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Aula 14: Afetos e gêneros:

Bom dia;

Depois da aula passada, na qual a gente trabalhou no exercício de análise sobre os territórios,
vamos começar hoje a pensar afetos e gêneros – mas sem perder de vista as outras discussões
que já fizemos, sobretudo em relação aos territórios e territorialidades.

E quando falo em gênero pode ser gênero musical, gênero televisivo, gênero midiático.
Vamos pensar a relação entre gênero e cultura – e como os gêneros organizam e moblizam
afetos e engajamentos políticos. Na semana que vem a gente vai discutir um texto de Barbero
e um artigo de Itania para aprofundar gênero na relação com comunicação e cultura,
articulando com afetos.

A gente vai começar esse trabalho com o texto Afeto, Autenticidade e Socialidade: Uma
abordagem do Rock como fenômeno cultural, de Jeder Janotti, que vocês leram esta semana.
Esse texto foi publicado nos anais da Compós, que é o evento da Associação Nacional dos
Programas de Pós-Graduação em Comunicação e também em um livro organizado pela
professora Itania e pela professora Carmem, também aqui da Facom.

*** Como foi a leitura do texto? O que acharam? Têm alguma dúvida, pergunta?

*** Na relação com o que a gente está trabalhando nas últimas aulas, como vocês
relacionam esse texto com outros entradas que a gente vem fazendo na disciplina?
Territórios, por exemplo?

O texto aborda diversas questões sobre o rock, vai da relação com os afetos e investimentos
afetivos, a partir de Grossberg, até discussões de cena musical. Dentre essas questões, queria
que a gente pensasse juntos, mais especificamente, sobre o gênero.

Ou seja, o rock como gênero na relação com o que Jeder está se referindo enquanto fenômeno
cultural – e aí envolve territórios, outros gêneros, processos de diferenciação, relações de
poder, – não é apenas o texto musical, a sonoridade (é também), um conjunto estável se
sonoridades, mas valores, territórios, contextos. Ou seja, não essencializar o gênero.

Trouxe dois vídeos para a gente pensar o rock como fenômeno cultural e gênero musical. Um
sobre um evento que aconteceu no Rio Vermelho, o Rock no Vacachorro, e outro que é um
teaser de divulgação do disco novo de Pitty, chamado Matriz.

A gente já viu o teaser de Pitty em uma das primeiras aula da disciplina, mas acabou não
trabalhando muito na análise. Talvez agora a gente já consiga aprofundar algumas outras
relações.
Antes de colocar os vídeos, vou falar um pouco de Pitty e do Rock no Vacachorro e do
exercício que a gente vai fazer aqui. A maior parte de vocês deve conhecer Pitty – talvez não
conheçam tanto o Rock no Vacachorro.
Pitty é uma das artistas locais de maior projeção, visibilidade e público nacionalmente e,
desde o início dos anos 2000, mora em São Paulo. Teve uma banda chamada Inkoma, nos
anos 1990, antes de ganhar um destaque nacional, mudar para São Paulo. Atualmente,
concilia o trabalho musical com a apresentação do programa Saia Justa, no GNT.

Fazia parte de uma cena que, em geral, fazia uma oposição ao axé-music, questionava muito o
modo como uma chamada indústria musical existia em Salvador – embora muitos desses
artistas, quando conquistavam um publicozinho maior na cidade, gravavam no estúdio WR,
que ficou muito conhecido por fazer o registro da maior parte das bandas e dos artistas da axé-
music.

Nesse disco mais recente, Pitty cita, em múicas, o Rio Vermelho (casa de show Calypso),
Pelourinho (bar Cantina da Lua), Estação da Lapa, festas populares (Iemanjá) e o Carnaval –
ela se apresentou no trio Respeita as Mina, com Larissa Luz. Na própria capa aparece com um
ramo de folhas, se benzendo.

Ou seja, há uma certa mudança, nas declarações dela, em entrevistas, e nas próprias músicas,
de aproximação com elementos afro-baianos e culturais de Salvador.

Durante um período, Salvador era vista pela galera do rock como “a cidade do axé, a cidade
do terror”, como na letra de uma banda dessa época, a Camisa de Vênus.

Jeder, em um livro dele chamado Heavy Metal com Dendê, diz que o Largo da Dinha do
Acarajé, ali no Rio Vermelho, era um dos poucos lugares em que dendê e rock pesado se
misturavam no final dos anos 1990 e início dos 2000. Esses elementos que aparecem na
divulgação e no disco de Pitty também eram alvos da oposição promovida pelo rock.

E o Rock no Vacachorro foi uma ocupação musical exatamente na Dinha do Rio Vermelho,
entre 2011 e a reforma do Rio Vermelho, que começou em 2015. Ao lado de uma barraca de
Príncipe Maluco, os produtores montavam uma estrutura, meio gambiarra, com os
equipamentos de som e faziam os shows. Não tinha autorização da prefeitura. E, pensando no
que se tornou o Rio Vermelho depois da reforma, parece algo muito distante.

