Você está na página 1de 5

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste - GELNE

XVII JORNADA DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS


Fortaleza, l.° a 3 de setembro de 1999

ANAIS
Volume I

Organizadoras
Maria Elias Soares
Maria do Socorro Silva de Aragão

Fortaleza - 2000
VERBOS NO INFINITIVO NA POSIÇÃO DE
SUBSTANTIVO: UMA ABORDAGEM ENUCIATIVA
Karine Viana Amorim e Luiz Francisco Dias - UFPB - Campus II

Abstract um elemento - guarda-chuva)”. Para Faraco e Moura


(1995: 46), o substantivo “é a palavra que dá nome aos
The goal of this article is to propose a possible seres”. Eles dividem o substantivos em cinco categorias:
reformulation of the meaning of the noun, which is a) objetos, b) lugares, c) pessoas, d) espécie, gênero ou
presented, in the traditional grammar, through a um de seus representantes e e) ações, sentimentos, esta­
elaborated study according to enunciative approach. For dos ou qualidades. Além disso, os autores afirmam que
that purpose, w intend to study the use of the verbs in “pertencem à classe dos substantivos qualquer palavra
the infinitive tense that work as a nouns. que possa ser precedida de artigo, pronome possessivo,
demonstrativo ou indefinido”. Cegalla (1981: 78), por
Palavras-Chave: substantivo, gramática tradicional, sua vez, diz que substantivos são “palavras que desig­
enunciação nam os seres” .
Além dessas gramáticas tradicionais, recorremos
à Grammatica Philosophica da Lingua Portugueza, de
Este projeto faz parte de uma pesquisa maior,
Jeronimo Soares Barbosa, do ano de 1830, uma vez
intitulada “Aspectos Enunciativos da Constituição do
que essa também serve de base para a elaboração das
Grupo Nominal: a Substantivação”, na qual procuramos
gramáticas contemporâneas e é considerada pelos es­
repensar o conceito de substantivo da forma como ele
tudiosos a melhor gramática do português do século
aparece nas abordagens tradicionais. Essa pesquisa tem
passado. Barbosa diz que “O Substantivo pois, he hum
como meta final a elaboração de uma nova gramática do
nome, que exprime huma couza como subsistente por
Português.
si mesma, para poder ser sujeito da oração, sem depen-
A definição de substantivo, presente nas gramáti­
dencia de outra”.
cas tradicionais, está baseada no princípio platoniano
Esses conceitos têm suas raízes na teoria realista
segundo o qual a palavra representa ou designa um ser.
platoniana. Segundo Platão:
Podemos perceber que a concepção de substantivo se
sustenta na idéia de que seria necessário existir uma enti­ (...) as coisas devem ser em si mesmas de essência
dade extra-lingüística definida para poder ser nomeada. permanente, não estão em relação conosco, nem
E quando acontece de termos um dizer sobre a ausência na nossa dependência, nem podem ser deslocadas
ou a falta? As palavras “negação”, “falta”, “inexistência” em todos os sentidos por nossa fantasia, porém exis­
e “vazio” são exemplos disso. São palavras classifica­ tem por si mesmas de acordo com sua essência na­
das como substantivos, no entanto, não as encontramos tural (Crátilo. 386 d-e).
nas exemplificações gramaticais, porque elas não se ade­
quam à definição de substantivo. No nosso estudo, procu­ Platão pensava a linguagem como a representação
raremos compreender melhor o problema da inadequação do mundo. Era necessário existir uma entidade extra-lin­
do conceito de substantivo com base em uma aborda­ güística para poder ser nomeada e essa entidade não te­
gem enunciativa da linguagem, bem como fazer um tes­ ria nenhuma relação conosco e não iria depender de nós
te com os verbos no infinitivo na posição de substantivo, a sua existência; dependeria unicamente de sua própria
utilizando as estruturas elaboradas por Amorim e Dias natureza.
(1998) e como corpus o conjunto de textos da Folha de Inicialmente, gostaríamos de ressaltar dois planos
São Paulo do ano de 1997, publicados em CD-ROM. que julgamos relevantes para o entendimento do proble­
Escolhemos três gramáticas tradicionais de uso ma da designação discutido acima.
constante em escolas para verificarmos seus conceitos O primeiro plano diz respeito às palavras que indi­
de substantivos. Para Douglas Tufano (1990: 47), subs­ cam a falta dos seres como “ausência”, “inexistência” e
tantivo é a “palavra que designa os seres em geral. Quanto “falta”. Esses termos são classificados como substanti­
à forma, ele pode ser simples (quando possui apenas um vos, mas não apresentam características semânticas de
elemento - chuva) ou composto (quando possui mais de substantivos, segundo os parâmetros da gramática tradi-

