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Paulo Sérgio de Proença

“NÃO SOU RACISTA, MAS...”: MOTIVAÇÕES


LINGUÍSTICAS E HISTÓRICAS DA
PROVERBIAL RETÓRICA À BRASILEIRA PARA
A NEGAÇÃO DO RACISMO

Paulo Sérgio de Proença*

Resumo
A expressão “não sou racista, mas...” é muito frequente nas redes sociais.
Quem o utiliza é ou não racista? Este artigo analisa o valor linguístico e his-
tórico da expressão. O caminho metodológico escolhido é a pesquisa biblio-
gráfica. Para a primeira parte da análise serve-se de elementos da Pragmática
e da Retórica; para a segunda, de dados históricos afins. Ao que tudo indica,
ela veicula racismo de forma ostensiva, embora tenha intenção de negá-lo.
Palavras-chave: Negação do racismo; Linguagem; História.

Abstract
“I AM NOT A RACIST, BUT ...”: LINGUISTIC AND HISTORICAL
MOTIVATIONS OF PROVERBIAL BRAZILIAN RHETORIC FOR
DENIAL OF RACISM
The expression “I am not racist, but ...” is very frequent in social networks.
Who uses it is racist or not? This article analyzes the linguistic and historical
value of the expression. The methodological path is bibliographical research.
For the first part of the analysis, it uses elements of Pragmatics and Rhetoric;
for the second, it presents related historical data. In any case, it carries out
ostensibly racism, although she intends to deny it.
Keywords: Denial of racism; Language; History.

Se acessarmos as redes sociais e portais população se reconhece racista. O recurso


de busca na internet, vamos talvez nos sur- linguístico, então, precisa ser examinado.
preender com o uso da expressão “não sou Bakhtin e Saussure, por vertentes teóri-
racista, mas...”, completada de formas di- cas e motivações diversas, já disseram que a
versas, todas com teor marcadamente racis- linguagem é fenômeno social. Em “não sou
ta. Esse procedimento, no Brasil, é curioso, racista, mas...”, particularmente, há fios,
porque, aqui, a maioria reconhecer haver não apenas linguísticos, que desenrolam
racismo, mas apenas uma mínima parte da fatores históricos com os quais dialoga. É

* Doutor, Professor Adjunto na UNILAB-Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Bra-


sileira. E-mail: pproenca@unilab.edu.br

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“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

exatamente esse o objetivo deste trabalho. cação da presença ou ausência de motivação


Para isso, em primeiro lugar, serão anali- racista dos que dela se servem.
sadas as dimensões linguístico-argumen- Uma pergunta inicial e necessária é
tativas da expressão, em sua constituição esta: qual é o papel do “mas”? Trata-se de
interna e em seus efeitos de sentido. Em se- uma conjunção, classificada pela gramática
guida, serão buscadas elementos históricas como adversativa, por unir duas proposi-
com os quais a expressão está vinculada e ções pelo elo de oposição. A oração intro-
nos quais podem ser encontradas as razões duzida por mas contém sentido contrário à
para explicá-las. anterior e sobre ela prevalece: “não estou
O resultado disso é que o racismo existiu com fome, mas vou comer alguma coisa”.
e continua existindo, apesar dos esforços, Pela nossa experiência de vida e visão de
conscientes ou não, para negá-lo, o que é mundo, sabemos que quando estamos sem
comprovado pelo uso copioso da expressão fome, não comemos; em outras palavras,
“não sou racista, mas...”. estar sem fome e comer são ideias opostas;
além disso, pelo exemplo, percebe-se que
Aspectos argumentativos e prevalece a ideia introduzida pelo conector
linguísticos mas: quem diz isso vai, de fato, comer al-
guma coisa. A propósito, Fiorin apresenta
Nem a matéria linguística da estrutura “não
este exemplo, acrescentando que há uma
sou racista, mas...” nem seu valor argumen-
instrução sobre a maneira de interpretar
tativo podem ser desprezados para a avalia-
o papel que o mas desempenha (2003, p.
ção consistente dos efeitos que ela tem e da
169): a) Marcelinho joga muito futebol,
função que exerce na sustentação e reforço de
mas é desagregador; b) Marcelinho é desa-
princípios racistas. A configuração linguística
gregador, mas joga muito futebol. A estru-
define a relação entre os membros que a com-
tura nos dois casos é a mesma (A, mas B); o
põem, enquanto a dimensão argumentativa
que muda é a ordem das ideias. A diferença
diz algo sobre os efeitos de convencimento e
de persuasão que o conjunto produz sobre o de sentido é a seguinte: no primeiro caso, o
auditório (ouvintes ou leitores).1 falante não quer Marcelinho; no segundo,
sim. Com isso, fica ainda mais evidente a
prevalência da ideia contida na oração in-
Aspectos da estrutura
troduzida por mas.
linguística Neves (2000) diz, a respeito da oposição
A estrutura linguística dessa construção ofe- entre as orações unidas por mas, que há re-
rece elementos indispensáveis para a verifi- lação por ela chamada de desigualdade, na
1 Há diferença entre convencer e persuadir. Para qual coloca-se “o segundo segmento como
Perelman e Olbrechts-Tyteca, a distinção de- de algum modo diferente do primeiro, espe-
pende do ponto de vista. Sob o foco do resulta-
do, “persuadir é mais do que convencer, pois a cificando-se essa desigualdade conforme as
convicção não passa da primeira fase que leva condições contextuais (p. 756). O valor se-
à ação” (2002, p. 30); sob o ângulo do caráter
racional da adesão, “convencer é mais do que
mântico do mas é explicado por essa auto-
persuadir”. Assim, chama-se “persuasiva a uma ra, de forma exaustiva; um de seus sentidos
argumentação que pretende valer só para um possíveis é o seguinte: “Nas relações de de-
auditório particular e [...] convincente àquela
que deveria obter a adesão de todo ser racional” sigualdade há aspectos especiais marca-
(2002, p. 31). dos pelo uso do MAS. A desigualdade é utili-

