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EUGENE H. PETERSON
E S P I R I T U A L I D A D E S U B V E R S I VA
Espiritualidade subversiva / Eugene H. Peterson; organizado por Jim Lyster, John Sharon, Peter
Santucci; traduzido por Fabiani Medeiros — São Paulo: Mundo Cristão, 2009. (Série teologia
espiritual)
Introdução 9
ESPIRITUALIDADE
CAPÍTULO 1: Marcos: o texto fundamental para a
espiritualidade cristã 13
CAPÍTULO 2: De volta à estaca zero: disse Deus 29
CAPÍTULO 3: A busca do espírito 47
CAPÍTULO 4: Escritores e anjos: testemunhas
da transcendência 59
CAPÍTULO 5: O seminário como lugar de formação
espiritual 75
ESTUDOS BÍBLICOS
CAPÍTULO 6: O tronco santo 85
CAPÍTULO 7: Jeremias como teólogo ascético 105
CAPÍTULO 8: Aprendendo a adorar com o Apocalipse
de João 109
CAPÍTULO 9: Apocalipse: o meio é a mensagem 117
CAPÍTULO 10: O quarteto da ressurreição 129
POESIA
CAPÍTULO 11: Santa sorte 139
LEITURAS PASTORAIS
CAPÍTULO 12: A poesia de Patmos: João como pastor,
poeta e teólogo 149
CAPÍTULO 13: Mestres da imaginação 161
CAPÍTULO 14: Ovelhas em pele de Lobo 165
CAPÍTULO 15: Kittel entre as xícaras de café 173
CAPÍTULO 16: Como mestres em cerimônias 179
CAPÍTULO 17: Ensina-nos a importar-nos sem
importar-nos, a cuidar sem cuidados 187
CAPÍTULO 18: Aliados inusitados 205
CAPÍTULO 19: Romancistas, pastores e poetas 209
CAPÍTULO 20: Pastores e romances 225
CONVERSAS
CAPÍTULO 21: Uma conversa com Eugene Peterson 237
CAPÍTULO 22: Casualmente intencional: uma
abordagem ao pastorado 261
CAPÍTULO 23: Espiritualidade subversiva 285
CAPÍTULO 24: Sobre pentecostais, poetas e mestres 295
CAPÍTULO 25: De paixão, oração e poesia 309
Para
Cuba Marie Dyer
MATEUS 10:16
Introdução
INTRODUÇÃO
Algo bastante extraordinário tem ocorrido nesta cidade nos últimos 25 anos;
a teologia espiritual vem sendo citada e reconhecida, valorizada e procura-
da. A teologia espiritual é uma preocupação antiga, respeitada e central da
igreja cristã. Mas nos últimos duzentos anos, com a ascensão imperialista
do racionalismo, acompanhada das várias reações do romantismo, a teologia
espiritual praticamente saiu de cena. O racionalismo e o romantismo luta-
ram pelo coração da raça humana e entre eles basicamente dividiram os
espólios. A teologia espiritual, impelida para as margens, sobreviveu aca-
demicamente nos esconsos pouco iluminados de várias bibliotecas ao re-
dor do mundo. A teologia espiritual, sobretudo desconsiderada, mas às vezes
subestimada tanto na igreja quanto no mundo, passou a ser a especialidade
de clubes fechados, pequenos e não raro excêntricos, de entusiastas.
Ao mesmo tempo, aqui em Vancouver, algo muito diferente tem acon-
tecido: a teologia espiritual foi recuperada como disciplina e como interes-
se fundamental a todo o empreendimento cristão conforme é pensado e
estudado na sala de aula, orado e praticado em casa e no local de trabalho,
crido na igreja e proclamado no mundo. Tanto a indispensabilidade quanto
o poder de atração da teologia espiritual têm sido desenvolvidos e demons-
trados entre nós — um imenso presente, tanto para a igreja quanto para o
mundo. E um presente mais que oportuno, uma vez que não há dúvidas de
1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux, 29, n.o 4, dez. de 1993. Este artigo baseia-se
na aula inaugural do dr. Peterson como professor da cátedra James M. Houston de Teologia Es-
piritual da Regent College, ministrada em 17 de out. de 1993.
14 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
2
A publicação original deste artigo data de 1997. A data deve ser levada em conta para que o
leitor se situe em relação às referências temporais do autor. (N. do T.)
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 15
1. A forma do texto
Ninguém jamais tinha escrito um evangelho cristão antes de Marcos es-
crever o seu. Ele criou um novo gênero. No final acabou sendo uma forma
de escrita que rapidamente passou a ser não apenas fundacional, mas
formativa para a vida da igreja e do cristão. É nossa convicção de fé já de
muito tempo que o Espírito Santo inspirou o conteúdo das Escrituras
(2Tm 3:16), mas é igualmente verdade que a forma é também inspirada,
essa nova forma literária a que chamamos evangelho. Simplesmente não
existia nada que se assemelhasse ao gênero evangelho, embora Marcos
contasse com excelentes professores hebreus na arte de contar histórias,
os quais nos legaram os livros de Moisés e Samuel.
A Bíblia como um todo chega até nós em forma narrativa, e é inserido
nessa narrativa grande e de certo modo esparramada por toda parte que
Marcos escreve seu evangelho. “Vivemos principalmente por formas e
padrões”, afirma Wallace Stegner, um dos grandes contadores de histórias
de nossos tempos, “... se as formas são ruins, vivemos mal”.3 O evangelho
é uma forma boa e verdadeira, pela qual vivemos bem. A narrativa cria um
mundo de pressuposições, de suposições e relações no qual ingressamos.
As histórias convidam-nos para adentrar um mundo fora de nós mesmos,
e, se forem histórias boas e verdadeiras, um mundo maior que nós. As his-
tórias da Bíblia são histórias boas e verdadeiras, e o mundo para o qual elas
nos convidam é o mundo da criação, da salvação e da bênção de Deus.
Dentro do vasto contexto da história bíblica, que tanto comporta, apren-
demos a pensar de forma precisa, a nos comportar moralmente, a pregar
apaixonadamente, a cantar alegremente, a orar honestamente, a obedecer
fielmente. Mas não nos atrevemos a abandonar a história como abandona-
mos qualquer dessas coisas ou todas elas, pois, no instante em que aban-
donamos a história, reduzimos a realidade às dimensões da mente, dos
sentimentos e das experiências. O momento em que formulamos nossas
doutrinas, organizamos nossos códigos morais e nos lançamos numa vida
3
When the Bluebird Sings to the Lemonade Springs. New York: Random House, 1992,
p. 181.
16 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
2. O teor do texto
Não precisamos avançar muito na leitura de Marcos para perceber que o
texto é sobre Jesus Cristo, e antes de concluirmos isso fica mais que evi-
dente. Marcos é sobre o Deus revelado em Jesus Cristo. Temos aqui algo
que parece demasiadamente óbvio, mas quero me deter no óbvio por um
instante.
Denominei o evangelho de Marcos o texto fundamental para a nossa
espiritualidade. Espiritualidade é a atenção que dispensamos a nossa alma,
ao interior invisível de nosso viver que constitui o cerne de nossa identida-
de, essa alma feita à imagem de Deus que compreende nossa singularidade
e glória. Espiritualidade é a preocupação que temos pela invisibilidade ine-
rente a cada visibilidade, pelo interior que fornece o conteúdo de cada ex-
terior. Necessariamente, ela lida e muito com a interioridade, com o silêncio,
com o isolamento ou solitude. Leva extremamente a sério, o mais que pode,
todas as questões da alma.
Isso poderia parecer algo maravilhoso, e nossa exclamação inicial muito
possivelmente seria: “Quem dera todo o povo de Deus estivesse igualmen-
te engajado!”. Mas os vinte séculos de experiência na área da espiritualida-
de faz arrefecer consideravelmente o nosso entusiasmo. Na prática, na
realidade dos fatos, ela acaba por se mostrar não tão maravilhosa. Quando
você examina toda a nossa história, não é de admirar que a espiritualidade
seja tantas vezes tratada com suspeita, e não raro com absoluta hostilida-
de. Pois na prática a espiritualidade muitas vezes se desenvolve em neuro-
se, degenera-se em egoísmo, torna-se pretensiosa, passa a ser violenta.
Como isso acontece? Para responder de forma resumida, acontece quando
pomos o pé para fora da história do evangelho e colocamos a nós mesmos
no lugar como o texto fundamental e abalizado para a nossa espiritualida-
de; procedemos à exegese de nós mesmos na qualidade de textos sagrados.
18 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
3. A tônica do texto
Ao lermos esse texto, logo descobrimos que toda a história se afunila, che-
gando à narração dos acontecimentos de uma única semana da vida de Jesus,
a semana de sua paixão, morte e ressurreição.
E, desses três elementos, é a morte que recebe o tratamento mais de-
talhado.
Se nos pedissem para resumir o máximo possível em que consiste o
evangelho de Marcos, devemos dizer: “na morte de Jesus”.
A resposta não soa muito promissora, especialmente para aqueles de
nós que estão à procura de um texto pelo qual viver, um texto por meio do
qual nutrirmos nossa alma. Mas aí está ele. Há dezesseis capítulos na his-
tória. Nos primeiros oito capítulos, Jesus está vivo, percorrendo sem pres-
sa as aldeias e estradas da Galileia, dando vida a pessoas, libertando-as do
mal, curando seus corpos mutilados e enfermos, alimentando pessoas fa-
mintas, demonstrando sua soberania sobre a tempestade e o mar, contan-
do histórias maravilhosas, recrutando e treinando discípulos, anunciando
que estão no limiar de uma nova era, o Reino do Deus, que naquele exato
momento está invadindo o mundo deles.
E é nesse momento, exatamente quando ele tem a atenção de todos,
exatamente quando se vê o auge do impulso para a vida e mais vida, que
ele começa a falar de morte. Os últimos oito capítulos do evangelho são
dominados por assuntos de morte.
O anúncio da morte também sinaliza uma mudança de ritmo. Quando
a história é narrada nos oito primeiros capítulos, há uma qualidade na
20 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Mas há muito mais em jogo aqui do que o simples fato da morte, embo-
ra isso esteja presente de forma muito enfática — trata-se de uma morte
cuidadosamente definida. É definida como voluntária. Jesus não tinha de
ir para Jerusalém; foi por vontade própria. Deu seu assentimento à mor-
te. Não era uma morte acidental; era uma morte inevitável.
É definida como sacrificial. Aceitou a morte para que outros pudessem
receber a vida: “... sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:45). Ele definiu
sua vida categoricamente como sacrificial, ou seja, como meio de vida para
outras pessoas, quando instituiu a Eucaristia: “... tomou o pão [...] ‘Tomem;
isto é o meu corpo’ [...] tomou o cálice [...] ‘Isto é o meu sangue da alian-
ça, que é derramado em favor de muitos...’” (Mc 14:22-24).
E é definida acompanhada da ressurreição. Cada um dos três anúncios
explícitos da morte conclui com uma declaração sobre a ressurreição. A
história do evangelho como um todo encerra-se com um testemunho so-
bre a ressurreição. Isso não torna essa morte menos morte, mas é uma morte
definida de modo totalmente diferente daquele com o qual estamos acos-
tumados a lidar.
Tragédia e procrastinação são as palavras que caracterizam a atitude da
nossa cultura diante da morte.
A morte concebida como algo trágico é um legado dos gregos. Os gregos
escreveram com elegância sobre mortes trágicas — vidas que se viram to-
madas pelo desenrolar de grandes forças impessoais, vidas levadas adiante
com as melhores intenções, mas depois emaranhadas em circunstâncias
que cancelavam as intenções, circunstâncias indiferentes ao heroísmo hu-
mano ou à esperança.
A morte de Jesus não é trágica.
A morte procrastinada é um legado da medicina moderna. Numa cul-
tura em que a vida é reduzida a pulsações do coração e ondas cerebrais, a
morte jamais pode ser aceita pelo que é. Uma vez que a vida não pode ser
mais do que aquilo que é capaz de ser explicado pela biologia — nenhum
significado, nenhuma espiritualidade, nenhuma eternidade —, são feitas
tentativas cada vez mais desesperadas de adiar a morte, de fazer que de-
more a chegar, de negá-la.
22 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
4
Veni Creator. London: Hodder & Stoughton, 1890, p. 104.
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 25
5
Hans Urs von BALTHASAR. The Glory of the Lord. San Francisco: Ignatius Press, 1984, vol. 1, p. 151.
26 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
6
Morning Light. New York: Paulist Press, 1988, p. 18.
7
Citado por Beldon LANE. Landscapes of the Sacred. New York: Paulist Press, 1988, p. 81.
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 27
CONCLUSÃO
Mais uma coisa. Essas duas histórias, cuidadosamente colocadas no cen-
tro da história do evangelho, não são o centro da história. A história de
Marcos, lembre-se, é uma história sobre Jesus, não sobre nós. Por sinal, se
apagássemos essa seção da história, a história ainda seria a mesma histó-
ria. Nada nessa narrativa da estrada e do monte é essencial para o entendi-
mento da história que mostra Jesus vivendo, sendo crucificado e ressurgindo
dentre os mortos. Sem esse relato da estrada e do monte, ainda sabería-
mos tudo o que é necessário saber. Marcos escolheu apresentar Jesus como
a revelação de Deus, um relato pleno da obra de salvação de Jesus.
O que acontece aqui é que somos convidados a nos tornar participantes
plenos da história de Jesus e descobrimos como nos tornar esses partici-
pantes. Não apenas somos informados de que Jesus é o Filho de Deus; não
apenas nos tornamos beneficiários de sua expiação; somos convidados para
morrer sua morte e viver sua vida com a liberdade e a dignidade de parti-
cipantes. E aqui está algo maravilhoso: entramos no centro da história sem
nos tornarmos o centro da história.
28 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux. Vancouver: Regent College, 31, n.o 1, 2-10,
mar. de 1995.
30 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
parou, sentou sobre suas fraldas e olhou ao redor procurando algo mais
para fazer, como se nunca tivesse existido bola de tênis para perseguir. Olhei
para a mãe dele:
— Lynn, qual o problema com o Andrew?
Minha admiração excessiva rapidamente se havia transformado em
ansiedade. Por que ele parou de ir atrás da bola? Será que estava faltando
algum gene em seu DNA? Será que estaria mostrando os primeiros sinais de
dislexia e um transtorno de déficit de atenção? Lynn, sem sequer perder
tempo de olhar por sobre o livro que tinha nas mãos, disse friamente, e
achei que pelo menos com um pouquinho de ar de superioridade:
— O Andrew ainda não desenvolveu a permanência do objeto.
— O que isso quer dizer?
— Significa que o que ele não consegue enxergar não existe.
Demorou alguns segundos para eu interiorizar aquilo, e então eu disse:
— Ah, eu tenho uma congregação inteira assim.
I
O elemento característico da estaca zero é este: disse Deus. Há, natural-
mente, muito mais também. Quando pisamos pela primeira vez na estaca
zero, toda uma amplidão do céu e da terra se abre diante de nós. Nem damos
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 33
conta de lidar com tudo de uma só vez. O melhor é receber tudo aos pou-
cos, por partes. Uma história aqui, uma oração ali, uma canção, um sonho.
As palavras são nossas principais ferramentas para nos orientarmos no
mundo — cuja maior parte não podemos enxergar, cuja maior parte ja-
mais chegaremos a tocar — vasta existência em expansão, cheia de misté-
rios, que na verdade é tão maior, tão mais complexa, tão mais real até
mesmo, do que nós.
Aprendemos a palavra “bola” e por meio da palavra adquirimos a capa-
cidade de experimentar a realidade da bola de tênis mesmo depois que ela
tenha rolado para debaixo do escoadouro sem água e não a conseguimos
enxergar. À medida que acrescentamos palavras ao nosso vocabulário
ativo, nos familiarizamos com uma realidade cada vez maior. A palavra ab-
solutamente indispensável que aprendemos na estaca zero é Deus. Apren-
demos a palavra “Deus” e adquirimos a capacidade de experimentar tudo
o que está além de nós como uma realidade com a qual podemos conectar-
nos e que nos seja pessoalmente agradável. Não aprendemos isso imedia-
tamente, repentinamente, absolutamente; há equívocos, superstições,
distorções e variações na imaginação, avanços e regressões. Mas aprende-
mos. Todos aprendem. “... pois o que de Deus se pode conhecer é manifes-
to entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo
os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm
sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas,
de forma que tais homens são indesculpáveis” (Rm 1:19-20). O desconhe-
cido suplanta o desconhecido. Aquilo que não conseguimos enxergar ex-
plica o que conseguimos enxergar. E esse mistério desconhecido e invisível
é intencional e pessoal: Deus.
Intencional. Pois há coerência, finalidade e planejamento anteriores à
minha experiência da vida.
Pessoal. Pois há algo ou outro que se conecta comigo e é maior do que
aquilo que sou: Deus é mais do que eu, não menos. Não apenas mais pode-
roso ou mais sábio, mas mais pessoa, mais do que o que quer que seja que
me torne capaz de pensar, crer, amar, esperar, confiar — todos esses gran-
des elementos invisíveis dos quais tomo consciência na estaca zero.
34 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Deus. Não há nenhum termo que por si só seja tão comum e tão indis-
pensável aos seres humanos. Não existe nenhum idioma no qual a palavra
não ocorra. Praticamente não existe nenhum momento em nossa vida em
que a palavra não figure de um modo ou de outro na busca de explicarmos
a nós mesmos e ao mundo ao redor de nós — seja negando, fazendo ressal-
vas, blasfemando ou adorando. Deus.
Nas teorias científicas e na filosofia, “o critério da simplicidade é funda-
mental”.2 Richard Swinburne é o professor da cátedra Nolloth de Religião
Cristã na Universidade de Oxford. Ele é hoje um de nossos mais impor-
tantes defensores da fé cristã. Uma tônica central de sua obra gira em tor-
no desse critério da simplicidade. O mundo, não importa de que ângulo
você o aborde, seja do científico, seja do religioso, é surpreendentemente
diversificado, com milhões de detalhes a serem explicados. Qualquer um
pode aparecer com uma teoria à la Rube Goldberg3 que explique por meio
do mais complicado maquinário mental algum aspecto do que está ocor-
rendo. A maior parte do trabalho filosófico consiste justamente nesse tipo
de monstruosidade intelectual. Mas a teoria mais convincente e mais útil é
justamente a mais simples: a teoria que emprega o vocabulário mais sim-
ples e o menor número de variáveis, dando-nos a certeza de encontrar os
mais variados fenômenos que constituem a evidência daquilo com que nos
deparamos. Swinburne escreveu uma trilogia que aplica esse critério da
simplicidade à palavra “Deus”.4 O que ele fez, praticamente, foi explicar
todo o material que nossos estudos científicos e filosóficos nos apresen-
tam, e explicá-lo com a simples profundidade de “Deus”. Ele nos levou de
volta às nossas primeiras introspecções e experiências fundamentais de
permanência do objeto.
2
Richard SWINBURNE. “The vocation of a natural theologian.” In: Kelly James CLARK, org.
Philosophers Who Believe. Downers Grove, IL: InterVarsity, 1993, p. 184.
3
Os desenhos do cartunista americano Rube Goldberg mostram máquinas absurdamente
conectadas, funcionando em extrema complexidade e jeitos difíceis de produzir um resultado
simples. Por essa razão, é associado a qualquer sistema tortuoso empregado na realização de
tarefas básicas. (N. do T.)
4
Os livros em ordem são: The Coherence of Theism [A coerência do teísmo], The Existence of
God [A existência de Deus] e Faith and Reason [Fé e razão].
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 35
II
Mas você perceberá que estou empregando o verbo “retornar”, e não o verbo
“trazer”. Estivemos lá uma vez, mas a verdade inescapável é que com cer-
teza não estamos mais.
A estaca zero é o lugar no qual percebemos que há um enorme mundo
que ainda não vimos, uma criação incrível que não podemos explicar, uma
realidade complexa que não é definida nem controlada pela experiência que
temos dela. Há mais — muito mais. Nossa experiência, conquanto sufi-
cientemente crível, não abrange tudo o que há. Há muito mais que não sa-
bemos do que o que sabemos. Somos envolvidos, para usar uma das
expressões clássicas de nossa tradição, numa “nuvem de ignorância”.
Há algo maravilhosamente encantador nisso, o senso de espaço e tem-
po, de mistério e beleza. Tornamo-nos exploradores, aventureiros, cava-
leiros errantes.
Mas há também algo seriamente decepcionante: a percepção de que não
estamos no centro do universo. Em estado infantil — e isso se aplica a nós,
não importando nossa idade cronológica —, temos a percepção de que
somos o centro de tudo. Nossas necessidades são mais importantes que tudo,
simplesmente tudo. Nossos apetites, nosso bem-estar, nosso conforto.
Somos como deuses e deusas, adorados, cultuados e servidos.
É quando chegamos à estaca zero e ficamos sabendo que precisamos
aguardar nossa vez, ou que nosso comportamento é muito desprezível e
precisamos ficar no quarto, ou que precisamos compartilhar nossos brin-
quedos com nossa irmã. Há muito mais acontecendo do que você e eu.
Experimentamos a finitude.
E não gostamos. Para qualquer pessoa que teve uma pequena prova da
glória como rainha soberana, como rei onipotente, é um considerável re-
vés ser tratado como uma criança chata e mal-educada. Para qualquer pes-
soa que adquiriu dinheiro suficiente para poder exigir e pagar por qualquer
36 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
5
Há no conceito uma alusão à bravura e à grandeza de Prometeu, o titã da mitologia grega que
roubou o fogo do Olimpo e o entregou aos homens, mostrando como utilizá-lo. Foi por esse
motivo que Zeus o castigou e o acorrentou no cimo do Cáucaso. (N. do T.)
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 37
III
Isso porque retornar à estaca zero é não somente retornar a uma percep-
ção de Deus, mas também a uma escuta do que Deus diz. Disse Deus. Você
escutou? Escutou?
Escutar está vinculado não apenas lexicalmente (akouo e hypakouo), mas
espiritualmente a obedecer, a corresponder. “O ato de o homem escutar
representa uma forma de corresponder à revelação da Palavra, e na reli-
gião bíblica é assim a forma fundamental em que se toma posse dessa re-
velação divina”.6
A linguagem é o meio primordial para desenvolvermos a “permanência
do objeto”. A descoberta de que há uma palavra “bola” para se referir àquele
objeto verde e felpudo que rolou para debaixo do escoadouro sem água é
uma chave para lidar com a realidade das “coisas invisíveis”. As palavras
comprovam a realidade e a singularidade das pessoas, das coisas e dos acon-
tecimentos que estão além do âmbito daquilo que experimento por meio
dos sentidos. À medida que desenvolvo facilidade com as palavras, meu
mundo se expande; não demora muito, e estou habitando séculos remo-
tos, lidando com continentes longínquos, travando conversas com homens
e mulheres nos cemitérios.
Assim, não surpreende que Deus, que é “infinitamente mais do que tudo
que pedimos ou pensamos”, trate conosco pelo instrumento da linguagem.
Deus fala. Para os cristãos, a espiritualidade fundamental não é somente
um substantivo, Deus, mas também um verbo, disse (ou diz).
6
G. KITTEL, org. Theological Dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1964,
vol. 1, p. 216.
38 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Meu objetivo neste exato momento não é fazer uma defesa disso — já
foi hábil e competentemente arrazoado e defendido por nossas melhores
mentes cristãs, algumas delas meus colegas aqui na Regent. Minha inten-
ção é simplesmente chamar sua atenção para o óbvio, o aceito, o básico:
quando voltamos à estaca zero, escutamos, pois Deus fala.
E precisamos mesmo ser lembrados. Pois, assim como a percepção do
mundo do Espírito que se centra na pessoa e no poder de Deus geralmente
resulta numa proliferação de espiritualidades que tentam tomar o lugar de
Deus ou usar Deus, também a aquisição da linguagem que permite respos-
ta e participação no mundo do Espírito resulta então em conversas espiri-
tuais que deixam Deus de lado.
A maior parte, embora certamente não a totalidade, das conversas es-
pirituais que estão sendo travadas dentro e fora das igrejas cristãs é desse
tipo. É não uma escuta de Deus; não uma resposta a Deus; não uma crença
na Palavra de Deus. É conversa fiada.
Às vezes, é uma conversa fiada muito instigante. Muitas vezes, uma con-
versa fiada fascinante. Mas é o nosso comentário sobre a nossa experiência
com o espiritual, não uma proclamação de como Deus se dirige a nós a
partir do mundo do Espírito. Damos testemunho, testificamos continua-
mente, mas o mais comum é falarmos de nós, não de Deus. Não é procla-
mação, que é a forma fundamental assumida pela linguagem acerca de
Deus, mas tagarelice e fofoca.
Depois de uma experiência assim, talvez você pensasse que deveria ha-
ver alguma revelação profunda para comunicar. Mas não; o que vem
40 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
depois não é diferente: a sabedoria convencional que Elifaz podia ter to-
mado de algum santuário babilônico ou templo egípcio.
Mais tarde, Elifaz tenta outra vez conferir autoridade espiritual a suas
banalidades batidas referindo-se ao que “vi” (15:17).
Jó não se impressiona. Não fica impressionado com o sobrenatural.
Ele quer Deus. E quer o Deus que fala; não quer ouvir Elifaz falar de sua
experiência com um fantasma. Não tem nenhum interesse nas histórias de
Elifaz sobre sussurros fantasmagóricos e sombras imprecisas no meio da
noite; quer ouvir Deus falar. A Palavra de Deus.
Quando Deus fala por meio de seus profetas, ele fala com clareza. Isaías
é totalmente claro: “... ouvi a voz do SENHOR conclamando: ‘Quem enviarei
[...] Vá e diga a este povo...’” (Is 6:8,9). Jeremias é totalmente claro: “A
palavra do SENHOR veio a mim dizendo: ‘Antes de formá-lo no ventre eu o
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 41
escolhi [...] Eu hoje dou a você autoridade sobre nações e reinos, para ar-
rancar, despedaçar, arruinar e destruir, para edificar e plantar’” (Jr 1:4-10).
Ezequiel é totalmente claro: “Ele me disse: ‘Filho do homem, fique em pé,
pois eu vou falar com você’. Enquanto ele falava, o Espírito entrou em mim
e me pôs em pé, e ouvi aquele que me falava. Ele disse: ‘Filho do homem,
vou enviá-lo aos israelitas, nação rebelde...’” (Ez 2:1-3). “Os profetas ex-
perimentavam a palavra em termos inequívocos; era colocada diretamen-
te na boca deles como um oráculo para proclamação pública”.7
E Elifaz é totalmente vago: “... uma palavra em segredo [...] um mur-
múrio [...] sonhos perturbadores [...] Um espírito roçou o meu rosto [...]
não pude identificá-lo. Um vulto [...] uma voz suave...” (4:12-16). “Para
Elifaz, a palavra penetra furtivamente pela porta dos fundos, indistinta e
esmaecida. Sua origem e seu autor são desconhecidos. É apenas identifica-
da como uma palavra, um som passageiro, um ruído na noite”.8
Esse tipo de coisa é a epidemia das espiritualidades de todos os tempos
e lugares. O bizarro, o enigmático, o pretensiosamente exótico. Não se quer
de forma alguma insinuar aqui que Elifaz seja uma fraude, que a experiên-
cia em si não é real. Mas nos é apresentada de tal forma que nos faz perce-
ber que não é significativa. Todos esses testemunhos de encontros com o
sobrenatural, descrições de estados místicos e elevados de consciência —
nada significativos. Todas essas técnicas que nos oferecem por meio das
quais podemos estar sintonizados com as vozes, sentir as vibrações, ouvir
as harmonias — nada significativas.
Não quero dar a ideia de que tudo isso é pura fraude e fantasia. As ex-
periências podem muito bem ser suficientemente reais. Não há nada em
Jó sugerir que insinue que Elifaz fosse uma fraude. Ele pode muito bem ter
tido essa experiência sobrenatural que lhe deixou todo arrepiado.
O que quero dizer é que não é significativa. Elifaz era a Shirley McLaine
da antiga Edom.
A espiritualidade cristã não fica impressionada com o sobrenatural.
7
Norman C. HABEL. The Book of Job. Philadelphia: Westminster Press, 1985, p. 126.
8
HABEL, op. cit., p. 127.
42 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
O sobrenatural não está nem aqui nem ali para aqueles de nós que esta-
mos posicionados na estaca zero, orientando-nos, aceitando nossa finitude
humana, recebendo lampejos da infinitude de Deus.
Somos imersos no mundo do Espírito, e então por que haveríamos de
desejar uma experiência espiritual? Mas essa experiência não confere a
autoridade ao nosso conselho nem ao nosso caráter. O retorno à estaca zero
não é somente um retorno a Deus, mas a disse Deus. Pois não somente
existe um Deus; existe também a Palavra de Deus.
A espiritualidade cristã não começa com o relato da nossa experiên-
cia; começa com o nosso ato de escutar Deus nos chamar, nos curar, nos
perdoar.
