho, Francisco, Aldo, Morato, João, Nalvinha,
Reginaldo, Cláudias, Altamir, Hermano, Célia, Dalma, Luiz Carlos...
A meu analista Reinaldo Pamponet, pela forma ética e profunda com a qual escutou
o som dos meus silêncios em dias tão difíceis da minha vida/alma. E à Caroline por
ter mostrado-me a percepção de Jung sobre as tradições das almas, sobre o
precioso do primitivo.
À Cristina Rodrigues, pessoa com a qual dividi momentos muito especiais da minha
vida.
À minha Família, por ser este tesouro da minha alma e dos meus afetos. Minha
gratidão às nossas ligações biológicas e espirituais, particularmente aos meus pais,
João Ribeiro e Maria Marques (in memoriam).
8
RESUMO
RESUMÉ
ABSTRACT
There is an empty chapter on the history and identity of indigenous groups of the São
Francisco, today around 32 groups, distributed in over 38 territories. The village of
the archaic Franciscan Valley, according to data from archaeological research
(VERGNE, 2004), began at least nine thousand years ago. However, among the
early history of human groups of that region, there is an abyss of ignorance. Part of
what we know is caused by the cultural material (lithic artifacts, ceramics, organic -
skeletons, decorations, remains of fauna and flora -, paintings and rock carvings
etc.), raised in several rescues made by national and international researchers /
MARTIN , 1996; ETCHEVARNE, 2002; PROUS, 1992; GUIDON, 2004; VERGNE,
2004; BELTRÃO, 2004; FERNANDES, 2005; KESTERING, 2007), especially in
areas flooded by large dams. Even the information raised is not sufficient to resolve
the impasse regarding the historical continuity / discontinuity between the symbolic
and cultural groups and indigenous peoples from "remnants" of the Old Chico. This
multidisciplinary research was taken to examine how indigenous people of the São
Francisco, particularly the People Tuxá of Rodelas, the case study of theory, believes
the material culture raised in the rescue of archaeological dams (Sobradinho,
Itaparica and Xingo) and the incorporation identity contemporary process. The results
allow us to infer that these groups not only recognize this material culture as
belonging to their ancestors, but also incorporate it in their processes of
contemporary collective identities, in a process of election codes of symbolic and
traditional / gifts, which they consider relevant. Despite the important contribution of
archaeological rescue, it appears that a significant memory of the Brazilian people
that was lost beneath the waters by dam Hydroelectric Plants from the High to Low
Sao Francisco. Daily we also noticed a blatant disregard for historical and
archaeological heritage of the people of the Sao Francisco, which makes it
imperative for urgent mobilization to preserve the little that remains of the riverside
memory today complicated tied up to the claims of repatriation by indigenous groups
"remnants",resistant.
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS ...............................................................................................................................5
RESUMO .............................................................................................................................................9
RESUMÉ ...........................................................................................................................................10
ABSTRACT .......................................................................................................................................... 11
APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................... 13
BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................................355
ANEXOS .........................................................................................................................................362
13
APRESENTAÇÃO
Parte do que sabemos sobre esses grupos que viveram na Bacia do São Francisco,
há milhares de anos atrás, é a partir da cultura material (peças líticas, cerâmicas,
esqueletos, restos de fauna e flora, pinturas e gravuras rupestres, adornos, etc)
levantada da “nascente” até a sua “foz”, sobretudo, a partir dos projetos de
salvamento arqueológicos decorrentes das construções de grandes barragens e
outros empreendimentos, realizados em toda a Bacia.
Uma pergunta suscitada a partir dos estudos desses grupos pré-históricos do São
Francisco, que intriga alguns pesquisadores e pesquisadoras, é se existe alguma
1
REVISTA USP, São Paulo, n. 44, p. 112-141, dezembro/fevereiro 1999-2000.
14
Considerando que o São Francisco é o rio nacional com a maior cascata de grandes
barragens do Brasil, durante os anos de 2004 a 2005, coordenei uma pesquisa, pela
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), sobre os impactos socioambientais
ocasionados pelas grandes barragens em toda a Bacia. Parte desses estudos
constam nas publicações Ecologias de Homens e Mulheres do Semi-Árido
(MARQUES, 2005) e Ecologias do São Francisco (MARQUES, 2006).
Foi porém, uma carta endereçada à Universidade do Estado da Bahia (UNEB), feita
pelo Povo Tuxá de Rodelas, solicitando o repatriamento das peças encontradas no
salvamento arqueológico de Itaparica, que, de alguma forma, motivou a elaboração
dessa tese. Naquele momento, inquietou-me as perguntas: que sentido tem a cultura
material pré-colonial para os grupos indígenas “remanescentes” do São Francisco?
Como eles a percebem e incorporam nos seus processos identitários e territoriais? É
importante ressaltar as limitações no campo das ciências humanas em falar de uma
“continuidade histórico-cultural” desses grupos originários com os povos indígenas
contemporâneos. Portanto, a demanda dos Tuxá, sinalizava para uma “continuidade
de natureza simbólica”, estruturada numa noção de descontinuidade (FOUCAULT,
1972), na incorporação desses símbolos/códigos pré-históricos nos seus atuais
processos identitários. A teia que propus para esta análise foi:
De modo geral, esta tese também teve a pretensão de dar visibilidade à riqueza da
cultura material levantada em toda a Bacia Rio São Francisco. Parte desse trabalho
consta no Capítulo 5, intitulado “Notas Referenciais sobre a Arqueologia na Bacia do
São Francisco”. Não se trata da elaboração de uma síntese, mas um texto que
situe, de forma geral, como tem sido o trabalho de salvamento dos vestígios pré-
históricos no Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco, antes e após a
construção das grandes barragens.
Também como produto desta tese, construímos um mapa onde localizamos todos os
povos indígenas do São Francisco na suas relações com as grandes e pequenas
barragens já construídas em toda a Bacia, bem como um documentário com as
entrevistas realizadas durante o trabalho de levantamento dos dados, iniciado no
ano de 2005 e finalizado em 2008, destacando-se a fala dos povos indígenas, de
alguns antropólogos e dos arqueólogos que fizeram pesquisas no São Francisco.
