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Resumo
A expressão “não sou racista, mas...” é muito frequente nas redes sociais.
Quem o utiliza é ou não racista? Este artigo analisa o valor linguístico e his-
tórico da expressão. O caminho metodológico escolhido é a pesquisa biblio-
gráfica. Para a primeira parte da análise serve-se de elementos da Pragmática
e da Retórica; para a segunda, de dados históricos afins. Ao que tudo indica,
ela veicula racismo de forma ostensiva, embora tenha intenção de negá-lo.
Palavras-chave: Negação do racismo; Linguagem; História.
Abstract
“I AM NOT A RACIST, BUT ...”: LINGUISTIC AND HISTORICAL
MOTIVATIONS OF PROVERBIAL BRAZILIAN RHETORIC FOR
DENIAL OF RACISM
The expression “I am not racist, but ...” is very frequent in social networks.
Who uses it is racist or not? This article analyzes the linguistic and historical
value of the expression. The methodological path is bibliographical research.
For the first part of the analysis, it uses elements of Pragmatics and Rhetoric;
for the second, it presents related historical data. In any case, it carries out
ostensibly racism, although she intends to deny it.
Keywords: Denial of racism; Language; History.
par justificar a exploração de classes, que logia escravista. A Igreja Católica apoiou a
reduziu o negro a cidadão de última cate- escravidão; bulas papais autorizaram a in-
goria” (2012, p. 155). vasão da África; Nicolau V,o grande huma-
O mito da democracia racial também teve nista, que fundou a Biblioteca do Vaticano,
participação decisiva nesse processo; refor- autorizou portugueses a apresar negros, sar-
çou a ideia de que no Brasil não há racismo, racenos e inimigos de Cristo. A justificativa:
apoiado na circunstância de que no Brasil os negros seriam batizados e a escravidão
houve convivência aparentemente pacífica seria para “salvar-lhe as almas”. A Igreja
entre negros e brancos. A tese de Gilberto Católica recebia comissões dos traficantes
Freyre ainda hoje é evocada para a defesa (5%) e os papas concediam indulgências aos
desse princípio. portugueses: se morressem nessa missão
Otávio Ianni (2004) considera que, no estariam limpos de qualquer pecado (CHIA-
Brasil, a ideia de democracia racial se deve VENATO, 2012, p. 77-78). A Igreja e muitos
ao fato de que a escravatura aqui teria sido sacerdotes possuíam escravos; além disso, a
diferente, devido à índole pacífica do povo Bíblia era usada para justificar o sofrimento
brasileiro. Isso seria ideologia das elites do dos escravizados, comparado ao sofrimento
Brasil, resultado de invenção de tradições de Cristo.
e “pasteurização da realidade”. Para Ianni,
Gilberto Freyre foi uma matriz importante, Desdobramentos:
pois estudou a sociabilidade, tendo sido pre- invisibilização e segregação
cursor dos estudos sobre identidade e coti- de negros
diano; contudo,
Em nossa história social formou-se uma cul-
[...] alguns estão valorizando esses estu- tura racista, que teve desdobramentos inde-
dos para contrapô-los às teses de Florestan
sejáveis nos períodos posteriores. A cultura
Fernandes e de Caio Prado, já que estas são
escravista nos eixos escravo-senhor ainda
muito incômodas. As elites sempre foram
contra esses estudos. Ou, frente a eles, ficam vige no Brasil.
indiferentes. Esse pensamento [de Gilberto A estrutura senhorial-escravista está ain-
Freyre] está presente em Jorge Amado, Ro- da arraigada no imaginário do brasileiro;
berto DaMata, Darci Ribeiro etc., todos com além dos espaços simbólicos acima indica-
a melhor das intenções, pensando que apro- dos, expande-se, por exemplo, na organiza-
veitando esse potencial democrático ilusó-
ção espacial de nossas cidades, que repro-
rio, ele se tornaria verdadeiro.
