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O Império dos Correios: Notas de pesquisa sobre o sistema

postal brasileiro no século XIX

Pérola Maria Goldfeder e Castro


Doutoranda em História – Universidade de São Paulo – USP
Bolsista FAPESP

Resumo: A construção do Estado liberal brasileiro, no decorrer do século XIX,


implicou a montagem de uma máquina administrativa capaz de expandir a
autoridade governamental e de responder às demandas da realidade social e
econômica que se pretendia dirigir. Tendo em vista a importância dos serviços
públicos para a consolidação dos Estados nacionais, a pesquisa que ora temos
o prazer de apresentar à comunidade acadêmica busca contribuir com os
estudos sobre Oitocentos brasileiro, ao analisar os múltiplos aspectos
institucionais que caracterizaram a Diretoria Geral dos Correios do Império. Para
isso, privilegia-se uma abordagem organizacional que contemple a estrutura e o
funcionamento da máquina administrativa, evidenciando as articulações
existentes entre instituições públicas, política e sociedade no Brasil do século
XIX. Na reforma dos serviços postais estavam em concorrência, portanto, não
apenas diferentes modelos de administração pública, mas também concepções
distintas de organização de Estado.

Palavras-chave: Diretoria Geral dos Correios; serviço postal; administração


pública; Brasil; século XIX.

Abstract: The construction of the Brazilian liberal state in the nineteenth century
led to the built of an administrative machine capable of expanding government
authority and to respond to the demands of social and economic reality it was
intended to address. Given the importance of public services for the consolidation
of national states, the research that now we are pleased to present the academic
community seeks to contribute to the study of nineteenth century Brazil, to
analyze the multiple institutional aspects that characterized the Brazilian General
Post Office. For this, emphasis is an organizational approach that addresses the
structure and functioning of the administrative apparatus, showing the existing
links between public institutions, politics and society in nineteenth-century Brazil.
In the reform of postal services were in competition therefore not only different
models of public administration, but also different conceptions of state
organization.

Key words: General Post Office; postal service; public administration; Brazil;
nineteenth century.
1. Introdução: os Correios na historiográfia

Estudar os Correios como sistema administrativo que integra o aparelho


de Estado é, com efeito, uma perspectiva de análise promissora que, até o
presente momento, não encontrou adeptos entre os historiadores brasileiros.
Isso talvez se deva porque a maioria dos estudos que tratam da formação do
sistema postal no Brasil o faz segundo interesses oficiosos ou filatélicos, sendo
ainda poucas as pesquisas acadêmicas que se utilizam de fontes postais para
responder questões próprias da historiografia.1
Esse estado de coisas não é, todavia, exclusividade da historiografia
brasileira. Mesmo assim, é possível identificar duas vertentes mais
desenvolvidas de estudos, uma francesa e a outra norte-americana.
Na França, os Correios interessaram primeiramente os estudos
tradicionais, como os de Eugène Vaillé, cuja coleção Histoire Génerale des
Postes Françaises (1947), posto que aborde o tema de forma descritiva,
constitui-se em uma síntese substancial sobre a trajetória administrativa do
sistema postal francês, desde o Antigo Regime até a fundação da empresa
semiestatal Poste, Telégraphe e Teléphonie (PTT).
Os mais recentes esforços de resgate da memória postal francesa vêm
sendo empreendidos pelos membros do Comité pour l’Histoire de la Poste
(CHP), órgão interinstitucional que, desde sua criação, em 1995, apoia
pesquisas acadêmicas sobre uma série de temas até então ignorados pela
historiografia, tais como: organização e dinâmica administrativa das instituições
postais; poderes e hierarquias no funcionalismo público postal, relações postais
internacionais, etc. Não obstante a diversidade temática dessas pesquisas pode-
se agrupá-las em três grandes campos:
Primeiramente, o das monografias de História Regional que tratam da
organização do sistema postal em seus níveis mais periféricos: esse é o caso
dos estudos de Sébastien Richez para a Normandia e de Mathilde Marguerit
sobre o Correio rural no departamento do Norte. Ao esclarecerem aspectos da
política de criação de agências postais, esses trabalhos ajudam a compreender