Isso é algo difícil de assimilar. Costumeiramente conversamos com nós
mesmos e sobre nós mesmos. Não escutamos. Se chegamos a escutar uns
aos outros é quase sempre com o objetivo de obter algo que possamos usar
quando chegar a nossa vez. Boa parte da nossa escuta consiste em mera
polidez, educadamente esperando nossa vez para conversar sobre nós mes-
mos. Mas em relação a Deus especificamente, precisamos quebrar o hábi-
to e deixar que ele fale conosco. Deus não somente é; Deus diz.
A espiritualidade cristã, além de ser uma espiritualidade atenta, é uma
espiritualidade que escuta.
IV
Algo extraordinário acontece quando retornamos à estaca zero, ao lugar
de adoração e escuta — uma maravilhosa infusão de energia em nosso in-
terior; uma descarga de adrenalina em nossa alma que se transforma em
obediência. A razão é que a palavra que Deus fala é o tipo de palavra que
faz as coisas acontecerem. Quando Deus fala, não é com o objetivo de nos
dar informações sobre economia, de modo que possamos saber como fa-
zer nosso planejamento financeiro. Quando Deus fala, não é como um car-
tomante, entrando em nosso futuro e matando nossa curiosidade a respeito
das nossas possibilidades no amor ou a respeito do cavalo no qual devemos
apostar. Não, quando Deus fala, não é para explicar todas as coisas para as
quais não conseguimos obter respostas de nossos pais, de livros ou da lei-
tura de folhas de chá. A Palavra de Deus não é, em essência, informação,
ou tagarelice, ou explicação. A Palavra de Deus faz as coisas acontecerem
44 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
pronto; e assim, quando Jesus emite a palavra de convite, nada menos que
a Palavra de Deus, Bartimeu na estaca zero é um foguete que acaba de ser
lançado.
Pois a estaca zero não é o lugar onde sentamos para decidir em debate
qual será nossa próxima ação. Não é um oásis de repouso do árduo e pe-
noso negócio da peregrinação. Não é um retorno à inércia quando a ativi-
dade nos parece demasiada. É o lugar para o qual retornamos, de modo
que nossa fé é iniciada por Deus, nosso discipulado é definido por Cristo,
nossa obediência recebe a infusão do Espírito.
Eugen Rosenstock-Huessy — a quem respeito, embora fosse totalmen-
te independente em sua forma de pensar, como um dos mestres mais ma-
ravilhosos em nosso século da espiritualidade da linguagem e da vida —
adotou como lema de sua vida: Respondeo etsi mutabor, “Atenderei, ainda
que eu seja mudado!”.9 Pois, quando retornamos à estaca zero, onde ouvi-
mos a Palavra de Deus, a obediência que se segue certamente mudará nos-
sa vida. O arrependimento e o comprometimento, a crença e a fidelidade
— todas as ações cheias de energia que são iniciadas na estaca zero não
seguem nos trilhos de nossos hábitos e rotinas voluntariosos, mas são trans-
formadores: levam-nos com Jesus a Jerusalém, à cruz e à ressurreição.
Nós avançamos na vida cristã tornando-nos mais competentes, mais
instruídos, mais virtuosos ou mais cheios de energia. Não avançamos na
vida cristã adquirindo conhecimentos especializados. Todos os dias, e mui-
tas vezes a cada dia, retornamos à estaca zero: disse Deus. Estamos sendo
constantemente “lançados de volta para o começo e sempre nos examinando
de novo”.10 Somos sempre iniciantes. Começamos de novo. Ouvimos Jesus
dizer: “a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais
entrarão no Reino dos céus” (Mt 18:3). E assim nos tornamos como crian-
cinhas. Retornamos à condição na qual começamos a desenvolver permanên-
cia do sujeito, disse Deus. Voltamos à estaca zero. Adoramos e escutamos.
9
Citado por Eugene ROSENSTOCK-HUESSY, org. Judaism Despite Christianity. University, AL:
University of Alabama Press, 1969, p. 4.
10
Karl BARTH. Church Dogmatics. Edinburgh: T. and T. Clark, 1936, vol. 6, p. 15.
46 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
A busca do espírito1
1
Publicado pela primeira vez na revista Christianity Today, 8 de nov. de 1993.
48 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Mais que isso ainda, existe uma enorme onda de reconhecimento a es-
palhar-se por toda a nossa cultura de que a vida como um todo é, em sua
essência, espiritual; que tudo o que vemos é formado e sustentado pelo que
não podemos ver. Os que fomos criados nos dias da Grande Depressão
Espiritual e nos habituamos a uma vida entenebrecida à sombra do racio-
nalismo presunçoso e da tecnologia intimidadora mal conseguimos acre-
ditar no que vemos e ouvimos. As pessoas ao redor de nós — vizinhos e
estranhos, ricos e pobres, comunistas e capitalistas — querem saber sobre
Deus. Fazem perguntas sobre significado e propósito, sobre certo e erra-
do, sobre céu e inferno.
Por vários anos, fui recrutado pela universidade do Estado, não muito
distante de onde eu morava, para dar a disciplina de Novo Testamento. A
disciplina tinha sido inserida na grade curricular do Departamento de Fi-
losofia e Religião quarenta anos antes por um professor cristão que dirigia
o departamento. Foi uma ação furtiva de sua parte, esperando garantir aos
estudantes universitários acesso ao Novo Testamento. Ele mesmo leciona-
va a disciplina a uns poucos alunos, nunca muitos. Depois disso, morreu. Já
naquela época, todos os professores do departamento eram ou ateus, ou mar-
xistas, e, como não havia ninguém para lecionar a disciplina, ficou inativa.
Em virtude da negligência dos ateus, continuou a figurar na ementa das
disciplinas do curso. Alguns alunos a descobriram e exigiram que fosse
oferecida. Os professores tiveram de sair à procura de alguém de fora de
suas fileiras para ministrá-la e encontraram um grande amigo meu. Quan-
do ele se transferiu, eles tentaram eliminá-la. Mas naquela época tinha se
tornado a disciplina mais popular do departamento. Com a força que tinha
a união de estudantes aqueles dias, outra vez tiveram de sair em busca de
um cristão para ministrar a disciplina, e foi aí que me acharam.
Esse tipo de coisa é cada vez mais comum hoje em dia — o interesse
espiritual ganhando força nos subterrâneos e irrompendo em contextos
inusitados e muitas vezes seculares. Da noite para o dia, ao que parece, a
situação se inverte: em vez de desenvolvermos métodos para despertar nas
pessoas o interesse por Deus, elas chamam a nós, agarrando-nos pelas
mangas e pedindo: “Queremos ver Jesus”. Obviamente, nem sempre (e nem
A BUSCA DO ESPÍRITO 49
mesmo com certa frequência) dizem Jesus. Mas estão fartas do mundo e
de sua vida do jeito que está, tendo o bom senso de perceber que mercado-
rias e serviços aprimorados não ajudarão.
É bem possível que estejamos vivendo um momento maravilhoso da
história, já que aquelas velhas fraudes — o mundo, a carne e o Diabo —
estão desacreditados pela própria cultura que eles quase destruíram. À me-
dida que assenta a poeira e o ar fica mais puro, vemos uma prontidão ge-
neralizada por corresponder ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
A espiritualidade nem sempre é identificada pelos termos que uso para
defini-la — a presença e a atividade de Deus, o Espírito —, mas a consciên-
cia está lá; a fome está lá.
Mas, então, mal se pode esperar que uma cultura tão completamente
secularizada quanto a nossa surja ela mesma com o remédio. Na maioria
dos casos, os americanos lançam mão de uma espiritualidade seculariza-
da, que não é espiritualidade nenhuma. Eles saqueiam culturas exóticas e
grupos esotéricos em busca da totalidade; mas sendo novos nisso e inexpe-
rientes, simplesmente não têm condições de discernir entre o verdadeiro e
o falso. A fraudulência corre solta. Nossos líderes, desconhecedores da
natureza humana, promovem pseudointimidades que desumanizam. Nos-
sas celebridades oferecem uma pseudotranscendência que banaliza.
2
O MBTI (Myers-Briggs Type Indicator) é um teste psicológico que busca identificar caracte-
rísticas e preferências pessoais. Foi desenvolvido durante a Segunda Guerra Mundial por
Katherine Cook Briggs e sua filha Isabel Briggs Myers, inspiradas que foram nas teorias de Carl
Jung sobre os tipos psicológicos. (N. do T.)
A BUSCA DO ESPÍRITO 53
Escritores e anjos:
testemunhas da transcendência1
1
Publicado pela primeira vez no periódico Theology Today, 5, n.o 3, 396-404, out. de 1994.
2
A Book of Angels. New York: Ballantine Books, 1990, e Angel Letters, 1991, de Sophy
Burnham, representam os muitos livros e cartas de anjos que vêm sendo publicados nos últi-
mos anos. [As duas obras foram publicadas no Brasil pela Bertrand Brasil, sob os títulos, respec-
tivamente: O livro dos anjos: reflexões sobre anjos, passado e presente e histórias verdadeiras
de como influenciam nossas vidas (1992), traduzido por Ana Maria Alves Sarda, e Cartas dos
anjos (1993), traduzido por Jacqueline Klimeck Gouvea Gama.]
60 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
3
Há várias traduções para o português. (N. do E.)
62 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
não lidarei com eles como um todo. Somente quero ressaltar com prazer
essa afinidade que há entre escritores e anjos no que se refere ao desejo de
chamar nossa atenção para a presença divina.
4
A Prayer for Owen Meany. New York: William Morrow, 1989.
5
Idem, p. 13.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 63
6
Idem, p. 99.
7
Idem.
64 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
8
Idem, p. 102.
9
Idem, p. 134.
10
Idem, p. 131.
11
A Prayer for Owen Meany [Uma oração por Owen Meany]. (N. do T.)
12
IRVING, A Prayer for Owen Meany, cit., p. 542.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 65
ANJOS REBELDES
Perto do fim do romance de Robertson Davies What’s Bred in the Bone
[Filho de peixe...],13 há uma conversa entre dois anjos da história, Zadkiel,
o anjo menor, e o demônio Maimás, os quais, invisivelmente, lá no plano
de fundo, estavam presentes por toda a história supervisionando o destino
da personagem principal, Francis Cornish. Quando Cornish morre, os an-
jos relembram a tarefa de que foram incumbidos por toda a vida daquele
homem. Em meio a essas reminiscências, o demônio Maimás diz: “Natu-
ralmente, eu e você sabemos que tudo não passa de uma metáfora. Na ver-
dade, nós mesmos somos metáforas”.14
Dizer que um anjo é uma metáfora não diz nada em uma ou outra dire-
ção sobre a realidade dos anjos como tais. A metáfora é um dos meios
fundamentais pelos quais a linguagem lida com o que não é visto e ainda
assim é real. Se dizemos, como os salmistas muitas vezes disseram, que
Deus é uma rocha, e que na frase “rocha” não se refere a um ídolo, mas é
uma metáfora para Deus, em nenhum momento se está querendo dizer com
isso que a rocha não exista por conta própria. Os anjos como metáforas
fornecem um meio para conferirmos sentido às energias e forças difíceis
de compreender e para as quais os termos abstratos parecem fracos e
insatisfatórios. E são os anjos como metáforas que nos permitem criar his-
tórias a partir dessas mesmas energias e forças fugidias.
Num romance anterior, Os anjos rebeldes,15 no qual Francis Cornish
também teve uma participação, o escritor trabalhou a partir da outra dire-
ção — usou os seres humanos como metáforas para os anjos. Dois acadê-
micos, Simon Darcourt e Clem Hollier, professores da Faculdade de João
e do Espírito (“Fantasma” para seus residentes) Santo, precisam represen-
tar os anjos rebeldes Samahazai e Azazel.
Num antigo mito gnóstico, os anjos Samahazai e Azazel traíram os segre-
dos do céu para o rei Salomão — contaram-lhe tudo o que podia ser contado
13
New York: Viking Press, 1985.
14
DAVIES, op. cit., p. 435.
15
Robertson DAVIES. The Rebel Angels. New York: Viking Press, 1981. [Publicado no Brasil em
2000 pela Ediouro, sob o título Os anjos rebeldes, traduzido por Ângela Lobo de Andrade.]
66 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
sobre tudo o que existia. Deus, como era apropriado fazer, expulsou-os do
céu. “Mas será que eles vaguearam, deprimidos, conspirando vingança? Não
eles! Eles não eram egotistas rancorosos e vingativos como Lúcifer. Em vez
disso, deram outro empurrão para a humanidade escada acima, vieram à
terra e ensinaram línguas, cura, leis e higiene — ensinaram de tudo...”.16
Um dos resultados disso que chama nossa atenção é a universidade. A
vida colorida e cheia de energia do aprendizado, da pesquisa e do ensino
recebe pleno desenvolvimento no cenário universitário da história. Mas é
tudo, menos uma glorificação do aprendizado e do conhecimento em si,
pois o mal se manifesta aqui de maneira ainda mais poderosa. A maioria
das pessoas que habitam uma instituição de aprendizado, seja como pro-
fessores, seja como alunos, ingenuamente supõe muitas vezes que o inimi-
go é a Ignorância ou a Estupidez. Davies mostra-nos que é o Mal.
Os anjos, lembre-se, são anjos rebeldes. O aprendizado e o saber são bons
e verdadeiros, mas, dissociados da presença e vontade de Deus, dão ori-
gem ao mal. Um conhecimento transmitido por um anjo, ou seja, um
conhecimento que nasce na mente de Deus, arruinou o rei Salomão e pode
nos arruinar também. O conhecimento é uma dimensão da espiritualida-
de e tem qualidades morais. Não é neutro. A pessoa mais brilhante e ver-
sada do romance (John Parlabane), que também mais fala sobre Deus, é a
mais perversa. Os dois professores, cada um de uma maneira bem dife-
rente, titubeiam nos limites da maldade, mas recuperam seu equilíbrio antes
de a história chegar ao fim.
Fazem isso em relação à Sofia, outra figura da mitologia gnóstica. Ma-
ria Madalena Theotoki, aluna dos dois professores, torna-se uma metáfo-
ra de Sofia, a personificação feminina da Sabedoria, uma figura que
acompanha a Deus na criação do universo. Seu nome combina os dois ele-
mentos da Sofia: Maria Madalena, a Maria de quem Jesus expulsou sete
demônios (e, segundo reza a lenda, uma prostituta), e Maria, a mãe vir-
gem de Jesus (“Theotoky” é a palavra grega que significa “aquela que dá à
luz Deus). Um dos professores reflete sobre o mito gnóstico da seguinte
16
DAVIES, op. cit., p. 257.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 67
forma: “... Qualquer pessoa que se interesse pelas muitas lendas de Sofia
sabe sobre a ‘Sofia caída’ que se revestiu da carne mortal e afundou pelo
menos até o ponto de se tornar uma prostituta num bordel de Tiro, de onde
ela foi resgatada pelo gnóstico Simão, o Mago. Eu mesmo penso nisso como
a Paixão de Sofia, pois ela não se fez carne e não sofreu um destino vergonho-
so pela redenção da humanidade? Foi isso que levou os gnósticos a saudá-la
tanto como Sabedoria quanto como a anima mundi, a Alma do Mundo,
que exige redenção e, para alcançá-la, desperta desejos”.17
Maria, como metáfora de Sofia, está em busca do aprendizado na uni-
versidade a cada dia; ela também vai para casa a cada noite para sua mãe e
tia ciganas, que estão repletas do velho legado de feitiços, encantamentos
e magias. Quando, sob a instrução de seus dois professores (seus anjos re-
beldes), ela integra o aprendizado de sua universidade moderna à
terrenalidade medieval da religião e da sexualidade imposta pela mãe e pela
tia, mostra o caminho rumo à bondade e à sabedoria.
Como escritor, Davies mostra que quando não conseguimos lidar com
os dois nomes de Maria, Maria Madalena e Maria, a Mãe Virgem, a vida
passa a ser perversa. Os dois professores são “anjos rebeldes”, de maneiras
muito diferentes, aprendem a lidar com ambos e chegam a um tipo de
humildade restauradora.
Dois outros, John Parlabane e Urquhart McVarish, não conseguem. São
também anjos rebeldes, mas por se recusarem a lidar seriamente com
Maria/Sofia, perdem a credibilidade mesmo como metáforas. Eles a ridi-
cularizam e dela escarnecem e, ao agirem dessa forma, tornam-se comple-
tamente maus. Não é fácil para um escritor oferecer uma apresentação
convincente de uma pessoa má que não se agarre aos holofotes, toman-
do-os para si, o que suscita nossa admiração. Uma das queixas mais
comumente lançadas contra Milton é que ele conseguiu tornar Lúcifer e
os Anjos Caídos mais interessantes que Deus e os Anjos Bons. Fazendo um
uso magistral do mito dos anjos rebeldes, Davies consegue apresentar es-
ses dois homens maus de tal modo que ficamos interessados o suficiente
17
DAVIES, The Rebel Angels, cit., p. 236.
68 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
para querer continuar lendo sobre eles, percebendo o tempo todo que sua
maldade é um completo enfado. Nem toda transcendência é gloriosa. A
transcendência maligna nem mesmo é interessante.
A BELEZA DA BONDADE
É tão difícil fornecer um testemunho exato da bondade quanto o é da
maldade. Outra vez, o transcendente precisa ser transmitido. Se não há
nenhuma transcendência, acabamos com mera gentileza, ou falsa piedade,
ou alguma variação da observância estoica e inflexível do decoro. É raro
encontrar uma personagem “boa” num romance ou poema que seja atraen-
te e realmente interessante. A maioria delas aparece nas páginas como bons
samaritanos insípidos. Nossa experiência cotidiana é tão deficiente quanto
a verdadeira bondade, que falta a nossa imaginação a matéria-prima para
identificá-la.
De tempos em tempos, porém, surge um escritor que nos mostra a be-
leza flamejante e estonteante da bondade, mostra que em nada se rela-
ciona com ser gentil, ou cumprir regras, ou evitar os pântanos morais.
C. S. Lewis destaca-se entre esses.
Em sua trilogia espacial Longe do planeta silencioso, Perelandra e That
Hideous Strength [Essa força hedionda], Lewis reconta a história cristã do
conflito entre o bem e o mal na forma de uma fantasia espacial cujo cená-
rio é sucessivamente Marte (Malacandra), Vênus (Perelandra) e a Terra (Thul-
candra). Não há como não dispensar muita atenção ao mal; mas o que
ressalta maravilhosamente é o retrato da bondade, sobretudo em Perelan-
dra,18 que é uma recontagem da história da tentação do Éden na qual não
há nenhuma Queda. No planeta Perelandra (Vênus), Lewis mostra-nos um
espelho invertido de Thulcandra (a Terra). Vênus é um planeta em que a bon-
dade está esmagadoramente presente, com o mal fazendo todo o possível
para garantir uma base de operações, ao contrário da Terra, onde o mal está
esmagadoramente presente e a bondade tenta se impor a grande custo.
18
New York: Collier Books, 1962. [Publicado no Brasil pela Editora Betânia, sob o mesmo
título.]
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 69
19
LEWIS, op. cit., p. 9.
20
LEWIS, Perelandra, cit., p. 11.
70 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
21
C. S. LEWIS. Out of the Silent Planet. New York: Collier Books, 1962. p. 76. [Publicado no
Brasil pela Editora Betânia, sob o título Longe do planeta silencioso.]
22
Idem, p. 35.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 71
23
Idem, p. 37.
24
Reynolds PRICE. The Tongues of Angels. New York: Atheneum, 1990.
72 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
acampamento, Rafael (“Rafa”), nome que sua mãe lhe deu por causa do
pintor, mas no transcurso da história é visto cada vez mais sob a égide
do arcanjo.
A imaginação e a perspectiva artística fornecem os dados para o desen-
volvimento da trama e da personagem. O artista/conselheiro/narrador diz:
“Toda a minha vida [...] estive fascinado pela concepção quase mundial a
respeito dos anjos. A palavra em nosso idioma vem do grego angelos, e
angelos traduz a palavra hebraica que significa mensageiro. Assim, um anjo,
no sentido sagrado, é um mensageiro do e para o centro divino. Como por
anos eu estivera seguro de que meu trabalho [como artista] proviera desse
centro tão supremamente poderoso de conhecimento, tratei de manter um
caderno de esboços dedicado a ele. Em momentos especiais [...] tentava
registrar rapidamente e com o mínimo de premeditação um palpite de como
seria o rosto de um mensageiro angélico. Não que eu realmente pensasse
que eles têm rosto. Estava dando minha contribuição à sucessão de supo-
sições que iam do glorioso ao tolo e que abrangiam desde pelo menos a
arca da aliança até chegar àqueles americanos primitivos que até hoje re-
tratam a mensagem flamejante e o mensageiro por meio de quem ela che-
ga à mente deles e lhes guia as mãos”.25
Uma de suas tarefas no acampamento de verão é conduzir uma aula de
desenho para os acampantes. Ele mesmo quer viver da arte (e de fato se
torna um artista de profissão), mas é durante esse verão que seu desejo
se solidifica transformando-se numa convicção: “... Fiz um voto de gastar
toda a minha vida, se o destino concordasse, usando o único bloco real de
capital que eu sabia ter recebido. E era, naturalmente, a minha velha ne-
cessidade de observar aquelas partes do mundo que me fascinavam, de-
pois copiá-las para outras pessoas menos pacientes ou com olhos menos
afortunados”.26
A paixão que tinha ao ensinar seus meninos a desenhar era ensinar-lhes
a observar, realmente ver. “Se ensinei alguma coisa [...] espero que tenha
25
PRICE, op. cit., p. 127-128.
26
PRICE, The Tongues of Angels, cit., p. 244.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 73
27
Idem, p. 103.
28
Idem, p. 138.
29
Idem, p. 229.
capítulo 5
1
Publicado pela primeira vez em Theology, News and Notes, out. de 1993.
76 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
bons aliados numa vida de adoração, oração e amor a Deus. Falar sobre Deus
é quase a antítese de falar com Deus. Ainda que se empreguem as mesmas
palavras na conversa, não são a mesma coisa de forma alguma.
Mas, se o seminário não é um lugar adequado para a formação espiritual,
tampouco o é qualquer outro lugar no qual eu tenha convivido. Não achei
que fosse melhor na congregação, em casa, no centro de retiros ou na praia.
Ainda não tentei o mosteiro (eles não me deixariam levar minha esposa), mas
tenho bons amigos que tentaram, e eles me relatam condições semelhantes.
Não apenas isso, sempre deparo com homens e mulheres santos nos se-
minários, na forma de professores, alunos e funcionários. De forma algu-
ma, são mais frequentes nos seminários, mas tampouco menos frequentes,
com toda a certeza, do que em outros lugares em que eu tenha vivido ou
realizado meu trabalho. Se o seminário em si não é terra santa, também
não impede que de tempos em tempos algumas sarças ou arbustos incen-
deiem nem que se suscitem respostas santas. “Seminário Teológico de
Midiã” não seria uma designação genérica imprecisa para nossas escolas
de teologia.
A espiritualidade, ao que parece, não depende de lugares ou cursos. Passei
meus anos de formação profissional no açougue de meu pai, separando
lombos de porco e moendo carne para hambúrguer. Foi onde aprendi boa
parte da espiritualidade que venho desenvolvendo desde então. Foi
suplementada, naturalmente — desafiada, corrigida, redirecionada, desen-
volvida, desviada, abandonada e depois retomada outra vez. Mas isso, jun-
to com as orações e a presença de minha mãe, fornecem a matéria-prima
com a qual o Espírito Santo vem trabalhando desde então. Levei muito
tempo para reconhecer esse fato relativamente simples e óbvio. Mas, quan-
do o reconheci, parei de esperar que as pessoas ou as instituições forneces-
sem para mim o que já estava guardado no meu quintal.
E, a partir do momento desse reconhecimento, fui liberto de muita
murmuração e queixume no deserto.
Acontece o mesmo com todos nós. O seminário não fornece o material
da formação espiritual, mas uma circunstância em particular em que a
formação acontece por um período de tempo relativamente curto.
78 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
E agora vem a parte difícil. Pois, por mais que o seminário esteja cons-
tituído para honrar, preservar e explicar o Logos, as palavras que são em-
pregadas não são o Logos em si, mas logoi a respeito do Logos, palavras
humanas a respeito da Palavra divina. E, como há tantas dessas palavras,
tantos logoi, elas às vezes ameaçam eclipsar o próprio Logos. E não apenas
ameaçam, mas muitas vezes, sem dúvida alguma, o eclipsam. E, como es-
sas palavras sobre a Palavra não são geradoras de vida — não criam, não
salvam, não santificam —, da mesma maneira fundamental e original em
que a Palavra é, aqueles de nós que as proferem e ouvem ficam esmaga-
dos, sobrecarregados pelas mesmas palavras (e por aqueles que as profe-
rem e escrevem) que, pensavam, iam salvá-los.
Lança-se o clamor para que o seminário se torne mais intencional quanto
à espiritualidade e à formação espiritual. São feitas solicitações, às vezes
sob a forma de exigências, que a espiritualidade faça parte da grade curri-
cular com o mesmo grau de importância que a exegese hebraica e a teolo-
gia histórica. Por mais que as solicitações sejam feitas, quer de forma
estridente quer de forma branda, elas nunca parecem obter grandes resul-
tados. Uma disciplina acrescentada aqui e ali, uma omissão formada para
acompanhar e fazer relatórios depois de alguns meses, um questionário dis-
tribuído entre os alunos. Mas todas essas e outras tentativas de solucionar
o problema ou realizar uma reforma não deixam de levar em conta a natu-
reza de um seminário, as circunstâncias e os caminhos da espiritualidade.
Os sentimentos de traição e frustração são compreensíveis, mas não há
remédio. Ou ao menos não um remédio externo, imposto.
Antes, o remédio encontra-se inerente na natureza do próprio seminá-
rio, a saber, como lugar da Palavra e das palavras, do Logos e das logoi.
80 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
2
Conforme Philokalia. London: Faber and Faber, 1979, vol. 1. [V. tb., publicado no Brasil pela
Paulus, Pequena Filocalia — o livro clássico da Igreja oriental (Coleção “Oração dos Pobres”).]
1
Estudos bíblicos
capítulo 6
O tronco santo1
Na adolescência, uma das visões que enchiam minha mente com brilho,
cor e esplendor era a Revolução Francesa. Na realidade, eu sabia muito
pouco sobre ela. Algumas vagas impressões, episódios e nomes mistu-
ravam-se de modo fortuito em minha mente para produzir um drama de
puro romance, animação e triunfo. Acho que talvez eu teria usado a pala-
vra “santo” para sintetizá-la: algo espiritualmente flamejante, fantasioso e
esplêndido.
Eu tinha esse quadro na mente de homens e mulheres idealistas e dedi-
cados, em cujos lábios ressoava a declaração de Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, os quais marchavam por um mundo pecaminoso e corrupto
a purificá-lo com suas ideias e ações justas. Nomes como Marat, Robes-
pierre e Oanton soavam em meus ouvidos uma nota de justiça. Os perver-
sos calabouços da Bastilha eram sombras profundas contra as quais ardia
em pureza o fogo da libertação. O heroísmo e a vilania estavam em conflito
apocalíptico. A guilhotina era um instrumento do Juízo Final, separando
as ovelhas dos bodes. Assim, minha imaginação, sem se perturbar com os
fatos, punha em funcionamento uma maravilhosa fantasia da esplêndida
Revolução Francesa.
Quando cheguei à faculdade e folheei o catálogo de cursos, fiquei en-
cantado de encontrar na lista um curso sobre a Revolução Francesa. Tive
de esperar um ano para cursá-lo, já que os alunos de primeiro ano não eram
aceitos, mas isso só fez aumentar meu apetite. E assim, quando retornei
1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux, 32, n.o 3, set. de 1996.
86 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
para cursar meu segundo ano, a primeira coisa que fiz foi matricular-me
no curso.
A aula foi uma das maiores decepções de meus anos de faculdade.
Tinha chegado ao curso com o tipo de expectativa elevada que os adoles-
centes geralmente têm em relação aos empreendimentos da vida adulta,
mas não aconteceu nada do que eu esperava.
A professora era uma mulher idosa e franzina, com um cabelo grisalho,
ralinho e delicado. Ela usava roupas de seda preta, deselegantes, e falava
com monotonia e timidez. Era uma pessoa maravilhosa e muito simpática,
além de academicamente bem preparada em sua área, que era a da histó-
ria europeia. Mas, como professora da Revolução Francesa, era um desas-
tre. Sabia tudo sobre os franceses, mas nada sobre revolução.
Eu, de minha parte, não sabia praticamente nada sobre o assunto, e aque-
les poucos fatos que eu detinha estavam quase todos errados. O que eu
tinha, aliás, era uma vasta ignorância sobre o negócio inteiro. Mas de uma
coisa eu estava certo: tinha sido uma revolução. As revoluções viram coisas
às avessas e de ponta-cabeça. As revoluções são lutas titânicas entre vonta-
des antagônicas. As revoluções incitam o desejo de uma vida melhor de
liberdade, prometem uma vida melhor de liberdade. Às vezes, elas se saem
bem em suas promessas e libertam as pessoas. Geralmente, porém, não é
o que acontece. Mas depois de uma revolução nada fica do mesmo jeito.