O Mercado do Peixe, que era o lugar onde se bebia até de manhã, que tinha cerveja por R$ 4,
5 reais e comida barata, virou Vila Caramuru, com quiosques da Sorveteria Cubana,
hamburguerias e bares super caros para entrar. Há muitos relatos que a galera saia dos shows
de rock no Calypso, Idearium e seguia para o Mercado do Peixe.

Os ambulantes da Dinha, quase todos, foram expulsos. Se voltarem têm as mercadorias


apreendidas pela guarda municipal, pela Secretaria de Ordem Pública (que no próprio nome já
diz logo qual é o objetivo). E o Rock no Vacachorro fazia esse enfrentamento.
Ah, e o Vacachorro, que é o mais importante, era uma estrutura de Bel Borda, artista plástico
daqui, que ficava ali no Largo da Dinha, depois foi transferida para a outra praça, onde tem o
Acarajé de Regina, que funciona como estacionamento, não tem muita circulação. E fica na
esquina da orla, na frente de uma banca de revistas – enfim, não rola fazer mais show lá.

Trouxe uma foto que é bem interessante para mostrar como funcionava o Rock no Vacachorro
numa visão mais ampla da região, vou mostrar para vocês, além do vídeo.

Então ideia para a aula de hoje é que a gente faça aqui, a partir do texto, um exercício de
análise sobre o rock em Salvador, com base nesse teaser do disco de Pitty, que foi lançado
este ano.

E vou pedir que vocês se reunam em dupla ou trio para pensar questões, a partir desses dois
vídeos e do artigo, sobre o rock na relação com afetos e territórios.

Ou seja, queria que vocês refletissem como essas duas produções audiovisuais expressam
afetos, engajamentos relacionados ao gênero rock e aos territórios em Salvador. Quais
são as disputas afetivas que interligam rock e territórios?

Fiquem à vontade (e fica a dica também) para acessar os comentários e a página do evento
Rock no Vacachorro no Facebook. Acho que vocês podem achar coisas bem interessantes lá.

Pode escolher um ou outro, mas o ideal é que vocês tentem construir relações entre os dois
vídeos a partir também do que a gente discutiu sobre o Follow The Music e outras questões
sobre a música em Salvador que já foram trabalhadas.

Vou colocar os vídeos e e aí vocês se reunem e começam a trabalhar – e, em seguida, a gente


discute a partir da apresentação de vocês, do que vocês perceberem e construírem de relação.

Rock de Rua - Rock no Vacachorro;

- As maneiras de ocupação desse espaço evidenciam alguns engajamentos afetivos e


construção de territorialidades, tal como valores relacionados ao rock, ao bairro do Rio
Vermelho e a cidade.

- A própria presença de jovens vestidos geralmente com roupas pretas e reunidos à noite,
pulando e dançando, e participando das eventuais rodinhas, em shows gratuitos e na rua, com
palco horizontal (e muitas vezes sem palco, quando o público e a banda se misturavam) já
expressam tensionamentos territoriais afetivos sobre uma lógica de organização do Rio
Vermelho enquanto espaço ordenado, turístico e boêmio (pelo consumo, sobretudo, nas mesas
dos bares, casas de show ou boates).
- Argumento da falta de lugares; As demandas por mais casas de show e pela possibilidade de
realizar apresentações nesses locais privados, que remetem a um engajamento afetivo ligado
ao rock em Salvador há pelo menos duas décadas, é colocada em primeiro plano no discurso
do produtor e artista.

- Quer dizer, no seu enunciado, a apresentação ocorreu ali somente pela falta de outros locais,
o que ecoa discursos nessa mesma linha.

- Ao mesmo tempo, há uma dimensão colaborativa: (na produção, no empréstimo de


equipamentos de som, auxílio dos trabalhadores informais com a energia elétrica) e modos de
divulgação (eventos online, convites para amigos em comum);

- Espaço público, a dimensão dos territórios; há uma potência afetiva relacionada ao espaço, a
reconfigurar uma certa relação com o Rio Vermelho – dos bares, das casas de show, do
turismo. Mas o argumento é que o problema é a falta de espaços. A potência política se reduz;

- Ao mesmo tempo, há o afeto relacionado ao faça você mesmo, não é?