É importante deixar claro para os que irão ler esta tese, que não se trata de uma
obra na área de arqueologia ou antropologia, embora tome os saberes produzidos
nestas áreas científicas como referência. Produzida num programa multirreferencial
em Cultura e Sociedade, a base de fundamento das reflexões estabelecidas nesta
pesquisa articula-se com um pensamento sistêmico, multidisciplinar e que tem como
18
também foram locais preferenciais dos grupos pré-coloniais, tanto para habitação,
quanto para rituais funerários.
Como podemos observar, ainda há muito por se pesquisar sobre as razões pelas
quais os grupos humanos da pré-história brasileira escolheram o rio São Francisco
para viver há pelo menos nove mil anos atrás e encontrar, a partir de 1501, com a
ação colonizadora que pôs “fim” às suas existências.
O que sobrou ao longo destes milênios do rio arcaico franciscano, foi intensamente
modificado com a cascata de barragens estruturadas em todo o seu curso, desde o
Alto até a sua foz. As barragens têm que ser situadas como vetores do apagamento
dessa memória que tem uma importância singular para o povo brasileiro.
Antes era conhecido por alguns povos indígenas como Opará (Rio Tonto, Rio-Mar).
Conta a lenda desses grupos que o corpo do rio era formado pelas “lágrimas da
Índia Irati“.
Hoje, trata-se de um rio cuja área de toda a Bacia chega a 634.000 km2,
correspondendo a 8% do território brasileiro, com 2.700 km de extensão da nascente
à foz, onde estão localizados 504 municípios que abrigam uma população estimada
de mais de 15 milhões de habitantes.
O São Francisco, que foi um caminho natural para as rotas migratórias de povos pré-
históricos, tem ainda hoje grupos “remanescentes” dessas populações que habitam
suas margens nas proximidades de seus rios afluentes e em alguns casos, nos
topos de serras e brejos de altitude.
Dessas narrativas, citamos as análises feitas por exploradores como Martius e Spix
(1817-1820), Gaudner (1836-1841), Robert Ave-Lallemant (1836-1841), Henrique
Guilherme Halfeld (1852-1854), Richard Burton (1865) Minor Robert (1879), como
24
também por Saint-Hilaire, Derby, Eschwege, Carl Krauss, Liais e Teodoro Sampaio
(OLIVEIRA, 1997).
2
Apesar dos avanços nas discussões a respeito dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, só recentemente temos
observado uma efetivação dessas identidades no plano das políticas públicas em decorrência das lutas desses grupos e seus
processos organizativos.
26
A Lei Magna assegura como terras tradicionais as habitadas pelos índios em caráter
permanente, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições,
destinando-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (PARÁGRAFOS 1o e 2o).
Outro aspecto importante da CF é que ela “impede” que os grupos indígenas sejam
removidos das suas terras, exceto pela autorização do Congresso Nacional, em
caso de epidemias ou catástrofes que ameacem os povos indígenas naquele
território, ou no interesse da soberania do país, contanto que seja garantido a
possibilidade do retorno tão logo cesse os riscos.
Figura 06: Indígenas Truká acampados no local do Eixo Norte da transposição (MARQUES, 2007).
A Constituição Federal, nos seus Artigos 215 e 216, reconhecem as áreas ocupadas
por remanescentes de quilombos como parte do patrimônio cultural do País. No Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), de 05/10/88, em seu Artigo 68,
reconhece a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades de
quilombos que estejam ocupando suas terras, cabendo ao Estado emitir-lhes os
títulos respectivos.
muito tempo chamado de “ilha das populações3 tradicionais” no IBAMA, foi um dos
responsáveis pela solidificação, no Brasil, de um movimento conhecido como
socioambientalismo.
3
O termo “populações” denota certo agastamento e tem sido substituídos por “comunidades”, a quais aparecem revestidas de
uma dinâmica de mobilização, aproximando-se por este viés das categorias de ‘povos” (ALFREDO WAGNER, em
Apresentação do livro Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais de Joaquim Neto, 2007)
29
Em 2000 é sancionada a Lei no. 9.985 que regulamenta o Art. 225 da Constituição
Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que
incorpora em seu corpo e espírito as demandas sociais das “populações extrativistas
tradicionais” (Arts. 17 e 18, respectivamente).
Aqui mora um dos pontos mais polêmicos da Lei: criar categorias de unidades onde
não é permitida a presença humana, cuja existência de povos e comunidades
tradicionais são, na maioria das vezes, seculares. Neste particular também não
podemos ignorar que, na maioria das vezes, os processos de relocação de
comunidades são extremamente traumáticos, como foi o caso do deslocamento das
populações do São Francisco, decorrente das construções de grandes barragens.
Através do Decreto Legislativo no. 143, do Senado Federal, em junho de 2002, foi
ratificada no Brasil a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do
Trabalho), que reconhece os processos de AUTO-IDENTIFICAÇÃO como critério
fundamental nas definições das identidades étnico-culturais, e reforça os
movimentos sociais orientados principalmente por fatores étnicos e pelo
fortalecimento dessas identidades coletivas. Nos Artigos descritos abaixo
percebemos a consolidação desse critério:
o
Art. 2 . A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser tida
como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam
as disposições desta Convenção. [...] Art. 14º. Dever-se-á reconhecer aos
povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras
que tradicionalmente ocupam. [...] Art. 16º. Sempre que for possível, esses
povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que
deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e
reassentamento.
4
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotadas de relações territoriais específicas, com
presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (Artigo 2o.).
32
Toda esta trajetória culmina, a partir da definição do Decreto Federal no. 6.040/07,
de 07 de fevereiro de 2007, com a instituição da Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Além dessas
formulações no campo jurídico-formal, diferentes estados brasileiros vêm
incorporando os debates sobre os povos tradicionais, suas lutas e reivindicações.
33
Outro importante dado sobre o conceito de povos tradicionais diz respeito à polêmica
causado pelo Veto6 do Poder Executivo ao inciso XV do Artigo 2o. da Lei 9.985/2000
do SNUC que esboçava uma conceituação:
Grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três
gerações em determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu
modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua
subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável.
6
O conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil.