duz o imaginário ideológico do escravismo,
Por fim, é importante registrar que esse figurado na relação casa-grande x senzala,
autor reconhece no Brasil um cenário con- que corresponde hoje à relação centro x pe-
traditório sobre racismo; aqui, o que há é riferia. Os espaços (urbanos e rurais) se or-
uma sociedade injusta, fundada no precon- ganizam nesta lógica: ao centro corresponde
ceito: “É uma negação da ideia de democra- o espaço da casa-grande, com todos os privi-
cia racial porque se ela existe, todos estão légios possíveis (serviços, proteção policial,
participando em situação de igualdade, mas infraestrutura, etc.); à periferia resta o es-
sabemos que não é isso o que acontece”. quecimento na oferta de condições de vida:
A religião não ficou indiferente; foi apoio falta água, asfalto, escolas, transporte, po-
importante para o fortalecimento da ideo- liciamento adequado para a defesa da vida
novo exílio diaspórico, agora de si mesmos, gau de farinha de milho, a tapioca e o pre-
quando se negam ser aquilo que de fato são. paro do peixe assado na folha de bananeira
A invisibilidade do negro é bem sintetiza- são exemplos dessa herança. No Município
nasceu também Mário Augusto Teixeira de
da por Oliveira (2015, p. 24-25):12
Freitas, idealizador e fundador do Instituto
Por muito tempo os descendentes de africa- Brasileiro de Geografia e Estatística.
nos no Brasil conviveram com o estigma de
que sua cor era uma maldição divina, sua
Considerando o aspecto de síntese (tal-
cultura era obscurantista e bárbara, que sua vez por isso mesmo), é digna de nota a au-
religiosidade era demoníaca, sua inteligên- sência total da presença negra no município
cia limitada, e que sua aparência não corres- (e, além disso, nenhuma referência é feita
pondia aos ideais de beleza do mundo civi- ao fato de o município ter participado de
lizado, branco, ocidental. Negros e negras algumas insurreições populares. De fato, o
foram banidos da televisão, das novelas, dos
município se destaca por ter participado em
comercias, dos filmes e dos livros escolares.
A história contada na escola é branca; a be- diversos movimentos de emancipação po-
leza mostrada nos meios de comunicação é lítica no Brasil, tais como a Revolução dos
branca e tudo que enaltece a nossa sociedade Alfaiates (1798), a Independência da Bahia
é branco. (1823), a Revolta dos Malês (1835) e a Sabi-
nada (1837).
Um exemplo breve, mas tocante, sobre
O que choca, contudo, é o silencia quan-
essa invisibilização pode ser buscado em do-
to à histórica presença negra no município,
cumentos oficiais, como é o caso da página
no portal do IBGE. Isso se torna ainda mais
do IBGE sobre o censo de 2010 da cidade de
chocante porque, no excerto reproduzido,
São Francisco do Conde (BA); na página do
há menção honrosa à presença do índio e
portal do Instituto referente à síntese histó-
do branco. A tabela abaixo registra dados
rica da cidade, temos isto:
do censo de 2010 quanto à população que se
A diversidade de etnias que ajudou a cons- autodeclara preta ou parda:13
truir São Francisco do Conde culturalmente
está presente no cotidiano da cidade. As pal- Tabela 1. Dados do censo 2010 (autodeclaração
meiras imperiais, símbolo da administração quanto à cor da pele)
portuguesa, estão por toda parte, as cons-
Critério Valor: Número
truções coloniais são majestosas e conser-
vam a memória da região. Os Tupinambás e População residente 33.183
os Caetés Negros deixaram de legado, entre
outras coisas, uma rica gastronomia. O min- População residente -
16.878
cor ou raça - Parda
Bento e Iray Carone, Editora Vozes. Fora do Bra-
sil, pontifica Frantz Fanon, filósofo e psiquiatra População residente -
martinicano, que escreveu, dentre outros livros, 13.278
cor ou raça - Preta
estes: Pele negra, máscaras brancas e Os con-
denados da terra. Fonte: IBGE
12 A propósito desta invisibilização, Oliveira nota
que, se o negro é invisível em espaços sociais pri- 13 Há oscilação de referência. Negro, preto, pardo,
vilegiados, em outros ele é presença permanente: mulato, etc., são matizes de uma gradação cujo
“no Brasil das favelas, das periferias, das chacinas, objetivo é apagar o negro; a amplitude linguís-
da violência e da miséria a presença do negro e da tica (como se fosse um tabu a pronúncia ou a
negra torna-se bastante visível e concreta e, desta escrita desses termos) é tentativa eufemística de
forma, a política de segregação mantém o negro fuga, é negação da existência do negro, distan-
invisível e à margem da sociedade apesar de sua ciando-o do branco e projetando-o para o lugar
presença ser maciça” (2015, p. 25). do não-ser, da não-existência.