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zada para a organização da informação jogo de afirmar-negar o racismo é histórico,


e para a estruturação da argumenta- no Brasil, como se verá adiante.
ção. Isso implica a manutenção (em graus Resumindo, pode-se dizer que a estru-
diversos) de um dos membros coordenados tura A, mas B indica a prevalência de B em
(em geral, o primeiro) e (também em graus relação a A e, por causa disso, há oposição
diversos) a sua negação” (NEVES, 2000, p. entre as partes: B nega A. No nosso caso,
757; grifos do original). como A é uma oração negativa (“Não sou ra-
A segunda parte da citação acima é clara: cista...”), a estrutura adversativa a nega; te-
na relação entre duas proposições coorde- mos, então, uma negação da negação, o que
nadas por mas, a segunda nega a primeira. equivale a uma afirmação. Ou seja, quem
Essa relação, estritamente linguística, é de usa a estrutura linguística “não sou racista,
suma importância para a análise da estru- mas...” é racista; e não assumido.
tura “não sou racista, mas...”. Assim, por
exemplo, quando alguém diz “não sou racis-
Aspectos e efeitos linguístico-
ta, mas não gosto de pretos”, fica evidente
a conclusão anteriormente feita: a segunda
pragmáticos
parte (“[...] mas não gosto de pretos”) nega Decorrentes dessa dimensão linguística, há
a primeira (“não sou racista [...]”); portanto, os elementos de natureza pragmática (que
quem diz isso (ou tantas outas coisas nessa são linguísticos e extralinguístico), que vão
estrutura, com a manutenção da primeira aqui separados apenas para efeito de ênfase.
parte) é, sim, racista, por negar que não é Para esta parte, seguimos Fiorin (2003),
racista, por causa da instrução da conjunção que define Pragmática desta forma: “ciência
mas. É, embora diga que não.2 do uso linguístico, estuda as condições que
Ocorre a tentativa de negar, no nível da governam a utilização da linguagem, a prá-
manifestação (parecer) o que não é assu- tica linguística [...] estuda a relação entre a
mido em outro nível (ser). Esse fenômeno estrutura da linguagem e seus usos” (2003,
pode ser atribuído ao constrangimento que p. 166). Há palavras e frases que só se com-
a defesa ostensiva de racismo pode provo- preendem na situação concreta de fala e é
car, além de ser fato politicamente incorre- daí que surge a relevância dessa disciplina
to, punível criminalmente, inclusive3. Mas o linguística.
que está na balança não é somente isso; esse Os filósofos da linguagem John Austin e
2 Essa operação pode ser explicada de outra for- Paul Grice deram o ponto de partida para o
ma, com a negação da inferência (NEVES, 2000, nascimento e desenvolvimento da Pragmá-
p. 762), caso em que ocorre “a negação de um ar-
tica. Para Austin, a linguagem não tem fun-
gumento enunciado anteriormente. No primei-
ro segmento há a asseveração, com admissão ção descritiva, mas prática: é ação, pois os
de um fato; no segundo segmento expressa-se a seres humanos, ao falar, realizam atos; além
não-aceitação da inferência daquilo que foi asse-
verado”. disso, deve-se considerar que a linguagem
3 Oliveira (2004, p. 82) sugere que manifestação comunica mais do que está registrado em
de racismo pode ser inconsciente: “[...] mesmo
enunciados, porque evocam-se conteúdos
quando não se trata de esconder intencional-
mente o preconceito, ele se manifesta frequen- implícitos, conforme enfatiza Fiorin (2003,
temente de maneira irrefletida e a falta de cons- p. 166).
ciência do ator sobre suas atitudes preconcei-
tuosas eventualmente esboçadas não é de todo Nesse sentido, é preciso estudar o uso,
surpreendente”. porque o sentido dos enunciados pode im-

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plicar em outros aspectos extralinguísticos; faces: “Face é o amor próprio do sujeito. Há


daí a importância do contexto, que pode su- uma face positiva e uma negativa. Aquela
gerir, inclusive, que determinados enuncia- deriva da necessidade de ser apreciado e re-
dos não devem ser literalmente compreen- conhecido pelo outro, é a boa imagem que
didos. Falantes podem preferir comunicar o sujeito tem de si mesmo; esta é a neces-
significados de maneira indireta, por diver- sidade de defender o eu, é o seu território”
sas razões. (Fiorin, 2003, p. 175).
Duas distinções importantes devem ser Como as pessoas, em alguns casos, pro-
feitas: significação x sentido; frase x enun- curam salvar sua face e atacar a do outro,
ciado. Frase é o “ato linguístico caracteriza- para isso adotam comportamentos ameaça-
do por uma estrutura sintática e uma signi- dores em relação ao interlocutor; se este tem
ficação calculada com base na significação face negativa, busca-se reforçá-la, por meio
das palavras que a compõem”. Já enunciado da invasão de território, com ordens, conse-
lhos e ameaças; se, por outro lado, a face do
é “frase a que se acrescem as informações
outro é positiva, busca-se a destruição dessa
retiradas da situação em que é enunciada,
imagem, com reprimendas, refutações e crí-
em que é produzida”. A partir dessa diferen-
ticas, se se quer torná-la negativa. É o que
ça, é possível admitir que uma mesma frase
ocorre quando se utiliza a expressão “não
pode estar vinculada a diversos enunciados.
sou racista, mas...” que, na prática, produz o
A significação é o “produto das indicações
efeito pragmático de reforçar a face negativa
linguísticas dos elementos componentes da
dos negros.4
frase”. O sentido, por sua vez é a “significa-
Na nossa expressão, a primeira parte se
ção da frase acrescido das indicações con-
constitui esforço para salvar a face do falan-
textuais e situacionais” A frase é estudada
te que, conscientemente ou não, admite que
pela Sintaxe e pela Semântica; o enunciado, a segunda parte, introduzida por mas, é ra-
pela Pragmática (FIORIN, 2003, p. 168). Em cista (e, por isso, pode ferir a sua face), ante-
nosso caso (não sou racista, mas...), a frase é cipando-se ao raciocínio do leitor ou ouvin-
traída pelo enunciado; o sentido é corrigido te. Quem nega que é racista (embora seja)
pela significação. está defendendo a face; está se antecipando
A estrutura linguística “não sou racista, para anular efeitos negativos do pressuposto
mas...” pode ter seu alcance melhor com- da segunda oração da estrutura A, mas B, na
preendido a partir dessas noções pragmáti- qual o elemento B só pode ser defendido por
cas, sobretudo a partir da ideia de que cer- quem é, de fato, racista.
tos enunciados não podem ser literalmente
4 Esse ataque à face dos negros é marca da dis-
interpretados; no nosso caso, isso se refere
criminação e exclusão social de que eles são ví-
à primeira parte da estrutura, inclusive por timas; é o que Oliveira (2004, p. 82) chama de
razões pragmáticas que serão ainda expos- discriminação cívica: “[...] a discriminação cívi-
ca contra os atores que têm sua dignidade ne-
tas; por ora, fica a indicação de que essa gada no plano ético-moral pode ser revertida no
primeira parte da estrutura A, mas B (não momento em que a identidade desvalorizada é
sou racista, mas...) explicita conteúdo pre- relativizada, e abrem-se perspectivas de (re)in-
tegração no plano da sociabilidade. Desse modo,
conceituoso, em contexto de violência sim- tal quadro caracterizaria não só o racismo, mas
bólica. também a exclusão social à brasileira”. Como se
vê, caso não houvesse esse ataque linguístico,
Elemento pragmático interessante, que haveria condições para a integração do negro ao
contribui para esta discussão é a teoria das convívio mais respeitoso.