1Dentreas poucas iniciativas nesse sentido destaca-se a dissertação de mestrado de Mário


Marcos Sampaio Rodarte sobre a relação entre atividade postal e expansão da malha urbana
em Minas Gerais no século XIX (RODARTE, 1999).
como uma administração tão centralizada como a dos Correios pôde se adaptar
às demandas e especificidades regionais pois, segundo Marguerit, “Ao menos
em nível local, os notáveis exerciam um poder real sobre a formação da
“armadura postal”” (MARGUERIT, 2000, p. 53) (tradução nossa).
Em seguida, encontram-se os trabalhos que convergem para uma História
Social dos Correios, como os de Marie Chartier sobre os carteiros e de Rania
Glissa sobre os vendedores ambulantes de almanaques. A análise dos papéis
que esses diferentes atores desempenharam na dinâmica de funcionamento do
sistema postal francês permite vislumbrar os Correios não apenas como um
aparelho de Estado, mas também como prática postal que, na definição do
historiador canadense John Willis, é “um processo de comunicação no qual
usuários e governo investem ora pelas mesmas razões, ora por razões
contraditórias” (WILLIS, 1994, p. 145) (tradução nossa).
Um terceiro campo de pesquisa é o que aproxima a História Postal de um
viés político, a destacar os trabalhos de Olivia Langlois sobre a constituição do
serviço público postal a partir da Revolução de 1789 e de Olivier Bataillé sobre
a criação do Ministério dos Correios e Telégrafos em finais do século XIX. Esses
estudos partilham da tese de que o aumento das competências por parte do
Estado nacional, fenômeno ocorrido ao longo de todo o século XIX, implicou em
uma especialização progressiva da administração pública, sendo os serviços
postais parte fundamental dessa especialização. Assim, como afirma a
historiadora Catherine Bertho Lavenir, “os Correios tiveram sempre relação
institucional como o poder” (BERTHO LAVENIR, 1997, p. 32) (tradução nossa),
de vez que a trajetória dessa instituição atrela-se às conjunturas política e
econômica de uma época, por vezes, influenciando-as.
Relacionando esses trabalhos à atual historiografia francesa, Daniel
Roche diz que “a história dos correios se integra, assim, em um questionamento
mais vasto que visa à compreensão de uma mudança fundamental de atitudes
e de comportamentos humanos na passagem dos estamentos à mobilidade
social, a necessidade de rapidez e velocidade” (ROCHE, In: LE ROUX, 2002, p.
179) (tradução nossa).
A historiografia norte-americana, por sua vez, pode ser dividida em três
categorias de estudos: i) os “internalistas”, que descrevem as transformações
ocorridas no interior da administração postal; ii) os “externalistas”, que analisam
a formação dos Correios em função de estruturas socioeconômicas e iii) os
“contextualistas”, que situam essa instituição em um quadro de referencias
políticas, sociais, econômicas e culturais diversas
Tributários da tradição antiquária oitocentista, os primeiros trabalhos
sobre a administração postal norte-americana foram, em geral, realizados por
seus próprios funcionários. Exemplo dessa produção são os Annals of the Post
Office Department of the United States from the year 1677 to 1831 (1832) de
autoria de Edmund F. Brown.
Com a marginalização do paradigma historiográfico tradicional, os
estudos acadêmicos sobre sistema postal sofreram arrefecimento, sendo
retomados a partir da segunda metade do século XX, em obras como as da
historiadora Lynn Marshall (1967) e do geógrafo Allan Pred (1973). Para esses
autores, as mudanças na administração dos Correios são o reflexo de
transformações históricas mais amplas, como a burocratização da sociedade, o
crescimento urbano e o colapso de estruturas socioeconômicas tradicionais.
Em contraste com essas interpretações, os atuais estudos de História
Política têm evidenciado a importância de instituições governamentais no
processo de formação do Estado norte-americano. Esses estudos também
buscam contextualizar a história da administração postal com base em questões
tais como: o que significa a organização de uma máquina como os Correios na
construção do aparelho administrativo de um Estado federal? Como os Correios
influíram na gestão cotidiana dos negócios nacionais?
O livro Spreading the News (1995), de Richard John, é uma tentativa bem
sucedida de responder a alguns desses questionamentos: nele, o autor analisa
a dinâmica de funcionamento dos Correios de maneira a refletir sobre o papel do
sistema postal na vida pública norte-americana do século XIX. Sua tese é a de
que o desenvolvimento desse sistema teria engendrado uma revolução na
tecnologia de transmissão de informações, ao propiciar aos cidadãos um canal
institucionalizado de comunicação com o governo federal.
Ao reavaliar a importância de serviços públicos como os dos Correios na
vida pública norte-americana do século XIX, os estudos contextualistas
redimensionam, por fim, a relação entre formas de Estado e sistema postal,
questionando o mito liberal de que os Estados Unidos teriam se constituído em
torno de um governo central fraco (NOVAK, 2008, p. 752).
2. A Diretoria Geral dos Correios do Império: estrutura e funcionamento