gros e dos esforços em apagá-los de sua ma, seu raciocínio: “Infelizmente, até ago-
história. 15 ra, as interpretações errôneas do censo no
Continua a jornalista com esta ressalva, Brasil têm levado a políticas públicas que
que muito interessa à nossa discussão: “Não induzem a divisões perigosas”. Ora, a divi-
estou dizendo que não existam racismo e são mais perigosa que sempre vivemos é a
discriminação no País. Estou apenas aler- que existe entre brancos e negros, existen-
tando para o fato de que não se pode dizer te desde os primórdios de nossa história.
que é o racismo o causador das diferenças Introduzir na discussão o tema raça-cor é
de rendimento por cor”. Embora não use o perigo que divide? Para a jornalista, sim.
mas para fazer a junção (feita pelo apenas), Isso é mais um efeito da invisibilização dos
há oposição entre as asserções, o que faz negros.
essa afirmação ser equivalente da estrutu- A natureza da matéria é típica do pen-
ra A, mas B, analisada neste trabalho (não samento predominante na mídia brasileira,
estou dizendo que não existam racismo e que reproduz os ideais dos grupos dominan-
discriminação no País, mas estou apenas tes, de ascendência branca. Não é negada a
alertando para o fato de que não se pode conclusão induzida de que, se os pardos e
dizer que é o racismo o causador das dife- pretos ganham menos, é por que são incom-
renças de rendimento por cor). A intenção, petentes. Não seria por que a sociedade nega
com isso, é defender-se da consideração de a eles as mesmas condições de cidadania que
ela afirmar que o Brasil não haja racismo oferece para os brancos?
ou da presunção de ela ser racista, tudo É isso o que está em jogo. Não é somente
porque foi percebido que as considerações a realidade desigual que interessa, mas tam-
defendidas têm teor racista, não assumido bém as explicações para as desigualdades.
(conforme análise feita na primeira parte A matéria representa o pensamento domi-
deste trabalho). nante no Brasil: naturalizar diferenças que
A jornalista conclui alertando para o devem ser entendidas à luz do preconceito
perigo de ser considerado o fator étnico racial que preside ao tratamento desumano
em estatísticas da espécie, aqui e alhures, que os negros temos recebido de forma re-
porque podem induzir a políticas públicas corrente na nossa história; negar conquis-
equivocadas, dentre as quais está a adoção tas, como a política de cotas, projetando
de cotas, no Brasil, concluindo, desta for- elementos de divisão no grupo dos negros,
sugerindo que pardos seriam preconcei-
15 Maggie escreveu o prefácio ao livro Não somos tuosos contra os pretos, porque têm renda
racistas: uma reação aos que querem nos trans-
maior. Pardos e pretos são a mesma gente,
formar numa nação bicolor, do jornalista Ali
Kamel; Miranda-Ribeiro (2006), ao resenhar divididos pela ideologia do branqueamento
essa obra, faz este comentário: “a leitura do livro vigente no Brasil.
desmente essa hipótese [não somos racistas] e
confirma o inverso: o autor acredita piamente A matéria é eloquente exemplo de racis-
na afirmação que faz no título. Portanto, não me mo não assumido contra os negros (como
resta outra alternativa senão afirmar o contrá- revela a expressão “não sou racista, mas...”,
rio: somos racistas”. O livro atesta a permanên-
cia do racismo, sutil ou ostensiva, que estrutu- analisada na primeira parte deste trabalho),
ra a sociedade brasileira, de que faz parte a sua cujos efeitos perversos se multiplicam pela
negação, como se depreende das ideias e textos
de Kamel e Maggie; mas há tantos outros nessa
sociedade brasileira em geral e pela mídia,
trincheira preconceituosa. em particular.