241
XVII Jornada de Estudos Linguísticos - ANAIS - Volume I
cional. Se o substantivo é o termo que nomeia ou desig­ Pedro escreveu sobre a(s)
na algo no mundo, como essas palavras poderiam ser Pedro escreveu sobre o (s)
consideradas substantivos?
No segundo plano, temos frases como um pênalti Com essas estruturas, podemos dizer que:
não marcado no texto O pênalti que não foi marcado.
(a) Pedro falou do amor
Em 82, na dramática quarta-de-final contra a Itá­ (b) Pedro falou do pênalti não marcado
lia que tirou do Brasil um título certo, o italiano Gentile
exerceu uma marcação ferozmente desleal contra Zico, (c) Pedro escreveu sobre a inexistência de leitos
literalmente segurando-o o tempo todo e a todo custo, nos hospitais
com a complacência do juiz israelense Abraham Klein. (d) Pedro falou da ausência do seu pai
Numa das suas inúmeras jogadas contra o brasileiro, (e) Pedro escreveu sobre a falta de verbas para a
Gentile agarrou-o pela camisa (chegando a rasgá-la) saúde
dentro da área, impedindo-o de marcar o gol que evita­
(f) Pedro falou da negação do visto de seu passaporte
ria a desclassificação da seleção da CBE Um pênalti
não marcado que poderia ter dado a Zico o título de 82,
Segundo o nosso estudo, o termo que preencher
pois aquele time foi o melhor da Copa da Espanha e um
esse espaço em branco seria o objeto temático da fala. É
dos melhores de todas as Copas. (Revista ícaro Brasil
objeto temático porque se produz a partir de uma ação
164. Abril. São Paulo: VARIG. P. 164)
de falar ou escrever. Com essa hipótese, julgamos estar
no caminho de uma nova formulação, de natureza
A expressão não marcado designa que o pênalti enunciativa, do conceito de substantivo.
não foi registrado na história enquanto ser, isto é, que o A nossa hipótese é a de que, nos casos de (a) até
juiz não marcou, uma vez que a autoridade máxima den­ (f), os termos “amor”, “pênalti”, “inexistência”, “ausên­
tro de um campo de futebol é o juiz. Nesse caso, o pênal­ cia”, “falta” e “negação”, respectivamente, se configu­
ti só vai existir no nível do discurso, ou seja, na concep­ ram como substantivos. Após testarmos essas palavras,
ção de quem escreveu. Podemos ainda afirmar que passamos para o teste com palavras que tivessem algu­
“pênalti” existe no ponto de vista do texto e a expressão ma correspondência com o substantivo. Assim, escolhe­
“não marcado” no ponto de vista do juiz. Reside aqui o mos os verbos no infinitivo.
problema da designação dos seres: se, para Platão, a exis­ Segundo a gramática tradicional, os verbos no infi­
tência das coisas teria que anteceder a linguagem, aqui nitivo podem, também, funcionar como substantivos,
nós temos um pênalti enunciado, que não existe enquan­ obedecendo às suas formas nominais. No entanto, a gra­
to “realidade”. Então, perguntamos, como ele poderia mática não especifica a categoria dos verbos que po­
ser enunciado, se não existe? As coisas no mundo não dem funcionar como substantivo. Utilizaremos o teste
estão em relação conosco, assim disse Platão; no entan­ supracitado com verbos no infinitivo especificamente
to, é marcante o fato de que a idéia do “pênalti” está a classe dos os verbos elocutórios, defendida por Oli­
relacionada com a opinião de quem escreveu. Assim, veira et alli (1985), no sentido de identificarmos as con­
perguntamos mais uma vez: a utilização do termo “pê­ dições de utilização dos verbos no infinitivo na posi­
nalti” foi feita de maneira inadequada por falta de outro ção de substantivo.
termo? Ou o conceito de substantivo falha nesse ponto? Segundo Oliveira et alli, verbos elocutórios “são
Achamos que a segunda pergunta é a que tem pertinência verbos que contêm implícito em seu significado um com­
nesse ponto. portamento de fala, ou seja, um dictum” (“dizer”, “fa­
A partir dessas discussões, comprovamos que o lar”). Esses verbos se subdividem em: verbos de dizer
conceito de substantivo apresenta falhas e assim merece (“são verbos de ação cujo complemento direto é o
uma reavaliação. Gostaríamos de ressaltar, ainda, que o dictum”) e verbos que qualificam o dictum (“verbos de
problema aqui levantado não reside nas palavras em si ação que apresentam lexicalizada a modalização que
mesmas, caracterizadas como substantivos, nem no seu caracteriza o dictum neles implícito”). Ao primeiro
significado, mas sim na conceituação do substantivo. grupo pertencem os verbos de “dizer básico” em cujos
Apresentamos aqui indícios de que é possível significados existem informações sobre a cronologia
reformular esse conceito, tentando adequá-lo aos mais discursiva (retrucar, completar, tornar, repetir) ou apre­
diferentes usos do substantivo. Vejamos as seguintes es­ sentam o modo de realização do enunciado (gritar, ber­
truturas, elaboradas por Amorim e Dias (1998): rar, exclamar, cochichar e sussurrar). O segundo grupo
inclui verbos como: queixar-se, comentar, confidenciar,
Pedro falou do (s) observar, avisar, informar. Para tomar mais fácil o reco­
Pedro falou da (s) nhecimento do segundo grupo, com esses verbos é pos­