Os Correios contemporâneos significaram um rompimento com a


estrutura postal de Antigo Regime, essa composta, em geral, por
empreendimentos particulares isolados que sofriam ingerência dos aparelhos de
censura característicos das monarquias absolutistas. Em contrapartida a isso,
diz Catherine Bertho-Lavenir: “As democracias dos dois últimos séculos
lapidaram suas redes postais para que elas servissem a seu projeto de
democracia politica, de unidade nacional e de manutenção dos laços simbólicos”
(BERTHO-LAVENIR, 1997, p. 32) (tradução nossa).
Na França, a centralização dos serviços postais iniciou-se em 1793, com
a criação da Agência Nacional dos Correios, órgão que permaneceu
subordinado ao Ministério das Finanças até a criação do Ministério de Correios
e Telégrafos, em 1879. Para Benoît Oger, esse fato consagrou a opção do
governo francês pela gestão direta desse meio de comunicação, sendo
justificado pelos seguintes imperativos: “interesse dos governantes pelo controle
da informação (antes, durante e depois da Revolução) e busca por novas fontes
de receita para o Tesouro” (OGER, 2000, p. 8) (tradução nossa).
Diferentemente do caso francês, a institucionalização dos Correios norte-
americanos, em finais do século XVIII e início do XIX, esteve relacionada à
organização do sistema político e às práticas administrativas decorridas da
opção dos founding fathers pelo arranjo federativo. Nesse processo, o
Congresso despontou como estancia privilegiada de deliberação: note-se que o
artigo 1º, seção 8, da Constituição de 1787 concedia a esse poder – não ao
Executivo – a prerrogativa de estabelecer post offices e post roads por todo o
território sob jurisdição do governo federal (CAMPBELL JR., 2010, p. 373).
No Brasil, o processo de centralização administrativa dos Correios e de
regulamentação das práticas postais ocorreu pari passu às experiências
francesa e estadunidense, chegando, mesmo, a se adiantar em relação a muitos
países europeus e hispano-americanos.
Em 1798, um Alvará Régio determinou a criação de um órgão,
institucionalmente subordinado à Fazenda Real, responsável por regularizar os
fluxos de correspondência entre as capitanias brasileiras e o Correio da Corte.
Esse documento também proibia o transporte de correspondências por
particulares – os chamados caminheiros – e submetia os empregados dos
Correios a rigorosa jurisdição, prevendo prisão para aqueles que cometessem
“o crime de abrir cartas, ou de as entregar maliciosamente, e de caso pensado
a outra pessoa” (In: BARROS NETO, 2004, p. 25). Note-se que o direito de
sigilosidade postal seria posteriormente garantido pela Constituição de 1824, no
artigo 179, que trata dos direitos do cidadão brasileiro.
Com a transferência da Família Real para o Rio de Janeiro, em 1808, os
serviços postais dessa cidade tiveram de ser adaptados à condição da nova
capital: por meio do Regulamento Provisional para a Administração Geral do
Correio da Corte, promulgado por D. João VI no mesmo ano de sua chegada ao
Brasil, o efetivo dos Correios foi aumentado, criando-se novas linhas postais e
incrementando-se as já existentes entre as diversas províncias e a Corte.
A política de integração implementada durante o reinado joanino
continuou após a Independência, ganhando novas dimensões sob a égide do
Estado nacional: em 1828, o Secretário dos Negócios do Império, José Clemente
Pereira, apresentou uma proposta de reorganização dos serviços postais que se
efetivou com a Administração Geral dos Correios, em 1829.
Esse órgão, com sede na cidade do Rio de Janeiro, tinha como função
fiscalizar, dirigir e promover a melhoria das práticas postais vigentes em todo
país, além de gerir as finanças dos Correios da Corte. Seu efetivo era
encabeçado pelo Diretor Geral, cargo nomeado pelo Ministro do Império que
seria extinto durante o período regencial, voltando a existir na década de 1840.
O 1º artigo do Regulamento dos Correios determinava que fossem
atribuições do Diretor Geral: “fiscalizar, promover, e dirigir a administração geral
de todos os Correios; e propôr ao Governo pela Secretaria de Estado dos
Negócios do Império todos os meios, que a prática mostrar convenientes para
melhorar a mesma administração” (IMPÉRIO DO BRASIL, 1830, p. 208). Disso
percebe-se a existência de um canal institucionalizado de comunicação entre
esse cargo e o poder Executivo, canal esse que, segundo Lydia Magalhães
Nunes Garner, seria utilizado por ministros e conselheiros de Estado para propor
políticas públicas nos ramos telegráfico e postal, ao longo do Segundo Reinado
(GARNER, 1987, p. 640).
A exemplo da experiência norte-americana, o Regulamento de 1829
também concedia isenção de tarifas postais a presidentes de província, ministros
e outros membros do governo imperial, sob a condição de que esses
separassem suas correspondências em duas categorias – Interesse Particular e
Serviço Público – sendo apenas a segunda livre de taxas. Essa medida talvez
buscasse coibir o que, nos EUA, era considerado uma das principais falhas do
sistema postal: o uso abusivo da franquia para arregimentação política,
difamação de adversários e manipulação de informações durante o período
eleitoral (BARREYRE, 2007, p. 55).
Também foi estabelecido que, em cada capital de província, haveria um
Administrador dos Correios que serviria, ao mesmo tempo, de tesoureiro e chefe
de repartição. Além disso, definiu-se que todas as cidades e vilas deveriam
possuir, obrigatoriamente, um agente postal, sendo as Câmaras Municipais
responsáveis pelo provimento de recursos materiais e humanos para essa
empresa, conforme dispõe o artigo 27 do mencionado regulamento:

