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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - UFBA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

CULTURA MATERIAL E ETNICIDADE DOS POVOS INDÍGENAS


DO SÃO FRANCISCO AFETADOS POR BARRAGENS:

Um Estudo de Caso dos Tuxá de Rodelas, Bahia, Brasil.

Juracy Marques dos Santos

SALVADOR
2008
2

JURACY MARQUES

CULTURA MATERIAL E ETNICIDADE DOS POVOS INDÍGENAS DO SÃO


FRANCISCO AFETADOS POR BARRAGENS

Um Estudo de Caso dos Tuxá de Rodelas, Bahia, Brasil.

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Cultura e Sociedade da Universidade Federal
da Bahia – UFBA, como requisito para obtenção do
título de doutor.

Orientadora: Dra. Lindinalva Silva Oliveira Rubim.

SALVADOR
2008
3

TERMO DE APROVAÇÃO

JURACY MARQUES

CULTURA MATERIAL E ETNICIDADE DOS POVOS INDÍGENAS DO SÃO


FRANCISCO AFETADOS POR BARRAGENS:

Um Estudo de Caso dos Tuxá de Rodelas, Bahia, Brasil.

Tese aprovada como requisito parcial à obtenção do título de Doutor, ao Programa


de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, área de estudos em Cultura e
Identidade, da Universidade Federal da Bahia-UFBA, pela Comissão formada pelos
Professores/as:

Profª. Lindinalva Silva Oliveira Rubim – Orientadora


Universidade Federal da Bahia – UFBA.

Profª. Dra. Maria Cleonice de Souza Vergne


Universidade do Estado da Bahia – UNEB.

Profª. Dra. Maria Pires Soares Cardel


Universidade Federal da Bahia – UFBA.

Profº. Dr. Alfredo Wagner Berno de Almeida


Universidade Federal da Amazônia – UFAM.

Profº. Dr. Renato José Amorim da Silveira


Universidade Federal da Bahia – UFBA.

Salvador, 03 de dezembro de 2008.


4

Aos Povos Indígenas da Bacia do São Francisco.


5

AGRADECIMENTOS

Aos Povos Ribeirinhos do São Francisco, testemunhos da resistência a um modelo


de desenvolvimento degradador da natureza e opressor das pessoas pobres do
nosso País nestes mais de 500 anos de exploração.

Aos Povos Indígenas do São Francisco, particularmente ao Povo Tuxá de Rodelas,


que me acolheu como pesquisador em seu meio e esteve comigo nestes quase
quatro anos de diálogo sobre algo ainda muito confuso no campo das ciências
sociais: esta relação entre cultura material e etnicidade indígena.

À Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e


Espírito Santo – APOINME, pelo decisivo apoio ao longo desses anos de pesquisa.

À Universidade do Estado da Bahia (UNEB), da qual fui aluno e agora sou Professor,
por todo o incentivo e apoio.

Aos Professores e Professoras do Departamento de Educação Campus VIII - Paulo


Afonso.

Ao Museu de Arqueologia de Xingó (MAX).

Ao Museu de Arqueologia e Etnologia da UFBA (MAE).

Ao Programa de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da UFBA, onde pude fazer


uma formação focada nas investigações sobre processos identitários de grupos
tradicionais e mergulhar, ao longo deste tempo que passei cursando o doutorado,
nas complexas relações entre grupos tradicionais impactados por barragens e outras
intervenções em seus territórios. A partir disso foi possível questionar a relação entre
os vestígios materiais com grupos indígenas “remanescentes”, resistentes.
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Aos Professores do Programa de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da UFBA,


especialmente à minha orientadora Linda Rubim, por ter acreditado na minha
proposta de pesquisa e ter me ajudado a chegar até esta etapa final, num mar
epistemológico da multidisciplinaridade, tão desafiador para novos pesquisadores
que vêm de tradições disciplinares nas academias.

Aos arqueólogos/as e antropólogos Niede Guidon, Gabriela Martin, Carlos


Etchevarne, André Prous, Cleonice Vergne, Luydy Fernandes, Celito Kestering,
Aurélio Viana, José Laranjeiras/Guga, Renato Athias, por todo o apoio neste
trabalho.

A algumas pessoas queridas e muitos especiais que, a seu modo, contribuíram de


forma intensiva para o meu trabalho: André Oliveira, Glaide Muriel, Augusto Flávio,
Arthur Lima, Bruna Graziela, Marcos Cesário, João de Souza Lima, Gilmar Teixiera,
Naum Bandeira, Hércules, Admilson Freire, Geraldo, Lívia, Léo, Fábio Bandeira,
Carlos Caroso, Guiomar, Ana Paula Arruda, Izael, Cícero, Jardel, Ricardo, Alzeni
Tomaz, Alejandro Duran e Jorge Eremites, pela carinhosa, sensível, afetiva e intensa
colaboração na execução desse trabalho. Também grandes amigos/as.

À toda equipe do Projeto Nova Cartografia Social dos Povos e Comunidades


Tradicionais do Brasil, especialmente ao Dr. Alfredo Wagner, pelas intensas
contribuições na forma de pensar os processos identitários e de territorialização de
grupos tradicionais.

Ao Comitê da Bacia do São Francisco – CBHSF, particularmente à Câmara Técnica


de Povos e Comunidades Tradicionais (CTCT).

À Articulação Popular do São Francisco, pela posição ecopolítica frente às


atrocidades cometidas contra o rio São Francisco e seu Povo.

Ao Frei Luiz, por seu gesto ecológico, espiritual e político, que de uma forma
bastante estranha, me ensinou a intensidade da ecologia profunda.
7

Aos meus alunos e alunas, pelos quais também me movo nessa “fome
epistemológica”, uma estimulante e perigosa armadilha da alma. Entretanto, é nessa
esperança de poder compartilhar “o isso” que está nos centros acadêmicos, que me
arrisquei nessa lama semântica que é esta tese.

Ao Núcleo de Estudos em Comunidades e Povos Tradicionais e Ações


Socioambientais/NECTAS, ao Centro de Arqueologia e Antropologia de Paulo
Afonso/CAAPA, ao Centro OPARÀ de Estudos das Etnicidades e ao Casulo/Centro
de Pesquisa em Ecologia e Conservação da Natureza/Condomínio da Terra, lugares
que acolhem minhas inquietas questões de pesquisa.

Aos meus Amigos/as: Felipe, Joelma, Renata, Marcelo, Josilda, Edílson, Roseane,
Dorival, Dilma, Valda, Maurício, Fátima, Antão, Francisco, Ilza, Albertina, Ricardo,
Clécio, Edmar, Duda, Jailson, Zezinho, Francisco, Aldo, Morato, João, Nalvinha,
Reginaldo, Cláudias, Altamir, Hermano, Célia, Dalma, Luiz Carlos...

A meu analista Reinaldo Pamponet, pela forma ética e profunda com a qual escutou
o som dos meus silêncios em dias tão difíceis da minha vida/alma. E à Caroline por
ter mostrado-me a percepção de Jung sobre as tradições das almas, sobre o
precioso do primitivo.

À Cristina Rodrigues, pessoa com a qual dividi momentos muito especiais da minha
vida.

Aos Verdes de Paulo Afonso, da Bahia, do Brasil e do Mundo, por acreditarem na


reversão dos rumos da degradação da sociobiodiversiade planetária.

Ao IGH, ALPA e Academia de Letras de Senhor do Bonfim, centros que valorizaram


as minhas simples produções “literárias”. Aos professores Galdino e Roberto Ricardo
pelas valiosas contribuições.

À minha Família, por ser este tesouro da minha alma e dos meus afetos. Minha
gratidão às nossas ligações biológicas e espirituais, particularmente aos meus pais,
João Ribeiro e Maria Marques (in memoriam).
8

Descrever a dispersão das próprias descontinuidades.


MICHEL FOUCAULT.

Já tiraram o coro do rio São Francisco, agora só falta espichar.


SEO MANOEL – Pajé do Povo Xocó
9

RESUMO

Há um capítulo vazio sobre a história e identidade dos grupos indígenas do São


Francisco, hoje cerca de 32 povos, distribuídas em mais de 38 territórios. O
Povoamento do Vale Arcaico Franciscano, segundo dados de pesquisas
arqueológicas (VERGNE, 2004), teve início há pelo menos nove mil anos atrás.
Contudo, entre a pré-história e história dos grupos humanos dessa região, há um
abismo de desconhecimento. Parte do que sabemos é decorrente da cultura material
(artefatos líticos, cerâmicos, orgânicos – esqueletos, adornos, restos de fauna e flora
-, pinturas e gravuras rupestres, etc), levantada em salvamentos feitos por vários/as
pesquisadores/as nacionais e internacionais (MARTIN, 1996; ETCHEVARNE, 2002;
PROUS, 1992; GUIDON, 2004; VERGNE, 2004; BELTRÃO, 2004; FERNANDES
2005; KESTERING, 2007), sobretudo nas áreas inundadas pelas grandes
barragens. Mesmo as informações levantadas não são suficientes para resolver o
impasse a respeito da continuidade/descontinuidade histórico-simbólico-cultural
entre os grupos originários e os povos indígenas “remanescentes” do Velho Chico.
Esta pesquisa de caráter multidisciplinar ocupou-se de analisar a forma como os
povos indígenas do São Francisco, particularmente o Povo Tuxá de Rodelas, estudo
de caso da tese, pensam a cultura material levantada nos salvamentos
arqueológicos das barragens (Sobradinho, Itaparica e Xingó) e a incorporam nos
seus processos identitários contemporâneos. Os resultados nos permitem inferir que
esses grupos não só reconhecem essa cultura material como pertencentes a seus
ancestrais, como a incorporam nos seus processos de afirmação das identidades
coletivas na contemporaneidade, num processo de eleição de códigos simbólicos,
tradicionais/presentes, que consideram relevantes. Apesar da importante
contribuição dos salvamentos arqueológicos, constata-se que parte significativa
dessa memória do povo brasileiro se perdeu embaixo das águas represadas pelas
Usinas Hidroelétricas, desde o Alto até o Baixo São Francisco. Cotidianamente
também observarmos um flagrante desrespeito ao patrimônio histórico-arqueológico
do povo do São Francisco, o que torna imperativo a urgente mobilização para
preservar o pouco que resta dessa memória ribeirinha, hoje complexamente
enlaçada às reivindicações de repatriamento pelos grupos indígenas
“remanescentes”, resistentes.

Palaras-Chave: Barragens, Etnicidade Indígena, Cultura Material e Repatriamento.


10

RESUMÉ

Il y a un chapitre vague sur l’histoire et l’identité des groupes indigène de la rivière


São Francisco, aujourd’hui près de 32 peuples, distribué en plus de 38 territoires. Le
village du Vallée Archaïque Franciscano, selon les enquêtes archéologiques
(VERGNE, 2004), il y a eu à peu près neuf mil ans avant. Donc, entre la pré-histoire
et l’histoire des groupes humain dans cette region, il y um abîme de manque de
connaissance. La partie que nos connaissons est le résultat de la culture matériel
(manufacture lithiques, céramique, organique – squelette, ornements, reste de faune
et flore – peintures et gravures en roches, etc), soulèvements qui ont été fait par
plusieurs enquêteurs nationaux et internationaux (MARTIN, 1996 ; ETCHEVARNE,
2002; PROUS, 1992; GUIDON, 2004; VERGNE, 2004; BELTRÃO, 2004 ;
FERNANDES, 2005; KESTERING, 2007), surtout dans les territoires qui ont été
inondés par les grands barrages. Même les informations qui ont été fait ne sont pas
suffisants pour resoudre l’impasse à propôs de la continuation/descontinuation
historique-culturel entre les groupes originaires et les peuples indigènes restant du
(Velho Chico). Ces enquête de caractère pluridisciplinaire ont été occupés pour
analyser la forme comme les peuples indigènes du São Francisco, particulierment le
peuple Tuxá de Rodelas, recherche de thèse, pensant la culture matériel qui ont été
fait sur les sauvetages archéologique des barrages (Sobradinho, Itaparica et Xingó)
et l’integrent dans leurs procès identitaires contemporains. Les résultats nous
laissent penser que ces groupes non seulement reconnaissent cette culture matériel
comme appartenants a leurs ancêtres, mais l’intregrent dans leurs procès
d’affirmation des identités colletives dans la modernité, dans um procés d’élections
de codes symboliques, traditionnels/présent, que considerent distingues. Malgré
l’important contibution de récupération archéologique on verifie que, la partie
significatif de cette memoire du peuple brésilien s’est perdu en deasous des eaux
retenues par les usines hydroéletriques, depuis le haut jusqu’à le bas du São
Francisco. Plusieurs fois on observe indiference du patrimoine historique-
archéologue du peuple du São Francisco, ce qui devient impératif et la mobilisation e
urgence pour préserver le peu qui reste de cette mémoire “ribeirinha”, aujourd’hui
compléxement enlacée les revendication de rapatriement pour les groupes indigènes
restant, résistant.

Mots- clés: Barrages, Ethnie indigène, Culture matériel et Rapatriement.


11

ABSTRACT

There is an empty chapter on the history and identity of indigenous groups of the São
Francisco, today around 32 groups, distributed in over 38 territories. The village of
the archaic Franciscan Valley, according to data from archaeological research
(VERGNE, 2004), began at least nine thousand years ago. However, among the
early history of human groups of that region, there is an abyss of ignorance. Part of
what we know is caused by the cultural material (lithic artifacts, ceramics, organic -
skeletons, decorations, remains of fauna and flora -, paintings and rock carvings
etc.), raised in several rescues made by national and international researchers /
MARTIN , 1996; ETCHEVARNE, 2002; PROUS, 1992; GUIDON, 2004; VERGNE,
2004; BELTRÃO, 2004; FERNANDES, 2005; KESTERING, 2007), especially in
areas flooded by large dams. Even the information raised is not sufficient to resolve
the impasse regarding the historical continuity / discontinuity between the symbolic
and cultural groups and indigenous peoples from "remnants" of the Old Chico. This
multidisciplinary research was taken to examine how indigenous people of the São
Francisco, particularly the People Tuxá of Rodelas, the case study of theory, believes
the material culture raised in the rescue of archaeological dams (Sobradinho,
Itaparica and Xingo) and the incorporation identity contemporary process. The results
allow us to infer that these groups not only recognize this material culture as
belonging to their ancestors, but also incorporate it in their processes of
contemporary collective identities, in a process of election codes of symbolic and
traditional / gifts, which they consider relevant. Despite the important contribution of
archaeological rescue, it appears that a significant memory of the Brazilian people
that was lost beneath the waters by dam Hydroelectric Plants from the High to Low
Sao Francisco. Daily we also noticed a blatant disregard for historical and
archaeological heritage of the people of the Sao Francisco, which makes it
imperative for urgent mobilization to preserve the little that remains of the riverside
memory today complicated tied up to the claims of repatriation by indigenous groups
"remnants",resistant.

Keywords: Dams, Indigenous Ethnicity, Material Culture and repatriation


12

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ...............................................................................................................................5

RESUMO .............................................................................................................................................9

RESUMÉ ...........................................................................................................................................10

ABSTRACT .......................................................................................................................................... 11

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................... 13

CAPITULO 1. RIO SÃO FRANCISCO: ENTRE O TEMPO ARCAICO E CONTEMPORÂNEO ...............19

CAPITULO 2. POVOS, COMUNIDADES TRADICIONAIS E MEIO AMBIENTE. .....................................25

CAPITULO 3. POVOS INDÍGENAS DA BACIA DO SÃO FRANCISCO ...................................................42

CAPITULO 4 IMPACTOS SOCIOAMBIENTAIS DAS BARRAGENS SOBRE OS POVOS INDÍGENAS


DA BACIA DO SÃO FRANCISCO....................................................................................116

CAPITULO 5. NOTAS REFERENCIAIS SOBRE A ARQUEOLOGIA NA BACIA DO SÃO FRANCISCO............. 172

CAPITULO 6. BARRAGENS: DESTRUIÇÃO DA CULTURA MATERIAL E AMEAÇAS DE


TERRITÓRIOS TRADICIONAIS DOS POVOS INDÍGENAS DO SÃO FRANCISCO .....248

CAPITULO 7. CONTINUIDADE SIMBÓLICA: ETNICIDADE E CULTURA MATERIAL NA BACIA DO


SÃO FRANISCO...............................................................................................................287

CAPITULO 8. POVO TUXÁ: UM ESTUDO DE CASO ............................................................................309

CAPITULO 9 . FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICO-METODOLÓGICA.........................................................329

CAPITULO 10.CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................348

BIBLIOGRAFIA.....................................................................................................................................355

ANEXOS .........................................................................................................................................362
13

APRESENTAÇÃO

O Rio Arcaico “franciscano”, por suas características geológicas, faunísticas,


vegetais, hidrográficas, climáticas, entre outras, tornou-se um espaço preferencial
para grupos humanos há, pelo menos, nove mil anos, de caçadores-coletores e
agricultores-ceramistas, que viveram no seu grande vale até a chegada dos
colonizadores europeus.

Etchevarne1 (2000) descreve que no processo de conquista e colonização desse


espaço esses grupos foram paulatinamente “desaparecendo” como entidades
etnicamente diferenciadas, por extermínio, aculturação ou miscigenação. Numa
outra vertente, algumas pesquisadoras brasileiras (SILVA, 2003; MARTIN, 2005)
problematizam que não devemos pensar numa ruptura brusca nos processos
culturais desses povos, nem na pré-história, nem no início do período da
colonização.

Um fato objetivo é que, na Bacia do São Francisco, existem 32 povos indígenas,


distribuídos em 38 territórios, onde, a maioria deles “reconhecem” esses grupos pré-
coloniais como seus ancestrais. Esse processo eé definido como “etnogênese”. Para
os indígenas: “ressitência étnica”.

Parte do que sabemos sobre esses grupos que viveram na Bacia do São Francisco,
há milhares de anos atrás, é a partir da cultura material (peças líticas, cerâmicas,
esqueletos, restos de fauna e flora, pinturas e gravuras rupestres, adornos, etc)
levantada da “nascente” até a sua “foz”, sobretudo, a partir dos projetos de
salvamento arqueológicos decorrentes das construções de grandes barragens e
outros empreendimentos, realizados em toda a Bacia.

Uma pergunta suscitada a partir dos estudos desses grupos pré-históricos do São
Francisco, que intriga alguns pesquisadores e pesquisadoras, é se existe alguma
1
REVISTA USP, São Paulo, n. 44, p. 112-141, dezembro/fevereiro 1999-2000.
14

relação entre os povos indígenas “remanescentes” e os grupos pré-coloniais


franciscanos. Não é intenção dessa tese mergulhar nessa complexa questão, mas
analisar as interpretações dos povos indígenas “remanescentes” do São Francisco
sobre essa relação que, de alguma forma, é mediada pelo viés da cultura material.
Trata-se de trazer à cena mais um legítimo discurso pouco discutido nas pesquisas
realizadas no São Francisco até o momento.

Considerando que o São Francisco é o rio nacional com a maior cascata de grandes
barragens do Brasil, durante os anos de 2004 a 2005, coordenei uma pesquisa, pela
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), sobre os impactos socioambientais
ocasionados pelas grandes barragens em toda a Bacia. Parte desses estudos
constam nas publicações Ecologias de Homens e Mulheres do Semi-Árido
(MARQUES, 2005) e Ecologias do São Francisco (MARQUES, 2006).

Dentre os impactos levantados, destacamos a destruição/inundação de várias


cidades ribeirinhas, como Remanso, Casa Nova, Sento Sé, Pilão Arcado,
Sobradinho, Barra do Tarrachil, Rodelas e Glória, na Bahia, e Petrolândia e
Itacuruba, em Pernambuco. Essa experiência está associada à transferência forçada
de mais de 150 mil pessoas, entre as quais, vários povos e comunidades tradicionais
ribeirinhos, a exemplo do Povo Tuxá de Rodelas, mais de duzentas famílias, que
foram deslocados para os municípios de Inajá, Ibotirama e Nova Rodelas e que há
vinte anos, ainda lutam para assegurar direitos pelas medidas compensatórias e
definição de seus territórios junto à Companhia Hidroelétrica do São Francisco
(CHESF). Hoje sabemos da existência de 23 famílias Tuxá no município de Banzaê,
Bahia, o que mostra a continuidade da dispersão do grupo.

Um outro aspecto observado na pesquisa trata da destruição do patrimônio


paleoarqueológico e paisagístico em todas as regiões do São Francisco onde foram
construídas as grandes barragens (Três Marias, Complexo Paulo Afonso,
Sobradinho, Itaparica e Xingó). Como pode ser observado nesta tese, toda a Bacia,
foi território preferencial de grupos pré-coloniais que passaram e se fixaram em
algumas de suas áreas. Seus registros formaram “um tapete” de informações
contidas em toda a cultura material produzida por esses grupos ao longo de todo o
corpo do São Francisco.
15

Apesar dos salvamentos feitos por alguns/algumas arqueólogos/as antes da


construção das barragens, parte deles apressados e bastante limitados, excetuando-
se alguns casos como Itaparica e Xingó, podemos inferir que parte significativa
dessa memória do povo brasileiro se perdeu embaixo das águas represadas pelas
Usinas Hidroelétricas, desde o Alto até o Baixo São Francisco. Vale destacar que
estes estudos não foram feitos nas áreas inundadas pelas barragens de Paulo
Afonso.

Foi porém, uma carta endereçada à Universidade do Estado da Bahia (UNEB), feita
pelo Povo Tuxá de Rodelas, solicitando o repatriamento das peças encontradas no
salvamento arqueológico de Itaparica, que, de alguma forma, motivou a elaboração
dessa tese. Naquele momento, inquietou-me as perguntas: que sentido tem a cultura
material pré-colonial para os grupos indígenas “remanescentes” do São Francisco?
Como eles a percebem e incorporam nos seus processos identitários e territoriais? É
importante ressaltar as limitações no campo das ciências humanas em falar de uma
“continuidade histórico-cultural” desses grupos originários com os povos indígenas
contemporâneos. Portanto, a demanda dos Tuxá, sinalizava para uma “continuidade
de natureza simbólica”, estruturada numa noção de descontinuidade (FOUCAULT,
1972), na incorporação desses símbolos/códigos pré-históricos nos seus atuais
processos identitários. A teia que propus para esta análise foi:

No Capítulo 1, é feita uma caracterização desde o Rio Arcaico do Vale do São


Francisco até suas fisionomias contemporâneas, haja vista que estes dois contextos
misturam-se quando é feito o exercício de pensar elementos da cultura material pré-
histórica nas suas relações com os contextos culturais recentes.