242
XVII Jornada de Estudos Ungúísucos - ANAIS - Volume I
sível fazer uma paráfrase; por exemplo “queixar-se = (7) “O judiciário é o hospital do direito, na simpli­
dizer uma queixa”, “comentar = dizer um comentário”, cidade do dizer.” (05/10/97)
“responder = dizer uma resposta”.
Dessa classificação, pesquisamos na Folha de São Na segunda situação, o verbo perde o estatuto de
Paulo os seguintes verbos na forma infinitiva: “dizer”, verbo e passa a ser mesmo um substantivo, sendo possí­
“falar”, “contar”, “perguntar” e “descrever”. Do estudo vel a mudança para o plural. Este é um caso semelhante
desses verbos, pudemos observar que eles obedecem a aos substantivos que possuem a estrutura de um verbo,
uma categorização, ou seja, eles somente aparecem na vejamos os exemplos:
posição de substantivo mediante três situações, a saber:
(8) “Mesmo agora, não me surpreenderia ver um
a primeira seria correspondente à ação de um verbo
adesivo no vidro de trás de um carro com o
elocutório; na segunda, o verbo perde o estatuto de ver­
dizer: ‘Pesquisa básica - não, muito obrigado! ’
bo e passa a ser mesmo um substantivo, caso semelhante
enquanto um gás cinza azulado emana do seu
aos substantivos que possuem a estrutura de um verbo; e
escapamento.” FSP (23/11/97)
a terceira seria a maneira pela qual a ação do verbo se
concretiza. (9) “Resta o dizer, sempre polpado no movimento
Na primeira situação, em que o verbo funciona do sangue rubro.” FSP (14/12/97)
como um elocutório, apresentando a ação propriamente
dita, temos os seguintes exemplos: E, por fím, na terceira situação, temos os verbos
(1) “Alguns, de Júlio Bressane, é reflexão teórica que demonstram a maneira pela qual a ação do termo se
de uma práxis (‘onde o dizer é fazer’, diria concretiza:
Vieira), metalinguagem digressiva e conceituai (10) “Meu português tinha a qualidade nasal de
sobre o fazer e perceber cinema.” (23/03/97) Lisboa, e eu estava completamente despre­
(2) “Em O Conflito entre o Dizer e o Exprimir, parado para a musicalidade, o ritmo e a sua­
Mário Pedrosa faz uma aproximação entre vidade do falar brasileiro.” FSP (28/12/97)
Merleau - Ponty e Wittgenstein (o da segunda (11) “Era uma língua completamente diferente, sem
fase) que, na época, seguramente deve ter soa­ escrita e para dentro, o falar molambento de
do como particularmente estranha não somen­ carrinhos de supermercados e sacos plásticos,
te no Brasil, mas até mesmo para seus discípu­ a linguagem de fuligem e Karen tinha de es­
los europeus da época.” (10/05/97) cutar cuidadosamente a maneira como a mu­
(3) “Dizer ‘sou feliz’ já me deixa mais feliz do que lher arrancava da garganta uma fileira de pa­
dizer ‘sou infeliz’. Estar apaixonado por al­ lavras como lenços amarrados uns nos outros,
guém depende de um decreto íntimo, o dizer- para depois tentar reconstruir a frase.” FSP
se ‘estou apaixonado’. Isso, depois, será sub­ (05/12/97)
metido ao parlamento das horas e dos dias, para (12) “A bola da vez é a simplicidade do contar e a
confirmar-se ou não.” (28/05/97) complexidade do amor.” FSP (11/10/97)
(4) “Se o governo associasse o falar ao fazer, o fi­
nanciamento a essa pesquisa seria um exem­ Aplicando alguns desses exemplos ao teste proposto
plo de boa administração.” (22/06/97) por Amorim e Dias (1998), podemos obter as seguintes
(5) “É importante notar que, embora a interpretação estruturas. Na primeira situação, temos:
de Müller-Lauter contradiga a de Heidegger,
Ia) O jornalista escreveu sobre o dizer do cinema.
em nenhum momento ele pretende excluir
Nietzsche da história da metafísica, entendida 4a) O jornalista escreveu sobre o falar do governo.
por ele de modo mais abrangente e mais eleva­ 5a) O jornalista escreveu sobre o perguntar pelo ente.
do, como sendo ‘o perguntar pelo ente em sua
totalidade e enquanto tal’, nem ser contrário a Na segunda situação, temos o seguinte:
um esforço de Heidegger por um ‘ultrapassa-
8a) O jornalista escreveu sobre o dizer: ‘Pesquisa
mento da metafísica tradicional’.” (09/08/97)
básica - não muito obrigado!.
(6) “Não será coincidência se assistimos, neste
momento, aos trabalhos de outra CPI, a brasi­
E, por fím, na terceira situação, poderíamos ter as
leira, cujos investigadores-acusadores e depo-
seguintes estruturas:
entes-acusados esforçam-se arduamente por
‘não-dizer’, usando as palavras do ‘dizer’, por 10a) O jornalista escreveu sobre o falar brasileiro.
‘não se fazer entender’, usando as palavras do 11a) O jornalista escreveu do falar molambento de
‘fazer-se entender.” (30/03/97) carrinhos de supermercados e sacos plásticos.