Emquanto a receita dos mesmos Correios fôr de pequena


consideração, encarregarão as Câmaras a Sua
administração a pessoa de sua confiança, que della se
queiram encarregar sem ordenado. Para estas
administrações formarão as mesmas Câmaras instrucções
apropriadas ás localidades, que serão baseadas em tudo nos
principios do presente Regulamento, que enviarão aos
Administradores respectivos, e estes ao Director Geral que
dará ás mesmas a sua a aprovação com as reformas que
julgar convenientes (IMPÉRIO DO BRASIL, 1830, p. 213).

Pode-se estimar que as agências de Correio desempenhassem


importante papel na constituição dos espaços públicos, bem como na
estruturação da paisagem urbana, orientando a vida cotidiana de uma
comunidade: localizadas na rua principal da cidade ou em suas imediações, elas
eram endereço conhecido por todos, lugar de difusão de notícias e de
estreitamento das redes de sociabilidade, práticas consideradas fundamentais
para a formação da opinião pública no século XIX (NEVES, 2014, 167). Ademais,
observa Sebastien Richez que as agências de Correio no Oitocentos
representavam, conjuntamente a outros edifícios públicos, “marca sólida e visível
da presença do Estado” (RICHEZ, 2000, p. 525) (tradução nossa).
O Regulamento postal de 1829 evidenciou, ainda, a preocupação dos
ministros pedrinos com a normatização dos serviços postais, ao definir as datas
e horários em que os estafetas deveriam partir de cada localidade, estabelecer
diretrizes para o transporte seguro dos malotes e listar infrações passíveis de
autuação. Essas medidas representam o esforço do governo brasileiro em
expandir sua autoridade de maneira racional e em manter-se institucionalmente
equiparado ao que havia de mais moderno em termos de administração postal
no mundo, sem, contudo, negligenciar as demandas das elites regionais por
participação no processo de construção dos aparelhos de Estado.