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Outros elementos de natureza pragmá- Há diferenças entre pressuposto e suben-


tica que interessam são os pressupostos e tendido: o pressuposto é uma afirmação in-
os subentendidos, dos quais derivam as im- discutível (apresentada como tal); o suben-
plicaturas, que dizem respeito a conteúdos tendido é de responsabilidade do ouvinte.
implícitos. Os conteúdos dos atos de fala Na estrutura analisada, se o ouvinte percebe
podem ser explícitos ou implícitos, que são a contradição do enunciado, reconhece no
as inferências baseadas em pressupostos e enunciador da estrutura A, mas B um racis-
subentendidos, respectivamente. Para eles ta (no conteúdo aqui demarcado), embora o
serem percebidos, devem estar marcados, enunciado procure negar isso. O subenten-
seja no enunciado, seja na situação de co- dido é quem não gosta de pretos é racista
municação. (dedutível da parte B); daí o esforço contido
O conteúdo explícito é denominado pos- na parte A em negar o subentendido; insta-
to e é o alvo da comunicação. O pressuposto la-se a contradição, para cuja neutralização
é a informação que não é abertamente no- é a criação da estrutura A, mas B.
meada e, assim, não é alvo da mensagem, O pressuposto pode ser contestado, mas
mas percebida e desencadeada pelo enun- é formulado para não ser. O subentendido é
ciado em que figura, independentemente da construído para que o falante, caso seja in-
situação de comunicação. terpelado, possa, apegando-se ao sentido li-
Os pressupostos devem ser tomados por teral, negar que tenha dito o que efetivamen-
verdadeiros, o que é necessário para a vali- te quis dizer. O subentendido é um meio de
dade dos enunciados. Os implícitos são cons- o falante proteger-se. 6 No nosso caso, a ten-
truídos pelos pressupostos. Esse mecanismo tativa de proteção reside na primeira parte
é um recurso argumentativo, pois “introdu- da estrutura adversativa.
zir no discurso um dado conteúdo sob a for- Essas considerações, aplicadas à estrutu-
ma de pressuposto implica tornar o interlo- ra A, mas B (“não sou racista, mas não que-
cutor cúmplice de um dado ponto de vista, ro que minha filha se case com um negro”),
pois ele não é posto em discussão, é apre- apresenta resultados interessantes: como
sentado como algo aceito” (Fiorin, 2003, p. o elemento B prevalece e tem pressuposto
182). Os pressupostos não são passíveis de racista, o elemento A, que faz parte do pos-
negação, interrogação e encadeamento dos to, procura negar o pressuposto (quem não
postos. “A pressuposição aprisiona o leitor
quer que sua filha case com um negro é ra-
ou o ouvinte numa lógica criada pelo pro-
cista). Ocorre que o pressuposto sustenta
dutor do texto, porque, enquanto o posto é
a comunicação e não pode ser negado, sob
proposto como verdadeiro, o pressuposto é,
de certa forma, imposto como verdadeiro. nova, desconhecida, se apoia no dado anterior-
Ele é apresentado como algo evidente, indis- mente já conhecido, tomado como pressuposto
para sustentar a adição de elementos novos. O
cutível” (Fiorin, 2003, p. 182). Por exemplo, conhecimento de mundo, o conhecimento par-
quando alguém pergunta se parou de cho- tilhado, a situacionalidade e a contextualização
ver, pressupõe-se que estava chovendo ante- são fatores de coerência; a partir disso é possível
fazer inferências a partir das informações novas
riormente; como se vê, sem a pressuposição (KOCH; TRAVAGLIA, 1990).
a comunicação não se sustenta.5 6 O falante alega não ser racista; se o interlocu-
tor não percebe ou não assume o subentendido,
5 Aqui pode ser feita aproximação com a teoria prevalece o elemento A da estrutura, o que não
do texto, no que diz respeito a aspectos de coe- é previsto na instrução de sentido da conjunção
rência relativos ao dado e ao novo: a informação mas.