Mas naquela sala de aula, dia após dia, ninguém jamais teria conheci-
mento disso. O malfadado Marat, a assassina Charlotte Corday, a escura
Bastilha, a sangrenta guilhotina, o corrupto e oportunista Danton, a irre-
fletida Maria Antonieta, o obstinado Luís XVI — todas as personagens e
todos os contrarregras daquela era colorida e violenta eram apresentados
com a mesma voz piedosa, cansada e impassível. Nas aulas dela, todos pa-
reciam iguais. Todos eram apresentados como espécimes meticulosamen-
te catalogados, como borboletas num quadro onde se depositara mais de
uma década de pó.
Muito tempo ainda depois daquilo, a Revolução Francesa me parecia
uma enorme chatice. Bastava alguém proferir as palavras “Revolução Fran-
cesa”, e eu bocejava.
O TRONCO SANTO 87
2
“God’s Grandeur.” In: W. H. GARDNER, org. Poems and Prose of Gerard Manley Hopkins.
Baltimore: Penguin Books, 1953, p. 27.
O TRONCO SANTO 89
É nesse momento que, sem aviso, ele se viu imerso no Santo: o santo
anjo de Deus flamejando de uma sarça em chamas. Moisés é chamado pelo
nome: “Moisés, Moisés!”. Moisés responde: “Eis-me aqui”. Moisés é cha-
mado a adorar: “Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é
terra santa” (Êx 3:5). Moisés é chamado por Deus e recebe uma obra para
realizar (Êx 3:1-12).
Anjo santo, terra santa, Deus santo, palavra santa que forma um povo
santo e delineia uma história santa. E tudo isso, dentre todos os lugares
possíveis, justamente em Midiã.
João foi surpreendido pelo santo na ilha prisional de Patmos, um lugar
tão estéril e inóspito quanto Midiã. E João, assim como Moisés em Midiã,
estava lá em exílio. Naquele lugar de rejeição e severidade, ele recebeu uma
visão santa. Em lugar da sarça em chamas de Moisés, João recebeu a Jesus
flamejante com o santo e proferindo as palavras que o Espírito Santo usou
para formar um povo santo, fiel e persistente em tempos ímpios.
A palavra “santo” (hagios), seja como substantivo, seja como adjetivo,
ocorre 26 vezes no Apocalipse de João. Podemos extrair várias coisas des-
se último livro de nossas Escrituras, mas sabemos com toda a certeza que
estamos diante de algo enorme, de grande força e vigor, germinando bên-
ção, salvação e a glória de Deus: santo, santo, santo.
Agora temos um contexto apropriado para a visão de Isaías: Moisés em
Midiã, de um lado, e João em Patmos, de outro, com Isaías no centro, na
igreja — no santuário. Precisamos de toda a Escritura, de toda a história,
de toda a experiência, para termos um horizonte grande o suficiente para
acolher o santo. O santo não pode ser pressionado e enfiado numa caixa
de sapato. O santo não pode ser percebido por meio de um vigia.
Uma vez, no verão, Jan e eu estávamos numa trilha nas montanhas Ro-
chosas de Montana. Era um dia frio, úmido e sombrio — um dia não mui-
to bom para trilhas nas montanhas. Mas fazia semanas que estava chuvoso,
úmido e frio, e queríamos respirar, ainda que fosse ar frio e úmido. Já vínha-
mos por algumas horas nos arrastando pela trilha em meio a pés frondo-
sos de abeto Engleman e de pseudotsugas, quando de repente demos num
declive que tinha sido queimado num imenso incêndio florestal ocorrido
O TRONCO SANTO 91
Isaías é uma presença grandiosa na vida dos que vivemos por fé, que
nos submetemos e nos deixamos moldar pela Palavra de Deus, mantendo-
nos atentos ao santo. Sabemos muito pouco sobre Isaías. É sempre espan-
toso, não é mesmo, que sejamos tão influenciados por alguém que mal
conhecemos? Mas, uma vez que a vida esteja saturada do Santo, do Deus
Vivo, não precisa muita coisa. O que mais sabemos sobre ele é que era um
grande pregador e que foi atraído e formado pela santidade de Deus, o Santo.
“O Santo de Israel” é o título que Isaías emprega de modo especial em re-
lação a Deus.3
Seu próprio nome era um sermão. Isaías: “Javé é salvação”. Você não
adoraria ter um nome assim?
— Qual é seu nome?
3
J. A. MOTYER, The Prophecy of Isaiah. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1993, p. 77.
92 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
— Javé é salvação.
Toda vez que você fosse se apresentar a alguém, o evangelho seria pre-
gado. Por todos os seus anos letivos, toda vez que o professor o chamasse
na sala de aula, o evangelho seria proclamado. Toda vez que alguém o cum-
primentasse na rua, a palavra de Deus seria anunciada. Os ateus nem po-
deriam chamá-lo sem pregarem um minissermão. Em que nossos pais
estavam pensando quando escolheram nossos nomes? Eugene... Beatriz...
Walter... Hélio... Caroline... Onde está o evangelho em nomes como es-
ses? Por que não nos deram nomes que fossem passagens de pregação?
Ao escolher o nome de seus filhos, Isaías deu continuidade à tradição
de dar nomes que eram “textos de sermão”. Ele teve três filhos, e o nome
de cada um deles funcionava também como texto de sermão. Quando ele
ia entregar um sermão, em vez de levar consigo uma Bíblia, pegava um dos
meninos pela mão, esses meninos cujos nomes eram textos de sermão: Sear-
Jasube, Emanuel e Maher-Shalal-Hash-Baz.
Havia variedade suficiente nos nomes-texto de Isaías para se adequar
às ocasiões que exigiam a pregação de um sermão. Quando ele saía com a
tarefa de pregar, em vez de arrastar com dificuldade um rolo da Torá, sim-
plesmente pegava um de seus filhos pela mão e o levava consigo.
Uma das tarefas mais importantes que Isaías recebeu e da qual temos
conhecimento com alguns detalhes foi pregar para o rei Acaz. Acaz era um
rei especialmente obtuso e incrédulo que insistia em lidar com os assírios
poderosos e altamente ostensivos em vez de lidar com Deus. Isaías nunca
conseguiu que ele desse ouvidos a sua mensagem. (Mas é interessante que
os sermões para os quais Acaz fez ouvidos moucos penetraram milhões de
pessoas ao longo dos séculos seguintes.) Todos os três filhos tiveram sua
aparição diante de Acaz como textos de sermão.
Sear-Jasube — não fique agitado; tenha esperança. Tudo vai sair bem.
Não é você que está no controle aqui, é Deus quem está; e ele garantirá
que sempre haja alguns poucos fiéis para experimentar sua graça e cum-
prir seus mandamentos. Viva de modo confiante.
Emanuel — não se deixe intimidar pelas circunstâncias; confie. Deus
está bem aqui conosco. Quando tudo está desmoronando ao redor, Deus não
O TRONCO SANTO 93
está desmoronando. Deus, e não seu padrão de vida, é a realidade que de-
termina sua vida. Viva corajosamente. 4
Maher-Shalal-Hash-Baz — não seja convencido, supondo que possa
controlar o mundo com seu grande talento; arrependa-se. O mundo como
você o construiu vai ruir. Viva humildemente.
O segundo nome, Emanuel, ganhou vida própria (8:8 e 10) e ecoou atra-
vés dos séculos até encontrar sua exposição definitiva e completa em Jesus
(Mt 1:23). O texto de sermão de uma só palavra de Isaías continua a ofe-
recer introspecções e dar testemunho da santa presença de Deus em cir-
cunstâncias improváveis e, ao que tudo indica, ímpias.
Mas a história de Isaías não começa com sua pregação, e sim com sua
oração — e com o Santo. O contexto da história é apresentado em Isaías 6
com a seguinte introdução: “No ano em que o rei Uzias morreu...”.
Esse simples segmento de frase põe a experiência que Isaías tem do santo
num cenário semelhante ao de Moisés e João, o que significa dizer uma
época desfavorável, improvável, um tempo longe de se harmonizar com o
nosso ideal de vida abundante — Jerusalém sob o reinado de Uzias.
Uzias foi rei por 52 anos em Jerusalém (2Cr 26). Foi um bom rei se-
gundo todas as informações — subjugou os filisteus, criou um forte siste-
ma de defesa, desenvolveu o país e aprendeu com seu pastor, Zacarias, o
temor do Senhor: “Ele foi tremendamente ajudado, e assim tornou-se muito
poderoso e a sua fama espalhou-se para longe” (2Cr 26:15).
Foi então que fez algo terrível: profanou o santo templo. Arrogantemente,
entrou no templo e assumiu seu controle em benefício próprio. Decidiu
tomar conta de sua própria espiritualidade, administrar sua própria reli-
gião, fazer Deus atender a seus caprichos. Foi para o santo altar de incen-
so, tirou o sacerdote de seu caminho e continuou a tocar as coisas segundo
4
Não há consenso de que Emanuel fosse um dos filhos de Isaías. Elmer Dyck, numa exegese
cuidadosa, sustenta que Emanuel e Maher-Shalal-Hash-Baz são o mesmo filho. Mas ainda
considera que há dois filhos com nomes-“texto”. Calvino, representando a maioria, interpreta
o nome como uma referência direta e exclusiva a Jesus. V., de Elmer Dyck, org., The Act of
Bible Reading. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1996, p. 45-64.
94 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Foi assim que aconteceu com Isaías; preste bem atenção, pois é como
também acontece conosco.
Em primeiro lugar, existe um senso esmagador de precariedade, de pe-
cado, de falta de merecimento: “... Ai de mim! Estou perdido! Pois sou um
homem de lábios impuros e vivo no meio de um povo de lábios impuros”
(Is 6:5). Se conseguimos nos isolar do Santo e viver em harmonia com o
nosso entorno, fica fácil supor que nossa vida vá muito bem, obrigado. Mas
medir nossa vida pelos padrões estabelecidos por nossos cães, gatos e vi-
zinhos é lamentável. Preciso do Santo para perceber minha impiedade. Esse
excesso de vida me leva a perceber meu déficit de vida. Estamos perdidos
desde que saímos do Éden, vagueando pelo mundo, procurando nosso lar
e, enquanto essa busca se desenrola, sujando-nos muito.
Em segundo lugar, há misericórdia e perdão. Há purificação. Nossos
lábios são tocados com fogo purificador (6:6-7). É nossa necessidade bási-
ca, fundamental, mais premente. Sem o Santo, achamos que podemos
melhorar nossa vida simplesmente avançando — obtendo um pouco disso
e depois daquilo. Mas, como uma flecha lançada sob péssima pontaria,
quanto mais longe seguimos, mais erramos o alvo. Essa orientação na di-
reção errada não é um lapso fortuito; denunciamo-nos toda vez que fala-
mos. O pecado e a impureza se manifestam assim que abrimos a boca,
sempre que abrimos a boca, mesmo em nossas conversas mais polidas e
decorosas. Mas o primeiro interesse de Deus em nós é para consertar exa-
tamente isso: o anjo, a testemunha flamejante da santidade de Deus, quei-
ma as impurezas, o pecado em nossos lábios. O interesse primordial de Deus
em nós não é para nos condenar, mas para nos perdoar. “Pois Deus enviou
o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fos-
se salvo por meio dele” (Jo 3:17). Aceitação, não rejeição. A santidade não
mais fora de nós, mas dentro de nós. Se não permanecemos perto do San-
to tempo o bastante para primeiro perceber e depois experimentar aquela
brasa viva em nossos lábios, passaremos a vida em trágica ignorância a
respeito de Deus e de seus caminhos.
Em terceiro lugar, a palavra de Deus é proferida: “Quem enviarei?” (6:8).
Deus fala em contornos vocacionais; há uma obra a realizar. Santidade
98 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Esse contexto e esses quatro elementos são normativos, algo a que to-
dos precisamos acolher e ficar atentos. Mas há mais uma coisa na ex-
periência de Isaías que não é necessariamente normativa, mas acontece com
tamanha frequência, que precisa ser mencionada.
100 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Todos nós sabemos como isso depois se cumpriu: para encurtar a histó-
ria, Jesus. E assim cantamos com alegria e gratidão os louvores de nosso
Senhor santo. Por mais que cantemos esses louvores alto e bom som, cheios
5
George Adam SMITH. The Book of Isaiah. London: Hodder and Stoughton, 1889, vol. 1, p. 117.
102 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
1
Publicado pela primeira vez no periódico Lectionary Homiletics, vol. 3, n.º 3, 1992.
106 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
ouvidos e olhos, coração e mente, rins e pés — todos esses órgãos da re-
ceptividade e da resposta humana, a maioria dos quais parece na maior parte
do tempo estar funcionando mal, por uma ou outra razão. Achamo-nos
em meio àquilo que nossos antepassados costumavam designar teologia
ascética, a sabedoria/conhecimento envolvida na preparação, cultivo e
correção de nossa condição humana para que possa apresentar uma res-
posta satisfatória diante da revelação de Deus.
Jeremias era um bom teólogo ascético. Dispensou tanta atenção aos
detalhes da recepção humana quanto à boa notícia da revelação divina. Nos
versículos 5 a 10 do capítulo 17, ele lida com as formas de vida que ditam
— bem, talvez não ditem, mas influenciem fortemente — o que vemos e
ouvimos da revelação divina. A suposição que se faz aqui é que o tipo de
vida que levamos, quem somos, não apenas o que fazemos, é um fato im-
portantíssimo a influenciar nosso acesso à verdade, qualquer verdade, mas
especialmente a verdade que é Deus. Se interpretarmos passagens como
essa da perspectiva moral, ticando os elementos de um cartão de pontua-
ção comportamental, perderemos o alvo. Não é uma questão de compor-
tamento moral, mas teologia, teologia ascética.
Essa é a grande verdade que Tomás de Aquino denominou adaequatio
(adequação): “O conhecimento se dá à medida que o objeto do conheci-
mento está dentro do conhecedor”. Plotino diria isso da seguinte ma-
neira: “Conhecer exige o órgão adequado para o objeto”. O entendimento
do conhecedor deve ser adequado à coisa a ser conhecida. A “coisa a ser
conhecida” acima de tudo é Deus. Nossa vida — essas complexidades
humanas de carne e osso, mente e emoções, digestão, sonho e dança —
é nosso “órgão” para conhecer Deus. Não admira que por toda a Escri-
tura se dispense tamanha atenção às propriedades e condições da nossa hu-
manidade — as partes do nosso corpo, nosso estado emocional, nossas
circunstâncias físicas, nossos processos mentais, nossos ambientes geográ-
ficos. Cada detalhe humano é parte dessa instrumentalidade de resposta a
Deus.
Esse aspecto da teologia recebeu muito mais atenção os pastores que
nos antecederam do que de nós. Fomos treinados para supor que basta
JEREMIAS COMO TEÓLOGO ASCÉTICO 107
Aprendendo a adorar
com o Apocalipse de João1
1
Publicado pela primeira vez na revista Christianity Today, 28 de out. de 1991.
110 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
operar com base nesse texto, e de nenhum outro, com precisão, paciência
e resolução.
A FOFOCA DA JANE
Quando comecei a me dedicar a essa obra, parecia uma tarefa suficiente-
mente simples aprender hebraico e grego, estudar o que acadêmicos e teó-
logos pudessem me ensinar sobre por que, como e onde tais e tais livros da
Escritura tinham sido escritos, descobrir como tinham agido os pastores
que me antecederam e depois seguir em frente, pregando com instância e
clareza o Cristo que é “o mesmo, ontem, hoje e para sempre”.
Mas no final percebi que não era tão fácil assim. A dificuldade não resi-
dia em decifrar a poesia hebraica de Isaías ou a sintaxe grega de Paulo (em-
bora esses velhos mestres por muitas vezes me mandassem para minha
biblioteca e para os meus joelhos). A dificuldade provinha de pacientemente
tentar deslindar a fofoca da Jane, dar voltas na imaginação do Bill,
narcotizada pela televisão. Descobri, em outras palavras, que as pessoas
para quem eu estava pregando e a quem eu estava ensinando esse evangelho
tinham na mente outros interesses que não aquilo que eu estava tão ávido
por transmitir-lhes. Pareciam ser pessoas de modo geral inteligentes, e com
certeza eram educadas e gentis, mas simplesmente não estavam acom-
panhando.
Era estarrecedor. Eu estava me dirigindo a uma congregação de pessoas
mais bem instruídas que a maioria dos cristãos que jamais haviam existi-
do. Mas não estavam entendendo uma única palavra do que eu dizia: não
quero dizer que não entendiam o sentido denotativo, dicionarizado das
minhas palavras, mas não estavam entendendo que elas eram, precisamente,
“evangelho”: a proclamação de uma nova ordem, um reino inaugurado, em
que cada palavra e ato costumeiros exalam o aroma da glória. Escutavam,
comentavam e, antes de eu perceber, eles já as tinham reduzido completa-
mente a uma fofoca regada a chá com biscoitos.
Eu estava convivendo com homens e mulheres que tinham um pa-
drão de vida mais elevado que a maioria dos cristãos que jamais viveram
— belas casas e belas mobílias, excelentes hospitais e shoppings —, mas
APRENDENDO A ADORAR COM O APOCALIPSE DE JOÃO 111
cada obstáculo, cada notícia sobre uma guerra ou um vulcão, cada doença
e morte passavam a ser um ensejo para questionar a competência de Deus.
Não quero dizer que desacreditavam de Deus sempre que um problema
cruzava seu caminho, mas, no exato momento em que o problema surgia,
Deus passava a ser menos importante que o problema. Queriam saber o
que haviam feito de errado para que Deus permitisse ou enviasse esse pro-
blema sobre a terra. Queriam saber o que Deus estava fazendo de errado
para permitir essa interrupção do bem-estar deles.
Minha primeira reação foi culpá-los. Culpá-los de serem mexeriquei-
ros e murmuradores que estavam desqualificando-se por deixarem de per-
ceber essa glória exuberante, por deixarem de adentrar essa soberania
deslumbrante. Mas então começou a formar-se dentro de mim a convic-
ção de que precisavam de ajuda muito mais do que de culpa. Eram mexe-
riqueiros e murmuradores porque cresceram e viveram numa cultura de
mexerico e murmuração. Eram para eles alimentos integrados ao leite
materno; por isso, antes de conseguirem mastigar a carne sólida de Isaías
e de Paulo, precisei desmamá-los da cultura.
Foi quando encontrei no Apocalipse de João um aliado, pois Apocalipse
é uma representação da boa notícia de Jesus Cristo feita a congregações
submetidas exatamente às mesmas condições culturais. Estavam experi-
mentando um menosprezo do evangelho por meio da fofoca, e um desvio
do evangelho por causa das dificuldades. Mas João silenciou as fofocas e
pôs o problema no lugar certo. E fez isso da maneira mais simples e econô-
mica possível. Chamou as pessoas para adorarem.
de nos imergir no ato da adoração que seria impensável sair e fazer algo
por conta própria, por mais bíblico que fosse, por mais urgente que fosse.
A verdade do evangelho é que Deus em Cristo reina e salva.
A realidade da condição humana é que estamos decididos a reinar e a
salvar, e fazemos uma tremenda mixórdia quando tomamos essas ações
em nossas mãos. Queremos nos governar e nos salvar. Queremos gover-
nar e salvar os outros.
Mesmo em nosso melhor estado, não logramos esse intento — por mais
que detenhamos conhecimento, por mais bem-intencionados que sejamos.
Mesmo depois de dominarmos o conteúdo de Gênesis a Judas, não conse-
guimos. Não conseguimos porque somente Deus em Cristo pode reinar e
salvar. Temos, é bem verdade, uma participação no reinado e na salvação,
mas consiste numa participação em que tão somente obedecemos e cre-
mos. E a única maneira na qual podemos permanecer atentos à realidade
de que Deus em Cristo é quem reina e salva é no ato da adoração. A única
forma de confiarem que estamos dizendo algo sobre Deus que chegue per-
to da verdade, que estamos fazendo algo para Deus que esteja certo ao
menos pela metade, é pela prática repetida e fiel de cantar e orar, escutar
e crer com os anciãos e os seres vivos ao redor do trono, onde o livro é
aberto e o evangelho é lido alto e bom som.
Se nos ausentamos da adoração ou a tratamos como secundária em
nosso programa de comunicação e motivação, somos dominados pelo vi-
sível. Mas a maior parte da realidade com a qual lidamos é invisível. A maior
parte do que constitui a existência humana é inacessível aos nossos cinco
sentidos: emoções, pensamentos, sonhos, amor, esperança, caráter, pro-
pósito, crença. Mesmo aquilo que compõe a maior parte da existência físi-
ca fundamental está fora do alcance dos nossos sentidos por si sós, sem
nenhuma ajuda externa: moléculas e átomos, nêutrons e prótons, o ar que
respiramos, os ancestrais que nos deram origem, os anjos que nos prote-
gem. Vivemos imersos nesses grandes invisíveis. E, acima de todas as de-
mais coisas, estamos lidando com Deus, que “ninguém jamais viu”.
A adoração é o meio primordial e mais acessível que recebemos para
nos orientarmos em meio às invisibilidades, em Deus. E Apocalipse é,
116 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
1
Publicado pela primeira vez na revista Theology Today, jul. de 1969.
118 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
I
Há anos, reconhece-se a natureza originariamente oral da maior parte dos
materiais bíblicos. Mas o conhecimento de uma “tradição oral” tem sido
usado principalmente para entender os processos de composição e de trans-
missão. McLuhan mostra o enorme efeito que o meio de comunicação
exerce na interpretação. Seu insight central, o de que “o meio é a mensa-
gem”, demonstra que a forma em que uma mensagem é transmitida tem
mais efeito sobre — sendo assim mais importante para — a pessoa e sua
cultura do que o conteúdo da mensagem.
Os dois meios básicos de comunicação são o oral/aural e o escrito. Aquele
é o meio nas sociedades pré-letradas e não letradas. Seu uso cria uma cul-
tura holística, uma sociedade intensamente participativa, com todos os sen-
tidos aguçados e amadurecidos pelo uso constante. O individualismo é raro,
ou mesmo desconhecido. Os acontecimentos são experimentados de for-
ma integral, por povos que entendem a si mesmos como comunidades.
Já este, o meio escrito, separa o acontecimento da experiência que tenho
em relação a ele. Além disso, fragmenta o acontecimento em si quando o
2
São Paulo: Cultrix, 1998.
3
São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977.
APOCALIPSE: O MEIO É A MENSAGEM 119
II
O Apocalipse não é encontrado em forma escrita em seu nascedouro. So-
mente depois que João “viu” a “palavra de Deus” e o “testemunho de Jesus
Cristo” (Ap 1:2) foi que ele o escreveu (Ap 1:3). Mesmo nesse momento,
conservou-se seu caráter basicamente oral: “Feliz aquele que lê as palavras
desta profecia, e felizes aqueles que ouvem...”. Trata-se de uma elaboração
oral de material visual, auditivo e táctil. É uma poesia teológica, e, como a
maior parte da poesia antiga (e um pouco da contemporânea), é principal-
mente algo dito ou cantado. Se chega a ser escrita, é escrita somente de-
pois. A criação e a elaboração se dão no âmbito dos sentidos.
Ironicamente, R. H. Charles, com quem isso talvez nunca tenha acon-
tecido, é quem nos oferece a evidência mais convincente. O professor
Charles, cujo comentário se tornou um clássico, meticulosamente vai con-
ferir cada citação e alusão do livro. É interessante que não há nem uma
única citação exata de nenhuma fonte. Teria sido impossível alguém copiar
tantas coisas com uma imprecisão tão uniforme. A evidência é que a rela-
ção com a fonte documental era exclusivamente oral/aural. Tratava-se de
materiais que haviam sido ouvidos. A conclusão exegética de Charles é que
Apocalipse consistiu num trabalho elaborado de corte e colagem; McLuhan
fornece o insight que utiliza a mesma evidência que revela a obra como
uma fusão de vozes e imagens. Além do mais, a gramática é pobre; quase
como se simplesmente não tivesse sido composto no papel, mas trans-
crito de uma transmissão falada — indicador pequeno mas significativo
do caráter originariamente oral do livro.
120 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Gutenberg do começo ao fim. E afirmar isso não significa fazer uma acu-
sação condenatória. Todos ficamos enredados na mesma surdez cultural.
Mas eles, sem dúvida alguma, comprovam a dificuldade que tem o homem
ocidental de interpretar Apocalipse com suas ferramentas de composição
escrita e sua experiência cultural.
Os artistas, as “antenas da raça” (Ezra Pound), cuja vida dos sentidos é
menos entorpecida pela experiência literária da escrita, foram mais bem-
sucedidos com o Apocalipse. As pinturas de Marc Chagall, os desenhos de
William Blake, o comentário devocional de Christina Rossetti — todos veem
a visão e ouvem a mensagem. D. H. Lawrence, que entendia o poder
fragmentador da vida industrial, enxergava em Apocalipse a integralidade
do homem, e escreveu sobre ele com uma persuasiva convicção (embora
com uma ortodoxia duvidosa). Parece que o artista, cujos sentidos não
foram embotados em razão da aptidão literária para escrever, tem a possi-
bilidade de abordar o material por seu próprio meio.
Talvez o teólogo e exegeta que mais próximo tenha chegado de inter-
pretar de modo completo o Apocalipse foi Austin Farrer. Conseguiu isso
tratando-o como poesia, e, em vez analisar verbos gramaticalmente e cor-
rigir a sintaxe, ele lidou com a imaginação artística de João. A reconstru-
ção imaginativa que Farrer elaborou da feitura do livro é sustentada pelo
insight de McLuhan sobre os meios de comunicação.
Para usar a terminologia de McLuhan, o efeito dos comentaristas litera-
tos do livro tem sido o de explosão, separando as partes num “giro amplia-
dor”; o efeito do insight de McLuhan é o de implosão, reunindo todo o material
relativo aos sentidos num único acontecimento. Mas é necessário um es-
forço especial da imaginação para ouvir e ver junto com João. Ficamos mais
à vontade quando temos de rastrear pistas. “Vivemos numa cultura basea-
da no excesso, na superprodução; o resultado é uma perda constante de
agudeza em nossa experiência dos sentidos”, segundo afirma Susan Sontag.4
Pouco admira que nos saiamos tão mal como intérpretes do Apocalipse.
4
Against Interpretation. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1966, p. 13. [Publicado no
Brasil em 1987 pela L&PM, sob o título Contra a interpretação, traduzido por Ana Maria
Capovilla.]
122 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
III
Os materiais auditivos e visuais ficam muito evidenciados em Apocalipse.
Secundariamente representados estão os sentidos do tato, do olfato e do
paladar. A audição é essencial. Subjacente à mensagem que deve ser ouvi-
da, está a experiência de ouvir: “Aquele que tem ouvidos ouça”. Ouvir o
quê? Não importa o quê, basta ouvir. A ressonância é instaurada. A comu-
nicação é estabelecida. A voz de Deus e nossos ouvidos se unem.
O ato de escutar se une ao ato de ver. Os dois sentidos operam simulta-
neamente. O testemunho do primeiro capítulo, “Voltei-me para ver quem
falava comigo”, dá o tom. Ouvidos e olhos são usados de forma comple-
mentar e interativa. Sons de vozes, trovões e cânticos enchem o ambiente.
O silêncio é significativo. Visões de bestas coloridas e complexas, um Cristo
escultural e magnífico, mulheres visualmente complexas e joias preciosas
são um rico encanto para os olhos. Um levantamento do material relacio-
nado aos sentidos da audição e da visão teria de reproduzir quase cada
linha do livro.
Não tão óbvio, talvez, é o recurso ao tato. O uso simbólico dos números
foi desde o começo uma característica reconhecida de Apocalipse: sua sé-
rie de sete elementos, as combinações de quatro e três elementos, os seis
elementos enigmáticos, as miríades, as multidões. Mas a importância dos
números, interpretativamente, foi tratada como se exclusivamente tivesse
uma referência simbólica. Quatro significa “x”, três significa “y” etc. Mas
o meio é a mensagem. O número, de acordo com McLuhan, é uma exten-
são da palpabilidade; começando pelo ato de contar com os dedos (dígi-
tos), os números vêm a ser uma maneira de ampliar o sentido do tato.
“Baudelaire teve uma verdadeira intuição a respeito do número como
uma mão táctil ou um sistema nervoso que permite inter-relacionar unida-
des separadas, quando afirmou que ‘o número está dentro do indivíduo.
APOCALIPSE: O MEIO É A MENSAGEM 123
5
Marshall MCLUHAN. Understanding Media: The Extensions of Man. New York: McGraw-Hill,
1964, p. 109. [Publicado no Brasil em 1998 pela Cultrix, sob o título Os meios de comunica-
ção como extensões do homem, traduzido por Décio Pignatari.]