243
XVII Jornada de Estudos Linguísticos - ANAIS - Volume I
Tendo em vista as estruturas acima, podemos ob­ DIAS, Luiz F. A aula de gramática e a realidade discursiva
servar como o verbo, na posição de infinitivo, pode fun­ do vocábulo. Campina Grande: UFPB (inédito),
cionar como substantivo, revendo assim uma lacuna dei­ 1998.
xada pela gramática tradicional no que diz respeito aos FARACO, Carlos Emílio e MOURA, Francisco. Língua e
parâmetros de escolha dos verbos para funcionarem como literatura. Vol. 2,15. ed., São Paulo: Ática, 1995.
substantivos, bem como rever o conceito de substantivo. GUIMARÃES, Eduardo. Os limites do sentido: um estudo
Com essa classificação, ficamos com a certeza de que histórico e enunciativo da linguagem. Campinas: Pon­
estamos no caminho para uma nova conceituação do tes, 1995.
substantivo. Nesse sentido, não necessitaremos de toda OLIVEIRA, Ana Maria P. de et alli. Verbos introdutores
complexidade relativa ao conceito de ser. Ao mesmo tem­ do discurso direto. ALFA, São Paulo, n. 29, p. 91-96,
po, estamos estudando a língua em seu uso e em sua 1985.
dinamicidade. PERINI, Mário A. Classes de palavras em português. In:
Gramática descritiva do português. São Paulo: Ática,
Referências Bibliográficas 1995.
PLATÃO. Diálogos: Teeteto-Crátilo. Belém: UFPA, 1973.
BARBOSA, Jeronimo Soares. Grammatica philosophica PIQUÉ, Jorge Ferro. Linguagem e realidade: uma análise
da linguaportugueza. Lisboa: Tipografia Real, 1830. do Crátilo de Platão. Letras, Curitiba: UFPR, n. 46,
CEGALLA, Domingos Paschoal. Novíssima gramática da p.171-182,1996.
língua portuguesa: com numerosos exercícios. 22. ed., TUFANO, Douglas. Estudos de língua portuguesa: gra­
São Paulo: Nacional, 1981. mática. 2. ed., São Paulo: Moderna, 1990.

244
XVII Jornada de Esiudos Linguísticos - ANAIS - Volume I

Você também pode gostar