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pena de invalidação do enunciado; assim, a que o equilíbrio é apenas estrutural, porque,


negação do pressuposto não alcança seu ob- semanticamente, passa a haver uma contra-
jetivo, instalando uma contradição, pois se dição; ora, se não sou racista, meu filho pode
alguém não quer que sua filha case com um (deve?) ser negro.
negro, então é racista. Como, então, diz que Assim, essa contradição diz respei-
não é racista? to ainda mais à dimensão argumentativa.
Esse fenômeno é discutido por Perelman
Aspectos argumentativos e Obrechts-Tyteca (2000), que discorrem
A contradição apontada tem vínculos não sobre argumentos fundados no princípio
apenas com a estrutura linguística, mas da não contradição (violado pela estrutura
também com a dimensão argumentativa. A A, mas B, em nosso caso). Fiorin, comen-
estrutura A, mas B justapõe ideias opostas; tando o argumento da não contradição, diz
contudo, como vimos, em “não sou racista, “[...] alguma coisa não pode ser e não ser ao
mas...”, há um desequilíbrio de estrutura e mesmo tempo” (2015, p. 139). Esse prin-
de conteúdo, que instaura uma contradição: cípio vale para a amplitude de um mesmo
“Não sou racista, mas eu quero que meu sistema, visto que pode haver essa possi-
filho seja branco”. bilidade, por exemplo, no reino da ficção e
Se a primeira parte fosse afirmativa, te- da religião (por exemplo: ser homem e ser
ríamos: Deus). Além disso, Perelman e Obrechts
“Sou racista, mas eu quero que meu filho -Tyteca fazem distinção entre contradição
seja branco”. e incompatibilidade. Aquela é a oposição
Nesse caso, a primeira parte seria se- de uma ideia e de sua negação e atribuição
manticamente correspondente à segunda e de dois atributos contraditórios (é mau e
a conjunção mas não caberia; teríamos, en- bom); a contradição, por sua vez, diz que
tão: duas proposições não podem coexistir no
“Não sou racista, mas eu quero que meu mesmo sistema, sem negar-se logicamen-
filho seja branco” te. No sistema biológico não se pode dizer
Há, nessa hipótese, equilíbrio de conteú- que uma virgem teve filho (FIORIN, 2015,
do e de estrutura que faz equivaler as duas p. 140). Já no mítico isso pode ocorrer,
proposições: pois um Deus não pode nascer como ou-
“Eu sou racista” = “eu quero que meu fi- tros seres humanos.
lho seja branco” Um princípio retórico importante diz
O grande complicador é que quem se ser- que os argumentos baseados no conflito de
ve dessa estrutura para expressar esse con- interesses devem fundar-se no princípio da
teúdo não quer admitir que é racista (quer não contradição, para que não se tornem in-
proteger a sua face); é por isso que há a ne- validados facilmente. Já vimos que a estru-
cessidade do emprego do advérbio de nega- tura A, mas B, para finalidade racista, fere
ção no início; isso provoca o desequilíbrio esse princípio e, assim, deve ser invalidada.
estrutural e semântico: Outro recurso argumentativo que merece
“Eu não sou racista” ≠ “eu quero que ser lembrado é o da definição (“não sou ra-
meu filho seja branco” cista” é uma definição), vinculado ao princí-
O desequilíbrio, percebido, exige a pre- pio da identidade. Para Perelman e Obrecht-
sença da conjunção mas. No entanto, ocorre s-Tyteca (2000) as definições são fundadas

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no princípio da identidade, porque não há Aspectos históricos, políticos,


uma maneira unívoca de definir uma pessoa
ou um objeto. As definições procuram “con-
literários, científicos e
vencer o interlocutor de que um dado signifi- religiosos
cado é aquele que deve ser levado em conta. Sidney Chalhoub analisa a escravidão no pa-
Por isso, elas podem ser conflitantes” (FIO- norama histórico do país do séc. XIX, prin-
RIN, 2015, p. 118). Um efeito retórico pro- cipalmente em sua segunda metade, a partir
duzido, então, por “não sou racista, mas...” dos escritos de Machado de Assis. Ele apon-
(em que na primeira parte há uma negação ta um recurso da elite política de então, bati-
e a segunda nega a primeira, ou seja, nega zado como a “arte de bordejar”, para indicar
uma negação), pela força da definição, tende o jogo conveniente de negar a escravidão no
a convencer o interlocutor de que o falante nível público e mantê-la vigorosa nas estru-
não é racista. Mas... turas do Império, com o consequente adia-
Fiorin (2015, p. 121) chama a atenção mento sine die da resolução do problema: “o
para o conflito da definição que está na frase Brasil imperial oferecia ao mundo o curioso
“Não sou X, mas...”; ele exemplifica com a espetáculo de um país no qual todos con-
mesma estrutura aqui analisada, mas com denavam a escravidão, mas quase ninguém
outro conteúdo: “não sou homofóbico, te- queria dar um passo para viver sem ela”7
nho muitos amigos gays, mas não posso ver (CHALHOUB, 2003, p. 141). Além disso, o
dois homens andando de mão dada”; con- Brasil era o último país que ainda mantinha
clui o autor que quem diz isso é homofóbico. a escravidão no mundo ocidental, o que o
As dimensões linguística e argumenta- isolava internacionalmente. Como se pode
tiva da expressão “não sou racista, mas...” ver, é antiga a prática de falar uma coisa em
indicam que a estrutura tem descompassos: uma instância e negá-la em outra, o que pro-
vocou esquizofrenia identitária.
o nível linguístico aponta desajustes entre
Quanto à Literatura, é importante lem-
o ser e o parecer: alguém que é racista não
brar que o séc. XIX foi um período de for-
quer ser percebido como tal, apesar de de-
mação da identidade nacional, característica
fender explicitamente ideias racistas. Em
muito marcante no romantismo. É significa-
outras palavras: quem é racista não se assu-
tivo que ao negro não foi permitido entrar,
me. Por que isso?
de forma digna e altiva, na configuração ét-
nica criada pela ideologia romântica, lugar
Motivações históricas para a que é ocupado pelo índio, como se pode ver
negação e a permanência do nos romances de José de Alencar.8 O ro-
racismo no Brasil 7 Isso, na prática, equivale a “não somos racistas”,
As formulações da linguagem mantêm as no nível do parecer.
8 Alencar teve companhias ilustres, como Joaquim
contradições de seus usuários, apesar dos Manuel de Macedo, autor de Vítimas algozes,
ardis criados para mascará-las. Nesse sen- obra que tematiza a virulência dos escravos e o
perigo que isso representa para os brancos, razão
tido, pode haver motivações históricas para
pela qual não eram favoráveis à escravidão; O de-
a criação e utilização da estrutura “não sou mônio familiar, peça de Alencar, se move sobre
racista, mas...”, algumas das quais serão esse mesmo terreno; esses autores não questio-
nam nem condenam a escravidão que, em última
examinadas a seguir; outras serão apenas instância deforma a humanidade; pelo contrário,
sugeridas. abonam a inferioridade dos negros.