- Alguém prestou a atenção no público do Rock no Vacachorro? Público majoritariamente


masculino também – relação com machismo e misoginia no rock;

- Disputa com a Prefeitura – reforma do Rio Vermelho;

- A performance – as rodinhas; há uma relação com a roupa preta; um contraste ao colorido


do vídeo de Pitty; Há uma afirmação do rock, numa dimensão mais internacionalizada, como
trabalha Jeder no texto; Os próprios nomes das bandas;

E a gente pode pensar sobre a própria ocupação musical da rua como uma maneira de
instabilizar formações discursivas ou lógicas sobre o Rio Vermelho, evidenciadas pela
prefeitura e por propagandas de turismo, em que predominam noções de bairro turístico e
comercial.

Além disso, há disputas afetivas, a partir da ocupação do Vacachorro em encontros e show de


rock, que tensionam uma territorialização mais funcional através da tentativa de controle do
espaço pela prefeitura, como revelam as imagens da Transalvador ao lado do evento. Ou
então apenas da comercialização, de um tipo de consumo.

*** Como a gente pensa o gênero rock; os dois são rock?

*** Pitty em Matriz e o Rock no Vacachorro?

*** Vocês acham que Pitty deixou de fazer rock a partir do disco Matriz?

Pitty:
- Participam do disco Lazzo, BaianaSystem, Larissa Luz;

- Relações com matrizes culturais afro-baianas;

- Se vocês forem às postagens, a maior parte elogia a mudança de Pitty;


- Mas há uma oscilação também, disputas dos fãs.

- Enquanto alguns reforçam a ideia de que a cantora e compositora é o que há de “resistência


no rock” e no “mainstream” atualmente, outros lamentam e criticam uma suposta perda de
“essência”, “atitude” e “autenticidade” roqueira da artista.

Há uma oscilação no que se refere à relação com o rock, num sentido geral.

Embora alguns fãs e seguidores também critiquem o fato de Pitty não apresentar uma
performance que dialoga, de maneira tão explícita como em outros trabalhos, com convenções
já reiteradas no próprio trabalho dela sobre o gênero, outros fãs ressaltam que o conteúdo
crítico e de resistência das letras são coerentes com a trajetória dela ligada ao rock.

Ou então acionam referências como Raul Seixas, que, em outros tempos, já abriram esse
caminhos e propuseram diálogos e disputas no rock.

E me parece que há uma tensão com o rock (nesse discurso da resistência) que se constitui a
partir da construção discursiva de Pitty em entrevistas, no material de divulgação do disco,
nas parcerias, que enfatizam esses vínculos com matrizes culturais baianas, mas, sobretudo,
em relação ao contexto brasileiro em que o rock tem sido associado ao conservadorismo –
Lobão, Roger e outros.

Ou seja, disputa-se o rock enquanto resistência e não conservadorismo.

Por exemplo:

A parceria do BaianaSystem toca em alguns eixos afetivos na relação com o rock, os


territórios e o contexto musical contemporâneo de Salvador, entre eles a performance das
rodas, cultivadas tanto no gênero rock (a roda de pogo), quanto na relação dos fãs com o
BaianaSystem, nos shows, no Pelourinho, no Carnaval.
Há uma relação com a matriz da roda de capoeira, enquanto matriz cultural e lugar de
resistência negra, e a gira de Umbanda, religião de matrizes afro-brasileiras, o que configura
um invesitmento afetivo que articula questões territoriais e étnic-raciais.

Esse diálogo com matrizes – capa do disco.

Na discussão no setor de comentários no YouTube, chama a atenção alguns movimentos que


articulam territórios com gêneros musicais e cenas soteropolitanas. Um primeiro que articula
as ruas enquanto espaço da liberdade – que possibilita múltiplas expressões e liberdade
enquanto resistência ao conservadorismo.

No vídeo publicado pelo portal Terra, cujo título é “Pitty reencontra suas origens baianas em
novo álbum Matriz”, alguns investimentos afetivos e disputas de Pitty no contexto musical
contemporâneo e na cidade de Salvador ficam evidentes.

Primeiro, exibe-se na reportagem o “trailer oficial” do álbum Matriz (2019), no qual imagens
de festas populares, roda de capoeira e rituais religiosos de matriz afro-brasileira entremeiam-
se com a música, cuja refrão afirma:

“Eu me domestiquei, para fazer parte do jogo, mas não se engane maluco, continuo bicho
solto” – aqui chama a atenção a expressão popular soretopolitana “bicho solto” e a relação
estabelecida com Pitty no movimento de incorporação à certas lógicas da indústria
fonográfica.

Na entrevista, a artista aborda a sua trajetória, o lugar oposicional do rock na época em que
circulava na cidade, entre o final dos anos 1990 e início dos 2000. “Não tinha espaço para ser
quem eu era, para as pesssoas que gostavam de música alternativa, de rock como eu”.