De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser
definidos como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O conceito
de ecossistema não se presta para delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim como o número de gerações não
deve ser considerado para definir se a população é tradicional ou não, haja vista não trazer consigo, necessariamente, a noção
de tempo de permanência em determinado local, caso contrário, o conceito de populações tradicionais se ampliaria de tal
forma que alcançaria, praticamente, toda a população rural de baixa renda, impossibilitando a proteção especial que se
pretende dar às populações verdadeiramente tradicionais (Mensagem no. 967, de 18 de julho de 2000, enviada pelo Presidente
da República ao Presidente do Congresso Nacional, In: SANTILLI, 2005).
36
Ainda para Diegues (2000) outro importante fator dessa relação entre os grupos
tradicionais e a natureza é sua relação com o território, definido da seguinte maneira:
Como uma porção da natureza e do espaço sobre o qual determinada
sociedade reivindica e garante à todos, ou a uma parte dos seus membros,
direitos estáveis de acesso, controle ou uso na totalidade ou parte dos
recursos naturais existentes.
7
Frase de uma Ialorixá da Bahia (GIL, 2003).
38
africana quanto indígenas. O Praiá, culto aos encantados dos indígenas Pankararé
do Raso da Catarina e outras etnias do Nordeste, faz referência a diferentes forças
da natureza. A elaboração desses encantados para diferentes etnias da Bacia do
Rio São Francisco, como os Tuxá de Rodelas e os Pankararu de
Tacaratu/Petrolândia/Jatobá, se dava nas cachoeiras de Itaparica e Paulo Afonso,
“desativadas” com as construções das barragens para geração de energia elétrica.
Seo Afonso Pankararé (2007) descreve bem esta construção simbólica ao falar
sobre a relação entre os encantados e a Natureza:
Aonde existe Caatinga, existe os índios ao redor. A Caatinga não é só as
matas, é a sobrevivência de todos. Eu me criei no Raso da Catarina. No
Raso é onde tá a nossa medicina tradicional. No Raso tem pranta pra curar
até o câncer, só abasta ter o conhecimento. Cada índio que nasce hoje, ele
tem um dom da sua natureza e esse dom de cada sobreviência que nasce,
ele precisa de uma árvore para ter este dom dele. O segmento dos mais
véio era viver dentro da natureza. O encanto é um dom da natureza, cada
cerrado desse [paredões da Baixa do Chico-Raso da Catarina] tem um
dom para evitar a destruição. Cada árvore aqui tem um dom. Quando a
gente vai fazer o tratamento de uma pessoa a gente chama o dom daquela
árvore. Então é esse o segmento do índio. É só o seu xiante [maracá] e o
campriô para chamar a natureza, o dom da natureza, daquela árvore.
Existe as caças do mato: peba, tatu, teiú, caititu, jacu, veado. Cada espécie
de animais tem um dom da natureza para zelar dessas caças. Nunca você
encontra uma caça que a bicheira matou. Proquê? Proque o dom dele zela,
cuida daquela natureza.
Segundo Gil (2003), as religiões tradicionais africanas têm na natureza seu espaço
de manifestação:
[...] é na natureza que os deuses se manifestam. Manifestam-se em
pedras, árvores, rios, grutas, lagos, etc. Desse modo a natureza é
sacralizada. É um espaço para a expressão de potências superiores. Ou,
dito de modo mais incisivo: a natureza é sagrada.
40
Uma das tradições mais belas e intensas sobre essa relação, pode ser observada
numa frase proferida pelo cacique Tumbalalá, Cícero Marinheiro (2008): ‘‘a natureza
é o livro sagrado de Deus’’.
Estes grupos associaram às suas culturas e tradições mitos e lendas que reforçam
esta relação nos seus sistemas de representações e símbolos, a partir dos quais se
relacionam com o meio ambiente. Os povos das florestas do Brasil, ribeirinhos,
indígenas, comunidades quilombolas, pescadores artesanais, mateiros, vaqueiros,
sertanejos, caiçaras, faxinais, fundos de pastos, enfim, interagem com a natureza a
partir de diferentes mitos e lendas como o Nego D’Água na região do São Francisco
e a Caipora, comum em muitas florestas do Brasil, tais como a Amazônia, Mata
Atlântica e Caatinga, cultuada em terreiros de candomblé e em rituais indígenas.
8
Termo grego para a palavra Terra.
42
Em termos gerais, temos duas grandes correntes teóricas sobre a chegada dos
humanos na América: os que afirmam que a via de entrada foi o Estreito de Bering,
por volta de 11,4 mil anos atrás, conhecidos como clovistas; e os que defendem ser
a via litorânea pacífica como a mais provável rota para a chegada e a dispersão
inicial dos humanos no Novo Mundo (NEVES, 2008).
Com a arqueologia no Brasil não foi diferente. Até a primeira metade do século XIX,
todas as observações eram feitas por artistas, jesuítas, e naturalistas que aqui
chegaram no período da colonização, para descobrir as novas terras do Ocidente.
Eram eles que, de certa forma, realizavam as pesquisas científicas da época,
continuada no País até a Independência e durante a primeira metade do século XIX.
Somente após a transferência definitiva da corte portuguesa para o Brasil é que
houve uma efetivação no estabelecimento de normatizações técnico-científicas que
incentivou a realização de atividades mais sistemáticas de pesquisa atendendo às
padronizações de um modelo científico mais racionalista. Segundo Prous (1992):
9
Antes de Darwin era hegemônica a compreensão da origem da humanidade a partir do mito bíblico da criação do homem e
da mulher por Deus. Darwin passou a defender a origem humana a partir da evolução de uma “raça” de símios antropomórficos
evoluídos, posteriormente descobertos na África (Australophitecos), de datações aproximadas de 4 milhões de ano. O
exemplar mais antigo dessa categoria foi encontrado na Tanzânia na década de 1970, mundialmente conhecido como Luci, em
homenagem à canção dos Beatles “Lucy in The Sky With Diamonds”. Ainda no processo evolutivo da humanidade
encontramos o Homo Habilis que surgiu a cerca de 2 milhões de anos; o Homo Erectus de cerca de 1,5 milhão de anos; o
Homo Sapiens Neanderthalensis que existiu de 100 mil até 40 mil anos atrás – “símbolo do homem da pré-história” –
(MYTHOS, 2008); até chegar ao Homo Sapiens Sapiens de cerca de 40 mil anos. As evidências científicas sobre a presença
humana nas amércias, particularmente no Brasil, indicam datações de mais de 100 mil anos (GUIDON, 2007)
44
10
o grande interesse de D. Pedro II pela antropologia contribuiu para a
implantação das primeiras entidades oficiais destinadas a ter um papel
relevante na arqueologia brasileira.