3. Os Correios, da Regência ao Regresso: projetos políticos e reformas


institucionais

Após ser promulgado, em 5 de março de 1829, o Regulamento da


Administração Geral dos Correios teve de passar pelo Parlamento para que
fossem discutidas questões relativas ao quadro de funcionários. Como a
elaboração desse documento coincidiu com a conjuntura de crise do 1º Reinado,
é provável que sua tramitação no Legislativo tenha sido adiada, ocorrendo
apenas na vigência da 2ª Legislatura (1831 – 1834).
A aprovação das disposições inseridas no Regulamento deu-se em 7 de
junho de 1831, tendo sido um dos últimos atos da Regência Provisória. Sua
execução coube a Manoel José de Souza França, Ministro e Secretário de
Estado dos Negócios da Justiça que, naquele momento, respondia interinamente
pela pasta do Império. Sob vários aspectos relacionados a seguir, esse
documento revela como alguns fundamentos da administração pedrina eram
incompatíveis com o projeto de reforma institucional levado a cabo pelos liberais
durante o período regencial.
A primeira objeção da Assembleia em relação ao Regulamento dos
Correios dizia respeito à direção desse serviço: como visto, o cargo de Diretor
Geral fora criado em 1829 especialmente para esse fim, sendo apenas ao
Ministério do Império submetido. Já os administradores dos Correios nas
províncias respondiam administrativamente ao Diretor Geral e financeiramente
aos Presidentes provinciais. Os agentes postais locais eram, por sua vez,
subordinados a todas essas estancias de poder, inclusive às municipalidades,
que os designavam para o serviço.
O Decreto de 1831 muda drasticamente o topo dessa organização
hierárquica, reestruturando-a nos seguintes termos: “Fica supprimido o emprego
do Director Geral dos Correios, e competido a direção e inspecção dos mesmos
na Provincia, onde estiver a Corte, ao Ministro do Imperio, e nas outras aos
Presidentes” (IMPÉRIO DO BRASIL, 1831, p. 9). Com a supressão do cargo de
Diretor Geral, o Administrador do Correio do Rio de Janeiro teve suas atribuições
substantivamente ampliadas, passando a contemplar, além daquelas
estabelecidas pelo Regulamento de 1829, as competências que tinha o extinto
cargo no tocante à administração postal da capital.
Outra mudança introduzida na administração postal diz respeito ao
custeamento da implantação de novas linhas postais:
Viu-se que o Regulamento de 1829 determinava que todas as cidades e
vilas do Império tivessem Correios, sendo que, em agências de pequena receita,
as Câmaras Municipais deveriam encarregar pessoas de sua confiança para
administrar esse serviço, sem que essas recebessem ordenado por isso. Em
contrapartida a esse regulamento, os parlamentares liberais simplificaram o
processo de incorporação de linhas secundárias ao aparelho do Estado,
transferindo para a Fazenda os custos iniciais dessa empresa: segundo o
Decreto de 1831, “Os ensaios, mandados fazer pelas Câmaras Municipais, serão
a custa da Fazenda Pública” (IMPÉRIO DO BRASIL, 1831, p. 9). Tal medida
pode ser interpretada como, além de uma desoneração dos cofres municipais
cujas receitas eram, muitas vezes, insuficientes para arcar com despesas dessa
ordem, uma forma de chamar para o governo a responsabilidade pela
uniformização dos serviços públicos postais.
O último tópico da regulamentação postal que sofreu alterações
substantivas em 1831 diz respeito ao porte de jornais e demais periódicos:
Entre os regimes liberais do século XIX, era consenso a ideia de que os
veículos de comunicação desempenhavam importante papel na formação da
opinião pública, sendo a liberdade de imprensa um dos fundamentos dos
governos representativos. Ora, para haver livre circulação de jornais pelo
território nacional era necessário que se implantassem politicas tarifárias
especificas para esse tipo de material impresso.
No Brasil, um decreto anterior à instituição da Administração Geral dos
Correios, datado de 1827, já isentava de portes “as folhas periodicas e jornaes
publicos, que forem dirigidos ás Bobliothecas Publicas” (IMPÉRIO DO BRASIL,