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mantismo despreza a presença africana e contrário acontecia. Assim, a volubilidade


sua descendência no Brasil como elemento dos narradores e de personagens de Macha-
fundador da nação: “a ficção romântica é do se homologam à volubilidade da alma
capaz de idealizar uma origem mestiça para nacional, deduzida da esquizofrenia identi-
os brasileiros, porém só a imagem indígena tária, aqui, no que diz respeito à relação com
servirá de estofo literário para os autores a escravidão.
da época. Duas obras fundamentais sobres- A ciência no século XIX muito contribuiu
saem sob esse aspecto: O guarani (1857) e para a construção da suposta inferioridade
Iracema (1865), de José de Alencar” (RUF- dos negros, baseada em dados físicos, dada
FATO, 2009, p. 22). Nessas obras só é re- a primazia epistemológica das ciências bio-
tratada a combinação do elemento europeu lógicas. O darwinismo social (apesar de Dar-
com o nativo, com intencional apagamento win ser antirracista), de certa forma, legiti-
da presença negra. mava a escravidão e o domínio branco.
Machado de Assis, escritor de ascendên- A ciência foi apoio e inspiração para
cia africana, é acusado de fazer vista grossa construção ideológica que assumia a infe-
à questão; mas isso é fruto de desconheci- rioridade dos negros. O francês Arthur de
mento de sua obra ou possível resultado da Gobineau defendia com veemência a de-
forma com que foi pintado pela crítica (in- sigualdade das raças humanas; esteve no
sensível ao tema da escravidão), que teve a Brasil de 1869 a 1870. Para ele, haveria a
intenção de branqueá-lo. A forma de narrar degeneração genética do Brasil em menos
machadiana é marcada por acentuada ambi- de 200 anos; para isso, a única saída se-
guidade e isso pode estar relacionado a essa ria a purificação com o sangue europeu;
esquizofrenia identitária da nacionalidade: para a classe dominante, Gobineau era voz
o país não assume o que é e busca aparen- autorizada a justificar a escravidão. Disso
tar o que não é. Schwarz reconhece (em Ma- nasceu a explicação segundo a qual o atra-
chado) o fenômeno da volubilidade de seus so brasileiro se explicava pela suposta in-
narradores, nas obras da maturidade: “[...] ferioridade racial do povo e não do sistema
o narrador não permanece igual a si mesmo escravista (CHIAVENATO, 2012, p. 153).
por mais de um curto parágrafo” (2000, p. No Brasil, Raimundo Nina Rodrigues assu-
30). Há acentuação deliberada de aspec- me esse ponto de vista. Além dele, Oliveira
tos autoritários e perversos da volubilidade Viana e Silvio Romero (1851-1914) preco-
(que evoca a elite política e econômica). Para nizaram o branqueamento como a solução
o crítico, “o Brasil se abria ao comércio das racial para o Brasil. Chiavenato avalia as-
nações e virtualmente à totalidade da cultu- sim o papel que a ciência desempenhou em
ra contemporânea mediante a expansão de relação à escravidão, no Brasil: “No fim da
modalidades sociais que se estavam tornan- escravidão o racismo adotou uma política
do a execração do mundo civilizado” (2000, efetiva, que avançou pelo século XX, apro-
p. 39). Como o tráfico negreiro era consi- veitando-se da emergência do fascismo.
derado pirataria pelo Direito Internacional Por isso, é importante destacar, mesmo
e condenado pela religião, moral, política e rapidamente, os intelectuais, que repre-
economia, o Brasil, para se projetar e se fir- sentaram a cultura oficial e receberam es-
mar no panorama internacional, prometia a tímulos para abastecê-la ideologicamente:
abolição da escravatura, mas internamenteo antes, para legitimar a escravidão; depois,

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par justificar a exploração de classes, que logia escravista. A Igreja Católica apoiou a
reduziu o negro a cidadão de última cate- escravidão; bulas papais autorizaram a in-
goria” (2012, p. 155). vasão da África; Nicolau V,o grande huma-
O mito da democracia racial também teve nista, que fundou a Biblioteca do Vaticano,
participação decisiva nesse processo; refor- autorizou portugueses a apresar negros, sar-
çou a ideia de que no Brasil não há racismo, racenos e inimigos de Cristo. A justificativa:
apoiado na circunstância de que no Brasil os negros seriam batizados e a escravidão
houve convivência aparentemente pacífica seria para “salvar-lhe as almas”. A Igreja
entre negros e brancos. A tese de Gilberto Católica recebia comissões dos traficantes
Freyre ainda hoje é evocada para a defesa (5%) e os papas concediam indulgências aos
desse princípio. portugueses: se morressem nessa missão
Otávio Ianni (2004) considera que, no estariam limpos de qualquer pecado (CHIA-
Brasil, a ideia de democracia racial se deve VENATO, 2012, p. 77-78). A Igreja e muitos
ao fato de que a escravatura aqui teria sido sacerdotes possuíam escravos; além disso, a
diferente, devido à índole pacífica do povo Bíblia era usada para justificar o sofrimento
brasileiro. Isso seria ideologia das elites do dos escravizados, comparado ao sofrimento
Brasil, resultado de invenção de tradições de Cristo.
e “pasteurização da realidade”. Para Ianni,
Gilberto Freyre foi uma matriz importante, Desdobramentos:
pois estudou a sociabilidade, tendo sido pre- invisibilização e segregação
cursor dos estudos sobre identidade e coti- de negros
diano; contudo,
Em nossa história social formou-se uma cul-
[...] alguns estão valorizando esses estu- tura racista, que teve desdobramentos inde-
dos para contrapô-los às teses de Florestan
sejáveis nos períodos posteriores. A cultura
Fernandes e de Caio Prado, já que estas são
escravista nos eixos escravo-senhor ainda
muito incômodas. As elites sempre foram
contra esses estudos. Ou, frente a eles, ficam vige no Brasil.
indiferentes. Esse pensamento [de Gilberto A estrutura senhorial-escravista está ain-
Freyre] está presente em Jorge Amado, Ro- da arraigada no imaginário do brasileiro;
berto DaMata, Darci Ribeiro etc., todos com além dos espaços simbólicos acima indica-
a melhor das intenções, pensando que apro- dos, expande-se, por exemplo, na organiza-
veitando esse potencial democrático ilusó-
ção espacial de nossas cidades, que repro-
rio, ele se tornaria verdadeiro.
duz o imaginário ideológico do escravismo,
Por fim, é importante registrar que esse figurado na relação casa-grande x senzala,
autor reconhece no Brasil um cenário con- que corresponde hoje à relação centro x pe-
traditório sobre racismo; aqui, o que há é riferia. Os espaços (urbanos e rurais) se or-
uma sociedade injusta, fundada no precon- ganizam nesta lógica: ao centro corresponde
ceito: “É uma negação da ideia de democra- o espaço da casa-grande, com todos os privi-
cia racial porque se ela existe, todos estão légios possíveis (serviços, proteção policial,
participando em situação de igualdade, mas infraestrutura, etc.); à periferia resta o es-
sabemos que não é isso o que acontece”. quecimento na oferta de condições de vida:
A religião não ficou indiferente; foi apoio falta água, asfalto, escolas, transporte, po-
importante para o fortalecimento da ideo- liciamento adequado para a defesa da vida