10
“Tentar descrever a Cachoeira em poucas páginas, e cabalmente, seria impossível, e sinto que o tempo só me permitisse
tirar esboços imperfeitos” (D. PEDRO II. Diário de Viagem ao Norte do Brasil. Salvador: Livraria Progressso Editora, 1959)
45
questão. Bueno (2003) problematiza quão difícil é essa tarefa pela busca de um
vínculo entre os grupos pré-históricos e as tribos indígenas encontradas aqui pelos
portugueses na época do descobrimento, afirmando: “de todo modo, o certo é que,
quanto mais se iluminarem as trevas do passado, mais o Brasil conhecerá seu
próprio futuro”.
Até meados da primeira metade do século XX, os mais antigos registros fósseis
encontrados na América do Norte que inferiam sobre a ocupação humana no
continente americano, vinham de materiais encontrados no Novo México, e Estados
Unidos. A Cultura Clóvis,como ficaram conhecidos estes estudos, datava de 11.400
a 10.500 anos A. P11. e afirmava que uma única leva de pessoas de origem
mongolóide – asiática – teria chegado à América há aproximadamente 12 mil anos
A.P., período correspondente ao final do Pleistoceno, atravessando do Alasca à
América do Norte através do Estreito (ou Istmo) de Bering (MARIUZZO, 2003).
Segundo esta teoria os dois continentes encontravam-se unidos por uma extensa
faixa de terra que foi chamada de Beríngia, por onde os grupos humanos pré-
históricos supostamente teriam realizado a travessia. Este fato deu-se graças a um
rebaixamento drástico do nível do mar, fruto de alterações climatológicas às quais o
Planeta se encontrava submetido ao longo de sua história.
Com o passar do tempo, vários outros sítios arqueológicos foram descobertos por
toda a América e seus dados contribuído para a contextualização e tentativa de
construção de um modelo teórico que permitisse o entendimento plural de toda a
dinâmica cronológica da chegada do homem/mulher primitivo/a às Américas.
Escavações realizadas em países da América do Sul, como a Argentina, revelaram
indícios fósseis de até 13.000 anos A.P.; na Venezuela, achados arqueológicos
indicaram uma ocupação humana há pelo menos 15.000 anos A.P. , além de
achados arqueológicos importantes em outros países como a Colômbia, Chile, Peru
e Brasil, que indicam estar superados as bases da sustentação da Teoria Clovis.
11
A.P. significa “antes do presente” que, por convenção, é 1950. Trata-se de uma menção à descoberta da técnica de
datação através do Carbono 14, que se deu em 1952. Assim, um evento ocorrido 500 anos AP aconteceu 500 anos antes de
1950 - ou seja, 1450. As referências cronológicas obtidas através de métodos físicos são sempre acompanhadas de suas
respectivas margens de erro, que são expressas com o sinal positivo e o negativo. Para muitos, o nascimento de Cristo é a
principal referência cronológica e o tempo é dividido entre antes e depois de Cristo (GASPAR, 2003).
46
Emperaire foi descobridora do esqueleto que mais tarde se chamaria Luzia. Sobre
este achado brasileiro Neves (2008) afirma:
Finalmente, a pré-história brasileira passou a ter um ícone próprio, tão
improtante quanto o Neandertal na Alemanha, o homem de Cro-Magnon na
França e Lucy na Etiópia.
Novas descobertas vêm reforçar a hipótese que está encontrando uma considerável
aceitação atualmente no meio científico. Teorias emergentes afirmam que a América
havia sido colonizada por duas levas distintas: os mongolóides, parecidos com a
morfologia dos povos indígenas que conhecemos hoje, teriam chegado ao
continente há não muito mais de 11 mil anos; e por volta de 13 a 14 mil anos aqui
49
Figura 12: Levas de Ocupação Humana das Américas (REVISTA NOSSA HISTÓRIA, 2005).
Para Guidon, a partir dos vestígios do sitio da Pedra Furada, considerando dados da
paleoclimatologia, paleoparasitologia, genética e outras áreas do conhecimento,
bem como outros vestígios paleoarqueológicos de outros sítios do Brasil, a exemplo
da Lagoa Santa (MG), já é possível propor uma teoria sobre a ocupação da América
por grupos humanos diferentes (REVISTA SCIENTIFIC AMERICAN, 2003).
Contudo, foi somente no ano de 1998 que a teoria de Neves ganhou destaque no
meio cientifico. Neste ano o pesquisador publicou um estudo analisando um
esqueleto de aproximadamente 11.400 anos encontrado na Lapa Vermelha,
considerado um dos mais antigos já descobertos na América. Esse esqueleto, que
ficou mais conhecida como “Luzia” (figura abaixo), era de uma mulher jovem e o
estado de conservação do seu crânio, permitiu que fosse feita uma reconstituição
facial detalhada, pela equipe do Dr. Richard Neave, da Univeridade de Manchester,
na Inglaterra. Essa reconstituição revelou traços físicos que se assemelhavam muito
mais aos de indivíduos africanos e australianos.
América havia sido colonizada por duas levas distintas (os mongolóides, parecidos
com a morfologia dos povos indígenas que conhecemos hoje, teriam chegado ao
continente há não muito mais de 11 mil anos; e por volta de 13 a 14 mil anos aqui
NEVES teriam chegado os paleoamericanos ou australo-melanésios, parecidos com os
australianos e africanos de hoje) entre o final do Pleistoceno e o início do Holoceno,
pelo Estreito de Bering
Todos os fatos nos fazem crer que ainda há muito a ser pesquisado, estudado e
interpretado. Porém, a velha história de que o nosso País é tão novo quanto os 500
anos que se passaram, desde o descobrimento até o presente, precisa ser reescrita.
A história, a nova história, nos mostra que o nosso País possui culturas, formações
sociais, econômicas, religiosas, étnicas, ecológicas, entre outras, há no mínimo,
9.000 anos A.P., o que atribui um valor ainda maior à imensa riqueza das terras
americanas do sul desde os tempos da pré-história.