6
Lewis MUMFORD. The City in History. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1968. [Publi-
cado no Brasil em 1982 pela Livraria Martins Fontes Editora, em coedição com a Editora da
Universidade de Brasília, sob o título A cidade na história: suas origens, transformações e pers-
pectivas, traduzido por Neil R. da Silva.]
124 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
7
Região da Grécia antiga que muitas vezes foi escolhida como cenário da poesia bucólica.
(N. do T.)
8
New York: Macmillan, 1965.
APOCALIPSE: O MEIO É A MENSAGEM 125
IV
Nada disso pretende subestimar o lugar da mente racional e compreensiva
na leitura de Apocalipse. Dentro do próprio livro, alguns recursos muito
famosos à razão: “Aquele que tem entendimento calcule o número da bes-
ta” (Ap 13:18); “... Aqui se requer uma mente sábia” (Ap 17:9). Mas o lugar
da imaginação e o efeito dos meios sensitivos com certeza foram despreza-
dos tempo demais na interpretação do livro.
Contudo, a persistência do Apocalipse na vida da igreja é um sinal de
que essa dimensão imaginativo-sensitiva não foi perdida por todos. Gera-
ções de acadêmicos cristãos, se não a rejeitaram (como fez Lutero) nem a
desconsideraram (como fez Calvino), acharam nele um lugar para exerci-
tar a criatividade literária; mas foi sempre o livro mais importante para
muitas pessoas iletradas e comuns. Seu impacto através dos séculos tem
sido basicamente mais sensitivo que mental. As pessoas não extraíram novas
ideias de Apocalipse — descobriram novos sentimentos.
O que acabamos de dizer a respeito da tarefa interpretativa do material
bíblico vem aparecendo de forma semelhante, ressalvadas as diferenças,
nas conversas atuais da “teologia da esperança”. Algumas das dificuldades
entre os debatedores podem remontar a uma experiência de composição
9
MCLUHAN, Understanding Media, cit., p. 147.
126 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
10
Jürgen MOLTMANN. The Theology of Hope. New York: Harper and Row, 1967, p. 16. [Publi-
cado no Brasil em 2005 pela Loyola, sob o título Teologia da esperança: estudo sobre os funda-
mentos e as consequências de uma escatologia cristã, traduzido do alemão por Helmuth Alfredo
Simon, rev. Nélio Schneider.]
11
MOLTMANN, op. cit., p. 16. (Grifo do autor.)
APOCALIPSE: O MEIO É A MENSAGEM 127
12
Against Interpretation, cit., p. 14.
capítulo 10
O quarteto da ressurreição1
1
Publicado pela primeira vez na revista Christianity Today, 31 de mar. de 1972.
130 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
I
A frase que chama a atenção na narrativa de Mateus é: “sobreveio um gran-
de terremoto, pois um anjo do Senhor desceu dos céus e, chegando ao se-
pulcro, rolou a pedra da entrada e assentou-se sobre ela” (28:2). Esse é um
detalhe que ninguém mais inclui. O que essa frase nos mostra é que a res-
surreição abala as estruturas da terra. Mateus relata o acontecimento da
ressurreição como algo semelhante à explosão de uma bomba que emite
ondas de energia. O terremoto passa a ser uma imagem usada para repre-
sentar de maneira extraordinária o impacto histórico do Cristo ressurreto
dentre os mortos.
O detalhe desperta-nos para as consequências. Quando ouvimos que
aconteceu um terremoto, queremos saber como afetou a comunidade.
Ficamos curiosos a respeito dos perdidos e das vidas salvas, sobre os atos
de egoísmo e de heroísmo. O detalhe de Mateus a respeito do terremoto
nos mantém interessados no que acontece. À medida que se espalham as
ondas de energia da ressurreição, quais serão os resultados? Como os ho-
mens e as mulheres responderão?
À medida que o impacto de terremoto da ressurreição se move na his-
tória humana, Mateus realça seis respostas: “Os guardas tremeram de medo
e ficaram como mortos” (28:4); as mulheres “saíram depressa do sepul-
cro, amedrontadas e cheias de alegria, e foram correndo anunciá-lo aos
discípulos de Jesus” (v. 8); as mulheres “se aproximaram dele, abraça-
ram-lhe os pés e o adoraram” (v. 9); os anciãos subornaram os soldados e
mandaram que declarassem o seguinte: “Os discípulos dele vieram
durante a noite e furtaram o corpo, enquanto estávamos dormindo” (v. 13);
os soldados “receberam o dinheiro e fizeram como tinham sido instruí-
dos” (v. 15); os Onze, “Quando o viram, o adoraram; mas alguns duvida-
ram” (v. 17).
Vemos aí uma ampla gama de reações que vão desde o terror até a ado-
ração, passando pela mentira, pelo suborno, pelo temor reverente, pela dú-
vida e por uma grande alegria. Nenhuma delas é insignificante. A
ressurreição não produziu a mesma reação em todos os presentes, mas nin-
guém saiu incólume. Ela deixou um impacto profundo em todos ao redor.
O QUARTETO DA RESSURREIÇÃO 131
Mateus dedica quase o mesmo espaço a cada uma dessas respostas. Mas
ressalta uma em relação às demais: a adoração. As mulheres do versículo
9 e os Onze do versículo 17 respondem por meio da adoração. As respos-
tas da mentira e do suborno dos anciãos e dos soldados são intercaladas
entre aquelas duas e formam um contraste que as distingue ainda mais cla-
ramente. A adoração, afirma Mateus, é a resposta mais adequada que se
pode dar à ressurreição.
As palavras de Mateus apoiam sua perspectiva. Os imperativos são pa-
lavras ou frases que exigem uma resposta, e Mateus os usa em abundân-
cia. Quando uma ordem é dirigida a um homem, ele precisa fazer algo,
positiva ou negativamente. A escolha que Mateus faz das palavras mostra
como as ondas de energia da ressurreição se moveram em meio aos
interstícios da resposta humana: “Não tenham medo!” (28:5); “Venham ver
o lugar onde ele jazia” (v. 6); “Vão depressa e digam aos discípulos dele...”
(v. 7); “Não tenham medo” (v. 10); “Vão dizer a meus irmãos” (v. 10);
“Vocês devem declarar o seguinte...” (v. 13); “vão e façam discípulos” (v. 19).
Nenhum acontecimento na história compete com a ressurreição em seu
impacto sobre a vontade humana. Como respondemos a ela será a respos-
ta mais característica e mais significativa que jamais faremos. Com grande
habilidade, Mateus nos leva a enxergar isso, ao construir sua história em
torno do impacto de terremoto que teve a ressurreição de Jesus.
II
O evangelho de Marcos é uma narrativa intensa, como num fogo contínuo,
do que Jesus disse e fez ao dar “sua vida em resgate por muitos” (10:45).
Marcos descarta todas as preliminares (por exemplo, não narra o nasci-
mento de Jesus) e numa viagem apressada e de tirar o fôlego nos envolve
na ação. “Então”, “Logo a seguir”, “Em seguida” são expressões caracterís-
ticas em nossas versões de seu texto. Tomados pela ação, ficamos ávidos
por descobrir qual é o próximo acontecimento.
Marcos conduz esse estilo até o capítulo 16 — seu relato da ressurrei-
ção. Três mulheres vêm ao túmulo e o encontram vazio. Um anjo lhes
informa que Jesus ressuscitou e lhes dá instruções sobre o que devem
132 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
fazer. Marcos então nos presenteia com uma de suas cenas mais dramáti-
cas: “... saíram e fugiram do sepulcro. E não disseram nada a ninguém,
porque estavam amedrontadas” (16:8).
Essa não é bem a resposta que eu esperaria diante da ressurreição. Que-
ro saber o que acontece depois. Como a história vai terminar?
A experiência das mulheres que vêm ao túmulo, tomadas de uma dor
profunda por aquela perda, e esperando agora conduzir as amenidades do
sepultamento, é o material que Marcos utiliza para contar a história da
ressurreição. A devoção simples delas é interrompida por duas surpresas:
a pedra foi retirada do túmulo, e o túmulo está vazio. Naquele estado de
surpresa, elas recebem uma mensagem angélica. A mensagem tem quatro
constatações simples: Jesus ressuscitou; ele não está mais aqui; o túmulo
está vazio; está indo em direção à Galileia. Depois há duas ordens: não fi-
quem surpresas; vão e contem aos discípulos e a Pedro. Por último, há uma
promessa: vocês o verão. Um alicerce factual serve de apoio a uma ordem
dupla que é motivada por uma única promessa. Subjetivamente, a surpre-
sa predomina; objetivamente, a mensagem divina prevalece. A combina-
ção produz a experiência fundamental: “... saíram e fugiram do sepulcro. E
não disseram nada a ninguém, porque estavam amedrontadas”.
Psicologicamente, essa é uma situação que simplesmente precisa ser
resolvida. Há uma necessidade pessoal avassaladora de concluir a história.
Marcos nos arrasta para o centro da ação e deixa que sintamos nós mes-
mos a emoção que acompanha a percepção repentina de que Jesus havia
de fato ressurgido dentre os mortos. É impossível considerar o fato anali-
ticamente ou objetivamente. A história precisa ser concluída. Nossa parti-
cipação é evocada.
Ainda assim, os manuscritos gregos mais antigos param justamente nesse
ponto, no versículo 8. Se Marcos parou ali de caso pensado ou se o final do
manuscrito original se desgastou pelo uso constante e assim simplesmente
se perdeu, ninguém sabe até hoje. O que todo mundo com certeza sabe, no
entanto, é que ninguém, na antiguidade ou em nossos dias, está satisfeito
com o final (ou com a falta de um final). O vácuo precisa ser preenchido.
O QUARTETO DA RESSURREIÇÃO 133
III
Além da história das mulheres no túmulo vazio na manhã da Páscoa (his-
tória comum aos outros relatos), Lucas conta duas histórias um tanto lon-
gas sobre a aparição do Cristo ressurreto: primeiramente a de dois homens
em Emaús na tarde e no entardecer da Páscoa, e depois a de todos os dis-
cípulos em Jerusalém naquela noite.
Essas duas histórias são veículos para reunir um material que ampliará
nosso entendimento da ressurreição. O relato de Lucas impede que redu-
zamos a ressurreição a um acontecimento isolado, por mais abalador de
estruturas que seja, ou a uma experiência pessoal, por mais intensa que seja.
Ele tece seu significado na malha do que aconteceu antes e do que se segui-
rá. Ele enxerga toda a história até aquele momento conduzindo-se para esse
acontecimento, e toda a história futura dele fluindo.
O método de Lucas é entrelaçar as histórias com referências às Escritu-
ras antigas e ao passado recente. Dois homens em Emaús “conversavam a
respeito de tudo o que havia acontecido” (24:14); quando Jesus os encon-
tra, eles repassam a vida e o ministério de Jesus de Nazaré (v. 19-24); Jesus
oferece uma exposição que relaciona a Escritura (o passado) com a res-
surreição (v. 27); os dois homens reconhecem a relação entre o passado e
a ressurreição (v. 32); encontrando-se com os Onze, Jesus os remete a “tudo
o que a meu respeito está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos
134 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
IV
Não é fácil crer na ressurreição de Jesus. Há muitos trapaceiros no mundo
e muitas fraudes. Como sabemos que a ressurreição não passou de uma
fraude? Afinal de contas, as fraudes religiosas têm sobejado no mundo. A
ressurreição é um tema comum na religião antiga. Que evidências temos
de que a ressurreição de Jesus não foi apenas uma entre muitas?
O relato de João acerca da ressurreição é escrito para fornecer evi-
dências convincentes para lidarmos exatamente com essas perguntas legí-
timas. A história de João tem por objetivo persuadir: “... estes foram escritos
para que vocês creiam que Jesus é o Cristo” (20:31). “Crer”, no vocabulá-
rio de João, é uma união da compreensão intelectual com um compromis-
so de vida. Sua intenção é colocar diante de nós informações capazes de
dirimir dúvidas sinceras e de nos compelir a um compromisso. Ao men-
cionar a ressurreição, João faz todo o esforço possível para realçar a
credibilidade da ressurreição frisando pormenores que mostram sua reali-
dade histórica.
O QUARTETO DA RESSURREIÇÃO 135
Santa sorte1
Holy Luck
OS AFORTUNADOS POBRES
“Bem-aventurados os pobres em
espírito” THE LUCKY POOR
No inverno a faia, brancas “Blessed are the poor in spirit”
Complexidades indisfarçadas A beech tree in winter, white
Contra o azul do céu e densas
Intricacies unconcealed
Nuvens, carrega em seu vazio
Against sky blue and billowed
A madurez: seiva em prontidão
Clouds, carries in his emptiness
À espera de subir, brotos alertas para em
Ripeness: sap ready to rise
folha
On signal, buds alert to burst
Irromper. E aí passada a estação
To leaf. And then after a season
Estival a camada desfolhada vem lembrar
O viço das promessas cumpridas. Of summer a lean ring to
Vazia outra vez em sábia pobreza remember
Pode os ramos estendidos The lush fulfilled promises.
Para o céu alongar mais um milímetro, Empty again in wise poverty
E seu tronco expandir não mais que um That lets the reaching branches
tanto stretch
Suas raízes a enterrar na firme A millimeter more towards heaven,
Fundação, afortunada por estar agora The bole expand ever so slightly
desfolhada: And push roots into the firm
Decíduo lembrete de que perder é Foundation, lucky to be leafless:
preciso. Deciduous reminder to let it go.
1
Publicado pela primeira vez na revista Theology Today, abr. de 1987. Nota dos editores: a palavra
“sorte” e mesmo “fortuna” (no sentido de sorte) e seus cognatos não são bem aceitas por muitas
pessoas, como afirma Peterson, mas a velha versão inglesa da Bíblia comandada por Wycliffe fazia
menção dos fiéis que tinham “santa sorte”, o que deveria refletir nossa resposta diante das bên-
çãos de Deus. Isso foi antes de as casas lotéricas e os apostadores se apossarem da palavra.
140 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
OS AFORTUNADOS TRISTES
“Bem-aventurados os que
choram”
OS AFORTUNADOS MANSOS
“Bem-aventurados os mansos”
2
Expressão latina oriunda de Arte poética, obra de Horácio, que significa literalmente “no meio
dos acontecimentos”. (N. do T.)
142 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
OS AFORTUNADOS FAMINTOS
“Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça”
Despenada a incredulidade
despencaria
Atravessando todas as camadas das
térmicas
Rajadas como uma pedra; este falcão
de cauda
Vermelha move-se e desliza, sem
pressa
Ainda que faminto, indolentemente
desdenhoso
Das fáceis refeições, aos nacos, de
carniça,
Aguardando antes com perícia a presa
fugidia
THE LUCKY HUNGRY
A ele aprovisionada: um vazio visível
Acima de uma plenitude invisível. “Blessed are those who hunger
O sol colore de cobre a japonesa and thirst after righteousness”
Cauda em leque, esboçando
Unfeathered unbelief would fall
Penas contra o amplo firmamento
Through the layered fullness of
Para o encanto dos meus olhos, e
thermal
abençoa
Updrafts like a rock; this red-tailed
O pássaro de melhor visão com um
Hawk drifts and slides, unhurried
facho
Though hungry, lazily scornful
De luz que uma cascavel aponta
Of easy meals off carrion junk,
Numa morte fadada a se dar à la
Expertly waiting elusive provisioned
Gênesis.
Prey: a visible emptiness
Above an invisible plenitude.
The sun paints the Japanese
Fantail copper, etching
Feathers against the big sky
To my eye’s delight, and blesses
The better-sighted bird with a shaft
Of light that targets a rattler
In a Genesis-destined death.
SANTA SORTE 143
OS AFORTUNADOS
MISERICORDIOSOS
“Bem-aventurados os
misericordiosos”
OS AFORTUNADOS PUROS
“Bem-aventurados os puros de
coração”
OS AFORTUNADOS
PACIFICADORES
“Bem-aventurados os
pacificadores”
OS AFORTUNADOS
PERSEGUIDOS
“Bem-aventurados os
perseguidos”
1
Publicado pela primeira vez no periódico Journal for Preachers, Pentecoste 1987.
2
Northrop FRYE. The Great Code. New York: Harcourt Brace, Jovanovich, 1982, p. 199. [Pu-
blicado no Brasil em 2004 pela Boitempo, sob o título O código dos códigos: a Bíblia e a lite-
ratura, traduzido por Flávio Aguiar.]
150 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
3
“João” pode ser uma referência ao apóstolo, ao presbítero de Éfeso ou a outro líder que não esses,
desconhecido da igreja do final do século V. Há defensores abalizados para cada uma dessas pos-
sibilidades. É, contudo, uma questão de somenos importância, segundo me consta, para o fim de
chegarmos a uma interpretação exata do livro. Não obstante, sou de opinião, com toda a certe-
za, de que o João que escreveu Apocalipse também escreveu o Evangelho e as Cartas.
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 151
em seu ser e trabalho. O poeta leva as palavras a sério como imagens que
relacionam o visível e o invisível, e torna-se um curador que garante que se-
jam usadas de modo primoroso e preciso. O pastor leva as pessoas de car-
ne e osso a sério como filhos de Deus e fielmente as ouve e fala com elas,
convicto de que a vida de fé delas em Deus é o centro em torno do qual
tudo o mais passa a ser periférico. Nem sempre os três ministérios conver-
gem numa única pessoa; quando isso acontece, os resultados são extraor-
dinários. É porque João integrava de modo tão completo o trabalho de
teólogo, poeta e pastor, que temos o Apocalipse, esse documento concebi-
do de modo tão genial e de utilidade inesgotável.
JOÃO, O TEÓLOGO
Um escriba do quarto século, incumbido da tarefa de copiar o Apocalipse,
escreveu o título: “Revelação de João” e depois, num momento de garatuja
inspirada, rabiscou na margem: tou theologou, “o Teólogo”. O copista se-
guinte, impressionado com a propriedade da anotação, transferiu as duas
palavras da margem para o centro da página. Desde esse momento, pas-
sou a ser conhecido como João, o Teólogo.
João é um teólogo cuja mente está, por inteiro, impregnada de pensa-
mentos acerca de Deus, com todo o seu ser aturdido por uma visão de Deus.
A Palavra de Deus, que cria o mundo e projeta a salvação, é ouvida, ponde-
rada e expressa. Ele está inebriado com Deus, é possuído por Deus, articu-
lado em Deus. Insiste em mostrar que Deus é mais que um Desejo
indistinto, e mais que uma maldição (ou bênção) monossilábica, mas ca-
paz do logos, ou seja, do discurso inteligente. João é pleno de exclamações
em relação a Deus, simplesmente esmagado diante da experiência de Deus,
mas a permear tudo isso se vê o logos: Deus revelado é Deus conhecido.
Não conhecido de modo tão absolutamente pleno, que seja previsível. Não
conhecido de modo tão total, que nada mais reste para conhecer, de modo
que agora possamos passar para o assunto seguinte. Ainda assim, ele é
conhecido, e não desconhecido; racional, e não irracional; ordeiro, e não
desordeiro; hierárquico, e não anárquico.
De tempos em tempos, é de grande importância que os cristãos, aque-
les que creem, tenham uma pessoa razoável, sensata, madura que se
152 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
posicione no meio deles e diga “Deus é…”, e depois conclua a frase de for-
ma inteligente. Há tendências dentro de nós, bem como forças externas,
que inexoravelmente reduzem Deus a uma lista de explicações daquelas
que a gente vai ticando, ou a um manual de preceitos morais, ou a um sis-
tema econômico, ou a uma vantagem política, ou a um cruzeiro. Deus é
reduzido ao que pode ser medido, usado, pesado, compilado, controlado
ou sentido. Enquanto aceitamos essas explicações reducionistas, nossa vida
fica entediada, deprimida ou medíocre. Vivemos tolhidos como sementes
de carvalho num viveiro de plantas. Mas o carvalho precisa do solo, do sol,
da chuva e do vento. A vida humana precisa de Deus. O teólogo oferece sua
mente com o objetivo de dizer “Deus” de tal maneira que Deus não é reduzi-
do, nem empacotado, nem canalizado, mas conhecido, contemplado e ado-
rado, com a consequência de que nossa vida não fica restrita ao que
podemos explicar, mas exaltada por aquilo que adoramos. São assustado-
ras as dificuldades desse tipo de pensamento e declaração. O teólogo jamais
tem condições de apresentar um produto acabado. “Teologia sistemática” é
uma contradição de termos. Sempre há extremidades soltas. Mas mesmo as
migalhas do discurso ao redor de uma mesa dessas são mais satisfatórias do
que todos os pratos requintados dos assuntos de somenos importância,
numa refeição completa, que vai desde a entrada até a sobremesa.
João é um teólogo de um tipo particularmente atraente: todos os seus
pensamentos sobre Deus aconteceram sob fogo: “[eu] estava na ilha de
Patmos”, uma ilha prisional. Era um homem que pensava sobre seus pés,
correndo, ou sobre seus joelhos, orando, as posturas características de
nossos melhores teólogos. Houve épocas na história em que os teólogos
tinham de habitar em torres de marfim e se dedicar a escrever livros im-
penetráveis e ponderosos. Mas os teólogos mais importantes pensaram e escre-
veram sobre Deus em meio ao mundo em que viviam, no calor da ação:
Paulo, ditando cartas com urgência, aprisionado em sua cela; Atanásio,
contra mundum, perseguido por cinco vezes e exilado por três imperado-
res diferentes; Agostinho, pastoreando pessoas que experimentavam a caó-
tica ruptura entre a ordem e a civitas romana; Tomás, usando a mente para
combater erros e heresias que, se incontestados, teriam transformado a
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 153
JOÃO, O POETA
O resultado da obra teológica de João é um poema: “o único grande poe-
ma que a primeira era cristã produziu”.4 Se Apocalipse não for lido como
poema, é simplesmente incompreensível. A incapacidade (ou recusa) de
lidar com o poeta João explica a maior parte das leituras oblíquas, das in-
terpretações equivocadas e dos abusos em relação ao livro.
4
Austin FARRER. A Rebirth of Images. Westminster: Dacre Press, 1949, p. 6.
154 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
O poeta usa palavras, em primeiro lugar, não para explicar algo, e não
para descrever algo, mas para criar algo. Poeta (poetes) significa “criador”.
Poesia não é a linguagem da explicação objetiva, mas a linguagem da ima-
ginação. Ela traça um quadro da realidade de tal maneira que nos convida
a tomar parte dela. Depois de lermos um poema, não saímos com mais
informações, mas ganhamos mais experiência. Não é “um exame dos acon-
tecimentos, mas uma imersão no que está acontecendo”.5 Se Apocalipse
foi escrito por um teólogo que é também poeta, não podemos lê-lo como se
fosse um almanaque para descobrir quando tudo vai acontecer, ou como
uma crônica de tudo o que já se passou.
É mais do que condizente que um poeta tenha a última palavra na Bí-
blia. Quando chegamos a esse último livro, já temos uma revelação com-
pleta de Deus diante de nós. Tudo o que se relaciona com a nossa salvação,
com as acompanhantes instruções de sobre como levar uma vida de fé, acha-
se ali de forma plenamente desenvolvida. Não há nenhum perigo de ser-
mos mal-informados. Mas há o perigo de que, por nos familiarizarmos ou
nos cansarmos demais, deixarmos de prestar atenção aos esplendores que
nos rodeiam em Moisés, Isaías, Ezequiel, Zacarias, Marcos e Paulo. João
toma as palavras já conhecidas e, organizando-as em ritmos inesperados,
desperta-nos para que vejamos “a revelação de Jesus Cristo” por inteiro,
como que pela primeira vez.
Há aqueles que, quando o assunto é Deus, ficam extremamente caute-
losos, ressalvando cada declaração e definindo cada termo. Esforçam-se
por afirmar nada mais do que o que possa ser corroborado pela lógica. Não
querem que os considerem culpados de afirmar disparates. Outros ainda,
quando o assunto é Deus, sabendo quão facilmente nos desvirtuamos para
fantasias falsamente piedosas, tornam-se excessivamente práticos. Trans-
formam cada verdade sobre Deus num preceito moral. Mas os poetas são
profusos e ousados, rejeitando tanto a cautela do filósofo religioso quanto
o zelo do moralista ético. João é um poeta, não usando palavras para nos
falar sobre Deus, mas para intensificar nosso relacionamento com Deus.
5
Denise LEVERTOV. The Poet in the World. New York: New Directions, 1973, p. 239.
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 155
Não está buscando levar-nos a pensar de modo mais preciso, nem instruir-
nos quanto a um comportamento melhor, mas levar-nos a crer mais sem
reservas, comportar-nos de modo mais divertido — a atitude sem reservas
da fé e a atitude descontraída da esperança que têm as crianças que en-
tram no reino de Deus. Vai tirar-nos de nossa letargia, levar-nos a viver de
modo alerta, abrir nossos olhos para o arbusto em chamas e para as carrua-
gens de fogo, abrir nossos ouvidos para as promessas inabaláveis e para as
ordens rígidas de Cristo, expulsar o tédio do evangelho, levantar nossa
cabeça, fazer crescer nosso coração.
Denise Levertov escreveu: “Como quase toda experiência passa rápido
demais, superficialmente demais para nossa plena compreensão, o que mais
precisamos não é prová-la de novo (com a mesma superficialidade), mas
de fato provar pela primeira vez a identidade autônoma e livre de sua es-
sência. Meus dicionários de 1865 definem translação como o ‘ato de ser
transportado de um lugar para outro; [ato de] ser levado aos céus sem
morrer’. Precisamos de arte que nos translade, que nos transporte aos céus
dessa realidade mais profunda que, de outro modo, ‘podemos morrer sem
jamais ter conhecido’; que nos transmite para lá, não no sentido de trazer
a informação ao receptor, mas de pôr o receptor no lugar do acontecimen-
to — vivo”.6 Esse é o trabalho de João: ele toma os velhos elementos do
cotidiano da criação e da salvação, do Pai, do Filho e do Espírito, do mun-
do, da carne e do Diabo, com os quais já nos achamos tão familiarizados,
e nos força a examiná-los de novo e a experimentar outra vez (ou talvez
pela primeira vez) sua realidade.
Não muito antes de sua morte em 1973, W. H. Auden declarou o que é
que se exige de um poema: “... duas coisas: primeiramente, deve ser um ob-
jeto verbal bem construído que faça jus ao idioma em que é escrito; em se-
gundo lugar, precisa dizer algo significativo sobre uma realidade comum a
todos nós, mas percebida de uma perspectiva singular”.7 O poema teológico
6
LEVERTOV, The Poet in the World, cit., p. 94.
7
The Poems of Joseph Brodsky. The New York Review of Books, 20, n.o 5, vol. 10, 5 de abr. de
1973.
156 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
JOÃO, O PASTOR
A paixão de João por pensar e falar sobre Deus e seu talento para subme-
ter-nos ao poder da linguagem de modo que as imagens sejam renascidas
em nós, conectando-nos a uma realidade diferente de nós e maior que nós,
ou seja, sua teologia e sua poesia, são praticados num contexto específico:
a comunidade de pessoas que vivem pela fé em Deus. Aquilo que ele fala
e a maneira em que ele fala se dão entre pessoas que ousam viver pelos
grandes elementos invisíveis da graça, que aceitam o perdão, que acredi-
tam nas promessas, que oram. Essas pessoas, diariamente, perigosamente,
decidem viver pela fé, e não por obras; com esperança, e não no desespe-
ro; pelo amor, e não pelo ódio. E diariamente são tentadas a desistir. João
é o pastor dessas pessoas, ou, como ele mesmo diz, “irmão e companheiro
de vocês...”.
As pessoas que vivem pela fé têm um senso particularmente aguçado
de viver “no meio-tempo”. Cremos que Deus está no começo de todas as
coisas, e cremos que Deus está na conclusão do todo da vida — no epigrama
impressionante de João: “o Alfa e o Ômega” (1:8). É comum entre nós supor
que o começo foi bom (“E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia
ficado muito bom”). É consenso entre nós que a conclusão será boa (“En-
tão vi novos céus e nova terra”). Pareceria uma garantia de que tudo que
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 157
estivesse entre o bom começo e o bom fim também será bom. Mas as coi-
sas acabam não saindo dessa maneira. Ou ao menos não da maneira que
esperamos. Isso sempre nos chega como uma surpresa. Esperamos uma
bondade ininterrupta, e ela é interrompida: sou rejeitado por um pai, coa-
gido por um governo, divorciado por um cônjuge, discriminado por uma
sociedade, ferido pela negligência alheia. Tudo isso numa vida que em sua
criação era muito boa e que em sua conclusão será consumada de acordo
com o projeto de Deus. Entre o começo crido, mas não lembrado, e o fim
esperado, mas inimaginável, há decepções, contradições, absurdos inexpli-
cáveis, paradoxos desconcertantes — cada um deles o inverso do que se
esperava.
O pastor é a pessoa que se especializa em acompanhar pessoas de fé que
vivem “no meio-tempo”, enfrentando os detalhes pouco belos, as rotinas
sem sentido, a maldade zombeteira, e se especializa em a todo tempo in-
sistir pertinazmente em afirmar que esse meio-tempo inexplicável e desa-
gradável está ligado a um começo esplêndido e a um fim glorioso. O teste
acerbo de Lutero para o pastor cristão era: “Ele sabe da morte e do Diabo?