1827, p. 106). Essa disposição foi confirmada pelo Regulamento de 1829,
especificando-se, no entanto, que apenas não pagariam porte as “gazetas,
periodicos e jornaes impressos dentro do Imperio” (IMPÉRIO DO BRASIL, 1830,
p. 226). Aos jornais estrangeiros, era imposta uma única taxa de porte a ser paga
aos navios que os conduzissem.
Visando facilitar o fluxo de jornais e demais periódicos pelo interior do
país, os deputados liberais da Regência franquearam o porte de todos os jornais
nacionais, quer fossem endereçados a particulares, quer se destinassem a
bibliotecas, arquivos e demais repartições públicas. Apenas jornais estrangeiros,
quando não endereçados a instituições desse tipo, deveriam pagar taxa. Assim,
o Decreto de 1831 determinava que fossem “francas de porte nos Correios do
Imperio as folhas periodicas, e jornaes públicos nacionaes: e dos estrangeiros,
os que forem dirigidos a particulares, pagarão somente a oitava parte do porte
(IMPÉRIO DO BRASIL, 1831, p. 1).
O que todas essas disposições denunciam é o esforço dos dirigentes
nacionais no sentido de afinar a regulamentação postal do Império com os
princípios e práticas do liberalismo vigente nas nações civilizadas daquela
época. Nesse esforço, mudanças de cunho administrativo – como a extinção do
cargo de Diretor Geral – investiram-se de forte conotação política, evidenciando
o projeto reformista de seus idealizadores. Para além do binômio
centralização/descentralização, os adendos liberais ao Regulamento de 1829
devem ser, portanto, vistos como elemento fundamental no processo de
constituição dos Correios e de inserção desse aparelho na máquina do Estado.
As bases institucionais dos Correios lançadas por D. Pedro I e
modificadas pelos liberais durante a Regência sofreram substantivas
reorientações durante o Regresso Conservador: nesse período, que abrange a
primeira metade da década de 1840 e coincide com os anos formativos do
reinado de D. Pedro II, a legislação que regulamentava o serviço postal tornou-
se mais complexa e detalhada, centrando-se na figura do Ministro do Império e
em autoridades diretamente nomeadas pelo governo imperial. Como observa
Lydia Garner, “o sistema estabelecido pelos Conservadores foi planejado para
fortalecer o poder do governo central, do Executivo” (GARNER, 1988, p. 647).
Um dos marcos dessa reforma foi a reinstituição da Diretoria Geral dos
Correios, pelo Decreto nº 399, de 21 de dezembro de 1844. Esse órgão tinha
como função dirigir e fiscalizar os serviços postais do Império, propondo
melhorias no aparelho administrativo das províncias, e promovendo a criação de
novas agencias de Correios no interior do país. Compunham seu quadro de
funcionários, além do Diretor Geral – cargo restaurado em março de 1842 e
consequentemente incorporado à estrutura da nova repartição – um oficial-
maior, dois oficiais e dois amanuenses.
Além da criação da Diretoria Geral, o Decreto n. 399 deu novo
Regulamento aos serviços postais que, naquela época, eram formados pela
Administração do Correio da Corte, pelas administrações provinciais e por
agencias em diversas vilas e cidades do Império. Esse documento também
dispôs sobre procedimentos de trabalho, recebimento e entrega de
correspondências, condução de malas e comércio de selos,2 determinando
normas para a escrituração e contabilidade dos estabelecimentos postais.
As diretrizes do projeto conservador presentes nesse documento
evidenciam-se nas formas de seleção e de nomeação para postos da hierarquia
funcional: segundo o artigo 43 do novo Regulamento, eram nomeados por Título
Imperial “Os Empregados da Diretoria Geral, e das Administrações, bem como
os Agentes e Ajudantes das Agencias dos Correios” (IMPÉRIO DO BRASIL,
1844, p. 7). Vale observar, ademais, que tanto o cargo de Diretor Geral quanto
os de administradores eram “da livre nomeação e demissão do Governo” (Idem,
p. 9), o que significa dizer que o Ministro do Império não precisava consultar o
Conselho de Estado, tampouco o Parlamento, para decidir sobre a sorte desses
funcionários.