Figura 14: Pintura Rupestre do Complexo Arqueológico de Paulo Afonso (CAAPA, 2008)
É fácil perceber que a região do São Francisco tem um grande potencial para o
desenvolvimento de estudos arqueológicos e muito ainda há para ser estudado;
entretanto, esta preocupação só veio tornar-se evidente no cenário nacional após as
construções das UHE ao longo do curso do rio São Francisco, que colocaram em
risco, quando não destruíram, milhares de informações e recursos arqueológicos
contidos nesta área e que hoje encontram-se submersos. Mesmo com o incentivo e
financiamento dos projetos de salvamento arqueológico pela empresa executora da
obra, a CHESF, não foi possível resgatar as informações necessárias para se
estabelecer um padrão claro e fornecer respostas para estas lacunas que existem
quando tratamos da pré-história das populações que habitavam o São Francisco.
29 sítios arqueológicos.
Sobradinho 74-76 Yara de Ataíde
Fruto de um trabalho de mais de 15 anos, outra área que vem produzindo resultados
significativos para a arqueologia brasileira, é a região de Canindé do São Francisco
onde, sob a coordenação técnica da Drª. Cleonice Vergne, encontra-se o maior
cemitério pré-histórico já escavado no Nordeste, o “Sítio Justino”. Sob a direção da
Universidade Federal de Sergipe, em parceria com a CHESF, o trabalho vem sendo
desenvolvido na região desde 88, quando teve início os primeiros trabalhos para a
construção da UHE de Xingó.
Figura 16: Pinturas Rupestres do Complexo Arqueológico de Paulo Afonso (MARQUES, 2008)
Desde o ano de 1939, um trabalho publicado por Calmon (1939) A História da Casa
da Torre, já atentava para o desastre causado pelas expedições coordenadas pelos
Garcia D’Ávila que adentravam o interior do Sertão Baiano e, beirando as margens
do São Francisco, agregavam os indígenas das aldeias ribeirinhas e afugentava
outros que refugiavam-se nas missões catequéticas que existiam na região, àquela
época.
A ponte que “liga” os grupos pré-coloniais aos atuais indígenas do São Francisco é
um concreto oceano de desconehcimento, com rachaduras irreparáveis chamadas
Usinas Hidrelétricas. Nessa fenda é onde deve se situar o interesse das ciências que
se ocupam desses contextos.
59
12
A construção das notas sobre as etnias indígenas do São Francisco é baseada, predominantemente, em fontes
secundárias, fruto de pesquisa de várias instituições que trabalham com os povos indígenas dessa região. Essas referências
são endossadas pelas observações participantes do pesquisador junto a estes grupos, sobretudos nos seus processos político-
organizativos na Bacia do São Francisco.
13
Super Interessante, Out/2005
60
Iniciada na costa brasileira onde havia uma rica e densa Floresta Atlântica – hoje,
94% destruída –, na época habitada por diversas etnias indígenas, entre as quais os
Tupinambá, os Tupiniquin, os Potiguar, os Caeté, os Guarani, entre outras, a
colonização brasileira, depois de apropriar-se de quase todo o pau-brasil e utilizar os
solos férteis para o plantio da cana-de-açúcar, iniciou o processo de criação de gado
e outros animais e a conseqüente interiorização das ações colonizadoras que deu
origem inicialmente aos currais, depois às diversas vilas e cidades do Brasil.
Após a expulsão dos jesuítas, as aldeias foram entregues aos sacerdotes menos
interessados na obra catequética e depois a oficiais civis. Decretada a falsa
liberdade indígena, estas aldeias foram promovidas a vilas e administradas pelos
‘vizinhos’ dos índios que sempre cobiçaram suas terras, ou seja, os donos de
grandes latifúndios de terra. Aos poucos, submetidos às constantes humilhações e
vexames, os povos indígenas iam deixando suas aldeias ou refugiando-se em
núcleos marginais das vilas (RIBEIRO, 1996, p. 66).
Tão necessário quanto comer, beber e vestir, a identidade étnico-cultural dos povos
indígenas passou a ser uma questão de relevância singular para o conhecimento,
não apenas deles, mas de todos os homens e mulheres da América, quiçá, do
mundo. Trata-se da iniciada discussão da “emergência étnica” das populações
indígenas que algumas áreas das ciências chamam de “etnogênese”.
14
Até hoje encontramos descendentes indígenas que não se revelam como tal. Este violento processo de silenciamento, em
determinado momento, torna-se uma estratégia de proteção. Hoje, esta mordaça tem sido gradativamente retirada das vidas
desses indígenas que, aos poucos, tem reafirmado suas identidades étnicas.
62
Estas nações, como todas as outras, hoje buscam a afirmação de sua identidade
étnico-cultural e reivindicam a posse dos territórios que ocupam e outras das quais
foram expulsos. Portanto, depois de um longo e violento processo de miscigenação
e domínio, os índios do Nordeste do Brasil, gradativamente, percebem a
necessidade e urgência da organização e participação política, ao passo que,
também, mergulham na perplexidade frente à crise das identidades na
contemporaneidade.
Dentro dessa cena, para a construção desta tese analisou-se a complexa ecologia
dos indígenas do Nordeste do Brasil, particularmente, da região do rio São
Francisco. Sobre estas populações, é importante lembrar o estudo pioneiro das
populações indígenas do Baixo e Médio São Francisco feito pelo antropólogo norte-
americano Hohenthal: As Tribos Indígenas do Baixo e Médio São Francisco (1960).
Podemos pensar, portanto, que estamos diante de um fenômeno extraordinário no
campo das ciências sociais: se até início do século XX não se falava mais em
indígenas na Bacia do São Francisco, como pensar a existência de 32 etnias,
distribuídas em mais de 38 territórios, em toda a Bacia na contemporaneidade?
Diferente do que aconteceu com outros grupos étnicos que vieram para a América,
os povos indígenas estão quase esquecidos na cultura brasileira, sobretudo quando
a questão é pensar aspectos concernentes à identidade cultural no Brasil.