Ou será que para ele é tudo doçura e luz?”.8
Quando lemos um romance, temos uma experiência análoga. Começa-
mos o primeiro capítulo sabendo que há um último capítulo. Uma das coisas
satisfatórias de simplesmente pegar um livro é o conhecimento seguro de
que acabará. Enquanto lemos, ficamos muitas vezes aturdidos, às vezes em
suspense, geralmente equivocados em nossas expectativas, não raro en-
ganados em nossa avaliação de uma personagem. Mas, quando não com-
preendemos, nem concordamos, nem nos sentimos satisfeitos, normalmente
não desistimos. Pressupomos a existência de significado, de nexo e de esti-
lo mesmo quando não os experimentamos. O último capítulo, estamos
seguros, demonstrará o significado que percorreu todo o romance. Acre-
ditamos que a história terminará satisfatoriamente, e não será inter-
rompida de modo arbitrário.
8
Cit. Norman O. BROWN. Life Against Death. Middletown, CT: Wesleyan University Press,
1959, p. 209.
158 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
9
A expressão é extraída do título de um estudo de Frank Kernode que aborda os exemplos
modernos da literatura apocalíptica e versa sobre as provas que eles apresentam da necessida-
de humana de viver rumo a uma conclusão intencionada, e não simplesmente de forma aleató-
ria. (The Sense of an Ending. New York: Oxford University Press, 1967.)
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 159
10
MOLTMANN. The Theology of Hope. London: SCM Press, 1967. [Publicado no Brasil em 2005
pela Loyola, sob o título Teologia da esperança: estudo sobre os fundamentos e as consequências de
uma escatologia cristã, traduzido do alemão por Helmuth Alfredo Simon, rev. Nélio Schneider.]
11
Austin FARRER, A Rebirth of Images, cit., p. 6.
capítulo 13
Mestres da imaginação1
1
Publicado pela primeira vez no periódico Eternity, jan. de 1989.
162 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
O VISÍVEL E O INVISÍVEL
Imaginação é a capacidade de estabelecer conexões entre o visível e o
invisível, entre o céu e a terra, entre o presente e o passado, entre o presen-
te e o futuro. Para os cristãos, cujo maior investimento está no invisível, a
imaginação é indispensável, pois é somente por meio da imaginação que
podemos ver a realidade por inteiro, contextualizada. “Aquilo que a imagina-
MESTRES DA IMAGINAÇÃO 163
ção faz com a realidade é a realidade pela qual vivemos”, escreveu David Igna-
tow em Open Between Us [Aberto entre nós]2.
Quando olho para uma árvore, a maior parte do que “vejo” na verdade
eu não vejo. Vejo um sistema de raízes por baixo da superfície, lançando
gavinhas pelo solo fértil, sugando nutrientes ali encontrados. Vejo a luz
despejando energia nas folhas. Vejo o fruto que aparecerá em alguns me-
ses. Olho, e olho com atenção, e vejo os ramos desfolhados enfrentando a
duras penas a neve e os ventos do próximo inverno. Vejo tudo isso, e vejo
mesmo — não estou inventando. Mas não posso fotografar. Vejo por meio
da imaginação. Se a minha imaginação estiver tolhida ou ficar inativa, so-
mente verei aquilo que posso utilizar, ou algo que esteja em meu caminho.
O poeta Czeslaw Milosz, Prêmio Nobel, com uma paixão por Cristo apoia-
da e aprofundada por sua imaginação, afirmou em entrevista à revista The New
York Review of Books em 27 de fevereiro de 1986 que a mente dos ameri-
canos foi perigosamente diluída pelo racionalismo ou pelas explicações. Ele
está convencido de que o nosso processo educacional deficiente no aspecto
da imaginação nos deixou com uma imagem ingênua do mundo. Nessa visão
ingênua, o universo tem espaço e tempo — e nada mais. Nenhum valor.
Nenhum Deus. “Funcionalmente falando, os homens e as mulheres não são
tão diferentes de um vírus ou de uma bactéria, um cisco no universo.”
Milosz vê na imaginação, e sobretudo na imaginação religiosa, que é a
capacidade desenvolvida de estar em atitude de reverência diante de tudo
o que se nos depara, a força modeladora do mundo em que realmente vi-
vemos. “A imaginação”, disse ele, “pode moldar o mundo numa pátria, bem
como numa prisão ou num campo de batalha. Ninguém vive no mundo
‘objetivo’, somente num mundo filtrado pela imaginação”.
IMAGINAÇÃO E EXPLICAÇÃO
A imaginação está entre as principais glórias do ser humano. Quando saudá-
vel e energética, ela nos leva à adoração e ao maravilhamento, aos mistérios
de Deus. Quando neurótica e morosa, transforma as pessoas, milhões delas,
em parasitas, marias vão com as outras e gente inativa e sem imaginação
2
University of Michigan, 1980.
164 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
TIPO DO MINISTÉRIO
Depois de declarada a intenção teológica, a mais simples investigação ra-
pidamente mostrará Nero Lobo como um tipo do ministério da igreja no
mundo. A coisa mais evidente a respeito dele, seu corpo, serve de analogia
1
Publicado pela primeira vez no periódico Christian Ministry, jan. de 1973, p. 26-28. Usado
com permissão.
2
A personagem criada por Stout chama-se originariamente “Nero Wolfe” e foi assim que ficou
conhecida na tradução para o português dos romances de Stout. Em 1987, por exemplo, o
Clube do Livro, editora de São Paulo, publicou a obra de Rex Stout Final para três: três nove-
las de Nero Wolfe, traduzida por Suzana Fleury Malheiros. Embora se tenha mantido o nome
original da personagem no Brasil, resolvi mudá-lo aqui somente para Nero Lobo por ser Lobo
também um sobrenome no Brasil e para deixar mais evidente para o leitor o tipo de analogia a
que Peterson está se referindo neste capítulo. “Wolfe” é sobrenome com grafia muito semelhan-
te a wolf, palavra inglesa que significa “lobo”, e com a mesma pronúncia. (N. do T.)
166 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
3
Porto, Portugal: Editora Livros do Brasil, 1996.
OVELHAS EM PELE DE LOBO 167
PROTÓTIPO DA IGREJA
A natureza eclesiástica de Lobo recebe do prédio de tijolos à vista da Rua
34 Oeste, projetado para corresponder a um prédio de igreja, um ambien-
te no qual trabalhar. A sala de jantar é o santuário, lugar reservado para as
melhores comidas e as mais agradáveis conversas, palavra e sacramento.
(“O que ele mais ama, se comida ou palavras, é difícil de apurar” —
Gambito.)4 A cozinha é a sacristia. O escritório, onde as pessoas e o mi-
nistro se encontram uns com os outros, é a nave. A “sala da frente”, em
que convidados são colocados antes de uma decisão de como serão envol-
vidos, é o nártex. Mas a casa simplesmente nunca é habitada. Não há
nenhum aspecto da vida doméstica, nenhuma atividade acontecendo de
um lugar para o outro. Cada cômodo define uma função. Não há festas,
nem reuniões de amigos para conversa ou diversão. Dessa maneira, o mi-
nistério cristão é impedido de ser interpretado como um exercício nas re-
lações humanas, ou uma espécie de aprimoramento piedoso da amabilidade
humana.
As imagens do ministério cristão são depois desenvolvidas em dois rituais
que dominam a vida de Lobo. O primeiro ritual envolve o cuidado e o cul-
tivo de orquídeas. Duas vezes por dia, das 9 às 11 da manhã e das 4 às 6 da
tarde, passa-se o tempo todo no viveiro, no terraço, cuidando de orquídeas.
Esses períodos matinais e vespertinos não devem ser interrompidos. “Em
todos os climas e sob quaisquer circunstâncias, aquelas quatro horas do
dia gastas no terraço com as orquídeas […] eram invioláveis” (A liga dos
homens assustados).5 O cultivo de orquídeas é um símbolo da oração e da
meditação, de manhã e à noite.
Nenhum forasteiro jamais pode entender como Lobo pode destinar es-
ses blocos regulares e importantes de tempo para nutrir novos híbridos e
4
Portugal: Editora Círculo de Leitores.
5
Porto, Portugal: Livros do Brasil, 1993.
168 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
6
Idem, 1997.
OVELHAS EM PELE DE LOBO 169
COLEGA DE MINISTÉRIO
O simbolismo do ministério cristão não se completa no próprio Nero Lobo.
Ele tem um colega indispensável, Arquelau Boaventura,7 que simboliza o
aspecto do ministério da igreja normalmente designado pela palavra “tes-
temunho”. Somente quando combinados um com o outro, Lobo e Arque-
lau, é que o símbolo cristão do ministério se completa. É Arquelau que narra
os contos; sem ele, nada saberíamos, uma vez que Lobo não tem nem ne-
cessidade nem inclinação para falar de si. Jacques Barzun ressaltou que
“Arquelau é (como os críticos, fazendo uma leitura detida, descobririam a
respeito de seu nome) um arquétipo”. O ministério da igreja não é apenas
um centro para recordação, um arranjo de forças, uma concentração de
vontade: ele também realiza coisas. Arquelau é aquele aspecto do ministé-
rio da igreja que se envolve no mundo. Entra em brigas, é rápido com as
respostas, consegue se achar nos saguões, nos táxis e nos bares do mundo.
É bom em escutar e obter informações. É bom em trazer os relatórios para
Lobo. Mas não dá muita opinião, nem se sente compelido a se tornar a
personagem principal da história que ele narra.
Em geral, não sabe por que está dando mensagens ou colhendo evi-
dências, mas é, mesmo assim, responsivo às ordens. Não que sempre as
cumpra de bom grado. Aliás, quando lhe pedem que faça algo sem lhe ex-
plicarem o motivo, demonstra grande irritação. Quer entender todo o pla-
no, e fica enervado quando Lobo não lhe permite entrada nos meandros
mais interiores de sua própria mente. Às vezes, ele está cheio de dúvidas
sobre Lobo, ainda que a genialidade tenha se mostrado suficiente em cada
situação no passado. E ainda, cheio, ora de dúvidas, ora de irritação, exe-
cuta obedientemente seu trabalho de “testemunha” (em palavras e em ges-
tos). Lobo precisa dele e não poderia, aliás, funcionar sem ele, pois são suas
palavras e ações que ele usa para chegar a sua solução.
O espírito independente de Arquelau muitas vezes o leva às raias da
desistência, mas ele sempre reconsidera (arrepende-se) e logo volta ao
7
Outro nome que, como Lobo (“Wolfe”), sugiro para facilitar a metáfora, embora não seja como
a personagem ficou conhecida na tradução das obras de Rex Stout no Brasil. (N. do T.)
170 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
trabalho como assistente de Lobo. Mas ele não simplesmente aceita ordens.
Quando se vê numa situação para a qual não conta com nenhuma instru-
ção, a regra é que deve operar por conta própria: “Sempre que Lobo me
deu uma incumbência sem instruções específicas, a instrução geral era que
eu devia usar minha inteligência guiada pela experiência” (Gambito).
Os paralelos com o testemunho cristão são grandes. O testemunho opera
às cegas a maior parte do tempo. Recebe a ordem de testificar do amor, da
justiça e da saúde num mundo em que o ódio, a injustiça e a enfermidade
estão em toda parte. Ele nunca compreende de fato a lógica do todo. E
experimenta tanto dúvida quanto irritação por não poder examinar o inte-
rior da “mente do criador”.
O papel criativo que Arquelau desempenha na obra é manter Lobo tra-
balhando. (“De todas as coisas que faço para me sustentar, de afiar um lápis
até de um salto impedir que um visitante aponte uma arma, o mais impor-
tante é levar Lobo de carro para todo lado, e ele sabe disso” — (Trindade
homicida).8 Ele também sabe que a única forma de conseguir isso é apare-
cer com um caso de assassinato. Crimes triviais não lhe interessam. Mas
os assassinatos, que põem em foco todas as energias do bem e do mal, in-
cita suas melhores energias. De modo semelhante, o ministério cristão só
se interessa, no final das contas, pelo pecado. Há muitas coisas grandiosas
no mundo que são interessantes e pelas quais o ministério cristão não se
interessa. Ele se especializa no pecado e em pecadores. O testemunho cris-
tão realimenta a igreja com um programa de ação, apresentando-lhe o pro-
blema do pecado e forçando a igreja a fazer algo a respeito.
YIN/YANG
Lobo e Boaventura (o Yin e o Yang do ministério cristão) têm no inspetor
Kramer, da polícia de Nova York, um contraste. A combinação Lobo/
Boaventura é um símbolo do ministério cristão em contraposição a Kramer,
um tipo de ministro humanista das boas obras — tentar agir de forma cor-
reta, bem-intencionada, mas, no fim, ineficaz. Kramer quer fazer o que Lobo
8
Portugal: Livros do Brasil, 2000.
OVELHAS EM PELE DE LOBO 171
1
Publicado pela primeira vez em The Princeton Seminary Bulletin, out. de 1973.
2
John Knox, 1960.
174 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
um ato do povo de Deus (pastor e povo) em adoração. Sua tese era que
“toda a igreja é chamada a participar do ofício da proclamação ocupado
exclusivamente por Jesus Cristo...” (p. 7). Ritschl, entretanto, não tinha a
intenção de que um grupo constituísse o todo da preparação de sermões.
Ele identificou algo mais básico: “A tarefa primordial é a redescoberta da
exegese [...] a exegese é o trabalho semanal do pregador, caso contrário
ele não é um ministro fiel” (p. 182).
O que Ritschl não sugeriu foi o uso de colaboradores na exegese, o ato
que ele identificou como “a tarefa primordial”. Deve ter sido pura coinci-
dência, pois nenhum dos pastores de Maryland tinha lido o livro na oca-
sião, mas na mesma época (década de 1960) estavam desenvolvendo uma
abordagem “colaborativa” à tarefa da exegese ao reunir-se toda semana e
ao buscar aprender como poderiam auxiliar e desafiar uns aos outros na
tarefa exegética. Convencidos de que a exegese sólida é indispensável, e
percebendo que eles mesmos não estavam chegando a isso, desenvolveram
uma comunidade de apoio mútuo para cumprir esse objetivo.
I
Usa-se um lecionário como base para a seleção dos textos. As leituras são
variadas e seguindo as diferentes ocasiões: as lições dos evangelhos são usa-
das na Epifania e na Quaresma; as lições das Epístolas na época da Páscoa;
as lições do Antigo Testamento em Pentecoste; as lições dos evangelhos no
Advento e na época do Natal; as lições das Epístolas na Epifania e na Qua-
resma; etc.
Cada participante tem sua vez de liderar o grupo. Todo o grupo se pre-
para, mas o líder precisa trabalhar mais arduamente que o restante. Ele
analisa a passagem, procede ao estudo vocabular, revisa a história da inter-
pretação da passagem, apresenta comentários exegéticos, depois se mo-
vendo então para as possibilidades de exposição no contexto das
necessidades congregacionais. O texto é examinado e debatido. O misto
de perspectivas propiciado pelo grupo acaba por gerar uma enorme quan-
tidade de material exegético — alguns pertinentes, outros sem pertinência
— que podem ser utilizados no trabalho posterior da exposição.
KITTEL ENTRE AS XÍCARAS DE CAFÉ 175
Quando o grupo encerra as atividades por volta das 2 horas, restam ain-
da cinco dias para utilizar o trabalho exegético do grupo na preparação de
cada um para o sermão seguinte.
Certa feita, perguntei aos membros do grupo por que compareciam sem-
pre tão fielmente, pois é alto o nível de assiduidade no grupo. Surpreen-
dentemente, todos deram como razão algo que não o trabalho exegético.
Ainda assim, a exegese é o propósito em torno do qual o grupo está estrutu-
rado. Mencionaram apoio pessoal, o senso de fazerem parte de uma comuni-
dade profissional, o atrativo de um grupo acolhedor que também desfrutava
de uma integridade capaz de permitir que compartilhassem em sigilo tan-
to os problemas pessoais quanto os de suas igrejas ou congregações.
O grupo com certeza se move, com bastante frequência, da exegese para
um tipo de terapia informal de apoio. Um pastor pode aparecer explodin-
do de ira por algo que envolva os líderes da igreja e assim interromper uma
detida análise exegética com algo que pouco diz respeito ao debate. O gru-
po facilmente abandona seu trabalho exegético pelos próximos trinta ou
quarenta minutos para tratar dessas emoções. Ou um pastor sofre uma
perda pessoal e é pastoreado pelo restante do grupo. Há um misto de in-
vestimento profissional e pessoal que com muita frequência compensa todo
o labor empreendido.
II
Ainda assim, todos concordam que não seria sábio abandonar a rigorosa
concentração na exegese bíblica. A ilustração dada foi a seguinte: seis pes-
soas se locomovem de carro para um destino, digamos, a uns mil e seis-
centos quilômetros de distância. O propósito da viagem é chegar ao destino.
Mas durante a viagem têm a grata surpresa de contarem com a companhia
de alguns no carro que amam uma agradável conversa. A rodovia se estende
pelo interior, pelos campos, tomados de belezas naturais, e no fim perce-
bem que têm a sorte de contar com motoristas não tão obcecados com o
“alvo” que não lhes permitam parar para divisar uma campina ou uma
montanha aqui e ali. Durante todo o tempo em que a viagem se processa,
os seis desfrutam não somente da paisagem, mas também das pessoas com
176 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
o pastor fica numa posição em que se torna mais visível para a maior parte
das pessoas. E ainda assim há muito pouco, seja na vida da congregação,
seja na vida da cultura, que confirme a convicção de que o sermão é, por
sinal, central ao ministério pastoral, e muito afirmando que é pouco im-
portante. Um grupo de colegas que leva a sério o alvo da pregação e as
disciplinas exigidas para fortalecê-la acumula a longo prazo um repositório
de confirmações.
III
O grupo demonstrou que a pregação exige a comunidade nas duas extre-
midades, em sua exegese e em sua exposição. Na exposição, a necessidade
de uma comunidade dispensa maiores explicações. Um pregador solitário
no ato de pregar é um absurdo — os ouvintes são um pré-requisito para a
pregação. Mas, se é necessário uma congregação para a exposição aconte-
cer, não é menos necessário que haja uma comunidade para a exegese. Pois,
enquanto existiram pressuposições cristãs na sociedade, uma espécie de
consenso entre as pessoas de que a pregação era central, não havia nenhum
problema. Ao fazer o trabalho exegético na preparação de um sermão, o
pastor sentia-se apoiado pelas expectativas das pessoas. Elas nutriam o tra-
balho exegético do pastor com suas pressuposições. A cultura estava do
lado do exegeta. Hoje os pastores não têm esse apoio. Ainda que haja uma
grande congregação para a qual pregar no domingo, não há nenhum apoio
comunitário durante a semana desafiando o pastor a pensar, a orar e a se
preparar para o ato de pregar. O mundo é ativista, e a cultura é secular. As
pressuposições das pessoas não levam em conta o trabalho exegético que
viabiliza a pregação.
Uma série de artigos num periódico teológico da atualidade foi intitulada
“Do texto ao sermão”. Vários pregadores descrevem o processo que per-
correm ao preparar um sermão. Em cada caso, o trabalho da exegese é
árduo, minucioso e indispensável. É impressionante, entretanto, que nenhum
deles se refira a qualquer tipo de comunidade como parte do trabalho
exegético. O trabalho da preparação de sermões é concebido em cada caso
como tarefa individual — o pregador solitário trabalha arduamente em seu
178 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
1
Publicado pela primeira vez em Leadership, primavera de 1987.
180 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
2
Tradução de fifth business, literalmente “quinto negócio”. Alusão à obra de Robertson Davies,
publicada no Brasil em 1986 pela José Olympio, Rio de Janeiro, sob o título O quinto persona-
gem, traduzida por Celina Cardim Cavalcante. (N. do T.)
COMO MESTRES EM CERIMÔNIAS 181
Quero falar sobre nossa vocação cristã. Depois de nos tornarmos cristãos,
chega um tempo, às vezes imediatamente depois, às vezes muito depois,
em que percebemos que algo aconteceu conosco que exige uma manifes-
tação vocacional.
Chegamos ao ponto em que não é suficiente ser salvos — queremos
compartilhar a vida da salvação. Assumimos responsabilidades inerentes à
vida dos salvos e nos vemos destinados a cargos em nossa vizinhança, em
nossa comunidade, nos quais há uma intersecção entre os caminhos de
Deus e os de homens e mulheres. As pessoas aparecem nessas encruzilha-
das, perdidas, desanimadas, fatigadas e confusas. A tarefa que pesa sobre
os cristãos nessas intersecções é dar direção às pessoas a caminho, encorajá-
las e exortá-las, dar informações sobre o tempo e as condições da estrada
e lhes servir refrescos. É um lugar incrivelmente agitado, com muito tráfe-
go em ambas as direções, e há muitos acidentes, muitas feridas e, portan-
to, muito cuidado a ser estendido.
Nem precisa dizer que os cristãos se importam, cuidam, agem com
desvelo. O barão Von Huget costumava dizer: “O desvelo e o cuidado são
a coisa mais importante. O cristianismo nos ensinou o que significa se
importar”. Os cristãos importam-se, cuidam e, caso contrário, não perma-
necem muito tempo na praça, ou não permanecem em crédito por muito
tempo. As palavras “cuidar”, “desvelar” e “importar-se” estão no âmago
1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux, 28, n.º 4, dez. de 1992. Ivan Junqueira traduz
o título, que é um fragmento do poema de T. S. Eliot “Quarta-feira de cinzas”, da seguinte
maneira: “Ensinai-nos o desvelo e o desprezo”. Poesia, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
188 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
2
Traduzido por Maria Amélia Neto. Lisboa: Ática, 1984. Há ainda traduções do poema com os
títulos “A terra desolada”, em tradução de Ivan Junqueira publicada pela Nova Fronteira em
T. S. Eliot — poesias, e “Terra devastada”. Ed. Relógio D’Água, 1999.
190 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Nesse solo sem água e sem árvores, ele viveu dia após dia, ano após ano.
Seu casamento lhe impôs constante humilhação e culpa. Sua separação da
família e do país o impediu de uma nutrição emocional e de um senso or-
gânico de pertencer a algum lugar. E então se tornou cristão. Sua conver-
são foi um escândalo entre os desdenhosos literatos, uma traição da nova
religião do desespero sofisticado para a qual ele havia escrito as escrituras
canônicas. Agora ele articulava sua fé cristã e esperança emergentes em
novos versos de poesia, ainda com mais maestria do que tinha articulado
seu ceticismo e desespero não cristãos. Escreveu “Terra sem vida” procla-
mando a morte de Deus e o vazio do mundo, converteu-se e escreveu “Quar-
ta-feira de cinzas”, fazendo essa oração que estamos usando como texto, e
então escreveu o maior poema cristão do nosso século, “Quatro quarte-
tos”,3 no qual ele reúne os fragmentos da experiência, esses pedaços de
verdade e vidas quebradas, e, num poema extraordinário, poderoso, os tece
em poesia e oração. Ele toma a experiência das esquinas, onde está a nossa
missão, intersecções nas quais todas essas colisões, acidentes, ruínas ocor-
rem entre motoristas ignorantes em relação a Deus e negadores da alma, e
monta um mundo que, por ser um mundo que Deus tanto criou quanto
redimiu, não é uma terra sem vida, mas um jardim, um jardim de rosas,
diga-se de passagem.
Um jardim de rosas substitui a terra sem vida como metáfora do mun-
do em que vivemos. Não importa com que frequência e com quantos da-
dos os jornalistas e os acadêmicos nos informem de que o mundo em que
vivemos é uma terra sem vida, não é. É uma tristeza que todos conheçam
Eliot como o poeta da “Terra sem vida”, e muito poucos o conheçam como
o poeta dos “Quatro quartetos”. Querem pular a conversão dele; querem
deixar tudo isso de fora. Mas, se nos submetemos a sua imaginação profé-
tico-poética, há quase um poder semelhante ao de Isaías, um poder capaz
de mudar nossas percepções de modo que possam assimilar a realidade do
mundo em que vivemos.
3
Trad. Ivan Junqueira; intr. Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 191
não fazer é tão importante quanto o que aprendemos a fazer. Uma das
principais causas dessa deterioração do cuidado da qual todos fazemos parte
é a recusa generalizada por aprender a não cuidar aceitando limites e res-
peitar fronteiras.
Em todas as tradições do cuidado (não apenas no Ocidente, mas tam-
bém nas culturas orientais), há frequentes conselhos para agirmos com
reserva, com desprendimento, retirando-nos, largando. “Não faça demais.”
Mas nossos tempos não honram esse conselho. Temos tanto conhecimen-
to para aplicar e tanta tecnologia com a qual aplicá-lo que não usá-lo, não
explorá-lo ao máximo, é impensável. Estamos totalmente decididos a con-
tinuar arando a toda velocidade, em frente, sem parar, ainda que em cam-
po minado. Estamos tão certos de que um pouco mais de conhecimento
nos tornará mais eficientes, que um grande avanço na tecnologia introdu-
zirá um novo nível de competência, que um orçamento mais gordo forne-
cerá os recursos para o sucesso que não fazer nada quando é possível fazer
alguma coisa foge completamente a nossa imaginação.
Mas a razão do conselho para nos reservarmos é que o ato de cuidar,
respondendo a uma pessoa em necessidade, acontece num ambiente que
já pulsa com a vida, sobejante de energia, vitalidade e beleza. Essa vida, cria-
ção em todos os seus aspectos, é excessivamente complexa e muito além
da capacidade do nosso entendimento. Percebemos que somos muito mais
ignorantes em relação ao mundo do que versados nele. Apesar de todas as
nossas explorações e descobertas, toda essa informação que está diante de
nós, todo esse entendimento de como funciona, há ainda muito mais que
não sabemos do que aquilo que sabemos. E de todas as partes da criação
que encontramos em nossas viagens, essa parte que chamamos humana é
a mais maravilhosa, a mais complexa, a mais misteriosa.
Sabemos muito sobre nosso corpo, nossa mente, nossas emoções, nos-
sa alma, sistema digestivo, culpa e perdão, funções renais, amor, fé, força
moral, esquizofrenia, hormônios do crescimento, crescer em Cristo, de-
senvolvimento fetal, formação do caráter, sinapses no cérebro, lesões no
coração, mas, quando nos vemos diante do ser humano, qualquer ser hu-
mano, a maioria do que está acontecendo acha-se além de nós. E por essa
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 199
muito mais para contemplar, tanto que jamais exaurirá nosso maravilha-
mento e nossa adoração.
Assim, à medida que Eliot nos conduz por meio da oração e da poesia
nos ritmos da criação de Deus, uma criação redimida, uma criação que
sempre está sendo formada por esses poderes da cruz e de um Cristo sa-
crificado operando sua vontade no mundo, começamos a olhar em volta.
Não desistimos de fazer as coisas, mas não nos apressamos em fazê-las
seguindo nossas próprias pressuposições. Deus é gracioso e nos dá tarefas
responsáveis para executar no jardim. Mas, se perdermos nosso senso do
santo, se perdermos a percepção do sagrado, apenas contribuiremos para
a deterioração do cuidado. A coisa mais triste, mais alarmante, é essa vas-
ta deterioração do cuidado que acontece nas comunidades cristãs. Perde-
mos o senso da oração, perdemos o senso do sagrado. Saímos para trabalhar
com as melhores intenções do mundo, mas ignorantes de nosso ambien-
te; pensamos que estamos trabalhando numa terra sem vida, quando esta-
mos trabalhando num jardim de rosas. Em vez de melhorar as coisas,
estamos pisoteando as rosas e piorando as coisas.
Ensina-nos o desvelo, ensina-nos a usar todas essas ocasiões de necessi-
dade, que são a agenda de nosso trabalho, como acessos para Deus, aces-
sos para o próximo. Ensina-nos o desvelo ensinando-nos a orar, orar de
modo que a necessidade humana se faça um ensejo para entrar na presen-
ça e na ação de Deus e as abraçar nessa vida. Ensina-nos a cuidar ensinan-
do-nos a orar para que aqueles com quem trabalhemos não fiquem menos
humanos por nosso cuidado, mas se tornem mais humanos. Ensina-nos a
cuidar para que não nos tornemos colaboradores do egocentrismo; antes,
companheiros na busca exploratória por Deus. Ensina-nos a usar cada ato
de cuidado como um ato de oração, para que essa pessoa no ato de ser
cuidada experimente dignidade, e não desdém; perceba a glória de ser par-
ticipante da salvação, da bênção e da cura de Deus, e não seja empurrada
para o merecido castigo e para a terra desolada do eu.
E, o desprezo. Ensina-nos a ser reverentes nessas ocasiões de necessida-
de que constituem a agenda de nosso trabalho, cientes de que estavas mui-
to antes com essas pessoas, criando e amando, salvando e atraindo-as.
204 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Aliados inusitados1
1
Publicado pela primeira vez em Christianity Today, 1.o de fev. de 1985.