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“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

e não para o extermínio a que a população apesar de odiar os escravizados. Programas


negra está condenada. 9 A Abolição foi de- de incentivo à imigração dirigida a europeus
cretada (para inglês ver); a escravidão con- brancos, como alternativa produtiva à Abo-
tinua, como meio de exploração. O liberto, lição, são evidências de que os negros foram
sem profissionalização, ficou à margem da preteridos na composição étnica ideal da
produção. Um ex-senhor afirmou que po- nação; além de ser alternativa econômica,
dia melhor explorar os negros, pagando os apresentava a vantagem de embranquecer o
salários com a venda de alimentos, confor- país. Na prática, isso foi oferta de cotas para
me registra Faoro (2009, p. 572: “Nada lhes europeus virem para o Brasil.Considerados
dou; tudo lhes vendo, inclusive um vintém inferiores, os negros foram vítimas de uma
de couve ou leite (…). Pois bem: esse vintém segregação social, sobretudo porque o ideal
de couve e leite, o gado, que mato, a fazenda de nação que aqui se firmou foi e ainda é o
que compro por atacado, e que lhes vendo de nação branca. Isolar e apagar o elemento
a retalho, e mais barato que na cidade, dão negro foram as estratégias adotadas.
quase para o pagamento do trabalhador. Apesar de ser maioria da população bra-
Assim, sob o ponto de vista econômico, sileira, a nação negra não aparece ainda
a escravidão não acabou (nem o preconcei- hoje; está ausente da mídia, das peças de
to, sob o ponto de vista social). Atestam isso propaganda, dos postos de comando, dos
dois programas federais de combate ao tra- lugares de privilégio; ganham menos do que
balho infantil e ao trabalho escravo. Segun- os brancos. Demonizam a religião e manifes-
do Pontes (2017), ao amparo do PETE-Pro- tações culturais dos negros; depreciam a cor
gramade Combate ao Trabalho Escravo, há da pele, o tipo de cabelo, a forma do nariz –
no Ministério Público Federal 459 inquéri- tudo é feio. Esses princípios são reforçados
tos criminais contra suspeitos de submissão em praticamente todos os ambientes: vias
à escravidão, entre 2009 e 2016. Depois de públicas, clubes, igrejas, locaiss de trabalho;
quase 130 anos da Abolição, o país ainda mas é na escola que encontram eco mais
luta contra esse crime perverso, agravado pernicioso, que produzem desdobramentos
por outro afim, o abuso do trabalho infantil, negativos para a formação da identidade de
combatido também por outro programa ofi- nossas crianças10. Com o bombardeio nega-
cial federal, o PETI-Programa de Combate tivo perene aos negros, eles mesmos aca-
bam achando que o mundo branco é melhor
ao Trabalho Infantil.
e acabam contribuindo para o reforço da
A elite brasileira gostava da escravidão,
branquitude11. Negros e negras constroem
9 Já são fartos os índices que escancaram esta
triste realidade: os negros, principalmente os jo- 10 Recentemente foi percebido o efeito nocivo
vens, são exterminados em nosso país. O Brasil que o bullying provoca nas pessoas, sobretudo
reconheceu o fato em 20/03, na OEA-Organi- crianças. Entretanto, poucos notam que não só
zação dos Estados Americanos, o extermínio de as crianças negras, mas todos os negros sofrem
jovens negros no Brasil (GELEDÉS, 2015). Além bullying, no Brasil, há séculos, com xingamen-
de evidências estatísticas, são fartos também es- tos e desqualificação cotidiana, piadas e outras
tudos que o denunciam. Fernandes e Monteiro ações depreciativas. No tempo da escravidão
(2014), por exemplo, apontam a violência física isso não apenas era permitido, mas também in-
e simbólica que se esconde nas estatísticas poli- centivado.
ciais e carcerárias. Os esforços para branquear 11 A branquitude é um sistema que reproduz e pe-
o Brasil ainda estão vigorosos e seduzem até os reniza as desigualdades raciais. Uma obra que se
negros que, afinal, compõem também em boa ocupa do tema é Psicologia social do racismo.
parte a força policial que aterroriza as periferias Estudos sobre branquitude e branqueamento
negras de nossas cidades. no Brasil, organizado por Maria Aparecida Silva