Sob a visão étnico-histórica podemos nos referir aos povos indígenas pluri-étnicos
do interior do Nordeste como descendentes dos “tapuias”, em “oposição” aos grupos
Tupi que ocupavam o litoral.
fossem reconhecidos. Nos anos oitenta foi a vez dos Pankararé, dos
Kapinawá, dos Xocó, dos Tingui-Botó; depois dos Karapotó. Já nos anos
noventa os Kantaruré. Um pouquinho antes, ainda nos anos oitenta, os
Truká. E já agora, depois do ano 2000, os Tumbalalá. E também no ano de
2001, o povo mais longínquo, o povo que está na cabeceira do São
Francisco, que é o povo Kaxixó.
A língua falada pelos Tuxá antes do contato com os colonizadores era o Trocá, que
muito provavelmente tem uma relação etimológica cognata com a palavra Trucá,
tribo indígena que ainda hoje habita a ilha da Assunção no rio São Francisco, um
pouco acima do ponto onde estão localizados os Tuxá. Portanto, os termos Tuxá
(tribo), Trucá (tribo) e Trocá (língua) podem pertencer a uma mesma família
etimológica e, permeado por um estudo etno-lingüístico mais aprofundado, pode
elucidar melhor esta especulação da descendência e correlação étnica entre as
tribos Kariri, Trucá e Tuxá, habitantes desta região.
Os Tuxá são descendentes dos índios rodeleiros que naquela região viveram há
muitos anos. Atualmente são denominados como “Índios Tuxá, Nação Procá,
Caboclos de Arco e Flecha e Maracá”. A aldeia Tuxá situa-se no município de
Rodelas, cidade do norte baiano, na região do sub-médio São Francisco. Sua
população atual é de 995 indivíduos, 214 famílias, sendo 507 índios e 488 índias.
Depois de tantos conflitos, os índios resolveram viver pacificamente com os brancos
em um mesmo espaço, havendo uma cerca de arame farpado, um muro de tijolo e
uma placa codificando “área proibida”, que os separa dos não-indígenas.
Atualmente, a maior parte dos índios desta etnia vive de uma VMT- Verba de
Manutenção Temporária, no valor de dois salários mínimos e meio por família paga
pela CHESF, como medida mitigatória decorrente do Barramento de Itaparica. Parte
das novas famílias, que casaram de 1988 em diante, não recebiam essa VMT,
ficando na dependência dos pais. Depois de um longo processo de negociação, a
CHESF passou a pagar a VMT para as novas famílias Tuxá.
Após intensos contatos com os não-indígenas que pôs em risco a valorização da sua
identidade, a tribo Tuxá permaneceu durante muito tempo, predominantemente
agrupada e protegida por um posto indígena criado pela FUNAI - Fundação Nacional
do Índio, em 1945, dentro dos limites do município de Rodelas. Até então a
população era predominantemente indígena e as relações inter-étnicas entre os
índios e os outros grupos habitantes do local não eram tão intensas.
originado outras ruas atrás desta, dando lugar ao padrão étnico observado por
Sampaio-Silva (1997):
A evidência de miscigenação entre etnias – brancos, índios e negros –
eram facilmente percebidas, pela simples observação direta. Percebia-se a
mestiçagem na cor da pele, nas formas dos olhos, nos tipos de cabelo. No
entanto, nestes séculos de contato entre os Tuxá e a sociedade do tipo
sertaneja desta área sanfranciscana do norte da Bahia, tem estado em
curso um processo de mudança social nesta sociedade indígena.
3.5.1.2. KANTARURÉ
O etnônimo Kantaruré é recente. São todos tratados pelos regionais como “Caboclos
da Batida”. Os Kantaruré têm mantido ao longo dos últimos anos intenso contato
com os Xucuru-Kariri de Quixaba e Pankararé – grupos vizinhos habitantes do
mesmo município, na região do Raso da Catarina, tanto para a prática do Toré,
quanto para a articulação de iniciativas políticas conjuntas às ações da ADR/FUNAI
de Paulo Afonso e a Prefeitura Municipal de Glória, ambas na Bahia.
Foi com o apoio destes vizinhos e de alguns Tuxá que os Kantaruré, no final dos
anos oitenta, procuraram a FUNAI reivindicando o seu reconhecimento. Em março
de 1999 a Administração Regional da FUNAI em Paulo Afonso, enviou uma
assistente social ao povoado da Batida, com o objetivo de verificar a real situação da
comunidade que reivindicava reconhecimento oficial.
Ainda no ano de 1989, a FUNAI/3ª SUER, designou uma antropóloga para estudar a
condição étnica da comunidade que auto-identifica-se como indígena (OS
nº301/gab/3ªSUER/89-21/09/89). A preocupação desse estudo centra-se na
identificação de traços culturais indígenas – religião, cultura material, entre outros –
e a sua inclusão no processo era favorável ao reconhecimento oficial dos Kantaruré.
Uma série de outras espécies vegetais de valor terapêutico foram também atingidas,
tais como o bálsamo, o camaru, a sacaatinga branca, o velame, o veladinho roxo e
muitas outras. Além disso, tal desmatamento vem ameaçando espécies de
importância singular para manutenção dos hábitos culturais, tal como a jurema, cujo
vinho tem um papel de relevante importância no complexo ritual do grupo.
71
Os índios contam mais do que nunca, com a caça para alimentação de suas
famílias. Estratégia que começa a ser compartilhada pelos sertanejos vizinhos que,
muitas vezes, têm que tomar cuidados especiais para que os pequenos animais de
criação não sejam devorados pelos carcarás famintos ou que pereçam pela sede.
3.5.1.3. XUCURU-KARIRI
3.5.1.5. PANKARARÉ
Estas terras abrangem desde a região do Brejo do Burgo até o Raso da Catarina,
que é um local muito importante, sagrado, para o povo Pankararé. Ali se esconde o
seu paraíso terrestre, onde praticam o ritual sagrado do Praiá. A aldeia Pankararé
fica nas proximidades das cidades de Glória, Paulo Afonso e Nova Rodelas, Bahia,
cerca de 42Km da sede municipal para onde o acesso é feito através de estradas
não pavimentadas. Os Pankararé tem sua principal população no povoado
denominado Brejo do Burgo; outra parte significativa da aldeia encontra-se na Baixa
do Chico e no Povoado Cerquinha.