206 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux, 26, n.º 4, dez. de 1990.
210 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
2
Hino n.o 222. Hinário para o culto cristão (HCC), Rio de Janeiro: JUERP, 1990.
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 211
ROMANCISTA
O primeiro livro sobre cuidado pastoral que significou alguma coisa para
mim pessoal ou vocacionalmente foi Ulisses, um romance de James Joyce.
Tendo penetrado dois terços nos meandros dessa narrativa, percebi o que
poderia fazer, deveria fazer, em minhas rondas como pastor, indo a casas,
entrando em hospitais, encontrando-me com as pessoas, conversando com
elas nas ruas. Antes de Ulisses, nunca enxerguei essa parte do meu mundo
como particularmente criativa. Sabia que era importante e aceitei que pre-
cisava ser levada a cabo, quer eu tivesse vontade, quer não, mas, exceto
por algumas epifanias esporádicas, não era muito interessante. Quase tudo
o mais que eu fazia — pregar, orar, escrever, ensinar, administrar — exigia
muito mais da minha mente, imaginação e espírito, extraindo o melhor de
mim e forçando-me para além dos meus limites. Mas conversando ameni-
dades com alguém no bebedouro, telefonando para uma mulher solitária,
visitando um homem no hospital, sentando-me com os moribundos — essas
eram funções mais ou menos rotineiras que eu simplesmente cumpria. Eu
as realizava satisfatoriamente, com um investimento considerável em tato,
compaixão e fidelidade. A fidelidade era a grande coisa, simplesmente es-
tar presente.
212 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Foi assim até eu ler Ulisses. Por volta da página 611, um terremoto abriu
uma fissura aos meus pés, e todas as minhas pressuposições do rotineiro
foram por ela sugadas. Todas aquelas rotinas do cuidado pastoral repenti-
namente não eram mais rotinas.
Leopoldo Bloom, o Ulisses da história de James Joyce, era um homem
muito comum. Não havia nenhum detalhe em sua vida que fosse digno de
nota, a não ser a sua rotina monótona. Dublin, cidade onde vivia, era uma
cidade muito comum, com nada nela que fosse empolgante, a não ser sua
rotina depressiva. Um ser humano comum e sem cor numa cidade comum
e sem cor fornece o conteúdo do romance. James Joyce narra um único
dia na vida do judeu de Dublin Leopoldo Bloom. Detalhe por detalhe, Joyce
nos percorre por um dia na vida desse homem, um dia em que nada de
importante acontece. Mas, à medida que os detalhes se somam, observa-
dos com um cuidado tão agudo e imaginativo (pastoral!), começa-se a de-
senvolver a percepção de que, por mais comuns que sejam, esses detalhes
são todos singularmente humanos. Bruxuleios de reconhecimento sinali-
zam lembranças do velho mito, a grandiosa narração feita por Homero das
aventuras do grego Ulisses, enquanto viajou por todo o país da experiência
e das possibilidades e por fim se achou de novo em casa.
Acordei. Joyce me fez despertar para a infinidade de significados den-
tro das limitações da pessoa comum num dia comum. Leopoldo Bloom,
comprando e vendendo, conversando e escutando, comendo e defecando,
orando e blasfemando, é mítico de um modo grandioso. A viagem de vinte
anos de Troia a Ítaca que o Ulisses de Homero fez é repetida a cada 24
horas na vida de qualquer pessoa, desde que tenhamos olhos e ouvidos para
perceber.
Agora eu conhecia meu mundo; esse é o trabalho de um pastor. Queria
poder olhar para cada pessoa em minha congregação com a mesma imagi-
nação, introspecção, abrangência com que Joyce olhava para Leopoldo
Bloom. O enredo é diferente, pois a história que está sendo elaborada diante
de meus olhos, se simplesmente puder permanecer acordado tempo sufi-
ciente para vê-la, não é a história grega de Ulisses, mas a história do evan-
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 213
3
Tradução inédita do poema de Hopkins As kingfishers catch fire, feita por Alípio Correia de
Franca Neto, sob o título Chispeia o papa-peixe, reproduzida no site <http://www.unisinos.br/
ihuonline/ index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1448>. “Por-
que Cristo atua em dez mil lugares” é o fragmento desse poema que Peterson utiliza para dar
nome a sua obra Christ Plays in Ten Thousand Places, publicado no Brasil pela Mundo Cristão
sob o título A maldição do Cristo genérico, 2007. (N. do T.)
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 215
fonte as histórias que estão sendo formuladas na vida dessas pessoas pelo
Cristo vivo — histórias nas quais às vezes chego a acrescentar uma frase,
ou talvez um ponto final, ou às vezes somente um ponto e vírgula. Vou para
esses compromissos com a mesma diligência e curiosidade que trago para
as páginas dos oráculos de Isaías, ou para um argumento complexo de
Paulo.
Há um texto maravilhoso para esse trabalho no evangelho de Marcos:
“... Ele ressuscitou! [...] Ele está indo adiante de vocês para a Galileia. Lá
vocês o verão, como ele lhes disse” (Mc 16:6-7). Adquiri o hábito de citá-
lo silenciosamente antes de qualquer visita ou qualquer encontro. “... Ele
ressuscitou! [...] Ele está indo adiante de vocês para a Galileia. Lá vocês
o verão, como ele lhes disse”. Cada vez que eu apareço, cheguei depois; o
Cristo ressurreto estava lá antes de mim. O que ele estava fazendo? O que
ele está dizendo? O que está acontecendo? Entro num quarto agora não
me perguntando o que farei ou direi, mas o que o Cristo ressurreto já fez,
já disse. Entro numa história já em andamento, algo que é ressurreição já
em progresso. Às vezes, posso esclarecer uma palavra, afiar um sentimen-
to, ajudar a recuperar um pedaço essencial de alguma lembrança, mas
sempre lidando com aquilo que o Cristo ressurreto já pôs em movimento,
já gerou.
Quando escutamos escritores sobre seus escritos, o que os ouvimos di-
zer é que eles não compõem uma história tanto quanto a história desce sobre
eles. Escrevem coisas que eles nunca souberam, ou ao menos nunca “sou-
beram” que sabiam. As imagens e as tramas entram na consciência deles,
chegando de outro lugar. Tornam-se escritores, escritores de verdade, quan-
do cultivam a abertura diante dessas idas e vindas misteriosas. Tornam-se
atentos, ouvindo essas presenças. Aí está o alicerce de toda obra criativa.
É também o alicerce da espiritualidade. Usamos as palavras para des-
pertar as percepções, para fornecer imagens e vocabulário para aquilo que
o Cristo ressurreto está fazendo nessas vidas. Para quantos Leopoldos Bloom
de Dublin James Joyce devolveu a história particular de Ulisses de cada
um? A quantas pessoas em minha congregação posso trazer a consciência
da história de Jesus que pertence a elas?
216 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
PASTOR
As palavras são o meio pelo qual o evangelho é proclamado e as histórias
são contadas. Nem todas as palavras contam histórias que proclamam o
evangelho, mas não é impossível. Nossa percepção de que toda linguagem
se origina da Palavra agora nos conduz a uma consciência de que todas as
palavras podem retornar para a Palavra e dela testemunhar. Mas muitas
vezes as palavras se separam da Palavra. Os romancistas têm sido impor-
tantes professores em mostrar a mim, um pastor, como religá-las, fazendo
uma história, retirando-as do caos da publicidade comercial, da fofoca e
do clichê, criando algo que tenha integridade e totalidade, ensinando uma
história do evangelho, uma história de Jesus.
Numa classificação meio apressada, mas que funciona, as palavras po-
dem ser postas em duas pilhas: as palavras usadas para a comunicação, e
as palavras usadas para a comunhão. As palavras para a comunhão são as
palavras usadas para contar histórias, para fazer amor, para nutrir intimi-
dades, para desenvolver confiança. As palavras para a comunicação são as
usadas para comprar ações, vender couve-flor, conduzir o tráfego, ensinar
álgebra. As duas pilhas de palavras são necessárias, mas as palavras de
comunhão são a especialidade do pastor. Se abordamos as pessoas como
mestres da comunicação, estamos tão deslocados quanto uma prostituta
num casamento. Não estamos aqui para vender intimidade. Estamos aqui
para ser íntimos. Para isso, usamos as palavras da santa comunhão.
Quando minha filha Karen era jovem, muitas vezes a levei comigo quando
visitei asilos. Era melhor que uma Bíblia. Os idosos dessas instituições se
iluminavam imediatamente quando ela entrava no recinto, encantavam-se com
o sorriso dela, lhe faziam perguntas. Tocavam a sua pele, afagavam seu
cabelo. Numa dessas visitas estávamos com a sra. Herr, que se encontrava
num estado avançado de demência. Ela gostava de conversar, e dirigia toda a
sua conversa para Karen. Contou-lhe uma história, um acontecimento de
sua infância que lhe veio à mente suscitado pela presença de Karen. Quan-
do terminava a história, imediatamente voltava para o começo, e assim
várias vezes, palavra por palavra e depois vez após vez. Depois de uns vinte
minutos disso, comecei a ficar ansioso esperando que Karen não se sentis-
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 217
falar, você não sabe o que está se passando por dentro, quem realmente
sou. Se você escuta, e eu estou contando a verdade, algo maravilhoso co-
meça a acontecer — um novo acontecimento. Passa a existir algo que não
estava lá antes. Deus faz isso por nós. Aprendemos a fazê-lo porque Deus
o faz. Novas coisas então acontecem. A salvação passa a ser uma realida-
de; nasce o amor. Comunhão. As palavras usadas dessa maneira não tanto
definem quanto aprofundam o mistério — penetrando as ambiguidades,
extrapolando o seguro e conhecido para chegar ao arriscado desconheci-
do. A Eucaristia cristã usa palavras, as palavras mais simples, “Isto é o meu
corpo, isto é o meu sangue”, que nos fazem mergulhar num ato de revela-
ção que estonteia a imaginação, que nunca conseguimos explicar, mas na
qual ingressamos. Essas palavras não descrevem; apontam, alcançam, abra-
çam. Toda vez que eu vou para eles, os moribundos, os solitários, fica ób-
vio depois de alguns momentos que as únicas palavras que importam são
as palavras de comunhão. O que aflige é descobrir quão raramente são usa-
das. Às vezes que descobrimos sermos os únicos que se incomodam em
usar palavras dessa maneira nessas ocasiões. Dentre as provações dos en-
fermos, dos solitários e dos moribundos, o córrego interminável dos clichês
e dos chavões que eles têm de escutar não é menor. Os médicos entram no
quarto para comunicar o diagnóstico; os membros da família, para comu-
nicar suas ansiedades; os amigos, para comunicar a fofoca do dia. Nem todos
fazem isso, naturalmente, e nem sempre, mas a triste realidade é que não
há uma grande dose de comunhão que aconteça nesses lugares com essas
pessoas doentes, solitárias e moribundas, pelas esquinas, nos escritórios,
nos locais de trabalho, nas escolas. Isso torna urgente que o cristão passe a
ser um especialista nas palavras de comunhão.
POETA
A maioria das sociedades tem honrado os poetas por causa da importância
geral das palavras. Martin Heidegger costumava chamar os filósofos de
“pastores do ser”. Penso nos poetas como “pastores de palavras”, velando
por elas, atando-as quando se ferem, indo ao encalço delas quando se per-
dem, conhecendo-as por nome, em amor. Sempre me pareceu que os
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 219
pastores, que tanta relação têm com as palavras, deviam gostar mais dos
poetas. Surpreende-me que amigos pastores sejam indiferentes ou hostis
para com os poetas. Mais da metade da nossa Escritura foi escrita por
poetas. Se a forma em que algo nos chega é significativo — e é —, então a
poesia e os poetas são uma força a ser considerada por qualquer pessoa
que tenha a responsabilidade de transmitir a mensagem cristã de qualquer
maneira, pois essa Palavra se fez carne.
A primeira coisa que o poeta faz é diminuir o nosso ritmo. Não pode-
mos ler um poema celeremente. Os poemas precisam ser relidos. Diferen-
temente da prosa, que enche a página com palavras, os poemas têm muito
espaço em branco, o que significa dizer que o silêncio tem seu lugar ao lado
do som como algo significativo, essencial à apreensão dessas palavras. Não
podemos ter muita pressa ao ler um poema. Observamos ligações, senti-
mos os ritmos, ouvimos as ressonâncias. Tudo isso leva tempo. Há muito
para ver, sentir, perceber. Sentamo-nos diante de um poema da mesma
maneira que nos sentamos diante de uma flor e observamos a forma, o
relacionamento, a cor. Deixamos que comece a trabalhar em nós. Quando
lemos prosa, muitas vezes assumimos o controle, mas no poema nos sen-
timos fora de controle. Algo está acontecendo que não conseguimos espe-
cificar imediatamente, e não raro nos impacientamos e deixamos o poema
para ler Ann Landers em seu lugar. Na prosa, estamos atrás de algo, ob-
tendo informações, adquirindo conhecimento. Lemos o mais rápido pos-
sível para obtermos o que queremos, de modo que possamos fazer bom
uso dele. Se o escritor não escreve bem — ou seja, se não o podemos com-
preender rapidamente —, ficamos impacientes, fechamos o livro e nos per-
guntamos por que alguém não lhe ensina a escrever uma simples frase. Mas
na poesia assumimos uma posição diferente. Somos preparados para ser
aturdidos, para voltar, prantear, ponderar, escutar. Essa observação, essa
espera, essa postura reverente acha-se no âmago da vida de fé, da vida de
oração, da vida de adoração, da vida de testemunho. Se temos demasiada
pressa em falar, cometemos sacrilégio. Os poetas nos desaceleram, os poe-
tas nos fazem parar. Leia outra vez, leia outra vez, leia outra vez.
220 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
A primeira coisa que observo aqui é que a palavra está em primeiro lu-
gar, a palavra é a coisa mais importante. “Antes de formá-lo no ventre eu o
escolhi; antes de você nascer, eu o separei e o designei profeta às nações.”
Antes de Jeremias, Deus é mostrado escolhendo, separando, designando.
Esses são todos verbos de ação. A palavra é anterior a tudo o mais. Antes
de sermos concebidos e formados no ventre de nossa mãe, somos criados
pela palavra proferida. A palavra vem primeiro. Antes do sol, da lua, das
estrelas (no Gênesis), existe a palavra. Antes de árvores, flores e peixes, a
palavra. Antes de governos, hospitais e escolas, a palavra. Se a palavra é
deslocada de seu “primeiro lugar”, de sua primazia, tudo fica em desordem.
Se a palavra fica em segundo, terceiro ou quarto lugar, perdemos contato
com esse ritmo profundo, divino originador da criação. Se a palavra for
empurrada para fora do caminho e transformada num servo da ação e do
programa, perdemos a conexão com esses vastos mananciais interiores da
redenção que brotam da palavra, a Palavra feita carne. Se a palavra for tra-
tada negligentemente, descuidadamente, vagueamos para longe das intimi-
dades pessoais e essenciais que Deus cria pelo uso da palavra. Essa é a razão
por que temos “ministros da palavra” que levam a sério o que significa ter
uma palavra. O poeta nos ajuda a observar a natureza desse ministério, que
é voltado para a palavra, em serviço da palavra, essa Palavra de Deus.
Quando Jeremias ouviu a palavra de Deus, ele atendeu. Ele disse: “Ah,
Soberano SENHOR! Eu não sei falar, pois ainda sou muito jovem”. Foi uma
espécie de resposta cheia de desculpas, mas foi uma resposta. Ele não fi-
cou ali simplesmente parado como um bobo. A palavra não é uma etique-
ta que você afixa numa caixa para identificar o conteúdo do mundo ou de
suas pessoas. Não é uma informação. A palavra é pessoal. Quando a pala-
vra realmente é ouvida, ela suscita uma resposta. De repente, algo foi cria-
do — Jeremias. Ele tem um nome, é alguém, Deus dirige-se a ele, e ele
começa a responder: “Ah, Soberano SENHOR!”. Podemos refletir sobre o fato
de Deus da manhã até a noite para o resto de nossa vida e nunca ter nossa
vida mudada. Podemos fazer exames, ingerir refeições e participar de jo-
gos por toda a nossa vida e nunca mudar senão biologicamente. Mas, quando
a palavra é falada e recebe resposta, algo novo é criado — não somente
222 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
palavras nunca são meras palavras; entram sob nossa pele, moldam nossa
vida, criam-nos de dentro para fora. Quando a palavra é proferida, pre-
gada, ensinada, dita, cantada, orada, meditada, não é o fim dela. Deus con-
tinua a vigiar essa palavra, cuidar dela, preocupar-se com ela. E nós o
vigiamos, observamos Deus vigiando sua palavra. Não, contudo, como
espectadores num jogo, mas como pastores de um rebanho, pais de filhos,
como amantes, amigos, observando os sinais da graça, observando movi-
mentos de alegria, buscando as provas de que mais uma vez essa palavra
está se tornando carne.
Os romancistas e os poetas podem ser nossos aliados para ajudar-nos a
respeitar as palavras e mostrar como elas funcionam em nossa vida. Ao
escutar as histórias ao seu redor e ao escutar as palavras diante de você,
saiba que a palavra de Deus está presente em todas essas palavras que fa-
lamos e pode se encarnar.
capítulo 20
Pastores e romances1
1
Publicado pela primeira vez no periódico Theology, News and Notes, dez. de 1991.
2
Trad. e pref. Leonardo Fróes. Rio de Janeiro: Record, 1998.
226 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
HISTÓRIA
A existência tem o formato de uma história. A forma mais satisfatória de
representar o mundo em palavras é por meio da narrativa. É a forma de lin-
guagem menos especializada e mais abrangente. Tudo, qualquer coisa, pode
ser historiado. E no momento em que está na história adquire significado,
toma parte na trama, é de alguma forma significativo. A revelação bíblica
PASTORES E ROMANCES 227
chega até nós em forma de história. Nada menos que a história é suficiente
para a grandeza e para a complexidade da verdade de Deus e da criação,
ou do ser humano e da redenção.
Um dos efeitos verbais do pecado é a destruição ou a ofuscação da his-
tória, a fragmentação da história em historietas desconexas, a redução da
história à fofoca, o desmembramento da história em listas, fórmulas ou
regras. A maioria das palavras que se nos apresentam hoje é entregue pela
televisão, pelos jornais e pelas revistas. Essas palavras não contêm nenhu-
ma história além do acontecimento, do discurso, do acidente. Não há nada
que se ligue ao passado, se estenda até o futuro, mergulhe nas profundezas
ou alce vôo às alturas. Em vez de conectar com uma dimensão mais ampla
da realidade, as palavras nos desconectam, deixando-nos numa confusão
de episódios e comentários.
Cada vez que alguém conta uma história e a conta bem e de forma ver-
dadeira, o evangelho é servido. De fora do caos dos incidentes e dos aci-
dentes, as palavras que fazem história trazem luz, coerência e conexão,
significado e valor. Se há uma história, então talvez, somente talvez, haja
(creio eu) um contador de histórias.
Wallace Stegner atuou como um dos mais importantes contadores de
histórias em e para minha vida. Cresci no Oeste americano, numa atmos-
fera um tanto anarquista/populista. Afrouxamos na autoridade e não tínha-
mos nenhum senso de vínculo com o passado. A cidade em que fui criado
tinha somente quarenta anos quando para lá me mudei. Eu não tinha nenhum
senso de tradição. A Escandinávia dos meus avós já estava distante meio
mundo, e os índios kootenai e salish, naturais do vale em que fui criado,
não eram antepassados em sentido algum.
As pessoas mudavam-se muito, em busca de “algo melhor”. Nós mes-
mos nos mudamos dez vezes enquanto eu crescia. As experiências eram
intensas e às vezes gloriosas, mas não faziam parte de nada grande ou his-
tórico, e meu entendimento do evangelho era assim reduzido ao temporá-
rio e ao “algo melhor”.
Em seu romance The Big Rock Candy Mountain [A grande e doce
montanha rochosa], Stegner constrói uma história a partir dos materiais
228 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
da minha vida. Ele foi criado a mais ou menos uns cem quilômetros de mim
(mas trinta anos antes) numa cidade não diferente da minha. Quando leio
seu romance sobre o oeste americano/canadense e seu povo, reconheço
nele a maioria das pessoas com as quais cresci, e também os sentimentos
que eu tinha, a linguagem que eu aprendi e usava, a pobreza/prosperidade
sem raízes, sem religião, com o desejo ardente de correr mundo, de ficar
na solidão. Quando adulto, corri o risco de rejeitar tudo isso a favor de algo
mais em harmonia com aquilo que eu entendia como cultura cristã. A nar-
rativa de Stegner colocou numa história os materiais da minha experiên-
cia, a terra e o clima, a gíria e os costumes, as cidades bem construídas e os
trabalhos provisórios. Ele construiu um cosmo de tudo isso, mostrou essa
região e as pessoas como capazes de trama e coerência como qualquer coisa
na Grécia de Homero ou na Galileia de Marcos.
É significativo, creio eu, que não foi o pastor em minha congregação nem
o professor em meu seminário que fez isso por mim, mas um romancista
que convencia e continua a treinar minha imaginação para assimilar tudo
ao meu redor e perceber que vale a atenção de um Autor. Não é somente
para mim que necessito dessa ajuda, mas para as pessoas ao redor de mim,
os homens e as mulheres de quem eu sou pastor. Eles também se experi-
mentam como indignos da atenção de um Autor, não sendo suficientemente
interessantes nem suficientemente importantes para ser incluídos numa
trama. E então, para que eu não seja inadvertidamente condicionado pelo
mundo a adotar uma visão jornalística dessas pessoas, ou seja, boa durante
um hora mais ou menos de atenção, mas somente se acontecem num aci-
dente ou se ganham um prêmio, leio romances com frequência e a sério,
para aprofundar e reter o hábito da história em minhas conversas e procla-
mação.
PESSOA
As pessoas a quem essa história do evangelho é proclamada são, cada uma
delas, singulares. “Não há réplicas entre as almas”, gostava de dizer o ba-
rão Friedrich von Hugel. Quando crianças, na escola, aprendemos a nos
maravilhar com o fato de que nenhum floco de neve é igual a outro, nenhu-
PASTORES E ROMANCES 229
3
Trad. A. B. Pinheiro de Lemos. São Paulo: Mandarim, 1997.
4
Trad. Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
5
Idem, 1989.
PASTORES E ROMANCES 231
percebem que são preciosas, exatamente como são, aos olhos de Deus, e
têm um lugar na salvação que ninguém jamais ocupará.
Sempre que me flagro ficando irritado e impaciente com algum peca-
dor que não se encaixa, pego outro romance de Anne Tyler e me matriculo
num retreino em reconhecimento de personagens e no ato de chamar as
pessoas pelo nome.
LUGAR
A obra da salvação é sempre local. A geografia faz parte do evangelho tan-
to quanto a teologia. A criação da terra e da água, das estrelas e dos plane-
tas, das árvores e das montanhas, da grama e das flores fornece chão e
ambiente para as bênçãos da providência e para os mistérios da salvação.
A aliança sempre tem a criação como contexto. Nada que seja espiritual
em nossas Escrituras é servido à parte do aspecto material. A criação, a
encarnação, os sacramentos, todos esses são inseparáveis do evangelho.
Quando Deus formou um evangelho universal para “todo o mundo”, ele
tornou-se encarnado em alguns quilômetros quadrados das colinas e vales
da Palestina. Um endereço de rua preciso é muito mais importante na pro-
clamação do evangelho que um mapa-múndi.
Mas as condições do mundo não favorecem essa valorização do local. O
lugar rotineiro, o lugar da residência e do trabalho, é desconsiderado, usan-
do-se termos como “lugar atrasado”, “povoado rústico”, “lugar afastado”,
“terrinha”, “provinciano” e “lugar de pouco valor”. Os lugares que são va-
lorizados são os lugares para visitar, como as Bermudas, ou lugares para
nos divertirmos, como Disney World. As paisagens exóticas e as distrações
animadoras conferem valor ao lugar, mas o lugar como tal é limitação e
confinamento, um lugar para ficar parado. O Diabo e seus anjos são tão
bem-sucedidos em nos convencer de que a criação de Deus é uma pedra
de tropeço em nossa espiritualidade que recorremos aos mais improváveis
expedientes para conferir valor ao nosso lugar: uma casa com a cama em que
George Washington dormiu, uma batalha travada duzentos anos atrás, o
reinado vitorioso de uma equipe de futebol. Quando as condições do mundo
aviltam de tal forma nossa imaginação levando-nos à desvalorização do
232 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
MICHAEL J. CUSICK
Nos meios editoriais cristãos em que o potencial de marketing, o carisma
e as fórmulas inéditas de autoajuda são, com frequência, mais valorizados
do que textos de conteúdo mais profundo, Eugene Peterson não chama a
atenção. No âmbito da espiritualidade, integridade, arte e imaginação, con-
tudo, Peterson certamente se sobressai.
Conhecido há anos como pastor de pastores, mais recentemente tornou-
se pastor do mundo anglófono com o lançamento de The message 2 [A Men-
sagem] em inglês contemporâneo. Nessa paráfrase das Escrituras, o primor
exegético de Peterson encontra-se impetuosamente com seu gênio poético,
forjados no fogo de quase trinta anos de pastorado.
“O pastorado”, diz Peterson, “é um dos poucos lugares de nossa socie-
dade onde você pode levar uma vida verdadeiramente criativa”. E, de fato,
esse homem tem sido criativo. Recebe o crédito de ter produzido dezoito
livros, inúmeras contribuições em outros tantos e dezenas de artigos de
periódicos e revistas. Sua carreira de escritor tem sido prolífica. Realiza-
ção não insignificante para um homem que ao mesmo tempo pastoreou
Christ Our King Presbyterian Church [Igreja Presbiteriana Cristo Nosso
Rei], em Bel Air, Maryland, por 29 anos.
A fim de dedicar mais tempo para escrever e ensinar, Peterson aposen-
tou-se do pastorado em 1991. Atualmente é professor de Teologia espiritual
1
Publicado pela primeira vez em Mars Hill Review, periódico de ensaios, estudos e lembretes
sobre Deus, 3: 73-90, outono de 1995. Artigo com direitos autorais reservados, reproduzido
com permissão de Mars Hill Review.
2
Colorado Springs: NavPress, 2002. Publicada na íntegra.
238 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
MHR: Quando você se refere a santidade aqui, bem como em seus escritos,
apresenta uma imagem revigorante do assunto que não parece ter muita
semelhança com a visão evangélica conservadora mais comum. Como você
define santidade?
EP: Santidade é a vida cristã madura. É conseguir juntar todas as partes,
todos os pedaços de sua vida num ato de corresponder a Deus e a ele
obedecer, além de viver com certa dose de energia. A santidade é algo
flamejante, energético. Parte da razão porque a igreja de hoje perdeu
240 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
MHR: Parte do que se perdeu pode ser recuperado por meio de uma recupe-
ração da doutrina da Trindade?
EP: Sempre precisamos de recuperação. A igreja sempre se acha num ponto
ou noutro em que precisa ser resgatada, e hoje precisamos ser resgata-
dos dessa cultura do excesso, voltada para o conforto. Tudo é coisificado,
e nós nos tornamos coisificados. Neste exato momento, está havendo uma
grande recuperação da doutrina da Trindade, mas talvez ainda não
tenha chegado ao ponto de moldar pastores, líderes e professores.
MHR: Que conceito fora do comum, radical! Preparar pessoas para vive-
rem para Deus em sua vocação, onde quer que estejam. Você certa vez
disse que, se fosse iniciar um seminário, gastaria os primeiros dois anos
estudando literatura. Poderia explicar isso melhor?
EP: Mesmo agora, em todos os meus cursos, os alunos leem poesia e nove-
las. No meu curso sobre espiritualidade, eles escrevem resenhas críti-
cas dos livros Middlemarch, O poder e a glória3 e o livro de Walter
Wangerin Book of the Dun Cow [Livro da vaca parda]. A importância da
poesia e dos romances reside no fato de que a vida cristã envolve o uso
da imaginação — afinal de contas, estamos lidando com o invisível. E a
imaginação é como somos treinados para lidar com o invisível — fazen-
do conexões, buscando enredo e personagens. Não quero descartar nem
denegrir a teologia ou a exegese, mas os nossos principais aliados nessa
questão são os artistas. Quero que a literatura esteja em pé de igualdade
com essas outras coisas. Precisam ser introduzidos como parceiros ple-
nos de todo esse negócio. A arte reflete onde vivemos. Vivemos na nar-
rativa, vivemos na história. Não vivemos como exegetas.
3
Graham GREEN. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 243
MHR: Você fala da importância dos artistas e da arte, mas parece haver
tamanha falta da arte na comunidade cristã. De que maneira pode-
mos incentivar a expansão das artes — música, literatura, teatro, escul-
tura?
EP: Aqui no câmpus da Regent sempre temos mostras artísticas, com obras
de arte que chegam a nós de artistas de toda a Vancouver. Chega tam-
bém muita música nova. A Regent é um lugar muito aberto para as ar-
tes. Creio que estejamos incentivando as artes. Parece que as artes estão
recebendo um grande foco também na igreja; ocorre, no entanto, que
não recebem a melhor projeção. Parece que há mais abertura em rela-
ção às artes.