2É significativo que o Brasil tenha sido o terceiro país do mundo a aderir ao modelo inglês de
uniformização tarifária: por meio do Decreto n. 254, de 29 de novembro de 1842, o Governo
brasileiro fixou em 60 réis o valor dos portes das cartas conduzidas por terra que não
excedessem a 4 oitavas de peso, sendo acrescido 30 réis a esse valor, para cada duas oitavas
excedidas. Também foi instituído o pagamento prévio dessas taxas, que deveria ser identificado
por um selo: o Olho de Boi. Esse ato ademais isentava de porte os ofícios públicos, impressos
oficiais, processos legais e cartas de colonos dirigidas “ás pessoas residentes no paiz, de que
tiverem emigrado” (IMPÉRIO DO BRASIL, 1842, p. 2).
Nesse arranjo protagonizado pelo Ministro do Império, com coadjuvação
do Diretor Geral, os Presidentes de Província tiveram seus papéis redefinidos
em relação ao Decreto de 1831, recebendo incumbências de fiscalização, como
“exigir quantas informações julgar convenientes sobra a Administração dos
Correios e seu pessoal” e “dar parte circunstanciada ao Ministro do Imperio de
quantos defeitos, omissões e transgressões de Lei commeterem nos Correios
das respectivas Provincias, indicando os meios adaptados para sua reforma e
melhoramento” (Idem, p. 29). Esses agentes também passaram a controlar um
elemento importante do aparelho administrativo postal, ao suspenderem e
nomearem interinamente os administradores nas províncias sob sua jurisdição.
Excetuava-se dessa regra o Administrador do Correio da Corte, cuja nomeação
interina era feita pelo Ministro do Império.
Se o governo imperial primava por centralizar em autoridades do poder
Executivo o controle sobre os administradores e demais funcionários dos
Correios, quando a pauta era despesas, essa lógica invertia-se: nesse caso,
tratava-se de descentralizar ao máximo os custos do serviço postal, o que
significava arcar apenas com as despesas das repartições situadas nas capitais
de província, delegando aos agentes das demais localidades a responsabilidade
pelo expediente e pelas instalações da repartição, tal como dispõe o seguinte
artigo:

Art. 55. O Governo prestará Edificios Publicos, ou a quantia


necessaria para alugar casas proprias para o Correio nas
Capitais das Provincias. Nas outras Cidades, Villas, ou
lugares onde não haja Edificio Publico que o Governo possa
sem inconveniente prestar para esse fim, será a Agencia nas
casas dos respectivos Agentes (IMPÉRIO DO BRASIL, 1844,
p. 8).

A aparente improvisação que tal disposição sugere torna-se, contudo,


mais compreensível admitindo-se que, no século XIX, não havia clara
dissociação entre serviço público e empreendimento privado: nos Estados
Unidos, por exemplo, “alguns dos centros postais funcionavam em tavernas
estrategicamente localizadas em povoados populosos onde o Correio pudesse
ser facilmente coletado ou distribuído” (HECHT, 1962, p. 423) (tradução nossa).
Isso, contudo, não significa que esses espaços estivessem fora da jurisdição
governamental, pelo contrário: assim como as tavernas-agencia eram
supervisionadas pelos postmasters generals norte-americanos, no Brasil, a
dinâmica dos Correios tal como foi organizada em 1844 permitia ao governo
imperial conhecer, ao menos formalmente, a rotina administrativa das diversas
repartições que compunham essa instituição.
O que todas essas mudanças denunciam, por fim, é o esforço dos
dirigentes nacionais no sentido de afinar a regulamentação postal com os
princípios e práticas do liberalismo então vigente. Nesse esforço, mudanças de
cunho administrativo – como a extinção do cargo de Diretor Geral ou sua
posterior reabilitação no quadro de funcionários – investiram-se de forte
conotação política. Na reforma do serviço postal estavam em concorrência,
portanto, não apenas modelos de administração pública, mas também projetos
distintos de organização do Estado liberal brasileiro.