Pode-se chegar lá através de via terrestre. A área possui uma extensão de 2.019ha,
demarcadas. Diante da constatação do deslocamento, a necessidade de reassentar
o grupo em uma nova área passa a ser objeto de negociações envolvendo
representantes da CHESF, FUNAI e algumas lideranças do grupo. Após alguns
acordos iniciais, ficou definido que a data limite para o reassentamento do grupo
seria o ano de 1987, e como proposta, uma área localizada na recém-criada Nova
Rodelas-BA, o que exigiria do grupo deslocar-se para uma outra área para executar
suas atividades agrícolas.
A segunda opção foi adotada pelo grande grupo familiar dos Valério, pelo então
“Capitão” Miguel Santana e por Manuel Novaes, arregimentadores de grande
número de famílias Tuxá dispersa na margem pernambucana do São Francisco.
Depois de obtido o aval da CHESF para que procurassem novas terras, o que foi
feito por Manuel Novaes e Raul Valério, os indígenas optaram pelo estabelecimento
em uma área no município de Ibotirama-BA, aproximadamente 1.200Km distante de
Rodelas, perfazendo um total de 2.019ha. Como parte do acordo, a CHESF se
comprometera a incluir no projeto toda infra-estrutura básica e irrigação, que até o
momento não foram cumpridas na íntegra.
76
Existe ainda um impasse quanto à extensão exata da área das fazendas adquiridas
pela CHESF, posto que, em 1991, a demarcação administrativa da área foi
homologada com aproximadamente 2.019ha. O GT que executou a demarcação
justificou a diferença na extensão da área (CHESF 2.183 e FUNAI 2.019ha), pela
metodologia aplicada para execução dos trabalhos de medição pelos referidos
órgãos (CI nº 128/SUAF/91/BSB de 10.05.92) e por registro no Cartório de Registro
de Títulos e Documentos da Cidade de Ibotirama.
3.5.1.7. TUMBALALÁ
3.5.1.8. PANKARARU
Francisco. A quarta aldeia Pankararu localizada foi a do Brejo dos Padres, que hoje
é a aldeia principal. Ela foi criada possivelmente no início do século XIX com o
ajuntamento dos Pankararu, Poru, Umã, Vouves e Jeritacó (OLIVEIRA, 2004).
3.5.1.9. PANKARU
Os índios que viviam, até então de forma autônoma, recorreram à FUNAI, solicitando
reconhecimento e providência. No final dos anos 70 e início da década de 80, o PEC
- Projeto Especial de Colonização, criado pelo INCRA na Serra do Ramalho, para
reassentar famílias desalojadas pela barragem de Sobradinho atraiu grileiros,
aumentando a pressão sobre a terra ocupada pelos Pankaru. Como alternativa, foi
solicitado ao INCRA a concessão de lotes contíguos para famílias ali residentes.
Porém, a demora na negociação posicionou novos conflitos entre índios e
fazendeiros. Após longo período de negociação, os índios foram cadastrados e
incluídos no PEC.
3.5.1.10. KARIRI-XOCÓ
3.5.1.11. FULNI-Ô
A respeito dos índios que hoje residem na cidade de Águas Belas, Pernambuco, a
273Km de Recife, também chamados Carnijó ou Carijó, inclusive Cajaú
(HOHENTHAL, 1960), não se tem notícias exatas do período em que foram
aldeados. Sabe-se que por volta do século XVIII, várias etnias foram agrupadas,
inclusive o grupo que conhecemos como Fulni-ô, único da região franciscana que
ainda mantém, em pleno uso, sua língua nativa, o Yathê, do tronco Macro-jê.
3.5.1.12. TRUKÁ
A maior ilha do São Francisco, Ilha da Assunção, com cerca de mais de 6.000 ha,
abriga um dos mais emblemáticos povos indígenas do Nordeste: os Truká,
provavelmente remanescentes Tuxá (SILVA, 2003). A história desse povo está
intimamente associada à luta pela posse da terra/território, ainda hoje resistentes ao
15
Mozeni foi assassinado em 23 de agosto de 2008, por crime de mando, na Cidade de Cabrobó/PE.
83
Descrições de uma enchente ocorrida em 1792 relatam que este fato foi responsável
pela destruição de quase toda a vila, inundada pelas águas desse grande rio que a
abraça, hoje “calado”, em virtude da construção da barragem de Sobradinho, em
1979.
Após este fato, a Ilha de Assunção foi transferida para a Comarca de Cabrobó, que
a arrendou juntamente com o conjunto de suas ilhotas. Desde então, os indígenas
foram expropriados da sua criação e tiveram que se submeter a trabalhar em regime
de escravidão e semi-escravidão para os arrendatários de suas terras, reivindicadas
pela igreja católica como uma doação dos indígenas à Nossa Senhora. Esse fato foi
legitimado, em 1920, pelo Cartório da Comarca de Belém do São Francisco, que
tirou a Ilha dos Truká e passou às mãos do seu “novo proprietário”, o Bispo de
Pesqueira.
Já em 1940, com o apoio dos Tuxá de Rodelas, os Truká reivindicaram junto ao SPI
- Serviço de Proteção aos Índios, a posse das terras da Ilha da Assunção,
conseguindo desse órgão uma Ação de Nulidade de Venda e Re-integração de
Posse, fato que desencadeou diversos conflitos entre indígenas e não-indígenas.
Para piorar a situação, o governo de Pernambuco desconsiderou essa decisão e
comprou, em 1965, parte da ilha para criação de um núcleo de colonização
distribuindo lotes a não-indígenas.
A FUNAI faz a indicação de cessão de 500 ha aos Truká, o que não tem a
aprovação do governo de Pernambuco. Em 1980, através da Portaria n. 687/E de
05/03/80, a FUNAI estabelece uma comissão para o levantamento antropológico.
Em 1981, este órgão indigenista consegue do governo pernambucano dois lotes de
14ha para uso temporário dos indígenas, sendo que em 1982 os Truká ocupam uma
nova área de 70ha.
Depois desses anos de conflitos intensos pela posse da terra, em 1984 a terra
indígena foi demarcada com uma superfície de 1.659 ha, sendo finalmente
85
Figura 32: Povo Truká na reivindicação de seus territórios tradicionais, após a expulsão pela força policial do
local onde o Exército está construindo o Eixo Norte da Transposição (MARQUES, 2007).