EP: Richard Foster, Calvin Miller e Karen Mains se reuniram porque esta-
vam muito isolados em seu ofício de escritores. Como escritores, senti-
ram que ninguém se importava se eles escreviam ou não. E ninguém se
importava se escreviam bem. Os editores se importavam se eles escre-
viam ou não, mas somente dentro das condições do mercado editorial.
Então esse grupo sentiu que era importante simplesmente se reunir,
escrever juntos e acreditar uns nos outros como praticantes de um ofí-
cio para a glória de Deus. Reuniram-se e alistaram quinze ou vinte no-
mes de pessoas que iriam desejar fazer isso. Foi algo bem aleatório. Não
creio que tenha havido um processo de eleição, por assim dizer, mas
minha mulher, Jan, e eu fomos convidados. Não participei no primeiro
ano porque eu estava numa licença sabática, mas no segundo ano parti-
cipei, de modo um tanto hesitante, porque na realidade não sentia aquele
isolamento. Eu era pastor. Calvin Miller era o único pastor além de mim,
Walter Wangerin tinha sido pastor, mas a maioria deles sentia mais ain-
da o isolamento. Alguns deles são professores, editores. Mas, depois de
participar nos primeiros dias, tive certeza de que queria fazer parte.
Ninguém mais me havia tratado como escritor. Significou alguma coisa
para mim ter a confirmação de colegas como eu que se importavam se
eu escrevia bem ou não. Não me perguntaram quantos livros ou contra-
tos eu tinha em andamento. Tudo o que perguntaram foi “Somos escri-
tores para a glória de Deus?”. Nossas reuniões são anuais, durante quatro
dias. Eles passaram a ser amigos maravilhosos.
MHR: Ainda no assunto das palavras, você escreveu: “Eu trabalho com
palavras. Ao pastorear, trabalho com pessoas; não meras palavras nem
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 245
EP: Isso se acha bem no cerne de nossa teologia. No começo era a Palavra.
A Palavra estava com Deus. A revelação vem pela Palavra. E todas essas
palavras são pessoais, não há nenhuma palavra abstrata. O próprio Deus
está encarnando-se pela palavra. A linguagem é a maneira pela qual nos
revelamos uns aos outros — é o principal meio de aprofundar e manter
a intimidade. No instante em que a linguagem se torna funcionalizada,
ocorre o sacrilégio.
MHR: O que você quer dizer com “No instante em que a linguagem se torna
funcionalizada”?
EP: Torna-se funcionalizada quando usada apenas para informar ou conse-
guir que alguém faça algo por você. Ou para conseguir que alguém com-
pre alguma coisa. Como cristãos, vemo-nos presos nessa cultura, e
começamos a usar a linguagem, ainda que por necessidade, em seu sen-
tido mais aviltado. O sentido mais importante para o qual recebemos a
linguagem foi para a revelação, para a bênção. Abandonamos nossa
herança — nossa teologia, nossas Escrituras —, e tomamos essas mes-
mas palavras que começaram em santidade, um tipo trinitário de santi-
dade — uma santidade relacional —, e pensamos que, somente porque
temos as palavras certas como “Jesus salva” ou João 3:16, podemos usá-
las da maneira que quisermos. Mas não podemos. Precisam ser proferi-
das da maneira em que foram reveladas, pelo menos com a mesma
postura e tom. Creio que tenha chegado a hora de haver uma grande
recuperação da linguagem. Precisamos recuperar a natureza de nossa
linguagem porque as palavras são santas.
As pessoas são da mesma maneira. Quando olho para você, posso
ver que foi feito à imagem de Deus. Preciso estar ciente disso. Se não,
você passa a ser para mim uma maneira de encontrar um trabalho
246 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
melhor. Quando você não tem mais serventia para mim, está fora
daqui.
MHR: Você está querendo dizer, então, que precisamos ser muito mais in-
tencionais com nossas palavras?
EP: Sim, mas que isso não soe como se você tivesse de ser calculista, astuto.
Quando você leva as palavras a sério, quando respeita a linguagem, pode
ser bastante espontâneo. Por isso uso a expressão “em espírito de ora-
ção”. Se as palavras estiverem brotando de quem você é e do relaciona-
mento que você tem com Deus e com seus amigos, você pode ser bem
espontâneo com as palavras. Assim, se você está pensando em “intencio-
nal” no sentido mais fundamental do termo, concordo com você. Co-
meça com a maneira em que você percebe a linguagem e as pessoas,
como elas são exatamente. Mas, se, quando usa a palavra “intencional”,
quer se referir a um tipo de obsessão quanto a dever ou não dizer alguma
coisa, então eu discordaria. As palavras brotam de relacionamento e de
oração — uma vida de oração, não apenas de orações que você repete.
MHR: Você poderia falar um pouco mais sobre a ideia de “uma vida de ora-
ção” em oposição a orações que você repete?
EP: A oração é uma vida na qual você foi imergido. É uma dimensão inte-
rior da nossa vida num relacionamento com o Deus que falou conosco
— tão profundamente dentro de nós que há uma realidade dialógica.
Deus fez nascer a vida pelo poder de sua palavra, e nós respondemos. É
assim que a nossa vida é: quando nossa vida entra nessa palavra vívida,
essa revelação, a oração é viver nossa vida agora em resposta a isso. A
oração não pode ser confinada a determinado período de tempo. É ape-
nas nutrida nessas disciplinas, e percebemos certos aspectos dela nes-
ses períodos.
A certa altura percebi que, quando eu gasto muito tempo no ato ex-
terno da oração — no qual alguém me poderia ver pelo buraco de uma
fechadura e dizer que estou orando —, não estou então orando de fato;
estou apenas me preparando para orar. Quando me levanto depois da-
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 247
MHR: Então você não foi criado com a mentalidade de que a Bíblia era um
livro cerimonial, elisabetana?
EP: Exato, nunca foi assim para mim. Mas, quando me tornei pastor
presbiteriano, todas aquelas pessoas vinham à igreja aos domingos pela
manhã e deixavam 80% do vocabulário delas para trás. Como poderiam
ouvir o evangelho nessa linguagem reduzida, agradável, boa parte da qual
aprenderam na faculdade? Eu sabia que precisava usar uma linguagem que
elas usassem o tempo todo. E foi o que fiz durante trinta anos como
pastor. O tom e os ritmos da minha linguagem tinham de ser congruentes
com o texto, o que deu início à língua de rua.
250 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
MHR: Ouvindo como a mão de Deus estava sobre sua vida mesmo quando
era um menino, e como os seus primeiros dias no açougue de seu pai in-
fluíram em como você traduziria as Escrituras mais tarde na vida —
que retrato poderoso da providência!
EP: Creio nisso, com certeza. Consigo enxergar tanta coisa agora, como o
fato de que eu estava sendo preparado para fazer a The Message quando
tinha 4 anos de idade. A The Message foi tão bem recebida, e é algo que
me deixa totalmente surpreso. Eu não tinha nenhuma ideia, nem mes-
mo a mínima noção, de que isso aconteceria. Comecei a pensar: “Como
isso acontece?”. Nunca me sentei para fazê-lo — simplesmente aconte-
ceu. Em certo sentido, foi totalmente sem esforço. Trabalhei arduamente
e investi longas horas, mas não era como se eu estivesse tentando fazer
algo que eu não sabia fazer.
MHR: Algumas das palavras usadas para descrever a The Message são “de
tirar o fôlego”, “cativante”, “vai deter as pessoas em seus caminhos”.
Como você se sente com essas descrições?
EP: Entendo que as pessoas se entusiasmam e exageram. Mas parece-me
que as pessoas ficam surpresas que a The Message seja tão comum. Não
sabiam que Deus estava falando com elas onde estavam, que entrou na
vida delas onde estavam. Temos essa ideia de uma vida dicotomizada —
uma vida religiosa e uma vida secular. Bem, aqui está algo secular, e as
pessoas são pegas de surpresa. Se é disso que elas estão falando, então
fico contente. Mas acho que é o caráter comum da The Message que
surpreende as pessoas.
MHR: Parece que é o caráter comum que se mostra mais poderoso para as
pessoas. Um pastor disse que espera que a The Message “despedace to-
talmente nosso pensamento acomodado sobre a Bíblia”. Por que você acha
que ficamos tão à vontade com as Escrituras?
EP: Creio que seja em parte o nosso pecado. Uma das mais incríveis
façanhas do Diabo é fazer que as pessoas passem três noites por sema-
na em estudos bíblicos.
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 251
MHR: Você diz que tratamos o texto como se tivesse vida própria. Muitos
diriam que de fato ele tem vida própria — então, obviamente você deve
ter outra coisa em mente quando diz isso.
EP: Acho que gostaria de expressar isso de outra maneira. Tratamos o tex-
to como se estivesse num mundo todo seu, à parte, separado de nossa
vida. Ainda assim, esse texto revela Deus agindo amorosamente no
mundo. E a intenção do texto é aproximar-nos desse mundo da ação de
Deus. O estudo é normalmente um processo hiperintelectualizado —
nos tira dos relacionamentos. Assim, imagino que toda a ênfase no es-
tudo bíblico não é a melhor coisa quando encarado como algo especial
que os cristãos fazem, e, quanto mais fazem, melhor. Precisa ser inte-
grado a algo mais integral.
MHR: Então existe uma interação muito natural entre o texto e nossa
vida.
EP: Sim, mas aqui também eu digo que, enquanto formos ignorantes em
relação às Escrituras, não teremos a menor ideia do que Deus está fa-
zendo. Realmente precisamos recuperar o mundo da Bíblia como um
todo. O que vejo acontecer é que, quando as pessoas leem a Bíblia, elas
reduzem o mundo a algo que chamam estudo bíblico. Mas o mundo da
Bíblia — o mundo revelado nas Escrituras — é um mundo muito maior
do que qualquer coisa que você tenha nos jornais ou nos livros de histó-
ria. Se estamos fazendo o estudo bíblico corretamente, precisamos ter
252 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
MHR: Você escreveu a The Message para “os de fora que não dão a mínima,
e para os de dentro, totalmente entediados”. Quem são essas pessoas?
EP: Os de fora não veem que a fé cristã tenha alguma relação com eles.
Acham que o cristianismo é para os religiosos. E, como não são religio-
sos, não vão abrir a Bíblia. Há muitos também que foram intimidados
pelos cristãos e não se sentem à altura. Pensam que, se não passarem
por um estágio preliminar, como pré-requisito, não podem compreen-
der o que se passa. Há uma enorme quantidade de ignorância sobre Deus
e as Escrituras. Parte dela é perpetuada pela intimidação. É como se você
tivesse de ter um curso introdutório especial antes de saber o que está
se passando. Os entediados de dentro são os que encontro o tempo todo.
Ouviram as Escrituras vez após vez, e perderam contato com a realida-
de dessas palavras.
Aqui também vemos algo que faz parte da providência que você men-
cionou. Eu tinha uma congregação que era um misto dos dois grupos.
Havia pessoas que tinham crescido na igreja e estavam lá a vida toda.
Era uma espécie de convenção para elas. Também havia pessoas que nun-
ca tinham ouvido falar de nada que fosse cristão. Não poderia dizer o
nome Abraão e esperar que as pessoas soubessem de quem eu estava
falando. Então tive de aprender a dizê-lo porque eu tive todos esses “de
fora” que não sabiam nada sobre a religião ou sobre o cristianismo. Eles
me forçaram a deixar que a linguagem deles fosse a língua da minha
pregação e do meu ensino. Tive de aprender isso. Mas se você é “de
dentro”, é bem fácil ter os ouvidos embotados — e eu queria acordar
essas pessoas. É o que os pregadores devem fazer a cada domingo — e
é o que tenho feito toda a minha vida.
mais difícil que eu já fiz até agora. Fiz tudo aos poucos, e deixei esse
para o final. Acho que o resultado foi muito bom. O que percebo é que
perdemos uma linguagem em torno da sexualidade. Ou temos eufemis-
mos, ou vulgaridades. Mas a inocência doce e erótica de Cântico dos
Cânticos — onde você vai encontrar isso? Não sabia se havia sobrado
alguma linguagem para expressar isso. Fiquei feliz com o que fiz lá.
MHR: No meu entender, você fica mais à vontade com a língua semítica do
Antigo Testamento. O trabalho de tradução aí é mais fácil e mais natu-
ral para você do que no Novo Testamento?
EP: Creio que sim, mas é difícil ter certeza a esta altura. Meus estudos de
pós-graduação foram em línguas semíticas. Assim tecnicamente sei mais
hebraico, mas tenho lido grego há 35 anos e me sinto igualmente à vontade
nessa língua. Mas há de fato um senso de estar totalmente à vontade que
passo a experimentar à medida que avanço no Antigo Testamento.
MHR: Há planos para algum dia publicar a The Message como uma Bíblia
inteira num único volume?
EP: Sim, se o Senhor não retornar antes! Acabei de propor uma progra-
mação para o meu editor. Espero terminá-la em seis anos. Eu a dividi
em quatro seções, com dois anos por seção. Acabei de concluir os
Sapienciais. Em seguida, farei os Livros Históricos, depois os Proféti-
cos, depois o Pentateuco. Acredito ter uma programação que funciona-
rá bem. O Novo Testamento foi concluído em aproximadamente um
ano e meio. Foi demais, com muitos longos dias nos quais eu não fazia
mais nada além disso. Quando terminei, decidi nunca mais manter esse
ritmo. Então a NavPress perguntou se eu faria o Antigo Testamento, e
minha primeira reação foi: “Não! Não posso viver assim”. Mas à medi-
da que as respostas começaram a chegar, percebi o que estava aconte-
cendo. Depois de aproximadamente seis meses, pensei: “Senhor, talvez
esse seja o meu trabalho”. Orei longas horas e conversei sobre isso por
muito tempo. Era um compromisso assombroso. Mas concluí que esse
era o meu trabalho agora.
254 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
MHR: Parece algo que nos põe no nosso lugar. E ainda assim você tem a
excelente companhia de Paulo, João e outros.
EP: Exato. Mas meu trabalho no Antigo Testamento significa que não es-
tou escrevendo muita coisa que gostaria de escrever. Ainda estou escre-
vendo algumas coisas. Mas percebi que esse é o meu trabalho. Foi o que
me deram para fazer. Então vou fazer.
MHR: Temos notícia de que J. B. Phillips lutou com depressão pelo fato de
sua tradução do The New Testament in Modern English [Novo Testa-
mento em inglês moderno] ter sido tão aclamada. A The Message exer-
ceu uma influência assim sobre você?
EP: A depressão de Phillips começou logo depois que ele concluiu a tradu-
ção. E ele tinha também um histórico de depressão mesmo antes de seu
trabalho de tradução. Foi muito maltratado. Houve gente que pegou
pesado com ele, dizendo que não poderia ter feito a tradução. Acho que
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 255
EP: Não tive muito esse tipo de reação, e acho que a NavPress também
não. Uma vez ou outra, alguém escreve uma carta, mas só às vezes mes-
mo. Tenho tido surpresas muito agradáveis, porque recebo cartas ma-
ravilhosas. Uma mulher de 87 anos, por exemplo, me escreveu. Ela disse:
“Sou uma mulher da Bíblia King James, mas tenho todos esses sobri-
nhos e sobrinhas que não leem a Bíblia. Pensei que talvez pudesse presen-
tear-lhes com a The Message; então comprei um exemplar e fui analisá-lo.
Quero que saiba que eu mesma nunca mais vou lê-la, mas eu a comparei
com a minha King James e acho que está aprovada. Estava certa todas as
vezes, então vou dá-la a todos os meus sobrinhos e sobrinhas”.
tem vivido essa ideologia toda a sua vida. Como você chega por trás
disso? Geralmente não é argumentando, nem sendo racional.
MHR: Você escreveu que Jesus era “o mestre das indiretas”. Os evangélicos
são diretos demais com o evangelho, frontais demais?
EP: Eu hesitaria em dizer que somos demasiadamente frontais, porque faz
parte da proclamação — o reino de Deus está perto, arrependam-se,
creiam no evangelho. Mas, sim, precisamos praticar muito mais a arte
de ser indiretos. É basicamente o que faz o poeta ou o romancista. Não
diria que precisamos fazer menos trabalho frontal com o evangelho.
Apenas precisamos praticar mais os elementos subversivos.
MHR: Eu li um artigo em que você escreveu: “Toda vez que alguém conta
uma história e a conta bem, o evangelho é servido”. Você quer dizer que
precisamos apresentar o evangelho de outras maneiras que não apenas
“Aqui estão os passos para ser salvo?”.
EP: Creio que a palavra-chave no que eu disse é “servido”. Não quis dizer
que o evangelho é proclamado toda vez que alguém conta uma história.
Quando as histórias são contadas, as pessoas começam a adquirir um
senso de que a vida tem valor e significado, e de que elas são significan-
tes. Então começam a buscar esse significado, perguntando “Onde
está o significado? Onde posso encontrar valor?”. Mas enquanto as
pessoas não começam a perceber como estão entrelaçadas na criação
e no sofrimento, que não são meros acidentes de percurso, na verdade
elas não ouvem a história do evangelho. Então a palavra importante é
“servido”.
Se você estivesse parado numa esquina, e um solitário se aproximas-
se, você poderia perguntar “Como vai?”, e a pessoa poderia começar a
responder. Se você a escutar, em cinco minutos, parte da vida dessa pes-
soa renasce. O fato de você deixar que ela conte sua história fornece
um contexto para ela receber Jesus e para o Espírito Santo trabalhar.
Mas, se sente que não tem nenhuma história, então não há nenhum con-
texto, nenhum senso de pertença.
258 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
MHR: Então seria mais uma porta de entrada para proclamar o evan-
gelho?
EP: É também uma forma de se familiarizar com a maneira em que o evan-
gelho chega a nós por padrão. Chega-nos por meio da história de Jesus,
não por meio da doutrina de Jesus. Ele nasce, vive, morre, ressuscita —
é história do começo ao fim. É muito importante manter a história, e
não apenas extrair ideias dela.
MHR: Evangelismo é uma palavra com a qual você fica pouco à vontade tendo
em vista a maneira em que ele vem sendo usado. O que é evangelismo
para você?
EP: Não fico à vontade com ele em seu sentido intimidador. Não tenho
nenhum problema com ele em seu sentido etimológico. Evangelismo é
crer e viver como se isso realmente fosse boa notícia, como se fosse uma
notícia inacreditável, e temos algo a dizer. O evangelismo também sig-
nifica que aprendemos a contá-la da maneira que Jesus a contou, e não
apenas da maneira que queremos contá-la. Precisamos aprender não só
a verdade dele, mas também seus métodos, de modo que possamos
aprender a tratar as pessoas com dignidade.
Outro dia, ouvi uma história terrível de uma de minhas alunas que
tinha acabado de chegar de Ruanda. Enquanto trabalhava em meio a mo-
ribundos, pessoas sangrando e chacinados, saiu andando entre os cor-
pos marcando sobre a testa os que poderiam se beneficiar de tratamento
médico. Uma equipe de médicos seguia após ela para cuidar e tratar de
cada um. Mas havia um homem, um colega missionário, que estava ven-
dendo folhetos para essas pessoas. Ela perguntou:
— O que você está fazendo?!
Ele respondeu:
— É surpreendente que tenham dinheiro com eles. É espantoso quan-
to dinheiro essas pessoas têm.
Parece inacreditável. Mas, se você parar para pensar por dez segun-
dos, verá que já viu isso em você mesmo. Talvez não de maneira tão cho-
cante, mas já viu em você mesmo.
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 259
MHR: Por que não? Você não gosta de falar de si mesmo, gosta?
EP: Gostaria de ser lembrado como bom marido, bom pai, bom pastor.
Gostaria de ser lembrado da perspectiva das pessoas com as quais con-
vivi.
MHR: Acho poderosa sua resposta. Muitas pessoas poderiam pensar: “Ele
fez a The Message, escreveu dezesseis livros, foi pastor...”. Mas você sabe
que nada disso tem sentido se os mais próximos a você não foram ama-
dos. Se soubesse que teria de entregar seu último sermão ou mensagem,
quais seriam seus possíveis temas?
EP: Creio que gostaria de falar de coisas imediatas e comuns. No tipo de
mundo em que vivemos. A principal maneira de chamar a atenção das
pessoas para Deus é dizendo “Com quem você vai tomar o seu próximo
café da manhã, e como vai tratar essa pessoa?”. Não sinto que eu faça
parte da grande visão, ou do slogan mais atraente. Somente quero pres-
tar atenção ao que as pessoas estão fazendo, e ajudá-las a fazê-lo em atos
de fé e oração. Talvez gostaria de dizer: “Vá para casa e seja bom para
sua esposa. Trate seus filhos com respeito. E faça um bom trabalho na-
quilo, o que quer que seja, que colocaram em suas mãos para fazer”.
capítulo 22
Casualmente intencional:
uma abordagem ao pastorado1
Em seus dezoito anos como pastor da Christ Our King Church [Igreja Cristo
Nosso Rei] em Bel Air, Maryland, Eugene Peterson fez muitas reflexões sobre
o pastorado bem-sucedido: O que é ele? Quem o exerce? Como é exercido?
As respostas? Eugene não sabe se há respostas claras e definidas, mas
concordou conversar sobre os problemas numa entrevista à revista
Leadership [Liderança]. No processo, obtemos vislumbres de sucessos e
fracassos, suas frustrações, as satisfações e, sim, as constantes lutas. Em
suma, obtemos um retrato da maneira em que ele exerce o pastorado.
Eugene desenvolveu sua abordagem ao pastorado com base em sua ex-
periência e no estudo bíblico em sua obra O pastor que Deus usa.2
O diretor editorial Harold Myra, o editor Terry Muck e o editor assis-
tente Dan Pawley acharam Eugene particularmente iluminador, não somen-
te por suas estratégias ministeriais, mas também pelos aspectos pessoais
de sua vida. Eugene é um homem que lê mistérios, extrai introspecções
teológicas de romances clássicos, corre em maratonas e faz longas trilhas
com a mulher pelas montanhas.
1
Publicado pela primeira vez em Leadership, inverno de 1981.
2
São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
262 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
ser pastor. Então uma noite me reuni com o conselho para renunciar ao
cargo. “Não estou fazendo o que vim fazer aqui”, eu disse. “Estou infe-
liz, e nunca me sinto à vontade”. O que precipitou aquilo foi quando uma
filha me disse: “Faz 32 dias que você não para em casa de noite”. Ela
ficou marcando os dias! Eu era obsessivo e compulsivo com meus deve-
res administrativos, e não via como me livrar das pressões que me esta-
vam deixando daquela maneira. Foi quando eu disse “Desisto”.
Faz agora dezoito anos que você ficou na Christ Our King Church [Igreja
Cristo Nosso Rei], e, nos últimos doze, seus presbíteros administraram a
igreja com sucesso. A que você atribui isso?
Imagino que à confiança mútua. Nem sempre fazem as coisas da ma-
neira que eu quero, mas, quando decidi que não ia administrar a igreja,
também tive de decidir que, para eles a administrarem, precisavam fa-
zer as coisas do jeito deles, não do meu. Eles me ouvem pregar, fazem
parte da mesma comunidade espiritual e conhecem os valores que es-
tão sendo criados e desenvolvidos; então confio que administrarão a
igreja da melhor maneira que sabem. Às vezes fico impaciente, porque
não é a forma mais eficaz de administrar uma igreja; muitas coisas fi-
cam sem fazer.
Você está dizendo que sua principal prioridade tem de ser seu ministério
pastoral? E que algumas outras coisas boas, como tornar a administração
da igreja mais eficiente, devem ser deixadas para outras pessoas? Não há
nada que você possa fazer a respeito porque sua prioridade é seu ministério?
Exatamente.
Mostre-nos uma das coisas ineficazes que você permitiu que acontecesse,
ainda que muitos líderes o encarassem como um lapso administrativo.
Recordo-me do caso de uma mulher que estava trabalhando como vo-
luntária na coordenação de diversos programas bem relacionados entre
si. Quando começou, ela estava muito empolgada com aquilo e realizou
264 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
É fascinante como você utiliza alusões literárias. Por que um pastor deveria
ter tempo para ler Dorothy Sayers? Não seria um desperdício? Você não
deveria estar mergulhando em teologia?
Leio porque amo ler. Os romances são alimento para mim. Preciso es-
tar imerso nesse tipo de realidade para manter minha mente nos trilhos
e me manter em contato com as coisas que estão acontecendo. Às ve-
zes, leio histórias de detetives; são como um tônico espiritual para mim.
Quando realmente me sinto obstruído e pesado, quando tudo é compli-
cado, quando não consigo me entender, saio por dois dias e leio roman-
ces policiais. Tenho de fazê-lo às escondidas — ou seja, preciso manter
meu trabalho em funcionamento. Faço as chamadas telefônicas, vejo
as pessoas, realizo as visitas, mas depois corro de novo para algum
cantinho e devoro outra história.
3
Há várias traduções para o português.
4
Rio de Janeiro: Globo, 1948.
5
Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 269
Mas, se você está lendo um romance e encontra uma ilustração muito boa e
clara, não é uma tentação transmiti-la às pessoas que o escutam?
Sim, mas quero pregar a Palavra de Deus. As Escrituras são o único texto
importante para mim quando prego. Quero que a minha congregação
saiba o que as Escrituras têm a dizer sobre o que elas estão passando.
Começo meu sermão na terça-feira, escolho a passagem, e por toda a
semana dialogo com aquela passagem, não apenas pessoalmente, mas
em comunidade.
Quando me apresento no púlpito no domingo, espero que as pessoas
percebam que estou me dirigindo a elas no sermão, porque as escutei;
eu fiz as perguntas delas, expressei as dúvidas delas, andei com elas em
meio ao seu tédio.
entra nas alas do hospital alegre e feliz — não insensível, mas trazendo
consigo aquele senso de vida e vitalidade. Essa é uma excelente passa-
gem para ensinar os pastores sobre a visita pastoral em hospitais.
Você disse que a pregação deve ser da Palavra. Que dizer do papel do pastor
como um todo? Ele brota direto da Palavra, ou os tempos mudaram seus
critérios?
Há mais ou menos cem anos, os pastores tinham um claro senso de
vinculação com as tradições passadas. Você sabia que estava fazendo um
trabalho que não existia num vácuo, mas estava integrado ao de outros
tantos antes de você; sua vida tinha um valor e uma integralidade reconhe-
cidos. Hoje, isso simplesmente não é assim; estamos fragmentados fa-
zendo coisas distintas. Já no púlpito, você tem esse senso de vinculação.
Quando estou pregando, sei que estou realizando um trabalho que está
vinculado lá atrás com Isaías. Eu preparo sermões um tanto como Agos-
tinho e Wesley preparavam sermões. Estou operando a partir da mesma
Escritura, de modo que não me sinto um pregador de terceira categoria
quando estou no púlpito.
Durante a semana, entretanto, com certeza me sinto desdenhado —
quando vou fazer visitas no hospital, por exemplo, não passo de um in-
cômodo mal tolerado. Eles podem falar tudo o que quiserem sobre as
equipes de cura, mas…
6
São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
272 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
por ele a fim de fazê-lo. Quando eu era mais jovem, sempre me via fa-
zendo coisas que não estavam em meu ministério. Por fim, aprendi a dizer
“Não, você não vai mais fazer isso”. Muitas vezes, digo não. Eu decepcio-
no muitas pessoas, sobretudo as da comunidade e da minha denomina-
ção. Elas têm expectativas que querem que eu atenda.
vez, eu dizia: “Você vai se certificar de que não se trata de uma inquieta-
ção normal”, e mergulhei de novo e saí bem. Deixe-me ilustrar:
Nos últimos anos, senti como se estivesse perdendo impacto. Deixei
de fazer muitas coisas com as quais costumava me entusiasmar. Senti
que minha vida foi ficando cada vez mais interiorizada. Meu interesse
mais profundo é pela orientação espiritual, e, como nossa comunidade
tem muitos psiquiatras e conselheiros, parei de aconselhar para poder
gastar mais tempo sozinho estudando e orando. Mas então percebi que
grandes lacunas começaram a se formar na vida da minha congregação.
Eu havia subestimado as necessidades da comunidade, na realidade não
estava fornecendo liderança à comunidade. Senti que meu povo mere-
cia mais de seu pastor do que eu estava oferecendo. Pensei que talvez
me enquadrasse numa igreja com uma equipe de funcionários aos quais
se pudessem atribuir as tarefas relacionadas aos programas da congre-
gação, e eu pudesse estudar mais e manter um ministério de orientação
espiritual e de pregação.