No Capítulo 2, esboçamos uma discussão geral sobre as novas elaborações a


respeito dos Povos e Comunidades Tradicionais, situando no bojo dessas
discussões os povos indígenas remanescentes/resistentes do São Francisco, hoje
32 etnias, distribuídas em 38 territórios, tomando como categoria de análise o
princípio da auto-identificação/atribuição, reafirmado na Conveção 169 da OIT
(Organização Internacional do Trabalho).
16

No Capítulo 3, apresentamos notas resumidas sobre a caracterização de cada uma


das etnias indígenas existentes na Bacia do São Francisco, objetivando dar
visibilidade ao recente processo de afirmação/emergência/resistência étnica
observado neste século passado em toda a Bacia.

No Capítulo 4, analisamos os impactos socioambientais ocasionados pelas grandes


barragens sobre os povos indígenas da Bacia do São Francisco, destacando-se o
processo de destruição/inundação da rica cultura material existente em todo território
do Vale Franciscano.

De modo geral, esta tese também teve a pretensão de dar visibilidade à riqueza da
cultura material levantada em toda a Bacia Rio São Francisco. Parte desse trabalho
consta no Capítulo 5, intitulado “Notas Referenciais sobre a Arqueologia na Bacia do
São Francisco”. Não se trata da elaboração de uma síntese, mas um texto que
situe, de forma geral, como tem sido o trabalho de salvamento dos vestígios pré-
históricos no Alto, Médio, Submédio e Baixo São Francisco, antes e após a
construção das grandes barragens.

No Capítulo 6, analisamos os impactos das grandes barragens na destruição da


cultura material e ameaças de Territórios Tradicionais dos Povos Indígenas do São
Francisco. Neste texto, é perceptível quão atual é a repetição de um modelo
capitalista-desenvolvimentista iniciado com a construção das grandes barragens na
época da ditadura militar e atualizado em governos considerados mais democráticos
e populares, a exemplo da construção das barragens de Riacho Seco e Pedra
Branca, que inundará os territórios indígenas dos Truká e Tumbalalá, nos municípios
de Cabrobó/PE e Curaçá/BA, respectivamente.

No Capítulo 7 apresentamos, de forma mais pontual, a relação entre cultura material


e etnicidade indígena dando ênfase às formas como so grupos indígenas
remanescentes simbolizam os artefatos materiais produzidos por grupos pré-
coloniais e coloniais que os antecederam no território da Bacia do São Francisco e
os incorporam à seus processos identitários contemporâneos.
17

No Capítulo 8, analisamos como estudo de caso, a realidade do Povo Tuxá de


Rodelas, vítimas da barragem de Itaparica durante esses vinte anos da sua
construção e que, ainda hoje, reivindicam a definição de seus territórios e a
finalização dos processos indenizatórios.

No Capítulo 9, apresentamos os caminhos metodológicos trilhados para a


construção dessa tese, inspirados na etnometodologia e em categorias explicativas
que proporcionaram a análise dos discursos elaborados pelos povos indígenas
sobre a cultura material franciscana.

Nas considerações finais, Capítulo 10, problematizamos quão urgente é a


necessidade de discutirmos a dispersão da cultura material levantada em toda a
Bacia do São Francisco, parte fora do Brasil, também fragmentada em museus e
universidades fora da Bacia, excetuando-se o Museu de Arqueologia de Xingó
(MAX), localizado próximo a UHE-XINGÓ, em Canindé do São Francisco. Serigipe.

Também como produto desta tese, construímos um mapa onde localizamos todos os
povos indígenas do São Francisco na suas relações com as grandes e pequenas
barragens já construídas em toda a Bacia, bem como um documentário com as
entrevistas realizadas durante o trabalho de levantamento dos dados, iniciado no
ano de 2005 e finalizado em 2008, destacando-se a fala dos povos indígenas, de
alguns antropólogos e dos arqueólogos que fizeram pesquisas no São Francisco.

Espera-se que este trabalho motive, na verdade, um debate sobre os processos de


repatriamento dessas peças, considerando o sentido que elas têm para os grupos
indígenas que ainda resistem e vivem no São Francisco e que, de alguma forma, as
reconhecem como pertencentes aos seus antepassados e as incorporam nos seus
processos identitários contemporâneos.

É importante deixar claro para os que irão ler esta tese, que não se trata de uma
obra na área de arqueologia ou antropologia, embora tome os saberes produzidos
nestas áreas científicas como referência. Produzida num programa multirreferencial
em Cultura e Sociedade, a base de fundamento das reflexões estabelecidas nesta
pesquisa articula-se com um pensamento sistêmico, multidisciplinar e que tem como
18

âncora os estudos culturais e suas inferências no campo da identidade étnica e da


cultura material, particularmente dos povos ribeirinhos do São Francisco que
habitam essa região há milênios.
19

CAPÍTULO 1. RIO SÃO FRANCISCO: ENTRE O TEMPO ARCAICO E


CONTEMPORÂNEO

1.1. O RIO ARCAICO

Figura 01: Nascente do São Francisco, Serra da Canastra (MARQUES, 2007).

Em todas as civilizações, um dos elementos fundamentais para escolha de um lugar


é sua proximidade com os corpos d’água. No caso do rio São Francisco, todo o seu
Vale tornou-se um caminho preferencial para os grupos pré-coloniais, desde suas
cabeceiras até a foz, como pode ser observado nos sítios arqueológicos estudados
em todo o seu curso. Além da água, fatores como clima, relevo e vegetação, foram
determinantes para esta escolha.

A dispersão dos grupos humanos pré-históricos que viveram no São Francisco


arcaico dependeu das condições geográficas e ambientais, tanto para suas
caminhadas, quanto para alimentação e fabricação de instrumentos necessários à
sua sobrevivência.

Compreender a dinâmica ecológica desses grupos na pré-história é uma tarefa


bastante complexa, haja vista que as condições naturais do Velho Rio estão ligadas
a diversos fatores susceptíveis de grandes mudanças como a geologia, o clima, a
hidrografia, entre outros, e por não dispormos de estudos sistemáticos sobre essas
mudanças, essa análise, apesar de necessária, tem sido bastante limitada. Segundo
a Dra. Niède Guidon (2006):
20

É difícil pensar sobre a questão da origem dessas populações que estavam


na região do São Francisco. É difícil também por essa razão, quer dizer,
existem poucas pesquisas. Aparentemente só a partir de 9 a 10 mil anos
que elas estavam ali, mas também tem uma outra questão, que aqui nós
tivemos um período de muita chuva entre 20 mil e 9 mil anos, então pode
ser que os sítios mais antigos tenham sido destruídos, principalmente no
vale de um rio grande como é o São Francisco. O São Francisco deveria
ser muito maior, e eu não conheço nenhum trabalho que trate da evolução
do São Francisco, quer dizer, o que aconteceu naquela área, aonde é que
era a sua margem ha 5 mil, ha 10 mil, ha 20 mil anos atrás.

Para André Prous (1992):


A Bacia do Rio São Francisco, isolada do mar e das outras bacias por um
importante desvio, se estende por uma zona onde não houve mata fechada
no Quaternário. No entanto, a via fluvial deve ter sido, uma vez mais, um
elo importante de propagação cultural, como testemunha a tradição
específica de arte rupestre que leva seu nome.

No Alto São Francisco, referindo-se a um período correspondente entre 11.000-


9.000 AP, pesquisas realizadas nas regiões de Lagoa Santa, Serra do Cipó e
Montes Claros, indicam que várias grutas foram utilizadas como cemitério e como
local de habitação (PROUS, 1992).

Figura 02: Pinturas Rupestres em um abrigo no Vale do Peruaçú (MARQUES, 2007).

No Médio, sobretudo na região de Sobradinho, pesquisadores (KESTERING, 2007)


levantaram a hipótese deste local ter sido uma área de passagem de diferentes
grupos pré-históricos, com diferentes graus de permanência.

Na região do Submédio, a partir das pesquisas desenvolvidas pelo arqueólogo


Carlos Etchevarne (2002), pôde-se inferir que as áreas dunares do São Francisco,
21

também foram locais preferenciais dos grupos pré-coloniais, tanto para habitação,
quanto para rituais funerários.

Pesquisas realizadas no Baixo São Francisco (VERGNE, 2004), evidenciaram que


dentre os locais escolhidos para área de moradia, tanto pelos grupos caçadores-
coletores quanto os ceramistas, destacam-se os terraços fluviais, na região do
cânion Paulo Afonso/Xingó/Piranhas, áreas que eram ricas em recursos faunísticos
e ambientais. Para Vergne (2004):
Os terraços aluviais foram nichos ecológicos com potenciais extraordinários
à fixação humana dentro de uma região marcada pela aridez do clima
semi-árido. Proporcionaram, sobretudo, uma singularidade dentro das
estruturas culturais do “Homem de Xingó”, fazendo-o ímpar na arqueologia
tanto regional quanto nacional

Figura 03: Cânion Paulo Afonso/Xingó (MARQUES, 2007).

Segundo AB’SABER (1997) a formação dessa área remonta ao Quaternário, cerca


de três milhões de anos atrás, em decorrência de sucessivos processos erosivos:
Temos boas razões para dizer que o Cânion de Paulo
Afonso/Xingó/Piranhas teve uma longa duração durante o quaternário,
envolvendo aproximadamente 3 milhões de anos em trabalhos de erosão
de talvegue (...) Numa primeira fase, houve um encaixamento discreto, com
a formação de um vale largo embutido em umas poucas dezenas de
metros abaixo do nível geral da superfície sertaneja moderna regional (...)
Um novo soerguimento do conjunto fez com que um novo patamar
intermediário fosse estabelecido, antes que a garganta do atual Cânion se
pronunciasse. Esse segundo nível intermediário de erosão culminou com
um vale embutido, no dorso do anterior, porém agora, com trechos
alternados de vale ora relativamente aberto, ora bastante estreito (...) foi a
partir desse batente de vale embutido, gerando os paredões verticais que
hoje se observam (AB’SABER, 1997).
22

Como podemos observar, ainda há muito por se pesquisar sobre as razões pelas
quais os grupos humanos da pré-história brasileira escolheram o rio São Francisco
para viver há pelo menos nove mil anos atrás e encontrar, a partir de 1501, com a
ação colonizadora que pôs “fim” às suas existências.

O que sobrou ao longo destes milênios do rio arcaico franciscano, foi intensamente
modificado com a cascata de barragens estruturadas em todo o seu curso, desde o
Alto até a sua foz. As barragens têm que ser situadas como vetores do apagamento
dessa memória que tem uma importância singular para o povo brasileiro.

1.2. O RIO SÃO FRANCISCO

Figura 04: Bacia do São Francisco (ANA, 2004).

O interesse pelos locais habitáveis das regiões franciscanas se deu em virtude de


características bem particulares: trata-se do único curso natural de água perene a
cortar parte das regiões semi-áridas do Nordeste do Brasil (70% de suas sub-bacias
e afluentes), caracterizando-se como via principal de atração dos diferentes grupos
humanos que se fixaram ou transitaram por suas margens.
23

O terceiro rio nacional em extensão, abaixo apenas do Amazonas e Paraná, foi


avistado pelo olhar colonizador em 04 de outubro de 1501, pela armada de Américo
Vespúcio, recebendo o nome do ambientalista e religioso São Francisco de Assis,
seguindo a tradição onomástica portuguesa da designação de acidentes
geográficos.

Antes era conhecido por alguns povos indígenas como Opará (Rio Tonto, Rio-Mar).
Conta a lenda desses grupos que o corpo do rio era formado pelas “lágrimas da
Índia Irati“.

Hoje, trata-se de um rio cuja área de toda a Bacia chega a 634.000 km2,
correspondendo a 8% do território brasileiro, com 2.700 km de extensão da nascente
à foz, onde estão localizados 504 municípios que abrigam uma população estimada
de mais de 15 milhões de habitantes.

O São Francisco, que foi um caminho natural para as rotas migratórias de povos pré-
históricos, tem ainda hoje grupos “remanescentes” dessas populações que habitam
suas margens nas proximidades de seus rios afluentes e em alguns casos, nos
topos de serras e brejos de altitude.

As primeiras informações sobre esses povos originários do “Grande Vale” são


decorrentes dos relatos provenientes do processo de colonização do início do século
XVI, feitos por missionários, viajantes, entre outros, somando-se às expedições
realizadas por diversos pesquisadores, a exemplo de naturalistas, engenheiros,
botânicos, geólogos, paleontólogos, realizadas nos séculos subseqüentes,
culminando com as novas pesquisas científicas desenvolvidas ao longo de toda
Bacia, em diversas áreas de conhecimento, destacando-se a arqueologia e
antropologia.

Dessas narrativas, citamos as análises feitas por exploradores como Martius e Spix
(1817-1820), Gaudner (1836-1841), Robert Ave-Lallemant (1836-1841), Henrique
Guilherme Halfeld (1852-1854), Richard Burton (1865) Minor Robert (1879), como
24

também por Saint-Hilaire, Derby, Eschwege, Carl Krauss, Liais e Teodoro Sampaio
(OLIVEIRA, 1997).

Outras importantes fontes de informações sobre os grupos originários do São


Francisco são os relatórios dos salvamentos arqueológicos de Sobradinho, Itaparica
e Xingó, as teses, dissertações, artigos científicos e alguns livros de pesquisadores
como: Carlos Estevão (1937), Valentin Calderón (1977), Carlos Etchevarne (2002)
Niède Guidon (2003), Celito Kestering (2003), André Prous (2003), Cleonice Vergne
(2004), Gabriela Martin (2005), entre outros.

Apesar dos recorrentes processos de destruição das fontes históricas, etnográficas


e arqueológicas em toda a Bacia do São Francisco, a partir das informações
levantadas ao longo desses quinhentos anos, dos dinâmicos processos sócio-
político-econômico-ecológico-culturais que aconteceram ao longo do vale
franciscano, é possível imaginar que o encontro dessas informações produzirá novos
sentidos identitários e territoriais para a Bacia do São Francisco e seus povos.

Na contemporaneidade, o que se pode dizer com precisão é que estamos diante de


um rio com alto grau de vulnerabilidade socioambiental, cujas matas ciliares foram
destruídas, onde há a maior concentração de grandes barragens do país, com sérios
impactos sobre a sociobiodiversidade, intenso processo de assoreamento, tanto na
calha quanto em seus afluentes, entre muitos outros graves problemas
socioambientais, como a destruição da cultura material de grupos pré coloniais,
ocasionadas pelas grandes barragens, responsáveis pela inundação de vários sítios
paleoarqueológicos na Bacia do São Francisco e pelo deslocamento de vários povos
indígenas.

Uma forma atualizada dessas agressões contra os povos indígenas no São


Francisco é a cosntrução dos canais (Norte e Leste) do Projeto de Transposição que
tem impactado, diretamente, vários povos entre os quais os Truká, Tumbalalá,
Pipipã, Kambiwá, Anacé, entre outros, como pode ser observado no Relatório-
Denúncia dos Povos Indígenas do Nordeste Impactados com a Transposição do rio
São Francisco (MARQUES et al, 2008).
25

CAPÍTULO 2. POVOS, COMUNIDADES TRADICIONAIS E MEIO AMBIENTE

Figura 05: Pescadores Tuxá (MARQUES, 2008).

2.1. MARCOS LEGAIS

O processo de formação da sociedade brasileira contou, na sua essência, com a


participação efetiva de diferentes povos e comunidades tradicionais que hoje,
estima-se, são cerca de 5 milhões de pessoas que ocupam cerca de 25% do
território nacional, ou seja, ¼ do território brasileiro.

Como analisa o antropólogo Alfredo Wagner (2006), “as terras tradicionalmente


ocupadas expressam uma diversidade de formas de existência coletiva de diferentes
povos e grupos sociais em suas relações com os recursos da natureza.” Esta
perspectiva de análise é o córrego que leva à assunção das identidades tradicionais
coletivas2.

O “tradicional” não está ligado, necessariamente, a uma idéia de “origem”. São os


processos político-organizativos, o modo de se relacionar com os territórios e o uso
dos bens da natureza neles disponíveis que configuram essas identidades.
Entretanto, em alguns grupos, observamos fortes ligações com uma busca pelo
passado, por uma “ancestralidade”, a exemplo de grupos indígenas, comunidades
quilombolas e povo de terreiro. Porém, o mote primordial das afirmações das
identidades coletivas é as lutas históricas para assegurar seus direitos enquanto
grupo culturalmente diferenciado.

2
Apesar dos avanços nas discussões a respeito dos Povos e Comunidades Tradicionais do Brasil, só recentemente temos
observado uma efetivação dessas identidades no plano das políticas públicas em decorrência das lutas desses grupos e seus
processos organizativos.
26

Apesar de assistirmos, nesta última década, ao surgimento e fortalecimento das


identidades coletivas, trata-se da consolidação de séculos de lutas pela superação
da invisibilidade e inadequação ao modelo de desenvolvimento que marcaram estas
comunidades durante muito tempo no Brasil, pois antes se acreditava na absoluta
assimilação desses povos às culturas hegemônicas: branca e cristã.

No Brasil, um marco para consolidação desse momento foi a promulgação da


Constituição de 1988, que valorizou a diversidade sócio-cultural brasileira, afirmando
no seu Artigo 321:
São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas,
crenças e tradições e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.

A Lei Magna assegura como terras tradicionais as habitadas pelos índios em caráter
permanente, utilizadas para suas atividades produtivas, imprescindíveis à
preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e necessárias a
sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições,
destinando-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes (PARÁGRAFOS 1o e 2o).

Outro aspecto importante da CF é que ela “impede” que os grupos indígenas sejam
removidos das suas terras, exceto pela autorização do Congresso Nacional, em
caso de epidemias ou catástrofes que ameacem os povos indígenas naquele
território, ou no interesse da soberania do país, contanto que seja garantido a
possibilidade do retorno tão logo cesse os riscos.

No caso da Bacia do São Francisco, apesar dessas prerrogativas constitucionais,


observamos recorrentes ameaças aos territórios indígenas, a exemplo da recém
autorização para construção do Eixo Norte da transposição no território Truká, das
barragens a serem construídas no território Tumbalalá, entre muitos outros
exemplos.
27

Figura 06: Indígenas Truká acampados no local do Eixo Norte da transposição (MARQUES, 2007).

A Constituição Federal, nos seus Artigos 215 e 216, reconhecem as áreas ocupadas
por remanescentes de quilombos como parte do patrimônio cultural do País. No Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), de 05/10/88, em seu Artigo 68,
reconhece a propriedade definitiva aos remanescentes das comunidades de
quilombos que estejam ocupando suas terras, cabendo ao Estado emitir-lhes os
títulos respectivos.

Apesar do que garante o Decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, que


regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação,
demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades
dos quilombos de que trata o Art. 68 do ADCT, recentemente essas comunidades
têm sido alvos de vários ataques por parte de grandes latifundiários e da mídia,
como tem sido o caso da comunidade quilombola de São Francisco do Paraguaçu
na Bahia que sofreu injustas críticas da Rede Globo em 2007, ou de vários políticos
que lutam para derrubar esse Decreto. A Instrução Normativa n. 49, de 29/09/2008,
traduz, em alguma medida a percepção desses grupos frente aos direitos étnicos e
territoriais dos grupos negros do Brasil.

Em virtude das dinâmicas derivadas das primeiras formulações legais de atenção


aos povos indígenas e comunidades quilombolas, em 1992 o IBAMA organiza a
Portaria no. 22-N, de 10 de fevereiro de 1992, criando o Centro Nacional de
Desenvolvimento Sustentado das Populações Tradicionais (CNPT). Este centro, por
28

muito tempo chamado de “ilha das populações3 tradicionais” no IBAMA, foi um dos
responsáveis pela solidificação, no Brasil, de um movimento conhecido como
socioambientalismo.

Esses debates sobre povos e comunidades tradicionais estão relacionados às


políticas ambientais e étnicas, nacionais e internacionais, como a Convenção sobre
a Diversidade Biológica (CDB), discutida e ratificada durante a Conferência das
Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, na cidade do Rio de
Janeiro, de 5 a 14 de junho de 1992, aprovada pelo Senado Federal através do
Decreto Legislativo no. 02, de 1994 e promulgada no Decreto no. 2.319/98. A alínea
‘‘j’’ do Art. 8 dessa Convenção faz a seguinte menção aos povos indígenas e demais
comunidades tradicionais:
Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e
manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e
populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à
conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar
sua mais ampla aplicação com aprovação e a participação dos detentores
desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição
eqüitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento,
inovações e práticas.

Para muitos a diversidade biológica nasce e deságua no campo específico do


mundo natural, sem uma dimensão social, cultural e simbólica associadas. Esta
visão é baseada num modelo preservacionista norte-americano, bastante
questionado na contemporaneidade.

Caso não pensemos os grupos humanos como pertencentes a esta diversidade, ao


menos devemos reconhecer os múltiplos usos que os mesmos fazem das espécies
de animais, plantas, solo, água e demais bens naturais existentes na natureza,
fatores preponderantes no processo de organização das culturas e sociedades
humanas, particularmente dos povos e comunidades tradicionais. No caso do Brasil,
o país mais mega-diverso do mundo, essas riquezas naturais estão em territórios
indígenas e de grupos negros quilombolas e de terreiros. Em escala global esses
grupos são responsáveis pela preservação de 75% (setenta e cinco por cento) da
biodiversidade (BOAVENTURA, 2008).

3
O termo “populações” denota certo agastamento e tem sido substituídos por “comunidades”, a quais aparecem revestidas de
uma dinâmica de mobilização, aproximando-se por este viés das categorias de ‘povos” (ALFREDO WAGNER, em
Apresentação do livro Direito dos Povos e Comunidades Tradicionais de Joaquim Neto, 2007)
29

Trata-se de um dos primeiros documentos brasileiros a reconhecer os saberes e


práticas tradicionais, recomendando em seu Art. 8o. a repartição dos benefícios
derivados dos usos desses conhecimentos com os povos e comunidades
tradicionais que os detêm. Este tema foi amplamente debatido na COP 8
(Convenção Internacional das Partes sobre Diversidade Biológica), realizado em
Curitiba/Brasil, de 21 a 30 de março de 2006.