4. Hipóteses e problematizações de pesquisa

A construção do Estado liberal brasileiro, no decorrer do século XIX,


implicou a montagem de uma máquina administrativa capaz de expandir a
autoridade governamental e de responder às demandas da realidade social e
econômica que se pretendia dirigir, assegurando, assim, a governabilidade de
todo o território nacional. Como observa Miriam Dolhnikoff:

O Império dependia em grande parte de sua capacidade de


promover a integração entre as diversas regiões, enquanto
concomitantemente estendia às mais distantes a sua
autoridade. Era essencial implementar e ampliar os meios de
comunicação entre o governo e as dispersas localidades
(DOLHNIKOFF, 2004, p. 32).

Aparelho integrante dessa infraestrutura de comunicação, os Correios


constituíram-se em importantes instrumentos de integração nacional, ao
viabilizarem a existência de uma rotina burocrática que se materializava na troca
sistemática de correspondências entre os governos provinciais e a Corte. Eles
também proporcionaram à sociedade civil um canal institucionalizado de
comunicação a distancia, contribuindo, com isso, para a transformação da
opinião pública.
Ao refletir sobre a dimensão espacial das reformas institucionais e
tarifárias dos Correios no Oitocentos, Léonard Laborie sugere que a adoção da
tarifa postal uniforme nos Estados nacionais do século XIX “reforçou a dimensão
territorial nacional ligada aos Correios” (LABORIE, 2007, p. 17). Ele também
questiona: “Podemos, portanto, falar de uma « desespacialização » do universo
postal a partir dessa data ?" (Idem, p. 19) (tradução nossa).
Adaptada ao caso brasileiro, essa hipótese ganha outras dimensões:
primeiramente, há que se avaliar o impacto financeiro da reforma tarifária de
1842 na estrutura administrativa dos Correios, uma vez que, diferentemente dos
países europeus onde a franquia única foi adotada, o Brasil possuía um território
de dimensões colossais. Em segundo lugar, deve-se questionar a real
transformação ocorrida nas práticas postais da população brasileira durante a
segunda metade do Oitocentos, visto ser essa uma sociedade com altos índices
de analfabetismo e com resultados educacionais muito abaixo dos padrões
europeus e norte-americanos.
Não obstante essas ressalvas, cremos que a adaptação da hipótese de
Laborie seja válida para refletirmos sobre o papel dos Correios no projeto
construção do Estado nacional brasileiro: ao investir na melhoria do transporte
de correspondências e, simultaneamente, reduzir os custos desse serviço para
o consumidor, o Governo imperial buscava afinar suas políticas públicas com as
dos principais países europeus, promovendo a integração territorial do Império
via expansão dos serviços postais.
Outra consideração diz respeito ao modelo de organização do serviço
postal no Oitocentos: por meio da regulamentação analisada, viu-se que o
Estado foi progressivamente ampliando suas responsabilidades e seus meios
fiscalização sobre os Correios, na medida em que aumentavam as demandas
sociais e economicas por esse serviço. A presença normativa do Estado,
contudo, não impediu a permanencia de certas iniciativas privadas na prática
postal, como as arrematações de condução de malas e a contratações de
caminheiros. Isso sugere que a construção do sistema postal no Brasil do século
XIX somente foi possível com a participação das elites regionais determinada
pela inserção dessas elites na máquina administrativa do Estado.
Assim, ao conceber os Correios como parte fundamental de um Estado
em vias de expansão e especialização de suas competências, esse artigo abre
perspectivas para explorar outras facetas do pacto governo e elites regionais no
Brasil imperial.
5. Bibliografia e fontes

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