Conversei com um amigo sobre isso por três dias. Ele me escutou
pensativamente e então me disse: “Não acho que você precisa sair; só
precisa de alguém que seja diretor da vida da igreja”. No momento em
que ele disse isso, pensei em Jane. Ela é uma mulher de aproximada-
mente 35 anos que me procurou na primavera passada dizendo que es-
tava numa fase de transição, imaginando qual seria o próximo desafio
para ela. Ela havia organizado programas para a comunidade, tinha rea-
lizado um trabalho extraordinário na administração desses programas;
e agora estava relativamente ociosa. Quando perguntei se ela aceitaria
ser diretora da vida da congregação, um grande sorriso se abriu em seu
rosto. Ela me disse: “Vou lhe contar uma história”. Seu marido era pres-
bítero, e dois anos antes estava numa reunião em que eu compartilhara
esse problema sobre minha liderança. Depois daquela reunião, Fred
voltou para casa e disse: “Sabe de que o Eugene precisa? Precisa de você”.
Levei dois anos para reconhecer isso. E agora Jane se encontra num ponto
em sua vida em que está pronta para assumir seu papel de diretora da
congregação. Ela precisa estar no ministério e está preenchendo parte
da lacuna deixada pela minha retirada. Estou livre para estudar mais e
274 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Por que isso destruiria? Por que não pregar no domingo para mais 350 pessoas?
Porque eu teria de parar de fazer o que preciso fazer — orar, ler, prepa-
rar-me para o culto, visitar, dar orientação espiritual às pesoas, desen-
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 275
Algumas pessoas neste momento talvez dissessem: “Tudo bem, você ficou
dezoito anos em sua igreja; mas fica evidente que tem pouquíssima sensibi-
lidade pela necessidade de evangelização. Se todas as igrejas agissem como
a sua, como o mundo seria evangelizado?”.
Minha resposta é que o Senhor tem muitas outras pessoas. Preciso apren-
der a usar meus dons. Não sou evangelista, sou pastor. Há evangelistas
em minha congregação que fazem um trabalho muito bom. Não acres-
cento muita coisa a eles; não sei como conduzi-los. Outro pastor conse-
guiria desenvolver um trabalho melhor com eles. Creio que a
evangelização é trabalho essencial, mas não significa que deva torná-la
o foco total de minha igreja. Meus dons acham-se em outras áreas.
Algum tempo atrás, você ressaltou que a pregação é de alguma maneira muito
mais difícil do que um século ou dois atrás. O que mudou para produzir
esse resultado?
A pregação cem anos atrás era um tipo de conversação instruída e so-
fisticada entre pastor e ouvintes. As pessoas conheciam a Bíblia tão bem
quanto o pastor, e todos compartilhavam da mesma cultura. Hoje a
maioria das pessoas são iletradas biblicamente; entram de manhã no
culto de domingo duvidosas, não com maturidade e integralidade, mas
fragmentadas por todo tipo de coisas. A congregação reunida no domin-
go pela manhã é um hospital, e você simplesmente não pode fazer o que
se fazia anos atrás.
Você sabe que é um hospital porque esteve envolvido com pessoas, viu trau-
mas e dores em primeira mão durante a semana?
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 277
Mas todo pastor não tem de ser um administrador ainda que esse não seja
o seu dom?
Todo pastor tem de se certificar de que haja administração. Se você não
cuidar para que ela aconteça, está em apuros. O pastoreio no século XX
requer duas coisas: primeira, ser pastor, e segunda, administrar uma
igreja. Não são a mesma coisa. Todo seminário deveria dizer o seguinte
para seus alunos que buscam o ministério pastoral: “Olhe, Deus o cha-
mou para ser pastor, e queremos ensinar-lhe como ser pastor. Mas o
fato é que, quando sair em busca de trabalho, há uma grande proba-
bilidade de que eles não queiram contratar somente um pastor, vão
contratar alguém para administrar a igreja. Agora, vamos mostrar como
administrar uma igreja, e, se você dominar o que estamos lhe dizen-
do, talvez gaste de dez a doze horas por semana nessa atividade. Esse é
o preço que terá de pagar a fim de estar na posição de pastor”.
Quais são algumas das coisas que você faz para pagar esse preço?
Eu respondo às ligações telefônicas prontamente. Respondo rapidamente
às minhas correspondências. Semanalmente publico o boletim da igre-
ja. Creio que isso é essencial. Quando o boletim de notícias da igreja é
publicado uma vez por semana, as pessoas percebem que você está no
comando das coisas; elas veem seus nomes e o que está acontecendo. É
um bom instrumento de relações públicas.
Várias igrejas têm um grupo que se reúne mensalmente para ser uma placa
de som para o pastor, para realmente ouvir suas preocupações, e talvez para
280 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
atuar como uma espécie de ombudsman para ele. Como você se sentiria em
estabelecer um grupo assim?
Eu me sentiria muito bem!
Em sua reunião semanal com seus ministros locais, quais são os maiores
problemas que você ouve?
Familiares e conjugais. Diria que são as coisas mais dolorosas em se
tratando de crise pastoral. Outro problema, que não tem o mesmo peso
de gravidade, é o sentimento de ser insatisfatório. Quando os pastores
não têm congregações grandes ou não recebem afirmação de sua con-
gregação, é muito difícil para eles fornecer uma liderança espiritual
criativa. Aliás, considerando a baixa afirmação que muitos recebem, sur-
preende que eles consigam fornecer alguma. Um dos ministérios-chave
de leigos é a afirmação de seus líderes.
Como você encontra maneiras de se afirmar sem ser dependente dos elogios
das pessoas?
Creio que esteja ligado a uma descoberta da minha necessidade de nu-
trição espiritual e a garantir que eu obtenha essa nutrição. A oração é
muito importante para mim — não posso funcionar sem ela.
Como quais?
Você faz aquilo que atende às expectativas da congregação de modo que
possa desenvolver uma sociedade confortável onde todos são legais com
todos. Ou você faz boas obras e as pessoas passam a respeitá-lo, e então
fica fácil parar de crescer e viver dessas realizações passadas. Há tam-
bém o perigo bem real de se tornar muito imponente para as pessoas —
seu alvo é desenvolver nelas um senso de maturidade, de independên-
cia, de relacionamento direto com Deus.
O outro lado da moeda é como é possível desenvolver uma comuni-
dade se não numa situação de longo prazo? Demorou cerca de cinco anos
para acontecer o primeiro incidente em nossa igreja. Somente nos últi-
mos seis ou sete anos, senti que o senso de comunidade realmente co-
meçou a acontecer.
Agora posso sentir que sou pastor de uma comunidade de pessoas, não
apenas de um apanhado de próximos.
capítulo 23
Espiritualidade subversiva1
Por 29 anos, Eugene H. Peterson foi o pastor fundador da Christ Our King
Presbyterian Church [Igreja Presbiteriana Cristo Nosso Rei], em Bel Air,
Maryland, Estados Unidos. Na época da entrevista, 1991, tinha acabado
de pedir exoneração do cargo de pastor. Ele descreveu sua decisão da
seguinte maneira:
1
Publicado pela primeira vez no periódico The Door, nov./dez. de 1991.
2
São Paulo: Cultura Cristã, 2005.
3
Rio de Janeiro: Textus, 2005.
4
São Paulo: Mundo Cristão, 2008
286 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Door: Até que ponto quanto somos ocupados afeta nossa vida espiritual?
Peterson: A vida de muitas ocupações e afazeres é inimiga da espiritualida-
de. No fundo, é o mesmo que preguiça. É fazer a coisa fácil em lugar da
difícil. É encher nosso tempo com nossas próprias ações em vez de prestar
atenção às ações de Deus. É assumir o comando.
Door: Há um velho ditado russo que diz: “Ore a Deus e continue remando
até a praia”. Implica que a vida é tanto ativismo quanto espiritualida-
de. A vida não tem de ser uma coisa em detrimento da outra, tem?
Peterson: Precisa ser uma coisa em detrimento da outra. Ativismo em nada
se relaciona com atividade, e espiritualidade não é a ausência de ativida-
de. Ou você participa daquilo que Deus está fazendo, ou não. Uma pes-
soa ocupada é uma pessoa preguiçosa porque não está fazendo o que
deve fazer.
5
Rio de Janeiro: Textus.
6
Rio de Janeiro: Habacuc.
7
São Francisco: Harper Row, 1989.
8
São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA 287
Door: Parece que a maioria dos pastores que conhecemos é exatamente como
você descreveu. Ocupados e ocupados, fazendo o trabalho da igreja.
Peterson: A maioria dos pastores quer dirigir uma boa igreja, e fará sim-
plesmente quase qualquer coisa para que isso aconteça. Nós, pastores,
costumamos ter bom faro. Sentimos quando as pessoas estão começando
a ficar um pouco enfadadas e aí agitamos um pouquinho as coisas,
desafiamo-las com um projeto novo e usamos o “culto de adoração” de
domingo de manhã como o palco para isso. Estou convencido de que a
maioria dos pastores não dá um trocado pelo culto de adoração. Com
certeza não. E há uma razão boa para isso. O verdadeiro culto de adora-
ção não faz nada acontecer. É ali que a gente na verdade perde o contro-
le, é desmamado da linguagem e do entretenimento manipulativos. É
difícil praticar essa realidade porque, diante da escolha entre adorar e
dançar em torno do bezerro de ouro, os pastores sabem que as pessoas
vão dançar. Os pastores sentem que, se realmente forem praticar o cul-
to de adoração, vão esvaziar muito rapidamente o santuário.
Door: Ficamos chocados porque não ouvimos você mencionar uma única
palavra sobre a participação do pastor em reuniões de comitês.
Peterson: Eu não participo dessas coisas.
pessoas não sabem o que o pastor faz. Sabem o que seu médico faz,
sabem o que seu advogado faz, então ajudo-as a compreender o que seu
pastor faz. A razão por que não vou às reuniões de comitê não é porque
sou bom demais para elas; não vou porque acredito nelas. O ministério
delas têm simplesmente tanta validade quanto o meu. Não entendo que
o pastor é a pessoa mais importante da igreja, mas a tarefa que recebe-
mos é muito importante, e é melhor cumpri-la.
Door: Isso soa tão... bem… o contrário do que a maioria das pessoas pensa
que um pastor bem-sucedido deve fazer.
Peterson: Os pastores não devem dar às pessoas o que elas querem só por-
que isso faz encher a igreja... e faz mesmo. O maior inimigo da igreja é
o desenvolvimento e a proliferação dos programas que buscam satisfa-
zer as necessidades das pessoas. Todos têm fome de Deus, mas nossos
gostos (necessidades) estão deteriorados. Fomos criados à base de ali-
mento de baixa qualidade, de modo que o que pedimos é frequentemente
errado ou distorcido. A arte da liderança espiritual não é dizer às pes-
soas que elas não podem ter o que querem, mas dar a elas parte daquilo
que pediram, mas sem deixar por isso mesmo. Você tenta deslocar len-
tamente as dimensões da vida delas em direção a Deus.
Door: Apocalipsismo redimido? Ah... sabemos o que quer dizer, mas para
muitos de nosso leitores você terá de traduzir o termo.
Peterson: Tudo no Novo Testamento é escrito sob a pressão do fim. Cristo
está voltando. O tema floresce com mais exuberância em Apocalipse,
mas está presente em todo o Novo Testamento. Infelizmente, o Novo
292 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
Door: Como as pessoas aprendem a viver com a tensão que você acabou de
descrever?
Peterson: O pastor precisa dar o exemplo para a congregação. Pessoas es-
tão morrendo e sendo mortas, divorciando-se. Todos vivemos em uma
comunidade em constante crise, e o pastor é quem está presente nesses
momentos de crise, subversivamente modelando o que significa viver o
evangelho.
Door: Você ficou muito tempo em sua igreja — 29 anos. Qual sua opinião
sobre o pastorado de longo prazo?
Peterson: Os pastorados de longo prazo dão crescimento ao ministro. Você
tem de crescer. Você pode pregar, e adorar, e disfarçar quem você é por
ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA 293
alguns anos, mas então chega o tempo em que tem de tomar uma deci-
são. Vou me mudar para outro lugar e me disfarçar outra vez até que
descubram quem sou, ou vou me transformar em algo mais? Se você
decidir permanecer, será forçado a se tornar uma pessoa mais profunda
e mais completa.
Door: Você tem algum problema com as igrejas grandes de, por exemplo,
2.000 membros?
Peterson: Quando começamos nossa igreja, decidimos planejar para ter uma
igreja de quinhentos membros. Eu achava que quinhentos era adminis-
trável. Decidimos então que, quando excedêssemos os quinhentos mem-
bros, começaríamos uma nova igreja. Chegamos agora a esse ponto, e
tentamos começar outra igreja, mas o presbitério barrou porque é me-
nos custoso ter uma igreja duas vezes o nosso tamanho.
Sobre pentecostais,
poetas e mestres1
1
Publicado pela primeira vez no TSF Bulletin, mar./abr. de 1984.
296 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
TSF: Se você fosse ao seminário hoje, que tipo de instrução teológica bus-
caria?
EP: Não vejo nenhum seminário que esteja fazendo o que, para mim, pare-
ce essencial — oferecer incentivo e direção para a vida de fé, treinar
pessoas nas tradições que sempre fizeram parte dessa vida e no proces-
so fornecer uma estrutura teológica por meio da qual seja capaz de
articulá-la. Mas se deixou perder todo o teor do material, e ainda temos
a parte intelectual e teológica, mas fora de contexto. Sei que há seminá-
rios tentando reparar isso. Mas alguns dos reparos parecem-me não
passar de cirurgia cosmética, e eu não sei quais serão os resultados.
TSF: De que forma você procura em sua vida pessoal manter esse equilíbrio
entre o academicismo e a piedade?
EP: Bem, não sei, Bill. Muito disso a gente faz meio às cegas. Meu passado,
a igreja, o ambiente em que fui criado eram todos muito intensos espi-
ritualmente, e assim desenvolvi em minha infância e adolescência uma
vida que era apaixonada pela questão da espiritualidade. Ainda que muito
fosse exagerado e parte daquilo tudo fosse irrelevante, o que me foi
passado é que a vida cristã está relacionada a intensidade, a paixão, a
profundidade. E assim fiquei mal-acostumado. Nunca consegui lidar com
o diletantismo devocional. Se eu tinha de brigar por alguma coisa, era
pelo rigor intelectual. E não encontrei isso por muito tempo. Você vê,
tudo o que eu tinha era uma fome por aprender, por saber. Eu sabia que
era possível porque tinha tido contato com alguns dos velhos mestres
que estavam mortos já fazia uns mil anos.
TSF: Parece-me que hoje muitos alunos estão vendo o seminário como um
lugar para estudar a fé e desenvolver alguns tipos de sistemas de crença,
ainda que não tenham nenhum tipo de chamado especial ou desejo de
ingressar no ministério. Você encara com bons olhos essa tendência co-
mum hoje entre os alunos cristãos?
EP: Os alunos que tenho na maioria não estão lá realmente para aprender.
Estão lá para conseguir um emprego ou se prepararem para obter um
emprego, e é bem desanimador que um professor que se empolgue muito
com o material e queira ensinar o que está lá ter como interesse funda-
mental do aluno “Como posso passar neste curso?”. Creio que não há
problema na motivação que você mencionou. Qualquer lugar é um bom
lugar para começar. Mas, se estou lendo os sinais corretamente, não creio
que os seminários tenham se ajustado para esse desejo, de modo que
não estão desenvolvendo o tipo de comunidade que atende a essa ex-
pectativa ou a essa necessidade. Não vejo nada de errado em ir para o
seminário com esse desejo, mas acho que seria melhor se o seminário
dissesse “nossa tarefa preliminar é ser uma comunidade espiritual que
desenvolve habilidades teológicas”. Porque pensar sobre a aprendizagem
teológica não é uma tarefa espiritual. Tive um aluno no Mary’s Seminary
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 299
que deixou seu preparo para o ministério há vários anos, mas continuou
mantendo seu interesse em teologia. Continuou vindo ao Mary’s
Seminary apenas porque amava teologia, embora não fosse à igreja e
não cresse em Deus. E, num curso que dei no último outono, ele se con-
verteu, e concluiu o curso fazendo um compromisso tanto com a fé cristã
quanto com o ministério. Era a primeira vez que participava de um cur-
so que tinha alguma relação com sua vida pessoal e vocação. Agora, é
difícil de acreditar que alguém frequente uma escola teológica por qua-
tro anos e jamais se sinta tocada pessoalmente a ponto de integrar a vida
com o pensamento.
2
O termo “evangelical” em inglês não é empregado exclusivamente no sentido em que é em-
pregado no Brasil, ou seja, numa oposição “católico/evangélico”. Na língua inglesa, o sentido de
“evangelical” é mais amplo e inclui contornos de uma teologia conservadora, tradicional, ortodo-
xa, que tem a Palavra de Deus e o evangelho por fundamento. A oposição então é mais ampla:
é entre “evangelicais” e “liberais”, “evangelicais” e “neopentecostais” etc. Em outras palavras, o
termo não classificaria muitas das igrejas que no Brasil se denominam evangélicas só por não
serem católicas. O termo “evangélicos tradicionais” transmite mais adequadamente a ideia do
termo original. (N. do T.)
300 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
TSF: Você aprendeu alguma lição em especial que gostaria de passar adian-
te ao trabalhar dentro de uma das denominações tradicionais?
EP: A igreja presbiteriana é pluralista. Para algumas pessoas, natural-
mente, isso é negativo. Para mim, como faço parte da minoria, é algo
positivo. E, se você for um negro num mundo de maioria branca, fica
feliz que ela seja pluralista. E, como evangélico tradicional e ainda mais
oriundo de um passado mais sectário, fico feliz que minha igreja seja
pluralista.
TSF: Então para os alunos quem saem para a faculdade e aprofundam seu
compromisso com a fé por meio de várias organizações paraeclesiásticas
evangélicas tradicionais, você incentivaria esses alunos a permanecer
dentro da Igreja Presbiteriana ou da Igreja Metodista Unida ou da Igre-
ja de Cristo Unida?
EP: Sim, sim. Com toda a certeza.
TSF: Que perigos há nas igrejas mais tradicionais que não estão presentes
nas igrejas independentes da tradição bíblica?
EP: Bem, creio que haja mais perigo nas igrejas ditas tradicionais, que po-
dem acabar aderindo a uma cultura burguesa ou uma cultura eclesiásti-
ca. Há mais perigo em se deixar levar por um tipo de profissionalismo,
um profissionalismo clerical. Nas denominações tradicionais, as con-
gregações deixam você fazer o que deseja, desde que seja competente.
Entretanto, as congregações evangélicas tradicionais muitas vezes têm
expectativas teologicamente bem definidas, e às vezes expectativas es-
pirituais, e talvez haja um grau maior de prestação de contas. É apenas
uma impressão que eu tenho. Por outro lado, o perigo das igrejas inde-
pendentes é de o pastor se transformar numa espécie de superstar ou
ditador, e se ver como o líder da igreja em vez de o servo ou o pastor da
igreja. Creio que seja um perigo muito forte.
TSF: Parece-me que mais alunos hoje carecem de uma instrução nas artes
“clássicas”, e assim parece que lhes falta aquela capacidade imaginati-
vo-criativa. Como você sugeriria a um seminarista que corrigisse esse
desequilíbrio? Você tem sua oportunidade, Eugene, de corrigir todos aque-
les alunos que lerão o TSF Bulletin.
EP: O melhor aliado do teólogo é o artista. Creio que precisamos despertar
um interesse na literatura que é natural à maioria das pessoas, mas fica
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 303
TSF: E com isso veio esse realce desmedido nas formulações doutrinárias e
teológicas à custa da formação espiritual.
EP: Não tenho nada contra qualquer realce que se queira dar à forma-
ção teológica e doutrinal; aliás, é uma de minhas tônicas. Mas esse des-
taque faz parte de uma família, e matamos os filhotes, eliminamos todos
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 305
TSF: Você já tocou nisso de certa forma, mas talvez possa tratar do assunto
de novo: que qualidades você gosta de ver naqueles que saem do semi-
nário hoje? Se tivesse de empregar alguém que tivesse acabado de sair
do seminário para ser pastor assistente, que tipo de pessoa você bus-
caria?
EP: Eu iria querer alguém que tivesse a convicção básica de que o cerne do
trabalho ou da liderança pastoral na igreja está relacionado ao desen-
volvimento de um relacionamento de longa duração com Cristo que
envolve o todo da vida. Em outras palavras, iria querer alguém compro-
metido com a tarefa da formação espiritual. Desejaria também alguém
que tivesse certa disciplina e curiosidade intelectual sobre como com-
preender e imaginar as diferentes maneiras em que a vida é experimen-
tada. Sem essa curiosidade intelectual, as primeiras experiências
tornam-se clichês e não são reaplicadas em novas maneiras e em situa-
ções novas. Aquilo que começa como uma experiência vital se deterio-
ra num chavão. E assim a formação espiritual e a curiosidade intelectual
são recíprocas, porque mantêm uma à outra em crescendo, vivas, reno-
vadas. É isso que eu buscaria. Já disse antes que as colunas gêmeas do
ministério são aprendizado e oração, e eu buscaria encontrar um desejo
por essas coisas.
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 307
TSF: Você falou recentemente sobre o equilíbrio entre lutar pela excelência e
a humildade. Como isso funciona? Você diz: “Quero ser mesmo um exce-
lente ajudador de pessoas”, mas aí acabamos sempre forçados à posição
308 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
KATHY BUBEL
Poderia ter sido apenas outra tentativa calculada de tornar a Bíblia mais fácil
de ler, mas a tarefa foi designada a ninguém mais que um pastor, professor e
poeta apaixonado, Eugene Peterson. O resultado — adequadamente intitulado
The Message — é uma versão notável, pungente, do Novo Testamento que talvez
seja a tradução mais eloquente e compreensível de todas ao redor.
1
Publicado pela primeira vez em Release ink Magazine,1 (2): 14-17, dez. de 1994/ jan. de
1995. Reproduzido com permissão de Kathy Bubel.
310 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
DO PÚLPITO AO PAPEL
Foi para essa “vasta congregação” que ele decidiu aposentar-se da pequena
igreja em Maryland em 1991 e dedicar todas as energias para escrever.
Embora a partida tenha sido difícil, a transição não foi. Como ele afirma
em Reality and the Vision [A realidade e a visão], “Ser escritor e ser pastor
são basicamente a mesma coisa para mim; um ingresso no caos, na desor-
dem das coisas e depois o trabalho lento, misterioso, de criar alguma coisa
disso, algo bom, algo abençoado — poema, oração, conversa, sermão, vis-
lumbre da graça, reconhecimento do amor, formação de uma virtude”.
Depois de um mês de ter tomado a decisão, a NavPress chamou Eugene
perguntando se traduziria o Novo Testamento inteiro da mesma maneira
que havia traduzido Gálatas em seu livro Traveling Light. Ele concordou, e
essa foi sua primeira atribuição como escritor de tempo integral.
Uma primeira atribuição bastante significativa, eu diria. Uma que deve
ter sido acompanhada de certa dose de temor e tremor.
“Muitas vezes, ao fazê-lo”, ele diz, “eu tinha o sentimento ‘Ah, sempre
fiz isso — mas agora é tempo de colheita. Isso é o fruto de tudo o que venho
fazendo já’. Então foi uma experiência maravilhosa nesse sentido. Mas foi
muito enfadonho para mim. Toda o tempo em que estava [traduzindo],
sentia como se estivesse fazendo algo de segunda categoria. Eu nunca era
tão bom quanto João, Marcos, Paulo. Às vezes, como escritor, você escre-
ve uma frase e pensa ‘Ah, ninguém fez isso tão bem antes, e você conse-
guiu’. Eu nunca ‘cheguei lá’ — e, quando terminei, disse a minha esposa:
‘Ainda bem que acabou — estou tão cansado de ficar em segundo plano’.”
Como ele disse à Publishers Weekly, “Eu olho e fico satisfeito, mas o
trabalho não foi realmente meu. Senti como se fosse um servo o do texto
por dois anos, e fui compelido a obedecer. Agora estou livre para seguir
minha própria criatividade novamente”.
Sem querer, essa é a melhor defesa de Eugene contra aqueles críticos que di-
zem que a The Message é uma interpretação pessoal, e não uma tradução fiel.
autoridade da Escritura. Então, toda vez que alguém faz algo assim, mere-
ce ser criticado porque a vida das pessoas está em risco — sua maneira de
acreditar, sua maneira de pensar, sua maneira de viver. Toda vez que alguém
faz isso [tradução da Bíblia], é trabalho perigoso, é trabalho arriscado.
“A outra parte disso, entretanto, é que muitas pessoas não compreen-
dem como a tradução funciona e que todas as traduções são interpretativas.
Toda vez que você transita de uma língua para outra, você interpreta, por-
que não falamos em palavras; falamos em frases e parágrafos. Quando você
enquadra um diálogo, não vê nenhuma separação entre as palavras — é tudo
um discurso contínuo.
“Então, se você pensa em tradução como algo por meio do qual cienti-
ficamente, gramaticalmente, toma uma palavra desta língua e a põe naquela
língua, então, se eu uso três palavras para traduzir uma palavra grega, você
vai dizer que estou interpretando e acrescentando coisas. Mas não estou
— está tudo lá, mas você precisa de três palavras em nossa língua. Fico
maravilhado de como fiz isso, que Deus Espírito Santo tenha usado a lin-
guagem como revelação, porque a linguagem é inerentemente ambígua.”
E eu fico maravilhada, sentada nesse escritório, com a combinação sin-
gular de professor, pastor e poeta que é Eugene Peterson. É por isso que ler
a The Message é uma experiência tão original. Cada livro recebe uma in-
trodução para pôr as coisas em contexto para o leitor, seu aluno. Cada pa-
lavra é cuidadosamente escolhida para se comunicar a nós, sua
congregação, em uma linguagem clara, sem interferências.
Quanto ao lado poético, o cantor Michael Card expressou isso como
ninguém quando descreveu a The Message como “uma tradução de tom.
Leio não somente as palavras, mas ouço uma voz atrás delas que fala —
como, aliás, todos esses documentos foram experimentados originariamen-
te. A tradução de Peterson transforma o olho em ouvido, escancarando a
porta do Novo Testamento mais ainda do que jamais talvez tenha sido”.
Eugene explica: “Queria escrever isso para que as pessoas que jamais
ouviram de Deus, jamais ouviram de Jesus, captassem a mensagem pela
primeira vez. É o que o pregador faz. Então minha principal qualificação
para fazer isso não é que sei grego ou hebraico — muita gente sabe —, mas
314 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA
que sou pregador e pastor, e na maior parte para esses pagãos norte-ame-
ricanos que não sabem nada sobre a fé. O pressuposto que opera para mim
em a The Message é que as pessoas que leram o texto do Novo Testamento
pela primeira vez o entenderam de primeira”.
E as pessoas o estão de fato entendendo. Pessoas de diferentes origens e
idades estão lendo o Novo Testamento pela primeira vez — ou como se fosse
a primeira vez. A NavPress viu a luz e percebeu que era mais eficaz que
qualquer folheto, vídeo ou cruzada evangelística. No início do grupo A
parábola, uma associação de livrarias independentes dos Estados Unidos,
extraíram-se trechos da The Message que foram colocados num livrete evan-
gélico despretensioso, intitulado The Message of Hope [A mensagem de es-
perança]. Seu título e capa não ameaçadores aliam-se à facilidade com que
pode ser distribuído. Não só isso, mas também saber o que está em seu
interior. Outro dia, até mesmo passei o exemplar do meu editor para a
minha babá.
É nisso que Eugene se deleita. “Eu recebo uma tonelada de cartas”, diz
com um brilho nos olhos. “Outro dia, recebi uma de uma senhora de 74
anos que se descrevia como uma mulher da Bíblia King James que fora cristã
toda a sua vida. Ela disse: ‘Comprei a The Message para meus sobrinhos e
sobrinhas, mas então comecei a lê-la eu mesma, e poderia dizer que é isso
que a King James diz! É o que ela diz!’.
“Depois foi uma menininha, perto de 12 anos de idade, que me encon-
trou numa livraria outro dia. Adoro isso”, ele sorri. “Ela disse: ‘Estamos
usando A Mensagem em nossas devoções em família’. Depois, baixando o
tom de voz: ‘Mas eu já adiantei a leitura’. Agora, prefiro mil vezes receber
um elogio desses que o de qualquer um de meus críticos!”.
O que os críticos não perceberam é que a The Message não gira em tor-
no de Eugene Peterson. Ninguém está mais ciente disso que o próprio
Eugene, que raramente dá entrevistas. Ele dosa o tempo que passamos jun-
tos recontando uma lembrança que expressa muito bem como se vê na qua-
lidade de intérprete, de mensageiro.
“Minha mulher e eu fomos ouvir uma palestra de Paul Tournier. De volta
para casa, vínhamos falando sobre como tinha sido maravilhoso, e minha
DE PAIXÃO, ORAÇÃO E POESIA 315
mulher disse uma coisa que me fez parar. Ela disse: ‘E não era o intérprete
bom?’. De repente, percebi que Tournier tinha falado em sua língua mãe, o
francês, e eu nem mesmo tinha percebido.” Quando o Novo Testamento
fala conosco em sua língua mãe — o grego terreno, o divino celeste —,
Eugene espera que não o observemos lá, bem ali ao lado, traduzindo.