Conforme descreve Diegues (2000), “pode-se falar numa etnobiodiversidade, isto é,


a riqueza da natureza da qual também faz parte o homem [e a mulher], nomeando-a,
classificando-a e domesticando-a”.

Em 2000 é sancionada a Lei no. 9.985 que regulamenta o Art. 225 da Constituição
Federal e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que
incorpora em seu corpo e espírito as demandas sociais das “populações extrativistas
tradicionais” (Arts. 17 e 18, respectivamente).

Esta Lei é um marco importante na consolidação do socioambientalismo no Brasil


quando, além de ratificar a proteção à biodiversidade, também endossa a urgência
de:
[proteger] os recursos naturais necessários à subsistência de populações
tradicionais, respeitando e valorizando seu conhecimento e sua cultura
o
promovendo-as social e economicamente (Art. 4 , XIII); [assegurar] a
participação efetiva das populações locais na criação, implantação e
o
gestão das Unidades de Conservação (Art. 5 ., III); [considerar] as
condições e necessidades das populações locais no desenvolvimento e
adaptação de métodos e técnicas de uso sustentável dos recursos naturais
o
(Art. 5 ., IX); [garantir] às populações tradicionais cuja subsistência
dependa da utilização de recursos naturais existentes no interior das
unidades de conservação, meios de subsistência alternativos ou a justa
o
indenização pelos recursos perdidos (Art. 5 ., X) (MMA, 2004).

Outros indicativos do fortalecimento das discussões socioambientais na Lei do


SNUC/2000 são: admitir, quando forem criadas Florestas Nacionais, a permanência
de populações tradicionais que a habitam (Art. 17, § 2o.) e considerar as áreas
utilizadas por populações extrativistas tradicionais como Categoria de Reserva
Extrativista, tipificando que as atividades das populações nesta área:
[...] baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de
subsistência e na criação de animais de pequeno porte e tem como
30

objetivos básicos proteger os meios de vida e a cultura dessas populações,


e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da unidade (Art. 18).

Mais adiante, no seu Artigo 20, prescreve:


A Reserva de Desenvolvimento Sustentável é uma área natural que abriga
populações tradicionais, cuja existência baseia-se em sistemas
sustentáveis de exploração dos recursos naturais, desenvolvidos ao longo
de gerações e adaptados às condições ecológicas locais e que
desempenham um papel fundamental na proteção da natureza e na
manutenção da diversidade biológica.

Quando se trata de Unidades de Proteção Integral, os povos e comunidades


tradicionais residentes nas áreas “serão indenizadas ou compensadas pelas
benfeitorias existentes e devidamente relocadas pelo Poder Público, em local e
condições acordadas entre as partes” (Art. 42).

Aqui mora um dos pontos mais polêmicos da Lei: criar categorias de unidades onde
não é permitida a presença humana, cuja existência de povos e comunidades
tradicionais são, na maioria das vezes, seculares. Neste particular também não
podemos ignorar que, na maioria das vezes, os processos de relocação de
comunidades são extremamente traumáticos, como foi o caso do deslocamento das
populações do São Francisco, decorrente das construções de grandes barragens.

Esses grupos tradicionais, conhecidos como “minorias étnicas”, sofreram ao longo


da história do Brasil diferentes formas de preconceitos e discriminação, culminando
com a absoluta negação de seus direitos. Porém, após a III Conferência das Nações
Unidas Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância
Correlata, realizada em agosto-setembro de 2001, em Durban, na África do Sul,
ratificada por quase todos os países participantes, inclusive pelo Brasil, novos
desdobramentos são observados nas políticas sociais dos países signatários da
"Declaração de Durban", que tipifica as formas de racismo e discriminação racial
existentes no mundo, estabelecendo um programa de ações a ser cumprido pelos
países membros. Na atualidade é comum vermos vários grupos tornarem-se
refugiados ambientais, vítimas dessas decisões.
31

Outro importante documento a este respeito é a Declaração Universal da


Diversidade Cultural (UNESCO, 2002), que proclama no item sobre Identidade,
Diversidade e Pluralismo:
A cultura adquire formas diversas através do tempo e do espaço. Essa
diversidade se manifesta na originalidade e na pluralidade de identidades
que caracterizam os grupos e as sociedades que compõem a humanidade.
Fontes de intercâmbio, de informação e de criatividade, a diversidade
cultural é, para o gênero humano, tão necessária como a diversidade
biológica para a natureza. Neste sentido, constitui o patrimônio comum da
humanidade e deve ser reconhecida e consolidada em benefício das
o
gerações presentes e futuras (Art. 1 .).

Através do Decreto Legislativo no. 143, do Senado Federal, em junho de 2002, foi
ratificada no Brasil a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do
Trabalho), que reconhece os processos de AUTO-IDENTIFICAÇÃO como critério
fundamental nas definições das identidades étnico-culturais, e reforça os
movimentos sociais orientados principalmente por fatores étnicos e pelo
fortalecimento dessas identidades coletivas. Nos Artigos descritos abaixo
percebemos a consolidação desse critério:
o
Art. 2 . A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser tida
como critério fundamental para determinar os grupos aos quais se aplicam
as disposições desta Convenção. [...] Art. 14º. Dever-se-á reconhecer aos
povos interessados os direitos de propriedade e de posse sobre as terras
que tradicionalmente ocupam. [...] Art. 16º. Sempre que for possível, esses
povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que
deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e
reassentamento.

No dia 20 de novembro de 2003, em comemoração ao Dia Nacional da Consciência


Negra, o presidente Lula publicou o Decreto no. 4.887 que regulamenta o
procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação
das terras ocupadas por remanescentes dos quilombos4.

Em 1o. de março de 2004 a Fundação Palmares baixou a Portaria no. 06 que


instituem o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades de Quilombos.
Este fato deu movimento a um silêncio secular ainda presente em comunidades
negras isoladas, forçadas ao longo da história do Brasil a terem vergonha de serem
descendentes de escravos. Hoje essa “mordaça” tem sido gradativamente
desenlaçada.

4
Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotadas de relações territoriais específicas, com
presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida (Artigo 2o.).
32

Ainda devido à pressão dos movimentos sociais, em 27 de dezembro de 2004, o


Governo Federal decretou a criação da Comissão de Desenvolvimento Sustentável
das Comunidades Tradicionais. Neste momento da história do Brasil já havia um
amadurecimento e ampliação do olhar para o que se estava chamando de “povos e
comunidades tradicionais”. A noção de comunidade empregada neste documento
incorporou o acúmulo das discussões em torno da noção de “povos tradicionais”,
superando os limites da concepção de “populações”, problematizada desde a época
da consolidação da Convenção 169 da OIT.

A Convenção sobre Proteção e Promoção da Diversidade e das Expressões


Culturais (UNESCO/2005), entre tantos outros mecanismos nacionais e
internacionais tem assegurado o protagonismo aos grupos sociais de falar em nome
próprio. São as próprias comunidades e povos, a partir dos seus processos
históricos, das suas lutas, suas relações com os territórios e bens da natureza, que
se definem. Ainda os Estados e alguns ramos da ciência são mediadores de
instrumentos de reconhecimento desses processos. Como bem afirma o Cacique
Zezinho Koiupanká (2008): “Não é fulano que tem dizer que você é você. Quem diz
que você é você é você mesmo”.

A CIAD - Conferência dos Intelectuais da África e da Diáspora é outro importante


instrumento internacional de afirmação das identidades negras no mundo. Funciona
como um espaço catalisador e problematizador das conseqüências de todas as
formas de preconceitos e discriminação associadas aos grupos negros no mundo,
particularmente os provenientes do processo mundialmente conhecido como
Diáspora Africana.

Toda esta trajetória culmina, a partir da definição do Decreto Federal no. 6.040/07,
de 07 de fevereiro de 2007, com a instituição da Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Além dessas
formulações no campo jurídico-formal, diferentes estados brasileiros vêm
incorporando os debates sobre os povos tradicionais, suas lutas e reivindicações.
33

A Constituição Estadual do Maranhão, de 1990, assegura a exploração dos


babaçuais em regime de economia familiar e comunitária. A Constituição Estadual
da Bahia, de 1989, assegura o direito de uso às comunidades sertanejas, das áreas
de fundo de pasto5. A Constituição Estadual da Amazônia contempla os direitos dos
núcleos familiares que ocupam as áreas das barreiras de terra firme e as “terras de
várzeas” e garante seus meios de sobrevivência. A Lei Estadual do Paraná, de
1997, reconhece formalmente os faxinais como sistema de produção camponês
tradicional, característico da região Centro-Sul do Paraná. Leis municipais aprovadas
no Maranhão, no Pará e no Tocantins desde 1997, conhecidas como “leis do
Babaçu Livre”, disciplinam o livre acesso aos babaçuais. Estas leis vem inspirando
municípios do interior da Bahia que reivindicam as leis do “Licuri Livre”, a exemplo
da lei aprovada no Município de Antônio Gonçalves-BA, em 12 de agosto de 2005
(WAGNER, 2006).

Apesar dos avanços, ainda percebemos em alguns espaços legislativos de alguns


municípios brasileiros, formulações de propostas de leis que ratificam o preconceito
e negação das identidades e direitos dos povos e comunidades tradicionais.
Destaca-se desse cenário, as propostas de retirarem os nomes ‘negros’, do
município de Brejões dos Negros/SE e ‘índios’, de Palmeira dos Índios/AL.

Outra importante mudança observada em alguns cantos do Brasil diz respeito ao


reconhecimento da simbiótica relação entre povos e comunidades tradicionais e os
corpos d’água. Recentemente foi reivindicada a efetiva participação dos povos e
comunidades tradicionais no Conselho Nacional de Recursos Hídricos. O Comitê da
Bacia Hidrográfica do São Francisco, processualmente, vem incluindo novos
integrantes de outros povos e comunidades tradicionais, a exemplo das
comunidades quilombolas.

Segundo orientações da lei 9433/97, que institui a Política Nacional de Recursos


Hídricos, o único segmento com assento no Comitê são os povos indígenas. Quanto
à participação dos pescadores artesanais, concorrem com o segmento “Pesca,
Turismo e Lazer”, que difere da categoria tradicional de “Pescadores Artesanais”.
5
Comunidades sertanejas que desenvolveram uma forma própria de uso dos territórios das caatingas, sobretudo com o
manejo do caprino . Hoje cerca de 80% dessas áreas, terras devolutas, guardam boa parte da biodiversidade da Caatinga,
constituindo-se em áreas a serrem consideradas no processo de conservação da natureza.
34

Tais mudanças processaram-se, também, a partir da estruturação da Câmara


Técnica de Comunidades Tradicionais - CTCT, no CBHSF.

A intensificação dos processos político-organizativos, identitários e territoriais, de


diversos grupos tradicionais no Brasil, entidades e movimentos sociais,
pressionaram o Governo a instituir, a través do Decreto n. 6040 de 07 de fevereiro
de 2007, a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e
Comunidades Tradicionais objetivando reconhecer e fortalecer os direitos territoriais,
identitários, culturais, ambientais, sociais e econômicos desses povos e
comunidades. É importante observar que nem sempre a afirmação das identidades
tradicionais coletivas e a estruturação de marcos legais são suficientes para
assegurar o legítimo exercício da plena cidadania dos povos e comunidades
tradicionais. Recorrentemente vemos todos esses acúmulos cederem espaços para
que o “trator do desenvolvimento passe”, como é perceptível em todo o Brasil
violações aos territórios de diferentes povos e comunidades tradicionais.

Recentemente foi estruturada no Brasil a Lei no. 11.645 de 10 de março de 2008,


que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena”. Esse fato, represente um marco determinante nos debates
acerca dos processos identitários e territoriais dos grupos tradicionais do Brasil.

2.2. CONCEITUANDO POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS

A Política Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, instituída pelo Decreto


Presidencial no. 6.040/07, conforme descrito no Artigo 3o., inciso I e II
respectivamente, conceitua Povos, Comunidades e Territórios Tradicionais da
seguinte forma:
Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e
que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de
organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais
como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e
econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição;

Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural,


social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles
utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz
35

respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que


dispõem os Arts. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias e demais regulamentações.

Anterior a esta formulação, já circulava no plano das políticas nacionais, exercícios


de conceituação sobre os povos e comunidades tradicionais. A Portaria no. 22/92 do
IBAMA, que criou o CNPT, estabeleceu a seguinte definição: “comunidades que
tradicional e culturalmente têm a subsistência baseada no extrativismo de bens
naturais renováveis”.

Outro importante dado sobre o conceito de povos tradicionais diz respeito à polêmica
causado pelo Veto6 do Poder Executivo ao inciso XV do Artigo 2o. da Lei 9.985/2000
do SNUC que esboçava uma conceituação:
Grupos humanos culturalmente diferenciados, vivendo há, no mínimo, três
gerações em determinado ecossistema, historicamente reproduzindo seu
modo de vida, em estreita dependência do meio natural para sua
subsistência e utilizando os recursos naturais de forma sustentável.

É provável que dos elementos que concorreram para a elaboração do veto, a


exigência da permanência na área por três gerações, tenha sido o mais forte, haja
vista fugirem de critérios que incluíssem muitas comunidades tradicionais,
particularmente as populações extrativistas. Entretanto, a conceituação do que
pensamos ser territórios, povos e comunidades tradicionais está na pauta de amplos
e acalorados debates acadêmicos, dos movimentos sociais, das próprias
comunidades tradicionais e no campo das políticas públicas, particularmente no
campo jurídico-formal.

Para Diegues (1983) as culturas tradicionais são aquelas que se desenvolveram a


partir do modo de produção da pequena produção mercantil, considerando a
abordagem marxista de que as culturas tradicionais se relacionam com modos de
produção pré-capitalistas, onde o trabalho ainda não é tratado como mercadoria. Na
construção do documento do MMA (2000) sobre Saberes Tradicionais e

6
O conteúdo da disposição é tão abrangente que nela, com pouco esforço de imaginação, caberia toda a população do Brasil.
De fato, determinados grupos humanos, apenas por habitarem continuadamente em um mesmo ecossistema, não podem ser
definidos como população tradicional, para os fins do Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza. O conceito
de ecossistema não se presta para delimitar espaços para a concessão de benefícios, assim como o número de gerações não
deve ser considerado para definir se a população é tradicional ou não, haja vista não trazer consigo, necessariamente, a noção
de tempo de permanência em determinado local, caso contrário, o conceito de populações tradicionais se ampliaria de tal
forma que alcançaria, praticamente, toda a população rural de baixa renda, impossibilitando a proteção especial que se
pretende dar às populações verdadeiramente tradicionais (Mensagem no. 967, de 18 de julho de 2000, enviada pelo Presidente
da República ao Presidente do Congresso Nacional, In: SANTILLI, 2005).
36

Biodiversidade no Brasil, o referido autor adota a noção de “Sociedades


Tradicionais”:
Grupos humanos diferenciados sobre o ponto de vista cultural, que
reproduzem historicamente seu modo de vida, de forma mais ou menos
isolada, com base na cooperação social e relações próprias com a
Natureza. Essa noção refere-se tanto a povos indígenas quanto a
seguimentos da população nacional, que desenvolveram modos
particulares de existência, adaptados a nichos ecológicos específicos
(DIEGUES, 2000).

Ainda para Diegues (2000) outro importante fator dessa relação entre os grupos
tradicionais e a natureza é sua relação com o território, definido da seguinte maneira:
Como uma porção da natureza e do espaço sobre o qual determinada
sociedade reivindica e garante à todos, ou a uma parte dos seus membros,
direitos estáveis de acesso, controle ou uso na totalidade ou parte dos
recursos naturais existentes.

No arcabouço do ordenamento jurídico-formal do Estado brasileiro há um acúmulo


de instrumentos voltados para os povos indígenas e, em alguns casos, comunidades
quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais. Contudo, as últimas
formalizações legais, sendo uma delas a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, colocam o Estado na
emergência de reformular diversos aspectos das suas políticas públicas. Por
exemplo, a aceitação das “Identidades Coletivas das Comunidades e Povos
Tradicionais” reafirma o conceito de “território”, que implica na urgente necessidade
de re-elaboração das políticas de regularização fundiária, ambientais e étnicas.

Abaixo tabela das formas de reconhecimentos jurídicos das denominadas “terras


tradicionais”, que representam, em algum grau, o processo de adequação do Estado
às reivindicações dos povos e comunidades tradicionais e seus respectivos
movimentos sociais.
37

TABELA 01: FORMAS DE RECONHECIMENTO JURÍDICO DAS MODALIDADES DE


APROPRIAÇÃO DAS DENOMINADAS “TERRAS TRADICIONALMENTE OCUPADAS” 1988-2004.
“Posse Permanente”, usufruto exclusivo dos recursos
Povos Indígenas CF–1988, Art. 231
naturais. Terras como “bens da União”
Comunidades Remanescentes
Propriedade. “Titulação definitiva” CF – ADCT, Art. 68
de Quilombos
Uso comum dos babaçuais “sem posse e sem Leis Municipais (MA, TO)
Quebradeiras de Coco Babaçu
propriedade” 1997-2004
“Regime de economia familiar e comunitária” CF-M-1990,Art. 196
RESEX – “de domínio público, com uso concedido às CF-1988, Art. 20 § 3o Decretos
Seringueiros, Castanheiros,
populações extrativistas tradicionais”. Posse 1990, 1992, 1998
Quebradeiras de Coco Babaçu
Permanente. Terras como “bens da União” Lei 9.985-18/07/00
RESEX – “Terrenos de Marinha” Recursos Hídricos CF-1988, Art. 20 § 3o Decretos
Pescadores
como “bens da União” 1992 e 1997
Fundo de Pasto “Direito real de concessão de uso” CE-BA –1989, Art. 178
“Uso coletivo da terra para produção de animal e
Faxinal Decreto Estadual Paraná 14/08/97
conservação ambiental”
FONTE: ALMEIDA, Afredo Wagner Berno de. Terras de Quilombo, Terras Indígenas, “Babaçuais Livres”, Faxinais e
Fundo de Pasto: Terras Tradicionalmente Ocupadas. Manaus/AM: PPGSCA-UFAM, 2006.

Conflitos recentes associados à implantação do Monumento Natural do Cânion do


São Francisco, reavivou um debate urgente a respeito da necessidade de definição
dos territórios associados aos Pescadores Artesanais, pensado como território
líquido e ainda sem legislação específica para os processos de demarcação,
titulação e posse. Nessa “matemática”, sempre os pescadores e demais grupos
tradicionais que fazem uso destes espaços aquáticos, são expropriados e expulsos
em favor de grandes grupos econômicos.

2.3. TRADIÇÃO E NATUREZA: “SEM FOLHA NÃO HÁ ORIXÁ7’’

Figura 07: Indígenas Pankararé em ritual no Raso da Catarina (MARQUES, 2007).

7
Frase de uma Ialorixá da Bahia (GIL, 2003).
38

O conhecido ecólogo e pesquisador da USP, Fábio Olmos, tem reafirmado


diferentes argumentos a respeito dos impactos dos grupos tradicionais sobre a
biodiversidade. Para ele “o uso não-sustentável dos recursos naturais sempre foi a
regra, também em sociedades não-ocidentais e não-capitalistas” (OLMOS apud
ALDÉ, 2007).

Como podemos observar abaixo, pesquisadores como Diegues (2000), Santilli


(2005), Wagner (2008), analisam que os sistemas de uso dos bens naturais por
povos e comunidades tradicionais, quase na absoluta maioria das vezes, respeitam
os ciclos de renovação da natureza se compararmos aos modelos de exploração
feitos por grandes empresas do agro-hidronegócio, siderurgias, mineradoras, entre
outras. Isto acontece, com as práticas de pesca artesanal dos pescadores e
pescadoras da Bacia do São Francisco, o uso do Caroá pelos indígenas do Raso da
Catarina e pelos quilombolas de Conceição das Crioulas no sertão nordestino, entre
muitos e infinitos exemplos.
Um aspecto relevante na definição de culturas tradicionais é a existência
de sistemas de manejo dos recursos naturais, marcado pelo respeito aos
ciclos da natureza e pela sua exploração, observando-se a capacidade de
reprodução das espécies de animais e plantas utilizadas. Esse sistema não
visa somente à exploração econômica dos recursos naturais, mas revela a
existência de um conjunto complexo de conhecimentos adquiridos pela
tradição herdada dos mais velhos (DIEGUES, 2000).

Os debates em torno da sustentabilidade planetária nas últimas décadas,


particularmente as preocupações decorrentes dos processos de mudanças
climáticas, anunciados em todo o mundo em relatórios da ONU, reforçaram as
preocupações com os modelos de uso dos bens naturais pelas sociedades
humanas, conseqüentemente, fortaleceu uma positividade relativa aos processos de
manejos tradicionais sustentáveis, secularmente desenvolvidos por povos e
comunidades tradicionais, em especial, pelos povos indígenas.
Tornou-se, portanto, mais evidente que as populações “tradicionais”,
seringueiros, castanheiros, ribeirinhos, quilombolas, mas principalmente
indígenas, desenvolveram pela observação e experimentação um extenso
e minucioso conhecimento dos processos naturais e, até hoje, as únicas
práticas de manejo adaptados às florestas tropicais (MEGGERS, 1997;
DESCOLA, 1990; ANDERSON e POSEY, 1990 apud DIEGUES, 2000).

Outro importante elemento dessa relação entre povos, comunidades tradicionais e


meio ambiente são as manifestações “dos sagrados”, tanto em sociedades de matriz
39

africana quanto indígenas. O Praiá, culto aos encantados dos indígenas Pankararé
do Raso da Catarina e outras etnias do Nordeste, faz referência a diferentes forças
da natureza. A elaboração desses encantados para diferentes etnias da Bacia do
Rio São Francisco, como os Tuxá de Rodelas e os Pankararu de
Tacaratu/Petrolândia/Jatobá, se dava nas cachoeiras de Itaparica e Paulo Afonso,
“desativadas” com as construções das barragens para geração de energia elétrica.

Figura 08: Praiá Pankararé (MARQUES, 2007).

Seo Afonso Pankararé (2007) descreve bem esta construção simbólica ao falar
sobre a relação entre os encantados e a Natureza:
Aonde existe Caatinga, existe os índios ao redor. A Caatinga não é só as
matas, é a sobrevivência de todos. Eu me criei no Raso da Catarina. No
Raso é onde tá a nossa medicina tradicional. No Raso tem pranta pra curar
até o câncer, só abasta ter o conhecimento. Cada índio que nasce hoje, ele
tem um dom da sua natureza e esse dom de cada sobreviência que nasce,
ele precisa de uma árvore para ter este dom dele. O segmento dos mais
véio era viver dentro da natureza. O encanto é um dom da natureza, cada
cerrado desse [paredões da Baixa do Chico-Raso da Catarina] tem um
dom para evitar a destruição. Cada árvore aqui tem um dom. Quando a
gente vai fazer o tratamento de uma pessoa a gente chama o dom daquela
árvore. Então é esse o segmento do índio. É só o seu xiante [maracá] e o
campriô para chamar a natureza, o dom da natureza, daquela árvore.
Existe as caças do mato: peba, tatu, teiú, caititu, jacu, veado. Cada espécie
de animais tem um dom da natureza para zelar dessas caças. Nunca você
encontra uma caça que a bicheira matou. Proquê? Proque o dom dele zela,
cuida daquela natureza.

Segundo Gil (2003), as religiões tradicionais africanas têm na natureza seu espaço
de manifestação:
[...] é na natureza que os deuses se manifestam. Manifestam-se em
pedras, árvores, rios, grutas, lagos, etc. Desse modo a natureza é
sacralizada. É um espaço para a expressão de potências superiores. Ou,
dito de modo mais incisivo: a natureza é sagrada.
40

Uma das tradições mais belas e intensas sobre essa relação, pode ser observada
numa frase proferida pelo cacique Tumbalalá, Cícero Marinheiro (2008): ‘‘a natureza
é o livro sagrado de Deus’’.

Nessa linha, observamos como pescadores e marisqueiras das áreas de Manguezal


cultuam Nanã, a orixá da lama e vêem na permanência do Manguezal a
continuidade dessa tradição e de sua sobrevivência.

Alfredo Wagner ao se reportar a esta relação entre natureza e grupos tradicionais,


na obra Conehcimentos Tradicionais e Biodiversidade (2008), diz que:
A função geral da oposição entre “natureza” e “civilização”, coextensiva à
nossa maneira usual de pensar, expressa tão somente a consciência que
asmetrópolis coloniais têm de si mesmas. Ela resume tudo aquilo em que a
sociedade ocidental dos últimos três séculos se julga superior a sociedades
consideradas “mais primitivas”, “atrasadas”, “selvagens” ou ágrafas, tudo
aquilo em que as sociedades industriais e urbanas se julgam superiores às
“populações nativas” consdieradas características das florestas úmidas e
tropicais.

Estes grupos associaram às suas culturas e tradições mitos e lendas que reforçam
esta relação nos seus sistemas de representações e símbolos, a partir dos quais se
relacionam com o meio ambiente. Os povos das florestas do Brasil, ribeirinhos,
indígenas, comunidades quilombolas, pescadores artesanais, mateiros, vaqueiros,
sertanejos, caiçaras, faxinais, fundos de pastos, enfim, interagem com a natureza a
partir de diferentes mitos e lendas como o Nego D’Água na região do São Francisco
e a Caipora, comum em muitas florestas do Brasil, tais como a Amazônia, Mata
Atlântica e Caatinga, cultuada em terreiros de candomblé e em rituais indígenas.

Nesse momento em que vivemos o “boom” dos produtos transgênicos e das


limitações das variabilidades genéticas que concorrem para o acelerado processo de
extinção de várias espécies, muitos grupos tradicionais são responsáveis pela
manutenção da biodiversidade como bem defende Santilli (2005):
Os agricultores tradicionais, ou familiares, são, em grande parte,
responsáveis pela manutenção da diversidade de espécies e variedades
agrícolas. Adotam mecanismos de seleção e melhoramento genético,
domesticação e intercâmbio de sementes que asseguram a variabilidade
genética das plantas cultivadas e a conservação da agrobiodiversidade.
41

No tocante a esta relação, o modelo capitalista globalizado transformou Gaia8 na


mais preciosa mercadoria, numa lógica privativa e degradadora. Entretanto, é nas
sociedades tradicionais que ainda encontramos modelos de uso comum dos
territórios e dos bens naturais neles disponíveis. Ao contrário das sociedades
urbano-industriais capitalistas, estes grupos politizaram a natureza de forma
sustentável com justiça social e ambiental. É neles que ainda podemos beber um
pouco dessa sonhada esperança em nome da sustentabilidade planetária.

Em alguma medida o debate estabelecido nesta tese é convergente com as


principais preocupações relativas aos direitos dos povos e comunidades tradicionais
no Brasil. Na Bacia do São Francisco, ainda com grande incidências de povos e
comunidades tradicionais (maior concentração de comunidades quilombolas do
Brasil, 32 povos indígenas, grande número de comunidades de pescadores e
pescadoras artesanais, vazanteiros, várias comunidades de fundo de pasto, etc), o
modelo de desenvolvimento tem, cada vez mais, colocado em condição de
preocupante exclusão esse grupos. Portanto a teia estabelecida entre barramentos,
direitos territoriais e identitários dos povos indígenas franciscanos, que envolve a
cultura material, são relacionados a esse momento de afirmação das identidades
coletivas desses grupos tradicionais no campo político, social, ambiental, econômico
e jurídico-formal.

8
Termo grego para a palavra Terra.
42

CAPÍTULO 3. POVOS INDÍGENAS DA BACIA DO SÃO FRANCISCO

3.1. BREVES REFLEXÕES SOBRE A OCUPAÇÃO HUMANA NAS AMÉRICAS

Figura 09: Pintura Rupestre da Serra da Capivara/PI (MARQUES, 2006).

São incompletas as informações que dispomos sobre os povos pré-coloniais que


ocuparam o território americano. Parte do que sabemos é oriundo de diversas
pesquisas feitas a partir do século XX. Sobre os grupos históricos o que sabemos
deriva de estudo dos relatórios de cronistas, como Hans Staden, e de naturalistas
como Lund, Saint-Hilarie, Martius, entre outros, completando-se com estudos
recentes de diversas ciências.

Em termos gerais, temos duas grandes correntes teóricas sobre a chegada dos
humanos na América: os que afirmam que a via de entrada foi o Estreito de Bering,
por volta de 11,4 mil anos atrás, conhecidos como clovistas; e os que defendem ser
a via litorânea pacífica como a mais provável rota para a chegada e a dispersão
inicial dos humanos no Novo Mundo (NEVES, 2008).

Sobre isso, particularmente sobre quando o homem e a mulher entraram na


América, dentre as disciplinas científica, é a arqueologia que tem dado pistas mais
precisas a respeito desse processo de ocupação.

As origens dos primeiros trabalhos arqueológicos no mundo remontam ao século


XIX, mais especificamente ao ano de 1870 quando, por influência de correntes como
43

o positivismo, naturalismo e o evolucionismo, teve início na Europa um processo de


especialização e conseqüente fragmentação das ciências naturais, precedendo e
dando subsídios para o aparecimento de novas “áreas das ciências”. Dessa forma
nasce a arqueologia, a antropologia, a geologia, entre outras, que derivou, direta ou
indiretamente, da História Natural, até então o único modelo metodológico aceito
pelas comunidades intelectuais do Velho Mundo.

Por todo o mundo “os naturalistas”, como eram chamados os pesquisadores da


história natural, desenvolveram, por muito tempo, o trabalho de coleta,
reconhecimento e descrição dos recursos naturais encontrados em cada região,
através de anotações realizadas em cadernetas de viagem, tentando abstrair em
suas observações, um pouco do conhecimento e de todo o contexto que compunha
o sistema natural de uma determinada área, região ou país. Assim fez Charles
Darwin9, em sua longa viagem a bordo do famoso Beagle, adotando este modelo
metodológico para a elaboração da tão conhecida teoria da seleção natural que se
encontra registrada em seu livro The Origin of Species (1859), hoje questionada por
autores como Michel A. Cremo: A História Secreta da Raça Humana (2004).

Com a arqueologia no Brasil não foi diferente. Até a primeira metade do século XIX,
todas as observações eram feitas por artistas, jesuítas, e naturalistas que aqui
chegaram no período da colonização, para descobrir as novas terras do Ocidente.
Eram eles que, de certa forma, realizavam as pesquisas científicas da época,
continuada no País até a Independência e durante a primeira metade do século XIX.
Somente após a transferência definitiva da corte portuguesa para o Brasil é que
houve uma efetivação no estabelecimento de normatizações técnico-científicas que
incentivou a realização de atividades mais sistemáticas de pesquisa atendendo às
padronizações de um modelo científico mais racionalista. Segundo Prous (1992):

9
Antes de Darwin era hegemônica a compreensão da origem da humanidade a partir do mito bíblico da criação do homem e
da mulher por Deus. Darwin passou a defender a origem humana a partir da evolução de uma “raça” de símios antropomórficos
evoluídos, posteriormente descobertos na África (Australophitecos), de datações aproximadas de 4 milhões de ano. O
exemplar mais antigo dessa categoria foi encontrado na Tanzânia na década de 1970, mundialmente conhecido como Luci, em
homenagem à canção dos Beatles “Lucy in The Sky With Diamonds”. Ainda no processo evolutivo da humanidade
encontramos o Homo Habilis que surgiu a cerca de 2 milhões de anos; o Homo Erectus de cerca de 1,5 milhão de anos; o
Homo Sapiens Neanderthalensis que existiu de 100 mil até 40 mil anos atrás – “símbolo do homem da pré-história” –
(MYTHOS, 2008); até chegar ao Homo Sapiens Sapiens de cerca de 40 mil anos. As evidências científicas sobre a presença
humana nas amércias, particularmente no Brasil, indicam datações de mais de 100 mil anos (GUIDON, 2007)
44

10
o grande interesse de D. Pedro II pela antropologia contribuiu para a
implantação das primeiras entidades oficiais destinadas a ter um papel
relevante na arqueologia brasileira.

Foi somente no início da República, no Brasil, que começaram a surgir as primeiras


comissões científicas de geografia, geologia, arqueologia, entre outras, enquanto as
instituições de pesquisa e as faculdades, começaram a objetivar a produção
científica evidenciando a importância dada ao aspecto da ciência aplicada. Segundo
Schwartzman (1979):
É nesse contexto que vamos encontrar o início da arqueologia no Brasil.
Esta, em seus primórdios, está essencialmente confinada aos museus que
então se formavam e consolidavam no País: Museu Nacional, Museu
Paulista e Museu Paraense Emílio Goeldi. A importância dos museus,
nessa época, se deve ao papel relevante que cumpriram no incentivo de
estudos e pesquisas em ciências naturais e antropologia física no país,
bem como na personificação de um certo ideal de cientificidade e
objetividade, muito valorizado naquele momento em especial.

Schiavetto, em seu livro Arqueologia Guarani (2003) apresenta os quatro períodos


da arqueologia brasileira estruturados pelo arqueólogo franco-brasileiro André Prous
em 1980:
Início da Arqueologia (1870-1910) fase definida pela efervescência sobre a
origem natural ou artificial dos sambaquis; 2. Período Inemediário (1910-
1950) época que conta, segundo Prous, com o primeiro arqueólogo
profissional do país, o austríaco Padherg-Drenkpohl; Período Formativo da
Arqueologia Moderna (1950-1965), caracterizado pela atuação de grandes
amadores e com a criação de instituições oficiais com a colaboração de
profissionais estrangeiros; A Pesquisa Recente no Brasil (1965-1980)
época em que foi criado o Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas
(Pronapa), erigido com a colaboração do SPHAN (Secretaria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional) e a Smithsonian Intitution Americana, sob a
coordenação geral dos norte-americanos Betty Meggers e Clifford Evans.

Dentro da arqueologia, um ponto, em específico, vem sendo bastante discutido e,


constantemente, tornado motivo de impasse entre arqueólogos, paleontólogos,
geólogos, antropólogos, biólogos, ecólogos, entre outros, que tentam reconstituir a
cronologia e a(s) rota(s) traçada(s) pelos grupos pré-históricos das Américas.

Os registros afirmam que, desde a década de 30, várias teorias de diferentes


autores e com modelos metodológicos que se baseiam em parâmetros às vezes
divergentes, vêm sendo apresentados a fim de tentar elucidar a trajetória dos grupos
humanos na América e desvendar o grande enigma que se encontra por trás desta

10
“Tentar descrever a Cachoeira em poucas páginas, e cabalmente, seria impossível, e sinto que o tempo só me permitisse
tirar esboços imperfeitos” (D. PEDRO II. Diário de Viagem ao Norte do Brasil. Salvador: Livraria Progressso Editora, 1959)
45

questão. Bueno (2003) problematiza quão difícil é essa tarefa pela busca de um
vínculo entre os grupos pré-históricos e as tribos indígenas encontradas aqui pelos
portugueses na época do descobrimento, afirmando: “de todo modo, o certo é que,
quanto mais se iluminarem as trevas do passado, mais o Brasil conhecerá seu
próprio futuro”.

Até meados da primeira metade do século XX, os mais antigos registros fósseis
encontrados na América do Norte que inferiam sobre a ocupação humana no
continente americano, vinham de materiais encontrados no Novo México, e Estados
Unidos. A Cultura Clóvis,como ficaram conhecidos estes estudos, datava de 11.400
a 10.500 anos A. P11. e afirmava que uma única leva de pessoas de origem
mongolóide – asiática – teria chegado à América há aproximadamente 12 mil anos
A.P., período correspondente ao final do Pleistoceno, atravessando do Alasca à
América do Norte através do Estreito (ou Istmo) de Bering (MARIUZZO, 2003).

Segundo esta teoria os dois continentes encontravam-se unidos por uma extensa
faixa de terra que foi chamada de Beríngia, por onde os grupos humanos pré-
históricos supostamente teriam realizado a travessia. Este fato deu-se graças a um
rebaixamento drástico do nível do mar, fruto de alterações climatológicas às quais o
Planeta se encontrava submetido ao longo de sua história.

Com o passar do tempo, vários outros sítios arqueológicos foram descobertos por
toda a América e seus dados contribuído para a contextualização e tentativa de
construção de um modelo teórico que permitisse o entendimento plural de toda a
dinâmica cronológica da chegada do homem/mulher primitivo/a às Américas.
Escavações realizadas em países da América do Sul, como a Argentina, revelaram
indícios fósseis de até 13.000 anos A.P.; na Venezuela, achados arqueológicos
indicaram uma ocupação humana há pelo menos 15.000 anos A.P. , além de
achados arqueológicos importantes em outros países como a Colômbia, Chile, Peru
e Brasil, que indicam estar superados as bases da sustentação da Teoria Clovis.

11
A.P. significa “antes do presente” que, por convenção, é 1950. Trata-se de uma menção à descoberta da técnica de
datação através do Carbono 14, que se deu em 1952. Assim, um evento ocorrido 500 anos AP aconteceu 500 anos antes de
1950 - ou seja, 1450. As referências cronológicas obtidas através de métodos físicos são sempre acompanhadas de suas
respectivas margens de erro, que são expressas com o sinal positivo e o negativo. Para muitos, o nascimento de Cristo é a
principal referência cronológica e o tempo é dividido entre antes e depois de Cristo (GASPAR, 2003).
46

Figura 10: Revista Nossa História (2005).

No Brasil, os primeiros trabalhos arqueológicos, que se tem registro, são do ano de


1834, com o pesquisador naturalista dinamarquês Peter Wilhelm Lund, considerado
pai da paleontologia brasileira. Lund, após escavações realizadas na região de
Lagoa Santa, Minas Gerais, encontrou esqueletos humanos junto a restos de
animais (“bestas” pré-históricas) que indicaram uma ocupação de aproximadamente
20 mil anos. Em uma primeira tentativa de explicação para a chegada do homem
pré-histórico ao continente americano, afirmou que os primeiros antropóides teriam
originado-se no continente americano e ascenderiam os grupos humanos
posteriores. Com o surgimento da teoria darwiniana, foi possível provar que a teoria
proposta por Lund estava equivocada e que os primeiros antropóides tinham origem
africana. Atualmente, o modelo “Lund”, como foi chamado, encontra-se descartado
(REVISTA TERRA, 2004).

Em 1950, muitos pesquisadores estrangeiros começaram a vir para o Brasil e


passaram a explorar diversos sítios arqueológicos localizados na Amazônia, Pará,
Piauí, Mato Grosso e na faixa litorânea. Na década de 60, por força da Lei 3.924, de
26 de julho de 1961, que dispõe sobre os monumentos arqueológicos e pré-
históricos, a fim de evitar a sua depredação pela exploração econômica
despreocupada com a representação histórica desses locais, todos os sítios
arqueológicos existentes no Brasil foram transformados em patrimônio da União e o
número de dispositivos legais para a proteção destes “baús históricos” do nosso país
aumentou consideravelmente. Numa relação de causalidade, tivemos como
47

conseqüência a criação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional –


IPHAN – que hoje é responsável legalmente pela fiscalização e conservação de todo
o patrimônio arqueológico e histórico-cultural do nosso País.

Em 1970 vários sítios arqueológicos e várias pesquisas foram desenvolvidas em


diversas regiões do Brasil. Podemos citar, dentre algumas, o trabalho realizado pela
arqueóloga francesa Annete L. Emperaire, que entre os anos de 74 e 76, coordenou
uma equipe que realizou escavações em Minas Gerais e conseguiu inscrever Lagoa
Santa como um importante sítio para o referenciamento de estudos arqueológicos no
Brasil.

Emperaire foi descobridora do esqueleto que mais tarde se chamaria Luzia. Sobre
este achado brasileiro Neves (2008) afirma:
Finalmente, a pré-história brasileira passou a ter um ícone próprio, tão
improtante quanto o Neandertal na Alemanha, o homem de Cro-Magnon na
França e Lucy na Etiópia.

No Amazonas, podemos citar os valorosos trabalhos realizados pelo pesquisador


Emílio Goeldi com a descoberta de fragmentos cerâmicos que auxiliaram na
construção de um contexto preliminar da dinâmica de povoamento pré-histórico
desta área (REVISTA SCIENTIFIC AMERICAN, 2003).

Ainda na década de 70, no sítio arqueológico da Pedra Pintada, localizado na cidade


de Monte Alegre, Pará, os estudos da pesquisadora Anna Roosevelt, através de
pinturas rupestres, indicaram datações na Floresta Amazônica por volta de 11.300
anos atrás. No Nordeste, no sitio arqueológico de “Boqueirão da Pedra Furada”,
localizado no município de São Raimundo Nonato – PI, sob a coordenação da
arqueóloga Niède Guidon, após 25 anos de trabalhos intensos, a equipe indicou
uma ocupação humana que remonta a cerca de 35.000 anos A.P. com datações
realizadas a partir de fragmentos de carvão, principalmente, e de material lítico. Hoje
esse período é bem superior.
48

Figura 11: Boqueirão da Pedra Furada/PI (MARQUES, 2005).

No entanto, esta datação ainda é muito discutida e envolve pesquisadores do mundo


inteiro que, questionam a veracidade da pesquisa. O arqueólogo Renato Kipnis
(2003), afirma que:
Ainda hoje não há um consenso quanto a estas questões. Asserções
quanto a uma ocupação datada de pelo menos 35.000 anos A.P. foram
feitas para o sitio arqueológico Pedra Furada localizado na região de
caatinga no Nordeste brasileiro, no estado do Piauí. Controvérsias quanto a
natureza humana de possíveis artefatos líticos, quanto a natureza das
amostras de carvão datadas e associação destas amostras com o material
lítico, e quanto a problemas estratigráficos e tafonômicos (i.e., formação do
sitio arqueológico) são questões ainda não resolvidas. Existe na realidade
um problema intrínseco com o material arqueológico e o contexto em que
este foi encontrado em Pedra Furada, de tal maneira que mesmo que
fossem encontradas, no futuro, evidências indiscutíveis de uma ocupação
humana na América há mais de 35.000 anos A.P., ainda elas não iriam
validar os achados de Pedra Furada.

A arqueóloga Niède Guidon, que desde a década de 70 vem coordenando o projeto


em São Raimundo Nonato, PI, contrapõe-se a esta perspectiva:
Colegas americanos da Texas A & M University, EUA, analisaram as peças
líticas e, como nós, as consideram indubitavelmente feitas pelo homem.
Para rebater a idéia de que o carvão podia vir de incêndios naturais,
fizemos sondagens em todo o vale da Pedra Furada e o carvão somente
existe dentro do sítio. Incêndios naturais deixam carvão para todos os
lados. (WWW.COMCIÊNCIA.BR, 2003).

Novas descobertas vêm reforçar a hipótese que está encontrando uma considerável
aceitação atualmente no meio científico. Teorias emergentes afirmam que a América
havia sido colonizada por duas levas distintas: os mongolóides, parecidos com a
morfologia dos povos indígenas que conhecemos hoje, teriam chegado ao
continente há não muito mais de 11 mil anos; e por volta de 13 a 14 mil anos aqui
49

teriam chegado os paleoamericanos ou australo-melanésios, parecidos com os


australianos e africanos de hoje, entre o final do Pleistoceno (antes de 12.000 anos
A.P.) e o início do Holoceno (posterior a 12.000 anos A.P.), conforme figura abaixo
de Walter Neves e Hector Purcciarelli:

Figura 12: Levas de Ocupação Humana das Américas (REVISTA NOSSA HISTÓRIA, 2005).

Alguns pesquisadores afirmam que pensar em migrações dessas populações pelo


Oceano Pacífico da Austrália para a América do Sul é uma hipótese “milaborante”.
Entretanto, a arqueóloga Niède Guidon (1994) reforça esta hipótese:
A razão nos faz supor que um continente como o americano, que vai do
pólo norte ao pólo sul, deve ter sido ocupado por diversos pontos de
penetração, que incluem também a via marítima. Não devemos esquecer
que o nível do mar variou durante as diferentes épocas, caracterizadas por
avanços e recuos das glaciações e que, em certos momentos, chegou até
150 metros abaixo do nível atual, o que significa que um maior número de
ilhas aflorava e a plataforma continental era bem mais ampla (GUIDON et
al, 1994).

Para Guidon, a partir dos vestígios do sitio da Pedra Furada, considerando dados da
paleoclimatologia, paleoparasitologia, genética e outras áreas do conhecimento,
bem como outros vestígios paleoarqueológicos de outros sítios do Brasil, a exemplo
da Lagoa Santa (MG), já é possível propor uma teoria sobre a ocupação da América
por grupos humanos diferentes (REVISTA SCIENTIFIC AMERICAN, 2003).

Na década de 80, o sítio de Lagoa Santa continuou fornecendo informações


importantíssimas para a compreensão da pré-história em nosso País. Achados
arqueológicos indicaram que sociedades pré-históricas que habitavam esta região,
50

encontravam-se muito mais assemelhadas a grupos humanos que habitam o


continente australiano. Segundo os defensores desta hipótese, os povos pré-
históricos que ocupavam o continente australiano chegaram à América realizando
travessias pelo oceano da Austrália para a América (GUIDON, 2004) ou da Ásia
para a América pelo Estreito de Bering (NEVES, 2005).

Contudo, foi somente no ano de 1998 que a teoria de Neves ganhou destaque no
meio cientifico. Neste ano o pesquisador publicou um estudo analisando um
esqueleto de aproximadamente 11.400 anos encontrado na Lapa Vermelha,
considerado um dos mais antigos já descobertos na América. Esse esqueleto, que
ficou mais conhecida como “Luzia” (figura abaixo), era de uma mulher jovem e o
estado de conservação do seu crânio, permitiu que fosse feita uma reconstituição
facial detalhada, pela equipe do Dr. Richard Neave, da Univeridade de Manchester,
na Inglaterra. Essa reconstituição revelou traços físicos que se assemelhavam muito
mais aos de indivíduos africanos e australianos.

Figura 13: Cabeça de Luzia (BUENO, 2003).


51

Estudos genéticos realizados por pesquisadores americanos analisando DNA


mitocondrial (mDNA) e o cromossomo Y de populações indígenas americanas,
mostraram modelos alternativos sobre os grupos fundadores de novas culturas nas
Américas. Segundo Salzano, pesquisador da UFRGS, tais projeções sobre o tempo
de presença do homem e da mulher na América, variam conforme a base de
referência utilizada para estudos nesse sentido. Por exemplo, ele afirma que
pesquisas realizadas baseadas em análise do cromossomo Y propõem números
diferentes de migrações colonizadoras, uma ou mais, que ocorreram em épocas
distintas (REVISTA SCIENTIFIC AMERICAN, 2003).

Realmente, esta é a maior dificuldade encontrada pelos pesquisadores, no momento


de estabelecer um padrão lógico de detalhamento e principal causa das acirradas
discussões entre arqueólogos, paleontólogos e antropólogos que se dispõem a
estudar a origem dos nossos ancestrais. Atualmente os pesquisadores estão
munidos de poucas evidências e, geralmente, utilizam diferentes bases de referência
metodológica (lingüística, arqueológica, antropológica, genética, morfológica,
comportamental, artística, etc.) que são difíceis de serem encaixadas em um mesmo
modelo teórico. O quadro abaixo, apresenta uma síntese de algumas teorias sobre a
ocupação humana do continente americano:

TABELA 02: ALGUMAS TEORIAS SOBRE A OCUPAÇÃO HUMANA NA AMÉRICA


PESQUISADOR TEORIA

Paleontólogo argentino, defendeu que a humanidade teria se originado na região


AMEGHINO meridional da América. Na Argentina teria surgido o primeiro ser adaptado à posição
vertical, o TETRAPOTHOMO.
Naturalsita dinamarquês, afirmou que a chegada do homem no continente americano
LUND se deu a muito mais tempo do que era aceito na sua época, uma vez que eles teriam
convivido com a megafauna extinta.
As populações americanas teriam migrado pelo estreito de Bering (tem menos de
HRDLICKA 100km de largura e hoje é facilmente atravessado pelos esquimós com barcos de
peles).

Baseado em semelhanças etnográficas, lingüísticas e biológicas, admite a migração


PAUL RIVET de asiáticos (Bering), melanésios (Pacífico) e australianos (ilhas entre a Austrália, a
Antártida e a América do Sul).

América havia sido colonizada por duas levas distintas (os mongolóides, parecidos
com a morfologia dos povos indígenas que conhecemos hoje, teriam chegado ao
continente há não muito mais de 11 mil anos; e por volta de 13 a 14 mil anos aqui
NEVES teriam chegado os paleoamericanos ou australo-melanésios, parecidos com os
australianos e africanos de hoje) entre o final do Pleistoceno e o início do Holoceno,
pelo Estreito de Bering

A ocupação americana se deu através de levas étnicas diferentes (mongóis e


GUIDON australo-melanésio) por volta de 35.000 mil anos antes, inclusive através de
migrações pelo Pacífico.

FONTE: REVISTA NOSSA HISTÓRIA (2005); CONCEIÇÃO (2003).


52

Todos os fatos nos fazem crer que ainda há muito a ser pesquisado, estudado e
interpretado. Porém, a velha história de que o nosso País é tão novo quanto os 500
anos que se passaram, desde o descobrimento até o presente, precisa ser reescrita.
A história, a nova história, nos mostra que o nosso País possui culturas, formações
sociais, econômicas, religiosas, étnicas, ecológicas, entre outras, há no mínimo,
9.000 anos A.P., o que atribui um valor ainda maior à imensa riqueza das terras
americanas do sul desde os tempos da pré-história.

3.2. A CHEGADA HUMANA NA REGIÃO DO SÃO FRANCISCO

Figura 14: Pintura Rupestre do Complexo Arqueológico de Paulo Afonso (CAAPA, 2008)

O achado dos esqueletos de Lagoa Santa, particularmente o mais conhecido deles


“Luzia”, encontrado na região do Alto São Francisco, trouxe-nos questões
importantes para pensarmos a ocupação humana no continente Americano. Assim,
podemos inferir quão importante é toda a Bacia do São Francisco para
compreendermos a dinâmica das populações humanas desde o início da chegada
dos primeiros grupos no Brasil, uma questão inquietante para as ciências na
contemporaneidade.

Entre as hipóteses “aceitas” por alguns pesquisadores/as, está a de que a chegada


dos grupos humanos na região do submédio e baixo São Francisco, deu-se há
aproximadamente 9.000 anos atrás, quando povos de origem mongolóide – asiática
– que tinham atravessado o Estreito de Bering, ou a via oceânica pacífica, ocuparam
53

principalmente as zonas inter e subtropicais do território brasileiro em busca de


condições naturais que favorecessem o seu estabelecimento. Descendo pelos
afluentes que compõem o rio São Francisco, ou advindo do planalto goiano, os
homens e mulheres pré-históricos chegaram à região do Vale do São Francisco,
mais especificamente nas regiões de Paulo Afonso/Xingó/Piranhas, atraídos por
condições que permitiram o seu estabelecimento nesta área. Segundo Ab´Saber
(1997):
Os primeiros grupos tardios – posteriores ao fim do pleistoceno –
sedentarizaram-se nos terraços aluviais da área de Paulo Afonso/Xingó por
causa de três fatores principais: um largo rio perene com águas límpidas;
fluxos movimentados de corredeiras e situação ideal para peixes lênticos;
segurança quanto à invasão de outros grupos.

Estudos arqueológicos realizados nos afluentes dos rios Pratudão, Correntina e


Formoso, formadores do rio Corrente, que por sua vez desemboca no São
Francisco, sinalizaram ocupações humanas antigas ao longo dos vales destes rios, o
que nos leva a pensar que grupos humanos antigos percorreram a margem destes
cursos d’água até chegarem ao Grande Rio. Segundo a pesquisadora Gabriela
Martin (2002):
As primeiras levas de paleoíndios chegadas às ribeiras do médio São
Francisco... devem ter chegado ao vale desde o planalto goiano, das
cabeceiras do Alto São Francisco e pela ampla rede de afluentes que
desembocam no grande rio nordestino no sudoeste da Bahia.

Estudos realizados em outras áreas que não se encontram inclusas na mesorregião


do Submédio São Francisco, são de extrema importância, já que permitem o
estabelecimento de uma visão plural e contextualizada de todo o processo de
formação social às margens do São Francisco. Projetos de pesquisas arqueológicas
vêem sendo desenvolvidos ao longo de todo o curso do Rio e áreas adjacentes a fim
de fornecer dados quantitativos e qualitativos para melhor entendimento da dinâmica
pré-histórica da área. Podemos citar o Projeto Central que vem sendo desenvolvido
desde 1982 e coordenado pela professora Maria da Conceição Beltrão, no noroeste
do estado da Bahia, na margem direita do médio-baixo São Francisco, abrangendo
as cidades de Central, Irecê e Xique-Xique. Já no sudoeste da Bahia, coordenado
Pelo professor Pedro Ignácio Schmitz, temos o projeto Serra Geral desde 1996,
explorando as margens do rio Correntes e seus afluentes (MARTIN, 2002).
Destacam-se, também, os estudos desenvolvidos pela arqueóloga Cleonice Vergne
na região do Sub-médio e Baixo São Francisco, particularmente suas pesqusias dos
54

cemitérios Justino e São Jos~e e no Platô do Talahdo, na fronteira entre o Submédio


e Baixo São Francisco.

É fácil perceber que a região do São Francisco tem um grande potencial para o
desenvolvimento de estudos arqueológicos e muito ainda há para ser estudado;
entretanto, esta preocupação só veio tornar-se evidente no cenário nacional após as
construções das UHE ao longo do curso do rio São Francisco, que colocaram em
risco, quando não destruíram, milhares de informações e recursos arqueológicos
contidos nesta área e que hoje encontram-se submersos. Mesmo com o incentivo e
financiamento dos projetos de salvamento arqueológico pela empresa executora da
obra, a CHESF, não foi possível resgatar as informações necessárias para se
estabelecer um padrão claro e fornecer respostas para estas lacunas que existem
quando tratamos da pré-história das populações que habitavam o São Francisco.

No vale do São Francisco, particularmente nas regiões média e submédia, os


primeiros estudos arqueológicos realizados, que nos fornecem informações sobre a
ocupação humana pré-histórica na mesorregião do submédio São Francisco, foram
coordenados pelo pesquisador espanhol e naturalizado brasileiro, Valentin Calderón,
que iniciou seus trabalhos nesta região na década de 70, vinculado ao Programa
Nacional de Pesquisas Arqueológicas – PRONAPA.

Os seus trabalhos foram essenciais para a construção de uma idéia preliminar da


pré-história nessa região e subsidiar os estudos arqueológicos posteriores. Esses
trabalhos já tinham como referência originária as pesquisa de Carlos Estevão na
década de 30. Ainda na década de 70, a missão arqueológica franco-brasileira
coordenada pela Professora Niède Guidon, iniciou os trabalhos de pesquisa no
município de São Raimundo Nonato, sudeste do Piauí, trazendo importantes
informações para este debate. Segundo Guidon:
Iniciei as pesquisas partindo da hipótese de que, tratando-se de uma região
de fronteira entre duas grandes formações brasileiras, o escudo pré-
cambriano da depressão periférica do São Francisco e a bacia sedimentar
Maranhão-Piauí do devoniano-permiano, haveria um profusão de
ecossistemas diferentes, o que aumentaria a quantidade e diversidade dos
produtos naturais disponíveis. Esse fato poderia ser o gerador de
condições favoráveis para o desenvolvimento de culturas diferentes e,
principalmente, de grandes culturas nesta região. Estudamos também todo
o processo de evolução climática e da paisagem, desde a chegada do
homem até hoje (REVISTA SCIENTIFIC AMERICAN, 2003).
55

Percebendo o enorme potencial pré-histórico que o nosso país possui, houve na


década de 70, uma manifestação cultural que clamava pela realização de estudos
de salvamento arqueológico ao longo do São Francisco, já que algumas cidades e
vários sítios arqueológicos seriam inundados para a realização da construção dos
reservatórios das Usinas Hidroelétricas de Itaparica, Xingó e Sobradinho e com eles
importantes informações que tratavam da pré-história do Brasil e da dinâmica social
de cada região naquela época. Este fator foi importante para a criação de
instrumentos legais de conservação do patrimônio arqueológico e natural que
corriam o risco de serem destruídos. Com isso, surgiram os Projetos de Salvamento
Arqueológico que foram realizados ao longo das áreas ribeirinhas do São Francisco
que seriam inundadas e objetivavam colher o maior número possível de informações
arqueológicas, a fim de reconstituir a historia pré-colonial da região. A tabela abaixo
mostra as principais localidades exploradas pelos Projetos de Salvamento
Arqueológico:

TABELA 03: PRINCIPAIS LOCALIDADES ESTUDADAS PELOS P.S.A.


P.S.A ANO COORDENAÇÃO REGISTROS RQUEOLÓGICOS

29 sítios arqueológicos.
Sobradinho 74-76 Yara de Ataíde

3 abrigos no lado de Pernambuco; No lado


PE - Gabriela Martins-UFPE baiano 196 sítios do conjunto Itacoatiara formado
Itaparica 82-88 BA - Pedro Agostinho e por sítios abertos e pequenos abrigos (I a XI)
Carlos Etchevarne - UFBA com gravuras rupestres e fragmentos cerâmicos.

225 sítios arqueológicos, peças líticas, peças


cerâmicas, restos faunísticos, fogueiras, 191
Xingo 88-94 Cleonice Vergne esqueletos: a maior necrópole indígena do
nordeste .
FONTE: MAX, 2002.

Na mesorregião do Sub-médio podemos encontrar alguns sítios de grande


importância histórica, que forneceram inúmeras informações prévias aos
pesquisadores nas prospecções e estudos realizados ao longo das margens do São
Francisco. Os estudos foram realizados por uma equipe da Universidade Federal da
Bahia- UFBA, sob a coordenação do antropólogo Pedro Agostinho e outra equipe da
Universidade Federal de Pernambuco, sob a coordenação da arqueóloga Gabriela
Martin Ávila. Durante o período, o grupo coordenado pelo professor Pedro
Agostinho, levantou as áreas arqueológicas das cidades do lado baiano, Glória,
Rodelas e Barra do Tarrachil; enquanto que no lado pernambucano, o grupo
56

coordenado pela professora Gabriela Martin, explorava as áreas arqueológicas nas


cidades, e áreas circunvizinhas, de Petrolândia, Floresta, Belém do São Francisco e
Itacuruba.

Figura 15: Professor Pedro Agostinho, um dos protagonistas


da pesquisa arqueológica na região do São Francisco
(MARQUES, 2007).

No município de Petrolândia (PE) foram verificados dois importantes sítios


arqueológicos que hoje se encontram submersos; “Letreiro do Sobrado” e a “Gruta
do Padre” onde os vestígios encontrados neste último, na época de suas análises,
deram nome a uma das mais antigas tradições pré-históricas do Brasil, a Tradição
Itaparica, e serviu de ponto de partida para a identificação das indústrias líticas
encontradas no vale do submédio São Francisco (MARTIN, 2002).

Fruto de um trabalho de mais de 15 anos, outra área que vem produzindo resultados
significativos para a arqueologia brasileira, é a região de Canindé do São Francisco
onde, sob a coordenação técnica da Drª. Cleonice Vergne, encontra-se o maior
cemitério pré-histórico já escavado no Nordeste, o “Sítio Justino”. Sob a direção da
Universidade Federal de Sergipe, em parceria com a CHESF, o trabalho vem sendo
desenvolvido na região desde 88, quando teve início os primeiros trabalhos para a
construção da UHE de Xingó.

Desde então, o projeto tem resgatado diversos sítios arqueológicos existentes na


região e elucidado alguns questionamentos sobre o povoamento pré-histórico desta
área específica do São Francisco. Até o momento, foram escavados quase duas
centenas de esqueletos associados a um complexo mobiliário funerário, inseridos
em sepultamentos ritualizados. A equipe dispõe hoje de uma grande quantidade de
57

material coletado que se encontra depositado no Museu de Arqueologia de Xingó


(MAX) contando com mais de 32 mil peças, entre fragmentos faunísticos, fragmentos
de fogueiras, esqueletos humanos, material lítico e cerâmico (VERGNE, 2004).

Outra importante região pesquisada pela Dra. Cleonice Vergne é o complexo


arqueológico de Paulo Afonso. Situado às margens do Cânion Paulo Afonso/Xingo,
nesta área já foram identificadas mais de 180 sítios de pinturas e gravuras rupestres.
Destes, em um intervalo de 04 anos, mais de 50 foram destruídos para a confecção
de paralelepípedos para a pavimentação de ruas.

Figura 16: Pinturas Rupestres do Complexo Arqueológico de Paulo Afonso (MARQUES, 2008)

3.3. IDENTIDADES INDÍGENAS DO SÃO FRANCISCO

É sabido, que a história da formação cultural e étnico-social dos grupos originários


que habitavam o Brasil na época da colonização portuguesa, foi marcada por
massacres e imposição da cultura colonialista pregada pelos europeus em vários
continentes. Essa dominação perdurou ao longo dos 500 anos que nos separam
daquelas datas. Com os povos indígenas do São Francisco também não foi
diferente.

Expostas às vontades e ações da Casa da Torre, na ânsia de colonizar e expandir


seu poderio, e dos missionários que traziam a “nova cultura” e o cristianismo para
“catequizar os selvagens”, as etnias existentes nesta região foram dizimadas e
violentadas processualmente, como bem escreve Guidon (2004):
Para entender os sertanejos não vejo bem em que pode colaborar a pré-
história, pois estudamos os povos autóctones que aqui estavam desde há
cerca de 100 mil anos até a chegada dos colonizadores. Esses grupos não
foram considerados, foram esmagados e extintos. Muito pouco da “cultura
58

indígena” foi preservada, tendo predominado no Nordeste a Cultura


africana e portuguesa.

A partir de relatos de “missionários” e “viajantes” que adentraram os sertões desde


os tempos da colonização e de alguns trabalhos realizados desde o final da década
de 30, é possível compor um quadro preliminar que possibilite avaliar boa parte da
dinâmica social e o quadro de impactos sociais e culturais causados pelas relações
interétnicas às quais estes grupos foram submetidos ao longo dos anos e situar a
complexa questão da existência dos grupos indígenas remanescentes/resistentes na
Bacia.

Desde o ano de 1939, um trabalho publicado por Calmon (1939) A História da Casa
da Torre, já atentava para o desastre causado pelas expedições coordenadas pelos
Garcia D’Ávila que adentravam o interior do Sertão Baiano e, beirando as margens
do São Francisco, agregavam os indígenas das aldeias ribeirinhas e afugentava
outros que refugiavam-se nas missões catequéticas que existiam na região, àquela
época.

Como bem descreve o antropólogo José Laranjeiras Sampaio, Guga, (2007) a


história dos indígenas do São Francisco é uma história de fugas. Muitos indígenas
que viviam nas margens desse Rio hoje vivem em áreas de brejos nas Caatingas,
como os Pankararé, Pankararu, Geripankó e Katokin, outros nas regiões serranas
mais afastadas, a exemplo dos Atikum, da Serra do Umã; dos Pipipã e dos
Kambiwá, da Serra Negra.

Foi, exatamente, esse comportamento de fuga que possibilitou a resistência desses


grupos que chegaram ao século XXI em um número cada vez mais crescente,
através de processos denominados “ressurgência étnica” ou “etnogênse”. Hoje são
cerca de 32 povos, distribuídos em mais de 38 territórios ao longo de toda a Bacia
do São Francisco.

A ponte que “liga” os grupos pré-coloniais aos atuais indígenas do São Francisco é
um concreto oceano de desconehcimento, com rachaduras irreparáveis chamadas
Usinas Hidrelétricas. Nessa fenda é onde deve se situar o interesse das ciências que
se ocupam desses contextos.
59

4. ETNIAS INDÍGENAS DO SÃO FRANCISCO12

Figura 17: Pinturas Rupestres da Região de Sobradinho (KESTERING, 2007).

Alguns historiadores afirmam que havia no continente americano aproximadamente


100 milhões de indígenas. Só no Brasil, a população nativa antes da chegada dos
portugueses era de 5 milhões. Hoje temos no nosso país uma média de 734 mil
indígenas (ISA, 2006), distribuídos em 225 povos diferentes entre si que ainda
mantém vivas cerca de 180 línguas13. Na região do São Francisco estima-se que
haja mais de 72 mil indígenas, cerca de 32 etnias, distribuídos em 38 territórios. É
importante ressaltar a precariedade dos estudos desenvolvidos sobre estes povos, o
que limita a possibilidade de uma compreensão mais “completa” desses grupos.

Em março de 2008, a Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, em


parceria com O MDS (Ministério de Desenvolvimento Social), MMA (Ministério de
Meio Ambiente) e a Equipe de Pesquisadores da Nova Cartografia Social dos Povos
e Comunidades Tradicionais no Brasil, esboçaram um projeto para mapear todos os
povos e comunidades tradicionais do Brasil, dentro da “mesma” lógica metodológica
utilizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) no censo
populacional. Trabalhos dessa natureza podem sinalizar dados mais assertivos
sobre estes grupos.

12
A construção das notas sobre as etnias indígenas do São Francisco é baseada, predominantemente, em fontes
secundárias, fruto de pesquisa de várias instituições que trabalham com os povos indígenas dessa região. Essas referências
são endossadas pelas observações participantes do pesquisador junto a estes grupos, sobretudos nos seus processos político-
organizativos na Bacia do São Francisco.
13
Super Interessante, Out/2005
60

É possível afirmar que a história das nações autóctones, chamadas pelos


colonizadores de indígenas, não tem conseguido um lugar de destaque nos estudos
da identidade do povo brasileiro. Se não bastasse o etnocídio e as múltiplas
diásporas dos remanescentes dessas civilizações originárias desde o início da
colonização, as políticas voltadas para os povos indígenas os têm deixado em
estado de intensa vulnerabilidade existencial – as nações indígenas compõem o
grupo étnico com o pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil: 0,683,
enquanto a média nacional é de 0,790 (SUPER INTERESSANTE, Out/2005).

Iniciada na costa brasileira onde havia uma rica e densa Floresta Atlântica – hoje,
94% destruída –, na época habitada por diversas etnias indígenas, entre as quais os
Tupinambá, os Tupiniquin, os Potiguar, os Caeté, os Guarani, entre outras, a
colonização brasileira, depois de apropriar-se de quase todo o pau-brasil e utilizar os
solos férteis para o plantio da cana-de-açúcar, iniciou o processo de criação de gado
e outros animais e a conseqüente interiorização das ações colonizadoras que deu
origem inicialmente aos currais, depois às diversas vilas e cidades do Brasil.

É importante imaginar a diáspora indígena neste período, da costa atlântica para o


interior, até o seu quase desaparecimento. O que restou dos povos originários foi
produto de revoltas, fugas, subjugação, catequese e escravidão. Talvez, a metáfora
das populações indígenas, um tipo imaginário de identidade étnico-cultural,
referendo-nos a uma construção de Hall (2003), possa ser significada através dos
estudos da cultura material pré-histórica, hoje estudada mais especificamente pela
arqueologia, etnografia e antropologia.

Considerando os primeiros núcleos de povoamento do Brasil, os Sertões da Bahia e


de Pernambuco, possuíam os espaços mais acessíveis. Não tardou, para que os
extensos campos do Nordeste estivessem quase todos ocupados pelos
colonizadores. Entretanto, como afirma Ribeiro (1996), estes campos constituíam o
nicho de diversos povos indígenas, alguns dos quais contavam com uma cultura
altamente especializada à vida nessas regiões semi-áridas. Este encontro entre
brancos/as e índios/as no interior, foi revestido de intensa violência como aconteceu
na Mata Atlântica.
61

Alguns grupos indígenas aliaram-se aos franceses e holandeses; outros migraram


para as missões jesuíticas que catequizaram e deram “proteção“ até 1759 quando
foram expulsos do Brasil; muitos foram escravizados servindo em seus próprios
territórios; outros tantos fugiram para locais inacessíveis de matas e serras
circundantes. Os que resistiram foram eliminados, como podemos observar no
clássico relato do Padre Martinho de Nantes e ao famoso massacre dos indígenas
no rio Salitre.

Após a expulsão dos jesuítas, as aldeias foram entregues aos sacerdotes menos
interessados na obra catequética e depois a oficiais civis. Decretada a falsa
liberdade indígena, estas aldeias foram promovidas a vilas e administradas pelos
‘vizinhos’ dos índios que sempre cobiçaram suas terras, ou seja, os donos de
grandes latifúndios de terra. Aos poucos, submetidos às constantes humilhações e
vexames, os povos indígenas iam deixando suas aldeias ou refugiando-se em
núcleos marginais das vilas (RIBEIRO, 1996, p. 66).

Neste momento da diáspora indígena estrutura-se o grande tronco da “vergonha de


ser índio”14 que vai acompanhá-los até a contemporaneidade. Desde então, negar a
etnicidade era questão de sobrevivência; reafirmá-la sinônimo de morte ou
humilhação.

Aos poucos isso vem mudando gradativamente. Os remanescentes dessas


populações, distribuídos por diferentes áreas do território brasileiro, inquietam-se
perante estes saberes organizados em diferentes pesquisas etnográficas,
antropológicas, lingüísticas, ecológicas, arqueológicas, entre outras.

Tão necessário quanto comer, beber e vestir, a identidade étnico-cultural dos povos
indígenas passou a ser uma questão de relevância singular para o conhecimento,
não apenas deles, mas de todos os homens e mulheres da América, quiçá, do
mundo. Trata-se da iniciada discussão da “emergência étnica” das populações
indígenas que algumas áreas das ciências chamam de “etnogênese”.

14
Até hoje encontramos descendentes indígenas que não se revelam como tal. Este violento processo de silenciamento, em
determinado momento, torna-se uma estratégia de proteção. Hoje, esta mordaça tem sido gradativamente retirada das vidas
desses indígenas que, aos poucos, tem reafirmado suas identidades étnicas.
62

Estas nações, como todas as outras, hoje buscam a afirmação de sua identidade
étnico-cultural e reivindicam a posse dos territórios que ocupam e outras das quais
foram expulsos. Portanto, depois de um longo e violento processo de miscigenação
e domínio, os índios do Nordeste do Brasil, gradativamente, percebem a
necessidade e urgência da organização e participação política, ao passo que,
também, mergulham na perplexidade frente à crise das identidades na
contemporaneidade.

Dentro dessa cena, para a construção desta tese analisou-se a complexa ecologia
dos indígenas do Nordeste do Brasil, particularmente, da região do rio São
Francisco. Sobre estas populações, é importante lembrar o estudo pioneiro das
populações indígenas do Baixo e Médio São Francisco feito pelo antropólogo norte-
americano Hohenthal: As Tribos Indígenas do Baixo e Médio São Francisco (1960).
Podemos pensar, portanto, que estamos diante de um fenômeno extraordinário no
campo das ciências sociais: se até início do século XX não se falava mais em
indígenas na Bacia do São Francisco, como pensar a existência de 32 etnias,
distribuídas em mais de 38 territórios, em toda a Bacia na contemporaneidade?

3.5. SÃO FRANCISCO INDÍGENA

Diferente do que aconteceu com outros grupos étnicos que vieram para a América,
os povos indígenas estão quase esquecidos na cultura brasileira, sobretudo quando
a questão é pensar aspectos concernentes à identidade cultural no Brasil.

Figura 18: Indígenas do São Francisco reunidos em Glória/BA (MARQUES, 2007).


63

Sob a visão étnico-histórica podemos nos referir aos povos indígenas pluri-étnicos
do interior do Nordeste como descendentes dos “tapuias”, em “oposição” aos grupos
Tupi que ocupavam o litoral.

No passado, os grupos que escaparam da ação dizimadora da colonização,


integraram as missões religiosas franciscanas erguidas nas férteis ilhas e margens
do São Francisco, como em Aracapá, Surubabel, Cavalo, Pambu, Assunção, Axará,
Arapuá, Inhanhum, Coripós e Pontal (ETCHEVARNE, 1991).

Passados séculos dessas experiências, vários grupos já bastante miscigenados,


encontram-se aldeados em reservas da FUNAI. O modelo de desenvolvimento
pensado para o Vale do São Francisco, em todas as épocas, excluiu a forma
tradicional como estas populações lidavam com o Rio e toda a natureza da região
sanfranciscana. Um modelo bastante interessante é a relação dos Pankararé com o
Raso da Catarina e ainda a dos Kariri-Xocó que conservam a única reserva de mata
nativa da região onde moram.

Vários dilemas acompanham as nações indígenas que escolheram as margens do


Velho Chico para morar. Um dos mais sérios refere-se à demarcação de reservas
indígenas para estas populações, que se agravou com o projeto da construção das
barragens, fato que vem acontecendo com os Truká, na Ilha da Assunção, Cabrobó-
PE; e os Xocó da Ilha do Ouro, Porto da Folha-SE, entre outras (CAPPIO, 2003).

No caso do São Francisco, a existência e afirmação identitária desses grupos estão


associadas a um fenômeno chamado por eles como “levantamento de aldeias”.
Trata-se de um processo político-organizativo iniciado com os Fulniô, na década de
30. Segundo Sampaio (2002):
Depois dos Fulni-ô, nos anos trinta, os Pankararu, de Pernambuco
(Tacaratu, Petrolândia e Jatobá) tiveram assistência do governo. Na
década de 40 os Tuxá, de Rodelas, graças a um esforço imenso de seu
cacique na época, João Gomes, que chegou até ir ao Rio de Janeiro falar
com Rondon, foram também reconhecidos; como os Xucuru, da Serra do
Urubá, em Pesqueira. No início dos anos cinqüenta, os Kariri-Xocó, de
Colégio. Já nos anos sessenta, anos setenta, os Atikum, da Serra do Uma,
de Floresta; Os Kambiwá de Serra Negra, Ibimirim.

Nos anos setenta foram reconhecidos vários povos indígenas do São


Francisco. Os Xacriabá, de lá de Minas, foram reconhecidos graças ao
esforço do próprio Rodrigo; ele que foi à Brasília lutar para que os Xacriabá
64

fossem reconhecidos. Nos anos oitenta foi a vez dos Pankararé, dos
Kapinawá, dos Xocó, dos Tingui-Botó; depois dos Karapotó. Já nos anos
noventa os Kantaruré. Um pouquinho antes, ainda nos anos oitenta, os
Truká. E já agora, depois do ano 2000, os Tumbalalá. E também no ano de
2001, o povo mais longínquo, o povo que está na cabeceira do São
Francisco, que é o povo Kaxixó.

3.5.1. ALGUMAS ETNIAS INDÍGENAS DO SÃO FRANCISCO

3.5.1.1 TUXÁ DE RODELAS

Em um estudo realizado na década de 60, na região do Médio e Baixo São


Francisco, Hohenthal afirma que estes índios foram detectados em 1759, nas
proximidades do atual município de Rodelas, e cita, ao listar os grupos tribais do
estado baiano, entre outros povos, os Kroderas (Rodelas, Rodeleiros) e os Tuxá
(Tuchá ou Tushá). Ele afirma em seu trabalho que a nação Krodera era uma
ramificação étnica dos tapuya que viveu no Sub-médio São Francisco antes do
século XVII, porém segrega os laços étnicos existentes entre os Krodera e os Tuxá.

Figura 19: Indígenas Tuxá de Rodelas (MARQUES, 2007).

Atualmente os índios Tuxá referem-se aos Krodera como seus legítimos


antepassados. Trujillo (1957) em seu trabalho afirmava que:
Um problema etnológico que apenas se cogitou foi o de identificar quais os
grupos tribais que pertencem ao estoque Kariri, pois muitos autores os têm
associado aos Teremembé, Icó, Piacú, Caratiú, Genipapo, Surucu, Acona,
Rodelas, Janduí, Sabuja, Cariu e outros grupos tribais, tanto desaparecidos
quanto os que ainda restam – embora aculturados ou em processo de
aculturação – ao citado estoque Kariri.
65

Em um outro ponto do seu livro, Hohenthal, elabora uma discussão e posiciona-se


favorável às evidentes relações existentes entre os Tuxá e os Kroderas quando
afirma:
Dados colhidos pelo autor, no local, em 1952, indicam que os índios Tuxá,
que hoje vivem em Rodelas (Bahia), têm tradições que nos levam a pensar
terem eles vivido, em outros tempos, nas ilhas onde as antigas missões de
Assunção e Santa Maria foram fundadas. Atualmente, um pequeno grupo
de índios, que se diz chamar Trucá, ainda vive na ilha da Assunção. Tanto
os Tuxá quanto os Trucá são tribos de canoa.

Ao que tudo indica tanto os Krodera quanto os Tuxá estão congregados,


etnicamente falando. É o que afirma Pinto desde 1935 quando publicou Os
Indígenas do Nordeste, que nos dias atuais ainda é tido como um dos trabalhos
pioneiros sobre a formação e composição étnica dos grupos indígenas do Nordeste
brasileiro e que serve de subsídio para a realização de estudos etnográficos até
hoje. Dentro das discussões do trabalho, o autor situa os Tuxá e os Krodera como
prováveis integrantes dos Kariri do nordeste brasileiro e afirma que “os Rodela do
São Francisco pertencem ao grupo dos Kiriri”. Sampaio-Silva (1997) permeia uma
discussão acerca da familiaridade e possíveis relações étnicas e sociológicas
existentes entre algumas etnias desta região a partir da similaridade notada em
alguns termos indígenas utilizados por estas tribos.

A língua falada pelos Tuxá antes do contato com os colonizadores era o Trocá, que
muito provavelmente tem uma relação etimológica cognata com a palavra Trucá,
tribo indígena que ainda hoje habita a ilha da Assunção no rio São Francisco, um
pouco acima do ponto onde estão localizados os Tuxá. Portanto, os termos Tuxá
(tribo), Trucá (tribo) e Trocá (língua) podem pertencer a uma mesma família
etimológica e, permeado por um estudo etno-lingüístico mais aprofundado, pode
elucidar melhor esta especulação da descendência e correlação étnica entre as
tribos Kariri, Trucá e Tuxá, habitantes desta região.

Aglomerando índios de várias etnias que se afugentavam do poder da Casa da


Torre, espalhando-se pelo Nordeste, bem como negros fugitivos das fazendas e dos
“currais” e os brancos que levavam a boiada para o interior, a missão Rodelas foi
crescendo e aos poucos deixou de ser missão para virar a vila de Rodelas, segundo
Sampaio-Silva (1997):
66

Em 1975-76, a população aldeada no local da antiga missão de Rodelas,


na então cidade de Rodelas, não falava língua indígena, era etnicamente
mesclada e sua organização social e manifestações culturais
apresentavam estruturas com evidentes influências da sociedade não-
indígena.

Atualmente, as etnias indígenas que ocupam as áreas do sub-médio São Francisco


encontram-se distribuídas no lado pernambucano, entre as tribos Pankararu, Atikum
e Kimbiwa. Os Truká, na Ilha da Assunção e na margem baiana do São Francisco
estão os Kiriri, Pankararé e Tuxá.

Estes últimos encontravam-se localizados no norte do estado baiano de onde, há


muito tempo atrás, somente rememorado pela oralidade dos indivíduos que
conhecem a sua história e atestam isso em seus depoimentos, partiram da Ilha de
Surubabel ou Sorobabel em virtude da construção da hidroelétrica de Itaparica,
estando hoje dividido em três grupos que habitam os municípios de Ibotirama e
Rodelas, na Bahia, e Inajá, no estado de Pernambuco. Em Banzaê hoje estão
localizadas 25 famílias.

Os Tuxá são descendentes dos índios rodeleiros que naquela região viveram há
muitos anos. Atualmente são denominados como “Índios Tuxá, Nação Procá,
Caboclos de Arco e Flecha e Maracá”. A aldeia Tuxá situa-se no município de
Rodelas, cidade do norte baiano, na região do sub-médio São Francisco. Sua
população atual é de 995 indivíduos, 214 famílias, sendo 507 índios e 488 índias.
Depois de tantos conflitos, os índios resolveram viver pacificamente com os brancos
em um mesmo espaço, havendo uma cerca de arame farpado, um muro de tijolo e
uma placa codificando “área proibida”, que os separa dos não-indígenas.

É nos rituais onde os Tuxá expressam mais claramente as tradições indígenas, já


que a aldeia Tuxá é considerada uma das mais tradicionais do rio São Francisco.

São tidos como bons conhecedores da ciência – saberes secretos/sagrados – da


religião do índio e, em diversas ocasiões, foram consultados por outros grupos
indígenas como Atikum e Kiriri, interessados em conhecer os procedimentos
adotados na realização do toré, ritual praticado pelos Tuxá.
67

Com o convívio no dia-a-dia com os não-índios, as novas gerações de Tuxá foram


se misturando cada vez mais com a sociedade rodelense, tornando a diferença
social cada vez menor.

Com o enchimento do lago da barragem de Itaparica, suas terras férteis que


margeavam o rio, como a Ilha da Viúva, foram submersas, causando grandes
prejuízos à comunidade.

Atualmente, a maior parte dos índios desta etnia vive de uma VMT- Verba de
Manutenção Temporária, no valor de dois salários mínimos e meio por família paga
pela CHESF, como medida mitigatória decorrente do Barramento de Itaparica. Parte
das novas famílias, que casaram de 1988 em diante, não recebiam essa VMT,
ficando na dependência dos pais. Depois de um longo processo de negociação, a
CHESF passou a pagar a VMT para as novas famílias Tuxá.

Em 2004 os Tuxá assinaram um convênio com a Secretaria Especial de Direitos


Humanos, Ministério Público da União, FUNAI e CHESF que prevê a liberação de 15
hectares de terras para cada uma das 442 famílias a serem beneficiadas e irrigação
por três anos. Este termo “representa” investimentos na ordem de R$ 86 milhões de
reais.

Após intensos contatos com os não-indígenas que pôs em risco a valorização da sua
identidade, a tribo Tuxá permaneceu durante muito tempo, predominantemente
agrupada e protegida por um posto indígena criado pela FUNAI - Fundação Nacional
do Índio, em 1945, dentro dos limites do município de Rodelas. Até então a
população era predominantemente indígena e as relações inter-étnicas entre os
índios e os outros grupos habitantes do local não eram tão intensas.

Com o passar do tempo, por um processo natural das relações necessárias às


modificações inerentes à dinâmica social, os índios ou “cabôcos” (caboclos) de
Rodelas – como são chamados os índios pelos “não-índios” habitantes no município
– casaram-se com os brancos e negros das “ruas de trás”, denominação atribuída
devido ao fato da cidade ter iniciado o seu crescimento a partir de uma rua principal,
68

originado outras ruas atrás desta, dando lugar ao padrão étnico observado por
Sampaio-Silva (1997):
A evidência de miscigenação entre etnias – brancos, índios e negros –
eram facilmente percebidas, pela simples observação direta. Percebia-se a
mestiçagem na cor da pele, nas formas dos olhos, nos tipos de cabelo. No
entanto, nestes séculos de contato entre os Tuxá e a sociedade do tipo
sertaneja desta área sanfranciscana do norte da Bahia, tem estado em
curso um processo de mudança social nesta sociedade indígena.

A miscigenação trouxe consigo o aumento crítico da disputa de terras da região.


Antes, os índios ribeirinhos do São Francisco as utilizavam para a produção e cultivo
dos recursos alimentícios necessários, com a prática da agricultura de quintal, sem
expressão econômica e apenas para o consumo coletivo, principalmente na ilha da
Viúva e Ilha de Surubabel, localizadas no Velho Chico.

Posteriormente, com a chegada dos brancos que intentavam fixar-se e estabelecer


moradia naquela área, algumas destas terras e ilhas pertencentes à tribo Tuxá foram
tomadas dos índios de forma violenta ou compradas por preços muito baixos. Trata-
se de uma tribo referencial entre os povos do São Francisco que será discutida em
capítulo específico.

3.5.1.2. KANTARURÉ

Figura 20: Cacique Kantaruré (ROQUE, 2007).

Kantaruré é a denominação de um núcleo constituído por 83 famílias indígenas


divididas entre as aldeias Batida e Baixa das Pedras, com aproximadamente 493
pessoas (ISA, 2006), ocupando uma área com cerca de 1.800 hectares (FUNAI/90),
69

no povoado da Batida, município de Nova Glória, norte da Bahia, próximo ao lago


formado pelo Reservatório de Itaparica, em Pernambuco, numa distância de 33 Km
da sede do município e 43 Km da FUNAI/Paulo Afonso. Segundo tradição oral,
teriam emigrado da região do Brejo dos Padres, Tacaratu-PE.

O etnônimo Kantaruré é recente. São todos tratados pelos regionais como “Caboclos
da Batida”. Os Kantaruré têm mantido ao longo dos últimos anos intenso contato
com os Xucuru-Kariri de Quixaba e Pankararé – grupos vizinhos habitantes do
mesmo município, na região do Raso da Catarina, tanto para a prática do Toré,
quanto para a articulação de iniciativas políticas conjuntas às ações da ADR/FUNAI
de Paulo Afonso e a Prefeitura Municipal de Glória, ambas na Bahia.

Foi com o apoio destes vizinhos e de alguns Tuxá que os Kantaruré, no final dos
anos oitenta, procuraram a FUNAI reivindicando o seu reconhecimento. Em março
de 1999 a Administração Regional da FUNAI em Paulo Afonso, enviou uma
assistente social ao povoado da Batida, com o objetivo de verificar a real situação da
comunidade que reivindicava reconhecimento oficial.

Esta concluiu em relatório no dia 06 de abril de 1989, pela necessidade de serem


reconhecidos e tratados como índios e da realização de um estudo antropológico,
com a finalidade de confirmar se realmente este grupo tinha laços étnicos indígenas.

Ainda no ano de 1989, a FUNAI/3ª SUER, designou uma antropóloga para estudar a
condição étnica da comunidade que auto-identifica-se como indígena (OS
nº301/gab/3ªSUER/89-21/09/89). A preocupação desse estudo centra-se na
identificação de traços culturais indígenas – religião, cultura material, entre outros –
e a sua inclusão no processo era favorável ao reconhecimento oficial dos Kantaruré.

O relatório, contendo informações acerca da disposição espacial do grupo e da


possível existência de índios em outros núcleos próximos, limitava-se a dizer, sem
especificações, que os índios ocupavam uma área de 70 ha, o que abrange apenas
as ocupações com moradias e lavouras indígenas na Batida, já que toda a sua
circunvizinhança é constituída de fundos de pasto, isto é, terrenos de criatório
extensivo e coletivo que as famílias indígenas não ocupam efetivamente, pois como
70

informa a ANAI-BA (Boletim nº 8, 0ut/nov 1992), vivem em situação precária,


ocupando área bastante reduzida, dispondo apenas de pequenas roças para
desenvolver criatórios.

Faixas deste terreno são, entretanto, reconhecidos pelos Kantaruré como


tradicionalmente suas, conforme descreve ainda a ANAI-BA a partir de levantamento
realizado junto ao grupo; “nascente, Salgado do Benício: norte, Mandacaru: poente,
Baixa das Pedras”. Os índios dizem existir escrituras das terras que teria se perdido:
“Nela rezava a Fonte do Salgado do Benício ao Cipó de Caititu. A base são 5
léguas, tem a Serra das Araras e a Serra dos Negros. Do outro lado da Serra dos
Negros tem o Olho D’água dos Coelhos” (citação de um informante ANAI-BA, op.
cit.).

O processo levou a uma quase extinção de uma série de espécies vegetais e


animais que se constituem como importante fonte alimentar, a exemplo da
macambira, o araticum, o umbuzeiro e o ouricuri, além do veado, o caititu, a cutia, o
jabuti, o tatu, o peba e o tiu/teiu/teju. Além disso, eliminaram-se por completo as
fontes de coleta do mel nativo – obtidos no interior das árvores de maior porte – e
uma série de outros vegetais, cuja exploração redunda em benefícios econômicos
através da comercialização de caibros, portas e ripas – facheiro, imburana, angico,
baraúna, entre outros – ou através da produção artesanal em cujo mercado o grupo
vem a algum tempo tentando se inserir.

Nesta categoria temos o caroá (Neoglaziovia variegata), cujos bancos ou reservas


naturais foram devastados em sua maioria, obrigando as índias a penetrarem na
caatinga para sua obtenção e cuja fibra é largamente utilizada para o transporte da
caça, recomposição das colméias após a coleta do mel e na confecção de aiós
(bolsas), redes e de uma série de itens de sua indumentária ritual.

Uma série de outras espécies vegetais de valor terapêutico foram também atingidas,
tais como o bálsamo, o camaru, a sacaatinga branca, o velame, o veladinho roxo e
muitas outras. Além disso, tal desmatamento vem ameaçando espécies de
importância singular para manutenção dos hábitos culturais, tal como a jurema, cujo
vinho tem um papel de relevante importância no complexo ritual do grupo.
71

Os índios contam mais do que nunca, com a caça para alimentação de suas
famílias. Estratégia que começa a ser compartilhada pelos sertanejos vizinhos que,
muitas vezes, têm que tomar cuidados especiais para que os pequenos animais de
criação não sejam devorados pelos carcarás famintos ou que pereçam pela sede.

Os índios Kantaruré sobrevivem basicamente da exploração das atividades agrícolas


de sequeiro, onde se cultiva o milho, o feijão e a mandioca. Também vivem da pesca
no Rio São Francisco que fica próximo à sua área.

A produção agrícola é pequena, não só devido aos métodos utilizados para a


produção, mas principalmente pela baixa fertilidade do solo da área que ocupam.
Hoje, possuem área regularizada com 1700 há de extensão.

3.5.1.3. XUCURU-KARIRI

A área de Quixaba foi adquirida para o assentamento de índios Xucuru-Kariri


transferidos da T.I. Fazenda Canto, Palmeira dos Índios-AL, devido a ocorrência de
conflitos internos. Em 1986, a FUNAI comprou um imóvel com 62 ha, distante 2 km
de Ibotirama-BA, para o reassentamento desses índios/as, família Sátiro. Entretanto,
a gleba, situada em terrenos de várzea do Rio São Francisco, estava sujeita a
enchentes periódicas, pendências judiciais, além da disputa de fazendeiros pela sua
posse. Com isso, os Xucuru-Kariri se mobilizaram e pressionaram a FUNAI para
que, ainda em 1986, providenciasse uma nova transferência, tendo sido
reassentados em outra terra adquirida pela FUNAI no povoado de Quixaba,
município de Glória/BA, norte baiano, em uma área denominado Fazenda Pedrosa,
que tem uma área total de 18 ha.
72

Figura 21: Indígenas Xucuru-Kariri (ELAINE, 2006).

O povo indígena Xucuru-Kariri encontra-se constituído por uma população de


aproximadamente 54 índios, distribuídos em 14 famílias assentadas à margem do
lago formado pela Barragem de Moxotó, rio São Francisco, próximo ao povoado de
Quixaba, Município de Glória-BA. A distância entre a área e a sede do município é
de 24Km e entre a área e AER/PAF é de 34Km. A extensão da terra indígena é de
39ha sendo, 18ha adquiridos pela FUNAI em 1986, e 21ha adquiridos através da
Diocese da Paulo Afonso, permanecendo inculta, pois os índios não dispõem de
recursos para a sua posse efetiva.

Os índios enfrentam sérios problemas ocasionados pela natureza pedregosa dos


solos e conseqüente propensão à salinização devido à prática da agricultura irrigada
por inundação, possibilitada pela implantação de bombas na área, adquiridas
através de recursos de origens diversas, que permitiram aos Xucuru-Kariri
reiniciarem suas atividades produtivas neste novo local. Outra dificuldade enfrentada
pelo grupo é o fato de que, pela exigüidade das terras, a sua produção não é
suficiente para arcar com os custos de energia elétrica, tornando-os dependentes
dos incertos recursos da FUNAI.
73

3.5.1.4. KIRIRI DA BARRA

Figura 22: Indígenas Kiriri/Barra (FUNAI, 2005).

Em frente ao povoado Passagem de Ibotirama, município de Muquém de São


Francisco, está localizada a terra Indígena Kiriri-Barra, situada à margem esquerda
do Rio São Francisco, com uma extensão de 37,57ha, distrito de Piragiba, município
de Muquém de São Francisco-BA; foi desmembrada do município de Barra-BA, em
1990, distante 1.100 km da AER/PAF, via terrestre.

Os índios Kiriri-Barra têm uma população relativamente pequena, com


aproximadamente 100 indígenas transferidos de Mirandela, município de Banzaê-
BA, por conta de conflitos internos. Inicialmente esta parte do imóvel Fazenda
Passagem foi adquirida pelo FUNAI para ser ocupada pelos índios Xucuru-Kariri,
transferidos da T.I. Fazenda Canto-AL, que não chegaram a ocupar a referida
fazenda em razão de pendências judiciais e conflitos pela sua posse, causadas por
fazendeiros da região e questões de inundações do Rio São Francisco.
74

3.5.1.5. PANKARARÉ

Figura 23: Indígenas Pankararé (MARQUES, 2007).

Os Pankararé, assim como outros povos tradicionais da região do São Francisco,


foram aldeados junto a uma das muitas missões católicas estabelecidas a partir do
século XVII às margens desse Rio. No tempo das boiadas, Glória chamava-se Curral
dos Bois e foi sede da missão de Santo Antonio da Glória. A velha cidade foi
inundada pela barragem de Moxotó. As terras dos índios foram recentemente
demarcadas pela FUNAI, faltando somente a liberação e indenização das terras dos
posseiros, com extensão de aproximadamente 29.597ha e 17.700ha de área
ocupada.

Estas terras abrangem desde a região do Brejo do Burgo até o Raso da Catarina,
que é um local muito importante, sagrado, para o povo Pankararé. Ali se esconde o
seu paraíso terrestre, onde praticam o ritual sagrado do Praiá. A aldeia Pankararé
fica nas proximidades das cidades de Glória, Paulo Afonso e Nova Rodelas, Bahia,
cerca de 42Km da sede municipal para onde o acesso é feito através de estradas
não pavimentadas. Os Pankararé tem sua principal população no povoado
denominado Brejo do Burgo; outra parte significativa da aldeia encontra-se na Baixa
do Chico e no Povoado Cerquinha.

De acordo com o censo populacional da Terra Indígena Pankararé, realizado no


período de 07/10 a 18/10 de 2002, a etnia Pankararé possui um total de 1.436
habitantes distribuídos em 355 famílias. Entretanto esses números já são bem
superiores.
75

3.5.1.6. TUXÁ DE IBOTIRAMA

A terra indígena Ibotirama originou-se a partir da construção da Usina Hidroelétrica


de Itaparica, que teve como conseqüência a inundação das terras imemoriais dos
Tuxá no município de Rodelas-BA. À margem do rio São Francisco vivem em torno
de 637 índios, próximo à sede do município ao qual está localizada a terra indígena
Tuxá/Ibotirama, Bahia, distante 1.100Km da AER/PAF.

Pode-se chegar lá através de via terrestre. A área possui uma extensão de 2.019ha,
demarcadas. Diante da constatação do deslocamento, a necessidade de reassentar
o grupo em uma nova área passa a ser objeto de negociações envolvendo
representantes da CHESF, FUNAI e algumas lideranças do grupo. Após alguns
acordos iniciais, ficou definido que a data limite para o reassentamento do grupo
seria o ano de 1987, e como proposta, uma área localizada na recém-criada Nova
Rodelas-BA, o que exigiria do grupo deslocar-se para uma outra área para executar
suas atividades agrícolas.

Com a ausência de proposta da FUNAI e CHESF, os Tuxá propuseram, sozinhos,


alternativas que resultaram em duas proposições concretas: de um lado a de
permanecer junto à cidade de Rodelas-BA; do outro, buscar novas terras a montante
do Rio, onde fosse possível a prática da agricultura de várzea e alguma facilidade
para comercialização.

A segunda opção foi adotada pelo grande grupo familiar dos Valério, pelo então
“Capitão” Miguel Santana e por Manuel Novaes, arregimentadores de grande
número de famílias Tuxá dispersa na margem pernambucana do São Francisco.
Depois de obtido o aval da CHESF para que procurassem novas terras, o que foi
feito por Manuel Novaes e Raul Valério, os indígenas optaram pelo estabelecimento
em uma área no município de Ibotirama-BA, aproximadamente 1.200Km distante de
Rodelas, perfazendo um total de 2.019ha. Como parte do acordo, a CHESF se
comprometera a incluir no projeto toda infra-estrutura básica e irrigação, que até o
momento não foram cumpridas na íntegra.
76

Nesta nova localidade, os índios transferidos têm melhores condições, do ponto de


vista de exploração agrícola, do que o grupo situado na Nova Rodelas-BA. No
entanto, o constante adiamento da CHESF à implantação do projeto de irrigação tem
causado dificuldades de subsistência e tensões no grupo que se encontra abrigadas
em habitações precárias.

No início de 1993, a instalação de algumas bombas à margem do Rio possibilitou a


irrigação de um hectare por cada família em terrenos altos, com o objetivo de
prevenir contra as freqüentes inundações do São Francisco. Devido aos altos custos
com a manutenção, principalmente com energia elétrica, os Tuxá e técnicos da
FUNAI se mostram bastante céticos quanto à viabilidade econômica do projeto como
um todo.

Existe ainda um impasse quanto à extensão exata da área das fazendas adquiridas
pela CHESF, posto que, em 1991, a demarcação administrativa da área foi
homologada com aproximadamente 2.019ha. O GT que executou a demarcação
justificou a diferença na extensão da área (CHESF 2.183 e FUNAI 2.019ha), pela
metodologia aplicada para execução dos trabalhos de medição pelos referidos
órgãos (CI nº 128/SUAF/91/BSB de 10.05.92) e por registro no Cartório de Registro
de Títulos e Documentos da Cidade de Ibotirama.

3.5.1.7. TUMBALALÁ

Com a mudança dos paradigmas na política indigenista oficial, a partir da CF/88, em


que se passou a conceber o Brasil como uma nação culturalmente plural, vários
grupos, a maioria do Nordeste, dentre os quais a tribo Tumbalalá, começaram a
emergir e reclamar seus direitos, tendo na reivindicação o reconhecimento oficial de
sua identidade indígena a mola propulsora do processo de emergência étnica.
77

Figura 24: Indígenas Tumbalalá (ROQUE e MARQUES, 2007).

Os Tumbalalá são em torno de 1500 indígenas que vivem no povoado de Pambu,


entre os municípios de Abaré e Curaçá, nas aldeias Ibozinho, Pé de Areia, Cruzinha,
Jatobá, Pambu, Missão Velha, Foice, São Miguel, Mari, Salgado, Porto da Vila,
Cajueiro e Bom Passar, defronte da Ilha de Assunção no Rio São Francisco, onde
vivem seus vizinhos e parentes indígenas, os Truká. Segundo contam, foi a partir do
movimento dos Truká para retomar as suas terras, que os Tumbalalá se
entusiasmaram e começaram a reivindicar o reconhecimento oficial e a posse das
terras que tradicionalmente tem ocupado.

Buscando subsídios para que a FUNAI pudesse responder com segurança e


legitimidade a demanda dos Tumbalalá, a CGEP contratou a antropóloga Mércia
Rangel Batista para realizar estudos sobre o grupo. No laudo intitulado “Os
Tumbalalá – aqui é o tronco da aldeia e não uma rama dos Truká – análise do
processo de constituição da identidade indígena dos aldeados do Pambu”, a
professora Mércia deixa claro que se está diante de uma comunidade que apresenta
as características já estudadas em outros casos de emergência étnica.

Os Tumbalalá, através da crença compartilhada de um passado comum, de uma


ligação com um determinado lugar e com uma história específica, além das práticas
rituais que são reconhecidas pelo grupo e por outros grupos como sendo indígenas,
exercitavam um sentido de descendência indígena e uma crença no compartilhar de
ações e conteúdos peculiares. A professora foi favorável quando afirmou que não
subsistia nenhuma dúvida quanto à condição indígena Tumbalalá,
conseqüentemente, sobre o direito ao reconhecimento por parte do Estado
brasileiro.
78

Figura 25: Indígenas Tumbalalá (MARQUES, 2008)

3.5.1.8. PANKARARU

Figura 26: Indígenas Pankararu (ROQUE e CATARINE, 2007/2006).

A Cultura Pankararu encontra-se disseminada em várias aldeias distribuídas em


diversas regiões do São Francisco, tendo servido de referências a vários grupos,
sobretudo nos aspectos voltados para o ritual do Praiá-Encantados, a exemplo: dos
Kalancó, Karuazu e Gerinpancó, em Alagoas; e os Pankararé, na Bahia, entre
outros.

Alguns documentos étnico-históricos fazem referências aos Pankararu já no século


XVII, quando tiveram contatos com os missionários que entraram no interior dos
sertões.

O etinômio Pankararu é visto pela primeira vez em um relatório de 1702 e é citado


junto a vários grupos indígenas: os Kararuze, ou Cararu, os Tacaruba e os Poru,
embora o aldeiamento seja anterior a esta data. Posteriormente, em 1845, os
Pankararu e os Poru aparecem novamente associados em mais outras duas aldeias
localizadas em missões distintas uma da outra, mas sempre às margens do São
79

Francisco. A quarta aldeia Pankararu localizada foi a do Brejo dos Padres, que hoje
é a aldeia principal. Ela foi criada possivelmente no início do século XIX com o
ajuntamento dos Pankararu, Poru, Umã, Vouves e Jeritacó (OLIVEIRA, 2004).

Os Pankararu que estão localizados nos municípios de Tacaratu, Petrolândia e


Jatobá, em Pernambuco, entram na mesma lógica das demais tribos ribeirinhas.
Foram por muito tempo sujeitados ao esquecimento, sendo reconhecidos
oficialmente como grupo em 1937 pelo Serviço de Proteção aos Índios, em virtude
do movimento pela identidade indígena iniciado pelos índios Fulni-ô de Águas Belas-
PE. Suas terras foram demarcadas em 1941 pelo SPI, que guardam grandes
equívocos, ainda hoje, motivo de conflitos. Atualmente estão distribuídos em 14
aldeias onde vivem cerca de 6.515 indígenas (ISA, 2006).

Figura 27: Quitéria e João: sábios do Povo Pankararu (MARQUES, 2008).

3.5.1.9. PANKARU

Figura 28: Pankaru (GOMES, 2007)

A tribo Pankaru está localizada no município de Serra do Ramalho-BA, distante


1.300 Km da ERA/PAF, via terrestre. Homologada como reserva indígena, a aldeia
Pankaru Vargem Alegre é formada por uma população de 179 indígenas (ISA,
80

2006), numa área de 981,0825 hectares. Seu patriarca migrou do agreste


pernambucano na década de 20. A partir do início da década de 70 alguns grileiros
entraram em conflito com os Pankaru e ameaçaram expulsá-los da área que
ocupavam no sopé da Serra do Ramalho.

Os índios que viviam, até então de forma autônoma, recorreram à FUNAI, solicitando
reconhecimento e providência. No final dos anos 70 e início da década de 80, o PEC
- Projeto Especial de Colonização, criado pelo INCRA na Serra do Ramalho, para
reassentar famílias desalojadas pela barragem de Sobradinho atraiu grileiros,
aumentando a pressão sobre a terra ocupada pelos Pankaru. Como alternativa, foi
solicitado ao INCRA a concessão de lotes contíguos para famílias ali residentes.
Porém, a demora na negociação posicionou novos conflitos entre índios e
fazendeiros. Após longo período de negociação, os índios foram cadastrados e
incluídos no PEC.

Em 1985 efetivou-se o processo de cessão de área entre a FUNAI e o INCRA. Os


índios receberam aproximadamente 1.000 hectares de terras, entretanto, o INCRA,
anteriormente a esta medida, em 1982, havia concordado em ceder apenas 20
hectares, para cada família posta que era o que correspondia a um módulo de
exploração familiar local. Em 1988 foi efetivada a demarcação administrativa da área
medida pelo INCRA chamada de T.I. Vargem Alegre, que foi ratificada três anos
depois pelo Decreto nº 247 de 29.10.91, e registrada no Cartório de Registro de
Imóveis da Câmara de Bom Jesus da Lapa-BA.

3.5.1.10. KARIRI-XOCÓ

Figura 29: Indígenas Kariri-Xocó (MARQUES e ROQUE, 2007).


81

Os aldeiamentos missionários indígenas do final do século XVII e início do século


XVIII, também eram organizados a partir da junção de várias etnias indígenas. No
caso específico da união dos grupos Kariri e Xocó, ocorreu no século XIX, quando
os Xocó foram expulsos de suas terras, localizadas no município de Porto da Folha,
em Sergipe, sendo acolhidos pelos Kariri de Porto Real do Colégio, em Alagoas
(OLIVEIRA, 2004). Vivendo em aldeias nas margens do São Francisco, esses dois
grupos também foram afetados quando da expulsão da Companhia de Jesus do
Brasil, em 1757.

A área indígena Kariri-Xocó localiza-se no Município de Porto Real do Colégio, entre


Alagoas e Sergipe, onde também moram índios Fulni-ô, Xucuru-Kariri, Pankararu,
Carapulo e Tingui-Botó. Hoje os Kariri-Xocó são uma média de 3.000 indígenas. Um
dado muito importante desta comunidade é que, em virtude da prática do Ouricuri,
ritual sagrado, os Kariri-Xocó conseguiram manter presente o único pedaço da
vegetação nativa que restou na região (OLIVEIRA, 2004).

Gil (2003) comentando sobre essa relação entre espiritualidade e natureza no


candomblé, o que se aplica perfeitamente aos cultos sagrados dos indígenas
sanfranciscanos, que guardam em suas práticas também coisas de matriz africana,
escreve que essa relação se estabelece no campo do sagrado. Daí a frase, hoje
famosa, de uma ialorixá da Bahia: “sem folha, não há orixá”. Por isso mesmo, é
claro, a conservação da natureza, das reservas vegetais, é vital para o candomblé e
para as práticas ritualísticas dos povos indígenas. É indispensável à sua existência e
reprodução.

3.5.1.11. FULNI-Ô

Figura 30: Indígena Fulniô (CHICO, 2008).


82

A respeito dos índios que hoje residem na cidade de Águas Belas, Pernambuco, a
273Km de Recife, também chamados Carnijó ou Carijó, inclusive Cajaú
(HOHENTHAL, 1960), não se tem notícias exatas do período em que foram
aldeados. Sabe-se que por volta do século XVIII, várias etnias foram agrupadas,
inclusive o grupo que conhecemos como Fulni-ô, único da região franciscana que
ainda mantém, em pleno uso, sua língua nativa, o Yathê, do tronco Macro-jê.

A área indígena Fulni-ô, de aproximadamente 11.506 hectares, está situada na


região do polígono das secas, cortada ao sul pelo rio Ipanema, que deságua no Rio
São Francisco. Nesta área localiza-se o Posto Indígena da Fundação Nacional do
Índio (FUNAI). Em 1999 o grupo indígena Fulni-ô somava um total de 2.930
indivíduos. Hoje esse número é de 3.659 indígenas (ISA, 2006).

Dado o seu grau de organicidade e relação com as tradições indígenas, a exemplo


do ritual sagrado do Ouricuri – retiro religioso que dura três meses, entre setembro e
dezembro –, foi o primeiro grupo a ser reconhecido na região sanfranciscana em
1926, servindo de referência para todos os outros povos da Bacia.

3.5.1.12. TRUKÁ

Figura 31: Indígenas Truká Neguinho e Mozeni15 - (MARQUES, 2007).

A maior ilha do São Francisco, Ilha da Assunção, com cerca de mais de 6.000 ha,
abriga um dos mais emblemáticos povos indígenas do Nordeste: os Truká,
provavelmente remanescentes Tuxá (SILVA, 2003). A história desse povo está
intimamente associada à luta pela posse da terra/território, ainda hoje resistentes ao

15
Mozeni foi assassinado em 23 de agosto de 2008, por crime de mando, na Cidade de Cabrobó/PE.
83

violento modelo de desenvolvimento que submeteu, e ainda submete, a diferentes


formas de violências, reais e simbólicas, os povos indígenas do São Francisco.

Como os demais grupos nativos, os Truká foram vítimas do agressivo processo de


colonização dos Sertões. 4.169 indígenas integram o povo Truká (ISA, 2006), parte
significativa deles vivendo na Ilha da Assunção, região do Sub-médio São Francisco,
entre os estados da Bahia e Pernambuco, município de Cabrobó-PE, a uma
distância de 535Km do Recife.

Ainda não se tem dados históricos comprobatórios do período de fundação da


aldeia, embora se saiba que desde 1722 existem registros desses indígenas no
território da “Grande Ilha”. O crescimento dessa região, que no século XVIII já era
um centro de relativa importância, e que em 1761 passou a ser uma paróquia,
provocou uma inserção intensa de não-indígenas.

Descrições de uma enchente ocorrida em 1792 relatam que este fato foi responsável
pela destruição de quase toda a vila, inundada pelas águas desse grande rio que a
abraça, hoje “calado”, em virtude da construção da barragem de Sobradinho, em
1979.

Um documento importantíssimo que faz referência aos Truká é o "Relatório Sobre os


Aldeiamentos de Índios na Província de Pernambuco", feito a pedido do governador
provincial e publicado no Diário de Pernambuco de 04 de abril de 1973. Os dados
que são apresentados nesta fonte nos dão um testemunho do quanto os indígenas
foram usurpados pelas mãos do Estado, da Igreja e de latifundiários.

Os Truká, se não bastasse as adversidades apresentadas pela natureza, ainda


tiveram que permanecer lutando pela posse das terras/territórios que
tradicionalmente ocupam, permanecendo ameaçados por posseiros e pelas
estruturas dos poderes políticos. Apesar de toda a luta, a partir de meados do século
XIX, suas terras foram tomadas e a ilha passou a ser a sede da Freguesia de Belém
do São Francisco.
84

Após este fato, a Ilha de Assunção foi transferida para a Comarca de Cabrobó, que
a arrendou juntamente com o conjunto de suas ilhotas. Desde então, os indígenas
foram expropriados da sua criação e tiveram que se submeter a trabalhar em regime
de escravidão e semi-escravidão para os arrendatários de suas terras, reivindicadas
pela igreja católica como uma doação dos indígenas à Nossa Senhora. Esse fato foi
legitimado, em 1920, pelo Cartório da Comarca de Belém do São Francisco, que
tirou a Ilha dos Truká e passou às mãos do seu “novo proprietário”, o Bispo de
Pesqueira.

Já em 1940, com o apoio dos Tuxá de Rodelas, os Truká reivindicaram junto ao SPI
- Serviço de Proteção aos Índios, a posse das terras da Ilha da Assunção,
conseguindo desse órgão uma Ação de Nulidade de Venda e Re-integração de
Posse, fato que desencadeou diversos conflitos entre indígenas e não-indígenas.
Para piorar a situação, o governo de Pernambuco desconsiderou essa decisão e
comprou, em 1965, parte da ilha para criação de um núcleo de colonização
distribuindo lotes a não-indígenas.

No final da década de 60 a área é transformada em um viveiro de mudas, quando os


Truká passam a um novo momento de reivindicação dos seus territórios junto à
FUNAI, haja vista que o SPI havia sido extinto. Em virtude das pressões dos Truká,
em 21 de junho de 1976, a FUNAI baixa a Portaria n. 876/p, que cria uma equipe
para avaliar a existência de indígenas e a sua situação fundiária. O CIMI passa a
apoiar a luta dos Truká. Face às pressões, a área usada para a produção de mudas
foi devolvida à comunidade indígena.

A FUNAI faz a indicação de cessão de 500 ha aos Truká, o que não tem a
aprovação do governo de Pernambuco. Em 1980, através da Portaria n. 687/E de
05/03/80, a FUNAI estabelece uma comissão para o levantamento antropológico.
Em 1981, este órgão indigenista consegue do governo pernambucano dois lotes de
14ha para uso temporário dos indígenas, sendo que em 1982 os Truká ocupam uma
nova área de 70ha.

Depois desses anos de conflitos intensos pela posse da terra, em 1984 a terra
indígena foi demarcada com uma superfície de 1.659 ha, sendo finalmente
85

declarada como de posse permanentedos Truká pelo Ministério da Justiça, através


da Portaria n. 315 de 17 de agosto de 1993. Somente em 2002 é que o território
tradicional Truká, a Ilha da Assunção, foi delimitado na sua totalidade: 5.796 ha.

Hohenthal (1960) já descrevia os Truká como índios canoeiros, remanescentes das


Aldeias de Assunção e Santa Maria, extintas em 21 de fevereiro de 1879.

Entretanto, apesar de toda essa peregrinação e visível condição de permanência


secular no território que corresponde à Ilha de Assunção e seus arreadores, o povo
Truká, ainda se encontra na difícil luta pela reivindicação de seus territórios,
ameaçados por posseiros e pela intervenção estatal para efetivação de grandes
obras, como é o caso do Projeto de Transposição do Rio São Francisco, que corta
parte do seu território tradicional.

Figura 32: Povo Truká na reivindicação de seus territórios tradicionais, após a expulsão pela força policial do
local onde o Exército está construindo o Eixo Norte da Transposição (MARQUES, 2007).

Como pode ser observado nas fotos acima, em 2007, o povo Truká ainda está
mobilizado reivindicando os territórios que tradicionalmente ocupam. Essa trajetória
já culminou em perdas violentas para este povo canoeiro, das Ilhas Franciscanas,
como os bárbaros assassinatos da liderança Truká, Adenilson dos Santos Vieira, 38
anos, e seu filho Jorge Adriano Ferreira Vieira, 17 anos, por policiais.

Em virtude dessas reivindicações a FUNAI instituiu a Portaria DAF nº 624, de


16/07/2007, que constitui Grupo Técnico com o objetivo de realizar estudos
complementares da terra Indígena Tumbalalá, municípios de Curaçá e Abaré-BA,
bem como realizar levantamento de campo na área reivindicada pelo grupo indígena
86

Truká, na localidade denominada por Mãe Rosa e Fazenda Toco Preto, município de
Cabrobó-BA.

O grupo foi composto por: 01. Mércia Rejane Rangel Batista, antropóloga - UFCG;
02. Ricardo Migliore, Auxiliar de Pesquisa - UFCG; 03. Cícero Romão Gomes
Marinheiro - Liderança Indígena; 04. William Eliseu Caribe de Carvalho Pires,
servidor AER Paulo Afonso. Estes relatórios já foram finalizados, confirmando que as
áreas reivindicadas pelos povos Indígenas Truká e Tumbalalá são de ocupações
tradicionais, aguardando, portanto, a decisão final para sua posse efetiva.

Antes tinham a pesca como uma das principais fontes de alimentação, hoje,
entretanto, em virtude da diminuição da piscicosidade do Rio São Francisco devido
às barragens construídas em todo o seu curso e outros problemas sócioambientais
decorrentes disso, vivem basicamente da agricultura, cultivando feijão, milho, batata,
mandioca e, sua principal atividade agrícola, o plantio do arroz.

Por ser um grupo com fortes características negras e, em virtude da intensa


perseguição aos povos indígenas, durante muito tempo o povo Truká “escondeu”
sua identidade étnica e suas tradições. Entretanto, no processo de afirmação de sua
identidade coletiva enquanto povo indígena ribeirinho, os processos político-
organizativos tem sido uma marca desse processo de declaração de suas
identidades e territorialidades.

3.5.1.13. KAMBIWÁ

Figura 33: Indígenas Kambiwá (MARQUES, 2008).


87

Distribuídos em oito aldeiamentos, Pereiro, Serra do Periquito, Nazário, Tear,


Americano, Santa Rosa, Guela, Faveleira e Baixa da Índia Alexandra, nos
municípios de Ibimirimm, Inajá e Floresta - PE, sub-região do Vale do Moxotó, Sub-
médio São Francisco, no sertão pernambucano, estão os cerca de 3 mil indígenas
da tribo Kambiwá.

O nome Kambiwá, segundo alguns indígenas, significa “retorno à Serra Negra”, terra
sagrada para as etnias da região. Hoje parte significativa desse território tradicional é
uma Reserva Biológica, criada pelo Decreto n. 87.591, de 20 de setembro de 1982.
Segundo o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC),
esta é uma categoria extremamente restritiva, o que limita o acesso desses grupos à
Serra Negra, uma solicitação do povo Kambiwá, que foi expulso da referida área por
fazendeiros, tendo sido reconhecidos como povo indígena pela FUNAI somente em
1978, depois de uma longa história de reivindicações.

Relatos históricos dos idos de 1802 contêm informações sobre o aldeiamento de


cerca de 114 indígenas da nação Pipipã, pelo missionário capuchinho italiano Frei
Vital Frescarolo, no lugar conhecido como Jacaré, entre a Serra do Perequito e a
Serra Negra (UFPE, 2007). Entretanto, estas não eram as únicas etnias da região da
Serra Negra, havendo relatos da existência dos “Vouê”, “Umãs”, “Aricobés”, “Avis” e
os Kambiwá, que percorriam os territórios da Pedra Furada, Serra da Cangalha,
Serra das Areias, Serrote dos Bois, Serrote Sonhém, Cabembe, as margens
esquerdas do São Francisco, entre outros (FUNAI, 1988). Hohenthal (1960) chegou
a classificar estes grupos como “bandos nômades da Serra Negra”. Segundo dados
da UFPE (2007):
Até o início de nosso século, a situação dos índios do sertão caracterizava-
se pela flagrante exploração a que estavam sujeitos pelos fazendeiros
locais, contra os quais se mobilizou um grupo de interessados em
sensibilizar a opinião publica da época sob o incentivo e orientação do
Monsenhor Alfredo Damaso. Este religioso mantinha em fins da década de
30, contato sistemático com Getúlio Vargas, a quem foi atribuída à
autorização para que estes índios ocupassem definitivamente a Serra
Negra, enviada em telegrama entre 1939 e 1940 ao Padre Damaso em
São Serafim. Naquela ocasião, diversas famílias de descendentes dos
antigos moradores da serra encontravam-se instaladas nas imediações da
mesma, onde hoje está localizado o PI Kambiwá. Liderados pelo índio João
Fortunato, mais conhecido como João Cabeça-de-Pena, ensejaram sua
derradeira – e frustrada – tentativa de ocupação da Serra Negra que
resultou na prisão e tortura, seguida de morte de Cabeça-de-Pena pela
Polícia de Inajá.
88

Após terem sido expulsos, mais uma vez, da Serra Negra, os Kambiwá retornaram
para o "Baixo do Araticum", hoje "Baixa da Índia Alexandra", permanecendo lá até
1954, quando o então Ministro da Agricultura, o pernambucano João Cleofas
"manda demarcar as terras (grupo com os seguintes limites: Nazário Serrote das
Cabaças, Riacho Americano, Faveleira, Serra Verde e Serra da Inveja)" (FUNAI,
1988).

Apesar da oficialização da demarcação de 1978 os conflitos com os fazendeiros não


cessaram, tendo ficado de fora da área reivindicada pelos Kambiwá uma importante
fonte de água e argila chamada de “Lagoa de Dôca”, a “Serra do Periquito” e a
“Faveleira”, pontos extremamente importantes para estes grupos. Até 1992 o
processo de regularização do território Kambiwá fora interrompido, sendo que a
discussão foi retomada a partir da criação, através da Portaria/Funai nº 1284/92, de
um grupo de trabalho, responsável pela identificação, levantamento fundiário e
delimitação da aIdeia Kambiwá. Este trabalho, publicado no mesmo ano da criação
do GT, incluiu estas áreas, reivindicação do povo Kambiwá, que passou, inclusive, a
ter acesso à Reserva Biológica Serra Negra, seu território sagrado.

Figura 34: Serra Negra ao fundo (MARQUES, 2008)

Como é comum nos grupos indígenas do Nordeste, entre os rituais sagrado-


religiosos dos Kambiwá estão o Toré e o Praiá. Este povo também desenvolveu
uma forma bastante particular de uso dos bens naturais da Caatinga, sobretudo para
a produção de artesanatos. Destacam-se os objetos feitos com a fibra do caroá, a
palha do ouricuri, a madeira de umburana, sementes e outros.
89

3.5.1.14. PIPIPÃ

Figura 35: Indígenas Pipipã (MARQUES, 2008 ).

Por muito tempo o grupo indígena Pipipã, que campeava entre o Pajeú e o Moxotó,
foi considerado extinto. Dados históricos mostram que foram reduzidos pelo capitão
Antônio Vieira de Melo em meados do século XVIII, tendo sido aldeados por Frei
Vital Frescarolo (SILVA, 2003), entre a Serra Negra e a Serra do Periquito em
Pernambuco. Até o século passado este grupo estava integrado aos Kambiwá, hoje,
em virtude da “separação”, reivindicam seu reconhecimento como povo indígena e
demarcação de sua área na região da Serra Negra.

Apesar dos dados da FUNASA indicarem uma população de 1.640 indígenas


integrantes (ISA, 2006), os Pipipã afirmam que existem mais de dois mil indivíduos
nas suas 5 aldeias: a aldeia Travessão do Ouro, localizada próxima à Serra do
Periquito, no Km 29 da BR-360, em Floresta-PE, tem aproximadamente 324 pessoas
e um total de 72 famílias; a aldeia Serra Negra que fica nas margens da Serra
Negra, tem aproximadamente 13 famílias, cerca de 67 pessoas; na aldeia Caraíba,
localizada próxima à Serra do Taiado e ao Serrote do Tamanduá, moram 19
famílias, totalizando mais de 100 pessoas; e as aldeias Capoeira do Barro, Faveleira
e Alfredo, onde vivem muitos indígenas Pipipã com não-indígenas.

No território reivindicado pelos Pipipã, caso seja construído, passará o Eixo Leste da
transposição, bem como serão instalados uma estação de bombeamento de grande
porte e um alojamento com canteiros de obras. Estas ações, segundo os indígenas,
afetarão imensamente o seu povo, seu território e sua cultura.
90

3.5.1.15. XUCURU

Figura 36:Chicão Xucuru (Fonte: upload.wikimedia.org) e José Xucuru (MARQUES, 2006).

O povo Xucuru está localizado no município de Pesqueira a 214Km de Recife, na


Serra do Ororubá. Suas 24 aldeias abrigam 9.064 indígenas (ISA, 2006), distribuídos
em torno de 2.000 famílias.

Segundo Pacheco (2007), dos 82 indígenas Xucuru que haviam participado da


Guerra do Paraguai, voltaram apenas 12 sobreviventes e, como recompensa,
ganharam das mãos da Princesa Isabel, o título das terras que ocupavam.
O aldeiamento de Cimbres, entre a serra do Orubá e do Ipojuca, a 64
quilômetros de Recife, com uma população de 789 índios, distribuídos em
238 famílias, foi extinto em 25 de janeiro de 1879, por ordem do Barão de
Buíque, último diretor dos índios de Pernambuco. Apenas em 1954 o
Serviço de Proteção aos Índios, estabeleceria um posto indígena na área,
sem no entanto resolver a situação fundiária dos Xucuru, uma vez que a
própria sede do posto contava com apenas 6,5 hectares para mais de 2000
índios (PACHECO, 2007).

Em 1985 o povo Xucuru começou um processo de organização sócio-política, de


afirmação étnica e territorial, sob a liderança de Francisco de Assis, conhecido como
Chicão Xucuru, eleito cacique da tribo em 1986. Chicão foi um líder incansável na
defesa do seu povo, tendo sido assassinado em 1998.

Os Xucuru eram considerados extintos até o início do século XX. Neste século
começa uma longa luta pelo reconhecimento étnico e demarcação territorial. Até
1980 os Xucuru ocupavam menos de 10% de seu território tradicional, demarcado
em 1995, sendo que a homologação dos 27.555 hectares de terra, hoje
pertencentes ao povo Xucuru, só ocorreu definitivamente em maio de 2001,
91

representando 85% do território reivindicado pelos Xucuru. Os outros 15% restante


estão em fase de desintrusão.

Todo esse processo de afirmação identitária e de retomada do território tradicional


do povo Xucuru deixou marcas dramáticas para este povo, pois várias lideranças
foram assassinadas e outras encontram-se ameaçadas.

Recentemente, na Plenária dos Povos e Comunidades Tradicionais do Nordeste -


Fórum Social Nordestino, José Xucuru, uma das lideranças indígenas, disse que foi
várias vezes ameaçado e que, apesar dos cuidados, sabia que corria risco de morte.

Figura 37: Indígenas Xucuru em ritual contra a transposição do São Francisco em Sobradinho/BA
(MARQUES, 2007).

3.5.1.16. ATIKUM

Figura 38: Indígenas Atikum (MARQUES, 2008).

Segundo Silva (2003), conforme tradição oral de indígenas Atikum, este grupo
localizava-se ao sul do trecho encachoeirado do Sub-médio São Francisco no Raso
da Catarina. Em virtude das perseguições dos colonizadores, os Atikum saíram da
região sul de Itaparica e fixaram-se na margem direita do São Francisco. Como as
92

perseguições prosseguiram, atravessaram o rio e buscaram refúgio na região


serrana mais ao norte.

A diáspora do povo Atikum foi proveniente de sucessivas perseguições que se


estabeleciam contra os povos indígenas do Nordeste. É certo que até meados dos
anos 1940 não havia notícias sobre a existência de grupos indígenas denominados
Atikum, mas de um grupo denominado Umã, aldeado, juntamente com os Xocó,
Vouve e Pipipã, em 1802, por Frei Vital Frescarolo, em lugar onde hoje é uma das
aldeias da área indígena, como descreve Rodrigo Grünewald, da Universidade da
Paraíba (2007).

Sabe-se dos seguintes registros dos Umã: por volta de 1696 andavam pelo vale do
rio São Francisco; em 1713 estavam na ribeira do Pajeú; em 1746 em Alagoas, entre
os rios Ipanema e São Francisco; em 1759 em Sergipe; em 1801 foram aldeados em
Olho d'Água da Gameleira – onde hoje é a aldeia Olho d'Água do Padre na Serra do
Umã – e de onde se dispersaram em 1819; em 1838 são encontrados nas
proximidades de Jardim, no Ceará; em 1844 se encontram novamente próximos ao
antigo aldeamento, mais especificamente em Baixa Verde.

Ainda é bom lembrar que, quando aldeado, o grupo Umã recebia diversas
denominações, tais como Huanoi, Huamoi, Huamães, Huamué, Humons, Umã,
Umães, Uman, Umãos, Urumã, Woyana, e foi obrigado a dividir o aldeamento com
os grupos Xocó e os Vouvê. Estes três grupos sempre se mantiveram próximos aos
Pipipã.

Em meados do século XIX cessam as informações quanto a esses índios, que em


1943 se apresentam no SPI buscando reconhecimento de suas terras.

A denominação do povo Atikum suscita muitas reflexões. Silva (2003) indica que o
gentílico Atikum seja uma corruptela de araticum, termo tupi que refere-se às
anonas, vegetais do Cerrado, que deu nome a uma das aldeias do São Francisco.
Uma das primeiras referências a este nome é decorrente do período do
reconhecimento oficial desse grupo indígena pelo Serviço de Proteção ao Índio
93

(SPI), na segunda metade da década de 40. Há também relatos de que este termo
refere-se a uma língua extinta.

Essa etnia se auto-reconhece como "Comunidade Indígena de Atikum-Umã".


Segundo tradição oral desse grupo, Umã teria sido o "índio mais velho" e pai de
Atikum, cuja descendência se criou na aldeia Olho d'Água do Padre – antiga Olho
d'Água da Gameleira. Porém, há informações de que o termo Atikum teria surgido
num ritual de toré. Silva (2003), tendo como referência palavras coletadas do idioma
Pankararu nos anos 60, descreve a palavra “uma” com o significado de “velho”,
referindo-se assim ao ancestral fundador do grupo.

A terra indígena Atikum localiza-se na região da Serra das Crioulas e Umã –


reivindicada como território sagrado –, onde existem cerca de 20 aldeias, entre as
quais: Alto do Umã - sede do posto, Olho d'Água do Padre, Casa de Telha, Jatobá,
Samambaia, Sabonete, Lagoa Cercada, Oiticica, Areia dos Pedros, Serra da
Lagoinha, Jacaré, Bom Jesus, Baixão, Estreito, Mulungu, Boa Vista e Angico. Essa
área foi delimitada em 17 de agosto de 1993, através da Portaria 314, do Ministro
da Justiça, homologada por Decreto Presidencial, de 5 de janeiro de 1996,
demarcando a área com uma superfície de 16.290 hectares. Hoje os Atikum são em
número de 5.852 indígenas (ISA, 2006), que vivem essencialmente da agricultura.

3.5.1.17. KAXAGÓ

Figura 39: Natuyé Kaxagó, Cacique (MARQUES, 2008)


94

Segundo Silva (2003) os Kaxagó pertenciam à aldeia de Pacatuba, em Sergipe, sob


a orientação dos capuchinhos italianos em meados do século XVIII, mas que já
habitavam o Baixo São Francisco desde o século XVI.

A trajetória do Povo Kaxagó é narrada pelo atual Cacique Natuyé (2008) que
atualmente vive com o Povo Kariri-Xocó, caracterizado por receber diversos povos
indígenas refugiados:

Assim como um dia os Xocó chegaram aqui pra se refugiar dos


perseguidores que era os fazendeiros, do mesmo jeito os Kaxagó estão
refugiados em Kariri-Xocó, porque aqui é aldeia mãe que acolhe os
perseguido. A historia do povo Kaxagó é do século XVIII. O povo Kaxagó era
comandado pelo cacique que na época chamava Capitano, pelo cacique
Pacatuba. Mas teve um massacre na época comandado pelo pistola de barro
mandado pelo governo da Bahia, pelo rei, e o cacique se rendeu porque ele
não tinha como combater o exercito, na época o exercito muito armado e ele
só tinha arco e flecha e lança, não tinha como. Aí o cacique se rendeu e lá foi
preso junto com os irmãos dele na Vila Nova Real que hoje é Neópolis que a
delegacia era lá. Alguns foram mortos, muitos mortos. O dia 25 de dezembro
dessa década, que eu não sei mais ou menos o ano, e aí a minha família
com esses Kaxagó que hoje estão aí no Kariri, eles conseguiram fugir. Eles
não tinham canoa para atravessar o rio São Francisco que fica do outro lado,
ficava lá de Sergipe que também não era Sergipe, ainda o estado não existia,
era Bahia. Aí eles fugiram para a ilha do São Pedro, para a missão do São
Pedro lá no Xocó. Quando chegaram lá eles foram acolhidos pelos parentes
Xocó e lá eles ficaram permanecendo por muitos anos. Só que lá o Xocó
também foram atacados pelos fazendeiros que era a famílias dos Brito. Os
Brito entraram lá e teve uma matança, eles conseguiram fugir. Os Xocó eles
correram para aqui para a aldeia dos Kariri-Xocó junto com os Kaxagó. Os
Kaxangós vieram de lá também, da ilha de São Pedro dos Xocó. E aí
ficaram. Só que na época os meus parentes Kaxangó não tinham autonomia
junto com os Kariri-Xocó. Ele não sabia como reivindicar os seus direitos
adquiridos que eles tem e aqui ficaram. Só que os Xocó ainda identificaram o
seu nome que hoje a aldeia é Kariri-Xocó por conta dos Xocó que vieram
também, mas eles não identificaram os Kaxagó que hoje aqui estão. Meu pai
que era um Kaxagó velho, morreu, assim Deus levou, e ele me passava
muitas coisas sobre os Kaxagó, e aí eu foi e pedi força ao meu Deus Tupã
para nós levantar junto com o meu povo e correr atrás dos nossos direitos.
Corri atrás e o direito chegou, a FUNAI, esta aí para assentar nós porque as
terras tradicionais não dá para a gente. Não porque no momento a FUNAI
ela tem recurso para essa terra mas a FUNAI ainda não saiu para procurar
essas terras. É a gente que estamos procurando. Segundo o que o
administrador disse, passou para mim que se eu encontrasse uma terra, uma
fazenda que desse para a FUNAI comprar eles pagariam as terras. A FUNAI
em Brasília já reconheceu a gente, já estamos reconhecido como grupo, aí
falta a terra reconhecida. Só falta realmente as terras. Nós temos documento
que comprove que já estamos registrados, fomos cadastrados
individualmente, apesar de nós estar aqui nos Kariri-Xocó, mas nós somos
uma comunidade individual. Nós temos cerca de 180, 170 Kaxagó. São 25
famílias. Todos estão aqui com os Kariri-Xocó. Aguardamos o assentamento
de terra.

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