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Paulo Sérgio de Proença

novo exílio diaspórico, agora de si mesmos, gau de farinha de milho, a tapioca e o pre-
quando se negam ser aquilo que de fato são. paro do peixe assado na folha de bananeira
A invisibilidade do negro é bem sintetiza- são exemplos dessa herança. No Município
nasceu também Mário Augusto Teixeira de
da por Oliveira (2015, p. 24-25):12
Freitas, idealizador e fundador do Instituto
Por muito tempo os descendentes de africa- Brasileiro de Geografia e Estatística.
nos no Brasil conviveram com o estigma de
que sua cor era uma maldição divina, sua
Considerando o aspecto de síntese (tal-
cultura era obscurantista e bárbara, que sua vez por isso mesmo), é digna de nota a au-
religiosidade era demoníaca, sua inteligên- sência total da presença negra no município
cia limitada, e que sua aparência não corres- (e, além disso, nenhuma referência é feita
pondia aos ideais de beleza do mundo civi- ao fato de o município ter participado de
lizado, branco, ocidental. Negros e negras algumas insurreições populares. De fato, o
foram banidos da televisão, das novelas, dos
município se destaca por ter participado em
comercias, dos filmes e dos livros escolares.
A história contada na escola é branca; a be- diversos movimentos de emancipação po-
leza mostrada nos meios de comunicação é lítica no Brasil, tais como a Revolução dos
branca e tudo que enaltece a nossa sociedade Alfaiates (1798), a Independência da Bahia
é branco. (1823), a Revolta dos Malês (1835) e a Sabi-
nada (1837).
Um exemplo breve, mas tocante, sobre
O que choca, contudo, é o silencia quan-
essa invisibilização pode ser buscado em do-
to à histórica presença negra no município,
cumentos oficiais, como é o caso da página
no portal do IBGE. Isso se torna ainda mais
do IBGE sobre o censo de 2010 da cidade de
chocante porque, no excerto reproduzido,
São Francisco do Conde (BA); na página do
há menção honrosa à presença do índio e
portal do Instituto referente à síntese histó-
do branco. A tabela abaixo registra dados
rica da cidade, temos isto:
do censo de 2010 quanto à população que se
A diversidade de etnias que ajudou a cons- autodeclara preta ou parda:13
truir São Francisco do Conde culturalmente
está presente no cotidiano da cidade. As pal- Tabela 1. Dados do censo 2010 (autodeclaração
meiras imperiais, símbolo da administração quanto à cor da pele)
portuguesa, estão por toda parte, as cons-
Critério Valor: Número
truções coloniais são majestosas e conser-
vam a memória da região. Os Tupinambás e População residente 33.183
os Caetés Negros deixaram de legado, entre
outras coisas, uma rica gastronomia. O min- População residente -
16.878
cor ou raça - Parda
Bento e Iray Carone, Editora Vozes. Fora do Bra-
sil, pontifica Frantz Fanon, filósofo e psiquiatra População residente -
martinicano, que escreveu, dentre outros livros, 13.278
cor ou raça - Preta
estes: Pele negra, máscaras brancas e Os con-
denados da terra. Fonte: IBGE
12 A propósito desta invisibilização, Oliveira nota
que, se o negro é invisível em espaços sociais pri- 13 Há oscilação de referência. Negro, preto, pardo,
vilegiados, em outros ele é presença permanente: mulato, etc., são matizes de uma gradação cujo
“no Brasil das favelas, das periferias, das chacinas, objetivo é apagar o negro; a amplitude linguís-
da violência e da miséria a presença do negro e da tica (como se fosse um tabu a pronúncia ou a
negra torna-se bastante visível e concreta e, desta escrita desses termos) é tentativa eufemística de
forma, a política de segregação mantém o negro fuga, é negação da existência do negro, distan-
invisível e à margem da sociedade apesar de sua ciando-o do branco e projetando-o para o lugar
presença ser maciça” (2015, p. 25). do não-ser, da não-existência.

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“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

Em 2010, 90,87% da população da cida- Pergunta a analista: “O que significam


de se autodeclarou preta ou parda.14 A gran- estes números?”. Ela mesma responde: “o
de concentração de negros no município se que os dados do Censo 2010 nos dizem é que
deve ao elevado número de escravizados que há grande desigualdade entre o rendimento
para aqui foram mandados, sobretudo para segundo a cor dos respondentes, mas infe-
trabalhar no clico do açúcar. São Francisco lizmente nada podem nos dizer sobre as cau-
do Conde é um município negro. sas desta desigualdade e muito menos que o
Apesar da expressividade dos números, racismo é a razão delas”. A primeira parte
a página do IBGE (órgão oficial do Estado, da resposta é óbvia; já a segunda (curiosa-
especialista em estatística) silencia quan- mente introduzida por mas) é, no mínimo,
to à característica étnico-racial do municí- desatenta (não seria uma “mentira”, como
pio, apagando sua composição negra. Não ela diz ser a explicação racial para a desi-
é isso uma contradição? Esse ato falho (se gualdade?): ora, se está sendo comparada a
a omissão não foi consciente) é prova con- renda a partir do critério raça-cor e se índios
vincente do esforço que há, inclusive em e negros ganham menos, a explicação não é
esferas oficiais, para a invisibilização do o critério raça-cor?
negro, no Brasil. Continua a jornalista, fazendo referência
Mas, por que, então, esse esforço tre- à explicação que atribui essas diferenças ao
mendo de apagar a presença negra no Bra-
racismo dos brancos: “Então como explicar
sil? Por que não é assumido o preconceito
a diferença entre pretos e pardos? Se pardos
contra os negros, no Brasil?
ganham menos do que pretos, significa se-
Nesse sentido, vale a pena verificar
rem estes racistas em relação aos primeiros,
uma ocorrência recente na mídia eletrôni-
ou que os pardos sejam mais discriminados
ca. A jornalista-antropóloga Yvone Maggie
do que os pretos?” (insinuando que a dife-
(2016), do portal G1 comenta os resultados
rença de renda entre pardos e pretos seria
do censo 2010 sobre a relação entre raça
consequência do racismo dos pardos), para
e cor e a renda per capta mensal de cada
concluir que as desigualdades não devem ter
segmento, considerando os dados divul-
por explicação as diferenças relativas a ra-
gados em novembro deste ano pelo IBGE.
ça-cor. Isso seria uma mentira que, por ter
Os brancos (R$ 1.020,00) e amarelos (R$
sido repetida muitas vezes nos últimos dez
994,00) ocupam os dois primeiros lugares,
respectivamente; indígenas (R$ 345,00), anos no Brasil, acabou sendo verdade, con-
pardos (R$ 496,00) e pretos (R$ 539,00) clui Maggie.
ocupam os últimos lugares, também res- A articulista demonstra desconhecer a
pectivamente. realidade do racismo no Brasil, suas ra-
zões e motivações históricas; desconhece,
14 Esse percentual é muito significativo, porque há também, esforços de nossa sociedade para
muitos negros que não se definem assim, por
efeito ideológico avassalador da branquitude; branquear a população, criando mecanis-
é por isso que há tentativas de alisamento do mos (inclusive linguísticos), para apagar a
cabelo, cirurgias para embelezamento de boca presença do negro, com criação de termos
e nariz (para quem tem recursos financeiros),
artifícios para alisamento de cabelo e utilização atenuantes, como pardo (categoria menos
de cremes para clareamento da pele. É por isso preta, o que muitos chamam purificação
também que o índice de pessoas que se autode-
claram negros ou pardos, no município indica-
do sangue). Essa postura é bem represen-
do, é extremamente significativo. tativa do dilema do Brasil lidar com ne-

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gros e dos esforços em apagá-los de sua ma, seu raciocínio: “Infelizmente, até ago-
história. 15 ra, as interpretações errôneas do censo no
Continua a jornalista com esta ressalva, Brasil têm levado a políticas públicas que
que muito interessa à nossa discussão: “Não induzem a divisões perigosas”. Ora, a divi-
estou dizendo que não existam racismo e são mais perigosa que sempre vivemos é a
discriminação no País. Estou apenas aler- que existe entre brancos e negros, existen-
tando para o fato de que não se pode dizer te desde os primórdios de nossa história.
que é o racismo o causador das diferenças Introduzir na discussão o tema raça-cor é
de rendimento por cor”. Embora não use o perigo que divide? Para a jornalista, sim.
mas para fazer a junção (feita pelo apenas), Isso é mais um efeito da invisibilização dos
há oposição entre as asserções, o que faz negros.
essa afirmação ser equivalente da estrutu- A natureza da matéria é típica do pen-
ra A, mas B, analisada neste trabalho (não samento predominante na mídia brasileira,
estou dizendo que não existam racismo e que reproduz os ideais dos grupos dominan-
discriminação no País, mas estou apenas tes, de ascendência branca. Não é negada a
alertando para o fato de que não se pode conclusão induzida de que, se os pardos e
dizer que é o racismo o causador das dife- pretos ganham menos, é por que são incom-
renças de rendimento por cor). A intenção, petentes. Não seria por que a sociedade nega
com isso, é defender-se da consideração de a eles as mesmas condições de cidadania que
ela afirmar que o Brasil não haja racismo oferece para os brancos?
ou da presunção de ela ser racista, tudo É isso o que está em jogo. Não é somente
porque foi percebido que as considerações a realidade desigual que interessa, mas tam-
defendidas têm teor racista, não assumido bém as explicações para as desigualdades.
(conforme análise feita na primeira parte A matéria representa o pensamento domi-
deste trabalho). nante no Brasil: naturalizar diferenças que
A jornalista conclui alertando para o devem ser entendidas à luz do preconceito
perigo de ser considerado o fator étnico racial que preside ao tratamento desumano
em estatísticas da espécie, aqui e alhures, que os negros temos recebido de forma re-
porque podem induzir a políticas públicas corrente na nossa história; negar conquis-
equivocadas, dentre as quais está a adoção tas, como a política de cotas, projetando
de cotas, no Brasil, concluindo, desta for- elementos de divisão no grupo dos negros,
sugerindo que pardos seriam preconcei-
15 Maggie escreveu o prefácio ao livro Não somos tuosos contra os pretos, porque têm renda
racistas: uma reação aos que querem nos trans-
maior. Pardos e pretos são a mesma gente,
formar numa nação bicolor, do jornalista Ali
Kamel; Miranda-Ribeiro (2006), ao resenhar divididos pela ideologia do branqueamento
essa obra, faz este comentário: “a leitura do livro vigente no Brasil.
desmente essa hipótese [não somos racistas] e
confirma o inverso: o autor acredita piamente A matéria é eloquente exemplo de racis-
na afirmação que faz no título. Portanto, não me mo não assumido contra os negros (como
resta outra alternativa senão afirmar o contrá- revela a expressão “não sou racista, mas...”,
rio: somos racistas”. O livro atesta a permanên-
cia do racismo, sutil ou ostensiva, que estrutu- analisada na primeira parte deste trabalho),
ra a sociedade brasileira, de que faz parte a sua cujos efeitos perversos se multiplicam pela
negação, como se depreende das ideias e textos
de Kamel e Maggie; mas há tantos outros nessa
sociedade brasileira em geral e pela mídia,
trincheira preconceituosa. em particular.

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“Não sou racista, mas...”: Motivações linguísticas e históricas da proverbial retórica à brasileira para a negação do racismo

Considerações finais de; também foram notados na mídia, em


comentário sobre estatísticas oficias sobre
As práticas linguageiras se desenvolvem média de salários percebidos por diferentes
nos cenários em que as interações humanas segmentos étnicos. Com isso, conclui-se que
ocorrem, sem deixar de mostrar as tensões os negros apanham: da polícia, da mídia, do
e contradições da vida em sociedade, apesar governo; continuam a sofrer violência física
das tentativas que são feitas para esse fim. e simbólica.
É o caso da expressão “não sou racista, Com isso, atesta-se a permanência do
mas...”, estudada neste trabalho. A materia- racismo. Se não for pela ação integrada da
lidade de seus aspectos linguísticos revela polícia, da mídia e do governo, pelo menos
uma contradição em termos, porque quem será pelo uso da expressão “não sou racista,
se serve dessa expressão é, sim, racista, o mas...”.
que também fica evidente a partir dos ele-
mentos retóricos que nela estão investidos; Referências bibliográficas
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