Cita a resistência e reação criada no meio rock em relação à indústria do axé-music, o que fica
implícito na entrevista, mas que entra em sintonia com outros discursos de integrantes da cena
de rock daquela época – “claro que vou ser uma oposição a isso, eu preciso existir, encontrar
o meu lugar, de fato. E aqui nesse lugar, que é o meu lugar, não é possível”.
Em seguida, afirma que existe uma construção nos últimos anos que possibilita a realização
de um trabalho como Matriz: “Isso vem se fazendo ao longo desses anos todos para se chegar
até aqui. Matriz é um marco muito grande”.

Daí a presença de Larissa Luz, BaianaSystem e Lazzo ganham uma força afetiva política
ainda maior enquanto disputa e reforço do lugar do alternativo, não como oposicional a certas
matrizes, mas como reafirmação.

Nesse contexto de ascensão conservadora, o discurso da cantora, no lançamento do álbum


Matriz (2019), recorre a valores de liberdades individuais, direito de escolha, responsabilidade
nas atitudes “que rima com liberdade”.

É possível pensar, considerando a trajetória de Pitty, que há uma disputa afetiva aqui que
convoca valores modernos (liberdade individual, responsabilidade) diante de um
conservadorismo crescente no Brasil e suas vinculações com o rock na figura de bandas e
artistas com posições reacionárias.

Em outras palavras, apresenta-se uma crise do rock que articula, por um lado, disputas entre
uma euromodernidade liberal (e seus valores), e por outro um acionamento de um passado
permeado por tempos pré-modernos, pela exaltação pública de preconceitos, proibições,
autoristarismos em interdições de práticas e discursos.

De maneira complementar, mudanças nas lógicas de produção das gravadores e oportunidades


comerciais também podem interferir nesse processo. A parceria de Pitty com BaianaSystem e
Larissa Luz ocorre num momento em que tais artistas já têm um certo destaque nacional.

Há uma aliança afetiva com artistas contemporâneos de Salvador que vem ganhando
visibilidade e construindo movimentos de resistência e luta, cada um com suas
particularidades, cuja articulação de territórios com gêneros musicais expressa afetos.

Nas palavras de Breno Lima: “Qualquer mistura musical referenciada a cultura baiana
naquela época seria certamente massacrada por quem buscava no mínimo um espaço para
tocar”. Com base nessas afirmações de Pitty e do fã, acredita-se que é necessário
problematizar a compreensão de impossibilidade de disputa sem a chave da oposição e
negação, do “nós e eles”, constantemente aludida ao contexto musical de Salvador entre o
final dos anos 1990 e início dos 2000.

Entre 2010 e 2019, percebe-se que as indicações de mudanças e possibilidades de


transformação de afetos no contexto cultural e da cidade, em relação aos territórios, aos
gêneros e as cenas musicais, passam extamente por um movimento contínuo e complexto de
identificações e tensionamentos.

Reportagens e textos críticos:

Há uma afirmação da estabilidade de Pitty – e, portanto, agora ela pode se arriscar;

Na reportagem “Ser roqueira não me impede de fazer experimentações”, diz Pitty, ao


lançar disco Matriz, seu trabalho ‘Bahia lado B’”, publicada na revista Rolling Stone, do
jornalista Pedro Antunes atribui o olhar temporal e espacial, a exposição de vínculos afetivos
e mapas de importância de Pitty no disco novo à sua maturidade, ao seu reconhecimento e à
estabilidade da sua trajetória de sucesso.

No seu entendimento, agora Pitty “[...] pode se colocar a pensar sobre quem ela foi, quem ela
vai ser. Virou mãe, apresentadora do programa Saia Justa [...], tem milhões de seguidores nas
redes sociais e discos de platina acumulados na carreira”.

Ou seja, apresenta um enunciado que pressupõe que a liberdade de escolhas no disco


dependeu de uma certa consagração ou reconhecimento. Fechando (ou reduzindo) as
possibilidades de disputas e mudanças, mesmo na trajetória de uma artista como Pitty, o
jornalista apresenta um argumento que associa diretamente sucesso econômico e
reconhecimento como premissa ou condição da liberdade criativa.

O que se percebe, nas práticas e discursos de Pitty em torno do disco, que há uma potência na
articulação de múltiplos territórios e temporalidades com gêneros musicais que não se
relaciona apenas à sua trajetória de sucesso comercial ou não.

Diferente de uma visão reduzida, focalizada apenas no disco ou na artista, avalia-se que é
pertinente refletir que os afetos expostos ligados à territórios, conjuntamente com as disputas
em torno do rock associadas à cantora e compositora, ao contexto musical e à capital baiana,
se amplificam ao incorporar elementos que envolvem diferentes experiências com os
territórios da cidade, distintas temporalidades e seus indícios e possibilidades de mudança.

Há certas relações e interligações com uma cena musical alternativa, expressas na trajetória de
Pitty, em lugares e casas de show citadas em letras, nas declarações em entrevistas, e com o
contexto musical contemporâneo de Salvador – Baiana, Larissa Luz, Attooxxa.

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