Como pode ser observado nas fotos acima, em 2007, o povo Truká ainda está
mobilizado reivindicando os territórios que tradicionalmente ocupam. Essa trajetória
já culminou em perdas violentas para este povo canoeiro, das Ilhas Franciscanas,
como os bárbaros assassinatos da liderança Truká, Adenilson dos Santos Vieira, 38
anos, e seu filho Jorge Adriano Ferreira Vieira, 17 anos, por policiais.
Truká, na localidade denominada por Mãe Rosa e Fazenda Toco Preto, município de
Cabrobó-BA.
O grupo foi composto por: 01. Mércia Rejane Rangel Batista, antropóloga - UFCG;
02. Ricardo Migliore, Auxiliar de Pesquisa - UFCG; 03. Cícero Romão Gomes
Marinheiro - Liderança Indígena; 04. William Eliseu Caribe de Carvalho Pires,
servidor AER Paulo Afonso. Estes relatórios já foram finalizados, confirmando que as
áreas reivindicadas pelos povos Indígenas Truká e Tumbalalá são de ocupações
tradicionais, aguardando, portanto, a decisão final para sua posse efetiva.
Antes tinham a pesca como uma das principais fontes de alimentação, hoje,
entretanto, em virtude da diminuição da piscicosidade do Rio São Francisco devido
às barragens construídas em todo o seu curso e outros problemas sócioambientais
decorrentes disso, vivem basicamente da agricultura, cultivando feijão, milho, batata,
mandioca e, sua principal atividade agrícola, o plantio do arroz.
3.5.1.13. KAMBIWÁ
O nome Kambiwá, segundo alguns indígenas, significa “retorno à Serra Negra”, terra
sagrada para as etnias da região. Hoje parte significativa desse território tradicional é
uma Reserva Biológica, criada pelo Decreto n. 87.591, de 20 de setembro de 1982.
Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC),
esta é uma categoria extremamente restritiva, o que limita o acesso desses grupos à
Serra Negra, uma solicitação do povo Kambiwá, que foi expulso da referida área por
fazendeiros, tendo sido reconhecidos como povo indígena pela FUNAI somente em
1978, depois de uma longa história de reivindicações.
Após terem sido expulsos, mais uma vez, da Serra Negra, os Kambiwá retornaram
para o "Baixo do Araticum", hoje "Baixa da Índia Alexandra", permanecendo lá até
1954, quando o então Ministro da Agricultura, o pernambucano João Cleofas
"manda demarcar as terras (grupo com os seguintes limites: Nazário Serrote das
Cabaças, Riacho Americano, Faveleira, Serra Verde e Serra da Inveja)" (FUNAI,
1988).
3.5.1.14. PIPIPÃ
Por muito tempo o grupo indígena Pipipã, que campeava entre o Pajeú e o Moxotó,
foi considerado extinto. Dados históricos mostram que foram reduzidos pelo capitão
Antônio Vieira de Melo em meados do século XVIII, tendo sido aldeados por Frei
Vital Frescarolo (SILVA, 2003), entre a Serra Negra e a Serra do Periquito em
Pernambuco. Até o século passado este grupo estava integrado aos Kambiwá, hoje,
em virtude da “separação”, reivindicam seu reconhecimento como povo indígena e
demarcação de sua área na região da Serra Negra.
No território reivindicado pelos Pipipã, caso seja construído, passará o Eixo Leste da
transposição, bem como serão instalados uma estação de bombeamento de grande
porte e um alojamento com canteiros de obras. Estas ações, segundo os indígenas,
afetarão imensamente o seu povo, seu território e sua cultura.
90
3.5.1.15. XUCURU
Os Xucuru eram considerados extintos até o início do século XX. Neste século
começa uma longa luta pelo reconhecimento étnico e demarcação territorial. Até
1980 os Xucuru ocupavam menos de 10% de seu território tradicional, demarcado
em 1995, sendo que a homologação dos 27.555 hectares de terra, hoje
pertencentes ao povo Xucuru, só ocorreu definitivamente em maio de 2001,
91
Figura 37: Indígenas Xucuru em ritual contra a transposição do São Francisco em Sobradinho/BA
(MARQUES, 2007).
3.5.1.16. ATIKUM
Segundo Silva (2003), conforme tradição oral de indígenas Atikum, este grupo
localizava-se ao sul do trecho encachoeirado do Sub-médio São Francisco no Raso
da Catarina. Em virtude das perseguições dos colonizadores, os Atikum saíram da
região sul de Itaparica e fixaram-se na margem direita do São Francisco. Como as
92
Sabe-se dos seguintes registros dos Umã: por volta de 1696 andavam pelo vale do
rio São Francisco; em 1713 estavam na ribeira do Pajeú; em 1746 em Alagoas, entre
os rios Ipanema e São Francisco; em 1759 em Sergipe; em 1801 foram aldeados em
Olho d'Água da Gameleira – onde hoje é a aldeia Olho d'Água do Padre na Serra do
Umã – e de onde se dispersaram em 1819; em 1838 são encontrados nas
proximidades de Jardim, no Ceará; em 1844 se encontram novamente próximos ao
antigo aldeamento, mais especificamente em Baixa Verde.
Ainda é bom lembrar que, quando aldeado, o grupo Umã recebia diversas
denominações, tais como Huanoi, Huamoi, Huamães, Huamué, Humons, Umã,
Umães, Uman, Umãos, Urumã, Woyana, e foi obrigado a dividir o aldeamento com
os grupos Xocó e os Vouvê. Estes três grupos sempre se mantiveram próximos aos
Pipipã.
A denominação do povo Atikum suscita muitas reflexões. Silva (2003) indica que o
gentílico Atikum seja uma corruptela de araticum, termo tupi que refere-se às
anonas, vegetais do Cerrado, que deu nome a uma das aldeias do São Francisco.
Uma das primeiras referências a este nome é decorrente do período do
reconhecimento oficial desse grupo indígena pelo Serviço de Proteção ao Índio
93
(SPI), na segunda metade da década de 40. Há também relatos de que este termo
refere-se a uma língua extinta.
3.5.1.17. KAXAGÓ
A trajetória do Povo Kaxagó é narrada pelo atual Cacique Natuyé (2008) que
atualmente vive com o Povo Kariri-Xocó, caracterizado por receber diversos povos
indígenas refugiados: