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E S P I R I T U A L I D A D E S U B V E R S I VA

EUGENE H. PETERSON

E S P I R I T U A L I D A D E S U B V E R S I VA

Organizado por JIM LYSTER, JOHN SHARON, PETER SANTUCCI

Traduzido por FABIANI MEDEIROS


Copyright 1997 © por Eugene H. Peterson
Publicado em acordo com a agência literária Alive Communications, Inc.,
Colorado Springs, EUA.

Editora responsável: Silvia Justino


Supervisão editorial: Ester Tarrone
Assistente editorial: Miriam de Assis
Revisão: Josemar de Souza Pinto
Coordenação de produção: Lilian Melo
Colaboração: Pâmela Moura

Os textos das referências bíblicas foram extraídos da Nova Versão Internacional


(NVI), da Sociedade Bíblica Internacional, salvo indicação específica.

Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/02/1998. É


expressamente proibida a reprodução total ou parcial deste livro, por quaisquer
meios (eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação e outros), sem prévia auto-
rização, por escrito, da editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Peterson, Eugene H., 1932 —

Espiritualidade subversiva / Eugene H. Peterson; organizado por Jim Lyster, John Sharon, Peter
Santucci; traduzido por Fabiani Medeiros — São Paulo: Mundo Cristão, 2009. (Série teologia
espiritual)

Título original: Subversive Spirituality


ISBN 978-85-7325-589-8

1. Evangelicalismo 2. Vida espiritual — Cristianismo 3. Vida espiritual — Ensino bíblico I.


Lyster, Jim II. Sharon, John III. Santucci Peter IV. Título

09-05237 CDD —248.4

Índice para catálogo sistemático:


1. Vida espiritual: Cristianismo 248.4
Categoria: Espiritualidade

Publicado no Brasil com todos os direitos reservados por:


Editora Mundo Cristão
Rua Antônio Carlos Tacconi, 79, São Paulo, SP, Brasil, CEP 04810-020
Telefone: (11) 2127-4147
Home page: www.mundocristao.com.br

1ª edição: outubro de 2009


Sumário

Introdução 9

ESPIRITUALIDADE
CAPÍTULO 1: Marcos: o texto fundamental para a
espiritualidade cristã 13
CAPÍTULO 2: De volta à estaca zero: disse Deus 29
CAPÍTULO 3: A busca do espírito 47
CAPÍTULO 4: Escritores e anjos: testemunhas
da transcendência 59
CAPÍTULO 5: O seminário como lugar de formação
espiritual 75

ESTUDOS BÍBLICOS
CAPÍTULO 6: O tronco santo 85
CAPÍTULO 7: Jeremias como teólogo ascético 105
CAPÍTULO 8: Aprendendo a adorar com o Apocalipse
de João 109
CAPÍTULO 9: Apocalipse: o meio é a mensagem 117
CAPÍTULO 10: O quarteto da ressurreição 129

POESIA
CAPÍTULO 11: Santa sorte 139

LEITURAS PASTORAIS
CAPÍTULO 12: A poesia de Patmos: João como pastor,
poeta e teólogo 149
CAPÍTULO 13: Mestres da imaginação 161
CAPÍTULO 14: Ovelhas em pele de Lobo 165
CAPÍTULO 15: Kittel entre as xícaras de café 173
CAPÍTULO 16: Como mestres em cerimônias 179
CAPÍTULO 17: Ensina-nos a importar-nos sem
importar-nos, a cuidar sem cuidados 187
CAPÍTULO 18: Aliados inusitados 205
CAPÍTULO 19: Romancistas, pastores e poetas 209
CAPÍTULO 20: Pastores e romances 225

CONVERSAS
CAPÍTULO 21: Uma conversa com Eugene Peterson 237
CAPÍTULO 22: Casualmente intencional: uma
abordagem ao pastorado 261
CAPÍTULO 23: Espiritualidade subversiva 285
CAPÍTULO 24: Sobre pentecostais, poetas e mestres 295
CAPÍTULO 25: De paixão, oração e poesia 309
Para
Cuba Marie Dyer

“Eu os estou enviando


como ovelhas entre lobos.
Portanto, sejam astutos
como as serpentes
e sem malícia como as pombas.”

MATEUS 10:16
Introdução

A vida cristã, em um de seus aspectos mais fundamentais, consiste na res-


tauração do que foi perdido na Queda. Inesperadamente encontramos,
percebemos, acessamos e tocamos coisas e ideias, pessoas e acontecimen-
tos, dentre os quais a própria Escritura Sagrada, que sempre existiram desde
o princípio, estiveram sempre lá, mas nossa alma enfatuada pelo ego e
nossos olhos turvados pelo pecado simplesmente deixaram de enxergar,
às vezes por anos, e anos, e anos.
Mas de repente percebemos: desenvolvemos uma visão ampliada da vida,
enxergamos Deus e ouvimos sua voz. É quando pegamos na manga de
um amigo e exigimos: “Olhe! Escute!”. Não poucas vezes, nosso amigo já
vinha olhando e escutando fazia muito tempo, e trata nosso entusiasmo re-
pentino com um tom de quem já sabia daquilo o tempo todo, tentando ser
educado.
Ao reler todos os artigos aqui compilados, os quais foram escritos aqui
e ali nos últimos 25 anos, fico com a nítida sensação de que é exatamente
assim que devem ser recebidos: com um tom de quem já sabia disso o tempo
todo, mas tentando ser educado. Lembro-me da crítica severa de Austin
Farrer contra todos os que se consideram originais: “Não há nada de novo
que declarar sobre qualquer assunto. Apenas muda o estilo de linguagem,
e o antigo argumento recebe assim, tão somente, nova roupagem, nova
fraseologia”. Esta compilação de artigos e ensaios, poemas e conversas é
como uma espécie de amontoado das percepções que desenvolvi em torno
do óbvio, no transcurso da vida cristã, no contexto vocacional de pastor,
escritor e, mais recentemente, professor. O caráter aleatório, as repetições
e as tentativas prematuras e frustradas de começar em alguma direção são
10 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

arestas que resolvi não aparar para não comprometer a honestidade. A


espiritualidade conta, de modo geral, com suas dificuldades. Espero mes-
mo, no entanto, que este apanhado seja achado com “nova roupagem, nova
fraseologia”. Mais adiante, alguns desses artigos ganharam vida própria e
se expandiram na forma de livros.
Meus amigos da Regent College, Jim Lyster, John Sharon e Peter
Santucci, foram diligentes em compilar, organizar e editar o que aqui se
encontra, pelo que lhes sou extremamente agradecido.
1
Espiritualidade
capítulo 1

Marcos: o texto fundamental


para a espiritualidade cristã1

INTRODUÇÃO
Algo bastante extraordinário tem ocorrido nesta cidade nos últimos 25 anos;
a teologia espiritual vem sendo citada e reconhecida, valorizada e procura-
da. A teologia espiritual é uma preocupação antiga, respeitada e central da
igreja cristã. Mas nos últimos duzentos anos, com a ascensão imperialista
do racionalismo, acompanhada das várias reações do romantismo, a teologia
espiritual praticamente saiu de cena. O racionalismo e o romantismo luta-
ram pelo coração da raça humana e entre eles basicamente dividiram os
espólios. A teologia espiritual, impelida para as margens, sobreviveu aca-
demicamente nos esconsos pouco iluminados de várias bibliotecas ao re-
dor do mundo. A teologia espiritual, sobretudo desconsiderada, mas às vezes
subestimada tanto na igreja quanto no mundo, passou a ser a especialidade
de clubes fechados, pequenos e não raro excêntricos, de entusiastas.
Ao mesmo tempo, aqui em Vancouver, algo muito diferente tem acon-
tecido: a teologia espiritual foi recuperada como disciplina e como interes-
se fundamental a todo o empreendimento cristão conforme é pensado e
estudado na sala de aula, orado e praticado em casa e no local de trabalho,
crido na igreja e proclamado no mundo. Tanto a indispensabilidade quanto
o poder de atração da teologia espiritual têm sido desenvolvidos e demons-
trados entre nós — um imenso presente, tanto para a igreja quanto para o
mundo. E um presente mais que oportuno, uma vez que não há dúvidas de

1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux, 29, n.o 4, dez. de 1993. Este artigo baseia-se
na aula inaugural do dr. Peterson como professor da cátedra James M. Houston de Teologia Es-
piritual da Regent College, ministrada em 17 de out. de 1993.
14 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

que nossa cultura, intoxicada com o racionalismo e com o romantismo,


está em maus lençóis e só piora. Aqueles de nós que oram pela salvação do
mundo não podem dispensar o mar de sabedoria, introspecção, oração e
maturidade em que a teologia espiritual desemboca.
O nome mais comumente associado a essa recuperação e demonstra-
ção é James M. Houston. Ninguém chega aos pés da façanha histórica e
cultural que esse homem conquistou por si só. Teve e tem colegas, amigos
e familiares que fizeram e fazem parte disso em maior ou menor escala.
Mas seu nome — sua visão focada, sua fidelidade sacrificial, a clareza de
seu pensamento, a paixão de suas orações —, seu nome, mais que o de qual-
quer outro, identifica essa recuperação da teologia espiritual neste momen-
to crítico em que nos aproximamos do terceiro milênio.2
Por causa de tudo o que tem acontecido nesta cidade nos últimos 25
anos, a teologia espiritual não está mais circunscrita às buscas acadêmicas
dos medievalistas. Por causa de tudo o que tem acontecido nesta cidade
nos últimos 25 anos, a teologia espiritual agora carrega a conotação de saúde
espiritual sólida e madura, em vez de ser tratada com suspeita, como se
fosse uma neurose religiosa.
E, como o nome de James Houston está tão completamente associado
a tudo isso, nada mais justo que identificar esta cadeira pelo título “Cáte-
dra James M. Houston de Teologia Espiritual”, o que torna bem visíveis os
objetivos da disciplina.

MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL


O evangelho de Marcos é o texto fundamental para a espiritualidade cristã.
Uso o artigo definido intencionalmente: o texto fundamental. O cânon da
Escritura como um todo é o nosso texto mais amplo, a revelação que deter-
mina a realidade com a qual lidamos como seres humanos criados, salvos
e abençoados pelo Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo e pelo Espírito
Santo. Mas Marcos, sendo o primeiro evangelho, desfruta de certa primazia.

2
A publicação original deste artigo data de 1997. A data deve ser levada em conta para que o
leitor se situe em relação às referências temporais do autor. (N. do T.)
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 15

1. A forma do texto
Ninguém jamais tinha escrito um evangelho cristão antes de Marcos es-
crever o seu. Ele criou um novo gênero. No final acabou sendo uma forma
de escrita que rapidamente passou a ser não apenas fundacional, mas
formativa para a vida da igreja e do cristão. É nossa convicção de fé já de
muito tempo que o Espírito Santo inspirou o conteúdo das Escrituras
(2Tm 3:16), mas é igualmente verdade que a forma é também inspirada,
essa nova forma literária a que chamamos evangelho. Simplesmente não
existia nada que se assemelhasse ao gênero evangelho, embora Marcos
contasse com excelentes professores hebreus na arte de contar histórias,
os quais nos legaram os livros de Moisés e Samuel.
A Bíblia como um todo chega até nós em forma narrativa, e é inserido
nessa narrativa grande e de certo modo esparramada por toda parte que
Marcos escreve seu evangelho. “Vivemos principalmente por formas e
padrões”, afirma Wallace Stegner, um dos grandes contadores de histórias
de nossos tempos, “... se as formas são ruins, vivemos mal”.3 O evangelho
é uma forma boa e verdadeira, pela qual vivemos bem. A narrativa cria um
mundo de pressuposições, de suposições e relações no qual ingressamos.
As histórias convidam-nos para adentrar um mundo fora de nós mesmos,
e, se forem histórias boas e verdadeiras, um mundo maior que nós. As his-
tórias da Bíblia são histórias boas e verdadeiras, e o mundo para o qual elas
nos convidam é o mundo da criação, da salvação e da bênção de Deus.
Dentro do vasto contexto da história bíblica, que tanto comporta, apren-
demos a pensar de forma precisa, a nos comportar moralmente, a pregar
apaixonadamente, a cantar alegremente, a orar honestamente, a obedecer
fielmente. Mas não nos atrevemos a abandonar a história como abandona-
mos qualquer dessas coisas ou todas elas, pois, no instante em que aban-
donamos a história, reduzimos a realidade às dimensões da mente, dos
sentimentos e das experiências. O momento em que formulamos nossas
doutrinas, organizamos nossos códigos morais e nos lançamos numa vida

3
When the Bluebird Sings to the Lemonade Springs. New York: Random House, 1992,
p. 181.
16 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

de ministério sem fazermos uma contínua reimersão na história em si, sim-


plesmente estamos nos afastando da presença e da atividade de Deus para
montar nosso próprio negócio.
A singularidade da forma “evangelho” reside no fato de que ela traz em
si séculos de narrativa hebraica, sendo Deus o narrador de sua própria his-
tória de criação e salvação por meio de seu povo, para a história de Jesus,
a conclusão madura de todas aquelas histórias, e isso de uma forma que
claramente consiste em revelação — ou seja, a autorrevelação divina — e
convida nossa participação, insiste em que participemos.
Temos aqui uma contraposição com a preferência antiga pela constru-
ção dos mitos, que em maior ou menor grau nos torna espectadores do
sobrenatural. Também com a preferência atual pela filosofia moral, que
nos põe como encarregados da própria salvação. A “história do evangelho”
é uma maneira verbal de explicar a realidade, que é, assim como a encar-
nação que é seu assunto, simultaneamente divina e humana. Ela revela, ou
seja, mostra algo que jamais poderíamos ter criado por conta própria, seja
pela observação, pela experiência ou pela especulação; e ao mesmo tempo
ela prende, puxa-nos para dentro da ação como alvos e participantes, mas
sem nos despejar a responsabilidade de garantir que tudo dê certo.
Há enormes implicações nisso para a nossa espiritualidade, pois a for-
ma em si nos protege de duas das principais direções que costumamos
tomar sempre que descarrilamos: a de tornar-nos espectadores frívolos,
exigindo dos céus um entretenimento novo e mais exótico; ou a de tornar-
nos moralistas ansiosos, fazendo das tripas coração e assumindo o peso do
mundo. A própria forma do texto faz nascer respostas em nós que tornam
difícil sermos meros espectadores ou meros moralistas. Não se trata de
um texto que dominamos, mas de um texto pelo qual somos dominados.
Parece-me significativo que, na presença de uma história, quer sejamos
seus narradores quer seus ouvintes, jamais tenhamos o sentimento de que
somos os peritos: há muito que ainda não sabemos, muitas possibilidades
à disposição, muito mistério e glória. Mesmo as histórias mais complexas
tendem a evocar a criança que há em nós — expectante, maravilhada,
responsiva, encantada —, razão por que, naturalmente, a história é a for-
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 17

ma favorita de expressão para a criança, razão também por que é a forma


dominante de revelação do Espírito Santo e por que nós, adultos, que gos-
tamos de bancar os peritos e gerentes da vida, tão frequentemente preferi-
mos a explicação e a informação.

2. O teor do texto
Não precisamos avançar muito na leitura de Marcos para perceber que o
texto é sobre Jesus Cristo, e antes de concluirmos isso fica mais que evi-
dente. Marcos é sobre o Deus revelado em Jesus Cristo. Temos aqui algo
que parece demasiadamente óbvio, mas quero me deter no óbvio por um
instante.
Denominei o evangelho de Marcos o texto fundamental para a nossa
espiritualidade. Espiritualidade é a atenção que dispensamos a nossa alma,
ao interior invisível de nosso viver que constitui o cerne de nossa identida-
de, essa alma feita à imagem de Deus que compreende nossa singularidade
e glória. Espiritualidade é a preocupação que temos pela invisibilidade ine-
rente a cada visibilidade, pelo interior que fornece o conteúdo de cada ex-
terior. Necessariamente, ela lida e muito com a interioridade, com o silêncio,
com o isolamento ou solitude. Leva extremamente a sério, o mais que pode,
todas as questões da alma.
Isso poderia parecer algo maravilhoso, e nossa exclamação inicial muito
possivelmente seria: “Quem dera todo o povo de Deus estivesse igualmen-
te engajado!”. Mas os vinte séculos de experiência na área da espiritualida-
de faz arrefecer consideravelmente o nosso entusiasmo. Na prática, na
realidade dos fatos, ela acaba por se mostrar não tão maravilhosa. Quando
você examina toda a nossa história, não é de admirar que a espiritualidade
seja tantas vezes tratada com suspeita, e não raro com absoluta hostilida-
de. Pois na prática a espiritualidade muitas vezes se desenvolve em neuro-
se, degenera-se em egoísmo, torna-se pretensiosa, passa a ser violenta.
Como isso acontece? Para responder de forma resumida, acontece quando
pomos o pé para fora da história do evangelho e colocamos a nós mesmos
no lugar como o texto fundamental e abalizado para a nossa espiritualida-
de; procedemos à exegese de nós mesmos na qualidade de textos sagrados.
18 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Normalmente não jogamos o evangelho fora; apenas o guardamos na es-


tante e pensamos que o honramos por consultá-lo de tempos em tempos
como indispensável obra de consulta.
Nossos guias espirituais dizem: “Vocês são seres maravilhosos, glorio-
sos, almas preciosas. São esplêndidas as aspirações que você têm por san-
tidade, bondade e verdade. Mas vocês não são o conteúdo da espiritualidade;
Deus revelado em Jesus é esse conteúdo. Vocês precisam de um texto para
ler e estudar e do qual aprender — aqui está o seu texto: o evangelho de
Jesus Cristo; comecem pelo evangelho de Marcos como seu texto funda-
mental”.
Abrimos o texto e lemos a história de Jesus. É um tipo estranho de his-
tória. Conta muito pouco do que nos interessa nas histórias. Não ficamos
sabendo de Jesus praticamente nada do que de fato queríamos saber. Não
há nenhuma descrição de sua aparência. Nada sobre sua origem, amigos,
instrução, família. Como devemos avaliar ou entender essa pessoa? E há
pouquíssima referência ao que ele pensava, a como se sentia, suas emo-
ções, suas lutas interiores.
Numa altura ou noutra, percebemos que se trata de uma história sobre
Deus — e sobre nós. Embora Jesus seja a pessoa mais mencionada na his-
tória, há uma surpreendente lacuna de informações referentes a ele. Jesus
é a revelação de Deus, e assim sempre deparamos em Jesus com aquilo
que se nos depara em Deus: não captamos, não enxergamos, não com-
preendemos a maior parte do que está em jogo ali. Não explicamos Jesus,
não situamos Jesus, não enquadramos Jesus em nossas perspectivas. Se-
gue-se que nem Deus enquadramos em nossas perspectivas. Como histó-
ria, o evangelho simplesmente deixa muito a desejar.
É quando percebemos que nossa atenção foi desviada de sobre nós e agora
repousa em Jesus, em Deus revelado em Jesus. A verdadeira espiritualida-
de, a espiritualidade cristã, desvia a atenção de nós e a concentra em ou-
tro, em Jesus.
Há outros na história, naturalmente, muitos outros: os doentes e famin-
tos, as vítimas e os forasteiros, amigos e inimigos. Mas Jesus é sempre o as-
sunto. Nenhum acontecimento e nenhuma pessoa aparecem nessa história
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 19

independentemente de Jesus. Jesus fornece tanto o contexto quanto o con-


teúdo para a vida de todo mundo. A espiritualidade — a atenção que dis-
pensamos a nossa alma — na prática (quando deixamos que Marcos confira
forma a nossa prática) acaba sendo a atenção que dispensamos ao Deus
revelado em Jesus. O texto treina-nos nessa percepção e nessa prática. Linha
após linha, página após página: Jesus, Jesus, Jesus. Nenhum de nós fornece
o conteúdo para a nossa própria espiritualidade; recebemos esse conteúdo;
é Jesus quem o dá. O texto não dá margem a nenhuma exceção.

3. A tônica do texto
Ao lermos esse texto, logo descobrimos que toda a história se afunila, che-
gando à narração dos acontecimentos de uma única semana da vida de Jesus,
a semana de sua paixão, morte e ressurreição.
E, desses três elementos, é a morte que recebe o tratamento mais de-
talhado.
Se nos pedissem para resumir o máximo possível em que consiste o
evangelho de Marcos, devemos dizer: “na morte de Jesus”.
A resposta não soa muito promissora, especialmente para aqueles de
nós que estão à procura de um texto pelo qual viver, um texto por meio do
qual nutrirmos nossa alma. Mas aí está ele. Há dezesseis capítulos na his-
tória. Nos primeiros oito capítulos, Jesus está vivo, percorrendo sem pres-
sa as aldeias e estradas da Galileia, dando vida a pessoas, libertando-as do
mal, curando seus corpos mutilados e enfermos, alimentando pessoas fa-
mintas, demonstrando sua soberania sobre a tempestade e o mar, contan-
do histórias maravilhosas, recrutando e treinando discípulos, anunciando
que estão no limiar de uma nova era, o Reino do Deus, que naquele exato
momento está invadindo o mundo deles.
E é nesse momento, exatamente quando ele tem a atenção de todos,
exatamente quando se vê o auge do impulso para a vida e mais vida, que
ele começa a falar de morte. Os últimos oito capítulos do evangelho são
dominados por assuntos de morte.
O anúncio da morte também sinaliza uma mudança de ritmo. Quando
a história é narrada nos oito primeiros capítulos, há uma qualidade na
20 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

narrativa em que os acontecimentos vão se desdobrando quase que de modo


sossegado, tranquilo. Jesus não parece estar se dirigindo a nenhum lugar
em especial — basicamente transita de aldeia em aldeia, retira-se sozinho
nos montes para orar, adora nas sinagogas, dá a impressão de que tem tem-
po para ter refeições com qualquer um que o convide para sua casa, sai de
barco com seus amigos no lago. Não interpretamos esse ritmo descontraído
como indolência ou falta de propósito, pois energia e intensidade estão
sempre visivelmente presentes. Mas, nesses anos na Galileia, Jesus parece
ter todo o tempo do mundo, o que, é claro, ele tem mesmo.
Mas com o anúncio da morte isso muda: agora ele se dirige diretamente
para Jerusalém. Agora a narrativa é caracterizada por uma urgência, por
uma circunspecção, por um ponto de chegada. Muda a direção, muda a
cadência, muda o estado de espírito. Três vezes Jesus é categórico: ele so-
frerá, será morto e ressuscitará (8:31; 9:31; 10:33).
E então acontece: morte. A morte de Jesus é narrada de modo acurado
e preciso. Nenhum episódio de sua vida é narrado com tantos detalhes assim.
Dificilmente pode haver qualquer dúvida sobre a intenção de Marcos: a
trama, a ênfase e o significado de Jesus é sua morte.
Não que esse realce na morte fosse uma idiossincrasia de Marcos, uma
obsessão mórbida que deturpava a história básica, uma vez que a mesma
sequência e a mesma proporção são mantidas pelos narradores do evan-
gelho que sucederam Marcos: Mateus e Lucas. Eles desenvolvem o texto
fundamental de Marcos de várias maneiras, mas preservam a proporcio-
nalidade. João, que aborda a história de um ângulo totalmente diferente,
deslumbrando-nos com imagens de luz e vida, na realidade acaba por in-
tensificar o destaque que confere à morte, destinando metade do espaço
que tinha à semana da Paixão. Todos os quatro escritores do evangelho fazem
basicamente a mesma coisa; contam-nos a história da morte de Jesus, e
escrevem suas apresentações respectivas a ele. E Paulo — o exuberante,
apaixonado, hiperbólico Paulo — pula completamente a narrativa e sim-
plesmente desfere a conclusão: “Cristo morreu em nosso favor” (Rm 5:8);
“decidi nada saber entre vocês, a não ser Jesus Cristo, e este, crucifica-
do” (1Co 2:2).
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 21

Mas há muito mais em jogo aqui do que o simples fato da morte, embo-
ra isso esteja presente de forma muito enfática — trata-se de uma morte
cuidadosamente definida. É definida como voluntária. Jesus não tinha de
ir para Jerusalém; foi por vontade própria. Deu seu assentimento à mor-
te. Não era uma morte acidental; era uma morte inevitável.
É definida como sacrificial. Aceitou a morte para que outros pudessem
receber a vida: “... sua vida em resgate por muitos” (Mc 10:45). Ele definiu
sua vida categoricamente como sacrificial, ou seja, como meio de vida para
outras pessoas, quando instituiu a Eucaristia: “... tomou o pão [...] ‘Tomem;
isto é o meu corpo’ [...] tomou o cálice [...] ‘Isto é o meu sangue da alian-
ça, que é derramado em favor de muitos...’” (Mc 14:22-24).
E é definida acompanhada da ressurreição. Cada um dos três anúncios
explícitos da morte conclui com uma declaração sobre a ressurreição. A
história do evangelho como um todo encerra-se com um testemunho so-
bre a ressurreição. Isso não torna essa morte menos morte, mas é uma morte
definida de modo totalmente diferente daquele com o qual estamos acos-
tumados a lidar.
Tragédia e procrastinação são as palavras que caracterizam a atitude da
nossa cultura diante da morte.
A morte concebida como algo trágico é um legado dos gregos. Os gregos
escreveram com elegância sobre mortes trágicas — vidas que se viram to-
madas pelo desenrolar de grandes forças impessoais, vidas levadas adiante
com as melhores intenções, mas depois emaranhadas em circunstâncias
que cancelavam as intenções, circunstâncias indiferentes ao heroísmo hu-
mano ou à esperança.
A morte de Jesus não é trágica.
A morte procrastinada é um legado da medicina moderna. Numa cul-
tura em que a vida é reduzida a pulsações do coração e ondas cerebrais, a
morte jamais pode ser aceita pelo que é. Uma vez que a vida não pode ser
mais do que aquilo que é capaz de ser explicado pela biologia — nenhum
significado, nenhuma espiritualidade, nenhuma eternidade —, são feitas
tentativas cada vez mais desesperadas de adiar a morte, de fazer que de-
more a chegar, de negá-la.
22 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

A morte de Jesus não é procrastinada.


É vital que desafiemos nossa cultura, deixando que a narrativa de Marcos
modele nossa compreensão da morte e por fim venhamos a entender nossa
própria morte dentro das ricas dimensões e relações da história de Jesus.

4. A teologia espiritual do texto


Já ressaltei aqui que uma das qualidades inconfundíveis da “história do
evangelho” é que ela nos convida a participar. A primeira metade do evan-
gelho de Marcos faz exatamente isso — todos os tipos de pessoas são atraí-
dos para a vida de Jesus, experimentam sua compaixão, suas curas, sua
libertação, seu chamado, sua paz. Achamo-nos implicitamente incluídos.
Na segunda metade do evangelho, essa experiência de participação pes-
soal torna-se explícita.
Bem no centro do texto de Marcos, está uma passagem que designarei
a “espiritualidade” do texto. Ao usar o termo “espiritualidade” neste ponto
crítico, pretendo chamar a atenção para o lugar onde convergem nossa
preocupação por nossa alma, nossa vida, e a preocupação de Jesus por nossa
alma, nossa vida. Com espiritualidade, quero me referir à maneira especí-
fica em que Marcos escreveu seu evangelho para ajudar a nós que o lemos
a experimentar verdadeiramente a mensagem que ele escreve. Nem é pre-
ciso dizer, imagino eu, que Marcos não era um jornalista, escrevendo in-
formes diários das atividades de Jesus no primeiro século. Tampouco era
alguém com interesses propagandistas escusos, tentando levar-nos a ade-
rir a uma causa que queria se dar bem na história. Trata-se de teologia es-
piritual em ação, uma forma de escrita que nos impele a participar do texto.
Marcos 8:27—9:9 é a passagem. Está situada no centro da história do
evangelho, de modo que uma metade dele — as múltiplas tentativas gali-
leias de trazer a vida à mente e à imaginação — fica simetricamente de um
lado, e do outro, a outra metade: a viagem sem distrações rumo a Jerusa-
lém e a morte.
A passagem consiste em duas histórias. A primeira história, o convite
lançado por Jesus para que se abraçasse a renúncia agora que ele e seus
discípulos estão começando a percorrer a estrada para Jerusalém, fornece
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 23

a dimensão ascética da espiritualidade. A segunda história, a transfiguração


de Jesus no monte Tabor, fornece a dimensão estética da espiritualidade.
As histórias contêm em suas duas extremidades afirmações sobre a
verdadeira identidade de Jesus como Deus entre nós: primeiramente, Pe-
dro, declarando: “Tu és o Cristo”; em segundo, a voz saída do céu, que de-
clarou: “Este é o meu Filho amado. Ouçam-no!”. Testemunho humano em
uma extremidade, confirmação divina em outra.
Antes de examinarmos as duas histórias, gostaria de insistir em que as
mantenhamos no contexto e preservemos a relação existente entre elas.
Essas histórias nunca podem ser retiradas de seu contexto. O contexto delas
é a vida e a morte do Jesus que revela a Deus. O evangelho de Marcos tem
Jesus como seu assunto. Fora de contexto, essas histórias não podem de
forma alguma ser bem interpretadas. Eles não se sustentam por si sós. Não
nos entregam uma teologia espiritual com a qual podemos retirar-nos para
assim explorá-la como bem entendemos.
E há uma relação orgânica entre essas histórias. Não podem ser arran-
cadas uma da outra. Elas compõem o ritmo binário de uma única teologia
espiritual, não duas maneiras alternativas de fazer teologia espiritual. As
duas histórias reúnem os movimentos ascético e estético, o Não e o Sim
que trabalham conjuntamente no âmago da teologia espiritual.
O ascético. Primeiramente, o movimento ascético. Temos aqui o Não
de Deus em Jesus. As palavras de Jesus são sucintas e extremas: “Se al-
guém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-
me” (8:34). A vida ascética lida com a vida na estrada.
Os verbos que saltam da frase e nos atingem são “negue-se a si mesmo”
e “tome a sua cruz”. Renúncia e morte. Parece uma agressão, um ataque.
Recuamos.
Mas então percebemos que essas duas ações de contornos negativos estão
situadas entre duas ocorrências do verbo “seguir” (ou “acompanhar”).
Primeiramente um infinitivo (“acompanhar-me”), depois um imperativo
(“siga-me”). “Se alguém quiser acompanhar-me” (akolouthein) abre a fra-
se; “siga-me” (akoloutheito) a encerra. Jesus está dirigindo-se para algum
lugar; convida-nos para o acompanharmos. Não há nenhuma hostilidade
24 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

nesse convite. Soa, aliás, altamente maravilhoso. Tão maravilhoso e radian-


te, aliás, que o grande verbo “seguir” esparge glória nos verbos negativos
que indicam renúncia e morte.
Há sempre um forte elemento ascético na verdadeira teologia espiritu-
al. Seguir a Jesus significa não seguir nossos impulsos, apetites, caprichos
e sonhos, todos os quais tão prejudicados pelo pecado que passam a ser
guias pouco confiáveis para definir qualquer lugar para onde valha a pena
seguir. Seguir a Jesus significa não seguir as práticas de procrastinação e
negação da morte de uma cultura que, por obsessivamente lutar pela vida
sob a égide de ídolos e ideologias, acaba com uma vida tão contraída e
apoucada, que mal se pode chamar de vida.
Da perspectiva gramatical, a negação, nossa capacidade de dizer “não”,
é uma das características mais impressionantes de nossa língua. A negação
é nosso acesso à liberdade. Somente os humanos podem dizer “não”. Os
animais não podem dizer “não”. Os animais fazem o que o instinto lhes dita.
“Não” é uma palavra de liberdade. Não preciso fazer aquilo que me orde-
nam, sejam minhas glândulas, seja minha cultura. O “não” judicioso, bem
colocado, liberta-nos de muitos becos sem saída, muitos desvios perigo-
sos, liberta-nos de distrações debilitantes e seduções sacrílegas. A arte de
dizer “não” liberta-nos para seguirmos Jesus.
Se nos ativermos com cuidado ao texto de Marcos, jamais associare-
mos o ascético com a negação da vida. A prática ascética dissipa a bara-
funda do eu que se arroga status de deidade, e abre um espaço amplo para
o Pai, o Filho e o Espírito Santo; ela nos envolve e prepara para um tipo de
morte do qual a cultura não tem nenhum conhecimento, abrindo espaço
para a dança da ressurreição. Sempre que estamos perto de alguém que
esteja fazendo isso bem, percebemos a suavidade dos passos, a presteza de
espírito, a facilidade de rir. H. C. G. Moule escreveu que essas negativas pro-
postas pelo Senhor Jesus “talvez tenham de entalhar linhas profundas no
coração e na vida; mas o cinzel nunca deve desfigurar o brilho do material”.4

4
Veni Creator. London: Hodder & Stoughton, 1890, p. 104.
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 25

O estético. Ao lado do elemento ascético em Marcos, está o seu elemento


estético. Trata-se do “sim” de Deus em Jesus. Pedro, Tiago e João veem
Jesus transfigurado diante deles no monte, imerso em nuvem e brilho, na
companhia de Moisés e Elias, e ouvem a bênção de Deus: “Este é o meu
Filho amado. Ouçam-no!” (Mc 9:7). O estético lida com a vida no monte.
A palavra “beleza” não ocorre na história, mas beleza é o que os discípu-
los experimentaram, e o que nos vemos experimentando: a beleza de Jesus
transfigurado, da lei e dos profetas, de Moisés e Elias integrados à beleza
de Jesus, a bela bênção: “... meu [...] amado...”: tudo encaixando-se, com o
interior iluminado de Jesus extravasando para o monte, para a história e
para a religião, belamente pessoalizado e harmonizado de maneira profun-
da e ressoante, numa declaração de amor.
Há sempre um elemento fortemente estético na verdadeira teologia
espiritual. Subir o monte com Jesus significa encontrar uma beleza de ti-
rar o fôlego. Permanecer na companhia de Jesus significa contemplar sua
glória, interceptar essa vasta conversa entre gerações tão distantes entre si
— gerações que abrangem desde a lei até o evangelho, passando pelos pro-
fetas —, uma conversa que se dá em torno de Jesus, e depois ouvir a con-
firmação divina da revelação corporificada em Jesus. Quando o Espírito
de Deus faz sua aparição, para nós é uma aparição repleta de beleza.
Mas há o seguinte a respeito do Jesus transfigurado. Jesus é a forma da
revelação, “e a luz não recai nessa forma vinda de cima ou de fora; antes,
ela irradia a partir do interior da forma”.5 A única resposta adequada que
se pode dar à luz é manter os olhos abertos, prestar atenção ao que está
iluminado: adoração.
O impulso estético na teologia espiritual está relacionado com uma ins-
trução que nos ensina a perceber e a desenvolver um gosto por aquilo que
está sendo revelado em Jesus. Não somos bons nisso. Nossos sentidos fo-
ram embotados pelo pecado. O mundo, apesar de toda a celebração da
sensualidade que alardeia, é implacavelmente antiestético, eliminando o

5
Hans Urs von BALTHASAR. The Glory of the Lord. San Francisco: Ignatius Press, 1984, vol. 1, p. 151.
26 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

sentimento pela imposição da feiura e do ruído, exaurindo a beleza das


pessoas e das coisas para que sejam funcionalmente eficientes, ridiculari-
zando o estético, a menos que possa ser contido num museu ou num jar-
dim. Nossos sentidos precisam de cura e reabilitação para que tenham
condições de receber as visitações e as aparições do Espírito, do Santo
Espírito de Deus, e a elas corresponder, pois, como afirma Jean Sulivan:
“O insight mais fundamental da Bíblia [...] é que o invisível só pode falar
por meio do perceptível”.6
Esse nosso corpo, com seus cinco sentidos, não é impedimento para uma
vida de fé; o fato de termos sentidos não é uma barreira para a espirituali-
dade, mas nosso único acesso a ela. Tomás de Aquino estava convencido
de que a negação dos sentidos, assensualidade, como ele a chamava, era
um vício, a rejeição dos próprios sentidos, muitas vezes levando ao sacrilé-
gio.7 Quando João quis assegurar a alguns cristãos primitivos a autentici-
dade da experiência espiritual, ele o fez invocando o testemunho de seus
sentidos: visão, audição e toque: “... o que ouvimos, o que vimos com os
nossos olhos, o que contemplamos e as nossas mãos apalparam — isto
proclamamos a respeito da Palavra da vida” (1Jo 1:1). Em sua frase de
abertura, ele invoca sete vezes o testemunho de seus sentidos.
Marcos coloca essa história de afirmação gloriosa imediatamente ao lado
de sua história de estrita negação. Na companhia de Jesus, esse nosso cor-
po, tão magnificamente equipado para ver, ouvir, tocar, cheirar e provar,
sobe o monte (em si um ato físico extenuante), onde, em arrebatada ado-
ração, aprendemos a enxergar a luz e ouvir as palavras que nos revelam
Deus.
Parece suficientemente simples, e é. Marcos não se perde em sutilezas
— deixa tudo bem claro diante de nós. Mas sabe também que, por mais
simples e óbvio que seja, é fácil entender tudo errado. A resposta inicial de
Pedro tanto na história da estrada ascética quanto na história do monte
estético estava errada.

6
Morning Light. New York: Paulist Press, 1988, p. 18.
7
Citado por Beldon LANE. Landscapes of the Sacred. New York: Paulist Press, 1988, p. 81.
MARCOS: O TEXTO FUNDAMENTAL PARA A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ 27

Na estrada, Pedro tentou evitar a cruz; no monte, ele tentou possuir a


glória. Pedro rejeitou o caminho ascético oferecendo a Jesus um plano
melhor, um caminho de salvação em que ninguém precisa ser incomoda-
do. Jesus, na repreensão mais severa jamais registrada nos Evangelhos,
chamou-o Satanás. Pedro rejeitou o caminho estético oferecendo-se para
construir monumentos no monte, uma forma de adoração na qual ele po-
dia tomar o comando das mãos de Jesus e oferecer algo proativo e prático.
Dessa vez Jesus simplesmente deu de ombros.
A propensão de Pedro de entender tudo errado mantém-nos de sobrea-
viso. Século após século, nós, cristãos, continuamos a entender tudo erra-
do — e de diversas formas. Entendemos mal o ascético; entendemos mal o
estético. Nossos livros de história estão cheios de aberrações ascéticas,
cheios de aberrações estéticas. Sempre que deixamos de ler esse texto de
Marcos como deveríamos e saímos da companhia de Jesus, entendemos
tudo errado.

CONCLUSÃO
Mais uma coisa. Essas duas histórias, cuidadosamente colocadas no cen-
tro da história do evangelho, não são o centro da história. A história de
Marcos, lembre-se, é uma história sobre Jesus, não sobre nós. Por sinal, se
apagássemos essa seção da história, a história ainda seria a mesma histó-
ria. Nada nessa narrativa da estrada e do monte é essencial para o entendi-
mento da história que mostra Jesus vivendo, sendo crucificado e ressurgindo
dentre os mortos. Sem esse relato da estrada e do monte, ainda sabería-
mos tudo o que é necessário saber. Marcos escolheu apresentar Jesus como
a revelação de Deus, um relato pleno da obra de salvação de Jesus.
O que acontece aqui é que somos convidados a nos tornar participantes
plenos da história de Jesus e descobrimos como nos tornar esses partici-
pantes. Não apenas somos informados de que Jesus é o Filho de Deus; não
apenas nos tornamos beneficiários de sua expiação; somos convidados para
morrer sua morte e viver sua vida com a liberdade e a dignidade de parti-
cipantes. E aqui está algo maravilhoso: entramos no centro da história sem
nos tornarmos o centro da história.
28 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

A espiritualidade corre sempre o risco da autoabsorção, de se tornar


tão fascinada com as questões da alma que Deus passa a ser tratado como
mero acessório da minha experiência. Precisamos ser muito vigilantes.
A teologia espiritual é, entre outras coisas, o exercício dessa vigilância. A
teologia espiritual é a disciplina e a arte de nos treinar para uma participa-
ção plena e madura na história de Jesus, mas nos impedir ao mesmo tem-
po de assumirmos o comando da história.
E para isso Marcos fornece nosso texto fundamental. As duas histórias
no centro, as histórias da estrada e do monte, são claramente prolépticas
— elas anteveem a crucificação e a ressurreição de Jesus. Elas nos imergem
e nos treinam nas negações ascéticas e nas afirmações estéticas, mas não
nos deixam ali; lançam-nos para adiante, em fé e em obediência, para a
vida que só é completa de forma plena no “não” definitivo e no “sim” glo-
rioso de Jesus crucificado e ressurreto.
Capítulo 2

De volta à estaca zero:


disse Deus1

O TESTEMUNHO DAS SAGRADAS ESCRITURAS


Há vários anos, quando eu estava nos primeiros meses de meu aprendiza-
do como avô, recebemos em casa a visita por alguns dias de meu filho Eric,
minha nora Lynn e meu netinho Andrew. Fazia 25 anos que eu não experi-
mentava um bebê dia após dia bem próximo de todos os detalhes, e então
fiquei absorvendo tudo. Tinha perdido muita coisa a primeira vez; estava
agora decidido a não perder nada dessa vez. Um dia, estávamos somente
Andrew, sua mãe e eu na sala de estar. Lynn estava lendo um livro. Andrew
vinha praticando sua versão americana do engatinhar australiano fazia al-
gumas semanas e já estava chegando perto da perfeição. Eu estava sentado
no chão observando com admiração aquele corpinho executar uma série
de operações musculares altamente habilidosas, exigindo a coordenação
precisa de olhos, braços e pernas. Tinha uma bola de tênis que ele pegava,
jogava e depois engatinhava para pegar. A bola ricocheteava lindamente das
paredes e dos móveis, fornecendo o desafio e a variedade necessários para
mostrar a seu avô suas habilidades altamente desenvolvidas de engatinhar.
Naquele dia, nada que eu jamais tivesse visto num campo de beisebol ou
num ringue de patinação para hóquei competia com meu interesse e ad-
miração ao observar as proezas atléticas de Andrew no engatinhar. Isso
continuou por dez ou quinze minutos; foi quando a bola atrás da qual ele
estava engatinhando rolou para debaixo de um escoadouro seco e desapa-
receu da vista dele. No momento em que a bola desapareceu, Andrew

1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux. Vancouver: Regent College, 31, n.o 1, 2-10,
mar. de 1995.
30 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

parou, sentou sobre suas fraldas e olhou ao redor procurando algo mais
para fazer, como se nunca tivesse existido bola de tênis para perseguir. Olhei
para a mãe dele:
— Lynn, qual o problema com o Andrew?
Minha admiração excessiva rapidamente se havia transformado em
ansiedade. Por que ele parou de ir atrás da bola? Será que estava faltando
algum gene em seu DNA? Será que estaria mostrando os primeiros sinais de
dislexia e um transtorno de déficit de atenção? Lynn, sem sequer perder
tempo de olhar por sobre o livro que tinha nas mãos, disse friamente, e
achei que pelo menos com um pouquinho de ar de superioridade:
— O Andrew ainda não desenvolveu a permanência do objeto.
— O que isso quer dizer?
— Significa que o que ele não consegue enxergar não existe.
Demorou alguns segundos para eu interiorizar aquilo, e então eu disse:
— Ah, eu tenho uma congregação inteira assim.

Eu nunca tinha ouvido a expressão “permanência do objeto” Lynn e eu


então conversamos a respeito. Contou-me que naqueles primeiros meses
como mãe praticamente tudo na vida de Andrew exigia gratificação ime-
diata: amamentá-lo, acalmá-lo, trocar suas fraldas. Nem pensar em espe-
rar. Não havia nenhuma realidade para Andrew a não ser aquilo que ele
conseguia ver, provar, cheirar, sentir e ouvir. E a maior parte do que ele
via, provava, cheirava, sentia e ouvia era sua mãe. Para que fosse uma boa
mãe, tinha de estar de corpo presente, dia e noite, noite e dia. Ela também
observou que, se continuasse sendo uma boa mãe daquela maneira, a certa
altura acabaria sendo uma péssima mãe.
“Como poderia ser uma péssima mãe? Não é possível que alguém seja
uma péssima mãe.” Lynn era (e é) tão boa como mãe quanto o Andrew
era no engatinhar. Ainda que tentasse, não conseguiria ser uma mãe má.
Ela me fez ver que poderia passar de boa mãe a uma mãe má se o Andrew
nunca aprendesse a tal permanência do objeto — se nunca aprendesse a
lidar com sua ausência da mesma maneira que aprendera a lidar com sua
presença. A maior parte da Lynn, sem contar a maior parte do mundo, não
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 31

era naquele momento acessível aos sentidos do garoto. Se ela insistisse em


ser indispensável para ele, estreitaria a vida dele a somente aquilo que ele
era capaz de enxergar nela.

Sempre me surpreendo um pouco quando descubro ainda outra ma-


neira em que a biologia fornece uma sustentação para a espiritualidade. E
aqui outra vez. E, na inusitada abstração psicológica, “permanência do
objeto”. Naquela conversa aquele dia, tendo aprendido sobre um aspecto
fundamental do desenvolvimento de uma criança, tive uma nova perspec-
tiva sobre o ponto de partida da aventura singularmente humana que acha
a mais plena expressão no cristão que eu sou. Estou dando a esse ponto de
partida o nome “estaca zero”, o lugar no qual desenvolvemos a nossa per-
manência do objeto. Esse é o lugar a partir do qual embarcamos em nossa
viagem caracteristicamente humana.
Os primeiros meses de nossa vida são gastos em preparação, satisfazen-
do nossas necessidades básicas para que possamos dar início à jornada.
Muitos já tiveram experiência semelhante, quando, digamos, foram acam-
par nas montanhas, mochila nas costas. Você gasta dias deixando tudo pron-
to, escolhendo a roupa adequada, medindo as quantidades de alimento,
certificando-se de que a barraca é à prova d’água, verificando o estojo de
primeiros socorros. E ali está você, no começo da trilha. Até esse ponto,
quase tudo esteve sob seu controle; depois desse ponto, quase nada estará
sob seu controle — a maioria daquilo com que agora você está lidando é
invisível, incerto, imprevisível: mudanças de clima, aparição e comporta-
mento de animais selvagens, sua própria resistência física e o estado de
espírito de seus companheiros de trilha. Você chegou à estaca zero.
Até a estaca zero, você vive por vista; depois da estaca zero, você vive por
fé. A biologia básica agora dá lugar à espiritualidade básica. Não mais res-
tringidos pelos sentidos, pelos sentimentos e pela proximidade, somos lan-
çados numa exploração e participação no imenso mundo de lembranças,
expectativas, esperas, confiança, crença, sacrifício, amor, lealdade, fideli-
dade — nenhum dos quais pode ficar circunscrito ao que você é capaz de ver
e tocar. Nenhum desses elementos que constituem o que é característica e
32 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

inconfundivelmente humano em nós pode ser possuído — precisa ser pe-


netrado. A maior parte daquele que é não se encontra onde possa ser toca-
do, posto na boca, onde possa nos envolver com seu cálido aconchego. A
estaca zero é o lugar de onde começamos a aprender a viver com a Ausên-
cia com a mesma facilidade com que chegamos a viver com a Presença. A
palavra genérica que usamos em referência a isso é fé — em sua definição
clássica e jamais até o momento superada: “a certeza daquilo que espera-
mos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11:1).
É essencial ter em mente que nossos cinco sentidos não se tornam me-
nos importantes nesta altura; ao contrário, talvez se tornem até mais im-
portantes, pelo fato de não mais nos limitarem. Nossa vida espiritual não é
menos física, sensual, imediata que nossa vida biológica, apenas não está
circunscrita ao físico. Nosso corpo, em vez de ser uma prisão em que so-
mos encarcerados em nós mesmos, são estradas abertas nas quais embar-
camos em nossas viagens rumo ao que “Olho nenhum viu, ouvido nenhum
ouviu”. A biologia não é o nosso destino, como Freud queria que acreditás-
semos; antes, é um passe livre para provar e ver que o Senhor é bom, como
expressa o salmista. Não deixamos a biologia para trás quando chegamos
à estaca zero; o que fazemos é desenvolver a permanência do objeto. Não
mais precisamos enxergar algo para saber que existe.
Andrew desenvolveu muito bem essa habilidade. Está com 6 anos de
idade agora, e a maior parte de seu mundo se compõe de invisibilidades e
palavras. Eu o encontro no pátio de sua casa, manejando uma espada, bra-
dando anátemas e arrancando a cabeça de dentes-de-leão. Pergunto o que
está fazendo, e ele me diz que está combatendo trolls gigantes. Em sua res-
posta, acho que consigo perceber um tom de superioridade e irritação em
sua voz semelhante ao que ouvi em sua mãe cinco anos antes, quando ela
me dava uma aula de permanência do objeto.

I
O elemento característico da estaca zero é este: disse Deus. Há, natural-
mente, muito mais também. Quando pisamos pela primeira vez na estaca
zero, toda uma amplidão do céu e da terra se abre diante de nós. Nem damos
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 33

conta de lidar com tudo de uma só vez. O melhor é receber tudo aos pou-
cos, por partes. Uma história aqui, uma oração ali, uma canção, um sonho.
As palavras são nossas principais ferramentas para nos orientarmos no
mundo — cuja maior parte não podemos enxergar, cuja maior parte ja-
mais chegaremos a tocar — vasta existência em expansão, cheia de misté-
rios, que na verdade é tão maior, tão mais complexa, tão mais real até
mesmo, do que nós.
Aprendemos a palavra “bola” e por meio da palavra adquirimos a capa-
cidade de experimentar a realidade da bola de tênis mesmo depois que ela
tenha rolado para debaixo do escoadouro sem água e não a conseguimos
enxergar. À medida que acrescentamos palavras ao nosso vocabulário
ativo, nos familiarizamos com uma realidade cada vez maior. A palavra ab-
solutamente indispensável que aprendemos na estaca zero é Deus. Apren-
demos a palavra “Deus” e adquirimos a capacidade de experimentar tudo
o que está além de nós como uma realidade com a qual podemos conectar-
nos e que nos seja pessoalmente agradável. Não aprendemos isso imedia-
tamente, repentinamente, absolutamente; há equívocos, superstições,
distorções e variações na imaginação, avanços e regressões. Mas aprende-
mos. Todos aprendem. “... pois o que de Deus se pode conhecer é manifes-
to entre eles, porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo
os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm
sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas,
de forma que tais homens são indesculpáveis” (Rm 1:19-20). O desconhe-
cido suplanta o desconhecido. Aquilo que não conseguimos enxergar ex-
plica o que conseguimos enxergar. E esse mistério desconhecido e invisível
é intencional e pessoal: Deus.
Intencional. Pois há coerência, finalidade e planejamento anteriores à
minha experiência da vida.
Pessoal. Pois há algo ou outro que se conecta comigo e é maior do que
aquilo que sou: Deus é mais do que eu, não menos. Não apenas mais pode-
roso ou mais sábio, mas mais pessoa, mais do que o que quer que seja que
me torne capaz de pensar, crer, amar, esperar, confiar — todos esses gran-
des elementos invisíveis dos quais tomo consciência na estaca zero.
34 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Deus. Não há nenhum termo que por si só seja tão comum e tão indis-
pensável aos seres humanos. Não existe nenhum idioma no qual a palavra
não ocorra. Praticamente não existe nenhum momento em nossa vida em
que a palavra não figure de um modo ou de outro na busca de explicarmos
a nós mesmos e ao mundo ao redor de nós — seja negando, fazendo ressal-
vas, blasfemando ou adorando. Deus.
Nas teorias científicas e na filosofia, “o critério da simplicidade é funda-
mental”.2 Richard Swinburne é o professor da cátedra Nolloth de Religião
Cristã na Universidade de Oxford. Ele é hoje um de nossos mais impor-
tantes defensores da fé cristã. Uma tônica central de sua obra gira em tor-
no desse critério da simplicidade. O mundo, não importa de que ângulo
você o aborde, seja do científico, seja do religioso, é surpreendentemente
diversificado, com milhões de detalhes a serem explicados. Qualquer um
pode aparecer com uma teoria à la Rube Goldberg3 que explique por meio
do mais complicado maquinário mental algum aspecto do que está ocor-
rendo. A maior parte do trabalho filosófico consiste justamente nesse tipo
de monstruosidade intelectual. Mas a teoria mais convincente e mais útil é
justamente a mais simples: a teoria que emprega o vocabulário mais sim-
ples e o menor número de variáveis, dando-nos a certeza de encontrar os
mais variados fenômenos que constituem a evidência daquilo com que nos
deparamos. Swinburne escreveu uma trilogia que aplica esse critério da
simplicidade à palavra “Deus”.4 O que ele fez, praticamente, foi explicar
todo o material que nossos estudos científicos e filosóficos nos apresen-
tam, e explicá-lo com a simples profundidade de “Deus”. Ele nos levou de
volta às nossas primeiras introspecções e experiências fundamentais de
permanência do objeto.

2
Richard SWINBURNE. “The vocation of a natural theologian.” In: Kelly James CLARK, org.
Philosophers Who Believe. Downers Grove, IL: InterVarsity, 1993, p. 184.
3
Os desenhos do cartunista americano Rube Goldberg mostram máquinas absurdamente
conectadas, funcionando em extrema complexidade e jeitos difíceis de produzir um resultado
simples. Por essa razão, é associado a qualquer sistema tortuoso empregado na realização de
tarefas básicas. (N. do T.)
4
Os livros em ordem são: The Coherence of Theism [A coerência do teísmo], The Existence of
God [A existência de Deus] e Faith and Reason [Fé e razão].
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 35

O professor Richard Swinburne e meu neto Andrew me dizem a mes-


ma coisa e praticamente com as mesmas palavras para que retornemos à
estaca zero.

II
Mas você perceberá que estou empregando o verbo “retornar”, e não o verbo
“trazer”. Estivemos lá uma vez, mas a verdade inescapável é que com cer-
teza não estamos mais.
A estaca zero é o lugar no qual percebemos que há um enorme mundo
que ainda não vimos, uma criação incrível que não podemos explicar, uma
realidade complexa que não é definida nem controlada pela experiência que
temos dela. Há mais — muito mais. Nossa experiência, conquanto sufi-
cientemente crível, não abrange tudo o que há. Há muito mais que não sa-
bemos do que o que sabemos. Somos envolvidos, para usar uma das
expressões clássicas de nossa tradição, numa “nuvem de ignorância”.
Há algo maravilhosamente encantador nisso, o senso de espaço e tem-
po, de mistério e beleza. Tornamo-nos exploradores, aventureiros, cava-
leiros errantes.
Mas há também algo seriamente decepcionante: a percepção de que não
estamos no centro do universo. Em estado infantil — e isso se aplica a nós,
não importando nossa idade cronológica —, temos a percepção de que
somos o centro de tudo. Nossas necessidades são mais importantes que tudo,
simplesmente tudo. Nossos apetites, nosso bem-estar, nosso conforto.
Somos como deuses e deusas, adorados, cultuados e servidos.
É quando chegamos à estaca zero e ficamos sabendo que precisamos
aguardar nossa vez, ou que nosso comportamento é muito desprezível e
precisamos ficar no quarto, ou que precisamos compartilhar nossos brin-
quedos com nossa irmã. Há muito mais acontecendo do que você e eu.
Experimentamos a finitude.
E não gostamos. Para qualquer pessoa que teve uma pequena prova da
glória como rainha soberana, como rei onipotente, é um considerável re-
vés ser tratado como uma criança chata e mal-educada. Para qualquer pes-
soa que adquiriu dinheiro suficiente para poder exigir e pagar por qualquer
36 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

capricho concebível, é um choque receber instruções para abandoná-lo e


começar a andar na companhia de um pregador itinerante sem-teto e de-
sempregado (Mc 10:17-31). Para qualquer pessoa que por meio do estudo
detido e disciplinado passou a dominar um relevante cabedal de conheci-
mento, é um senhor insulto ser incumbido da tarefa de cuidar de uma víti-
ma da violência desgovernada das ruas (Lc 10:25-37).
Quando chegamos pela primeira vez à estaca zero, ficamos sem fôlego
diante dos esplendores inimagináveis do infinito, os quais se descortinam
interminavelmente. É maravilhoso. E então começamos a perceber o
corolário: se existe o tal infinito, com certeza não sou eu. Sou finito. Se
Deus, então não sobra espaço para mim como deus.
A resposta praticamente unânime diante dessa percepção é narcisismo
ou prometeísmo,5 de uma forma ou de outra. O narcisismo é a tentativa
de se retirar da estaca zero e retornar para a soberania espiritual do eu. Nem
pensar em infinitude. Nem pensar em mistério. Cultive o maravilhoso eu.
Pode ser um mundo pequeno, mas é o meu mundo, totalmente meu.
O prometeísmo é a tentativa de fazer desvios ao redor da estaca zero
para chegar a uma espiritualidade do infinito, pôr as mãos nela, controlá-
la e fazer com ela alguma coisa. Toda essa espiritualidade ali, parada, sem
fazer nada, precisa ser administrada. O prometeísmo é prático. O prome-
teísmo é empreendedor. O prometeísmo é eficaz e ambicioso. O prometeís-
mo deseja fazer bom uso de todo esse poder e essa beleza.
A maioria de nós, a maior parte do tempo, pode ser encontrada prati-
cando algum tipo de narcisismo ou prometeísmo. Nem precisa dizer, en-
tão, que a espiritualidade em sua maioria é uma combinação de narcisismo
e prometeísmo, com as proporções definidas cuidadosamente e sob medida
para se adequar aos nossos temperamentos e circunstâncias específicos.
E é por essa razão que uso a palavra “retornar” — significa retornar à
estaca zero, retornar ao lugar do maravilhamento, percebendo o infinito,
adorando a Deus.

5
Há no conceito uma alusão à bravura e à grandeza de Prometeu, o titã da mitologia grega que
roubou o fogo do Olimpo e o entregou aos homens, mostrando como utilizá-lo. Foi por esse
motivo que Zeus o castigou e o acorrentou no cimo do Cáucaso. (N. do T.)
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 37

A maneira principal de combatermos nossas propensões obstinadas e


direção ao narcisismo e ao prometeísmo é cultivando a humildade. Apren-
dendo a ser nós mesmos, mantendo-nos com os pés no chão, dando vazão
à nossa natureza humana, enfiando a mão no húmus, a matéria orgânica
rica, argilosa, da qual fomos formados.
E então escutar.

III
Isso porque retornar à estaca zero é não somente retornar a uma percep-
ção de Deus, mas também a uma escuta do que Deus diz. Disse Deus. Você
escutou? Escutou?
Escutar está vinculado não apenas lexicalmente (akouo e hypakouo), mas
espiritualmente a obedecer, a corresponder. “O ato de o homem escutar
representa uma forma de corresponder à revelação da Palavra, e na reli-
gião bíblica é assim a forma fundamental em que se toma posse dessa re-
velação divina”.6
A linguagem é o meio primordial para desenvolvermos a “permanência
do objeto”. A descoberta de que há uma palavra “bola” para se referir àquele
objeto verde e felpudo que rolou para debaixo do escoadouro sem água é
uma chave para lidar com a realidade das “coisas invisíveis”. As palavras
comprovam a realidade e a singularidade das pessoas, das coisas e dos acon-
tecimentos que estão além do âmbito daquilo que experimento por meio
dos sentidos. À medida que desenvolvo facilidade com as palavras, meu
mundo se expande; não demora muito, e estou habitando séculos remo-
tos, lidando com continentes longínquos, travando conversas com homens
e mulheres nos cemitérios.
Assim, não surpreende que Deus, que é “infinitamente mais do que tudo
que pedimos ou pensamos”, trate conosco pelo instrumento da linguagem.
Deus fala. Para os cristãos, a espiritualidade fundamental não é somente
um substantivo, Deus, mas também um verbo, disse (ou diz).

6
G. KITTEL, org. Theological Dictionary of the New Testament. Grand Rapids: Eerdmans, 1964,
vol. 1, p. 216.
38 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Meu objetivo neste exato momento não é fazer uma defesa disso — já
foi hábil e competentemente arrazoado e defendido por nossas melhores
mentes cristãs, algumas delas meus colegas aqui na Regent. Minha inten-
ção é simplesmente chamar sua atenção para o óbvio, o aceito, o básico:
quando voltamos à estaca zero, escutamos, pois Deus fala.
E precisamos mesmo ser lembrados. Pois, assim como a percepção do
mundo do Espírito que se centra na pessoa e no poder de Deus geralmente
resulta numa proliferação de espiritualidades que tentam tomar o lugar de
Deus ou usar Deus, também a aquisição da linguagem que permite respos-
ta e participação no mundo do Espírito resulta então em conversas espiri-
tuais que deixam Deus de lado.
A maior parte, embora certamente não a totalidade, das conversas es-
pirituais que estão sendo travadas dentro e fora das igrejas cristãs é desse
tipo. É não uma escuta de Deus; não uma resposta a Deus; não uma crença
na Palavra de Deus. É conversa fiada.
Às vezes, é uma conversa fiada muito instigante. Muitas vezes, uma con-
versa fiada fascinante. Mas é o nosso comentário sobre a nossa experiência
com o espiritual, não uma proclamação de como Deus se dirige a nós a
partir do mundo do Espírito. Damos testemunho, testificamos continua-
mente, mas o mais comum é falarmos de nós, não de Deus. Não é procla-
mação, que é a forma fundamental assumida pela linguagem acerca de
Deus, mas tagarelice e fofoca.

O livro de Jó é a revelação clássica que temos desse tipo de coisa. Jó


está de volta à estaca zero: disse Deus. Mas o substantivo, Deus, e o verbo,
disse, são separados no livro de Jó por muita conversa espiritual que em
nada se relaciona com Deus. Jó não tem nenhuma dúvida de que está lidan-
do com Deus. Está diante do mistério — nenhuma das formas conhecidas
de explicar vida funciona mais. Ele depara com o desconhecimento. Não
se satisfará com nada menos que Deus falando com ele, um Deus que lhe
explica como as coisas são, um Deus que revela. E Deus de fato fala, “do meio
da tempestade”, e Jó fica satisfeito. Deus não responde a suas perguntas, não
explica o mistério — mas fala. E isso é suficiente. É sempre suficiente.
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 39

Mas a maior parte do texto de Jó é tomado com a conversa espiritual


dos conselheiros religiosos de Jó: Elifaz, Bildade, Zofar e Eliú. Quase tudo
que eles dizem é verdade. Mas, ao mesmo tempo, quase nada do que di-
zem é verdade. Nada do que dizem consiste numa participação que escuta
e corresponde a Deus. Um dos discursos mais arrebatadores é o de Elifaz.
É seu primeiro discurso, e ele apoia o que precisa dizer documentando-o
com a autoridade da experiência espiritual. Elifaz diz a Jó que ele deve ter
pecado, caso contrário não estaria sofrendo. É um universo espiritual lógi-
co, de causa e efeito, em que vivemos. Não há nenhum mistério. Há res-
postas para tudo. Mas Elifaz não é totalmente lógico — ele procura conferir
autoridade a seu discurso testificando de uma experiência sobrenatural.

Disseram-me uma palavra


em segredo,
da qual os meus ouvidos
captaram um murmúrio.
Em meio a sonhos perturbadores da noite,
quando cai sono profundo
sobre os homens,
temor e tremor
se apoderaram de mim
e fizeram estremecer
todos os meus ossos.
Um espírito roçou o meu rosto,
e os pelos do meu corpo
se arrepiaram.
Ele parou,
mas não pude identificá-lo.
Um vulto se pôs
diante dos meus olhos,
e ouvi uma voz suave...
Jó 4:12-16

Depois de uma experiência assim, talvez você pensasse que deveria ha-
ver alguma revelação profunda para comunicar. Mas não; o que vem
40 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

depois não é diferente: a sabedoria convencional que Elifaz podia ter to-
mado de algum santuário babilônico ou templo egípcio.

Poderá algum mortal


ser mais justo que Deus?
Poderá algum homem ser mais puro
que o seu Criador?
Se Deus não confia em seus servos,
se vê erro em seus anjos e os acusa,
quanto mais nos que moram
em casas de barro,
cujos alicerces estão no pó!
São mais facilmente esmagados
que uma traça!
Entre o alvorecer e o crepúsculo
são despedaçados;
perecem para sempre,
sem ao menos serem notados.
Não é certo que as cordas
de suas tendas
são arrancadas,
e eles morrem sem sabedoria?
Jó 4:17-21

Mais tarde, Elifaz tenta outra vez conferir autoridade espiritual a suas
banalidades batidas referindo-se ao que “vi” (15:17).
Jó não se impressiona. Não fica impressionado com o sobrenatural.
Ele quer Deus. E quer o Deus que fala; não quer ouvir Elifaz falar de sua
experiência com um fantasma. Não tem nenhum interesse nas histórias de
Elifaz sobre sussurros fantasmagóricos e sombras imprecisas no meio da
noite; quer ouvir Deus falar. A Palavra de Deus.
Quando Deus fala por meio de seus profetas, ele fala com clareza. Isaías
é totalmente claro: “... ouvi a voz do SENHOR conclamando: ‘Quem enviarei
[...] Vá e diga a este povo...’” (Is 6:8,9). Jeremias é totalmente claro: “A
palavra do SENHOR veio a mim dizendo: ‘Antes de formá-lo no ventre eu o
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 41

escolhi [...] Eu hoje dou a você autoridade sobre nações e reinos, para ar-
rancar, despedaçar, arruinar e destruir, para edificar e plantar’” (Jr 1:4-10).
Ezequiel é totalmente claro: “Ele me disse: ‘Filho do homem, fique em pé,
pois eu vou falar com você’. Enquanto ele falava, o Espírito entrou em mim
e me pôs em pé, e ouvi aquele que me falava. Ele disse: ‘Filho do homem,
vou enviá-lo aos israelitas, nação rebelde...’” (Ez 2:1-3). “Os profetas ex-
perimentavam a palavra em termos inequívocos; era colocada diretamen-
te na boca deles como um oráculo para proclamação pública”.7
E Elifaz é totalmente vago: “... uma palavra em segredo [...] um mur-
múrio [...] sonhos perturbadores [...] Um espírito roçou o meu rosto [...]
não pude identificá-lo. Um vulto [...] uma voz suave...” (4:12-16). “Para
Elifaz, a palavra penetra furtivamente pela porta dos fundos, indistinta e
esmaecida. Sua origem e seu autor são desconhecidos. É apenas identifica-
da como uma palavra, um som passageiro, um ruído na noite”.8
Esse tipo de coisa é a epidemia das espiritualidades de todos os tempos
e lugares. O bizarro, o enigmático, o pretensiosamente exótico. Não se quer
de forma alguma insinuar aqui que Elifaz seja uma fraude, que a experiên-
cia em si não é real. Mas nos é apresentada de tal forma que nos faz perce-
ber que não é significativa. Todos esses testemunhos de encontros com o
sobrenatural, descrições de estados místicos e elevados de consciência —
nada significativos. Todas essas técnicas que nos oferecem por meio das
quais podemos estar sintonizados com as vozes, sentir as vibrações, ouvir
as harmonias — nada significativas.
Não quero dar a ideia de que tudo isso é pura fraude e fantasia. As ex-
periências podem muito bem ser suficientemente reais. Não há nada em
Jó sugerir que insinue que Elifaz fosse uma fraude. Ele pode muito bem ter
tido essa experiência sobrenatural que lhe deixou todo arrepiado.
O que quero dizer é que não é significativa. Elifaz era a Shirley McLaine
da antiga Edom.
A espiritualidade cristã não fica impressionada com o sobrenatural.

7
Norman C. HABEL. The Book of Job. Philadelphia: Westminster Press, 1985, p. 126.
8
HABEL, op. cit., p. 127.
42 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

O sobrenatural não está nem aqui nem ali para aqueles de nós que esta-
mos posicionados na estaca zero, orientando-nos, aceitando nossa finitude
humana, recebendo lampejos da infinitude de Deus.
Somos imersos no mundo do Espírito, e então por que haveríamos de
desejar uma experiência espiritual? Mas essa experiência não confere a
autoridade ao nosso conselho nem ao nosso caráter. O retorno à estaca zero
não é somente um retorno a Deus, mas a disse Deus. Pois não somente
existe um Deus; existe também a Palavra de Deus.
A espiritualidade cristã não começa com o relato da nossa experiên-
cia; começa com o nosso ato de escutar Deus nos chamar, nos curar, nos
perdoar.
Isso é algo difícil de assimilar. Costumeiramente conversamos com nós
mesmos e sobre nós mesmos. Não escutamos. Se chegamos a escutar uns
aos outros é quase sempre com o objetivo de obter algo que possamos usar
quando chegar a nossa vez. Boa parte da nossa escuta consiste em mera
polidez, educadamente esperando nossa vez para conversar sobre nós mes-
mos. Mas em relação a Deus especificamente, precisamos quebrar o hábi-
to e deixar que ele fale conosco. Deus não somente é; Deus diz.
A espiritualidade cristã, além de ser uma espiritualidade atenta, é uma
espiritualidade que escuta.

As palavras são nossas principais ferramentas para nos orientarmos no


mundo — cuja maior parte não podemos enxergar, cuja maior parte ja-
mais chegaremos a tocar —, essa vasta existência em expansão, cheia de
mistérios, que é tão maior, tão mais complexa, tão mais real até mesmo,
do que nós.
Quando Andrew aprendeu a palavra “bola”, encontrou um meio de li-
dar com um objeto que ele não podia enxergar. Quando aprendo a palavra
“Deus”, sou capaz de lidar com a pessoa que eu não posso ver. Deus usa
palavras para nos treinar na permanência do objeto.
Mas agora quero fazer uma modificação na expressão, de permanência
do objeto para permanência do sujeito. Pois Deus não é um objeto com o
qual eu lido, mas um sujeito que se dirige a mim e fala comigo. É apren-
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 43

dendo a escutar Deus falar que me familiarizo com a espiritualidade fun-


damental e dela participo.
Há um detalhe interessante que quero ressaltar. Disse antes que quan-
do chegamos à estaca zero não deixamos a biologia para abraçar a espiri-
tualidade. Nossos sentidos físicos não se tornam menos importantes;
passam a ser mais importantes por não estarmos mais limitados por eles.
Quando descobrimos que Deus se revela pela palavra, entramos de volta
no âmbito das percepções pelos sentidos — a palavra é proferida por boca/
lábios/língua/garganta; é ouvida por ouvidos; ou, no caso da palavra escri-
ta, vista com os olhos. Mas, uma vez que a palavra é proferida e ouvida, ou
escrita e lida, penetra em nós de tal maneira que transcende o que é mera-
mente percebido pelos sentidos. Uma palavra é (ou pode ser) uma revela-
ção de um interior para outro. O que está dentro de mim entra em você —
a palavra consegue isso. E essa é a razão por que a linguagem é a principal
ponte entre a biologia fundamental e a espiritualidade fundamental.
E a razão por que a espiritualidade cristã insiste na escuta.
Pela graça de Deus, a Palavra de Deus é também escrita. E isso faz das
Escrituras Sagradas o texto da espiritualidade cristã. As Sagradas Escritu-
ras são o posto de escuta para darmos ouvidos à Palavra de Deus.

IV
Algo extraordinário acontece quando retornamos à estaca zero, ao lugar
de adoração e escuta — uma maravilhosa infusão de energia em nosso in-
terior; uma descarga de adrenalina em nossa alma que se transforma em
obediência. A razão é que a palavra que Deus fala é o tipo de palavra que
faz as coisas acontecerem. Quando Deus fala, não é com o objetivo de nos
dar informações sobre economia, de modo que possamos saber como fa-
zer nosso planejamento financeiro. Quando Deus fala, não é como um car-
tomante, entrando em nosso futuro e matando nossa curiosidade a respeito
das nossas possibilidades no amor ou a respeito do cavalo no qual devemos
apostar. Não, quando Deus fala, não é para explicar todas as coisas para as
quais não conseguimos obter respostas de nossos pais, de livros ou da lei-
tura de folhas de chá. A Palavra de Deus não é, em essência, informação,
ou tagarelice, ou explicação. A Palavra de Deus faz as coisas acontecerem
44 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

— ele faz algo acontecer em nós. O imperativo é um dos mais importantes


modos verbais da Escritura Sagrada: “Haja luz [...] Vá [...] Venha [...]
Arrependa-se [...] Creia [...] Não tema [...] Seja curado [...] Levanta-se
[...] Peça [...] Ame [...] Ore...”.
E a consequência pretendida com o imperativo é a obediência. Eu amo
o salmo que diz: “Corro pelo caminho que os teus mandamentos apontam,
pois me deste maior entendimento” (Sl 119:32). Sim, corro. A estaca zero,
com sua atenção e escuta, é esse lugar de entendimento — sabemos quem
somos e onde estamos... e quem é Deus e onde está. Nesse lugar e nessa condi-
ção, há no interior um armazenamento e uma concentração de energia que,
emitido o imperativo de Deus, se manifesta precisamente em obediência
— correr pelo caminho dos mandamentos de Deus. Pois nas narrativas bí-
blicas sobre a obediência não há nada feito com má vontade, com vergonha
ou arrastando os pés.
Marcos nos fornece um detalhe desse aspecto da Palavra de Deus regis-
trado de maneira incisiva, quando ele narra a história da cura de Bartimeu
em Jericó, a cidade onde um milênio antes o xará de Jesus, Josué (em gre-
go, “Jesus”), comunicou por meio de sinais os atos de salvação e libertação
que lançaram a campanha que tornou as promessas de Deus na prática em
posse da terra. Jesus retorna a Jericó para lançar sua campanha definitiva
— subir até Jerusalém contra as forças das trevas e depois, por meio da
crucificação e da ressurreição, tomar posse do país da salvação. Jericó é
um lugar do tipo estaca zero.
Aqui está o detalhe: quando Jesus começa a caminhar, Bartimeu está
sentado ao lado da estrada mendigando. Ele ouve que se trata de Jesus e
clama por socorro, por misericórdia — persistentemente. Jesus ouve-o, para
e manda chamá-lo. Quando Bartimeu recebe o chamado, não há nenhum
instante de hesitação — de um salto, fica de pé e vai até Jesus (Mc 10:50).
A expressão “de um salto” é um verbo no original (anapedesas) — sua única
ocorrência no Novo Testamento — e prende nossa atenção. Bartimeu dá
um salto. Como um corredor que ouve o disparo da pistola de largada, ele
explode do lugar onde está e não mais se encontra lá, agora correndo. Sim,
“Corro pelo caminho que os teus mandamentos apontam, pois me deste
maior entendimento”. Bartimeu está na estaca zero, com a postura certa e
DE VOLTA À ESTACA ZERO: DISSE DEUS 45

pronto; e assim, quando Jesus emite a palavra de convite, nada menos que
a Palavra de Deus, Bartimeu na estaca zero é um foguete que acaba de ser
lançado.
Pois a estaca zero não é o lugar onde sentamos para decidir em debate
qual será nossa próxima ação. Não é um oásis de repouso do árduo e pe-
noso negócio da peregrinação. Não é um retorno à inércia quando a ativi-
dade nos parece demasiada. É o lugar para o qual retornamos, de modo
que nossa fé é iniciada por Deus, nosso discipulado é definido por Cristo,
nossa obediência recebe a infusão do Espírito.
Eugen Rosenstock-Huessy — a quem respeito, embora fosse totalmen-
te independente em sua forma de pensar, como um dos mestres mais ma-
ravilhosos em nosso século da espiritualidade da linguagem e da vida —
adotou como lema de sua vida: Respondeo etsi mutabor, “Atenderei, ainda
que eu seja mudado!”.9 Pois, quando retornamos à estaca zero, onde ouvi-
mos a Palavra de Deus, a obediência que se segue certamente mudará nos-
sa vida. O arrependimento e o comprometimento, a crença e a fidelidade
— todas as ações cheias de energia que são iniciadas na estaca zero não
seguem nos trilhos de nossos hábitos e rotinas voluntariosos, mas são trans-
formadores: levam-nos com Jesus a Jerusalém, à cruz e à ressurreição.
Nós avançamos na vida cristã tornando-nos mais competentes, mais
instruídos, mais virtuosos ou mais cheios de energia. Não avançamos na
vida cristã adquirindo conhecimentos especializados. Todos os dias, e mui-
tas vezes a cada dia, retornamos à estaca zero: disse Deus. Estamos sendo
constantemente “lançados de volta para o começo e sempre nos examinando
de novo”.10 Somos sempre iniciantes. Começamos de novo. Ouvimos Jesus
dizer: “a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais
entrarão no Reino dos céus” (Mt 18:3). E assim nos tornamos como crian-
cinhas. Retornamos à condição na qual começamos a desenvolver permanên-
cia do sujeito, disse Deus. Voltamos à estaca zero. Adoramos e escutamos.

9
Citado por Eugene ROSENSTOCK-HUESSY, org. Judaism Despite Christianity. University, AL:
University of Alabama Press, 1969, p. 4.
10
Karl BARTH. Church Dogmatics. Edinburgh: T. and T. Clark, 1936, vol. 6, p. 15.
46 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Quero simplificar a vida de vocês. Quando as pessoas mandam que vocês


leiam mais, quero dizer que leiam menos; quando as pessoas estão man-
dando que façam mais, quero dizer que façam menos. O mundo não ne-
cessita ter mais de você; ele necessita ter mais de Deus. Seus amigos não
necessitam ter mais de você; necessitam ter mais de Deus. E você não ne-
cessita ter mais de você; necessita ter mais de Deus.
A vida cristã consiste naquilo que Deus faz por nós, não no que faze-
mos por Deus; a vida cristã consiste naquilo que Deus diz a nós, não no
que dizemos sobre Deus. Naturalmente, também fazemos coisas e dizemos
coisas; mas, se não retornarmos à estaca zero cada vez que agirmos, cada
vez que falarmos, começando por Deus e pela Palavra de Deus, logo nos
veremos praticando uma espiritualidade com pouca ou nenhuma relação
com Deus. E assim, para vivermos verdadeiramente a vida cristã e não
apenas usar a palavra “cristão” como disfarce para nossas tentativas narci-
sistas e prometeicas em direção a uma espiritualidade que não adora a Deus
e à qual Deus não se dirige, é necessário retornar à estaca zero, adorar a
Deus e escutar Deus. Em virtude das nossas lembranças prejudicadas pelo
pecado, as quais nos deixam vulneráveis a cada edição mais recente da es-
piritualidade jornalística, é necessária uma reorientação diária na verdade
revelada em Jesus e apreendida na Escritura. E dada a nossa antiga predis-
posição por reduzir cada fragmento de revelação divina com que depara-
mos a uma peça de tecnologia moral/espiritual que possamos usar para ter
sucesso no mundo, e no final para nos darmos bem sem Deus, requer-se
um retorno diário a uma condição de nenhum conhecimento e nenhuma
realização. Já demonstramos por nós mesmos, repetidas vezes, que não
somos confiáveis nessas questões. Precisamos retornar à estaca zero para
um novo começo tão frequentemente quanto cada manhã, cada meio-dia
e cada anoitecer.
capítulo 3

A busca do espírito1

Se todos os seus amigos de repente começassem a conversa sobre o estado


da digestão de cada um — comparando sintomas, pedindo dicas e conse-
lhos, trocando remédios — isso não lhe pareceria muito auspicioso. Tam-
pouco o interesse generalizado pela espiritualidade em nossos dias me leva
a pensar que a alma americana esteja em estado de florescimento.
Quem tem boa digestão não fala sobre isso. Tampouco quem tem uma
alma saudável. Quando nosso corpo e nossa alma estão funcionando bem,
em geral nem nos damos conta deles. A frequência com que a palavra es-
piritualidade ocorre hoje em dia talvez seja mais um sinal de patologia do
que saúde.
Ao tomar essa posição, não estou descartando o interesse atual na espi-
ritualidade como se fosse uma doença. O interesse em si não é doente, mas
foi uma doença que provocou o interesse. Há muita confusão a respeito
do tratamento adequado, mas quase unanimidade quanto ao diagnóstico:
nossa cultura foi acometida da doença do secularismo.
Mais profunda e forte, porém, que a nossa enfermidade é a nossa cura.
O Espírito de Deus que pairava sobre o caos primevo (Gn 1:2) paira sobre
nossas cidades assassinas e caóticas. O Espírito que desceu sobre Jesus
como uma pomba (Mt 3:16) desce sobre os seguidores de Jesus. O Es-
pírito Santo que encheu homens e mulheres de Deus às 9 horas da manhã
em Jerusalém durante o Pentecoste (At 2:1-4) enche homens e mulheres
ainda em Chicago e Calcutá, em Moscou e Montreal, dia e noite, 365 dias
por ano.

1
Publicado pela primeira vez na revista Christianity Today, 8 de nov. de 1993.
48 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Mais que isso ainda, existe uma enorme onda de reconhecimento a es-
palhar-se por toda a nossa cultura de que a vida como um todo é, em sua
essência, espiritual; que tudo o que vemos é formado e sustentado pelo que
não podemos ver. Os que fomos criados nos dias da Grande Depressão
Espiritual e nos habituamos a uma vida entenebrecida à sombra do racio-
nalismo presunçoso e da tecnologia intimidadora mal conseguimos acre-
ditar no que vemos e ouvimos. As pessoas ao redor de nós — vizinhos e
estranhos, ricos e pobres, comunistas e capitalistas — querem saber sobre
Deus. Fazem perguntas sobre significado e propósito, sobre certo e erra-
do, sobre céu e inferno.
Por vários anos, fui recrutado pela universidade do Estado, não muito
distante de onde eu morava, para dar a disciplina de Novo Testamento. A
disciplina tinha sido inserida na grade curricular do Departamento de Fi-
losofia e Religião quarenta anos antes por um professor cristão que dirigia
o departamento. Foi uma ação furtiva de sua parte, esperando garantir aos
estudantes universitários acesso ao Novo Testamento. Ele mesmo leciona-
va a disciplina a uns poucos alunos, nunca muitos. Depois disso, morreu. Já
naquela época, todos os professores do departamento eram ou ateus, ou mar-
xistas, e, como não havia ninguém para lecionar a disciplina, ficou inativa.
Em virtude da negligência dos ateus, continuou a figurar na ementa das
disciplinas do curso. Alguns alunos a descobriram e exigiram que fosse
oferecida. Os professores tiveram de sair à procura de alguém de fora de
suas fileiras para ministrá-la e encontraram um grande amigo meu. Quan-
do ele se transferiu, eles tentaram eliminá-la. Mas naquela época tinha se
tornado a disciplina mais popular do departamento. Com a força que tinha
a união de estudantes aqueles dias, outra vez tiveram de sair em busca de
um cristão para ministrar a disciplina, e foi aí que me acharam.
Esse tipo de coisa é cada vez mais comum hoje em dia — o interesse
espiritual ganhando força nos subterrâneos e irrompendo em contextos
inusitados e muitas vezes seculares. Da noite para o dia, ao que parece, a
situação se inverte: em vez de desenvolvermos métodos para despertar nas
pessoas o interesse por Deus, elas chamam a nós, agarrando-nos pelas
mangas e pedindo: “Queremos ver Jesus”. Obviamente, nem sempre (e nem
A BUSCA DO ESPÍRITO 49

mesmo com certa frequência) dizem Jesus. Mas estão fartas do mundo e
de sua vida do jeito que está, tendo o bom senso de perceber que mercado-
rias e serviços aprimorados não ajudarão.
É bem possível que estejamos vivendo um momento maravilhoso da
história, já que aquelas velhas fraudes — o mundo, a carne e o Diabo —
estão desacreditados pela própria cultura que eles quase destruíram. À me-
dida que assenta a poeira e o ar fica mais puro, vemos uma prontidão ge-
neralizada por corresponder ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo.
A espiritualidade nem sempre é identificada pelos termos que uso para
defini-la — a presença e a atividade de Deus, o Espírito —, mas a consciên-
cia está lá; a fome está lá.

ENTEDIADO COM A LIBERDADE


Para atendermos a essa necessidade como convém, é necessário fazer um
balanço dessa cultura fracassada da qual surge essa fome por Deus.
Nossa cultura fracassou precisamente por ser uma cultura secular. A
cultura secular é uma cultura circunscrita à coisa e à função. Normalmen-
te, desde o começo, as pessoas ficam encantadas de se acharem vivendo
numa cultura assim. É maravilhoso ter todas essas coisas vindo em nossa
direção, sem termos de nos preocupar com sua natureza ou seu propósito.
E é maravilhoso ter essa incrível liberdade de fazer tanta coisa, sem nos
preocuparmos com relacionamentos ou com significado. Mas, depois de al-
guns anos experimentando isso, nosso encanto arrefece à medida que nos
descobrimos solitários em meio às coisas e entediados com nossa liberdade.
Nossa primeira resposta é obter mais daquilo que nos deu prazer no
primeiro lugar: adquirir mais coisas, gerar mais atividade. Obter mais. Fazer
mais. Depois de alguns anos nisso, ficamos inegavelmente aturdidos com
o fato de não termos melhorado em nada.
Já faz bem mais de um século que nós, americanos, estamos nisso, e tive-
mos sucesso total em produzir uma cultura limitada à coisa e à função. E
todos parecemos surpresos com o fato de que essa magnífica realização
do secularismo — todas essas coisas! Todas essas atividades! — produziu
uma epidemia de solidão e enfado. Ficamos surpresos de nos acharmos
50 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

solitários atrás do volante de um BMW ou quase morrendo de tédio à medi-


da que avançamos de um emprego prestigioso para outro.
E então, uma a uma, algumas pessoas começam a perceber que obter
mais e fazer mais só faz agravar a enfermidade. E compreendem que, se
piorar muito, a cultura estará morta — uma cultura irrestritamente secula-
rizada não passa de um cadáver.
As pessoas começam a ver que o secularismo marginaliza e por fim eli-
mina os dois aspectos essenciais da plenitude humana: a intimidade e a
transcendência. Intimidade: queremos experimentar o amor, a confiança
e a alegria humanos. Transcendência: queremos experimentar amor, confian-
ça e alegria divinos. Não somos o que somos por nós mesmos. Não nos
tornamos mais humanos, mais nós mesmos quando estamos atrás do vo-
lante de um BMW, nem quando, trajados de barrete e beca de formatura,
colamos um grau acadêmico para podermos conseguir um emprego melhor
faz mais e melhores coisas. Em vez disso, ansiamos por um toque huma-
no, por alguém que saiba nosso nome. Temos fome de significado divino,
alguém que nos abençoe.
E assim, da noite para o dia, a espiritualidade, a fusão de intimidade e
transcendência, passa a ser uma paixão para milhões de americanos. Não
é nenhuma surpresa que um povo tão mal instruído na intimidade e na trans-
cendência não se saia muito bem em sua busca. Quase qualquer coisa que
esteja à mão e confira uma sensação de proximidade — sejam genitais, seja
cocaína — serve como intimidade. E quase qualquer coisa que seja exótica
e que provoque uma sensação de mistério — de mantras a raftings — ser-
ve como transcendência.
É louvável que tenhamos uma nação de homens e mulheres que, uma
vez fartos das coisas em si e transtornados com a atividade em si, busquem
dignificar seu coração com algo a mais que um cartão de Feliz Natal e Prós-
pero Ano-novo todo ano. É animador que nosso continente esteja experi-
mentando uma recuperação do desejo de abraçar a intimidade e responder
à transcendência. Mas é lamentável que esses desejos altamente humanos
e essenciais sejam tão mal satisfeitos e tão sem conhecimento.
A BUSCA DO ESPÍRITO 51

Mas, então, mal se pode esperar que uma cultura tão completamente
secularizada quanto a nossa surja ela mesma com o remédio. Na maioria
dos casos, os americanos lançam mão de uma espiritualidade seculariza-
da, que não é espiritualidade nenhuma. Eles saqueiam culturas exóticas e
grupos esotéricos em busca da totalidade; mas sendo novos nisso e inexpe-
rientes, simplesmente não têm condições de discernir entre o verdadeiro e
o falso. A fraudulência corre solta. Nossos líderes, desconhecedores da
natureza humana, promovem pseudointimidades que desumanizam. Nos-
sas celebridades oferecem uma pseudotranscendência que banaliza.

INTERIORIZANDO OS CAMINHOS DO MUNDO


Ao longo da história, os cristãos evangélicos conservadores serviram à igreja
acrescentando precisão e fervor às questões de crença e comportamento,
insistindo no envolvimento pessoal, injetando energia e paixão, retornando
diariamente às Escrituras em busca de ordens e direção, e gerando comu-
nidades comprometidas. Mas atualmente não há uma precisão equivalen-
te nas questões da espiritualidade. No final, percebe-se que fomos afetados,
muito além do que havíamos percebido, por nossa cultura secularizante
muito mais que tínhamos percebido. Os evangélicos vêm interiorizando de
forma acrítica os caminhos do mundo e trazendo-os para dentro das igre-
jas sem que ninguém perceba. Mais especificamente ainda, interiorizamos
a fascinação do mundo pela tecnologia e seu entusiasmo pelas atividades.
Em vez de ser trazidos diante de Deus (“Ó vem, deixa-nos adorar e nos
curvarmos”) e levados a desenvolver um gosto pelos santos mistérios da
transcendência na adoração, o que interminavelmente promovem, tentan-
do nos convencer, é que devemos tentar isso e aquilo. Somos recrutados
para papéis e posições na igreja nos quais podemos brilhar, validando as-
sim nossa utilidade para aquela nossa função.
Depois de alguns anos ou décadas disso, vemo-nos em igrejas (igrejas
evangélicas) nas quais há tão pouca intimidade e transcendência quanto no
mundo. Sentimo-nos empobrecidos — defraudados, até mesmo. Procura-
mos em volta por evidências daquilo que mais desejamos. Está lá em nossas
Escrituras. Então pinçamos lampejos disso em outras pessoas. Encontramos
52 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

sinais também em outras partes da igreja, em outros séculos, às vezes em outros


países, às vezes em outras denominações. Queremos isso para nós. O que está
errado? Estamos crendo nas coisas certas. Estamos fazendo as coisas certas.
Coisas! — é isso que está errado. Tornamo-nos ávidos por espirituali-
dade: ansiamos estar em comunidade, experimentando amor, confiança e
alegria com outras pessoas. Estamos fartos de ser avaliados da perspectiva
da nossa capacidade de contribuição, de quanto somos capazes de realizar.
Temos fome de comunhão com Deus, algo que ultrapassa a satisfação do
eu, o meu desenvolvimento. Estamos fartos de que nos falem sobre Deus.
Procuramos a ajuda de nossos líderes, e eles nem parecem saber sobre
o que estamos falando. Então nos matriculam num programa para contro-
le do estresse. Recrutam-nos para uma excursão à Terra Santa. Pagam-nos
um curso sobre dinâmica familiar. Dão-nos o indicador Myers-Briggs 2 de
tipo de personalidade, para que assim possam nos encaixar no lugar certo,
onde podemos funcionar com eficiência. Quando não nos mostramos in-
teressados, eles falam mais rápido e mais alto. Quando nos desviamos em
alguma outra direção, eles contratam um consultor de relações públicas
para criar uma campanha com o fito de atrair-nos e aos nossos amigos. Às
vezes, a campanha publicitária logra êxito em arrebanhar pessoas que que-
rem algo para fazer sem a inconveniência da comunidade e querem saber
como estar em bons lençóis com Deus sem ter de abrir mão da palavra fi-
nal nos assuntos da sua vida. Mas eles não conseguem atrair-nos. Continua-
mos atrás daquilo que nos trouxe em primeiro lugar: intimidade e
transcendência, amigos de carne e osso e um Deus pessoal, amor e adoração.

FOCO, PRECISÃO E RAÍZES


Tenho a impressão de que a espiritualidade desperta maior interesse entre
os leigos de nossos dias, os homens e as mulheres que estão operando no
comércio, criando filhos, dirigindo caminhões, preparando refeições,

2
O MBTI (Myers-Briggs Type Indicator) é um teste psicológico que busca identificar caracte-
rísticas e preferências pessoais. Foi desenvolvido durante a Segunda Guerra Mundial por
Katherine Cook Briggs e sua filha Isabel Briggs Myers, inspiradas que foram nas teorias de Carl
Jung sobre os tipos psicológicos. (N. do T.)
A BUSCA DO ESPÍRITO 53

vendendo carros, crendo em Deus enquanto trocam um pneu furado em


plena chuva e orando a favor de um inimigo enquanto estudam para um
exame. Os profissionais religiosos, de modo geral, estão operando a partir
de outras prioridades.
A espiritualidade contemporânea carece desesperadamente de foco,
precisão e raízes: foco em Cristo, precisão nas Escrituras e enraizamento
numa tradição saudável. Nestes nossos dias de desvios e diletantismos, os
cristãos evangélicos, ou seja, arraigados no verdadeiro evangelho, devem
mais uma vez servir à igreja fornecendo exatamente esse foco, essa preci-
são e esse enraizamento. O fato de sobrar principalmente para os cristãos
leigos a tarefa de fornecer esse serviço à igreja não é de forma alguma algo
que nos enfraqueceria. A força e o impacto do evangelicalismo não raras
vezes se acharam entre seus leigos — transcendendo divisões denomina-
cionais, subvertendo estruturas estabelecidas, trabalhando nos bastidores,
começando por baixo.
Tenho cinco conselhos sobre as questões da espiritualidade para todos
os que têm fome e sede de intimidade e transcendência. Cada um desses
conselhos oferece foco, precisão e enraizamento evangélicos à espirituali-
dade. Se nós mesmos conseguirmos captar isso bem, estaremos munidos
dos elementos necessários para conduzir outras pessoas, uma condução
verdadeiramente evangélica tão inegavelmente ausente em nossos dias.
1. Descubra o que a Escritura diz sobre a espiritualidade e mergulhe nisso.
Não se trata aqui de uma caçada por um punhado de textos, mas da aqui-
sição de um imaginário bíblico — adentrar o vasto mundo da Bíblia e sentir
o território, desenvolvendo um instinto a respeito da realidade. A revelação
escriturística não é somente abalizada para ditar o que devemos crer acer-
ca de Deus e determinar a maneira em que devemos nos comportar uns
com os outros, mas também para formar e amadurecer nossa própria alma,
nosso ser, em resposta a Deus. As Escrituras fornecem precisão não apenas
às questões ligadas ao nosso ser, mas também às relacionadas ao nosso
pensamento e às nossas ações. A espiritualidade que não esteja continua-
mente imbuída da revelação bíblica, e sempre em atitude de oração, em pou-
co tempo ou se enrijece em justiça própria, ou se dissipa em psicologia.
54 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

2. Evite a espiritualidade que não exija compromisso. O compromisso


pessoal com o Deus pessoalmente revelado em Jesus está no âmago da es-
piritualidade. As espiritualidades passageiras da moda, dentro e fora da igre-
ja, desconsideram ou negam o compromisso. O conselho evangélico situa
as ordens do Senhor — creia, siga, persevere — no âmago de toda espiri-
tualidade. O compromisso vitalício de fé para com Deus conforme revela-
do em Jesus Cristo é essencial para qualquer espiritualidade verdadeira.
“O êxtase não perdura”, escreveu o romancista E. M. Forster, “mas abre
um canal para algo duradouro”. A fidelidade perseverante, focada e sem
desvios confirma a autenticidade de nossa espiritualidade. Os predecesso-
res para os quais nos voltamos em busca de ânimo nessas questões — Agos-
tinho de Hipona e Juliana de Norwich, João Calvino e Amy Carmichael, John
Bunyan e Teresa de Ávila — não desistiram. Permaneceram.
A espiritualidade sem compromisso é semelhante à sexualidade sem
compromisso — rápida e circunstancial, superficial e impessoal, egoísta e
desamorada —, no fim uma paródia da promessa inicial. Desprovida de
compromisso, a sexualidade degenera em vício, violência ou enfado. Des-
provida de compromisso, a espiritualidade, independentemente de quão
sábia ou alvissareira, tem um curto prazo de validade.
3. Abrace os amigos na fé onde quer que os encontre. Pode significar
amigos em outra igreja, do outro lado da cidade, em outro continente ou
por meio de livros de outro século. A espiritualidade cava poços fundos
em nossas tradições, e, em algum ponto, descobrimos que perfuramos o
mesmo lençol freático.
Fui criado numa atmosfera de acirrado anticatolicismo. Ser católico
romano era muito pior que ser um descrente, pois os católicos eram o ini-
migo, soldados obedientes do anticristo, prontos para, do Vaticano, nos
erradicar completamente, só aguardando para isso as ordens. E então, um
dia, para minha grande surpresa, minha mãe, uma ministra pentecostal,
retornou para casa de um retiro que havia dirigido, e falava com um tom
caloroso e de gratidão sobre várias freiras que ela havia conhecido. Não
demorou muito e logo ela estava se referindo a elas como “minhas” frei-
ras. As “irmãs” tinham se tornado suas irmãs.
A BUSCA DO ESPÍRITO 55

Essa é uma experiência comum em nossos dias de restauração da espi-


ritualidade. Encontramo-nos orando com quacres e ortodoxos, freiras
carmelitas e menonitas pacifistas. Batistas casam-se com presbiterianos, e
anglicanos jogam com metodistas.
4. Mas depois volte para casa e examine sua própria tradição. A sede
por uma espiritualidade mais profunda, uma vida cristã em que Deus re-
cebe credibilidade nas circunstâncias do cotidiano e nos relacionamentos
travados, é quase sempre acompanhada de um senso de privação; descon-
fiamos de que nossa igreja, nosso pastor, nossa família não nos legaram o
que era nosso por direito, e que não fomos guiados e nutridos nos caminhos
da santidade saudável. Essa sensação de privação muitas vezes se transfor-
ma em ira: “Por que você não me falou sobre isso? Por que você usou minha
fome por Deus para me recrutar para seus projetos religiosos? Por que
você achatou meu desejo por Deus transformando-o em explicações que me
fariam ficar quietinho em meu lugar?”.
Irados diante do nosso empobrecimento, não podemos deixar de notar
as igrejas e os movimentos que parecem melhores. Vemos lugares e pessoas
que estão se arriscando em amor e em Deus, e sabemos que prosperaría-
mos se apenas pudéssemos viver entre eles. Eles já nos estimularam e nos
nutriram de forma tão maravilhosa. Preparamo-nos para abandonar o barco.
Nossos conselheiros mais sábios normalmente nos mandam ficar onde
estamos. Cada lugar, cada congregação, cada denominação tem uma rica
tradição espiritual a ser descoberta e explorada.
O evangelicalismo é também uma tradição — representando séculos de
oração e vida santa, testemunho e sabedoria, bem como tesouros para nosso
alimento. Recupere o que é seu por direito aprofundando-se, não afastan-
do-se. A grama não é mais verde do outro lado da cerca. Cada comunida-
de religiosa tem seus pontos de insensibilidade; sua tarefa é cavar poços
em seu deserto.
O barão Friedrich von Hugel, um leigo católico romano, foi um dos dire-
tores espirituais mais respeitados da Inglaterra nos primeiros anos do sé-
culo XX. À medida que homens e mulheres eram por ele influenciados e
buscavam sua orientação, não poucas vezes queriam tornar-se católicos.
56 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Ele jamais incentivou que isso acontecesse. Insistiu em que permaneces-


sem onde estavam, como presbiterianos, anglicanos e batistas. Constante-
mente enviava as pessoas de volta à igreja deles. Há muita perfuração de
poços a ser realizada em nosso próprio quintal.
Há, sem sombra de dúvida, casos excepcionais. Mas a espiritualidade
normalmente não prospera por transplante. Aqueles dentre nós que repen-
tinamente se despertaram para a rica herança que todos nós perdemos todos
esses anos, os quais querem agora tornar-se ortodoxos, católicos ou caris-
máticos, precisam perguntar se Jesus não está falando comigo na ordem
que deu ao endemoninhado de Gerasa por ele curado, o qual, tendo im-
plorado para retornar com Jesus para a Galileia, foi enviado de volta à “igre-
ja” onde havia crescido: “Vá para casa, para a sua família e anuncie-lhes
quanto o Senhor fez por você e como teve misericórdia de você” (Mc 5:19).
5. Procure guias maduros; dê honra aos líderes sábios. Há muitos ami-
gos e pastores, professores e sacerdotes, irmãos e irmãs santos entre nós.
Mas eles não fazem propaganda de si mesmos. Procure identificá-los. Bus-
que a companhia deles em pessoa, ou por meio dos livros.
Uma vez que o apetite por Deus é facilmente manipulado e assim trans-
formado numa atividade consumista, necessitamos desses amigos sábios e
sensatos como guias e companheiros. Há empresários entre nós que veem
a fome generalizada pela espiritualidade como um mercado e estão lá fora
vendendo alimento de baixo valor nutritivo, embora fácil e atraente. A in-
genuidade dos incautos que compravam relíquias de monges itinerantes na
Idade Média — lascas de madeira da cruz original, ossos de dedos dos san-
tos, alguns pedaços de fios do manto sem costura de Jesus — encontra seu
correspondente mais que perfeito nos americanos no que se refere às ques-
tões da espiritualidade.
Desde o berço, somos instruídos a ser bons consumidores. É compreen-
sível que procuremos satisfazer nossa sede por Deus da maneira que fo-
mos criados. Mas não é escusável, pois temos nos evangelhos um claro
conselho que nos afasta desse mundo consumista: “Bem-aventurados os
pobres [...] negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me [...] Não amem
o mundo nem o que nele há”. E o conselho do nosso Senhor é confirmado
A BUSCA DO ESPÍRITO 57

e expandido de inúmeras maneiras por nossos sábios predecessores evan-


gélicos na fé.
A espiritualidade não é a última moda, mas a verdade mais antiga. A
espiritualidade, a cuidadosa atenção que dispensamos a um Deus vivo e a
resposta fiel que lhe damos na comunidade, está no cerne de nossas Escri-
turas e está à mostra por todos os séculos de Israel e da igreja. Já estamos
nisso há muito tempo. Temos quase quatro milênios de experiência para o
qual nos voltarmos. Quando alguém lhe passa um novo livro, estenda a mão
e pegue um velho. Isaías tem muito mais para nos ensinar sobre a espiri-
tualidade do que Carl Jung.
capítulo 4

Escritores e anjos:
testemunhas da transcendência1

Em certo inverno, quando eu passeava com o cachorro ao longo da bifur-


cação norte do rio Flathead, em Montana, repentinamente ele enfiou a ca-
beça nuns trinta centímetros de neve e saiu com um camundongo entre os
dentes. Coisas desse tipo, nem sempre tão impressionantes, acontecem o
tempo todo. Fico sempre impressionado de ver como o cachorro vê, ouve
e cheira melhor do que eu. Os sentidos do cachorro são muito aguçados, cons-
tantemente captando sinais que me passam totalmente despercebidos. Será
que ele ficaria impressionado de ver como eu creio, oro e amo mais do que
ele? Talvez não, pois pareço tão limitado em detectar o que transcende os
sentidos quanto aquilo que é por ele normalmente captado.
Mas, felizmente, não estou sem recursos. Os relatos sobre a atividade
dos anjos continuam chegando persistentemente — seres que chamam a
atenção para o mundo rico e complexo do espírito, muito à semelhança de
como os animais chamam a atenção para o mundo rico e complexo dos
sentidos. Ao menos, é aquilo em que creu a maioria dos meus predecesso-
res cristãos, com os relatos da Escritura Sagrada confirmados em sua pró-
pria experiência. Depois de um século de eclipse parcial em virtude do
nosso fascínio pelas máquinas, o interesse pelos anjos parece estar ganhando
força outra vez.2

1
Publicado pela primeira vez no periódico Theology Today, 5, n.o 3, 396-404, out. de 1994.
2
A Book of Angels. New York: Ballantine Books, 1990, e Angel Letters, 1991, de Sophy
Burnham, representam os muitos livros e cartas de anjos que vêm sendo publicados nos últi-
mos anos. [As duas obras foram publicadas no Brasil pela Bertrand Brasil, sob os títulos, respec-
tivamente: O livro dos anjos: reflexões sobre anjos, passado e presente e histórias verdadeiras
de como influenciam nossas vidas (1992), traduzido por Ana Maria Alves Sarda, e Cartas dos
anjos (1993), traduzido por Jacqueline Klimeck Gouvea Gama.]
60 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Anjos e animais. Fazem uma bela combinação amável, ampliando nos-


sa percepção das dimensões gêmeas do espírito e dos sentidos. As histórias
de animais, os animais de estimação, a fotografia e a observação ampliam
e aprofundam nossa participação na beleza e na vitalidade que podem ser
percebidas pelos sentidos e estão ao nosso redor, boa parte das quais geral-
mente não percebemos. As histórias, as cartas, os livros e os lampejos de
anjos ampliam e aprofundam nossa participação mais profundamente na
beleza e na vitalidade espirituais que estão ao redor, boa parte das quais
geralmente não percebemos. É significativo que no Apocalipse de João, a
integração bíblica mais destacada que temos do sensual com o espiritual,
animais e anjos figuram ao lado dos representantes humanos de Israel e da
igreja dando louvores a Deus (Ap 4—5). Nós, seres humanos, precisamos
de ajuda dos dois lados para participar na grandeza da criação e da salva-
ção de Deus.
Nunca faltaram anjos para serem observados. Na religião popular, so-
bejam histórias de anjos que vão das sérias às ridículas. E especulações
versadas sobre os anjos ocuparam algumas das melhores mentes da cris-
tandade, sendo as mais notáveis Pseudo-Dionísio e Tomás de Aquino. Mas
foram os romancistas e poetas que mostraram a afinidade mais imediata e
natural pelos anjos. É fácil entender por quê, pois escritores e anjos estão
semelhantemente preocupados em chamar nossa atenção para o transcen-
dente. Os escritores e os anjos são arautos, trazendo a mensagem de que
há muito mais do que aquilo que está ao alcance de nossos olhos.
Os escritores e os anjos compartilham de ainda outra qualidade, uma
predileção por se esquivarem, por ficarem à margem do caminho. Nossos
melhores escritores escondem-se em sua obra. E os anjos são, na maioria,
invisíveis e inaudíveis, nem percebidos nem ouvidos. Pois o transcendente
não nos pode ser imposto. Não vocifera, não anuncia sua presença com
alaridos, não faz propaganda de si mesmo em outdoors de beira de estrada.
Não há nada de intimidador no transcendente.
O que o transcendente requer é que seja percebido. As testemunhas da
transcendência não geram a transcendência. O transcendente já está aqui
ou ali. Mas, em nossa pressa por chegar a outro lugar qualquer, deixamos de
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 61

percebê-lo. Há sempre muito mais além do alcance dos nossos olhos. E


deixamos de perceber muita coisa. Precisamos de amigos que nos puxem
pela borda da camisa, que nos virem e nos mostrem o que acabamos de
perder agora em nossa pressa por atravessar a rua para chegar ao banco.
Precisamos de amigos que estendam o braço sobre o nosso ombro, inter-
rompendo nossos comentários contínuos sobre as conversas da cidade para
que possamos ouvir a verdade. Precisamos de testemunhas do transcen-
dente. Escritores. Anjos. Paramos, olhamos, escutamos.
Como eles têm essa afinidade natural um pelo outro, é natural que os
escritores usem os anjos à medida que deem andamento a sua atividade de
dar testemunho do transcendente. Milton, em seu Paraíso perdido,3 sem-
pre ocupará o lugar de honra entre os escritores que usaram anjos para nos
persuadir e convencer daquilo que “Olho nenhum viu, ouvido nenhum
ouviu”. Ou será que foram os anjos que usaram Milton?
Embora ninguém possa superar Milton nesse aspecto, muitos escrito-
res continuam a fazer o que ele fez tão bem. Selecionei quatro obras con-
temporâneas de ficção, nas quais escritores importantes de nosso século
seguem essa prática longa e venerável de empregar anjos para dar teste-
munho da transcendência. Escolhi essas quatro obras para mostrar a ampla
e variada gama de transcendência na qual habitamos. Cada escritor engaja-
se em seu trabalho de maneira muito diferente; talvez a única coisa que
tenham em comum, além do uso que fazem dos anjos, é que é de uma trans-
cendência especificamente cristã que eles dão testemunho.
Ficará patente que nenhum desses romances é sobre anjos como tais. O
que acho interessante são os papéis teologicamente sérios e espiritualmen-
te adequados que os anjos desempenham à medida que esses escritores des-
pertam nossa percepção para imensas dimensões da realidade que muitas
vezes passam sem ser percebidas ou comentadas no cotidiano da nossa
existência. Como cada um desses romances é complexo a seu próprio
modo e opera habilmente em vários níveis de significado de uma só vez,

3
Há várias traduções para o português. (N. do E.)
62 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

não lidarei com eles como um todo. Somente quero ressaltar com prazer
essa afinidade que há entre escritores e anjos no que se refere ao desejo de
chamar nossa atenção para a presença divina.

TESTEMUNHAS DOS DESÍGNIOS DIVINOS


John Irving cria a personagem Owen Meany4 para atuar como evangelista
subversivo numa cultura em que os evangelistas apresentados como tais
não podem ser confiáveis. Um evangelista muito improvável — um magri-
cela, desprezado, com voz estridente, que, sem querer, mata a mãe de seu
melhor amigo, acertando-a num jogo de beisebol com uma bola fora de
campo —, mas de qualquer modo um evangelista. As linhas de abertura
do romance anunciam o tema: “Estou fadado a me lembrar de um rapaz
com uma péssima voz — não por causa de sua voz, nem porque fosse a
pessoa mais franzina que jamais conheci, nem mesmo por ter sido o ins-
trumento da morte de minha mãe, mas por ser a razão de eu crer em Deus;
sou cristão por causa de Owen Meany”.5
Owen Meany é uma das personagens mais destacadas da ficção contem-
porânea, não por causa dos efeitos cômicos de sua aparência e de como ele
soa, a simples esquisitice de sua presença, mas por causa da simples esqui-
sitice de estar tão convicto de ser um instrumento de Deus. Numa cultura
que se interpreta sobretudo pelas categorias da psicologia e da economia,
Owen Meany se entende teologicamente, e da perspectiva de uma mani-
festação muito antiquada da teologia, a predestinação. Essas esquisitices
paralelas de aparência e convicção se reforçam mutuamente, e juntas, por meio
da arte do escritor, passam a ser acreditáveis. Acabamos por acreditar que
alguém com essa aparência e com essa voz de fato possa existir em nossa
vizinhança; acabamos por acreditar que de fato possa estar presente em
nossa cultura alguém assim, que vive na prática a convicção de que não há
nada esquisito, nem claramente acidental, nem aparentemente inútil — mes-
mo em se tratando de mim mesmo! — que não sirva aos propósitos divinos.

4
A Prayer for Owen Meany. New York: William Morrow, 1989.
5
Idem, p. 13.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 63

A convicção está ancorada na aparição de um anjo. Owen Meany está


passando a noite na casa de seu melhor amigo, Johnny Wheelwright. Owen
passa aquela noite doente, com febre, e desperta Johnny. A mãe de Johnny
está dormindo no quarto ao lado, e Johnny manda Owen falar com ela.
Owen retorna e conta a Johnny que acabara de ver um anjo ao lado da
cama. Johnny supõe que por causa da febre ele confundiu com um anjo o
manequim de costura que sempre ficava ao lado da cama da mãe dele, mas
ele vai com Owen até o quarto para ver com seus próprios olhos. O anjo
não está mais lá. Quando Johnny sugere a Owen que ele confundiu o ma-
nequim com um anjo, Owen informa: “O anjo estava do outro lado da
cama”.6
A visão do anjo era essencial porque Owen veio a acreditar que, quando
entrou no quarto, interrompeu o Anjo da Morte em sua sacra missão e, as-
sim, transtornou o planejado. Assim, então, ele ficou incumbido da tarefa
do anjo. Mais tarde, quando Owen lança a bola perdida que atinge a mãe de
Johnny, não foi nenhum acidente, mas estava “traçado”. Johnny Wheelwright,
no papel de narrador, diz: “Ele ficou furioso quando sugeri que qualquer
coisa pudesse ser um ‘acidente’ — especialmente algo que tivesse aconte-
cido com ele; no assunto da predestinação, Owen Meany acusaria Calvino
de ser detentor de uma fé precária. Não havia nenhum acidente; havia uma
razão para aquela bola de beisebol — assim como havia uma razão para
Owen ser pequeno, e uma razão para sua voz ser como era”.7
A vida, como a experimentamos em nosso cotidiano, parece muitas
vezes absurda. As circunstâncias surgem aleatoriamente; nada está liga-
do. Por meio da arte da narrativa, o romancista busca convencer-nos de
que a vida não se dá por acaso, que há uma trama e uma solução, que as
coisas têm sentido. Mas a narração não é explicação; em certos sentidos, é
o oposto da explicação; é imaginação. A explicação tem seu lugar de hon-
ra, mas é um substituto insatisfatório da imaginação. O escritor põe coisas
na página de tal maneira que nossa imaginação é aguçada para enxergar

6
Idem, p. 99.
7
Idem.
64 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

as conexões, os significados entrelaçados nas pessoas, nas coisas e nos


acontecimentos. Na tentativa de explicar os acontecimentos da noite
em que Owen viu o anjo, um vizinho diz: “Ah, isso explica tudo!”. O nar-
rador então comenta: “Que frase extraordinária é essa: ‘isso explica tudo’
hoje”. 8
É muito interessante que, numa época em que a predestinação, ao me-
nos em suas formas extremas, foi largamente abandonada por teólogos e
pastores à medida que buscam explicar a coesa inter-relação da vida, ela
seja retomada por um romancista e com êxito empregada a serviço da
imaginação. O romance passa no teste não quando acabamos por crer na
predestinação, mas quando somos convencidos de que Owen Meany cria
nela e de que Owen Meany é, por sinal, ele mesmo, acreditável. Pois isso
abre a possibilidade para que o leitor acompanhe o narrador em sua traje-
tória desde o “Antes eu não acreditava em anjos” até o “Agora eu creio na
existência dos anjos”.9
O papel fundamental do anjo nesse romance é confirmado numa cena
no cemitério, na noite em que a mãe de Johnny é sepultada. Johnny e seu
primo Hesler vão até o cemitério à procura de Owen. Eles o encontram no
túmulo com uma lanterna, lendo orações para ofícios fúnebres: “Ao paraí-
so os anjos a conduzem...”.10 A cena ressurge outra vez na última página do
romance e fornece o título do livro.11 Quando Johnny, o narrador do ro-
mance, está resumindo, ele diz: “Há uma oração que faço com muita
frequência para Owen. É uma das breves orações que ele fez por minha
mãe na noite em que eu e Hesler o encontramos no cemitério — para onde
ele levara a lanterna, sabendo quanto minha mãe odiava a escuridão. ‘Ao
paraíso os anjos a conduzam’, ele orou no túmulo de minha mãe; e assim
eu faço por ele a mesma oração — sei que era uma de suas favoritas. Estou
sempre orando por Owen Meany”.12

8
Idem, p. 102.
9
Idem, p. 134.
10
Idem, p. 131.
11
A Prayer for Owen Meany [Uma oração por Owen Meany]. (N. do T.)
12
IRVING, A Prayer for Owen Meany, cit., p. 542.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 65

ANJOS REBELDES
Perto do fim do romance de Robertson Davies What’s Bred in the Bone
[Filho de peixe...],13 há uma conversa entre dois anjos da história, Zadkiel,
o anjo menor, e o demônio Maimás, os quais, invisivelmente, lá no plano
de fundo, estavam presentes por toda a história supervisionando o destino
da personagem principal, Francis Cornish. Quando Cornish morre, os an-
jos relembram a tarefa de que foram incumbidos por toda a vida daquele
homem. Em meio a essas reminiscências, o demônio Maimás diz: “Natu-
ralmente, eu e você sabemos que tudo não passa de uma metáfora. Na ver-
dade, nós mesmos somos metáforas”.14
Dizer que um anjo é uma metáfora não diz nada em uma ou outra dire-
ção sobre a realidade dos anjos como tais. A metáfora é um dos meios
fundamentais pelos quais a linguagem lida com o que não é visto e ainda
assim é real. Se dizemos, como os salmistas muitas vezes disseram, que
Deus é uma rocha, e que na frase “rocha” não se refere a um ídolo, mas é
uma metáfora para Deus, em nenhum momento se está querendo dizer com
isso que a rocha não exista por conta própria. Os anjos como metáforas
fornecem um meio para conferirmos sentido às energias e forças difíceis
de compreender e para as quais os termos abstratos parecem fracos e
insatisfatórios. E são os anjos como metáforas que nos permitem criar his-
tórias a partir dessas mesmas energias e forças fugidias.
Num romance anterior, Os anjos rebeldes,15 no qual Francis Cornish
também teve uma participação, o escritor trabalhou a partir da outra dire-
ção — usou os seres humanos como metáforas para os anjos. Dois acadê-
micos, Simon Darcourt e Clem Hollier, professores da Faculdade de João
e do Espírito (“Fantasma” para seus residentes) Santo, precisam represen-
tar os anjos rebeldes Samahazai e Azazel.
Num antigo mito gnóstico, os anjos Samahazai e Azazel traíram os segre-
dos do céu para o rei Salomão — contaram-lhe tudo o que podia ser contado

13
New York: Viking Press, 1985.
14
DAVIES, op. cit., p. 435.
15
Robertson DAVIES. The Rebel Angels. New York: Viking Press, 1981. [Publicado no Brasil em
2000 pela Ediouro, sob o título Os anjos rebeldes, traduzido por Ângela Lobo de Andrade.]
66 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

sobre tudo o que existia. Deus, como era apropriado fazer, expulsou-os do
céu. “Mas será que eles vaguearam, deprimidos, conspirando vingança? Não
eles! Eles não eram egotistas rancorosos e vingativos como Lúcifer. Em vez
disso, deram outro empurrão para a humanidade escada acima, vieram à
terra e ensinaram línguas, cura, leis e higiene — ensinaram de tudo...”.16
Um dos resultados disso que chama nossa atenção é a universidade. A
vida colorida e cheia de energia do aprendizado, da pesquisa e do ensino
recebe pleno desenvolvimento no cenário universitário da história. Mas é
tudo, menos uma glorificação do aprendizado e do conhecimento em si,
pois o mal se manifesta aqui de maneira ainda mais poderosa. A maioria
das pessoas que habitam uma instituição de aprendizado, seja como pro-
fessores, seja como alunos, ingenuamente supõe muitas vezes que o inimi-
go é a Ignorância ou a Estupidez. Davies mostra-nos que é o Mal.
Os anjos, lembre-se, são anjos rebeldes. O aprendizado e o saber são bons
e verdadeiros, mas, dissociados da presença e vontade de Deus, dão ori-
gem ao mal. Um conhecimento transmitido por um anjo, ou seja, um
conhecimento que nasce na mente de Deus, arruinou o rei Salomão e pode
nos arruinar também. O conhecimento é uma dimensão da espiritualida-
de e tem qualidades morais. Não é neutro. A pessoa mais brilhante e ver-
sada do romance (John Parlabane), que também mais fala sobre Deus, é a
mais perversa. Os dois professores, cada um de uma maneira bem dife-
rente, titubeiam nos limites da maldade, mas recuperam seu equilíbrio antes
de a história chegar ao fim.
Fazem isso em relação à Sofia, outra figura da mitologia gnóstica. Ma-
ria Madalena Theotoki, aluna dos dois professores, torna-se uma metáfo-
ra de Sofia, a personificação feminina da Sabedoria, uma figura que
acompanha a Deus na criação do universo. Seu nome combina os dois ele-
mentos da Sofia: Maria Madalena, a Maria de quem Jesus expulsou sete
demônios (e, segundo reza a lenda, uma prostituta), e Maria, a mãe vir-
gem de Jesus (“Theotoky” é a palavra grega que significa “aquela que dá à
luz Deus). Um dos professores reflete sobre o mito gnóstico da seguinte

16
DAVIES, op. cit., p. 257.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 67

forma: “... Qualquer pessoa que se interesse pelas muitas lendas de Sofia
sabe sobre a ‘Sofia caída’ que se revestiu da carne mortal e afundou pelo
menos até o ponto de se tornar uma prostituta num bordel de Tiro, de onde
ela foi resgatada pelo gnóstico Simão, o Mago. Eu mesmo penso nisso como
a Paixão de Sofia, pois ela não se fez carne e não sofreu um destino vergonho-
so pela redenção da humanidade? Foi isso que levou os gnósticos a saudá-la
tanto como Sabedoria quanto como a anima mundi, a Alma do Mundo,
que exige redenção e, para alcançá-la, desperta desejos”.17
Maria, como metáfora de Sofia, está em busca do aprendizado na uni-
versidade a cada dia; ela também vai para casa a cada noite para sua mãe e
tia ciganas, que estão repletas do velho legado de feitiços, encantamentos
e magias. Quando, sob a instrução de seus dois professores (seus anjos re-
beldes), ela integra o aprendizado de sua universidade moderna à
terrenalidade medieval da religião e da sexualidade imposta pela mãe e pela
tia, mostra o caminho rumo à bondade e à sabedoria.
Como escritor, Davies mostra que quando não conseguimos lidar com
os dois nomes de Maria, Maria Madalena e Maria, a Mãe Virgem, a vida
passa a ser perversa. Os dois professores são “anjos rebeldes”, de maneiras
muito diferentes, aprendem a lidar com ambos e chegam a um tipo de
humildade restauradora.
Dois outros, John Parlabane e Urquhart McVarish, não conseguem. São
também anjos rebeldes, mas por se recusarem a lidar seriamente com
Maria/Sofia, perdem a credibilidade mesmo como metáforas. Eles a ridi-
cularizam e dela escarnecem e, ao agirem dessa forma, tornam-se comple-
tamente maus. Não é fácil para um escritor oferecer uma apresentação
convincente de uma pessoa má que não se agarre aos holofotes, toman-
do-os para si, o que suscita nossa admiração. Uma das queixas mais
comumente lançadas contra Milton é que ele conseguiu tornar Lúcifer e
os Anjos Caídos mais interessantes que Deus e os Anjos Bons. Fazendo um
uso magistral do mito dos anjos rebeldes, Davies consegue apresentar es-
ses dois homens maus de tal modo que ficamos interessados o suficiente

17
DAVIES, The Rebel Angels, cit., p. 236.
68 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

para querer continuar lendo sobre eles, percebendo o tempo todo que sua
maldade é um completo enfado. Nem toda transcendência é gloriosa. A
transcendência maligna nem mesmo é interessante.

A BELEZA DA BONDADE
É tão difícil fornecer um testemunho exato da bondade quanto o é da
maldade. Outra vez, o transcendente precisa ser transmitido. Se não há
nenhuma transcendência, acabamos com mera gentileza, ou falsa piedade,
ou alguma variação da observância estoica e inflexível do decoro. É raro
encontrar uma personagem “boa” num romance ou poema que seja atraen-
te e realmente interessante. A maioria delas aparece nas páginas como bons
samaritanos insípidos. Nossa experiência cotidiana é tão deficiente quanto
a verdadeira bondade, que falta a nossa imaginação a matéria-prima para
identificá-la.
De tempos em tempos, porém, surge um escritor que nos mostra a be-
leza flamejante e estonteante da bondade, mostra que em nada se rela-
ciona com ser gentil, ou cumprir regras, ou evitar os pântanos morais.
C. S. Lewis destaca-se entre esses.
Em sua trilogia espacial Longe do planeta silencioso, Perelandra e That
Hideous Strength [Essa força hedionda], Lewis reconta a história cristã do
conflito entre o bem e o mal na forma de uma fantasia espacial cujo cená-
rio é sucessivamente Marte (Malacandra), Vênus (Perelandra) e a Terra (Thul-
candra). Não há como não dispensar muita atenção ao mal; mas o que
ressalta maravilhosamente é o retrato da bondade, sobretudo em Perelan-
dra,18 que é uma recontagem da história da tentação do Éden na qual não
há nenhuma Queda. No planeta Perelandra (Vênus), Lewis mostra-nos um
espelho invertido de Thulcandra (a Terra). Vênus é um planeta em que a bon-
dade está esmagadoramente presente, com o mal fazendo todo o possível
para garantir uma base de operações, ao contrário da Terra, onde o mal está
esmagadoramente presente e a bondade tenta se impor a grande custo.

18
New York: Collier Books, 1962. [Publicado no Brasil pela Editora Betânia, sob o mesmo
título.]
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 69

Os anjos são figuras que se mantêm no fundo nas percepções dessa


bondade. Na criação mitológica de Lewis, os anjos são chamados eldila.
Lewis os apresenta de um modo que não encontra correspondência na
imaginação de nenhum angelologista medieval. “Os eldila são muito dife-
rentes de quaisquer criaturas planetárias. O organismo físico deles, se é que
pode ser chamado organismo, é muito diferente dos humanos ou dos mar-
cianos. Eles não comem, não procriam, não respiram nem sofrem morte
natural, e nesse aspecto assemelham-se mais a minerais pensantes do que
a algo que pudéssemos reconhecer como um animal. Embora eles apare-
çam nos planetas e possam até mesmo figurar aos nossos sentidos como
se às vezes residissem neles, saber a localização espacial exata de um eldil
em qualquer momento apresenta grandes dificuldades. Eles mesmos con-
sideram o espaço (ou “Céu Profundo”) seu verdadeiro habitat, e os plane-
tas são para eles não mundos fechados, mas simplesmente pontos de
movimento — talvez até mesmo interrupções — naquilo que conhecemos
como Sistema Solar, e eles como o Campo de Árbol”.19
A função dos anjos (eldila) é dissipar a distinção entre o natural e o so-
brenatural. Como é característico de nós, dividimos o universo em duas
metades, natureza e supranatureza, e evitamos pensar nas duas num mes-
mo contexto. Deixamos nas mãos de cientistas e engenheiros o encargo de
cuidar do natural, e encarregamos pastores e poetas do sobrenatural. Pen-
samos que assim conseguimos manter as coisas mais simples e menos con-
fusas. Mas, na realidade, acabamos por ficar tolhidos para lidar com a
realidade. Estamos sempre operando com uma das mãos atada às costas.
Os anjos vêm em nosso resgate desatando essa mão, seja ela a da natureza,
seja a da supranatureza, pois eles são testemunhas da unidade fundamen-
tal das duas metades. Não são animais aos quais possamos designar com-
portamentos e habitat previsíveis, com o apoio da constatação científica.
Mas ao mesmo tempo eles têm algum tipo de veículo ou capacidade mate-
rial por meio dos quais podem dar a conhecer sua presença.20 Praticamen-
te o mesmo se pode dizer dos escritores.

19
LEWIS, op. cit., p. 9.
20
LEWIS, Perelandra, cit., p. 11.
70 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Um filólogo de Oxford chamado Ransom é a personagem principal de


Perelandra. Numa visita anterior a Malacandra (Marte), ela havia passado
por uma menina que afirmara estar conversando com um eldil, mas Ransom
não conseguia enxergar nenhum. Mais tarde ele perguntou sobre isso a um
malacandriano, e esta foi a resposta que obteve: “... os eldila são difíceis de
ver. Não são como nós. São traspassados pela luz. É preciso ficar olhando
para o lugar certo e na hora certa; e isso pode não acontecer, a menos que
o eldil deseje ser visto. Às vezes, você pode confundi-los com um raio de
sol ou mesmo com o movimento das folhas das árvores; mas quando você
olha outra vez percebe que era um eldil e que já não está mais ali”.21
Muito comumente, o que é transmitido no testemunho do anjo é a bon-
dade, e, como todo escritor sabe, a bondade é um dos temas mais difíceis
de expressar de forma honesta e realista. No alicerce de nossa experiência
da bondade, está a beleza. (A tentativa deplorável do mal de competir com
ela acaba redundando nas banalidades da pornografia, um dos subtemas
de The Rebel Angels.) A bondade não é uma abstração, não é uma ideia,
não é uma essência espiritual destilada a partir da materialidade grosseira
da experiência humana. A bondade é experimentada como beleza, uma be-
leza enfaticamente percebida pelos sentidos, uma beleza apreendida e apre-
ciada por todo o sensório humano. A chegada a Perelandra é uma imersão
em cores, formas, odores, texturas e gostos que são puro encanto. Quan-
do Ransom, a personagem central do romance, toma uma bebida: “... foi
quase como encontrar o Prazer pela primeira vez”.22 À medida que ele vai
aos poucos adquirindo essa percepção da “bondade” por meio dessa imersão
nessas novas experiências encantadoras aos sentidos, o narrador comenta:
“... além de todos esses [encantos aos sentidos] havia algo mais que eu já
deixei nas entrelinhas e que mal pode ser expresso em palavras — o estranho
senso do prazer excessivo que parecia de algum modo ser comunicado a
ele por todos os seus sentidos de uma só vez. Uso a palavra ‘excessivo’
porque o próprio Ransom só conseguia descrevê-lo dizendo que em seus

21
C. S. LEWIS. Out of the Silent Planet. New York: Collier Books, 1962. p. 76. [Publicado no
Brasil pela Editora Betânia, sob o título Longe do planeta silencioso.]
22
Idem, p. 35.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 71

primeiríssimos dias em Perelandra foi assombrado não por um senso de


culpa, mas pela surpresa de nunca ter tido antes essas sensações. Havia uma
exuberância ou uma prodigalidade de doçura no simples ato de viver que
nossa raça acha difícil não associar com ações proibidas e extravagantes”.23
As maneiras em que os escritores e os anjos colaboram mutuamente
para dar testemunho do transcendente devem existir quase na mesma
medida que encontramos anjos capazes de simultaneamente dançar sobre
a cabeça de um alfinete. Em The Tongues of Angels [As línguas dos anjos],
de Reynolds Price,24 o testemunho é oferecido pelo desenvolvimento do
caráter de um rapaz de 14 anos de idade, acumulando vários palpites e in-
sinuações sobre anjos, e depois que a observação continuada e o somatório
das conjecturas se sobrepusessem um ao outro até que não tenhamos mais
certeza sobre onde acaba o rapaz e onde começa o anjo, ou onde o anjo
acaba e o rapaz começa. De uma coisa, porém, podemos ter certeza: tanto
o “rapaz” quanto o “anjo” ocorrem no mesmo local.
E como o rapaz é impressionantemente desafortunado, um verdadeiro
para-raios da má sorte, o que obtemos nessa colaboração escritor/anjo é
um testemunho do transcendente da humanidade no cenário inacabado
e desordenado da adolescência.
A adolescência é a forma da nossa humanidade menos passível de exi-
bir algo como a transcendência divina. Nossa reação estereotipada em re-
lação à adolescência é tratá-la como um rebuliço de hormônios, como
confusão e lugar-comum. Price testemunha o transcendente. Se pode ser
testemunhado na adolescência, pode ser testemunhado em qualquer um.
A história é narrada por um artista de 55 anos de idade enquanto recor-
da e organiza a história do verão de 1954, quando ele, um estudante uni-
versitário de 20 anos de idade, era conselheiro num acampamento religioso
para meninos nas montanhas da Carolina do Norte. A transcendência
que incorpora elementos da predestinação, do mal e da bondade em Irving,
em Davies e em Lewis, é agora observada na pessoa de um adolescente em

23
Idem, p. 37.
24
Reynolds PRICE. The Tongues of Angels. New York: Atheneum, 1990.
72 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

acampamento, Rafael (“Rafa”), nome que sua mãe lhe deu por causa do
pintor, mas no transcurso da história é visto cada vez mais sob a égide
do arcanjo.
A imaginação e a perspectiva artística fornecem os dados para o desen-
volvimento da trama e da personagem. O artista/conselheiro/narrador diz:
“Toda a minha vida [...] estive fascinado pela concepção quase mundial a
respeito dos anjos. A palavra em nosso idioma vem do grego angelos, e
angelos traduz a palavra hebraica que significa mensageiro. Assim, um anjo,
no sentido sagrado, é um mensageiro do e para o centro divino. Como por
anos eu estivera seguro de que meu trabalho [como artista] proviera desse
centro tão supremamente poderoso de conhecimento, tratei de manter um
caderno de esboços dedicado a ele. Em momentos especiais [...] tentava
registrar rapidamente e com o mínimo de premeditação um palpite de como
seria o rosto de um mensageiro angélico. Não que eu realmente pensasse
que eles têm rosto. Estava dando minha contribuição à sucessão de supo-
sições que iam do glorioso ao tolo e que abrangiam desde pelo menos a
arca da aliança até chegar àqueles americanos primitivos que até hoje re-
tratam a mensagem flamejante e o mensageiro por meio de quem ela che-
ga à mente deles e lhes guia as mãos”.25
Uma de suas tarefas no acampamento de verão é conduzir uma aula de
desenho para os acampantes. Ele mesmo quer viver da arte (e de fato se
torna um artista de profissão), mas é durante esse verão que seu desejo
se solidifica transformando-se numa convicção: “... Fiz um voto de gastar
toda a minha vida, se o destino concordasse, usando o único bloco real de
capital que eu sabia ter recebido. E era, naturalmente, a minha velha ne-
cessidade de observar aquelas partes do mundo que me fascinavam, de-
pois copiá-las para outras pessoas menos pacientes ou com olhos menos
afortunados”.26
A paixão que tinha ao ensinar seus meninos a desenhar era ensinar-lhes
a observar, realmente ver. “Se ensinei alguma coisa [...] espero que tenha

25
PRICE, op. cit., p. 127-128.
26
PRICE, The Tongues of Angels, cit., p. 244.
ESCRITORES E ANJOS: TESTEMUNHAS DA TRANSCENDÊNCIA 73

sido isto. Mantenha o olhar no objeto, se não ele o enganará e continuará


retendo seus próprios segredos. Porque os segredos são o que todo o mun-
do visível tenta constantemente manter, por alguma razão misteriosa”.27
Durante todo o tempo em que ele está observando e ensinando os ou-
tros a observar as pedras e as árvores das montanhas Esfumaçadas, espe-
rando que elas abram seus segredos, ele também observa Rafa, observando
atentamente, aguardando a mensagem. A certa altura, ele lhe pergunta:
‘‘‘Você me deixaria desenhar seu retrato?’. Foi o primeiro ser humano que
eu quis adicionar ao meu arquivo de mensageiros”.28 Pois, ainda que Rafa
tenha tido uma vida de sofrimentos trágicos, indizíveis, ele não pode ser
explicado por aquilo que lhe aconteceu. Sua vida açoitada pelo sofrimento
resiste a ser reduzida por meio da explicação. Não é possível tratá-lo com
ar de superioridade. Na graça e na nobreza de sua vida, seu conselheiro de
acampamento percebe tratar-se de “um mensageiro direto do controle
central, para a vida ou para a morte”.29 Ele percebe, por fim, que não pode
colocar Rafa em seu caderno de esboços de anjos. Os anjos são, precisa-
mente, mensageiros. Rafa está entregando uma mensagem, uma mensagem
que seu conselheiro gasta os próximos 35 anos de sua vida considerando e
assimilando, da qual este romance, com seu título evocativo, “as línguas
dos anjos”, constitui um relato.
Nem todos os escritores, naturalmente, dão testemunho do transcen-
dente. Alguns trabalham muito diligentemente para mostrar que não há e
nunca houve algo assim. Mas a maioria dos escritores acha-se trabalhando
numa realidade maior do que a que eles conhecem, escrevendo a partir de
alguma profundeza misteriosa além deles mesmos. Vários deles, surpreen-
dentemente, identificam o mistério sem rodeios como Deus. Esses quatro
romancistas — Irving, Davies, Lewis, Price — são excelentes representan-
tes do ato de fornecer um testemunho cristão contemporâneo de escritor/
anjo em relação ao transcendente na predestinação, no mal, na bondade
em nossa humanidade tão terrivelmente deteriorada.

27
Idem, p. 103.
28
Idem, p. 138.
29
Idem, p. 229.
capítulo 5

O seminário como lugar


de formação espiritual1

A decepção mais frequentemente expressa pelos homens e mulheres que


ingressam no seminário está relacionada com a espiritualidade. Não raro,
chegam ao seminário motivados por um compromisso com Deus e um
desejo de servir a seu Senhor em alguma forma de ministério, e então des-
cobrem que, em cada ocasião, estão sendo confundidos ou desviados em
relação a essa intenção.
Veem-se imersos em controvérsias calcedônias, acham-se acordados
altas horas da noite memorizando paradigmas gregos, acordam pela manhã,
esfregando os olhos, aturdidos com as distinções excessivamente minucio-
sas entre homoousios e homoiousios.
Não era com isso que tinham concordado quando ingressaram no cur-
so. Seus professores parecem muito mais interessados na redação deles do
que em sua espiritualidade. Acham-se gastando muito mais tempo em
paradigmas do que em oração.

Cresci cercado por advertências quanto aos perigos dos seminários. A


tradição sectária na qual fui criado não via nenhuma vantagem no aprendi-
zado. Pensar sobre Deus não o levaria a lugar algum, a não ser problema.
Somente creia. E louve! O cérebro ficava praticamente intocado enquanto
o Espírito Santo enchia o coração que louvava com bênçãos.
Os seminários eram considerados como o cemitério da espiritualidade.
Os seminários eram o lugar onde homens e mulheres perdiam a fé. Os avisos
do tipo juízo final que hoje a juventude recebe em relação às drogas e ao

1
Publicado pela primeira vez em Theology, News and Notes, out. de 1993.
76 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

“sexo seguro” no meu caso focavam-se exclusivamente nos seminários. O


cérebro era considerado razoavelmente inofensivo se usado para executar
funções cotidianas básicas (como conferir o troco e ler as tirinhas de jor-
nal). Mas, caso se atrevesse a pensar sobre Deus e seus caminhos, a fazer
perguntas difíceis e ler grandes tomos, quase certamente desenvolveria uma
malignidade que rapidamente contaminaria a alma. O câncer intelectual
era a maior causa conhecida de morte da alma. Muitas das advertências
vinham acompanhadas de histórias. Eu conhecia algumas das pessoas des-
sas histórias e não havia nenhuma razão para duvidar da validade das ad-
vertências. A única coisa prudente a fazer era evitar os seminários
completamente, a qualquer preço. As escolas ou institutos bíblicos eram
aceitáveis, pois enfim era preciso aprender uma coisa ou outra, mas os
seminários, com suas intensidades intelectuais e laissez-faire espiritual, eram
perigosos demais para se arriscar uma vocação.
Mas, apesar das advertências e das histórias, fui para o seminário.
Não sem tremer muito na base, mas fui. E agora, quarenta anos depois,
não apenas tendo frequentado um seminário, mas lecionado numa meia
dúzia de outros seminários, não encontrei nenhuma prova de que qualquer
das advertências estivesse errada — ou mesmo fosse exagerada. A forma-
ção nos seminários é perigosa — e muitos perderam a fé nas salas de aula
e bibliotecas de seminários. Muitos outros, ainda que não tenham sido re-
tirados num caixão, ficaram mutilados ou atrofiados, quer quase imper-
ceptivelmente, quer escancaradamente.
Todos nós, pastores e professores indistintamente, que frequentamos
seminários, retornamos a eles de vez em quando e continuamos a enviar
homens e mulheres para eles sob nosso cuidado espiritual, sabemos disso.
Não é nenhum segredo. Nenhum de nós escapou incólume.

De modo geral, o seminário não é um lugar adequado para nutrir a espi-


ritualidade — vida de oração, comunidade de amor, fé que se arrisca. O
seminário é um lugar de aprendizado; aprendizado sobre Deus, com certe-
za, mas ainda assim aprendizado. Desde a separação traçada pelo Ilumi-
nismo no século XVII entre o coração e a mente, as escolas não têm sido
O SEMINÁRIO COMO LUGAR DE FORMAÇÃO ESPIRITUAL 77

bons aliados numa vida de adoração, oração e amor a Deus. Falar sobre Deus
é quase a antítese de falar com Deus. Ainda que se empreguem as mesmas
palavras na conversa, não são a mesma coisa de forma alguma.
Mas, se o seminário não é um lugar adequado para a formação espiritual,
tampouco o é qualquer outro lugar no qual eu tenha convivido. Não achei
que fosse melhor na congregação, em casa, no centro de retiros ou na praia.
Ainda não tentei o mosteiro (eles não me deixariam levar minha esposa), mas
tenho bons amigos que tentaram, e eles me relatam condições semelhantes.
Não apenas isso, sempre deparo com homens e mulheres santos nos se-
minários, na forma de professores, alunos e funcionários. De forma algu-
ma, são mais frequentes nos seminários, mas tampouco menos frequentes,
com toda a certeza, do que em outros lugares em que eu tenha vivido ou
realizado meu trabalho. Se o seminário em si não é terra santa, também
não impede que de tempos em tempos algumas sarças ou arbustos incen-
deiem nem que se suscitem respostas santas. “Seminário Teológico de
Midiã” não seria uma designação genérica imprecisa para nossas escolas
de teologia.
A espiritualidade, ao que parece, não depende de lugares ou cursos. Passei
meus anos de formação profissional no açougue de meu pai, separando
lombos de porco e moendo carne para hambúrguer. Foi onde aprendi boa
parte da espiritualidade que venho desenvolvendo desde então. Foi
suplementada, naturalmente — desafiada, corrigida, redirecionada, desen-
volvida, desviada, abandonada e depois retomada outra vez. Mas isso, jun-
to com as orações e a presença de minha mãe, fornecem a matéria-prima
com a qual o Espírito Santo vem trabalhando desde então. Levei muito
tempo para reconhecer esse fato relativamente simples e óbvio. Mas, quan-
do o reconheci, parei de esperar que as pessoas ou as instituições forneces-
sem para mim o que já estava guardado no meu quintal.
E, a partir do momento desse reconhecimento, fui liberto de muita
murmuração e queixume no deserto.
Acontece o mesmo com todos nós. O seminário não fornece o material
da formação espiritual, mas uma circunstância em particular em que a
formação acontece por um período de tempo relativamente curto.
78 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Essa circunstância é caracterizada por palavras — palavras proferidas,


palavras escritas, palavras lidas. Os livros, recipientes de palavras, estão em
toda parte. As salas de aula, projetadas para que as palavras sejam escuta-
das, compreendem a arquitetura mais comum. Os computadores, uma
tecnologia para gravar e acessar palavras, são onipresentes. O seminário é
um mundo de palavras.
Reconhecer isso é essencial ao lidarmos com as questões da formação
espiritual no seminário. Pois a questão principal não é, como tantas vezes
se coloca, “O que podemos fazer para que o seminário seja um lugar melhor
para a formação espiritual?”, mas, sim, “Como podemos ingressar nas cir-
cunstâncias singulares que constituem o seminário e abraçar tais circuns-
tâncias de tal maneira que possamos crescer para chegar à maturidade de
Cristo Jesus?”.

O aspecto singular e inconfundível do mundo-palavra em particular em


que consiste o seminário está relacionado à “Palavra que se fez carne”, o
Logos que Jesus Cristo encarnou. Logos é Deus fazendo o mundo existir
por sua palavra, é Jesus crucificado e ressurreto para nossa salvação, o
Espírito Santo moldando uma vida santa em nós. Logos é a palavra profe-
rida pessoalmente por um Deus pessoal, de tal maneira que as pessoas lhe
possam corresponder e dela participar. A resposta pessoal é formada por
meio de uma vida de obediência e oração.
Como o Logos é absolutamente fundacional e crucial para aquilo que o
mundo é e para a forma em que ele funciona, a natureza e o significado da
história, e para tudo o que somos e fazemos, é extremamente importante
que seja bem compreendido. O seminário é uma escola projetada para nos
ensinar a desenvolver essa compreensão da forma correta — ler as Escri-
turas hebraicas e gregas de modo preciso e correto (exegese e hermenêu-
tica), desenvolver o hábito teológico de pensar e analisar (tendo Deus, e
não minha cultura ou meu ego, como tema de investigação) e desenvolver
uma percepção das maneiras em que a comunidade humana continuamente
se equivoca em relação ao Logos de Deus — quer intencionalmente quer
por desconhecimento —, às vezes ouve e entende e às vezes crê e obedece
O SEMINÁRIO COMO LUGAR DE FORMAÇÃO ESPIRITUAL 79

(história da igreja), dando a devida consideração às complexidades das situa-


ções pessoais, sociais e políticas em que esse Logos é falado (ética). E mais!
Mas é sempre o Logos, a Palavra de Deus, que determina o assunto a ser
estudado. Essa é a incumbência que repousa sobre o seminário: honras e
compreender, ensinar e examinar esse Logos. Não se trata de tarefa fácil, de
modo algum, e requer todo um corpo docente de especialistas em várias
áreas para que seja executada.

E agora vem a parte difícil. Pois, por mais que o seminário esteja cons-
tituído para honrar, preservar e explicar o Logos, as palavras que são em-
pregadas não são o Logos em si, mas logoi a respeito do Logos, palavras
humanas a respeito da Palavra divina. E, como há tantas dessas palavras,
tantos logoi, elas às vezes ameaçam eclipsar o próprio Logos. E não apenas
ameaçam, mas muitas vezes, sem dúvida alguma, o eclipsam. E, como es-
sas palavras sobre a Palavra não são geradoras de vida — não criam, não
salvam, não santificam —, da mesma maneira fundamental e original em
que a Palavra é, aqueles de nós que as proferem e ouvem ficam esmaga-
dos, sobrecarregados pelas mesmas palavras (e por aqueles que as profe-
rem e escrevem) que, pensavam, iam salvá-los.
Lança-se o clamor para que o seminário se torne mais intencional quanto
à espiritualidade e à formação espiritual. São feitas solicitações, às vezes
sob a forma de exigências, que a espiritualidade faça parte da grade curri-
cular com o mesmo grau de importância que a exegese hebraica e a teolo-
gia histórica. Por mais que as solicitações sejam feitas, quer de forma
estridente quer de forma branda, elas nunca parecem obter grandes resul-
tados. Uma disciplina acrescentada aqui e ali, uma omissão formada para
acompanhar e fazer relatórios depois de alguns meses, um questionário dis-
tribuído entre os alunos. Mas todas essas e outras tentativas de solucionar
o problema ou realizar uma reforma não deixam de levar em conta a natu-
reza de um seminário, as circunstâncias e os caminhos da espiritualidade.
Os sentimentos de traição e frustração são compreensíveis, mas não há
remédio. Ou ao menos não um remédio externo, imposto.
Antes, o remédio encontra-se inerente na natureza do próprio seminá-
rio, a saber, como lugar da Palavra e das palavras, do Logos e das logoi.
80 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Qualquer tentativa de fazer as coisas melhorarem que faça uso do


expediente de denegrir o intelecto ou desvalorizar o interesse pela Palavra
e pelas palavras é inaceitável. Mas como lidamos com a experiência co-
mum e desalentadora do distanciamento entre a Palavra de Deus e as nos-
sas palavras?

É um problema antigo que as mentes cristãs mais brilhantes tentaram


resolver em quase cada século da existência da igreja. Uma forma de lidar
com o problema que eu aprecio muito é a de Evágrio Pôntico, que às vezes
é chamado “Evágrio, o Solitário”. Evágrio teve a melhor formação teológi-
ca de seus dias, estudando com os melhores teólogos do quarto século,
Basílio de Cesareia e Gregório de Nazianzo, teólogos que eram também
santos. Mas os últimos dezesseis anos de sua vida ele passou no Egito, nu-
trindo uma vida de espiritualidade e oração com os pais do deserto. Mor-
reu em 399, com aproximadamente 53 anos de idade.
Foi durante os anos de “deserto” egípcio que ele escreveu sobre as ques-
tões relacionadas ao intelecto e à oração com a clareza e a sabedoria que
fazem dele ainda hoje um guia tão excelente para nós. Evágrio usou o ter-
mo logismos em referência ao pensamento ou tipo de pensamento que se
põe no caminho do Logos e o prejudica. Um logismos é um pensamento
que se torna independente do Logos e basicamente ganha vida própria, se-
guindo seu próprio curso, desenvolvendo-se isoladamente. Evágrio usa
palavras como “obnubilar” e “entorpecer” para explicar o que acontece com
nossa mente quando nos enchemos e nos ocupamos do logismos em vez de
nos acercar do Logos em oração e atitude de oração.
Evágrio, usando com grande precisão o intelecto bem instruído de que
era dotado, apresentou em cuidadosos detalhes as várias maneiras em que o
logismos — aquele pensamento que não leva em conta a Palavra de Deus,
não lhe é responsivo ou ainda lhe é indiferente — não importando seu con-
teúdo (e pode haver na verdade excelentes conteúdos), passa a ser um desvio
em relação a Deus ou mesmo uma forma de na realidade se opor a ele. O
alvo, o bem supremo da criatura humana, é que haja uma convergência
entre o conhecimento de Deus e a oração a Deus. O conhecimento de Deus
que não conduz à oração a Deus ou não se torna uma oração a Deus é, na
O SEMINÁRIO COMO LUGAR DE FORMAÇÃO ESPIRITUAL 81

análise de Evrágio, demoníaco — uma espiritualidade dissociada da obe-


diência a Deus.2
É uma distinção simples, que, com um pouco de prática, podemos apren-
der a fazer para nós mesmos. O seminário é um lugar tão bom quanto
qualquer outro para começar a fazer essas distinções. Aliás, talvez seja o
melhor lugar para começar a fazê-las, pois dificilmente há um momento
sequer num típico dia de seminário em que não haja ensejo para o exercício
desses discernimentos fundamentais.
Os franceses têm uma expressão maravilhosa, déformation professionale,
usada em referência aos males aos quais somos especialmente vulneráveis
enquanto nos empenhamos em nosso ramo de atividade. Os médicos cor-
rem risco constante de se tornarem insensíveis ao sofrimento; os advoga-
dos, o de descrerem da justiça; e os que pensamos, conversamos, lemos e
escrevemos sobre Deus, o de que as próprias palavras que usamos acerca
de Deus nos separem de Deus, a mais maldita de todas as deformações.
Paulo escreveu sobre levar “cativo todo pensamento, para torná-lo obe-
diente a Cristo” (2Co 10:5). Não há sequer o menor vestígio de anti-inte-
lectualismo nessa ordem. Não está banindo o pensamento. (Alguma vez já
testemunhamos exercício mais exuberante do intelecto do que em Paulo?)
Mas ele sabe que o pensamento, mesmo quando é sobre Deus (talvez até
mesmo especialmente quando é sobre Deus), logo se torna egoísta, orgu-
lhoso e (usando a designação ousada de Evágrio) demoníaco — se não for
trazido de forma vigorosa, regular e consagrada diante do Deus vivo, em
obediência e atitude de oração.
Em certo sentido, o seminário não pode fazer isso por si só.
Mas todos nós que consideramos os seminários parte importante do mi-
nistério da igreja podemos contribuir para a formação espiritual que se dá
dentro deles, praticando esses discernimentos e afixando essas advertências
nos momentos e nos lugares em que se faça necessário. Pode não parecer
importante, mas uma placa de trânsito bem clara colocada no lugar certo
evita muitos acidentes. E de vez em quando o aviso “Fique atento ao
logismos”, não seria também uma má ideia.

2
Conforme Philokalia. London: Faber and Faber, 1979, vol. 1. [V. tb., publicado no Brasil pela
Paulus, Pequena Filocalia — o livro clássico da Igreja oriental (Coleção “Oração dos Pobres”).]
1
Estudos bíblicos
capítulo 6

O tronco santo1

Na adolescência, uma das visões que enchiam minha mente com brilho,
cor e esplendor era a Revolução Francesa. Na realidade, eu sabia muito
pouco sobre ela. Algumas vagas impressões, episódios e nomes mistu-
ravam-se de modo fortuito em minha mente para produzir um drama de
puro romance, animação e triunfo. Acho que talvez eu teria usado a pala-
vra “santo” para sintetizá-la: algo espiritualmente flamejante, fantasioso e
esplêndido.
Eu tinha esse quadro na mente de homens e mulheres idealistas e dedi-
cados, em cujos lábios ressoava a declaração de Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, os quais marchavam por um mundo pecaminoso e corrupto
a purificá-lo com suas ideias e ações justas. Nomes como Marat, Robes-
pierre e Oanton soavam em meus ouvidos uma nota de justiça. Os perver-
sos calabouços da Bastilha eram sombras profundas contra as quais ardia
em pureza o fogo da libertação. O heroísmo e a vilania estavam em conflito
apocalíptico. A guilhotina era um instrumento do Juízo Final, separando
as ovelhas dos bodes. Assim, minha imaginação, sem se perturbar com os
fatos, punha em funcionamento uma maravilhosa fantasia da esplêndida
Revolução Francesa.
Quando cheguei à faculdade e folheei o catálogo de cursos, fiquei en-
cantado de encontrar na lista um curso sobre a Revolução Francesa. Tive
de esperar um ano para cursá-lo, já que os alunos de primeiro ano não eram
aceitos, mas isso só fez aumentar meu apetite. E assim, quando retornei

1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux, 32, n.o 3, set. de 1996.
86 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

para cursar meu segundo ano, a primeira coisa que fiz foi matricular-me
no curso.
A aula foi uma das maiores decepções de meus anos de faculdade.
Tinha chegado ao curso com o tipo de expectativa elevada que os adoles-
centes geralmente têm em relação aos empreendimentos da vida adulta,
mas não aconteceu nada do que eu esperava.
A professora era uma mulher idosa e franzina, com um cabelo grisalho,
ralinho e delicado. Ela usava roupas de seda preta, deselegantes, e falava
com monotonia e timidez. Era uma pessoa maravilhosa e muito simpática,
além de academicamente bem preparada em sua área, que era a da histó-
ria europeia. Mas, como professora da Revolução Francesa, era um desas-
tre. Sabia tudo sobre os franceses, mas nada sobre revolução.
Eu, de minha parte, não sabia praticamente nada sobre o assunto, e aque-
les poucos fatos que eu detinha estavam quase todos errados. O que eu
tinha, aliás, era uma vasta ignorância sobre o negócio inteiro. Mas de uma
coisa eu estava certo: tinha sido uma revolução. As revoluções viram coisas
às avessas e de ponta-cabeça. As revoluções são lutas titânicas entre vonta-
des antagônicas. As revoluções incitam o desejo de uma vida melhor de
liberdade, prometem uma vida melhor de liberdade. Às vezes, elas se saem
bem em suas promessas e libertam as pessoas. Geralmente, porém, não é
o que acontece. Mas depois de uma revolução nada fica do mesmo jeito.
Mas naquela sala de aula, dia após dia, ninguém jamais teria conheci-
mento disso. O malfadado Marat, a assassina Charlotte Corday, a escura
Bastilha, a sangrenta guilhotina, o corrupto e oportunista Danton, a irre-
fletida Maria Antonieta, o obstinado Luís XVI — todas as personagens e
todos os contrarregras daquela era colorida e violenta eram apresentados
com a mesma voz piedosa, cansada e impassível. Nas aulas dela, todos pa-
reciam iguais. Todos eram apresentados como espécimes meticulosamen-
te catalogados, como borboletas num quadro onde se depositara mais de
uma década de pó.
Muito tempo ainda depois daquilo, a Revolução Francesa me parecia
uma enorme chatice. Bastava alguém proferir as palavras “Revolução Fran-
cesa”, e eu bocejava.
O TRONCO SANTO 87

Alguns anos mais tarde, tornei-me um pastor e fiquei estarrecido ao iden-


tificar homens e mulheres bocejando em minha congregação. Matt Ericsson
ia todo domingo para dormir; ele sempre conseguia acompanhar o primei-
ro hino, mas dez minutos depois lá estava ele em profundo sono. Red Belton,
um adolescente rebelde, sentava no banco traseiro, longe da vista de seus
pais, e lia gibis. Karl Strotheim, um dos baixos do nosso coro, passava
bilhetes complementados por cochichos para Luther Olsen com dicas da
bolsa de valores. Uma mulher me enchia de esperança — trazia consigo
uma caderneta de estenografia todo domingo e taquigrafava tudo que eu
dizia. Ao menos uma pessoa estava prestando atenção. Depois fiquei sa-
bendo que ela estava se preparando para deixar o marido e usava a hora do
culto para praticar seus conhecimentos de taquigrafia. Assim ela poderia
conseguir um emprego com o qual pudesse se sustentar.
E eram, na maioria, pessoas boas, simpáticas. Conheciam a fé cristã,
sabiam as histórias cristãs, chegavam na hora marcada para o culto a cada
domingo. Mas bocejavam. Como é que podiam agir daquela maneira? Como
alguém podia cair no sono dez minutos depois de cantar A Cristo coroai?
Como alguém podia ficar interessado no Batman quando se estava lendo
Romanos de Paulo? Como alguém podia se contentar em praticar esteno-
grafia quando o Cristo ressurreto estava presente em Palavra e sacramen-
to? Ao que parece, eu tinha uma congregação inteira de santos e pecadores
que sabiam tudo sobre a vida cristã, exceto que era vida. Conheciam mui-
to bem a palavra “cristão”, e se identificavam como cristãos. Mas vida?
Eu sabia que tinha um trabalho delineado para mim. Quando fui orde-
nado e chamado para ser pastor deles, imaginei que minha tarefa era ensi-
nar e pregar a verdade das Escrituras de modo que pudessem conhecer Deus
e saber como ele efetua a salvação deles; imaginei que minha tarefa era
ajudá-los a tomar decisões morais de modo que pudessem viver felizes para
sempre, de consciência limpa. Imaginei que minha tarefa era orar com e
por eles, reunindo-os na presença de um Deus santo que criara o céu e a
terra e enviara Jesus para morrer por seus pecados. Agora eu percebia
que havia mais em jogo do que um aprendizado preciso, mais em jogo
do que um comportamento moral, mais em jogo do que levá-los a se
88 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

ajoelhar numa manhã de domingo. A vida estava em jogo. As pessoas po-


dem pensar corretamente, comportar-se bem e adorar solenemente, e
ainda assim viver mal — viver anemicamente, levar vida insignificante, in-
sípida, entediada.
Foi quando comecei a me interessar de verdade pela palavra “santo”, o
que Gerard Manley Hopkins disse ser o “mais encarecido frescor presente
no âmago das coisas”.2 Comecei a procurar sinais do santo, evidências do
santo — vidas santas, lugares santos, Espírito Santo.
Logo percebi que não havia formas satisfatórias de definir o santo; o
dicionário não ajudava muito, as etimologias não me levavam muito longe,
os estudos vocabulares me deixavam claustrofóbico. E, à medida que con-
tinuei examinando as Escrituras Sagradas e o rosto e a vida de homens e
mulheres santos, descobri que não havia nenhum comportamento-padrão
ditado pela palavra. Não há manuais de instrução escritos sobre o santo.
Mas, embora meus vocabulários e minhas concordâncias não me levas-
sem para muito longe, com certeza me vi muitas vezes surpreendido pelo
santo: a vida de Deus extravasando de recipientes improváveis — histórias
simples e despretensiosas nas Escrituras inesperadamente iluminadas por
trás pela “Alva”, a beleza de Deus brilhando de rostos simples e me pegan-
do desprevenido; a bondade de Deus jorrando de circunstâncias que eu
concluíra fossem ressecadas e estéreis.
Uma das histórias mais fundamentais em nossa cultura ocidental é a
busca pelo Santo Graal — o cálice do qual Jesus, em sua última refeição
com seus discípulos, bebeu juntamente com eles o vinho que se tornou sua
promessa e ordenança, sua vida neles. É o santo cálice de onde bebemos a
santa vida, a vida que Jesus propôs diante de nós quando disse: “... eu vim
para que tenham vida, e a tenham plenamente” (Jo 10:10). Plenamente:
perisson. O advérbio, o que não é de surpreender, passou a ser um dos fa-
voritos de Paulo (em várias formas, ao menos dezoito ocorrências). Há
inúmeras variações da busca pelo santo: cálice santo, lugares santos, homens
e mulheres santos e, o que talvez mais maravilhe, as santas Escrituras.

2
“God’s Grandeur.” In: W. H. GARDNER, org. Poems and Prose of Gerard Manley Hopkins.
Baltimore: Penguin Books, 1953, p. 27.
O TRONCO SANTO 89

Muitas das histórias de busca estão agora completamente secularizadas, mas


a busca por algo que ultrapasse músculos e dinheiro continua a reaparecer
em roupagens improváveis. A busca pelo santo está arraigada em nós —
um dia, os pesquisadores biológicos talvez venham a descobrir em nós um
cromossomo de busca em nossa estrutura genética. Estamos atrás de algo
— mais vida do que a que obtemos simplesmente por comer três refeições
por dia e nos exercitar. Estamos atrás de uma vida originada em Deus e
formada por Deus: uma vida santa.
Para os cristãos, a fonte de incontestável autoridade para o santo é a
Escritura Sagrada, e no centro da Escritura Sagrada encontramos Isaías em
adoração no templo, sentindo os alicerces se abalarem e ouvindo os anjos
cantarem:

Santo, santo, santo


é o SENHOR dos Exércitos,
a terra inteira está cheia da sua glória.
Isaías 6:3

Para vermos e ouvirmos o santo, santo, santo de Isaías em todo o seu


esplendor, precisamos de um contexto adequado. O capítulo 6 de Isaías é
uma representação intensa e concentrada do santo — precisamos de um
cenário grande o suficiente para acolhê-lo, um enorme cenário, como fica
evidente. Quero construir um cenário com Moisés, de um lado, e João, do
outro, tendo Isaías no centro. Sem esse amplo horizonte desdobrado de
Moisés a João, Isaías não pode ser plenamente valorizado.
Moisés foi surpreendido pelo santo em Midiã. Midiã era uma região
austera, e Moisés era um exilado lá. Midiã não era um lugar atraente, e
Moisés não estava realizando uma obra atraente. Uma região árdua, uma
obra árdua, uma vida árdua.
Moisés tinha sido criado no luxo de uma das culturas mais elevadas do
mundo, sendo também uma das civilizações mais desenvolvidas. Moisés
estava acostumado ao poder político, às conversas de contornos intelectuais
e ao esplendor arquitetônico. E agora Moisés estava em Midiã — sem li-
vros, sem templos, sem servos, sem influência.
90 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

É nesse momento que, sem aviso, ele se viu imerso no Santo: o santo
anjo de Deus flamejando de uma sarça em chamas. Moisés é chamado pelo
nome: “Moisés, Moisés!”. Moisés responde: “Eis-me aqui”. Moisés é cha-
mado a adorar: “Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é
terra santa” (Êx 3:5). Moisés é chamado por Deus e recebe uma obra para
realizar (Êx 3:1-12).
Anjo santo, terra santa, Deus santo, palavra santa que forma um povo
santo e delineia uma história santa. E tudo isso, dentre todos os lugares
possíveis, justamente em Midiã.
João foi surpreendido pelo santo na ilha prisional de Patmos, um lugar
tão estéril e inóspito quanto Midiã. E João, assim como Moisés em Midiã,
estava lá em exílio. Naquele lugar de rejeição e severidade, ele recebeu uma
visão santa. Em lugar da sarça em chamas de Moisés, João recebeu a Jesus
flamejante com o santo e proferindo as palavras que o Espírito Santo usou
para formar um povo santo, fiel e persistente em tempos ímpios.
A palavra “santo” (hagios), seja como substantivo, seja como adjetivo,
ocorre 26 vezes no Apocalipse de João. Podemos extrair várias coisas des-
se último livro de nossas Escrituras, mas sabemos com toda a certeza que
estamos diante de algo enorme, de grande força e vigor, germinando bên-
ção, salvação e a glória de Deus: santo, santo, santo.
Agora temos um contexto apropriado para a visão de Isaías: Moisés em
Midiã, de um lado, e João em Patmos, de outro, com Isaías no centro, na
igreja — no santuário. Precisamos de toda a Escritura, de toda a história,
de toda a experiência, para termos um horizonte grande o suficiente para
acolher o santo. O santo não pode ser pressionado e enfiado numa caixa
de sapato. O santo não pode ser percebido por meio de um vigia.
Uma vez, no verão, Jan e eu estávamos numa trilha nas montanhas Ro-
chosas de Montana. Era um dia frio, úmido e sombrio — um dia não mui-
to bom para trilhas nas montanhas. Mas fazia semanas que estava chuvoso,
úmido e frio, e queríamos respirar, ainda que fosse ar frio e úmido. Já vínha-
mos por algumas horas nos arrastando pela trilha em meio a pés frondo-
sos de abeto Engleman e de pseudotsugas, quando de repente demos num
declive que tinha sido queimado num imenso incêndio florestal ocorrido
O TRONCO SANTO 91

havia mais de cinquenta anos, quando eu tinha 10 anos de idade. Em todos


aqueles anos, jamais voltou a crescer. Aquela repentina abertura nos pos-
sibilitou uma imensa vista panorâmica: de um lado, picos cobertos de gelo
que se agigantavam sobre nós; do outro, um vale como um grande chão
atapetado de cereais dourados e serpenteado pelo azul de rios. Depois, lo-
calizamos um revoar minúsculo, mas suficientemente brilhante de um
pássaro, num tronco morto a uns 25 metros de distância. Olhamos pelo
binóculo, mas não conseguimos identificar. Então, enquanto olhávamos,
ele voou — um beija-flor! Mas de um tipo que nunca havíamos encontrado
antes, um beija-flor castanho-avermelhado. A minúscula explosão de la-
ranja brilhante e meio cobre naquela trilha encharcada da chuva era mais
impressionante que um crepúsculo matutino. O pássaro minúsculo, emol-
durado pelas montanhas e pelo vale, servia de centro ao cenário majesto-
so. Mas o pássaro raro e delicado precisava de uma moldura tão grande
quanto aquela para que pudéssemos apreciar satisfatoriamente suas cores
e seus adejos. Qualquer coisa menos que isso teria restringido a imaginação.
Isaías 6 é um beija-flor castanho-avermelhado naquele grande deserto
aberto, emoldurado por Moisés em Midiã e por João em Patmos.

Isaías é uma presença grandiosa na vida dos que vivemos por fé, que
nos submetemos e nos deixamos moldar pela Palavra de Deus, mantendo-
nos atentos ao santo. Sabemos muito pouco sobre Isaías. É sempre espan-
toso, não é mesmo, que sejamos tão influenciados por alguém que mal
conhecemos? Mas, uma vez que a vida esteja saturada do Santo, do Deus
Vivo, não precisa muita coisa. O que mais sabemos sobre ele é que era um
grande pregador e que foi atraído e formado pela santidade de Deus, o Santo.
“O Santo de Israel” é o título que Isaías emprega de modo especial em re-
lação a Deus.3
Seu próprio nome era um sermão. Isaías: “Javé é salvação”. Você não
adoraria ter um nome assim?
— Qual é seu nome?

3
J. A. MOTYER, The Prophecy of Isaiah. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1993, p. 77.
92 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

— Javé é salvação.
Toda vez que você fosse se apresentar a alguém, o evangelho seria pre-
gado. Por todos os seus anos letivos, toda vez que o professor o chamasse
na sala de aula, o evangelho seria proclamado. Toda vez que alguém o cum-
primentasse na rua, a palavra de Deus seria anunciada. Os ateus nem po-
deriam chamá-lo sem pregarem um minissermão. Em que nossos pais
estavam pensando quando escolheram nossos nomes? Eugene... Beatriz...
Walter... Hélio... Caroline... Onde está o evangelho em nomes como es-
ses? Por que não nos deram nomes que fossem passagens de pregação?
Ao escolher o nome de seus filhos, Isaías deu continuidade à tradição
de dar nomes que eram “textos de sermão”. Ele teve três filhos, e o nome
de cada um deles funcionava também como texto de sermão. Quando ele
ia entregar um sermão, em vez de levar consigo uma Bíblia, pegava um dos
meninos pela mão, esses meninos cujos nomes eram textos de sermão: Sear-
Jasube, Emanuel e Maher-Shalal-Hash-Baz.
Havia variedade suficiente nos nomes-texto de Isaías para se adequar
às ocasiões que exigiam a pregação de um sermão. Quando ele saía com a
tarefa de pregar, em vez de arrastar com dificuldade um rolo da Torá, sim-
plesmente pegava um de seus filhos pela mão e o levava consigo.
Uma das tarefas mais importantes que Isaías recebeu e da qual temos
conhecimento com alguns detalhes foi pregar para o rei Acaz. Acaz era um
rei especialmente obtuso e incrédulo que insistia em lidar com os assírios
poderosos e altamente ostensivos em vez de lidar com Deus. Isaías nunca
conseguiu que ele desse ouvidos a sua mensagem. (Mas é interessante que
os sermões para os quais Acaz fez ouvidos moucos penetraram milhões de
pessoas ao longo dos séculos seguintes.) Todos os três filhos tiveram sua
aparição diante de Acaz como textos de sermão.
Sear-Jasube — não fique agitado; tenha esperança. Tudo vai sair bem.
Não é você que está no controle aqui, é Deus quem está; e ele garantirá
que sempre haja alguns poucos fiéis para experimentar sua graça e cum-
prir seus mandamentos. Viva de modo confiante.
Emanuel — não se deixe intimidar pelas circunstâncias; confie. Deus
está bem aqui conosco. Quando tudo está desmoronando ao redor, Deus não
O TRONCO SANTO 93

está desmoronando. Deus, e não seu padrão de vida, é a realidade que de-
termina sua vida. Viva corajosamente. 4
Maher-Shalal-Hash-Baz — não seja convencido, supondo que possa
controlar o mundo com seu grande talento; arrependa-se. O mundo como
você o construiu vai ruir. Viva humildemente.
O segundo nome, Emanuel, ganhou vida própria (8:8 e 10) e ecoou atra-
vés dos séculos até encontrar sua exposição definitiva e completa em Jesus
(Mt 1:23). O texto de sermão de uma só palavra de Isaías continua a ofe-
recer introspecções e dar testemunho da santa presença de Deus em cir-
cunstâncias improváveis e, ao que tudo indica, ímpias.

Mas a história de Isaías não começa com sua pregação, e sim com sua
oração — e com o Santo. O contexto da história é apresentado em Isaías 6
com a seguinte introdução: “No ano em que o rei Uzias morreu...”.
Esse simples segmento de frase põe a experiência que Isaías tem do santo
num cenário semelhante ao de Moisés e João, o que significa dizer uma
época desfavorável, improvável, um tempo longe de se harmonizar com o
nosso ideal de vida abundante — Jerusalém sob o reinado de Uzias.
Uzias foi rei por 52 anos em Jerusalém (2Cr 26). Foi um bom rei se-
gundo todas as informações — subjugou os filisteus, criou um forte siste-
ma de defesa, desenvolveu o país e aprendeu com seu pastor, Zacarias, o
temor do Senhor: “Ele foi tremendamente ajudado, e assim tornou-se muito
poderoso e a sua fama espalhou-se para longe” (2Cr 26:15).
Foi então que fez algo terrível: profanou o santo templo. Arrogantemente,
entrou no templo e assumiu seu controle em benefício próprio. Decidiu
tomar conta de sua própria espiritualidade, administrar sua própria reli-
gião, fazer Deus atender a seus caprichos. Foi para o santo altar de incen-
so, tirou o sacerdote de seu caminho e continuou a tocar as coisas segundo

4
Não há consenso de que Emanuel fosse um dos filhos de Isaías. Elmer Dyck, numa exegese
cuidadosa, sustenta que Emanuel e Maher-Shalal-Hash-Baz são o mesmo filho. Mas ainda
considera que há dois filhos com nomes-“texto”. Calvino, representando a maioria, interpreta
o nome como uma referência direta e exclusiva a Jesus. V., de Elmer Dyck, org., The Act of
Bible Reading. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1996, p. 45-64.
94 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

suas próprias preferências e desejos. Os sacerdotes o advertiram; ele per-


deu a compostura, mandou que se retirassem e ofereceu o santo incenso
no altar santo do templo santo. Era rei, afinal de contas, e lidaria com Deus
como e quando quisesse.
Mas o que na mente de Uzias era prerrogativa real era na realidade sa-
crilégio indesculpável. Seria como se um de nós entrasse em nossa igreja
com uma lata de spray preto e pichasse o púlpito e a mesa da ceia, o batis-
tério e a cruz: “Sob nova direção. De agora em diante, eu é que mando por
aqui!”.
Uzias, com um histórico de muitos anos honrosos de serviço ao povo
de Deus, mas agora orgulhoso, zangado e voluntarioso, assumiu o controle
do santo templo para usá-lo como bem entendia. Vandalismo régio. Vio-
lenta profanação.
Imediatamente, a profanação saiu pela culatra, e Uzias ficou leproso. Seu
rosto irrompeu em lepra. A doença aterradora que na mente hebreia pas-
sara a simbolizar o pecado deu visibilidade pública à profanação interior.
Uzias passou o resto de sua vida no isolamento, banido por sua lepra,
não somente do santo templo, mas de todo contato com a comunidade do
povo santo. Era ainda rei, mas não mais em contato, nem com o templo,
nem com o povo. O rei de Judá é um leproso. O governo de Judá estava
nas mãos de um homem que profanara o santo templo de Deus. Toda a
sociedade e cultura de Judá viviam sob a sombra da impiedade, da profa-
nação — com a atmosfera social, política, cultural e religiosa conspurcada
pela lepra do rei. Judá, sob o comando de Uzias, era tão estéril quanto Midiã,
tão austera quanto Patmos, pois era governada por um rei leproso.
Apesar de Uzias, porém, Isaías estava no templo orando, o mesmo templo
em que Uzias tinha se tornado um rei leproso. Isaías estava lá, em adora-
ção, porque sabia que o templo não era definido por Uzias; os tempos não
eram definidos por Uzias; a cultura não recebia sua marca de Uzias. Não
para Isaías, de qualquer forma, pois, no ano em que o rei Uzias morreu,
Isaías estava orando no templo.
Os tempos em que vivemos não definem nossa vida. A tecnologia não
define nossa existência. O pós-moderno não determina como vivemos. O
O TRONCO SANTO 95

psicologismo não explica quem somos. O secularismo é uma tentativa pro-


visória e desalinhada de dar sentido a nós e ao mundo ao redor.
Em tempos de impiedade, num lugar ímpio, Isaías foi imerso no santo.
Recebeu uma visão santa, o Senhor reinando em santidade, os cânticos dos
santos serafins enchendo o ar com sons santos: “Santo, santo, santo é o
SENHOR dos Exércitos, a terra inteira está cheia da sua glória”.
Não somente o templo profanado estava a ponto de estourar de santi-
dade, mas a terra profanada estava cheia de glória. Essa é a realidade em
que vivemos: santo, santo, santo; glória, glória, glória. Não importa o que
Uzias faça à igreja, não importa o que os assírios façam ao mundo, há san-
tidade na igreja e glória na terra. Santidade no deserto de Midiã; santidade
na penitenciária de Patmos, santidade no templo contaminado pela lepra.
E, nunca esqueça disso, santidade em todas as igrejas corrompidas de nos-
so país e do mundo; santidade em cada cidade, Estado e província moral e
fisicamente poluída de nosso país ou de outra parte do mundo. Santidade,
porque Deus ainda está presente com salvação e criação. Precisamos rom-
per o hábito ignorante e infiel de deixar que os jornalistas do nosso tempo
nos informem o que está acontecendo. Ao menos precisamos dispensar a
mesma atenção a Isaías: santo, santo, santo.

Neste momento, entretanto, preciso fazer uma advertência: não dê


um passo sequer para não correr o risco de perder a vida. O solo santo é
solo perigoso.
Há mais ou menos um mês, um urso-cinzento atacou um homem que
estava numa trilha não longe de onde passamos o verão em Montana e o
feriu gravemente. Esse homem tinha ouvido falar da maravilha e da beleza
das montanhas de Montana e atravessou o país de carro desde a Carolina
do Norte para ter ele mesmo a experiência. Sendo entrevistado em seu leito,
no hospital, ele disse: “Nunca mais volto a esse lugar!”. Ele não sabia que
maravilha e beleza também podem ser perigosas.
Uma semana depois daquele ataque de urso, estávamos na mesma trilha,
eu e Jan, junto com nosso filho e a mulher dele, mais outra amiga com
seu filho de 2 anos. No começo da trilha, foi colocado um sinal: “Perigo:
96 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

ursos-cinzentos nesta trilha. Não nos responsabilizamos por danos físicos”.


Nenhum dos outros tinha conhecimento do ataque da semana anterior, e
eu não disse nada. Mas devo admitir que o aviso me fez experimentar uma
alta repentina da adrenalina: o perigo a que a vida se expõe aprofunda o
senso da vida. A beleza e a maravilha em que estávamos imersos, o amor e
a afeição que tínhamos uns pelos outros, não eram nossa segurança. Algu-
mas horas mais tarde, chegamos ao nosso destino, um lago alimentado por
geleiras. Ficamos à margem do lago admirando as cinco quedas que saíam
da encosta da montanha, escutamos e observamos alguns tordos canta-
rem e comerem insetos. Solo santo. E então notei um movimento a uns
noventa metros mais ou menos, às margens do lago. Procurei e mirei com
meu binóculo: um urso-cinzento com seu filhote, brincando e refeste-
lando-se na água. Percorri o entorno com o binóculo; todos tivemos a opor-
tunidade de olhar bem. E então Amy, nossa nora, com cinco meses de
gestação e, portanto, especialmente consciente da fragilidade e do alto valor
da vida, disse: “Quero sair daqui”. E foi o que fizemos. Solo santo, mas solo
perigoso.
A santidade é a qualidade mais atraente, a experiência mais intensa que
podemos ter na vida — uma vida autêntica, recebida da fonte original, não
uma vida observada e desfrutada de longe. Vemo-nos participantes das
operações do próprio Deus, não conversando sobre elas, nem lendo sobre
elas. Mas, no exato momento em que nos encontramos inseridos em algo
muito maior que nós, percebemos que é muito possível que cheguemos a
nos perder. Não podemos domesticar o santo. Moisés não tirou uma fo-
tografia da sarça em chamas para levar para casa e mostrar à mulher e aos
filhos. Os serafins cantores de Isaías não estavam acompanhados de um
oratório de Handel, cujo CD depois ele comprou para escutar e apreciar
mais tarde. João não reduziu sua visão de Jesus em gráficos para usá-los
com o propósito de entreter consumidores religiosos com visões sensacio-
nalistas do futuro.
A santidade é uma fornalha que transforma os homens e as mulheres
que se aproximam muito. Santo, santo, santo não é tapeçaria cristã — é a
bandeira de uma revolução, a revolução.
O TRONCO SANTO 97

Foi assim que aconteceu com Isaías; preste bem atenção, pois é como
também acontece conosco.
Em primeiro lugar, existe um senso esmagador de precariedade, de pe-
cado, de falta de merecimento: “... Ai de mim! Estou perdido! Pois sou um
homem de lábios impuros e vivo no meio de um povo de lábios impuros”
(Is 6:5). Se conseguimos nos isolar do Santo e viver em harmonia com o
nosso entorno, fica fácil supor que nossa vida vá muito bem, obrigado. Mas
medir nossa vida pelos padrões estabelecidos por nossos cães, gatos e vi-
zinhos é lamentável. Preciso do Santo para perceber minha impiedade. Esse
excesso de vida me leva a perceber meu déficit de vida. Estamos perdidos
desde que saímos do Éden, vagueando pelo mundo, procurando nosso lar
e, enquanto essa busca se desenrola, sujando-nos muito.
Em segundo lugar, há misericórdia e perdão. Há purificação. Nossos
lábios são tocados com fogo purificador (6:6-7). É nossa necessidade bási-
ca, fundamental, mais premente. Sem o Santo, achamos que podemos
melhorar nossa vida simplesmente avançando — obtendo um pouco disso
e depois daquilo. Mas, como uma flecha lançada sob péssima pontaria,
quanto mais longe seguimos, mais erramos o alvo. Essa orientação na di-
reção errada não é um lapso fortuito; denunciamo-nos toda vez que fala-
mos. O pecado e a impureza se manifestam assim que abrimos a boca,
sempre que abrimos a boca, mesmo em nossas conversas mais polidas e
decorosas. Mas o primeiro interesse de Deus em nós é para consertar exa-
tamente isso: o anjo, a testemunha flamejante da santidade de Deus, quei-
ma as impurezas, o pecado em nossos lábios. O interesse primordial de Deus
em nós não é para nos condenar, mas para nos perdoar. “Pois Deus enviou
o seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, mas para que este fos-
se salvo por meio dele” (Jo 3:17). Aceitação, não rejeição. A santidade não
mais fora de nós, mas dentro de nós. Se não permanecemos perto do San-
to tempo o bastante para primeiro perceber e depois experimentar aquela
brasa viva em nossos lábios, passaremos a vida em trágica ignorância a
respeito de Deus e de seus caminhos.
Em terceiro lugar, a palavra de Deus é proferida: “Quem enviarei?” (6:8).
Deus fala em contornos vocacionais; há uma obra a realizar. Santidade
98 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

sempre envolve essa palavra de Deus: Deus falou a Moisés na sarça em


chamas; Deus falou a João na visão de Patmos; Deus falou a Isaías no tem-
plo de Jerusalém. A ebulição, o transbordar da vida presente na santidade
não é algo para ser açambarcado, mas algo para ser entregue, espalhado ao
redor, comunicado e posto em funcionamento. A santidade nunca pode ser
limitada a uma experiência emocional, devocional, que cultivamos a fim
de “nos sentirmos espirituais”. Ela traz em si um conteúdo de comando. A
santidade não é uma experiência de sublimação que nos abstrai do mundo
do trabalho; é um convite para entrarmos naquilo que Deus está fazendo e
pretende que se realize no mundo. E é para todos, pois esse não é um texto
voltado para uma elite ou uma aristocracia ministerial.
Em quarto lugar, a palavra de Deus obtém resposta: “Eis-me aqui. En-
via-me!” (6:8). Aceitamos o convite de Deus, preparando-nos para obede-
cer a tudo que ele ordene. Arregaçamos as mangas e nos aprontamos para
o trabalho. Mas não é um trabalho imposto; o chamado de Deus é proferi-
do em forma de pergunta, convidando a uma resposta; e temos a liberdade
de dizer “sim” ou “não”. Por mais que essa palavra seja impulsionadora para
alguns de nós, nunca é coerciva. Somos convidados a ingressar.
O encontro de Isaías, sua participação na santidade que procede de Deus,
transborda e toca nossa vida, fornecendo uma história confiável e acessí-
vel contra a qual podemos testar a autenticidade de nossa história. Os qua-
tro elementos, embora em variadas sequências e proporções, parecem
normativos: em primeiro lugar, a abolição da autossuficiência (“Ai de mim!
Estou perdido!”); em segundo, a experiência do perdão misericordioso (a
brasa viva: “a sua culpa será removida...”); em terceiro, o convite de Deus
a um trabalho de servo (“Quem enviarei?”) e, em quarto, a resposta huma-
na de se fazer presente diante de Deus em fé e obediência (“Eis-me aqui.
Envia-me!”). Não posso lembrar-me de nenhuma exceção nas Escrituras
ou na igreja na qual esses elementos não estejam presentes, seja explícita,
seja implicitamente.
Mas — observe isto com atenção, uma vez que é muitas vezes ne-
gligenciado — não se pode esperar que os quatro elementos tenham muito
valor se retirados de seu contexto. Não podemos entregar nenhum desses
O TRONCO SANTO 99

elementos a um dos técnicos espirituais que estejam em voga em nos-


sos dias e esperar que ele, ou ela, o administre a nós. O contexto é o Deus
vivo: santo, santo, santo no templo; e glória, glória, glória em toda a ter-
ra. Nada em Deus nem em nossas relações com Deus pode ser seculariza-
do para atender a nossas expectativas, personalizado para as nossas
condições, administrado para nossa comodidade. Adquirimos prontidão e
percepção em relação ao santo adorando a Deus, o Santo, e praticando a
postura e os fundamentos da adoração onde quer que estejamos: na igreja
ou no mundo, em Midiã, Patmos ou Jerusalém, assentados num banco de
igreja ou no volante, lendo um livro ou observando uma nuvem, escreven-
do uma carta ou selecionando uma flor do campo. Onde quer que esteja-
mos, o que quer que estejamos fazendo, existe mais, e o mais é Deus,
revelando-se em Jesus pelo Espírito, o Santo Espírito. Esse mais não tem
nenhuma relação com operações plásticas. A santidade é transformadora,
embora raramente repentina. E o mais nem sempre é óbvio; aliás, na maio-
ria das vezes, difícil de perceber. A revolução do Santo começa nas vidas,
nos lugares e nos momentos desconsiderados e desprezados pela ambição
e pelo orgulho.
Mas a questão é esta: o menor traço de santidade tem o poder de desen-
cadear em qualquer um de nós essa reação em cadeia de um viver santo.
Embora perigoso, pois certamente perderemos nossa vida do jeito que
imaginamos que seria (“... nosso ‘Deus é fogo consumidor!’, Hb 12:29), o
Santo nos impulsiona, em geral somente nas extremidades distantes de
nossa consciência, em cada fibra de nosso ser criado por Deus. Deus, o
Deus vivo, é aquilo de que nós homens e mulheres mais profundamente
temos fome e sede, e o Santo, passando (ou explodindo!) pelos comparti-
mentos em que habitualmente confinamos e depois etiquetamos a vida, abre
nosso apetite.

Esse contexto e esses quatro elementos são normativos, algo a que to-
dos precisamos acolher e ficar atentos. Mas há mais uma coisa na ex-
periência de Isaías que não é necessariamente normativa, mas acontece com
tamanha frequência, que precisa ser mencionada.
100 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Quando Isaías é propelido para um viver santo e se acha engajado num


trabalho santo, ao mesmo tempo é informado de que não terá grandes re-
sultados. Será um pregador, mas um pregador que chama a atenção so-
mente pelo fracasso. Pregará com incrível poder e eloquência, e as pessoas
dormirão no meio de seus sermões. Como se verá, terá acesso direto ao
rei Acaz, penetrará os meandros das operações políticas, e seu conselho
sábio e religioso será desprezado. O resultado final de uma vida inteira de
pregação ordenada por Deus e abençoada por Deus é que o país será des-
truído — “totalmente devastados” (6:11). Os assírios atacarão e devasta-
rão o local. Parecerá uma floresta que foi dilapidada por lenhadores vorazes
— feia, desfigurada, estéril —, com todas as árvores abatidas e levadas
embora, não sobrando nada senão troncos, um país todo de troncos. Este foi
o sermão que Deus entregou a ele no dia de sua ordenação: “Isto é o que
acontecerá, Isaías, depois de uma vida inteira a meu serviço. Este é o resulta-
do de sua imersão em santidade, sua confissão sincera e fala purificada, sua
vocação nas santas ordens. Troncos. Uma nação de troncos” (cf. 6:9-13).
O embrião da história encontra-se nos capítulos 7 a 9 de Isaías, os quais
precisam ser estudados muito mais do que são, especialmente por cristãos
que estão intoxicados por histórias de sucesso e deslumbrados pela con-
versa fiada e pela escamoteação dita evangélica. George Adam Smith, aquele
pregador e acadêmico incomparável do texto de Isaías, insiste em afirmar
que devemos aceitar a realidade como Isaías a escreve. Comentando sobre
a aparência de Emanuel, o segundo dos filhos de Isaías cujos nomes são
textos de pregação, Smith escreve: “Nasce o Filho, que é a esperança de
Israel; recebe o nome divino, e nele se encontram todos os traços da salva-
ção ou da glória. Ele cresce não para um trono, nem para a majestade re-
tratada no salmo 72 — os presentes de Sebá e os reis de Sabá, o milho de
sua terra florescendo como o fruto do Líbano, ao mesmo tempo que os da
cidade prosperam como a relva da terra —, mas para o degrau mais baixo
da privação, para a visão de seu país devastado por seus inimigos e trans-
formado numa vasta massa, adequada somente para pastagem, para a so-
lidão e para o sofrimento. Em meio à desolação geral, sua figura se
desvanece, desaparecendo de nossa vista, e somente seu nome permanece
O TRONCO SANTO 101

a assombrar, com sua melancolia infinita do que poderia ter ocorrido, as


vinhas sufocadas por espinhos e as cortes cheias de grama em Judá.5
E então encontramos esta frase final e pungente: “... a santa semente
será o seu tronco” (6:13).
É mesmo? A palavra “santo” mais uma vez, mas desta vez aplicada a um
substantivo totalmente pouco apropriado. Não os hinos santos dos anjos
enchendo o templo com música magistral, transformando o mundo de Isaías
e transformando o próprio Isaías em seu mundo. Não a santidade que fla-
meja de uma sarça no deserto, ou que explode numa visão diante de um
prisioneiro em árduo exílio. Não a santidade que fica evidente nas palavras
e nos atos de Jesus, os quais revelam a vida abrangente, cheia de energia e
graça da Trindade em direção a nós.
Nada disso agora. Em vez disso, um tronco acachapado. Um tronco num
campo de troncos. Mas o tronco traz em si mais do que qualquer pessoa
possa supor: “... a santa semente será o seu tronco”. O tronco, por mais
improvável que pareça e contra tudo o que representa, é a semente santa
de onde a salvação crescerá. Cinco capítulos depois, chegamos a esse tron-
co mais uma vez, mas agora com certo refinamento:

Um ramo surgirá do tronco de Jessé,


e das suas raízes brotará um renovo.
O Espírito do SENHOR
repousará sobre ele,
o Espírito que dá sabedoria e entendimento,
o Espírito que traz conselho e poder,
o Espírito que dá conhecimento
e temor do SENHOR.
Isaías 11:1-2

Todos nós sabemos como isso depois se cumpriu: para encurtar a histó-
ria, Jesus. E assim cantamos com alegria e gratidão os louvores de nosso
Senhor santo. Por mais que cantemos esses louvores alto e bom som, cheios

5
George Adam SMITH. The Book of Isaiah. London: Hodder and Stoughton, 1889, vol. 1, p. 117.
102 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

de júbilo, jamais será o suficiente, mas ao fazê-lo não podemos perder o


contato com aquele tronco. Pois com muita frequência aquele tronco, e
nada mais que aquele tronco, caracterizará e dominará nossa vida. Não para
todos nós, com certeza, mas para muitos. Foi o que aconteceu a Isaías.
Nunca, nunca se esqueça daquele tronco santo.
O mundo, a carne e o Diabo estão todos trabalhando em tempo integral
para encher nossa mente e emoções com imagens e desejos de uma vida
“melhor”, uma vida abundante que em nada se relaciona com Deus e por-
tanto desconsidera o Santo. Eles não somente controlam os meios de co-
municação que propagam suas mentiras e lhes conferem todo o encanto,
mas também se infiltraram em grandes partes da igreja, interpretando a
vida cristã para nós de tal forma que somos treinados a evitar ou a despre-
zar tudo o que não nos prometa gratificação. Quero fazer frente a essas
mentiras fascinantes junto com Isaías e seu tronco santo. Parece uma con-
tradição? Santo... tronco? Mas tudo nas Escrituras e no evangelho nos diz
que isso é a verdade, a realidade de Jesus e de nossa vida em Jesus e com
ele. Santo. Vida que brota da morte. Beleza que começa na feiura. Uma
santa revolução.
A mais ou menos 16 quilômetros ao norte da pequena cidade em que
fui criado, no Estado de Montana, há uma cidade menor que, antigamente,
era conhecida pelo apelido de Cidade Tronco. A paisagem na cidade era
extraordinária, protegida sob os musculosos ombros das grandes mon-
tanhas Rochosas. Mas teve a desventura de ter sido escolhida como impor-
tante pátio de manobras ferroviárias por Jim Hill, que estava construindo
a Grande ferrovia do Norte, que atravessaria todo o continente. Jim Hill
era tão voraz e brutal como qualquer dos assírios de Isaías — destruía os
campos, subornava o governo, explorava os fracos e intimidava os fortes
para levar avante sua ferrovia. Os leitos ferroviários exigem enormes quan-
tidades de dormentes, e, assim, cada árvore desse pequeno povoado preci-
sou ser cortada para fazer os tais dormentes, deixando os troncos à mostra.
Essa vila não serviu para mais nada, no final, senão para construir o gran-
dioso império ferroviário. Quando eu era menino, era ainda um lugar feio,
uma cidade reduzida e um aglomerado de cortiços para vagabundos e va-
O TRONCO SANTO 103

dios de ferrovia — e troncos. Eu e meus amigos nos referíamos a ela com


certo ar de superioridade, e às vezes com desdém: Cidade Tronco.
Vinte anos atrás, meu irmão foi pastorear uma igreja lá; e depois, qua-
tro anos atrás, meu filho se mudou para lá. Entre meu irmão e meu filho,
comecei a ouvir as histórias narradas e a ver o desdobramento de possíveis
panoramas cheios de vida, de beleza e de Deus, histórias da revolução do
Santo. “Cidade Tronco” não soa mais para mim como um termo pejorati-
vo. Hoje soa mais como uma promessa de salvação e, sim, de revolução,
pois “... a santa semente será o seu tronco”.
O viver santo — que implica sermos agentes da revolução do Santo —
requer que sejamos obedientes no lugar em que nos encontramos, fiéis no
trabalho e na adoração. Muitas vezes, as circunstâncias são de deserto. Mas,
se há algo de que possamos estar plenamente seguros é que o Santo, a vida
inadministrável mas irreprimível de Deus, está sempre presente e oculto
dentro de nós e ao nosso redor. Imprevisivelmente, mas com toda a certe-
za, de tempos em tempos irrompe em nossa percepção: a sarça arde, os
céus se abrem, o templo estremece, o tronco dá um rebento verde. Santo,
santo, santo. Mas não espere que seja noticiado pelo jornal da cidade.
Amém.
capítulo 7

Jeremias como teólogo ascético1

É a teologia ascética que serve de base para Jeremias 17:5-10. A teologia


ascética não se destaca tanto entre nós hoje quanto as teologias designadas
bíblica, sistemática e histórica. Houve séculos, no entanto, em que ela real-
çava entre suas primas. Ela ainda tem um serviço essencial a executar.
Teologia ascética: “De que forma a condição humana molda nosso enten-
dimento de Deus e como reagimos a ele?”. Jeremias, como todo pastor
experimentado, sabia que não é suficiente proclamar o querigma a uma
congregação reunida de forma clara e precisa. Há mais em jogo nesse ne-
gócio de pregar e ensinar do que pôr a revelação da Escritura e Cristo so-
bre a mesa para que fiquem acessíveis a todos. Fazemos nossa exegese com
cuidado, fazemos as pessoas sentarem nos bancos, apresentamos nossa
exposição com premência. E o que acontece? Em geral, nada. Ou não muito.
O que está acontecendo? A Palavra de Deus não é “viva e eficaz, e mais
afiada que qualquer espada de dois gumes; ela penetra até o ponto de divi-
dir alma e espírito, juntas e medulas, e julga os pensamentos e intenções
do coração” (Hb 4:12)? Não nos foi prometido que essa Palavra que pre-
gamos “não voltará para mim vazia” (Is 55:11)? Jesus não foi bem claro ao
afirmar que ao menos parte dessa semente da Palavra de Deus que lança-
mos fielmente de nossos púlpitos aos domingos dará “boa colheita, a cem,
sessenta e trinta por um” (Mt 13:8)?
Cedo ou tarde, percebemos que não basta acertar os substantivos e os
verbos, explicar os artigos do Credo corretamente, apresentar Deus reve-
lado em Jesus bem e de forma verdadeira. Também temos de lidar com

1
Publicado pela primeira vez no periódico Lectionary Homiletics, vol. 3, n.º 3, 1992.
106 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

ouvidos e olhos, coração e mente, rins e pés — todos esses órgãos da re-
ceptividade e da resposta humana, a maioria dos quais parece na maior parte
do tempo estar funcionando mal, por uma ou outra razão. Achamo-nos
em meio àquilo que nossos antepassados costumavam designar teologia
ascética, a sabedoria/conhecimento envolvida na preparação, cultivo e
correção de nossa condição humana para que possa apresentar uma res-
posta satisfatória diante da revelação de Deus.
Jeremias era um bom teólogo ascético. Dispensou tanta atenção aos
detalhes da recepção humana quanto à boa notícia da revelação divina. Nos
versículos 5 a 10 do capítulo 17, ele lida com as formas de vida que ditam
— bem, talvez não ditem, mas influenciem fortemente — o que vemos e
ouvimos da revelação divina. A suposição que se faz aqui é que o tipo de
vida que levamos, quem somos, não apenas o que fazemos, é um fato im-
portantíssimo a influenciar nosso acesso à verdade, qualquer verdade, mas
especialmente a verdade que é Deus. Se interpretarmos passagens como
essa da perspectiva moral, ticando os elementos de um cartão de pontua-
ção comportamental, perderemos o alvo. Não é uma questão de compor-
tamento moral, mas teologia, teologia ascética.
Essa é a grande verdade que Tomás de Aquino denominou adaequatio
(adequação): “O conhecimento se dá à medida que o objeto do conheci-
mento está dentro do conhecedor”. Plotino diria isso da seguinte ma-
neira: “Conhecer exige o órgão adequado para o objeto”. O entendimento
do conhecedor deve ser adequado à coisa a ser conhecida. A “coisa a ser
conhecida” acima de tudo é Deus. Nossa vida — essas complexidades
humanas de carne e osso, mente e emoções, digestão, sonho e dança —
é nosso “órgão” para conhecer Deus. Não admira que por toda a Escri-
tura se dispense tamanha atenção às propriedades e condições da nossa hu-
manidade — as partes do nosso corpo, nosso estado emocional, nossas
circunstâncias físicas, nossos processos mentais, nossos ambientes geográ-
ficos. Cada detalhe humano é parte dessa instrumentalidade de resposta a
Deus.
Esse aspecto da teologia recebeu muito mais atenção os pastores que
nos antecederam do que de nós. Fomos treinados para supor que basta
JEREMIAS COMO TEÓLOGO ASCÉTICO 107

comunicarmos a mensagem com clareza, e teremos cumprido nosso papel.


E, no que se refere ao lado humano das coisas, o “cuidado pastoral”, temos
a tendência de pensar que nossa tarefa se resume em consolar e curar, e,
uma vez que se tenha cuidado disso, o caminho está livre de obstruções
para que o evangelho seja experimentado. Mas há muito mais em jogo.
Jeremias usa imagens orgânicas para representar as formas de vida que
impedem ou promovem o acesso a Deus, e nisso ele segue a tradição bíbli-
ca. Pois a teologia ascética não é uma questão de técnicas impostas, nem
da administração de “disciplinas”. Leva a sério e com todos os seus deta-
lhes a vida como ela é, sua gloriosa criação e sua estupeficante queda, a
vida em si — “como um arbusto no deserto” ou “como uma árvore planta-
da junto às águas”. Tanto o arbusto no deserto quanto a árvore plantada
junto às águas estão vivos, mas não exatamente da mesma maneira: o ar-
busto no deserto mal sobrevive; a árvore regada produz abundantemente.
O arbusto no deserto é uma forma amaldiçoada de vida, pois só se mostra
responsivo ao que é humano (“confia nos homens”), o que é em si uma
porção minúscula da realidade. A árvore junto às águas é uma forma aben-
çoada de vida, pois se mostra responsiva ao que é divino (“cuja confiança
está no SENHOR”) e está, portanto, aberta para a exuberância da criação e
da redenção. A teologia ascética está atenta às condições, condições favo-
ráveis ao desenvolvimento de uma consciência em relação a Deus em con-
traposição ao surgimento de calosidades, pontos de insensibilidade, em
relação a Deus, favoráveis a sairmos em busca de rios e nos afastarmos
dos desertos. Como somos — a maneira em que gastamos nosso dinheiro,
comemos as refeições, lemos um livro, tratamos um estranho — influi em
nossa capacidade de enxergar a beleza da santidade, de ouvir a palavra da
absolvição, sentir o toque de amor, entrar numa vida de oração. A imagem
que Jeremias apresenta da árvore junto às águas foi reestilizada alguns anos
depois no salmo 1 para servir de preparação para o desenvolvimento de
uma intimidade com Deus, um tipo de pré-oração das orações em que os
Salmos consistem. Jesus continuou a reciclagem nas Bem-aventuranças. A
estrutura do texto de Lucas (6:17-26) não deixa dúvida de que há uma
vinculação com Jeremias.
108 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Jeremias também se mostra como um experimentado teólogo ascético


quando desconfia de todas as boas intenções religiosas: “O coração é mais
enganoso que qualquer outra coisa e sua doença é incurável. Quem é capaz
de compreendê-lo?”. Não foi Sigmund Freud que deu origem à “herme-
nêutica da desconfiança”. Pregar o evangelho de tal maneira que se gran-
jeie a concordância de nossos ouvintes requer que nossa pregação esteja
sendo constantemente posta à prova, para que não estejamos meramente
lisonjeando para garantir o favor de consumidores de ídolos. Nenhum de
nós, pregador ou congregação, deve ser confiável nas questões relaciona-
das à alma e a Deus. Desde o dia em que saímos do Éden, experimenta-
mos esse desejo ardente por ídolos; se tivéssemos controle absoluto, seria
muito mais possível corrermos atrás de algum Baal ou Aserá do que nos
curvarmos em humilde adoração diante do Santo. Em todas as questões
do espírito, então, deve haver um exame implacável dos meios e das moti-
vações. “Discernimento” é a palavra normalmente usada em referência a
isso na teologia ascética, e requer que seja diligentemente exercido por pre-
gadores que se importam com almas.
capítulo 8

Aprendendo a adorar
com o Apocalipse de João1

Certas ocasiões conferem especial destaque a determinados livros da Bí-


blia. Agostinho, buscando saber de que maneiras a Cidade de Deus toma-
va forma em meio aos escombros de um Império Romano destruído e
decadente, usou Gênesis como seu texto.
No erotismo exuberante do século XII, Bernardo debruçou-se sobre o
Cântico dos Cânticos como meio de orar pedindo um amor maduro e buscar
assim viver esse amor. Lutero, procurando uma clareza simples em rela-
ção ao evangelho na barafunda vendilhona da religião barroca, acertou
Romanos em cheio e fez dele o livro da Reforma.
À medida que a última década do século XX se aproxima do fim, o últi-
mo livro da Bíblia, Apocalipse, recebe meu voto como o livro bíblico defi-
nitivo para os nossos tempos. Apocalipse já desfrutou antes de momentos
ao sol, mas a era presente precisa dele como nenhuma outra. Se ele vai
conseguir se impor, e de modo saudável, é algo que ainda não sabemos,
mas estou profundamente convicto de que ele é capaz de fornecer um tex-
to de grande abrangência para a vida da igreja como a vivemos neste perío-
do da história.
Essa convicção foi forjada no cadinho da minha vida como pastor. Como
pastor, sou responsável por pregar e ensinar o evangelho de Jesus Cristo.
Nessa pregação e nesse ensino, eu tenho um texto — as Escrituras cris-
tãs do Novo e do Antigo Testamentos — e fiz votos de fidelidade a esse
texto. Não tenho a permissão de inventar o que quer que eu imagine ser
capaz de promover o bem-estar geral. A igreja incumbiu-me de uma tarefa:

1
Publicado pela primeira vez na revista Christianity Today, 28 de out. de 1991.
110 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

operar com base nesse texto, e de nenhum outro, com precisão, paciência
e resolução.

A FOFOCA DA JANE
Quando comecei a me dedicar a essa obra, parecia uma tarefa suficiente-
mente simples aprender hebraico e grego, estudar o que acadêmicos e teó-
logos pudessem me ensinar sobre por que, como e onde tais e tais livros da
Escritura tinham sido escritos, descobrir como tinham agido os pastores
que me antecederam e depois seguir em frente, pregando com instância e
clareza o Cristo que é “o mesmo, ontem, hoje e para sempre”.
Mas no final percebi que não era tão fácil assim. A dificuldade não resi-
dia em decifrar a poesia hebraica de Isaías ou a sintaxe grega de Paulo (em-
bora esses velhos mestres por muitas vezes me mandassem para minha
biblioteca e para os meus joelhos). A dificuldade provinha de pacientemente
tentar deslindar a fofoca da Jane, dar voltas na imaginação do Bill,
narcotizada pela televisão. Descobri, em outras palavras, que as pessoas
para quem eu estava pregando e a quem eu estava ensinando esse evangelho
tinham na mente outros interesses que não aquilo que eu estava tão ávido
por transmitir-lhes. Pareciam ser pessoas de modo geral inteligentes, e com
certeza eram educadas e gentis, mas simplesmente não estavam acom-
panhando.
Era estarrecedor. Eu estava me dirigindo a uma congregação de pessoas
mais bem instruídas que a maioria dos cristãos que jamais haviam existi-
do. Mas não estavam entendendo uma única palavra do que eu dizia: não
quero dizer que não entendiam o sentido denotativo, dicionarizado das
minhas palavras, mas não estavam entendendo que elas eram, precisamente,
“evangelho”: a proclamação de uma nova ordem, um reino inaugurado, em
que cada palavra e ato costumeiros exalam o aroma da glória. Escutavam,
comentavam e, antes de eu perceber, eles já as tinham reduzido completa-
mente a uma fofoca regada a chá com biscoitos.
Eu estava convivendo com homens e mulheres que tinham um pa-
drão de vida mais elevado que a maioria dos cristãos que jamais viveram
— belas casas e belas mobílias, excelentes hospitais e shoppings —, mas
APRENDENDO A ADORAR COM O APOCALIPSE DE JOÃO 111

cada obstáculo, cada notícia sobre uma guerra ou um vulcão, cada doença
e morte passavam a ser um ensejo para questionar a competência de Deus.
Não quero dizer que desacreditavam de Deus sempre que um problema
cruzava seu caminho, mas, no exato momento em que o problema surgia,
Deus passava a ser menos importante que o problema. Queriam saber o
que haviam feito de errado para que Deus permitisse ou enviasse esse pro-
blema sobre a terra. Queriam saber o que Deus estava fazendo de errado
para permitir essa interrupção do bem-estar deles.
Minha primeira reação foi culpá-los. Culpá-los de serem mexeriquei-
ros e murmuradores que estavam desqualificando-se por deixarem de per-
ceber essa glória exuberante, por deixarem de adentrar essa soberania
deslumbrante. Mas então começou a formar-se dentro de mim a convic-
ção de que precisavam de ajuda muito mais do que de culpa. Eram mexe-
riqueiros e murmuradores porque cresceram e viveram numa cultura de
mexerico e murmuração. Eram para eles alimentos integrados ao leite
materno; por isso, antes de conseguirem mastigar a carne sólida de Isaías
e de Paulo, precisei desmamá-los da cultura.
Foi quando encontrei no Apocalipse de João um aliado, pois Apocalipse
é uma representação da boa notícia de Jesus Cristo feita a congregações
submetidas exatamente às mesmas condições culturais. Estavam experi-
mentando um menosprezo do evangelho por meio da fofoca, e um desvio
do evangelho por causa das dificuldades. Mas João silenciou as fofocas e
pôs o problema no lugar certo. E fez isso da maneira mais simples e econô-
mica possível. Chamou as pessoas para adorarem.

QUANDO O GLORIOSO SE TORNA INSIGNIFICANTE


O menosprezo no mundo de João estava acontecendo pela fofoca da-
queles cujos ensinos aberrantes logo seriam conhecidos como gnosticis-
mo. A natureza essencial da fofoca é que ela fala das pessoas em vez de
falar para as pessoas. A fofoca deixa de fora tudo o que é singular e mara-
vilhoso na pessoa e a reduz a uma historieta, a um lugar-comum ou a um
estereótipo. A fofoca nunca é feita por admiração. A fofoca nunca é feita
por amor.
112 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Os gnósticos inventavam mexericos sobre Deus. Afirmavam saber muito


sobre Deus (gnóstico significa “o que sabe”), mas era tudo sobre Deus. Os
gnósticos não oravam. Não adoravam. Os gnósticos conversavam muito
uns com os outros e escreviam interminavelmente sobre o que pensavam.
Deus era rebaixado a uma historieta, ou fantasiado como uma especulação.
A última década do primeiro século, quando João estava tentando pre-
gar e ensinar o evangelho a suas congregações, estava infestada desses
precursores dos gnósticos do século seguinte. Vemos em outros lugares do
Novo Testamento evidências diretas e indiretas da presença deles, e do peri-
go que eles pressagiavam para o evangelho. Como pastor, João sabia que
precisava ajudar seu povo a se desenredar dessa fofoca, caso contrário o
evangelho seria tão menosprezado que nem seria mais reconhecido. As re-
ferências em Apocalipse a Balaão, a Jezabel e aos nicolaítas são referências
a líderes ou seitas com tendências gnósticas. Sob o disfarce de conduzirem
as pessoas a entendimentos mais profundos acerca de Deus, estavam, na
realidade, ajustando-o às condições da cultura, e desse modo reduzindo-o
a suas ideias e modas.
É impressionante o paralelo com a nossa cultura: tantos aspectos da vida
da igreja estão sendo reduzidos a artigos de fofoca e índices de preço ao
consumidor. Os cristãos conseguiram fabricar cruzes que atendem aos mais
variados gostos de consumo. Substituímos santos por celebridades. E é cada
vez mais difícil levar qualquer coisa a sério.

A TRIBULAÇÃO FAZ SENTIR SUA PRESENÇA


Por pior que fosse esse menosprezo para os anos em que João era pastor, a
tribulação — ocasionada pela perseguição romana — também causou um
desvio em relação ao evangelho. Ser cristão não era permitido por lei.
Houve aprisionamentos e martírios. Houve discriminação econômica,
ostracismo social. A crucificação de Jesus repetiu-se em seus seguidores.
Uma coisa é crer em Jesus e segui-lo quando tudo vai bem e as bênçãos
rolam dos céus. Mas, quando os problemas se acumulam e tudo o que a so-
ciedade valoriza contradiz e até mesmo condena a nossa forma de vida, é
difícil não ceder ao desfile diário de provas de que o problema é a realidade
APRENDENDO A ADORAR COM O APOCALIPSE DE JOÃO 113

dominante. A crueldade romana estava muito mais em evidência do que a


graça do evangelho. O culto ao imperador, uma festa para os sentidos que
também garantia certa segurança mundana, era muito mais impressionan-
te do que a crença cristã num Deus invisível e num Salvador crucificado
que expunha seus seguidores ao risco de serem mortos.
Mas, conquanto, ao menos no Ocidente, não seja mais crime ser cris-
tão, as condições da tribulação têm, até mesmo ao contrário, aumentado.
O poeta polonês Czeslaw Milosz, num discurso recente, usou a palavra
“cruel” em referência ao século XX. Cruel, sem dúvida alguma. Tivemos duas
guerras mundiais que irrevogavelmente transformaram o cenário político
do planeta, e vivemos sob a ameaça de uma terceira, que, se for nuclear,
pode acabar com tudo. O advento seguido do colapso do comunismo lan-
çou nação após nação no caos total, com a anarquia numa luta corpo a corpo
com a liberdade pela supremacia. Os países do Terceiro Mundo irrompem
na arena, tentando garantir sua fatia do bolo. Catástrofes (políticas, mo-
rais, ecológicas) acumulam-se mais rapidamente do que somos capazes de
noticiar. O compromisso com um Deus justo, que traz a paz, que opera a
salvação, está em risco. Cada notícia de jornal desvia mais um ou dois cris-
tãos da cruz como alvo. As proclamações de que “o Reino de Deus está
próximo” são abafadas pelo rugido diário de informações a respeito de
condições mundiais que desafiam as reivindicações da soberania de Deus.
Se de fato nos preocupamos com a integridade do evangelho, o que fa-
zemos?
Torcemos as mãos? Torcer as mãos não é uma estratégia. João simples-
mente não desperdiçou tempo se lamentando. O que fez foi adorar e chamar
seu povo para adorar. Adoração justa. Não ofereceu nenhum plano para a
renovação da igreja. Não fez uma convocação de suas sete igrejas para
deliberar o que podia ser feito. Adorou a Deus e chamou seu povo para ado-
rar a Deus.

POR QUE ADORAR?


As condições correspondentes na década de João e na nossa, o menospre-
zo e a tribulação, e sua resposta espantosamente focada e simples, chamando
114 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

as pessoas para adorar, recomendam Apocalipse como um texto para re-


cuperar a integridade do evangelho em tempos desfavoráveis.
No fundo, Apocalipse é isto: um ato de adoração que convida outros
para esse ato de adoração. Na primeira página, vemos João em adoração:
“No dia do Senhor achei-me no Espírito” (1:10). Na última página, vemos
João, momentaneamente distraído na direção do anjo, recebendo ordens
de voltar para o centro: “Adore a Deus!”, é o que ouve do anjo (22:9). En-
tre a primeira e a última páginas, temos uma cena após outra de intensa
adoração — com as visões e os sons fazendo convergir tudo o que está no
céu e na terra, na criação e na cruz, na história e na salvação —, tudo nos
envolvendo em adoração.
Mas é tão fácil nos distrairmos: distrairmo-nos tão facilmente pelo
menosprezo quanto pela tribulação. A visão de João, se ao menos nos sub-
metêssemos a ela, é suficientemente poderosa para prender nossa atenção
e nos puxar outra vez para a ação principal, para o “centro que é Deus”.
Ela é suficientemente imaginativa para fazer que nosso corpo, mente e
emoções participem, adorem.
É revelador que nossa Bíblia encerre com Apocalipse, o que significa
dizer, com um chamado à adoração. Quando chegamos a esse último tomo
da biblioteca dos 66 livros, nossa mente está estourando de conhecimento,
e nosso coração, ardendo em desejo. Com todo esse conhecimento e com
todo esse desejo, há um grande perigo de que simplesmente saiamos por aí
dando-lhe bom uso — contar a todo mundo o que sabemos, alistar todos
em nossa causa: comunicar, motivar.
E é exatamente o que nós, as igrejas e os líderes eclesiásticos dos Esta-
dos Unidos, temos feito: correr para comunicar e motivar. Entre eles, a
comunicação e a motivação dominam a agenda cristã. A comunicação trans-
mite muita informação precisa, e a motivação alista muitos em boas cau-
sas. Então por que as coisas não estão melhores? Por que a Verdade não é
bem conhecida? Por que a Justiça e a Retidão não prosperam? Por que a
igreja americana é esse vexame que é? Por que seus pastores estão tão des-
moralizados? Talvez seja porque não ficamos para ler esse último livro, não
nos permitimos ser chamados para adorar. Deixamos tão completamente
APRENDENDO A ADORAR COM O APOCALIPSE DE JOÃO 115

de nos imergir no ato da adoração que seria impensável sair e fazer algo
por conta própria, por mais bíblico que fosse, por mais urgente que fosse.
A verdade do evangelho é que Deus em Cristo reina e salva.
A realidade da condição humana é que estamos decididos a reinar e a
salvar, e fazemos uma tremenda mixórdia quando tomamos essas ações
em nossas mãos. Queremos nos governar e nos salvar. Queremos gover-
nar e salvar os outros.
Mesmo em nosso melhor estado, não logramos esse intento — por mais
que detenhamos conhecimento, por mais bem-intencionados que sejamos.
Mesmo depois de dominarmos o conteúdo de Gênesis a Judas, não conse-
guimos. Não conseguimos porque somente Deus em Cristo pode reinar e
salvar. Temos, é bem verdade, uma participação no reinado e na salvação,
mas consiste numa participação em que tão somente obedecemos e cre-
mos. E a única maneira na qual podemos permanecer atentos à realidade
de que Deus em Cristo é quem reina e salva é no ato da adoração. A única
forma de confiarem que estamos dizendo algo sobre Deus que chegue per-
to da verdade, que estamos fazendo algo para Deus que esteja certo ao
menos pela metade, é pela prática repetida e fiel de cantar e orar, escutar
e crer com os anciãos e os seres vivos ao redor do trono, onde o livro é
aberto e o evangelho é lido alto e bom som.
Se nos ausentamos da adoração ou a tratamos como secundária em
nosso programa de comunicação e motivação, somos dominados pelo vi-
sível. Mas a maior parte da realidade com a qual lidamos é invisível. A maior
parte do que constitui a existência humana é inacessível aos nossos cinco
sentidos: emoções, pensamentos, sonhos, amor, esperança, caráter, pro-
pósito, crença. Mesmo aquilo que compõe a maior parte da existência físi-
ca fundamental está fora do alcance dos nossos sentidos por si sós, sem
nenhuma ajuda externa: moléculas e átomos, nêutrons e prótons, o ar que
respiramos, os ancestrais que nos deram origem, os anjos que nos prote-
gem. Vivemos imersos nesses grandes invisíveis. E, acima de todas as de-
mais coisas, estamos lidando com Deus, que “ninguém jamais viu”.
A adoração é o meio primordial e mais acessível que recebemos para
nos orientarmos em meio às invisibilidades, em Deus. E Apocalipse é,
116 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

junto com Salmos, a versão mais abrangente da adoração que temos. É,


precisamente, uma visão — uma visão do invisível. A comunidade cristã
que não estiver enraizada no invisível — o trono e o Cordeiro — e não
for por ele moldada logo estará sob o controle dos comunicadores e mo-
tivadores.
Não é minha intenção excluir outras interpretações do Apocalipse com
minha insistência no fato de que ele revela atos fiéis de adoração coletiva,
convidando-nos para participar desses atos. Há muito mais elementos no
vasto poema teológico de João. Há profecia e consolo, beleza e segurança,
advertência e bênção, perplexidade e mistério. Mas com certeza quero in-
sistir em que cada palavra do livro acontece num ato de adoração, e tem
por objetivo arrastar-nos para dentro desse ato de adoração. Nada é pior
que a religião que sai por conta própria, distancia-se do Deus vivo, segue
por desvios em torno do Salvador crucificado — o que significa dizer ne-
gligência para com a adoração. Mas essa é a epidemia encontrada em nos-
so meio hoje — a religião como comunicação, a religião como motivação.
Muitos cultos nas igrejas de hoje são meras frentes para o ego do pastor
ou para as necessidades da congregação, ou para os dois. Foi o que João
viu acontecer em suas igrejas. Ele reagiu colocando todas elas, de forma
vigorosa e esplendorosa, no lugar da adoração, diante do Deus vivo, sob o
comando do Cristo ressurreto, renovadas pelo Espírito Santo. A visão pre-
gada mostrava que tudo aquilo com que eles estavam preocupados, junto
com todas as pessoas que conhecessem ou pudessem imaginar, estava abran-
gido no ato da adoração. E ainda está.
O Apocalipse de João pode nos ajudar aqui. Pois, uma vez que esteja-
mos imersos nessa exuberância de sons e cores, certamente perderemos o
gosto pela fofoca; e uma vez que consigamos compreender a abrangência
da graça e as alegações vazias do mal, não estaremos propensos a ceder à
intimidação dos “poderes e autoridades”. Uma vez que tenhamos tomado
assento tendo João a conduzir-nos num ato de adoração, nunca mais dire-
mos outra vez “só adoração” nem nos ausentaremos da ação.
capítulo 9

Apocalipse: o meio é a mensagem1

Pregadores, pastores e professores cristãos — aqueles que na igreja pro-


clamam, debatem em público, palestram e escutam — têm hoje muito mais
condições de descobrir e interpretar os documentos da mensagem do evan-
gelho com exatidão e confiabilidade do que seus predecessores de vários
séculos atrás.
A razão é que os ouvidos estão de novo em voga. A escuta é mais uma
vez o principal meio da comunicação. Por muitos séculos, o aprendizado
foi dominado pela palavra impressa; e a experiência que invariavelmente
se tinha com a palavra era de algo visto, não ouvido. Mas hoje o cenário
das comunicações é dominado pelos meios eletrônicos. Esses meios ele-
trônicos são principalmente orais/aurais, que é no fundo como eram as
comunicações nos anos em que o material bíblico estava sendo formado.
Isso significa que a humanidade contemporânea está mais próxima, da
perspectiva da experiência das comunicações, do primeiro século que do
século XIX. E isso é uma boa notícia para o comunicador cristão que ago-
ra pode compartilhar com a humanidade um entorno, um contexto que é
importante para descobrir e interpretar a mensagem bíblica.
Marshall McLuhan, a fonte para boa parte dessas percepções sobre as
comunicações, tem sido provocativo em interpretar os meios de comuni-
cação, tanto os de composição escrita quanto os eletrônicos. Professores e
pregadores cristãos, cujas fontes documentais nasceram em sua maioria
na forma oral, encontrarão em seu trabalho uma abundância de materiais
sugestivos. Qualquer um, aliás, que esteja empenhado na hermenêutica

1
Publicado pela primeira vez na revista Theology Today, jul. de 1969.
118 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

bíblica, seja um exegeta, seja um expositor, encontrará nele um auxílio


estimulante.
Não foi McLuhan quem aplicou esses seus conceitos a qualquer um dos
materiais bíblicos. Sua obra mais aclamada, Os meios de comunicação como
extensões do homem,2 lida com a era dos meios eletrônicos de comunica-
ção de massa. Antes, ele trabalhou com materiais mais clássicos de com-
posição escrita em A galáxia de Gutenberg: a formação do homem
tipográfico.3 Seu primeiro livro, The Mechanical Bride [A noiva mecâni-
ca], foi uma análise literária/cultural das “tradições da era industrial”, com
estudos de caso da propaganda.
O Apocalipse de João é um dos casos mais óbvios para os quais o estímulo
e a introspecção de McLuhan podem fornecer um auxílio hermenêutico.

I
Há anos, reconhece-se a natureza originariamente oral da maior parte dos
materiais bíblicos. Mas o conhecimento de uma “tradição oral” tem sido
usado principalmente para entender os processos de composição e de trans-
missão. McLuhan mostra o enorme efeito que o meio de comunicação
exerce na interpretação. Seu insight central, o de que “o meio é a mensa-
gem”, demonstra que a forma em que uma mensagem é transmitida tem
mais efeito sobre — sendo assim mais importante para — a pessoa e sua
cultura do que o conteúdo da mensagem.
Os dois meios básicos de comunicação são o oral/aural e o escrito. Aquele
é o meio nas sociedades pré-letradas e não letradas. Seu uso cria uma cul-
tura holística, uma sociedade intensamente participativa, com todos os sen-
tidos aguçados e amadurecidos pelo uso constante. O individualismo é raro,
ou mesmo desconhecido. Os acontecimentos são experimentados de for-
ma integral, por povos que entendem a si mesmos como comunidades.
Já este, o meio escrito, separa o acontecimento da experiência que tenho
em relação a ele. Além disso, fragmenta o acontecimento em si quando o

2
São Paulo: Cultrix, 1998.
3
São Paulo: Cia. Ed. Nacional, 1977.
APOCALIPSE: O MEIO É A MENSAGEM 119

separa foneticamente em palavras individuais. Os acontecimentos passam


a ser experimentados de modo linear. A vida é fragmentada em pedaços.
A pessoa não vive mais com todo o seu sensório em operação. Os sentidos
são reprimidos, e a atrofia como meio da palavra escrita domina a vida de
aprendizado. Essa análise do efeito formador dos meios de comunicação
talvez pudesse servir de importante pista no entendimento de Apocalipse.
Ao menos, explica as dificuldades predominantes que os exegetas letrados
têm encontrado na busca por compreender o livro.

II
O Apocalipse não é encontrado em forma escrita em seu nascedouro. So-
mente depois que João “viu” a “palavra de Deus” e o “testemunho de Jesus
Cristo” (Ap 1:2) foi que ele o escreveu (Ap 1:3). Mesmo nesse momento,
conservou-se seu caráter basicamente oral: “Feliz aquele que lê as palavras
desta profecia, e felizes aqueles que ouvem...”. Trata-se de uma elaboração
oral de material visual, auditivo e táctil. É uma poesia teológica, e, como a
maior parte da poesia antiga (e um pouco da contemporânea), é principal-
mente algo dito ou cantado. Se chega a ser escrita, é escrita somente de-
pois. A criação e a elaboração se dão no âmbito dos sentidos.
Ironicamente, R. H. Charles, com quem isso talvez nunca tenha acon-
tecido, é quem nos oferece a evidência mais convincente. O professor
Charles, cujo comentário se tornou um clássico, meticulosamente vai con-
ferir cada citação e alusão do livro. É interessante que não há nem uma
única citação exata de nenhuma fonte. Teria sido impossível alguém copiar
tantas coisas com uma imprecisão tão uniforme. A evidência é que a rela-
ção com a fonte documental era exclusivamente oral/aural. Tratava-se de
materiais que haviam sido ouvidos. A conclusão exegética de Charles é que
Apocalipse consistiu num trabalho elaborado de corte e colagem; McLuhan
fornece o insight que utiliza a mesma evidência que revela a obra como
uma fusão de vozes e imagens. Além do mais, a gramática é pobre; quase
como se simplesmente não tivesse sido composto no papel, mas trans-
crito de uma transmissão falada — indicador pequeno mas significativo
do caráter originariamente oral do livro.
120 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Apocalipse, pareceria, não tem rigorosas dependências escritas — mas


muitas dependências orais. É uma obra da imaginação composta a partir
da memória dos sentidos a respeito da palavra falada e cantada.
Ainda assim, quase todo o trabalho exegético e hermenêutico feito em
torno do Apocalipse tem aceito como ponto de partida a premissa da com-
posição escrita. O livro tem sido tratado, como somente o homem letrado
é capaz de tratá-lo, como uma série de palavras organizadas de modo cui-
dadoso e linear sobre o papel. O próprio ato de ler em particular (a leitura
em público teria um efeito diferente) destruiu a integralidade sensorial da
obra original e a fragmentou em pedaços. Os resultados são tristemente
conhecidos de todos nós. Sobejam os gráficos, esquemas, diagramas. Os
pedaços, os fragmentos, são organizados e reorganizados. Todos ficam confu-
sos com a avalancha de minúcias. Números, cores, visões, sons são todos
tratados separadamente e recebem importância própria. Mas, por estarem
separados, ficam também insignificantes. Não há como não lembrar do
dr. Cutícula da obra de Melville White-Jacket [Guarda-pó branco], o ci-
rurgião que, em seu interesse de demonstrar a própria habilidade, não ob-
serva que o paciente havia morrido na mesa. “Assassinam para dissecar.”
Nenhum livro bíblico sofreu um destino tão difícil nas mãos dos acadêmi-
cos exegetas. A razão é agora fácil de ver — nenhum livro bíblico esteve mais
afastado em sua origem do meio escrito. A visão foi escrita; mas foi lida em
voz alta e assim rapidamente devolvida ao meio oral. E a razão, naturalmente, é
que se dirigia a pessoas que, na maior parte, não sabiam ler. O som era pri-
mordial. A experiência de ouvir o Apocalipse, o que quer mais que tenha sido,
não era uma experiência de composição escrita. O meio era o ouvido. Se nem
a causa nem o efeito da mensagem foram determinados pela capacidade de
ler e escrever, dificilmente o intérprete terá sucesso em pressupor exclusiva-
mente ferramentas de composição escrita em seu trabalho hermenêutico.
Ninguém deixa de ficar impressionado com o vasto saber dos principais
comentaristas do Apocalipse. R. H. Charles e C. C. Torrey são brilhantes.
Ainda assim, não se chega a ter a impressão de que eles estejam iluminan-
do a mensagem do livro com sua obra. Fazem um trabalho excepcional no
que se refere a sua sintaxe, suas associações mitológicas, sua teologia. Mas
estão surdos a seu meio: nunca ouvem as trombetas. São homens de
APOCALIPSE: O MEIO É A MENSAGEM 121

Gutenberg do começo ao fim. E afirmar isso não significa fazer uma acu-
sação condenatória. Todos ficamos enredados na mesma surdez cultural.
Mas eles, sem dúvida alguma, comprovam a dificuldade que tem o homem
ocidental de interpretar Apocalipse com suas ferramentas de composição
escrita e sua experiência cultural.
Os artistas, as “antenas da raça” (Ezra Pound), cuja vida dos sentidos é
menos entorpecida pela experiência literária da escrita, foram mais bem-
sucedidos com o Apocalipse. As pinturas de Marc Chagall, os desenhos de
William Blake, o comentário devocional de Christina Rossetti — todos veem
a visão e ouvem a mensagem. D. H. Lawrence, que entendia o poder
fragmentador da vida industrial, enxergava em Apocalipse a integralidade
do homem, e escreveu sobre ele com uma persuasiva convicção (embora
com uma ortodoxia duvidosa). Parece que o artista, cujos sentidos não
foram embotados em razão da aptidão literária para escrever, tem a possi-
bilidade de abordar o material por seu próprio meio.
Talvez o teólogo e exegeta que mais próximo tenha chegado de inter-
pretar de modo completo o Apocalipse foi Austin Farrer. Conseguiu isso
tratando-o como poesia, e, em vez analisar verbos gramaticalmente e cor-
rigir a sintaxe, ele lidou com a imaginação artística de João. A reconstru-
ção imaginativa que Farrer elaborou da feitura do livro é sustentada pelo
insight de McLuhan sobre os meios de comunicação.
Para usar a terminologia de McLuhan, o efeito dos comentaristas litera-
tos do livro tem sido o de explosão, separando as partes num “giro amplia-
dor”; o efeito do insight de McLuhan é o de implosão, reunindo todo o material
relativo aos sentidos num único acontecimento. Mas é necessário um es-
forço especial da imaginação para ouvir e ver junto com João. Ficamos mais
à vontade quando temos de rastrear pistas. “Vivemos numa cultura basea-
da no excesso, na superprodução; o resultado é uma perda constante de
agudeza em nossa experiência dos sentidos”, segundo afirma Susan Sontag.4
Pouco admira que nos saiamos tão mal como intérpretes do Apocalipse.

4
Against Interpretation. New York: Farrar, Straus & Giroux, 1966, p. 13. [Publicado no
Brasil em 1987 pela L&PM, sob o título Contra a interpretação, traduzido por Ana Maria
Capovilla.]
122 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

O que acontece no Apocalipse é que os efeitos desintegradores e assus-


tadores do mal (perseguição, morte, sofrimento etc.) são invertidos pela
reconstrução imaginativa de um universo em que os sentidos são usados
para gerar participação e um senso de integralidade.

III
Os materiais auditivos e visuais ficam muito evidenciados em Apocalipse.
Secundariamente representados estão os sentidos do tato, do olfato e do
paladar. A audição é essencial. Subjacente à mensagem que deve ser ouvi-
da, está a experiência de ouvir: “Aquele que tem ouvidos ouça”. Ouvir o
quê? Não importa o quê, basta ouvir. A ressonância é instaurada. A comu-
nicação é estabelecida. A voz de Deus e nossos ouvidos se unem.
O ato de escutar se une ao ato de ver. Os dois sentidos operam simulta-
neamente. O testemunho do primeiro capítulo, “Voltei-me para ver quem
falava comigo”, dá o tom. Ouvidos e olhos são usados de forma comple-
mentar e interativa. Sons de vozes, trovões e cânticos enchem o ambiente.
O silêncio é significativo. Visões de bestas coloridas e complexas, um Cristo
escultural e magnífico, mulheres visualmente complexas e joias preciosas
são um rico encanto para os olhos. Um levantamento do material relacio-
nado aos sentidos da audição e da visão teria de reproduzir quase cada
linha do livro.
Não tão óbvio, talvez, é o recurso ao tato. O uso simbólico dos números
foi desde o começo uma característica reconhecida de Apocalipse: sua sé-
rie de sete elementos, as combinações de quatro e três elementos, os seis
elementos enigmáticos, as miríades, as multidões. Mas a importância dos
números, interpretativamente, foi tratada como se exclusivamente tivesse
uma referência simbólica. Quatro significa “x”, três significa “y” etc. Mas
o meio é a mensagem. O número, de acordo com McLuhan, é uma exten-
são da palpabilidade; começando pelo ato de contar com os dedos (dígi-
tos), os números vêm a ser uma maneira de ampliar o sentido do tato.
“Baudelaire teve uma verdadeira intuição a respeito do número como
uma mão táctil ou um sistema nervoso que permite inter-relacionar unida-
des separadas, quando afirmou que ‘o número está dentro do indivíduo.
APOCALIPSE: O MEIO É A MENSAGEM 123

A intoxicação é um número’. Isso explica por que ‘o prazer de estar numa


multidão é uma expressão misteriosa de prazer na multiplicação do núme-
ro’. O número, significa dizer, não é apenas auditivo e ressoante, como a
palavra falada, mas tem suas origens no sentido do tato, do qual é uma
extensão”.5
Não se quer dizer com isso, naturalmente, que não há nenhum signifi-
cado simbólico nos números; isso é inquestionável. Com certeza, porém,
fornece uma dimensão sensitiva que confere unidade e lastro. Explica o
efeito poderoso que os números tiveram nos leitores mesmo quando eles
não entendiam a referência simbólica. Explica o poder que os números têm
exercido sobre a imaginação dos intérpretes.
A importância dos números relacionados a multidões em Apocalipse,
no capítulo 7, é um exemplo: o número elevado ao quadrado — 144.000
— e a “grande multidão que ninguém podia contar”. A incursão do mal
violento é inaugurada pelos quatro cavaleiros do capítulo 6. É contraposta
pelo senso de vitoriosa e justa magnitude no capítulo 7. Os números rela-
cionados às multidões fornecem uma resposta sensitiva de vitória. O efei-
to dos números na visão do capítulo sobre uma pessoa sensitivamente viva
é ampliar seu senso da proteção de Deus e de sua vitória perante o mal pre-
mente. Os antropomorfismos hebraicos de dedos, costas, braço e rosto de
Deus são intensificados nesse uso de números como uma extensão do sen-
tido do tato, comunicando o senso da presença e da ajuda real de Deus.
O sentido do tato é também utilizado na figura da “cidade”. Lewis Mum-
ford, em seu livro, A cidade na história, observa que a cidade foi antes de
tudo uma extensão da pele e funcionava do mesmo modo que a pele funcio-
na, como proteção.6 O agrupamento de casas numa cidade e a construção

5
Marshall MCLUHAN. Understanding Media: The Extensions of Man. New York: McGraw-Hill,
1964, p. 109. [Publicado no Brasil em 1998 pela Cultrix, sob o título Os meios de comunica-
ção como extensões do homem, traduzido por Décio Pignatari.]
6
Lewis MUMFORD. The City in History. New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1968. [Publi-
cado no Brasil em 1982 pela Livraria Martins Fontes Editora, em coedição com a Editora da
Universidade de Brasília, sob o título A cidade na história: suas origens, transformações e pers-
pectivas, traduzido por Neil R. da Silva.]
124 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

de uma muralha na cidade criam um senso de grupo e uma inter-relação.


A cidade em Apocalipse é retratada de duas maneiras, como Babilônia e
como Jerusalém. Babilônia é a consciência e a inter-relação do mal. Quan-
do o mal alcança seu ápice e se torna concentrado, ele forma uma cidade.
A cidade passa a ser o lugar da habitação do mal e, naturalmente, é des-
truída. Não são os maus que são destruídos, mas a cidade má.
A nova Jerusalém é uma cidade com proporções perfeitas e espaço in-
finito. É muito impressionante que o novo céu não seja retratado como uma
restauração do jardim do Éden, mas como uma nova cidade. A visão pagã
do futuro é Éden ou Arcádia7 — um retorno primitivista a um individualis-
mo descomplicado. (Gauguin foi quem no século XX deu uma represen-
tação artística dessa visão.) Mas a visão bíblica é um aperfeiçoamento da
cidade. Esse artifício da sociedade como forma de vida conjunta e conscien-
te é levado a sua expressão máxima, não eliminado. A cidade passa a ser o
lugar de habitação da nova justiça, que significa que aqueles que vivem nas
cidades têm um modelo pronto e à mão para entenderem o fracasso da
extensão da consciência de Deus. (Harvey Cox tem grandes percepções a
compartilhar sobre isso em seu The Secular City [A cidade secular].8) A
medição tanto do templo quanto da cidade (caps. 11 e 20) realça essa
ampliação da palpabilidade. “Eletricamente contraído”, diz McLuhan, “o
globo não passa de uma aldeia”. Semelhantemente, na poesia sensitiva e
teológica de Apocalipse, o cosmo não passa de uma cidade.
O sentido do olfato é associado sensitivamente com a oração em Apo-
calipse. As taças de incenso, representando as orações da igreja, podem ser
vistas e cheiradas (cap. 8). “O sentido do olfato não é somente o mais sutil
e delicado dos sentidos humanos; é, também, o mais icônico, uma vez que
envolve todo o sensório humano de maneira mais plena que qualquer ou-
tro sentido. Não surpreende, portanto, que as sociedades altamente litera-
tas tomem providências para reduzir ou eliminar os odores do ambiente.

7
Região da Grécia antiga que muitas vezes foi escolhida como cenário da poesia bucólica.
(N. do T.)
8
New York: Macmillan, 1965.
APOCALIPSE: O MEIO É A MENSAGEM 125

O CC, assinatura e declaração singulares da individualidade humana, é um


palavrão nas sociedades letradas. É envolvente demais para nossos hábitos
de desprendimento e de mera observação científica abalizada”.9
O sentido do olfato, “mais sutil e delicado [...] envolvente...”, é com cer-
teza o equivalente sensitivo apropriado da oração. As dificuldades do ho-
mem letrado em desenvolver e manter uma vida satisfatória de oração
podem estar diretamente relacionadas ao aumento do uso de desodorantes!
O sentido do paladar tem uma representação secundária na mornidão
da igreja de Laodiceia, a qual precisa ser vomitada por sua insipidez, e
no pequeno manuscrito (cap. 10) que era doce na boca, mas amargo no
ventre.

IV
Nada disso pretende subestimar o lugar da mente racional e compreensiva
na leitura de Apocalipse. Dentro do próprio livro, alguns recursos muito
famosos à razão: “Aquele que tem entendimento calcule o número da bes-
ta” (Ap 13:18); “... Aqui se requer uma mente sábia” (Ap 17:9). Mas o lugar
da imaginação e o efeito dos meios sensitivos com certeza foram despreza-
dos tempo demais na interpretação do livro.
Contudo, a persistência do Apocalipse na vida da igreja é um sinal de
que essa dimensão imaginativo-sensitiva não foi perdida por todos. Gera-
ções de acadêmicos cristãos, se não a rejeitaram (como fez Lutero) nem a
desconsideraram (como fez Calvino), acharam nele um lugar para exerci-
tar a criatividade literária; mas foi sempre o livro mais importante para
muitas pessoas iletradas e comuns. Seu impacto através dos séculos tem
sido basicamente mais sensitivo que mental. As pessoas não extraíram novas
ideias de Apocalipse — descobriram novos sentimentos.
O que acabamos de dizer a respeito da tarefa interpretativa do material
bíblico vem aparecendo de forma semelhante, ressalvadas as diferenças,
nas conversas atuais da “teologia da esperança”. Algumas das dificuldades
entre os debatedores podem remontar a uma experiência de composição

9
MCLUHAN, Understanding Media, cit., p. 147.
126 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

escrita que insiste teimosamente em tratar “esperança” como simplesmente


outro assunto no espectro teológico, embora Moltmann advirta incisiva-
mente contra isso. “A escatologia realmente não pode ser apenas uma par-
te da doutrina cristã. Antes, a perspectiva escatológica é característica de
toda a proclamação cristã, de toda a existência cristã e de toda a igreja.”10
Uma frase fundamental para o entendimento do que seja a “teologia da
esperança” é a seguinte: “O escatológico não é um elemento do cristianis-
mo, mas é o meio da fé cristã como tal, o fator central no qual se situa tudo
o mais que lhe pertence, o brilho que cobre tudo aqui nessa alvorada de
um aguardado novo dia”.11 A esperança, então, não é outro assunto a ser
tratado, outro tema a ser debatido. É algo de uma espécie diferente, o meio
do debate teológico, o ambiente teológico no qual a igreja descobre e executa
sua missão. Assim como a oralidade (ou a capacidade de ler e escrever) for-
nece o meio modelador nas comunicações, assim também a esperança (ou
a presunção/desespero) fornece o meio modelador na missão da igreja. E o
meio é a mensagem: a esperança proclama a experiência de missão e o futu-
ro da igreja (“a fé tem a prioridade, mas a espera, a primazia”).
Mas, se a teologia da esperança trouxe dificuldades para alguns, foi cap-
tada quase intuitivamente por outros — uma geração posterior e mais jo-
vem que entende algo sobre a importância do meio.
Assim, Moltmann une-se a McLuhan. O interesse em escatologia res-
suscita ao mesmo tempo que se fornecem ferramentas conceituais para
demonstrar seu caráter de “meio”. O futuro, ao menos para o Apocalipse,
parece bom, hermeneuticamente. As novas gerações da era eletrônica, cujo
aprendizado é modelado pelos meios eletrônicos de comunicação, capta-
rão a mensagem do meio instantâneo, participativo, imaginativo do livro.
Paulo, o preferido das mentes literatas, ficará em segundo plano, dando lugar
a João.

10
Jürgen MOLTMANN. The Theology of Hope. New York: Harper and Row, 1967, p. 16. [Publi-
cado no Brasil em 2005 pela Loyola, sob o título Teologia da esperança: estudo sobre os funda-
mentos e as consequências de uma escatologia cristã, traduzido do alemão por Helmuth Alfredo
Simon, rev. Nélio Schneider.]
11
MOLTMANN, op. cit., p. 16. (Grifo do autor.)
APOCALIPSE: O MEIO É A MENSAGEM 127

A utilidade dos insights de McLuhan é até este momento ainda acadê-


mica. Permitem que o leitor de Apocalipse desenvolva uma perspectiva de
onde possa enxergar a insuficiência de seu tratamento literário, que ele
descubra parte das razões por que os comentaristas exegéticos se mete-
ram em tantos problemas, e que saiba explicar a persistente popularidade
de Apocalipse entre poetas e pessoas comuns. Os insights não nos ajudam
a ouvir, a ver ou a sentir da mesma maneira que uma pessoa pré-letrada.
Nossos sentidos estão entorpecidos, e não será possível que nos recupere-
mos rapidamente. O que Susan Sontag aconselha com respeito à literatu-
ra em geral serve para os leitores desse livro bíblico: “O que importa agora
é recuperar nossos sentidos. Precisamos aprender a ver mais, a ouvir mais,
a sentir mais”.12
Podem passam mais duas gerações antes que a igreja cristã ouça, veja e
sinta a mensagem do Apocalipse sem “as distorções de Gutenberg”. Mas o
futuro se mostra promissor. O mundo contemporâneo fornece o ambien-
te mais favorável para uma hermenêutica de Apocalipse desde, talvez, o
século XIV, ou mesmo, talvez, do segundo. Os cristãos leigos instruídos pela
televisão podem descobrir que se trata do único livro bíblico que lhes asse-
gura uma vantagem interpretativa sobre seus pastores e teólogos mais da-
dos à leitura ou por ela tão influenciados. Pode mais uma vez se tornar o
apogeu brilhante do cânon bíblico que um dia foi, em vez do opróbrio bi-
zarro que tem sido por tantos séculos.

12
Against Interpretation, cit., p. 14.
capítulo 10

O quarteto da ressurreição1

Houve uma só ressurreição; há quatro narrativas a seu respeito. Mateus,


Marcos, Lucas e João contam a história, cada um a sua maneira. Cada
narrativa é diferente e tem um caráter próprio. Quando os quatro relatos
são incorporados à imaginação, desenvolvem ricas melodias, harmonias,
polifonias. As quatro vozes formam um quarteto da ressurreição.
Ainda assim, muitos ficam sem conseguir ouvir a música. A razão, creio
eu, é que o estilo apologético há anos tem sido “harmonizar” as quatro his-
tórias da ressurreição. Mas acaba nunca sendo harmonização de verdade.
Em vez de atentar para as partes singulares do baixo, do tenor, do contral-
to e do soprano, temos tentado fazer que os evangelistas entoem a mesma
melodia. As diferenças e variações nas narrativas da ressurreição são ne-
gadas, afirmadas, duvidadas e “interpretadas”.
Existe uma maneira melhor. Uma vez que temos os quatro relatos que
se suplementam, podemos ser incentivados a celebrar cada um exatamen-
te como é, e ressaltar os aspectos que diferenciam uns dos outros. Em vez
de fundi-los num lingote de doutrina, podemos lustrar os traços que os in-
dividualizam.
Quando agimos dessa forma, nossa imaginação se expande, e a ressur-
reição adquire os traços bem marcados e as superfícies ásperas da vida real.
Por meio da arte dos quatro evangelistas, tornam-se vívidos a particulari-
dade e os detalhes da história local, à semelhança daquela em que nós
mesmos estamos inseridos.

1
Publicado pela primeira vez na revista Christianity Today, 31 de mar. de 1972.
130 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

I
A frase que chama a atenção na narrativa de Mateus é: “sobreveio um gran-
de terremoto, pois um anjo do Senhor desceu dos céus e, chegando ao se-
pulcro, rolou a pedra da entrada e assentou-se sobre ela” (28:2). Esse é um
detalhe que ninguém mais inclui. O que essa frase nos mostra é que a res-
surreição abala as estruturas da terra. Mateus relata o acontecimento da
ressurreição como algo semelhante à explosão de uma bomba que emite
ondas de energia. O terremoto passa a ser uma imagem usada para repre-
sentar de maneira extraordinária o impacto histórico do Cristo ressurreto
dentre os mortos.
O detalhe desperta-nos para as consequências. Quando ouvimos que
aconteceu um terremoto, queremos saber como afetou a comunidade.
Ficamos curiosos a respeito dos perdidos e das vidas salvas, sobre os atos
de egoísmo e de heroísmo. O detalhe de Mateus a respeito do terremoto
nos mantém interessados no que acontece. À medida que se espalham as
ondas de energia da ressurreição, quais serão os resultados? Como os ho-
mens e as mulheres responderão?
À medida que o impacto de terremoto da ressurreição se move na his-
tória humana, Mateus realça seis respostas: “Os guardas tremeram de medo
e ficaram como mortos” (28:4); as mulheres “saíram depressa do sepul-
cro, amedrontadas e cheias de alegria, e foram correndo anunciá-lo aos
discípulos de Jesus” (v. 8); as mulheres “se aproximaram dele, abraça-
ram-lhe os pés e o adoraram” (v. 9); os anciãos subornaram os soldados e
mandaram que declarassem o seguinte: “Os discípulos dele vieram
durante a noite e furtaram o corpo, enquanto estávamos dormindo” (v. 13);
os soldados “receberam o dinheiro e fizeram como tinham sido instruí-
dos” (v. 15); os Onze, “Quando o viram, o adoraram; mas alguns duvida-
ram” (v. 17).
Vemos aí uma ampla gama de reações que vão desde o terror até a ado-
ração, passando pela mentira, pelo suborno, pelo temor reverente, pela dú-
vida e por uma grande alegria. Nenhuma delas é insignificante. A
ressurreição não produziu a mesma reação em todos os presentes, mas nin-
guém saiu incólume. Ela deixou um impacto profundo em todos ao redor.
O QUARTETO DA RESSURREIÇÃO 131

Mateus dedica quase o mesmo espaço a cada uma dessas respostas. Mas
ressalta uma em relação às demais: a adoração. As mulheres do versículo
9 e os Onze do versículo 17 respondem por meio da adoração. As respos-
tas da mentira e do suborno dos anciãos e dos soldados são intercaladas
entre aquelas duas e formam um contraste que as distingue ainda mais cla-
ramente. A adoração, afirma Mateus, é a resposta mais adequada que se
pode dar à ressurreição.
As palavras de Mateus apoiam sua perspectiva. Os imperativos são pa-
lavras ou frases que exigem uma resposta, e Mateus os usa em abundân-
cia. Quando uma ordem é dirigida a um homem, ele precisa fazer algo,
positiva ou negativamente. A escolha que Mateus faz das palavras mostra
como as ondas de energia da ressurreição se moveram em meio aos
interstícios da resposta humana: “Não tenham medo!” (28:5); “Venham ver
o lugar onde ele jazia” (v. 6); “Vão depressa e digam aos discípulos dele...”
(v. 7); “Não tenham medo” (v. 10); “Vão dizer a meus irmãos” (v. 10);
“Vocês devem declarar o seguinte...” (v. 13); “vão e façam discípulos” (v. 19).
Nenhum acontecimento na história compete com a ressurreição em seu
impacto sobre a vontade humana. Como respondemos a ela será a respos-
ta mais característica e mais significativa que jamais faremos. Com grande
habilidade, Mateus nos leva a enxergar isso, ao construir sua história em
torno do impacto de terremoto que teve a ressurreição de Jesus.

II
O evangelho de Marcos é uma narrativa intensa, como num fogo contínuo,
do que Jesus disse e fez ao dar “sua vida em resgate por muitos” (10:45).
Marcos descarta todas as preliminares (por exemplo, não narra o nasci-
mento de Jesus) e numa viagem apressada e de tirar o fôlego nos envolve
na ação. “Então”, “Logo a seguir”, “Em seguida” são expressões caracterís-
ticas em nossas versões de seu texto. Tomados pela ação, ficamos ávidos
por descobrir qual é o próximo acontecimento.
Marcos conduz esse estilo até o capítulo 16 — seu relato da ressurrei-
ção. Três mulheres vêm ao túmulo e o encontram vazio. Um anjo lhes
informa que Jesus ressuscitou e lhes dá instruções sobre o que devem
132 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

fazer. Marcos então nos presenteia com uma de suas cenas mais dramáti-
cas: “... saíram e fugiram do sepulcro. E não disseram nada a ninguém,
porque estavam amedrontadas” (16:8).
Essa não é bem a resposta que eu esperaria diante da ressurreição. Que-
ro saber o que acontece depois. Como a história vai terminar?
A experiência das mulheres que vêm ao túmulo, tomadas de uma dor
profunda por aquela perda, e esperando agora conduzir as amenidades do
sepultamento, é o material que Marcos utiliza para contar a história da
ressurreição. A devoção simples delas é interrompida por duas surpresas:
a pedra foi retirada do túmulo, e o túmulo está vazio. Naquele estado de
surpresa, elas recebem uma mensagem angélica. A mensagem tem quatro
constatações simples: Jesus ressuscitou; ele não está mais aqui; o túmulo
está vazio; está indo em direção à Galileia. Depois há duas ordens: não fi-
quem surpresas; vão e contem aos discípulos e a Pedro. Por último, há uma
promessa: vocês o verão. Um alicerce factual serve de apoio a uma ordem
dupla que é motivada por uma única promessa. Subjetivamente, a surpre-
sa predomina; objetivamente, a mensagem divina prevalece. A combina-
ção produz a experiência fundamental: “... saíram e fugiram do sepulcro. E
não disseram nada a ninguém, porque estavam amedrontadas”.
Psicologicamente, essa é uma situação que simplesmente precisa ser
resolvida. Há uma necessidade pessoal avassaladora de concluir a história.
Marcos nos arrasta para o centro da ação e deixa que sintamos nós mes-
mos a emoção que acompanha a percepção repentina de que Jesus havia
de fato ressurgido dentre os mortos. É impossível considerar o fato anali-
ticamente ou objetivamente. A história precisa ser concluída. Nossa parti-
cipação é evocada.
Ainda assim, os manuscritos gregos mais antigos param justamente nesse
ponto, no versículo 8. Se Marcos parou ali de caso pensado ou se o final do
manuscrito original se desgastou pelo uso constante e assim simplesmente
se perdeu, ninguém sabe até hoje. O que todo mundo com certeza sabe, no
entanto, é que ninguém, na antiguidade ou em nossos dias, está satisfeito
com o final (ou com a falta de um final). O vácuo precisa ser preenchido.
O QUARTETO DA RESSURREIÇÃO 133

Um final precisa ser fornecido. A história do manuscrito do evangelho de


Marcos mostra reiteradas tentativas de “concluir” a história.
Essa tentativa observável, presente em toda parte, de fornecer um final
para a narrativa marcana da ressurreição mostra como ele contou bem sua
história e como o versículo 8 é fundamental. A ressurreição não se com-
pleta enquanto não se conclui na história pessoal. Quando percebemos que
Cristo ressuscitou, podemos experimentar temor, alegria, dúvida. Mas essas
reações em relação aos fatos, às ordens e à promessa da palavra divina
precisam ser incorporadas numa conclusão pessoal. A ressurreição requer
uma conclusão que somente a participação pessoal pode fornecer.

III
Além da história das mulheres no túmulo vazio na manhã da Páscoa (his-
tória comum aos outros relatos), Lucas conta duas histórias um tanto lon-
gas sobre a aparição do Cristo ressurreto: primeiramente a de dois homens
em Emaús na tarde e no entardecer da Páscoa, e depois a de todos os dis-
cípulos em Jerusalém naquela noite.
Essas duas histórias são veículos para reunir um material que ampliará
nosso entendimento da ressurreição. O relato de Lucas impede que redu-
zamos a ressurreição a um acontecimento isolado, por mais abalador de
estruturas que seja, ou a uma experiência pessoal, por mais intensa que seja.
Ele tece seu significado na malha do que aconteceu antes e do que se segui-
rá. Ele enxerga toda a história até aquele momento conduzindo-se para esse
acontecimento, e toda a história futura dele fluindo.
O método de Lucas é entrelaçar as histórias com referências às Escritu-
ras antigas e ao passado recente. Dois homens em Emaús “conversavam a
respeito de tudo o que havia acontecido” (24:14); quando Jesus os encon-
tra, eles repassam a vida e o ministério de Jesus de Nazaré (v. 19-24); Jesus
oferece uma exposição que relaciona a Escritura (o passado) com a res-
surreição (v. 27); os dois homens reconhecem a relação entre o passado e
a ressurreição (v. 32); encontrando-se com os Onze, Jesus os remete a “tudo
o que a meu respeito está escrito na Lei de Moisés, nos Profetas e nos
134 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Salmos” (v. 44); a ressurreição está enraizada na profecia passada: “Está


escrito que...” (v. 46); os versículos finais (v. 47-53) projetam o aconteci-
mento da ressurreição para o futuro, quando haverá arrependimento, per-
dão de pecados, testemunho, a promessa vindoura de poder, grande alegria
e louvor contínuo.
Lucas narra a história da ressurreição de uma maneira que liga a expe-
riência passada da humanidade à ressurreição. A história humana é uma
única história que tem a ressurreição como seu tema e auge.
O relato de Lucas acerca da ressurreição é o mais extenso dos quatro.
Ele inclui mais material e amplia o relato mais detalhadamente do que os
outros escritores dos evangelhos. Ele quer que nós entendamos a ressur-
reição. Ele desenvolve seu material de uma maneira destinada a ampliar
nossa imaginação, para que ela consiga absorver toda a imensa latitude da
ressurreição. A ressurreição, em outras palavras, é de grande abrangência.
Ele toma os pedaços espalhados da vida histórica, religiosa e cultural da
humanidade e os reagrega.

IV
Não é fácil crer na ressurreição de Jesus. Há muitos trapaceiros no mundo
e muitas fraudes. Como sabemos que a ressurreição não passou de uma
fraude? Afinal de contas, as fraudes religiosas têm sobejado no mundo. A
ressurreição é um tema comum na religião antiga. Que evidências temos
de que a ressurreição de Jesus não foi apenas uma entre muitas?
O relato de João acerca da ressurreição é escrito para fornecer evi-
dências convincentes para lidarmos exatamente com essas perguntas legí-
timas. A história de João tem por objetivo persuadir: “... estes foram escritos
para que vocês creiam que Jesus é o Cristo” (20:31). “Crer”, no vocabulá-
rio de João, é uma união da compreensão intelectual com um compromis-
so de vida. Sua intenção é colocar diante de nós informações capazes de
dirimir dúvidas sinceras e de nos compelir a um compromisso. Ao men-
cionar a ressurreição, João faz todo o esforço possível para realçar a
credibilidade da ressurreição frisando pormenores que mostram sua reali-
dade histórica.
O QUARTETO DA RESSURREIÇÃO 135

Nos versículos 1 a 10, Pedro e João, informados por Maria de que o


túmulo estava vazio, correm para constatar com os próprios olhos. O que
eles veem leva-os a crer. A disposição do lenço e as faixas de linho forne-
cem o tipo de evidência visível que era convincente a esses primeiros ob-
servadores: “Depois o outro discípulo, que chegara primeiro ao sepulcro,
também entrou. Ele viu e creu” (20:8).
Nos versículos 11 a 18, Maria, chorando do lado de fora do túmulo, tem
uma conversa com Jesus. A princípio, ela não reconhece aquele com quem
está falando, mas identifica o Cristo ressurreto quando ele pronuncia seu
nome; ela vira-se e vê sua forma tangível. Observe o que ela diz aos outros:
“Eu vi o Senhor!”.
Nos versículo 19 a 23, os discípulos estão encolhidos de medo na noite
da ressurreição. Jesus aparece a eles. Ele os assegura de sua ressurreição
na verdade mostrando as marcas da crucificação em suas mãos e em seu
lado. “Os discípulos alegraram-se quando viram o Senhor.”
Nos versículos 24 a 29, os discípulos estão outra vez reunidos, desta vez
com Tomé, que não crera no relato feito pelos demais discípulos. Jesus faz
outra aparição, oferecendo a si mesmo de forma tangível: “Coloque o seu
dedo aqui; veja as minhas mãos. Estenda a mão e coloque-a no meu lado...”
(v. 27).
Os sentidos da visão, da audição e do tato são representados nas quatro
histórias que João fornece. Em cada história, as pessoas se moviam de um
estado em que lhes faltava fé para a condição de crerem com base em evi-
dências de primeira mão. As histórias fornecem uma estrutura na qual as
pessoas podem movimentar-se em meio à dúvida e ao ceticismo. Graças a
João, há espaço de sobra na comunidade cristã para as pessoas formula-
rem perguntas e manifestar suas dúvidas.
João não grita conosco, dizendo que temos de crer, não importa em quê.
Ele sabe que a melhor fé inclui uma mente inteligente e perscrutadora. Não
quer que creiamos cegamente; quer que creiamos com base na boa evidência.
Seu evangelho é repleto de “sinais” (talvez quase pudéssemos chamá-los “evi-
dências”) — acontecimentos na vida de Jesus que fornecem dados dignos de
confiança em si mesmos de que ele é o Filho de Deus, o Salvador do mundo.
1
Poesia
capítulo 11

Santa sorte1
Holy Luck

OS AFORTUNADOS POBRES
“Bem-aventurados os pobres em
espírito” THE LUCKY POOR
No inverno a faia, brancas “Blessed are the poor in spirit”
Complexidades indisfarçadas A beech tree in winter, white
Contra o azul do céu e densas
Intricacies unconcealed
Nuvens, carrega em seu vazio
Against sky blue and billowed
A madurez: seiva em prontidão
Clouds, carries in his emptiness
À espera de subir, brotos alertas para em
Ripeness: sap ready to rise
folha
On signal, buds alert to burst
Irromper. E aí passada a estação
To leaf. And then after a season
Estival a camada desfolhada vem lembrar
O viço das promessas cumpridas. Of summer a lean ring to
Vazia outra vez em sábia pobreza remember
Pode os ramos estendidos The lush fulfilled promises.
Para o céu alongar mais um milímetro, Empty again in wise poverty
E seu tronco expandir não mais que um That lets the reaching branches
tanto stretch
Suas raízes a enterrar na firme A millimeter more towards heaven,
Fundação, afortunada por estar agora The bole expand ever so slightly
desfolhada: And push roots into the firm
Decíduo lembrete de que perder é Foundation, lucky to be leafless:
preciso. Deciduous reminder to let it go.

1
Publicado pela primeira vez na revista Theology Today, abr. de 1987. Nota dos editores: a palavra
“sorte” e mesmo “fortuna” (no sentido de sorte) e seus cognatos não são bem aceitas por muitas
pessoas, como afirma Peterson, mas a velha versão inglesa da Bíblia comandada por Wycliffe fazia
menção dos fiéis que tinham “santa sorte”, o que deveria refletir nossa resposta diante das bên-
çãos de Deus. Isso foi antes de as casas lotéricas e os apostadores se apossarem da palavra.
140 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

OS AFORTUNADOS TRISTES
“Bem-aventurados os que
choram”

Repentinas cheias de lágrimas, a


cântaros,
Esculpem cruéis desfiladeiros,
desnudando
Os estratos da vida de há muito
olvidados
Por décadas calmamente depositados:
Beleza das terras de erosão. O
mesmo sol
Que ornamenta a cada dia com as
cores
De arroios e platôs, também mostra
Cada cicatriz e cada corte de
lamento.
O choro deixa limpas as feridas
E as abre para a cura, o que leva
Sempre uma ou duas eras. Não há THE LUCKY SAD
dor “Blessed are those who mourn”
Que seja feia no pretérito. Sob
A Misericórdia cada mágoa é um elo Flash floods of tears, torrents of them,
Fossilizado na grande corrente da Erode cruel canyons, exposing
transformação. Long forgotten strata of life
Sempre busque as orações e as Laid down in the peaceful decades:
desenterre A badlands beauty. The same sun
Para no vale da morte as apresentar. That decorates each day with colors
From arroyos and mesas, also shows
Every old scar and cut of lament.
Weeping washes the wounds clean
And leaves them to heal which always
Takes an age or two. No pain
Is ugly in past tense. Under
The Mercy every hurt is a fossil
Link in the great chain of becoming.
Pick and shovel prayers often
Turn them up in valleys of death.
SANTA SORTE 141

OS AFORTUNADOS MANSOS
“Bem-aventurados os mansos”

Moisés, ora feroz, ora temeroso,


Manso ficou sob a alvura do cúmulo,
Gloriosa opacidade da nubilosa
coluna.
Cada nuvem é mansa, açoitada por
ventos
Muda de forma, sem nunca deixar de
Ser: não bem líquida, nem chega a
ser
Sólida, in medias res.2 Tal como eu.
Rendendo-se ao vento do Espírito
Todos se tornam o que anjos
THE LUCKY MEEK
ministradores
“Blessed are the meek”
Ordenam: sinal, promessa, portento.
Vigorosos em imagem e cor, ah, as Moses, by turns raging and afraid,
cores Was meek under the thunderhead
Dos pigmentos da terra de mistura whiteness,
com o sol The glorious opacity of cloudy pillar.
Formam tons que elevam louvores no Each cloud is meek, buffeted by winds
crepúsculo, It changes shape but never loses
Na alvorada, armam tempestades, Being: not quite liquid, hardly
liberam Solid, in medias res. Like me.
A chuva, filtram o sol em sombras Yielding to the gusting spirit
bem dispostas All become what ministering angels
Medidas pelas intempéries. Apliques Command: sign, promise, portent.
de sol. Vigorous in image and color, oh, colors
Of earth pigments mixed with sun
Make hues that raise praises at dusk,
At dawn, collect storms, release
Rain, filter sun in arranged
And weather measured shadows.
Sunpatches.

2
Expressão latina oriunda de Arte poética, obra de Horácio, que significa literalmente “no meio
dos acontecimentos”. (N. do T.)
142 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

OS AFORTUNADOS FAMINTOS
“Bem-aventurados os que têm
fome e sede de justiça”

Despenada a incredulidade
despencaria
Atravessando todas as camadas das
térmicas
Rajadas como uma pedra; este falcão
de cauda
Vermelha move-se e desliza, sem
pressa
Ainda que faminto, indolentemente
desdenhoso
Das fáceis refeições, aos nacos, de
carniça,
Aguardando antes com perícia a presa
fugidia
THE LUCKY HUNGRY
A ele aprovisionada: um vazio visível
Acima de uma plenitude invisível. “Blessed are those who hunger
O sol colore de cobre a japonesa and thirst after righteousness”
Cauda em leque, esboçando
Unfeathered unbelief would fall
Penas contra o amplo firmamento
Through the layered fullness of
Para o encanto dos meus olhos, e
thermal
abençoa
Updrafts like a rock; this red-tailed
O pássaro de melhor visão com um
Hawk drifts and slides, unhurried
facho
Though hungry, lazily scornful
De luz que uma cascavel aponta
Of easy meals off carrion junk,
Numa morte fadada a se dar à la
Expertly waiting elusive provisioned
Gênesis.
Prey: a visible emptiness
Above an invisible plenitude.
The sun paints the Japanese
Fantail copper, etching
Feathers against the big sky
To my eye’s delight, and blesses
The better-sighted bird with a shaft
Of light that targets a rattler
In a Genesis-destined death.
SANTA SORTE 143

OS AFORTUNADOS
MISERICORDIOSOS
“Bem-aventurados os
misericordiosos”

Um bilhão de anos de ondas em


rebentação,
Crises naufragantes do mar e
tormentas como em Jonas
Transformaram o granito rígido,
Implacável nesta praia analgésica:
Banhada pelo ritmo pulsante das
vagas da misericórdia,
Misericordioso alívio do urbano
Concreto. Descondenado, descalço,
Enterro os tornozelos nas areias de
Assateague,3
Desperto para os ricos traçados da
compaixão
THE LUCKY MERCIFUL
Nos travesseiros de dunas “Blessed are the merciful”
estampados.
A billion years of pummeling surf,
Maçaricos-das-rochas, gaivotas em
Shipwrecking seachanges and Jonah
pescas rasantes,
storms
Aos bandos e em precisa formação
Made ungiving, unforgiving granite
devotamente
Into this analgesic beach:
Observam meu sal e santa solitude,
Washed by sea-swell rhythms of
Então se alimentam e voam no curso
mercy,
da maré
Merciful relief from city
Baixa e alta, oscilante, imprecisa
Concrete. Uncondemned, discalceate,
Fronteira a separar o cuidado da
I’m ankle deep in Assateague sands,
morte.
Awake to rich designs of compassion
Patterned in the pillowing dunes.
Sandpipers and gulls in skittering,
Precise formation devoutly attend
My salt and holy solitude,
Then feed and fly along the moving,
Imprecise ebb- and rip-tide
Border dividing care from death.
144 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

OS AFORTUNADOS PUROS
“Bem-aventurados os puros de
coração”

Região austera, esta, erodida


Pelas acerbas avalanchas da
primavera.
Os declives de tálus e os xistos
limosos
Do Appekunny formam a campina
onde
helônias da região serrana a luz
extraem
De liquens, pedras e pequenos lagos
de gelo,
Transmutando do sol os raios letais
em
Alimento de ursos-pardos, bebida de
abelhas —
Criaturas de coração puro vivendo THE LUCKY PURE
Bem-aventuradas sob o brilho da face
“Blessed are the pure in heart”
de Deus.
Austere country, this, scrubbed
Mas, como nós, os para lá de caídos,
By spring’s ravaging avalanche.
Tampouco podem contemplar a Face
Talus slope and Appekunny
E viver. Cada flor é um seio e
Mudstone make a meadow where
contém
High-country beargrass gathers light
A visão final para todos os recém-
From lichen, rock, and icy tarn,
nascidos
Changing sun’s lethal rays
Cegos e tateantes: apalpamos nosso
To food for grizzlies, drink for bees —
caminho
Heart-pure creatures living blessed
Em meio a esses esplendores rumo à
Under the shining of God’s face.
glória.
Yet, like us the far-fallen,
Neither can they look on the face
And live. Every blossom’s a breast
Holding eventual sight for all blind
and
Groping newborn: we touch our way
Through these splendors to the glory.
SANTA SORTE 145

OS AFORTUNADOS
PACIFICADORES
“Bem-aventurados os
pacificadores”

Gigantescos punhos de nuvem


agridem
O diafragma azul nu e exposto do
firmamento:
De dor se encurva a abóbada celeste.
Relâmpagos rutilam e bramam
trovões;
Brigam os filhos da mãe natureza.
E depois, tão repentino como ao
começar,
Acaba. Os herdeiros de Noé, as
percepções
Purificadas, observam o mundo
THE LUCKY PEACEMAKERS
desarmado
Em paz e com o perfume do ozônio. “Blessed are the peacemakers”
Ainda em água.
Huge cloud fists assault
Que mudanças barométricas
The blue exposed bare midriff of sky:
Reorganizaram essas ferocidades
The firmament doubles up in pain.
Num arco-íris pulsante de paz
Lightnings rip and thunders shout;
Como sinal? Meu inimigo oferece a
Mother nature’s children quarrel.
outra
And then, as suddenly as it began,
Face; já eu baixo a guarda. Como
It’s over. Noah’s heirs, perceptions
espelho
Cleansed, look out on a disarmed
Um lago reflete as cores filtradas;
world
Cantam tranquilos os pinheiros
At ease and ozone fragrant. Still
agitados pela brisa.
waters.
What barometric shift
Rearranged these ferocities
Into a peace-pulsating rainbow
Sign? My enemy turns his other
Cheek; I drop my guard. A mirror
Lake reflects the filtered colors;
Breeze-stirred pine trees quietly sing.
146 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

OS AFORTUNADOS
PERSEGUIDOS
“Bem-aventurados os
perseguidos”

Águas hostis logram um feito


Amistoso: maldições, pedras
arremessadas
Com a queda-d’água, alisam arestas
Ásperas; córrego em espumante
precipitação
De blasfêmias desencadeadas no
ódio,
Depois tomado pelo sol, pulveriza
Arcos-íris por todo o rio
Youghiogheny. THE LUCKY PERSECUTED
Acometida brutalmente pelo ataque
“Blessed are those who are
impessoal
Do rio, a terra é aprofundada até o persecuted”
leito rochoso. Unfriendly waters do a friendly
As sábias passividades são aprendidas Thing: curses, cataract-hurled
Em depressões esporádicas, íngremes, Stones, make the rough places
tranquilas Smooth; a rushing whitewater stream
Que domam as selvagens águas e as Of blasphemies hate-launched,
acalmam, Then caught by the sun, sprays
Prendendo-as sob o verde das cicutas rainbow
Onde pássaros e cervos se banham e Arcs across the Youghiogeny.
bebem Savaged by the river’s impersonal
Em paz — a dádiva da perseguição: Attack the land is deepened to
O ditoso e a duras penas conquistado bedrock.
“deixa-estar”. Wise passivities are learned
In quiet, craggy, occasional pools
That chasten the wild waters to
stillness,
And hold them under hemlock green
For birds and deer to bathe and drink
In peace — persecution’s gift:
The hard-won, blessed letting be.
1
Leituras pastorais
capítulo 12

A poesia de Patmos: João como


pastor, poeta e teólogo1

As últimas e mais famosas palavras proferidas ou escritas constituem o


último livro da Bíblia: o Apocalipse. Não há quem lhe chegue aos pés. “Mais
famosas”, porém, não significa “mais admiradas”, nem “mais bem com-
preendidas”. Muitos, confusos com os dragões sangrentos e com o
burburinho do dia do Juízo Final, ficam simplesmente aturdidos. Outros,
associando tudo isso às banalidades e inanidades encontradiças no comum
da vida, lançam-lhes um olhar desdenhoso.
Ainda, sempre houve os que, talvez jamais constituindo maioria, para-
ram para examinar e ler por curiosidade, permanecendo, porém, para en-
tender e admirar, porque descobriram aqui a verdade, apresentada de forma
rica, convincente. Encontro-me entre esses. As palavras, para nós, são fa-
mosas, não por serem sensacionalmente excêntricas, nem importunamente
enigmáticas. São famosas porque são tão satisfatoriamente verdadeiras,
apoiadas por séculos de experiência madura e uso testado e aprovado. As
famosas últimas palavras de Apocalipse são famosas porque encerram e
resumem de modo memorável séculos de introspecção, conselho e expe-
riência bíblicos nas pessoas a quem Deus escolheu se revelar, e que por sua
vez escolheram viver por fé em Deus.2
O poder que tem o Apocalipse de atrair a atenção e, depois, para aque-
les que ficam atentos, de tornar coesas a realidade de Deus e a vida de fé,

1
Publicado pela primeira vez no periódico Journal for Preachers, Pentecoste 1987.
2
Northrop FRYE. The Great Code. New York: Harcourt Brace, Jovanovich, 1982, p. 199. [Pu-
blicado no Brasil em 2004 pela Boitempo, sob o título O código dos códigos: a Bíblia e a lite-
ratura, traduzido por Flávio Aguiar.]
150 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

desenvolve-se a partir de uma convergência extraordinária dos ministérios


de teólogo, poeta e pastor na pessoa de seu autor, João.3 Os três ministé-
rios são entrelaçados como que num só trançado em suas palavras
introdutórias: “Eu, João, irmão e companheiro de vocês no sofrimento, no
Reino e na perseverança em Jesus, estava na ilha de Patmos por causa da
palavra de Deus e do testemunho de Jesus. No dia do Senhor achei-me no
Espírito e ouvi por trás de mim uma voz forte, como de trombeta, que di-
zia: “Escreva num livro o que você vê e envie a estas sete igrejas...”. Voltei-
me para ver quem falava comigo” (1:9-12).
João estava em Patmos, uma ilha prisional, “por causa da palavra de Deus
e do testemunho de Jesus”. A palavra (logos) de Deus (Theos) o colocou
no lugar onde estava; também fez dele quem ele era. Ele não se identificou
por suas circunstâncias como prisioneiro, mas por sua vocação como teó-
logo. Ele não analisou as políticas romanas para explicar suas adversida-
des, mas exercitava sua inteligência na palavra e no testemunho de Deus e
de Jesus: a tarefa do teólogo.
A palavra e o testemunho que moldavam sua vida foram então registra-
dos seguindo ordens e sob inspiração. “No Espírito”, ele recebe a ordem:
“Escreva num livro o que você vê”. O resultado é um livro que recria em
nós, seus leitores, aquilo que ele mesmo experimentou: a obra do poeta.
E ele o fez de forma consciente, na companhia tanto de cristãos quanto
de Cristo, aos quais ele conhecia — “irmão e companheiro de vocês no
sofrimento, no Reino e na perseverança em Jesus”. Tudo o que havia para
compartilhar — as agruras, as gloriosas bênçãos, o discipulado do dia a dia
— ele compartilhava: a vida de um pastor.
O teólogo leva Deus a sério como sujeito e não como objeto, e toma
para si como um projeto para a vida toda a missão de pensar e falar sobre
Deus a fim de desenvolver conhecimento e compreensão a respeito de Deus

3
“João” pode ser uma referência ao apóstolo, ao presbítero de Éfeso ou a outro líder que não esses,
desconhecido da igreja do final do século V. Há defensores abalizados para cada uma dessas pos-
sibilidades. É, contudo, uma questão de somenos importância, segundo me consta, para o fim de
chegarmos a uma interpretação exata do livro. Não obstante, sou de opinião, com toda a certe-
za, de que o João que escreveu Apocalipse também escreveu o Evangelho e as Cartas.
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 151

em seu ser e trabalho. O poeta leva as palavras a sério como imagens que
relacionam o visível e o invisível, e torna-se um curador que garante que se-
jam usadas de modo primoroso e preciso. O pastor leva as pessoas de car-
ne e osso a sério como filhos de Deus e fielmente as ouve e fala com elas,
convicto de que a vida de fé delas em Deus é o centro em torno do qual
tudo o mais passa a ser periférico. Nem sempre os três ministérios conver-
gem numa única pessoa; quando isso acontece, os resultados são extraor-
dinários. É porque João integrava de modo tão completo o trabalho de
teólogo, poeta e pastor, que temos o Apocalipse, esse documento concebi-
do de modo tão genial e de utilidade inesgotável.

JOÃO, O TEÓLOGO
Um escriba do quarto século, incumbido da tarefa de copiar o Apocalipse,
escreveu o título: “Revelação de João” e depois, num momento de garatuja
inspirada, rabiscou na margem: tou theologou, “o Teólogo”. O copista se-
guinte, impressionado com a propriedade da anotação, transferiu as duas
palavras da margem para o centro da página. Desde esse momento, pas-
sou a ser conhecido como João, o Teólogo.
João é um teólogo cuja mente está, por inteiro, impregnada de pensa-
mentos acerca de Deus, com todo o seu ser aturdido por uma visão de Deus.
A Palavra de Deus, que cria o mundo e projeta a salvação, é ouvida, ponde-
rada e expressa. Ele está inebriado com Deus, é possuído por Deus, articu-
lado em Deus. Insiste em mostrar que Deus é mais que um Desejo
indistinto, e mais que uma maldição (ou bênção) monossilábica, mas ca-
paz do logos, ou seja, do discurso inteligente. João é pleno de exclamações
em relação a Deus, simplesmente esmagado diante da experiência de Deus,
mas a permear tudo isso se vê o logos: Deus revelado é Deus conhecido.
Não conhecido de modo tão absolutamente pleno, que seja previsível. Não
conhecido de modo tão total, que nada mais reste para conhecer, de modo
que agora possamos passar para o assunto seguinte. Ainda assim, ele é
conhecido, e não desconhecido; racional, e não irracional; ordeiro, e não
desordeiro; hierárquico, e não anárquico.
De tempos em tempos, é de grande importância que os cristãos, aque-
les que creem, tenham uma pessoa razoável, sensata, madura que se
152 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

posicione no meio deles e diga “Deus é…”, e depois conclua a frase de for-
ma inteligente. Há tendências dentro de nós, bem como forças externas,
que inexoravelmente reduzem Deus a uma lista de explicações daquelas
que a gente vai ticando, ou a um manual de preceitos morais, ou a um sis-
tema econômico, ou a uma vantagem política, ou a um cruzeiro. Deus é
reduzido ao que pode ser medido, usado, pesado, compilado, controlado
ou sentido. Enquanto aceitamos essas explicações reducionistas, nossa vida
fica entediada, deprimida ou medíocre. Vivemos tolhidos como sementes
de carvalho num viveiro de plantas. Mas o carvalho precisa do solo, do sol,
da chuva e do vento. A vida humana precisa de Deus. O teólogo oferece sua
mente com o objetivo de dizer “Deus” de tal maneira que Deus não é reduzi-
do, nem empacotado, nem canalizado, mas conhecido, contemplado e ado-
rado, com a consequência de que nossa vida não fica restrita ao que
podemos explicar, mas exaltada por aquilo que adoramos. São assustado-
ras as dificuldades desse tipo de pensamento e declaração. O teólogo jamais
tem condições de apresentar um produto acabado. “Teologia sistemática” é
uma contradição de termos. Sempre há extremidades soltas. Mas mesmo as
migalhas do discurso ao redor de uma mesa dessas são mais satisfatórias do
que todos os pratos requintados dos assuntos de somenos importância,
numa refeição completa, que vai desde a entrada até a sobremesa.
João é um teólogo de um tipo particularmente atraente: todos os seus
pensamentos sobre Deus aconteceram sob fogo: “[eu] estava na ilha de
Patmos”, uma ilha prisional. Era um homem que pensava sobre seus pés,
correndo, ou sobre seus joelhos, orando, as posturas características de
nossos melhores teólogos. Houve épocas na história em que os teólogos
tinham de habitar em torres de marfim e se dedicar a escrever livros im-
penetráveis e ponderosos. Mas os teólogos mais importantes pensaram e escre-
veram sobre Deus em meio ao mundo em que viviam, no calor da ação:
Paulo, ditando cartas com urgência, aprisionado em sua cela; Atanásio,
contra mundum, perseguido por cinco vezes e exilado por três imperado-
res diferentes; Agostinho, pastoreando pessoas que experimentavam a caó-
tica ruptura entre a ordem e a civitas romana; Tomás, usando a mente para
combater erros e heresias que, se incontestados, teriam transformado a
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 153

Europa numa selva espiritual e mental; Calvino, infatigável no desenvolvi-


mento de uma comunidade de Deus a partir de uma turba revolucionária
de Genebra; Barth, arbitrando disputas trabalhistas e pregando a prisio-
neiros; Bonhoeffer, tocando uma existência fugitiva na Alemanha nazista;
e João, exilado na fortaleza da prisão de Patmos, enquanto seus amigos em
Cristo eram sitiados pela máquina horrenda de um ataque pagão: theologos.
A tarefa desses teólogos é demonstrar uma ordem presente no evan-
gelho em meio ao caos da maldade, e assim organizar os elementos da
experiência e da razão, de modo que sejam percebidos proporcional e
coerentemente: pecado, derrota, desânimo, oração, sofrimento, persegui-
ção, louvor e política são dispostos em relação às realidades de Deus e
Cristo, santidade e cura, céu e inferno, vitória e juízo, começo e fim. A
grande conquista deles é que a comunidade de pessoas que vivem pela fé
em Cristo continua a viver com uma esperança arrazoada e num amor in-
teligente.
A comunidade cristã precisa de teólogos que nos façam pensar sobre
Deus, e não apenas fazer conjecturas fortuitas. Nos níveis mais profundos
de nosso viver, exigimos um Deus a quem possamos adorar com toda a
nossa mente, com todo o nosso coração e com toda a nossa força. Nunca
podemos ser desmamados do gosto pela eternidade por uma genética se-
cularizante. Nossa existência origina-se em Deus e destina-se a Deus. João
acha-se na linha de frente do grande regimento de teólogos que conven-
cem, por seu pensamento disciplinado e vigoroso, de que Theos e logos
pertencem um ao outro; que vivemos numa criação, e não num hospício.

JOÃO, O POETA
O resultado da obra teológica de João é um poema: “o único grande poe-
ma que a primeira era cristã produziu”.4 Se Apocalipse não for lido como
poema, é simplesmente incompreensível. A incapacidade (ou recusa) de
lidar com o poeta João explica a maior parte das leituras oblíquas, das in-
terpretações equivocadas e dos abusos em relação ao livro.

4
Austin FARRER. A Rebirth of Images. Westminster: Dacre Press, 1949, p. 6.
154 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

O poeta usa palavras, em primeiro lugar, não para explicar algo, e não
para descrever algo, mas para criar algo. Poeta (poetes) significa “criador”.
Poesia não é a linguagem da explicação objetiva, mas a linguagem da ima-
ginação. Ela traça um quadro da realidade de tal maneira que nos convida
a tomar parte dela. Depois de lermos um poema, não saímos com mais
informações, mas ganhamos mais experiência. Não é “um exame dos acon-
tecimentos, mas uma imersão no que está acontecendo”.5 Se Apocalipse
foi escrito por um teólogo que é também poeta, não podemos lê-lo como se
fosse um almanaque para descobrir quando tudo vai acontecer, ou como
uma crônica de tudo o que já se passou.
É mais do que condizente que um poeta tenha a última palavra na Bí-
blia. Quando chegamos a esse último livro, já temos uma revelação com-
pleta de Deus diante de nós. Tudo o que se relaciona com a nossa salvação,
com as acompanhantes instruções de sobre como levar uma vida de fé, acha-
se ali de forma plenamente desenvolvida. Não há nenhum perigo de ser-
mos mal-informados. Mas há o perigo de que, por nos familiarizarmos ou
nos cansarmos demais, deixarmos de prestar atenção aos esplendores que
nos rodeiam em Moisés, Isaías, Ezequiel, Zacarias, Marcos e Paulo. João
toma as palavras já conhecidas e, organizando-as em ritmos inesperados,
desperta-nos para que vejamos “a revelação de Jesus Cristo” por inteiro,
como que pela primeira vez.
Há aqueles que, quando o assunto é Deus, ficam extremamente caute-
losos, ressalvando cada declaração e definindo cada termo. Esforçam-se
por afirmar nada mais do que o que possa ser corroborado pela lógica. Não
querem que os considerem culpados de afirmar disparates. Outros ainda,
quando o assunto é Deus, sabendo quão facilmente nos desvirtuamos para
fantasias falsamente piedosas, tornam-se excessivamente práticos. Trans-
formam cada verdade sobre Deus num preceito moral. Mas os poetas são
profusos e ousados, rejeitando tanto a cautela do filósofo religioso quanto
o zelo do moralista ético. João é um poeta, não usando palavras para nos
falar sobre Deus, mas para intensificar nosso relacionamento com Deus.

5
Denise LEVERTOV. The Poet in the World. New York: New Directions, 1973, p. 239.
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 155

Não está buscando levar-nos a pensar de modo mais preciso, nem instruir-
nos quanto a um comportamento melhor, mas levar-nos a crer mais sem
reservas, comportar-nos de modo mais divertido — a atitude sem reservas
da fé e a atitude descontraída da esperança que têm as crianças que en-
tram no reino de Deus. Vai tirar-nos de nossa letargia, levar-nos a viver de
modo alerta, abrir nossos olhos para o arbusto em chamas e para as carrua-
gens de fogo, abrir nossos ouvidos para as promessas inabaláveis e para as
ordens rígidas de Cristo, expulsar o tédio do evangelho, levantar nossa
cabeça, fazer crescer nosso coração.
Denise Levertov escreveu: “Como quase toda experiência passa rápido
demais, superficialmente demais para nossa plena compreensão, o que mais
precisamos não é prová-la de novo (com a mesma superficialidade), mas
de fato provar pela primeira vez a identidade autônoma e livre de sua es-
sência. Meus dicionários de 1865 definem translação como o ‘ato de ser
transportado de um lugar para outro; [ato de] ser levado aos céus sem
morrer’. Precisamos de arte que nos translade, que nos transporte aos céus
dessa realidade mais profunda que, de outro modo, ‘podemos morrer sem
jamais ter conhecido’; que nos transmite para lá, não no sentido de trazer
a informação ao receptor, mas de pôr o receptor no lugar do acontecimen-
to — vivo”.6 Esse é o trabalho de João: ele toma os velhos elementos do
cotidiano da criação e da salvação, do Pai, do Filho e do Espírito, do mun-
do, da carne e do Diabo, com os quais já nos achamos tão familiarizados,
e nos força a examiná-los de novo e a experimentar outra vez (ou talvez
pela primeira vez) sua realidade.
Não muito antes de sua morte em 1973, W. H. Auden declarou o que é
que se exige de um poema: “... duas coisas: primeiramente, deve ser um ob-
jeto verbal bem construído que faça jus ao idioma em que é escrito; em se-
gundo lugar, precisa dizer algo significativo sobre uma realidade comum a
todos nós, mas percebida de uma perspectiva singular”.7 O poema teológico

6
LEVERTOV, The Poet in the World, cit., p. 94.
7
The Poems of Joseph Brodsky. The New York Review of Books, 20, n.o 5, vol. 10, 5 de abr. de
1973.
156 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

de João satisfaz ambas as exigências. É bem construído: sua estrutura com-


plexa é cuidadosamente formulada e ordena o maravilhamento e a admi-
ração de todos que o estudam. E toma a “realidade comum a todos nós”, o
evangelho de Jesus Cristo, e o apresenta numa “perspectiva singular” a
respeito do fim, a conclusão e consumação de todos os detalhes e partes
da salvação.
João entoa seus cânticos, representa suas visões, organiza os sons e os
significados de suas palavras rítmica e artisticamente. De modo inespera-
do, ele dispõe as imagens uma ao lado da outra, e vemos e ouvimos o que
estava lá o tempo todo… bastava apenas ter escutado de fato, olhado de
fato. Ele acorda nossa mente, desperta nossos sentimentos, envolve nos-
sos sentidos.

JOÃO, O PASTOR
A paixão de João por pensar e falar sobre Deus e seu talento para subme-
ter-nos ao poder da linguagem de modo que as imagens sejam renascidas
em nós, conectando-nos a uma realidade diferente de nós e maior que nós,
ou seja, sua teologia e sua poesia, são praticados num contexto específico:
a comunidade de pessoas que vivem pela fé em Deus. Aquilo que ele fala
e a maneira em que ele fala se dão entre pessoas que ousam viver pelos
grandes elementos invisíveis da graça, que aceitam o perdão, que acredi-
tam nas promessas, que oram. Essas pessoas, diariamente, perigosamente,
decidem viver pela fé, e não por obras; com esperança, e não no desespe-
ro; pelo amor, e não pelo ódio. E diariamente são tentadas a desistir. João
é o pastor dessas pessoas, ou, como ele mesmo diz, “irmão e companheiro
de vocês...”.
As pessoas que vivem pela fé têm um senso particularmente aguçado
de viver “no meio-tempo”. Cremos que Deus está no começo de todas as
coisas, e cremos que Deus está na conclusão do todo da vida — no epigrama
impressionante de João: “o Alfa e o Ômega” (1:8). É comum entre nós supor
que o começo foi bom (“E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia
ficado muito bom”). É consenso entre nós que a conclusão será boa (“En-
tão vi novos céus e nova terra”). Pareceria uma garantia de que tudo que
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 157

estivesse entre o bom começo e o bom fim também será bom. Mas as coi-
sas acabam não saindo dessa maneira. Ou ao menos não da maneira que
esperamos. Isso sempre nos chega como uma surpresa. Esperamos uma
bondade ininterrupta, e ela é interrompida: sou rejeitado por um pai, coa-
gido por um governo, divorciado por um cônjuge, discriminado por uma
sociedade, ferido pela negligência alheia. Tudo isso numa vida que em sua
criação era muito boa e que em sua conclusão será consumada de acordo
com o projeto de Deus. Entre o começo crido, mas não lembrado, e o fim
esperado, mas inimaginável, há decepções, contradições, absurdos inexpli-
cáveis, paradoxos desconcertantes — cada um deles o inverso do que se
esperava.
O pastor é a pessoa que se especializa em acompanhar pessoas de fé que
vivem “no meio-tempo”, enfrentando os detalhes pouco belos, as rotinas
sem sentido, a maldade zombeteira, e se especializa em a todo tempo in-
sistir pertinazmente em afirmar que esse meio-tempo inexplicável e desa-
gradável está ligado a um começo esplêndido e a um fim glorioso. O teste
acerbo de Lutero para o pastor cristão era: “Ele sabe da morte e do Diabo?
Ou será que para ele é tudo doçura e luz?”.8
Quando lemos um romance, temos uma experiência análoga. Começa-
mos o primeiro capítulo sabendo que há um último capítulo. Uma das coisas
satisfatórias de simplesmente pegar um livro é o conhecimento seguro de
que acabará. Enquanto lemos, ficamos muitas vezes aturdidos, às vezes em
suspense, geralmente equivocados em nossas expectativas, não raro en-
ganados em nossa avaliação de uma personagem. Mas, quando não com-
preendemos, nem concordamos, nem nos sentimos satisfeitos, normalmente
não desistimos. Pressupomos a existência de significado, de nexo e de esti-
lo mesmo quando não os experimentamos. O último capítulo, estamos
seguros, demonstrará o significado que percorreu todo o romance. Acre-
ditamos que a história terminará satisfatoriamente, e não será inter-
rompida de modo arbitrário.

8
Cit. Norman O. BROWN. Life Against Death. Middletown, CT: Wesleyan University Press,
1959, p. 209.
158 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

É da vocação pastoral de João reforçar esse senso de nexo em meio ao


caos do primeiro século. Na confusão que se agitava e crescia por causa da
tensão entre bem e mal, bênção e maldição, descanso e conflito, João dis-
cerne padrão e estilo. Ele ouve ritmos. Descobre organização e proporção.
Comunica um “senso do fim”9 irresistível. Estamos nos encaminhando não
meramente para um término, mas para um alvo, um fim que é intenciona-
do e cumprido. João explicita esse senso do fim de tal maneira que as pes-
soas que vivem no meio-tempo adquirem uma convicção interior de que
significam algo bom em Deus.
João não está preocupado com o céu e com o inferno como coisas em
si. Não tem nenhum interesse em juízo e bênção se dissociados das pes-
soas às quais ele pastoreia. Ele não especula nem teoriza. Cada palavra,
cada número, cada visão, cada canção passa a ser imediatamente utili-
zada por aquelas pessoas das sete pequenas congregações das quais ele é
pastor. Ele está com essas pessoas nas experiências da adoração e da apos-
tasia, do martírio e do testemunho, do amor e da vingança, e traça as
conexões que garantem a coesão entre o começo e o fim. Essas pessoas,
servidas por um pastor assim, desenvolvem uma confiança resoluta de
que estão incluídas nos caminhos de Deus e são capazes, portanto, de per-
severar com significado, mesmo quando não conseguem enxergar esse sig-
nificado.
É de consenso que o Apocalipse está relacionado à escatologia, ou seja,
às “últimas coisas”. O que se deixa de perceber normalmente é que toda
escatologia é utilizada de modo imediato com objetivos pastorais. A
escatologia é a mais pastoral de todas as perspectivas teológicas, mostran-
do como o fim se impõe sobre o presente de tal maneira que a verdade do
evangelho é confirmada na vida vivida “no meio-tempo”. Mostra-nos que
os crentes não se acham “em pleno meio-dia da vida, mas no alvorecer de

9
A expressão é extraída do título de um estudo de Frank Kernode que aborda os exemplos
modernos da literatura apocalíptica e versa sobre as provas que eles apresentam da necessida-
de humana de viver rumo a uma conclusão intencionada, e não simplesmente de forma aleató-
ria. (The Sense of an Ending. New York: Oxford University Press, 1967.)
A POESIA DE PATMOS: JOÃO COMO PASTOR, POETA E TEÓLOGO 159

um novo dia, no ponto em que a noite e o dia, os acontecimentos presentes


e as coisas por vir, lutam uns com os outros”.10
Apocalipse está repleto de significado — há camadas e mais camadas
de verdade aqui para serem exploradas como numa mina. Há uma
multiplicidade de significados em quase cada imagem utilizada por João.
Há algo do aspecto multifacetado da natureza selvagem nesse “poema ex-
traordinário e vividamente concebido, que incorpora e transmite todo o
universo da fé daqueles dias”.11 Uma vez que todas as pessoas e todas as
gerações só podem ter por certo que dominarão apenas uma parte de sua
complexa verdade, é importante que os leitores de João já de saída culti-
vem o respeito entre si, para que as diferenças ou até divergências nas des-
cobertas não se transformem em antagonismos dogmáticos. Um bom ponto
de partida é respeitar o próprio João, honrando os interesses fundamen-
tais que discernimos em sua vida e que se manifestam em Apocalipse: que
seu assunto é Deus (não esoterismos criptográficos), e que seu contexto é
pastoral (não um entretenimento alarmista). Quando aceitamos João nos
moldes desses ministérios de teólogo, poeta e pastor, podemos estar enga-
nados quanto a detalhes específicos e ainda estar corretos na totalidade de
como reagimos diante de sua obra. Os cristãos que honram essas condi-
ções realçarão aspectos diferentes da verdade e descobrirão surpresas não
previstas por leitores anteriores, sem, porém, deixar de fazer parte, inter-
pretando e reagindo, da comunidade daqueles que, em fé, leem para pode-
rem correr.

10
MOLTMANN. The Theology of Hope. London: SCM Press, 1967. [Publicado no Brasil em 2005
pela Loyola, sob o título Teologia da esperança: estudo sobre os fundamentos e as consequências de
uma escatologia cristã, traduzido do alemão por Helmuth Alfredo Simon, rev. Nélio Schneider.]
11
Austin FARRER, A Rebirth of Images, cit., p. 6.
capítulo 13

Mestres da imaginação1

Treze crianças de 4 anos de idade, numa manhã de quinta-feira, no final do


mês de fevereiro, sentaram-se sobre os degraus atapetados que davam para o
santuário da igreja. Sentei-me com elas, trazendo em minhas mãos, em
forma de concha, um ninho de passarinho da última estação. Falamos sobre
como os pássaros constroem seus ninhos e sobre a primavera, que estava prestes
a chegar para nós. As crianças ficaram totalmente absortas.
Amo fazer essas coisas, encontrar-me com essas crianças, contar-lhes
histórias, entoar canções com elas, dizer-lhes que Deus as ama, orar com
elas. E o faço muitas vezes. Elas fazem parte da educação infantil na escola
de nossa igreja, e as professoras as trazem ao prédio da igreja a cada duas
semanas para esse encontro comigo. São tão cheias de vida, tão infindável
a capacidade que têm de se maravilharem, tão ágil e solta a imaginação.
O inverno estava indo embora e chegava a primavera, se bem que ainda
não tivesse chegado completamente. Mas já se viam os sinais. Era sobre os
sinais que eu estava falando. A começar pelo ninho de passarinho. Era vi-
sivelmente entrelaçado com folhas a palhas, cinzento e cheio de pequenas
impurezas, mas, ao examinarmos, enxergávamos o invisível: os pássaros
canoros que seguiam para o Norte, deixando os lugares agora invernais da
América do Sul, com ovos no ninho em tons pastéis e salpicados. Conta-
mos os pássaros que voam no céu da Flórida, da Carolina do Norte, da
Virgínia. Olhamos por cima dos muros da igreja e vimos o chão quente.
Olhamos para baixo da superfície e vimos as minhocas dando cambalho-
tas. Começamos a ver brotos de cor irromper do solo: o açafrão, a tulipa e

1
Publicado pela primeira vez no periódico Eternity, jan. de 1989.
162 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

o jacinto. Os brotos nas árvores e nos arbustos estavam plenos e prestes a


se abrir em flor, e nós lembrávamos, antevíamos e contávamos as cores.
Nunca me habituo a essas primaveras de Maryland, e toda vez sou de novo
surpreendido. Cresci ao norte do Estado de Montana, onde as árvores têm
a mesma cor todo ano, e a primavera é principalmente barro. Lá em
Maryland, a cor exuberante em florescência do corniso e da forsítia, da olaia
e da sorveira me pegava despreparado. Mas esse ano eu estava me preparan-
do e às crianças para todos os gloriosos presentes que iam se abrir sobre nós
dentro de uma semana e pouco. Estávamos olhando para os ninhos vazios
dos pássaros e vendo as cores, ouvindo as canções, cheirando os botões.
Há momentos nesse tipo de trabalho em que você sabe que está acer-
tando. Esse foi um desses momentos. O rosto das crianças estava totalmente
concentrado. Quando menos esperávamos, estávamos dentro daquela via-
gem no tempo, e assim experimentávamos todas as maravilhosas sensa-
ções da primavera de Maryland.
Elas não estavam mais em busca de ninhos de passarinhos, mas vendo
pássaros migratórios e filhotinhos saindo da casca do ovo, árvores cheias
de flores e botões cobertos de orvalho. Então, de repente, no centro desse
momento de elevada sacralidade, Bruce larga a pergunta: “Por que você não
tem nenhum fio de cabelo na cabeça?”.
Por que o Bruce não enxergava aquilo que o restante de nós estava ven-
do — a exuberância, a fecundidade? Por que ele não tinha conseguido fa-
zer a transição para “a visão do invisível” na qual estávamos tão absortos?
Tudo que ele via era a parte visível de calvície em minha cabeça, um fato
um tanto desinteressante, enquanto o restante de nós estava visualizando
verdades em múltiplas dimensões. Com somente 4 anos de idade, a imagi-
nação de Bruce já estava embotada.

O VISÍVEL E O INVISÍVEL
Imaginação é a capacidade de estabelecer conexões entre o visível e o
invisível, entre o céu e a terra, entre o presente e o passado, entre o presen-
te e o futuro. Para os cristãos, cujo maior investimento está no invisível, a
imaginação é indispensável, pois é somente por meio da imaginação que
podemos ver a realidade por inteiro, contextualizada. “Aquilo que a imagina-
MESTRES DA IMAGINAÇÃO 163

ção faz com a realidade é a realidade pela qual vivemos”, escreveu David Igna-
tow em Open Between Us [Aberto entre nós]2.
Quando olho para uma árvore, a maior parte do que “vejo” na verdade
eu não vejo. Vejo um sistema de raízes por baixo da superfície, lançando
gavinhas pelo solo fértil, sugando nutrientes ali encontrados. Vejo a luz
despejando energia nas folhas. Vejo o fruto que aparecerá em alguns me-
ses. Olho, e olho com atenção, e vejo os ramos desfolhados enfrentando a
duras penas a neve e os ventos do próximo inverno. Vejo tudo isso, e vejo
mesmo — não estou inventando. Mas não posso fotografar. Vejo por meio
da imaginação. Se a minha imaginação estiver tolhida ou ficar inativa, so-
mente verei aquilo que posso utilizar, ou algo que esteja em meu caminho.
O poeta Czeslaw Milosz, Prêmio Nobel, com uma paixão por Cristo apoia-
da e aprofundada por sua imaginação, afirmou em entrevista à revista The New
York Review of Books em 27 de fevereiro de 1986 que a mente dos ameri-
canos foi perigosamente diluída pelo racionalismo ou pelas explicações. Ele
está convencido de que o nosso processo educacional deficiente no aspecto
da imaginação nos deixou com uma imagem ingênua do mundo. Nessa visão
ingênua, o universo tem espaço e tempo — e nada mais. Nenhum valor.
Nenhum Deus. “Funcionalmente falando, os homens e as mulheres não são
tão diferentes de um vírus ou de uma bactéria, um cisco no universo.”
Milosz vê na imaginação, e sobretudo na imaginação religiosa, que é a
capacidade desenvolvida de estar em atitude de reverência diante de tudo
o que se nos depara, a força modeladora do mundo em que realmente vi-
vemos. “A imaginação”, disse ele, “pode moldar o mundo numa pátria, bem
como numa prisão ou num campo de batalha. Ninguém vive no mundo
‘objetivo’, somente num mundo filtrado pela imaginação”.

IMAGINAÇÃO E EXPLICAÇÃO
A imaginação está entre as principais glórias do ser humano. Quando saudá-
vel e energética, ela nos leva à adoração e ao maravilhamento, aos mistérios
de Deus. Quando neurótica e morosa, transforma as pessoas, milhões delas,
em parasitas, marias vão com as outras e gente inativa e sem imaginação

2
University of Michigan, 1980.
164 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

gastando horas diante da TV. A imaginação americana hoje é desanimado-


ramente morosa. A maior parte do que nos é servido como fruto da ima-
ginação é, aliás, o rebaixamento dela em telenovelas e na pornografia.
Neste exato momento, um dos ministérios cristãos mais fundamentais do
nosso mundo arruinado, e para esse mundo, é a recuperação e o exercício da
imaginação. Os muitos anos da fé sempre foram anos ricos em imaginação. É
fácil perceber por quê: o aspecto palpável do evangelho (o Jesus visto, ouvido
e tocado) não é menos impressionante que sua espiritualidade (a fé, a es-
perança e o amor). A imaginação é a ferramenta mental de que dispomos
para relacionar o material e o espiritual, o visível e o invisível, a terra e o céu.
Temos um conjugado de operações mentais, a imaginação e a explica-
ção, que não devem funcionar uma sem a outra. Quando o evangelho rece-
be expressão sólida e saudável, as duas operam numa sincronia de rara
beleza. A explicação define e delimita as coisas de tal modo que conseguimos
manejá-las e utilizá-las — obedecer e ensinar, ajudar e guiar. A imaginação
desvenda as coisas de tal modo que conseguimos crescer em maturidade
— louvar e adorar, enaltecer e honrar, seguir e confiar. A explicação res-
tringe, define e delimita; a imaginação expande e libera. A explicação nos
fixa os pés no chão; a imaginação eleva nossa fronte acima das nuvens. A
explicação nos dá as ferramentas para o trabalho; a imaginação nos
catapulta para o mistério. A explicação reduz a vida ao que pode ser usa-
do; a imaginação amplia a vida em algo que possa ser adorado.
Mas nossa era tecnológica e obcecada pela informação eliminou a ima-
ginação da equipe. Na vida do evangelho, onde tudo se origina e depende
daquilo que não conseguimos enxergar e só então toma forma em algo que
possamos ver com nossos olhos, a imaginação e a explicação não podem
ficar uma sem a outra. Será hora de agir com ousadia e intrepidez? Será
este o momento de a comunidade cristã reconhecer, honrar e comissionar
os mestres da imaginação — nossos poetas, cantores e contadores de histó-
rias — como parceiros no testemunho do evangelho? De que outra forma
mais o Bruce vai ouvir o evangelho quando crescer? Como ouvirá a poesia
de Isaías, as parábolas de Jesus, as visões de João? Triste será se, quando
tiver 40 anos de idade e entrar numa congregação de cristãos adoradores e
anjos ministradores, tudo o que vir for apenas a calva do pregador.
capítulo 14

Ovelhas em pele de Lobo1

O alegorista teológico mais habilidoso do século, infelizmente, tem sido


tipificado como um escritor de romances policiais. O estereótipo ficou tão
arraigado que ninguém reconhece que Rex Stout nos últimos cinquenta anos
tem elaborado uma parábola analógica complexa do ministério cristão em
suas histórias policiais em torno da personagem Nero Lobo.2
Nosso gosto, embotado, insensibilizado, não enxerga nada nos roman-
ces de Rex Stout a não ser histórias policiais. Stout escreveu um conjunto
de obras tão teologicamente claras quanto as de Swift, com o resultado de
conseguir bater as listas de mais vendidos como um romancista policial
habilidoso e com grande tarimba. Para seu benefício financeiro, natural-
mente; mas, ainda assim, um escritor sério chegar a ser mal comprendido tão
completamente deve ser humilhante, independentemente do saldo final.

TIPO DO MINISTÉRIO
Depois de declarada a intenção teológica, a mais simples investigação ra-
pidamente mostrará Nero Lobo como um tipo do ministério da igreja no
mundo. A coisa mais evidente a respeito dele, seu corpo, serve de analogia

1
Publicado pela primeira vez no periódico Christian Ministry, jan. de 1973, p. 26-28. Usado
com permissão.
2
A personagem criada por Stout chama-se originariamente “Nero Wolfe” e foi assim que ficou
conhecida na tradução para o português dos romances de Stout. Em 1987, por exemplo, o
Clube do Livro, editora de São Paulo, publicou a obra de Rex Stout Final para três: três nove-
las de Nero Wolfe, traduzida por Suzana Fleury Malheiros. Embora se tenha mantido o nome
original da personagem no Brasil, resolvi mudá-lo aqui somente para Nero Lobo por ser Lobo
também um sobrenome no Brasil e para deixar mais evidente para o leitor o tipo de analogia a
que Peterson está se referindo neste capítulo. “Wolfe” é sobrenome com grafia muito semelhan-
te a wolf, palavra inglesa que significa “lobo”, e com a mesma pronúncia. (N. do T.)
166 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

da igreja. Seu imenso tamanho é evidência de seu “peso”, lembrando a


etimologia da “glória” bíblica. Mais que qualquer outra coisa, ele está lá,
visivelmente. Não é possível desconsiderá-lo. Precisa ser assim corpulen-
to, senão não é nada. E a igreja é o corpo de Cristo.
Junto com uma insistência em uma presença corpórea, há também uma
correspondente observação de que não há nada atraente nesse corpo. Seu
corpo é sujeito a calúnias e piadas. Sua genialidade está na mente e no estilo.
Ele não bajula os clientes, nem procura “estabelecer contatos”. (“Contatar”,
diga-se de passagem, é uma palavra que ele nunca usaria. Certa vez, foi en-
contrado desmontando um dicionário, página por página, e queimando-o
porque legitimava “contatar” como verbo transitivo.) Lobo não sai de casa por
trabalho, ou seja, não se ajusta às necessidades do mundo. Ele é um centro em
torno do qual a ação gira, um centro de vontade e meditação, não um cen-
tro de poder e atividade. Ele serve de paradigma para o ministério cristão
e, embora reticente e reservado, está sempre presente toda vez que preci-
sam dele. Ele simplesmente dispensa qualquer técnica de propaganda ou
programa de relações públicas. Está presente, e é requisitado porque há
algo de errado no mundo (assassinatos e outros extremos do crime). Ele
modela um ministério que não se encontra aqui para ser amado, nem foi
projetado para inspirar afeto. É a função dele que admira. É imenso, cen-
tral, importante — um gênio, por sinal. Mas ninguém precisa gostar dele.
Em tudo isso, há uma crítica tácita a uma igreja que sucumbiu aos agen-
tes das relações públicas que montaram púlpitos cristãos que tornassem a
igreja atraente, personalizada, sentimentalizada. Lobo, como ministro cris-
tão, lança uma repreensão contra esse tipo de coisa.
Segue-se que há um desprezo por explicações defensivas — evitando
como Barth fazer “apologética” a um mundo que busca garantia da confia-
bilidade e da eficácia dele. A esse tipo de investigação, ele diz: “Posso lhe
dar minha palavra, mas sei o que ela vale, e você, não. Antes de ter grande
dificuldade para estabelecer minha boa fé, eu mesmo necessitaria de com-
pensação em alguns pontos” (Por cima do meu cadáver).3 O ministério da

3
Porto, Portugal: Editora Livros do Brasil, 1996.
OVELHAS EM PELE DE LOBO 167

igreja é barateado quando tenta se defender ou se mostrar aceitável de uma


maneira que o mundo possa compreender.

PROTÓTIPO DA IGREJA
A natureza eclesiástica de Lobo recebe do prédio de tijolos à vista da Rua
34 Oeste, projetado para corresponder a um prédio de igreja, um ambien-
te no qual trabalhar. A sala de jantar é o santuário, lugar reservado para as
melhores comidas e as mais agradáveis conversas, palavra e sacramento.
(“O que ele mais ama, se comida ou palavras, é difícil de apurar” —
Gambito.)4 A cozinha é a sacristia. O escritório, onde as pessoas e o mi-
nistro se encontram uns com os outros, é a nave. A “sala da frente”, em
que convidados são colocados antes de uma decisão de como serão envol-
vidos, é o nártex. Mas a casa simplesmente nunca é habitada. Não há
nenhum aspecto da vida doméstica, nenhuma atividade acontecendo de
um lugar para o outro. Cada cômodo define uma função. Não há festas,
nem reuniões de amigos para conversa ou diversão. Dessa maneira, o mi-
nistério cristão é impedido de ser interpretado como um exercício nas re-
lações humanas, ou uma espécie de aprimoramento piedoso da amabilidade
humana.
As imagens do ministério cristão são depois desenvolvidas em dois rituais
que dominam a vida de Lobo. O primeiro ritual envolve o cuidado e o cul-
tivo de orquídeas. Duas vezes por dia, das 9 às 11 da manhã e das 4 às 6 da
tarde, passa-se o tempo todo no viveiro, no terraço, cuidando de orquídeas.
Esses períodos matinais e vespertinos não devem ser interrompidos. “Em
todos os climas e sob quaisquer circunstâncias, aquelas quatro horas do
dia gastas no terraço com as orquídeas […] eram invioláveis” (A liga dos
homens assustados).5 O cultivo de orquídeas é um símbolo da oração e da
meditação, de manhã e à noite.
Nenhum forasteiro jamais pode entender como Lobo pode destinar es-
ses blocos regulares e importantes de tempo para nutrir novos híbridos e

4
Portugal: Editora Círculo de Leitores.
5
Porto, Portugal: Livros do Brasil, 1993.
168 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

cultivar novos rebentos. Ele mantém alguma correspondência com outros


criadores de orquídeas sobre suas atividades. Mas é algo sobre o que ele
não se perde em banalidades. Ao mesmo tempo, ele não faz nenhum se-
gredo sobre o que está fazendo, e muitas vezes, quando desce do andar
superior (do “cenáculo”), traz um botão e o coloca na sua escrivaninha, um
sinal do “trabalho árduo que torna todos os outros trabalhos fáceis’’ (a des-
crição que Kenneth Rexroth faz da meditação).
A oração não é uma atividade determinada por exigências que brotam
do mundo. Não é definida por expectativas de fora. É absolutamente não
utilitária, como a orquídea, a menos útil e mais delicada das flores. Ainda,
tem a primazia sobre todas as outras coisas.
O segundo conjunto de rituais de Lobo diz respeito às refeições e con-
siste num símbolo do ministério da igreja na adoração. Todas as refeições
são cuidadosamente preparadas. E com grande arte. O cozinheiro de
Lobo, Fritz Brenner, é habilidoso e bem informado. Quando a igreja se
reúne para adorar, não deve haver nenhum tipo de serviço informal, “de
fast-food”.
É significativo que não se toque em negócios na mesa de jantar de Lobo.
A adoração não é algo que se faça no fundo, enquanto a mente está posta
sobre outra coisa. É importante por seus próprios méritos, não um com-
bustível para algo “prático”. Qualquer assunto de interesse pode ser trata-
do nas refeições, menos o trabalho que se tem para fazer. As orações e os
sermões nos cultos de adoração cristãos não podem ser peças de propa-
ganda enganosa, nem uma plataforma para fazer as coisas acontecerem.
Arquelau refere-se ao “... prazer encantador da conversa de jantar de Lobo
— durante as refeições, ele se recusava a lembrar que houvesse algum caso
de assassinato no mundo” (A liga dos homens assustados). Os “sermões
práticos” estão fora. Contra o fundo da excelência cotidiana das refeições,
o domingo se destaca: “Agora era rotina para Lobo passar a manhã de do-
mingo na cozinha com Fritz, preparando algo especial” (Livro assassino).6

6
Idem, 1997.
OVELHAS EM PELE DE LOBO 169

COLEGA DE MINISTÉRIO
O simbolismo do ministério cristão não se completa no próprio Nero Lobo.
Ele tem um colega indispensável, Arquelau Boaventura,7 que simboliza o
aspecto do ministério da igreja normalmente designado pela palavra “tes-
temunho”. Somente quando combinados um com o outro, Lobo e Arque-
lau, é que o símbolo cristão do ministério se completa. É Arquelau que narra
os contos; sem ele, nada saberíamos, uma vez que Lobo não tem nem ne-
cessidade nem inclinação para falar de si. Jacques Barzun ressaltou que
“Arquelau é (como os críticos, fazendo uma leitura detida, descobririam a
respeito de seu nome) um arquétipo”. O ministério da igreja não é apenas
um centro para recordação, um arranjo de forças, uma concentração de
vontade: ele também realiza coisas. Arquelau é aquele aspecto do ministé-
rio da igreja que se envolve no mundo. Entra em brigas, é rápido com as
respostas, consegue se achar nos saguões, nos táxis e nos bares do mundo.
É bom em escutar e obter informações. É bom em trazer os relatórios para
Lobo. Mas não dá muita opinião, nem se sente compelido a se tornar a
personagem principal da história que ele narra.
Em geral, não sabe por que está dando mensagens ou colhendo evi-
dências, mas é, mesmo assim, responsivo às ordens. Não que sempre as
cumpra de bom grado. Aliás, quando lhe pedem que faça algo sem lhe ex-
plicarem o motivo, demonstra grande irritação. Quer entender todo o pla-
no, e fica enervado quando Lobo não lhe permite entrada nos meandros
mais interiores de sua própria mente. Às vezes, ele está cheio de dúvidas
sobre Lobo, ainda que a genialidade tenha se mostrado suficiente em cada
situação no passado. E ainda, cheio, ora de dúvidas, ora de irritação, exe-
cuta obedientemente seu trabalho de “testemunha” (em palavras e em ges-
tos). Lobo precisa dele e não poderia, aliás, funcionar sem ele, pois são suas
palavras e ações que ele usa para chegar a sua solução.
O espírito independente de Arquelau muitas vezes o leva às raias da
desistência, mas ele sempre reconsidera (arrepende-se) e logo volta ao

7
Outro nome que, como Lobo (“Wolfe”), sugiro para facilitar a metáfora, embora não seja como
a personagem ficou conhecida na tradução das obras de Rex Stout no Brasil. (N. do T.)
170 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

trabalho como assistente de Lobo. Mas ele não simplesmente aceita ordens.
Quando se vê numa situação para a qual não conta com nenhuma instru-
ção, a regra é que deve operar por conta própria: “Sempre que Lobo me
deu uma incumbência sem instruções específicas, a instrução geral era que
eu devia usar minha inteligência guiada pela experiência” (Gambito).
Os paralelos com o testemunho cristão são grandes. O testemunho opera
às cegas a maior parte do tempo. Recebe a ordem de testificar do amor, da
justiça e da saúde num mundo em que o ódio, a injustiça e a enfermidade
estão em toda parte. Ele nunca compreende de fato a lógica do todo. E
experimenta tanto dúvida quanto irritação por não poder examinar o inte-
rior da “mente do criador”.
O papel criativo que Arquelau desempenha na obra é manter Lobo tra-
balhando. (“De todas as coisas que faço para me sustentar, de afiar um lápis
até de um salto impedir que um visitante aponte uma arma, o mais impor-
tante é levar Lobo de carro para todo lado, e ele sabe disso” — (Trindade
homicida).8 Ele também sabe que a única forma de conseguir isso é apare-
cer com um caso de assassinato. Crimes triviais não lhe interessam. Mas
os assassinatos, que põem em foco todas as energias do bem e do mal, in-
cita suas melhores energias. De modo semelhante, o ministério cristão só
se interessa, no final das contas, pelo pecado. Há muitas coisas grandiosas
no mundo que são interessantes e pelas quais o ministério cristão não se
interessa. Ele se especializa no pecado e em pecadores. O testemunho cris-
tão realimenta a igreja com um programa de ação, apresentando-lhe o pro-
blema do pecado e forçando a igreja a fazer algo a respeito.

YIN/YANG
Lobo e Boaventura (o Yin e o Yang do ministério cristão) têm no inspetor
Kramer, da polícia de Nova York, um contraste. A combinação Lobo/
Boaventura é um símbolo do ministério cristão em contraposição a Kramer,
um tipo de ministro humanista das boas obras — tentar agir de forma cor-
reta, bem-intencionada, mas, no fim, ineficaz. Kramer quer fazer o que Lobo

8
Portugal: Livros do Brasil, 2000.
OVELHAS EM PELE DE LOBO 171

e Boaventura querem fazer, a saber, resolver o problema do assassinato:


descobrir o que há de errado com o mundo e fazer algo a respeito. Mas o
estilo é completamente diferente. Kramer é todo ativismo. Ele põe um exér-
cito de trabalhadores dedicados à tarefa de obter impressões digitais, de
seguir às escondidas os passos de quem for, de reunir provas e seguir pis-
tas. Cria uma tremenda confusão, tem um orçamento gordo para traba-
lhar e, nas coisas rotineiras, se sai muito bem. Lobo reconhece esse lado
de seu valor, e mesmo depende dele às vezes. Mas invariavelmente Kramer
precisa vir à casa de tijolos à vista para pedir ajuda.
O contraste é claro. O mundo tem boa intenção, mas nenhuma mente,
nenhum espírito de descoberta. Não é possível imaginar Kramer gastando
dois minutos, muitos menos duas horas, no viveiro do terraço. Ele é ocu-
pado. Ele faz coisas. O ministério da igreja, por outro lado, é... uma vida de
ser e tornar-se. Pois sabe que “o justo viverá pela fé”.
Na tentativa de compreender exatamente o que Jesus quis dizer com a
frase “Tenho outras ovelhas que não são deste aprisco” (Jo 10:16), as espe-
culações variam de identificações tão prosaicas quanto os samaritanos do
primeiro século até suposições fantasiosas de habitantes em outros plane-
tas ou galáxias. É ao menos plausível ver aqui uma referência às “ovelhas
em pele de Lobo” que modelam o ministério da igreja para o mundo secu-
larizado do século XX.
capítulo 15

Kittel entre as xícaras de café1

Todas as terças-feiras, das 11:30 às 14 horas, um grupo de pastores de


Maryland participa de uma exegese disciplinada das Escrituras como pri-
meiro passo na preparação de sermões. Realiza-se muito pouco (normal-
mente nada) em relação à construção de fato de um sermão. O foco recai
sobre a exegese: um esforço intencional e contínuo de ler as Escrituras de
modo preciso e teológico.
O pastor anfitrião dá o café, e cada um traz sua refeição. Cerca de treze
homens e mulheres de várias denominações participam do grupo. O grupo
existe agora já há dez anos. Embora tenha havido mudanças em alguns dos
organizadores, tem havido surpreendentemente pouca variação quanto ao
estilo e ao propósito. É algo como o lenhador e seu machado, sobre o qual
escreveu Thomas Mann. Às vezes, o cabo se destruía, e ele o substituía; às
vezes, a parte superior se desgastava, e ele a substituía; mas era sempre o
mesmo machado.
Dietrich Ritschl, em seu excelente livro sobre a pregação, The Theology
of Proclamation [A teologia da proclamação]2, incentivou o uso de “cola-
boradores” na preparação do sermão. O pastor, dizia ele, deve se reunir se-
manalmente com presbíteros, diáconos, jovens ou qualquer pessoa interessada,
escolher um texto e o estudar junto com eles. As perguntas, as necessidades
e as percepções deles moldariam o rumo da exposição. Com esse tipo de
preparação, o sermão não seria somente o pregador falando às pessoas; o
abismo entre o clero e o laicato seria transposto, e o sermão seria muito mais

1
Publicado pela primeira vez em The Princeton Seminary Bulletin, out. de 1973.
2
John Knox, 1960.
174 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

um ato do povo de Deus (pastor e povo) em adoração. Sua tese era que
“toda a igreja é chamada a participar do ofício da proclamação ocupado
exclusivamente por Jesus Cristo...” (p. 7). Ritschl, entretanto, não tinha a
intenção de que um grupo constituísse o todo da preparação de sermões.
Ele identificou algo mais básico: “A tarefa primordial é a redescoberta da
exegese [...] a exegese é o trabalho semanal do pregador, caso contrário
ele não é um ministro fiel” (p. 182).
O que Ritschl não sugeriu foi o uso de colaboradores na exegese, o ato
que ele identificou como “a tarefa primordial”. Deve ter sido pura coinci-
dência, pois nenhum dos pastores de Maryland tinha lido o livro na oca-
sião, mas na mesma época (década de 1960) estavam desenvolvendo uma
abordagem “colaborativa” à tarefa da exegese ao reunir-se toda semana e
ao buscar aprender como poderiam auxiliar e desafiar uns aos outros na
tarefa exegética. Convencidos de que a exegese sólida é indispensável, e
percebendo que eles mesmos não estavam chegando a isso, desenvolveram
uma comunidade de apoio mútuo para cumprir esse objetivo.

I
Usa-se um lecionário como base para a seleção dos textos. As leituras são
variadas e seguindo as diferentes ocasiões: as lições dos evangelhos são usa-
das na Epifania e na Quaresma; as lições das Epístolas na época da Páscoa;
as lições do Antigo Testamento em Pentecoste; as lições dos evangelhos no
Advento e na época do Natal; as lições das Epístolas na Epifania e na Qua-
resma; etc.
Cada participante tem sua vez de liderar o grupo. Todo o grupo se pre-
para, mas o líder precisa trabalhar mais arduamente que o restante. Ele
analisa a passagem, procede ao estudo vocabular, revisa a história da inter-
pretação da passagem, apresenta comentários exegéticos, depois se mo-
vendo então para as possibilidades de exposição no contexto das
necessidades congregacionais. O texto é examinado e debatido. O misto
de perspectivas propiciado pelo grupo acaba por gerar uma enorme quan-
tidade de material exegético — alguns pertinentes, outros sem pertinência
— que podem ser utilizados no trabalho posterior da exposição.
KITTEL ENTRE AS XÍCARAS DE CAFÉ 175

Quando o grupo encerra as atividades por volta das 2 horas, restam ain-
da cinco dias para utilizar o trabalho exegético do grupo na preparação de
cada um para o sermão seguinte.
Certa feita, perguntei aos membros do grupo por que compareciam sem-
pre tão fielmente, pois é alto o nível de assiduidade no grupo. Surpreen-
dentemente, todos deram como razão algo que não o trabalho exegético.
Ainda assim, a exegese é o propósito em torno do qual o grupo está estrutu-
rado. Mencionaram apoio pessoal, o senso de fazerem parte de uma comuni-
dade profissional, o atrativo de um grupo acolhedor que também desfrutava
de uma integridade capaz de permitir que compartilhassem em sigilo tan-
to os problemas pessoais quanto os de suas igrejas ou congregações.
O grupo com certeza se move, com bastante frequência, da exegese para
um tipo de terapia informal de apoio. Um pastor pode aparecer explodin-
do de ira por algo que envolva os líderes da igreja e assim interromper uma
detida análise exegética com algo que pouco diz respeito ao debate. O gru-
po facilmente abandona seu trabalho exegético pelos próximos trinta ou
quarenta minutos para tratar dessas emoções. Ou um pastor sofre uma
perda pessoal e é pastoreado pelo restante do grupo. Há um misto de in-
vestimento profissional e pessoal que com muita frequência compensa todo
o labor empreendido.

II
Ainda assim, todos concordam que não seria sábio abandonar a rigorosa
concentração na exegese bíblica. A ilustração dada foi a seguinte: seis pes-
soas se locomovem de carro para um destino, digamos, a uns mil e seis-
centos quilômetros de distância. O propósito da viagem é chegar ao destino.
Mas durante a viagem têm a grata surpresa de contarem com a companhia
de alguns no carro que amam uma agradável conversa. A rodovia se estende
pelo interior, pelos campos, tomados de belezas naturais, e no fim perce-
bem que têm a sorte de contar com motoristas não tão obcecados com o
“alvo” que não lhes permitam parar para divisar uma campina ou uma
montanha aqui e ali. Durante todo o tempo em que a viagem se processa,
os seis desfrutam não somente da paisagem, mas também das pessoas com
176 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

quem estão viajando. Depois de chegarem ao destino, há uma entrevista


em que se pergunta a cada um dos seis qual foi a parte mais importante da
viagem. Um mencionaria o pico elevado de uma montanha; outro, algu-
mas flores excepcionalmente coloridas; outro, ainda, as conversas estimu-
lantes dos companheiros de viagem. Seria compreensível se ninguém
respondesse à pergunta dizendo simples e obviamente: “Chegar aqui foi a
parte mais importante”. Impressões e experiências pessoais pareceram ser
os aspectos mais gratificantes da viagem. Mas, se nunca chegassem ao seu
destino, haveria boa dose de irritação e murmuração em torno da inutili-
dade de tudo aquilo. E ninguém ia querer repetir a dose.
A ilustração vem a calhar para esse grupo: a exegese bíblica é, diga-se
de passagem, o destino do grupo, e todo mundo a leva a sério. Cada um faz
parte do grupo por essa razão. Cada um, por sua vez, assume a responsabi-
lidade de ser o “motorista” e assegurar que se chegue mesmo ao destino
final. Mas não significa dizer que o carro não pare por alguns minutos se
alguém deseja sair do veículo e contemplar a paisagem ao redor.
Curiosamente, o grupo não agrega novos membros com facilidade.
Ou, para continuar a ilustração anterior, os caroneiros têm sérias difi-
culdades. Embora haja uma cortesia superficial estendida ao recém-che-
gado, os que já passaram pelos ritos de ingresso ressaltaram que levou vários
meses para se sentirem totalmente à vontade. Muito disso se explica por
causa de uma forte dinâmica que há entre os já participantes do grupo. Mas
parte da razão é que o recém-chegado tem dificuldade de acreditar que esses
pastores levam todos a sério a exegese. Como “caroneiro”, o visitante não
entra compartilhando do mesmo compromisso com o alvo; as expectati-
vas estão no nível de uma bondade rotariana, de uma terapia de apoio ou
de “conseguir ideias para sermões”. Leva um tempo para se ajustarem a
uma exegese séria, e muitos, não sentindo essa necessidade nem compar-
tilhando desse propósito, silenciosamente se retiram.
A eficácia e a coesão do grupo resultam de um conceito comum acerca
do ministério pastoral que leva o sermão a sério, sabe que uma boa exegese
é necessária para ele e aceita a necessidade de seus companheiros por dis-
ciplina e motivação. Nas horas matinais do domingo, no culto de adoração,
KITTEL ENTRE AS XÍCARAS DE CAFÉ 177

o pastor fica numa posição em que se torna mais visível para a maior parte
das pessoas. E ainda assim há muito pouco, seja na vida da congregação,
seja na vida da cultura, que confirme a convicção de que o sermão é, por
sinal, central ao ministério pastoral, e muito afirmando que é pouco im-
portante. Um grupo de colegas que leva a sério o alvo da pregação e as
disciplinas exigidas para fortalecê-la acumula a longo prazo um repositório
de confirmações.

III
O grupo demonstrou que a pregação exige a comunidade nas duas extre-
midades, em sua exegese e em sua exposição. Na exposição, a necessidade
de uma comunidade dispensa maiores explicações. Um pregador solitário
no ato de pregar é um absurdo — os ouvintes são um pré-requisito para a
pregação. Mas, se é necessário uma congregação para a exposição aconte-
cer, não é menos necessário que haja uma comunidade para a exegese. Pois,
enquanto existiram pressuposições cristãs na sociedade, uma espécie de
consenso entre as pessoas de que a pregação era central, não havia nenhum
problema. Ao fazer o trabalho exegético na preparação de um sermão, o
pastor sentia-se apoiado pelas expectativas das pessoas. Elas nutriam o tra-
balho exegético do pastor com suas pressuposições. A cultura estava do
lado do exegeta. Hoje os pastores não têm esse apoio. Ainda que haja uma
grande congregação para a qual pregar no domingo, não há nenhum apoio
comunitário durante a semana desafiando o pastor a pensar, a orar e a se
preparar para o ato de pregar. O mundo é ativista, e a cultura é secular. As
pressuposições das pessoas não levam em conta o trabalho exegético que
viabiliza a pregação.
Uma série de artigos num periódico teológico da atualidade foi intitulada
“Do texto ao sermão”. Vários pregadores descrevem o processo que per-
correm ao preparar um sermão. Em cada caso, o trabalho da exegese é
árduo, minucioso e indispensável. É impressionante, entretanto, que nenhum
deles se refira a qualquer tipo de comunidade como parte do trabalho
exegético. O trabalho da preparação de sermões é concebido em cada caso
como tarefa individual — o pregador solitário trabalha arduamente em seu
178 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

escritório. Mas esse tipo de trabalho exegético, envolvendo habilidade com


as línguas bíblicas, uma familiaridade com teólogos e a paciência de seguir
procedimentos hermenêuticos sadios não é algo que possa acontecer se-
mana após semana, entra ano e sai ano, com pastores em suas igrejas lo-
cais, trabalhando por conta própria. No entanto, com certeza acontece entre
os pastores descritos aqui, que se encontram a cada semana com uma xí-
cara de café numa mão e Kittel na outra.
Havia em Israel, no tempo em que o javismo estava ameaçado de
extinção, os grupos chamados bene hanabim (“filhos dos profetas”). São
encontrados em vários lugares na parte sul do reino de Israel nos séculos
IX e X a.C. Não sabemos exatamente o que faziam; o que sabemos com
certeza é que forneciam um meio de onde a profecia podia ser expressa,
comunidades que possibilitavam que o ofício de profeta fosse preservado
entre o povo de Deus.
A pregação bíblica está sob semelhante ameaça nos dias de hoje. O
pregador não conta com o apoio de uma expectativa entusiasmada pela pre-
gação. A exegese, o requisito fundamental para o sermão bíblico, não é
incentivada. Mas simplesmente porque a cultura não fornece um ambien-
te amigável para o trabalho exegético árduo por trás da pregação não é razão
para o pastor abrir mão dela. Pode-se criar esse contexto simplesmente
convidando alguns colegas para almoçar. Pelo custo de um quarto de quilo
de café, os pastores podem criar uma escola de exegese que alimentará sua
autoestima, incentivará sua vocação e fornecerá novas introspecções até
da passagem mais batida.
capítulo 16

Como mestres em cerimônias1

A maior parte do trabalho pastoral se dá por trás dos bastidores, decifran-


do a graça nas sombras, soprando as brasas de uma vida desgastada.
Os pastores permanecem com seu povo entra semana e sai semana, ano
após ano, para proclamar e guiar, encorajar e instruir à medida que Deus
opera seus propósitos (gloriosamente, como no fim de tudo se descobrirá)
nas vidas sinuosas e perturbadoramente inconstantes que compõem nos-
sas congregações.
Isso necessariamente significa levar a sério, e em fé, as maçantes roti-
nas da vida. Significa testemunhar do transcendente na névoa e na chuva.
Significa viver esperançosamente entre as pessoas que de tempos em tem-
pos recebem lampejos bruxuleantes da Glória, mas depois vivem em meio
a longos períodos de inexplicável soturnidade. Trata-se de trabalho árduo,
que não chama a atenção por ser glamouroso.
Mas há frequentes interrupções nessa obra, na qual o valor e o significa-
do resplandecem por si sós. A sarça queima e não se consome. Nosso tra-
balho é feito a nosso favor, ou ao menos assim parece, pelos acontecimentos.
Nada fazemos para arquitetar a coocorrência dessas oportunidades: nenhu-
ma reunião de oração, nenhum planejamento estratégico, nenhum traba-
lho de comitê, nenhum apelo. Essas ocasiões recebem — exalando
significado e quase sempre, mesmo entre os incrédulos, um senso de reve-
rência. Essas interrupções do costumeiro tornam-se oportunidades de
cerimônia e celebração: casamentos, sepultamentos, batismos, dedicações,

1
Publicado pela primeira vez em Leadership, primavera de 1987.
180 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

aniversários de casamento, formaturas, acontecimentos nos quais são hon-


radas as conquistas do ser humano.
Em vez de uma deficiência de valor e significado, que caracteriza tantas
vidas e que as pessoas buscam compensar com frenesis ou fantasias, há aqui
um excesso: o êxtase do amor, a dignidade da morte, a maravilha da vida,
a nobreza da realização.
Essas ocasiões estouram os recipientes do cotidiano e exigem amplitu-
de de exigência e lazer nos quais saborear a plenitude. Nenhum amor jamais
foi suficientemente celebrado, nenhuma morte jamais foi suficientemente
lamentada, nenhuma vida suficientemente adorada, nenhuma realização
suficientemente honrada. As pessoas separam um tempo, abrem espaço,
chamam amigos, reúnem famílias, congregam a comunidade. Quase sem-
pre, o pastor é convidado a presidir.
Mas quando chegamos, mal somos, parece, necessários, e, aliás, mal per-
cebidos. Uma das ironias do trabalho pastoral é que nessas ocasiões, quan-
do somos colocados bem no centro da ação, somos percebidos por
praticamente todos ali como que estando à margem. Ninguém diria isso,
naturalmente, mas o acontecimento que define a ocasião — amor, morte,
nascimento, realização — também prende a atenção de todos. Ninguém
indaga do pastor que significado há nisso. O significado está ali, esmagado-
ramente óbvio, na noiva e no noivo, no caixão, no bebê, no convidado de
honra.
O pastor é, nesses cenários, o que o teatro chama “a quinta persona-
gem”2 — necessário pelas convenções, mas secundário à ação; ainda assim, a
seu próprio modo, importante nos trabalhos secundários. Isso é estranho,
e nunca nos acostumamos com isso, ao menos eu nunca. Nas obscurida-
des cotidianas nas quais realizamos boa parte de nosso trabalho, geralmente
temos a sensação de sermos genuinamente necessitados. Mesmo quando
não percebidos, normalmente estamos certos de que nossa presença faz

2
Tradução de fifth business, literalmente “quinto negócio”. Alusão à obra de Robertson Davies,
publicada no Brasil em 1986 pela José Olympio, Rio de Janeiro, sob o título O quinto persona-
gem, traduzida por Celina Cardim Cavalcante. (N. do T.)
COMO MESTRES EM CERIMÔNIAS 181

uma diferença, às vezes fundamental, pois escalamos até os lugares aban-


donados, até as vidas destituídas, às brechas a que Ezequiel se referiu
(22:30), falamos a palavra de Cristo e testemunhamos a misericórdia de
Cristo. Mas nessas situações em que recebemos um lugar de honra à mesa,
somos periféricos diante da atenção de todo mundo.

ONDE ESTÁ O HOLOFOTE?


Nos casamentos, o amor é celebrado. A atmosfera é luminosa, cheia de
encantamento. Aqui estão duas pessoas em seu melhor, em amor, arris-
cando uma vida de fidelidade um ao outro. Todos percebem como isso é
ao mesmo tempo difícil e maravilhoso. As emoções se avolumam até as
lágrimas e os risos, derramam-se em risadinhas, solidificam-se em pom-
pa. No nobre drama que aproxima famílias e amigos para alguns momen-
tos sobre o mesmo palco, o pastor é praticamente invisível, desempenhando,
na melhor das hipóteses, um pequeno papel. Geograficamente estamos no
centro da cerimônia, mas cada olhar repousa sobre outra coisa.
Nos funerais, a morte é dignificada. A ausência do falecido é apresenta-
da num ritual solene. A ausência nessa ocasião é mais poderosa que a pre-
sença. A dor da perda, quer manifesta em profusão, quer silenciosamente,
é canalizada em aceitação e gratidão que impedem um derramar pródigo
de frustrações e amarguras. As lágrimas que turvam a percepção dos vi-
vos, incluindo a do pastor, esclarecem a valorização do morto.
Nos batismos e nas apresentações de crianças, a pura maravilha da vida
infantil eclipsa todo o mundo adulto. A glória que irradia do recém-nasci-
do leva até os espectadores ao louvor. No próprio ato de segurar um bebê
no sacramento do batismo ou no culto de consagração, o pastor, embora
muitas vezes maior, mais estranho e mais sábio, é ofuscado pelo brilho do
recém-nascido.
Nos aniversários de casamento e nas formaturas, nas inaugurações e nas
consagrações — as várias ocasiões comunitárias em que as realizações são
reconhecidas e os empreendimentos são lançados —, a admiração ou ex-
pectativa de todos produz um terreno cheio de emoções que absorve tudo
o mais. Cada olhar está bem focado, e cada ouvido bem atento à pessoa
182 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

que está sendo homenageada, ao projeto anunciado, à tarefa cumprida, à


vitória conquistada. O pastor, orando sob as luzes e com o sistema de
amplificação funcionando corretamente, não está debaixo dos holofotes e
mal é ouvido.
E assim acontece que, nas ocasiões de nosso ministério em que somos
mais visíveis, bem à frente de todos, fazendo apelos e impetrando bênçãos,
dirigindo cerimônias e fazendo discursos, mal somos notados.

UMA COISA SÓ É NECESSÁRIA


Se ninguém percebe nossa presença como nós mesmos a percebemos —
dirigindo as operações, comandando as apresentações — o que está acon-
tecendo? Ficamos à margem nessas ocasiões. Ninguém veio nos ver. Nin-
guém veio nos ouvir. De maneira alguma, precisam de nós como estamos
acostumados.
Ninguém precisa de nós para contar aos presentes que estão acontecen-
do coisas grandiosas; ninguém precisa que proclamemos que esse
acontecimento é singular, que jamais se repetirá, no qual somos todos parti-
cipantes privilegiados. Tudo isso é inegavelmente óbvio e não pode ser
desconsiderado nem mesmo pelos de dura cerviz e pelos incircuncisos de
coração.
Então por que estamos presentes? Estamos presentes para dizer Deus.
Estamos presentes por uma razão e uma razão somente: orar. Estamos
presentes para focar as energias — as quais se enchem até a borda, extra-
vasam, jorram com alegria, tristeza, encantamento ou gratidão, ainda que
por um curto período de tempo, mas enquanto conseguirmos — em Deus.
Estamos presentes para dizer Deus de modo pessoal, para pronunciar seu
nome com clareza, inconfundivelmente, sem maiores explicações ou res-
salvas, em oração. Estamos presentes para dizê-lo sem inseguranças e de-
longas, sem pigarrear e sem tergiversações, sem propagandas enganosas,
sem proselitismos e sem manipulações. Não temos nenhuma outra tarefa
em ocasiões assim. Ninguém precisa que acrescentemos nada ao que já está
lá; já há elementos além do que é possível assimilar. Tudo que se nos pede
é que declaremos o Nome: Pai, Filho e Espírito Santo.
COMO MESTRES EM CERIMÔNIAS 183

Todos os homens e todas as mulheres têm fome de Deus. A fome é


mascarada e mal interpretada de várias formas, mas está sempre presente.
Todos são passíveis de chegar a clamar “Meu Senhor e meu Deus!”, bas-
tando para isso que as circunstâncias os façam ir ao máximo da dúvida ou
dos desafios, os façam sair do enfado de suas rotinas ou das acomodações
aconchegantes em relação à mediocridade. Em ocasiões de cerimônia e
celebração, muitas vezes há pessoas presentes que jamais entram em nossas
igrejas, que fazem o possível para ficarem longe de Deus e jamais preten-
dem confessar Cristo como Senhor e Salvador. Essas pessoas não estão ha-
bituadas a estar perto de pastores, e várias delas polidamente nos desprezam.
Então por que não seríamos considerados marginais à ocasião? As próprias
ocasiões servem de estímulo para uma percepção da incrível Graça, do eston-
teante Desígnio, da desafiadora Esperança, da corajosa Fidelidade.
Mas a percepção, embora indispensável, não é suficiente. O despertar
da consciência é apenas a introdução. A percepção, como tal, rapidamente
se transforma, de gota em gota, num sentimentalismo religioso ou numa
choradeira romântica, ou se enrijece numa arrogância patriótica ou num
esnobismo farisaico. Nossa tarefa é abertamente cutucar a consciência e
fazê-la ultrapassar essas subjetividades simplesmente proferindo o nome
de Deus.
Quanto menos falarmos nessas horas, melhor, contanto que digamos
Deus. Cultivamos uma discrição para não prejudicarmos o sermão que será
entregue naquele evento. Precisamos fazer tão somente aquilo para o que
fomos chamados: pronunciar o Nome, citar a fome. Mas é tão fácil perder
o rumo. Há tantas coisas acontecendo, tanto para ver, ouvir e dizer. Tanta
emoção. Tanta, assim pensamos, “oportunidade”. Mas nossa tarefa é aten-
der àquela “uma só coisa necessária”, o centro invisível e silencioso: Deus!
Melhor em ocasiões como essas é acatar o conselho homilético do rabi-
no Naphtali de Ropshitz: resuma a introdução e faça uma conclusão re-
pentina — sem nada entre uma coisa e outra.
Tal restrição não é fácil. Sem estarmos conscientes, ficaremos suscetí-
veis de nos ressentir da marginalidade com a qual não estamos acostuma-
dos e nos projetar para um lugar de visibilidade, insistindo em que sejamos
184 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

percebidos e reconhecidos. Geralmente fazemos isso com nossos manei-


rismos ou com o tom de voz: falando alto, usando de estratagemas
sentimentalistas, espertezas. Fazemos tudo isso, naturalmente, em nome
de Deus, imaginando estar elevando a primazia daquele a quem represen-
tamos. Infelizmente, isso é feito com regularidade por pastores. Mas uma
postura dessas não traz glória a Deus; não faz outra coisa senão alardear as
vaidades clericais. Tudo o que estamos fazendo é roubar a cena, mas tam-
pouco com algum sucesso. Pois, não importa quanto brilhemos em bati-
nas e “reverendos”, não somos páreo para as pessoas ou os acontecimentos
que deram origem à ocasião para a qual nos pediram para vir e orar.

NA REGIÃO DO BEZERRO DE OURO


Mas há outra razão para manter nossa posição à margem da cerimônia e
da celebração. É a região do bezerro de ouro. O sentimento religioso chega
às alturas, mas de maneira muito distante do que foi dito no Sinai ou rea-
lizado no Calvário. Enquanto todos têm fome de Deus, profunda e insaciá-
vel, nenhum de nós tem qualquer grande desejo por ele. O que realmente
queremos é ser nossos próprios deuses, e termos quaisquer outros deuses
que estejam à volta ajuda-nos nesse trabalho. Isso vale tanto para cristãos
quanto para não cristãos.
Nossa terra encontra-se a leste do Éden, e nessa terra o Eu é soberano.
A instrução catequética com a qual fomos criados tem a maior parte das
perguntas na primeira pessoa: “Como posso fazê-lo? Como maximizo meu
potencial? Como desenvolvo meus dons? Como supero minhas desvanta-
gens? Como reduzo o impacto das minhas perdas? Como posso viver feliz
para sempre, aumentar minha longevidade, de preferência por toda a eter-
nidade? A maior parte das respostas a essas questões inclui a sugestão de
que um pouco de religião pelo caminho não seria má ideia.
Cada acontecimento que nos puxa para fora do comum da nossa vida
traz um novo sabor a essas perguntas. Nós, pastores, uma vez que normal-
mente estamos presentes nos acontecimentos e temos a reputação de ser
instruídos nas questões de religião, devemos legitimar e incentivar as dimen-
sões religiosas nas aspirações. Em nossa avidez por agradar, e esquecidos
COMO MESTRES EM CERIMÔNIAS 185

da tendência à idolatria no coração humano, somos prontos demais em


deixar o lugar despretensioso da oração e, com as joias religiosas e emocio-
nais que as pessoas trazem voluntariamente, construímos um deus-bezer-
ro de ouro — amor romântico, memória querida, vida inocente, realizações
admiráveis — e proclamamos uma “festa dedicada ao SENHOR” (Êx 32:5).
Mal sabendo o que estamos fazendo, mesclamos as aspirações religiosas
das pessoas e a dinâmica religiosa da ocasião para tentar satisfazer um e
todos.
Calvino via o coração humano como uma fábrica inexoravelmente efi-
ciente para produzir ídolos. As pessoas comumente veem o pastor como o
engenheiro de controle de qualidade da fábrica. No momento em que acei-
tamos a posição, desertamos de nossa vocação. As pessoas querem que as
coisas funcionem melhor; querem uma vida mais interessante; querem
ajuda em momentos difíceis; querem significado e valor em seus empreen-
dimentos. Querem Deus, de certa maneira, mas certamente não um “Deus
que tem fortes zelos”, não o “Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo”. Na
maioria dos casos, querem ser seus próprios deuses e permanecer no con-
trole, mas recebendo auxílio divino complementar para as partes mais
difíceis.
Há milhares de maneiras de ser religioso sem se submeter ao senhorio
de Cristo, e as pessoas são tarimbadas na maioria dessas maneiras. São
instruídas desde pequenas a ser consumidores judiciosos a caminho de
padrões mais elevados de vida. Não deveria ser grande surpresa quando
esperam que os pastores as ajudem nessa mesma direção. Mas é uma grande
apostasia quando embarcamos nessa. “Que lhe fez esse povo para que você
o levasse a tão grande pecado?” (Êx 32:21). A desculpa de Arão é embara-
çosamente fraca, mas correspondente de longe ao tipo de boas razões que
normalmente apresentamos para abandonar a oração em nosso entusias-
mo por aproveitar a ocasião ao máximo.

NOSSO VERDADEIRO TRABALHO


Nossas igrejas e comunidades nos atribuem deveres cerimoniais nessas
ocasiões, que devemos ter o cuidado de cumprir a contento. Existem formas
186 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

corretas e erradas de agir e falar, formas melhores e piores de se preparar


para essas cerimônias e celebrações e as conduzir. Nenhum detalhe é in-
significante: o gestual transmite graça, o tom de voz inculca um senso
de reverência, o comportamento define a atmosfera, a preparação apro-
funda a maravilha. Precisamos ser diligentemente adestrados em tudo isso.
Mas, se não há no pastor nenhum desejo de orar — um foco fiel e
tranquilamente perseverante na ação e na presença de Deus —, muito pro-
vavelmente acabaremos contribuindo, ainda que sem perceber, para esculpir
mais um bezerro de ouro do qual o mundo já está para lá de cheio. É abso-
lutamente fundamental que nos foquemos em Deus nessas ocasiões: sua
Palavra, sua Presença. Estamos ali para proferir o Nome, e ao pronunciá-
lo conduzir o lamento às profundezas, para onde Cristo desceu, no infer-
no, não deixando que se degenere em autopiedade. Estamos ali para proferir
o Nome, e ao pronunciá-lo conduzir a celebração para um louvor a Deus,
não o deixando que se chafurde em conversa fiada.
Nosso verdadeiro trabalho em cada ocasião em que se exige a presença
sacerdotal é a oração. Ainda que ninguém ali o saiba nem o espere, chega-
mos como pessoas de oração. Ficar à margem é a melhor situação para
manter essa intenção. Nossa vocação é sermos responsivos ao que Deus
está dizendo nesses grandes momentos, e simplesmente ficar ali dessa ma-
neira, como sal, como fermento. A maior parte de nossa oração será
inaudível aos que ali se reúnem. Não estamos orando para inspirá-los (já
estão suficientemente inspirados), mas para interceder por eles. A ação de
Deus é intensificada nessas orações e continuada na vida dos participantes
muito tempo depois da ocasião. As cerimônias acabam dentro de mais ou
menos uma hora; as orações continuam. Este é nosso verdadeiro trabalho:
apresentar casamentos e falecimentos, vidas em crescimento e realizações
duráveis diante de Deus numa comunidade de contínua oração.
capítulo 17

Ensina-nos a importar-nos sem


importar-nos, a cuidar sem
cuidados1

Quero falar sobre nossa vocação cristã. Depois de nos tornarmos cristãos,
chega um tempo, às vezes imediatamente depois, às vezes muito depois,
em que percebemos que algo aconteceu conosco que exige uma manifes-
tação vocacional.
Chegamos ao ponto em que não é suficiente ser salvos — queremos
compartilhar a vida da salvação. Assumimos responsabilidades inerentes à
vida dos salvos e nos vemos destinados a cargos em nossa vizinhança, em
nossa comunidade, nos quais há uma intersecção entre os caminhos de
Deus e os de homens e mulheres. As pessoas aparecem nessas encruzilha-
das, perdidas, desanimadas, fatigadas e confusas. A tarefa que pesa sobre
os cristãos nessas intersecções é dar direção às pessoas a caminho, encorajá-
las e exortá-las, dar informações sobre o tempo e as condições da estrada
e lhes servir refrescos. É um lugar incrivelmente agitado, com muito tráfe-
go em ambas as direções, e há muitos acidentes, muitas feridas e, portan-
to, muito cuidado a ser estendido.
Nem precisa dizer que os cristãos se importam, cuidam, agem com
desvelo. O barão Von Huget costumava dizer: “O desvelo e o cuidado são
a coisa mais importante. O cristianismo nos ensinou o que significa se
importar”. Os cristãos importam-se, cuidam e, caso contrário, não perma-
necem muito tempo na praça, ou não permanecem em crédito por muito
tempo. As palavras “cuidar”, “desvelar” e “importar-se” estão no âmago

1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux, 28, n.º 4, dez. de 1992. Ivan Junqueira traduz
o título, que é um fragmento do poema de T. S. Eliot “Quarta-feira de cinzas”, da seguinte
maneira: “Ensinai-nos o desvelo e o desprezo”. Poesia, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
188 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

das nossas tradições comunitárias. Cura animarum, a cura das almas, é


uma expressão que se repete inúmeras vezes em nossa história. Reagrupa
em si significados que tinham sido dilacerados. Se você vive numa cultura
como a nossa, as coisas se despedaçam, e aí está um dos lugares em que os
significados se separaram uns dos outros. A palavra cura reúne os sentidos
de nossas palavras “curar”, “desvelar”, “cuidar”. “Curar” é nutrir uma pes-
soa rumo a sua saúde; “desvelar” é ser uma companhia compassiva para
uma pessoa em necessidade. “Desvelar” encontra sua origem no verbo
“velar” — “passar a noite junto à cabeceira de um doente para tratar e cuidar
dele” —, que por sua vez vem do latim vigilare, “vigiar”. “Cuidar” origina-
se do latim cogitare, “cogitar”, e abrange tudo o que diz respeito a “aplicar
o pensamento e a atenção”, “tratar”. A cura exige que saibamos o que es-
tamos fazendo. A cura requer que nos envolvamos no que estamos fazen-
do. O conhecimento aplicado é necessário, mas não é suficiente. É necessário
um conhecimento empático, mas não é suficiente. Cura alia essas duas
dimensões, a cura e o desvelo. Mas acertar essa palavra numa definição de
dicionário não significa que a captamos, não assegura uma prática correta,
o que se evidencia quando olhamos ao redor.
Há uma enorme ironia aqui. Sabemos mais sobre cuidar do que qualquer
outra geração que viveu na face da terra. Temos mais homens e mulheres
profissionalmente treinados nas habilidades de cuidar e comprometi-
dos com uma carreira profissional de cuidado, mas ainda assim os re-
latos que retornam dia após dia do campo — pessoas contando histórias
do que lhes aconteceu no hospital, na igreja, com o assistente social, na
escola — documentam uma deterioração alarmante do cuidado em todas
as frentes.
Em vez de serem cuidadas, as pessoas se veem abusadas, exploradas,
manipuladas, intimidadas, desdenhadas, dilaceradas. Não há nada de novo
nisso, naturalmente. Pessoas que precisam de cuidado aparecem num es-
tado debilitado e ficam, portanto, vulneráveis, e essa vulnerabilidade sem-
pre parece despertar os instintos assassinos de alguns indivíduos, que usam
seus papéis profissionais como uma cobertura para se entregarem a um ou
a vários pecados mortais. Há milhares de anos, têm-se contado histórias
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 189

amargas sobre a avidez de sacerdotes, médicos, enfermeiros e conselhei-


ros, à medida que se movem sorridentemente pelas nossas comunidades
em suas roupas de ovelha. Entre esses narradores, Dante e Chaucer conta-
ram as histórias que cobrem em grande medida as dimensões canalhas de
nossa obra de cuidado. Assim, não há muito mais a ser dito nesses aspec-
tos do nosso cuidado ou descuido e não há muito mais a ser feito, a não ser
alguns cães de guarda para ver se flagramos os maus em seus atos.
Mas quero falar de outra parte, de outro aspecto do fracasso ou da de-
terioração do cuidado. Talvez não seja tão epidêmico como o que vemos
em nossa cultura em grande medida. Quero falar sobre algo mais endêmico
à comunidade cristã, algo mais sutil e que pode envolver mais os bem-in-
tencionados que os mal-intencionados. Para fazer algo a respeito, não bas-
ta se livrar das pessoas que o praticam intensamente. Algo mais como a
renovação de nossa imaginação é necessário, uma revisão de quem somos
e o que fazemos quando cuidamos. Precisamos recuperar a grandeza, a
saúde, a sacralidade essencial de toda a nossa vida vocacional, ou seja, essa
vida cristã à medida que se torna vivida na comunidade em relação aos
outros.
Quero recuar alguns passos e retomar a reflexão em uma direção dife-
rente. Quero tomar um texto de T. S. Eliot: “Ensina-nos o desvelo e o des-
prezo”. É extraído de um poema que ele escreveu após sua conversão:
“Quarta-feira de cinzas”. A oração está embutida na experiência de con-
versão ao caminho cristão. Eliot qualifica-se como um pregador com o qual
podemos contar nessas questões, porque ele não somente viveu, mas arti-
culou em oráculos proféticos muito daquilo com que estamos lidando. No
poema que o tornou famoso, “Terra sem vida”,2 ele mostrou o caos e a aridez
de um mundo sem Deus, sem comunidade, sem tradições. Era o mundo
que Nietzsche defendia em seu slogan “Deus está morto”, mas Eliot não
somente articulou isso em seu poema; o vivia. A terra sem vida estava den-
tro dele, bem como expressa em seu poema, “A terra sem vida”.

2
Traduzido por Maria Amélia Neto. Lisboa: Ática, 1984. Há ainda traduções do poema com os
títulos “A terra desolada”, em tradução de Ivan Junqueira publicada pela Nova Fronteira em
T. S. Eliot — poesias, e “Terra devastada”. Ed. Relógio D’Água, 1999.
190 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Nesse solo sem água e sem árvores, ele viveu dia após dia, ano após ano.
Seu casamento lhe impôs constante humilhação e culpa. Sua separação da
família e do país o impediu de uma nutrição emocional e de um senso or-
gânico de pertencer a algum lugar. E então se tornou cristão. Sua conver-
são foi um escândalo entre os desdenhosos literatos, uma traição da nova
religião do desespero sofisticado para a qual ele havia escrito as escrituras
canônicas. Agora ele articulava sua fé cristã e esperança emergentes em
novos versos de poesia, ainda com mais maestria do que tinha articulado
seu ceticismo e desespero não cristãos. Escreveu “Terra sem vida” procla-
mando a morte de Deus e o vazio do mundo, converteu-se e escreveu “Quar-
ta-feira de cinzas”, fazendo essa oração que estamos usando como texto, e
então escreveu o maior poema cristão do nosso século, “Quatro quarte-
tos”,3 no qual ele reúne os fragmentos da experiência, esses pedaços de
verdade e vidas quebradas, e, num poema extraordinário, poderoso, os tece
em poesia e oração. Ele toma a experiência das esquinas, onde está a nossa
missão, intersecções nas quais todas essas colisões, acidentes, ruínas ocor-
rem entre motoristas ignorantes em relação a Deus e negadores da alma, e
monta um mundo que, por ser um mundo que Deus tanto criou quanto
redimiu, não é uma terra sem vida, mas um jardim, um jardim de rosas,
diga-se de passagem.
Um jardim de rosas substitui a terra sem vida como metáfora do mun-
do em que vivemos. Não importa com que frequência e com quantos da-
dos os jornalistas e os acadêmicos nos informem de que o mundo em que
vivemos é uma terra sem vida, não é. É uma tristeza que todos conheçam
Eliot como o poeta da “Terra sem vida”, e muito poucos o conheçam como
o poeta dos “Quatro quartetos”. Querem pular a conversão dele; querem
deixar tudo isso de fora. Mas, se nos submetemos a sua imaginação profé-
tico-poética, há quase um poder semelhante ao de Isaías, um poder capaz
de mudar nossas percepções de modo que possam assimilar a realidade do
mundo em que vivemos.

3
Trad. Ivan Junqueira; intr. Antônio Houaiss. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 191

A razão principal por que estamos em dificuldades em nosso cuidado,


que nossa vida de cuidado se acha num estado deteriorado, é que as toca-
mos com a suposição equivocada de que o cuidado acontece numa terra
estéril. Para nos libertarmos dessa pressuposição equivocada, precisamos
reaprender o mundo. E, como Eliot explorou essa terra sem vida tão com-
pletamente quanto qualquer outro em nosso século e no processo encon-
trou seu caminho pela oração e penitência num jardim, ele me parece ser
o melhor guia, e seu texto, uma oração focada: “Ensina-nos o desvelo e o
desprezo”.
Assim, “Ensina-nos o desvelo”. Começamos com a percepção de nossa
pobreza: não sabemos como cuidar. Aquilo em que temos nos empenhado
sem um espírito de oração e que com muita facilidade chamamos de cui-
dado não é cuidado. É dó, é sentimentalismo, são boas obras, é colonialismo
eclesiástico, é imperialismo religioso. Cuidar, por mais nobre e elogiável
que pareça, é iniciado por uma condição que pode distorcê-lo, e muitas o
distorcem, em algo feio e destrutivo. Essa condição chama-se necessidade.
Uma criança chora, uma mulher derrama lágrimas, um homem pragueja,
um jovem, como dizemos, “faz uma cena”. Com muita frequência, um de
nós — um cristão que descobriu a vocação de cuidar, seja profissionalmente,
seja amadoristicamente, não importa — está lá. Ajudamos. Até aqui, tudo
bem. A dor da criança, as lágrimas da mulher, a raiva do homem, a confu-
são do jovem são todos reais o bastante e exigem uma resposta de nós. Se
há alguém ali disposto a cuidar, é pura bênção.
Mas há outro elemento nesse cenário que muitas vezes falta e, quando
falta, de modo silencioso e invisível afugenta toda a cura que estava pre-
sente no cuidado. Esse elemento é o pecado. A criança com o joelho ma-
chucado é uma pecadora. A mulher que amaldiçoa aquele que abusou dela
é uma pecadora. O homem que lamenta o fracasso de sua vocação é um
pecador. O jovem que tropeça nas hipocrisias da sociedade é um pecador.
A condição que nos chama para a ação de cuidar, a condição da necessida-
de, desarma-nos por sua aparente inocência, uma vez que o grito, a maldi-
ção, as lágrimas e a confusão são na maior parte não calculadas e
espontâneas.
192 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

A urgência e a inocência da situação que requer cuidado obscurece um


elemento da condição que não podemos deixar oculto, e ele é este: nós,
seres humanos, aprendemos bem cedo e bem rápido a perícia de usar nos-
sa situação difícil, qualquer que seja, para fazer que as pessoas ao redor de
nós façam muito mais do que nos fazer passar por aquela situação e a su-
perar. Aprendemos a usar as condições de necessidade como alavancas
para conseguir o que queremos. Não nossa saúde, não nossa maturidade,
não nossa paz, não a justiça, não nossa salvação, mas o que queremos, de
modo voluntarioso. Esse impulso para se colocar no centro, para manipu-
lar as coisas e as pessoas com astúcia e intimidação para o serviço delas
próprias, é o que nós, ao menos em nossos compêndios de teologia, cha-
mamos pecado. Incurvatus in se era a expressão usada por Agostinho para
isso: viver ensimesmado.
Somos criados para ser abertos. Ser abertos para Deus, ser abertos para
o nosso próximo. Somente podemos ser inteiros e saudáveis desde que o
façamos. Quando estamos em necessidade, quando a experiência em pri-
meira mão documenta nossa incapacidade de sermos seres inteiros por conta
própria, a primeira coisa que pode acontecer é que nos tornaremos mais
autenticamente humanos. A necessidade abre feridas profundas em nosso
autocontrole e nos abre para o próximo. A necessidade abre buracos em
nossa autossuficiência protegida e nos abre para Deus. Mas não necessa-
riamente.
Pois o eu voluntarioso se não se entrega facilmente. Faz tudo o que pode,
de maneira persistente e resoluta, para usar essas aberturas geradas pelas
necessidades não para sair da situação, mas para puxar quem quer que es-
teja tentando ajudá-lo para servi-lo mais ainda, usando assim o próximo.
Se estiver desprevenida, a pessoa que oferece cuidado é cooptada para ali-
mentar o egoísmo, o que significa dizer o pecado.
Há uma grande ironia aqui — que tanto do nosso cuidado nutra o peca-
do. O único grupo de pessoas de nossa sociedade que mostra algum sinal
de reconhecer isso são os pais de filhos pequenos.
Os pais sabem que não há nada menos inocente que a infância. Depois
de algumas semanas, meses no máximo, atendendo sem questionar a cada
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 193

sinal de necessidade, mães e pais começam a ficar espertos, começam a


filtrar os pedidos, a averiguar a real razão dos prantos. Se não agirem as-
sim, descobrirão em alguns anos, e com um senso de desânimo, que talvez
seja tarde demais para fazer qualquer coisa a respeito, porque, enquanto
enfaixavam joelhos, enxugavam lágrimas, compravam os jeans da moda,
intervinham em momentos de surtos emocionais, ao mesmo tempo alimen-
taram o orgulho, nutriram a ganância, estimularam a cobiça e cultivaram
a inveja.
Mas, fora das circunstâncias da criação de filhos, não parece haver mui-
ta percepção desses desvios. O momento em que qualquer um de nós diz
“Ajude-me” e descobre com que rapidez as pessoas vêm nos socorrer, tor-
nando-nos o centro e confirmando nossa importância, abre todo um vasto
campo para o exercício do pecado — ou seja, fazer as coisas ao nosso modo,
sem Deus e sem o próximo. É por demais incrível na realidade a quantidade
de doenças, de infelicidades, de problemas e de sofrimento que no fim a
gente escolhe, porque é uma maneira tão ineficaz de estar no controle, de
ser importantes, de exercer prerrogativas como se fôssemos Deus, de ser-
mos reconhecidos como importantes, sem entrarmos na árdua aprendiza-
gem de nos tornarmos verdadeiramente humanos, o que sempre exige que
aprendamos o amor de Deus, que pratiquemos o amor ao próximo.
A razão por que a consciência desse desvio é tão difusa e pouco clara
entre nós é que, como uma sociedade numa terra sem vida, não levamos
em conta a realidade do pecado. Não há nenhum pecado na terra desola-
da. Não há nenhum Deus na terra devastada. Há privação, ou pobreza, ou
má sorte, mas não há pecado. Os cristãos têm menos desculpa que as ou-
tras pessoas para serem ingênuos ou ignorantes em relação ao pecado, uma
vez que percorremos a vida com um livro no bolso, ou ao menos a nosso
alcance, que não insiste nesse assunto, mas nos convence de que ele é uma
realidade. Mas ninguém tem muita desculpa.
O pecado, como G. K. Chesterton salientou certa vez, é a única doutri-
na cristã importante que pode ser confirmada empiricamente. Mas, por não
levarmos a sério a plena natureza e presença do pecado, boa parte do cuida-
do é simplesmente colaboração com o egoísmo, com a autocomiseração,
194 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

com a autodestruição, com a autogratificação — todos os compostos apa-


rentemente infindáveis que giram em torno do eu e começam pelo elemento
de composição de origem grega auto-, “por si próprio”, “de si mesmo”. Acor-
damos numa manhã e descobrimos que nos esvaziamos por essas pessoas
necessitadas, e elas não estão melhorando. E sabemos que há algo de erra-
do em nosso cuidado, de modo que oramos: “Ensina-nos o desvelo. Tenho
tentado cuidar numa terra sem vida, desolada, devastada, e tenho feito tudo
errado. Preciso aprender tudo de novo. Ensina-nos o desvelo”.
Como cristãos que começam a sentir que têm uma vocação, um alcan-
ce, sabendo que esta vida importa agora para outras pessoas, a coisa mais
central que podemos fazer é ensinar-lhes a orar. Aí está nossa genialidade
como cristãos, esse acesso a Deus, essa vida de intimidade com Deus. É
por isso que somos cristãos, para vivermos dessa maneira curada, amada.
Se não usamos as ocasiões de necessidade, de cuidado, como uma escola
para a oração, abrimos mão de nosso interesse mais central. Nenhum de
nós pode fazer isso sozinho; cuidar é um ato de comunidade, muitas pes-
soas estão envolvidas.
Cuidar é algo complexo, e precisamos do máximo de ajuda possível das
pessoas, mas a presença cristã precisa ser uma presença que ora, e, quan-
do oramos “Ensina-nos o desvelo”, os relatórios que começam a voltar, os
planos de aula que começam a voltar, todos se relacionam basicamente com
a oração. Essa ferida do eu que clama por socorro, esse eu que está fecha-
do em si mesmo e agora se abriu somente um pouquinho, é uma abertura
pela qual podemos escutar Deus e responder. Pois a ferida é mais que uma
ferida. É um acesso aos de fora, a Deus, aos outros. Os cristãos que ficam
na intersecção onde se dá toda essa carnificina são os que sabem que essa
ferida é mais que uma ferida; é acesso. A ferida não deve ser enfaixada o
mais rápido possível; está lá para servir de posto de escuta, de oportunida-
de para deixar os pequenos confins de um mundo autodefinido e entrar o
espaço amplo de um mundo definido por Deus.
Não me refiro simplesmente a orar por pessoas, embora isso esteja em
jogo. Quero dizer ensiná-las a orar, ajudando-as a ouvir o que Deus está falan-
do, ajudando-as a formar uma resposta satisfatória. Ensinar as pessoas a
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 195

orar é ensiná-las a tratar de todas as ocasiões da vida delas como altares


nos quais recebem os dons dele. Ensinar as pessoas a orar é ensinar-lhes
que Deus é aquele com quem elas têm de tratar, não apenas no final de
tudo e não somente de forma geral, mas agora e no detalhe.
Ensinar as pessoas a orar não é um trabalho por demais difícil — qualquer
um de nós pode fazê-lo, usando alguns salmos e a Oração do Senhor —,
mas é difícil adotar o hábito, pois constantemente somos interrompidos
com exigências urgentes da família e dos amigos para, como dizem, “fazer-
mos alguma coisa”. E é difícil fazer que a pessoa que pediu ajuda atenha-se
ao hábito porque há muitas outras pessoas na intersecção, oferecendo atalhos
para o cuidado, atalhos para Deus, prometendo resultados muito mais rá-
pidos. É difícil para todos nós nos mantermos nisso, pois muitas vezes, na
confusão e no burburinho do tráfego da terra desolada, é difícil permane-
cer convencidos de que o pecado e Deus fazem tanta diferença assim.
Mas, difícil ou não, é o nosso chamado. O que mais estejamos fazendo,
é com nossas mãos, com nossos pés, com nossa mente — enfaixar,
direcionar, dar. Esse é o âmago do que estamos fazendo, pondo-os em con-
tato com Deus, com o próximo, recebendo amor, graça. Se não usamos
essas ocasiões de necessidade para ensinar as pessoas a orar, cedemos às
pressões do cuidado no qual não há nenhuma cura.
Às vezes, um episódio torna-se fundamental em sua vida para despertá-
lo para essas coisas. No meu caso, foi a Brenda. Ela estava no hospital; eu
era seu pastor. Fui vê-la. Era uma assistente social, mãe de dois filhos, es-
posa, fiel em sua adoração. Eu tinha sido o pastor dela havia cinco ou seis
anos. Perguntei a ele por que estava no hospital. Bem, estava internada para
exames, nem tudo ia bem, os médicos não conseguiam descobrir o que
estava errado. Fiz uma oração superficial e saí.
Voltei alguns dias depois e perguntei o que havia acontecido, e ela disse
que os exames não tinham mostrado nada e os médicos eram de opi-
nião que ela devia procurar um psiquiatra. Para eles, as causas não eram
físicas. Ela disse: “Acho que eles podem estar certos”. Seguindo meu script
normal, eu comumente teria dito: “Brenda, você gostaria de conversar so-
bre isso?”. Junto com muitos pastores de minha geração — da década de
196 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

1960, década do aconselhamento e da psicologia —, tive acesso a um bom


treinamento, acreditava ter uma inclinação para tal e amava a dinâmica das
interações terapêuticas.
Não havia psiquiatras nem terapeutas em nossa comunidade. Logo eu
estava aconselhando não somente meus paroquianos, mas muitos de seus
amigos também. Era um bom trabalho. Percebi que gostava de ser estima-
do pela comunidade como nunca antes quando era um simples pastor. Mas
o trabalho era também exaustivo. Naquele momento, ao lado da cama de
Brenda, não pensei que pudesse lidar com mais um conjunto de emoções
complexas. Eu sabia que ela esperava que eu expressasse meu cuidado por
ela sendo seu conselheiro, mas naquele momento eu estava simplesmente
cansado demais, e tirei o corpo fora. Em vez de me oferecer como conse-
lheiro para ela, usei a oração como um alçapão por onde eu pudesse fugir,
e saí de fininho.
Então comecei a me sentir culpado. Eu a havia decepcionado. Não cui-
dei dela. Depois de umas duas semanas, minha culpa mexeu com meu lado
bom e então a chamei e disse: “Brenda, aqui é o pastor Peterson”. Troca-
mos algumas amenidades, e então perguntei:
— Há algo que eu possa fazer por você?
Houve uma pausa bem demorada que me deixou bem nervoso. Então
ela disse:
— Sim, há. Tenho pensado muito sobre isso. Você poderia me ensinar a
orar?
Era a última coisa que eu esperava. Já fazia sete anos que eu era pastor,
e era a primeira vez que alguém me pedia que lhe ensinasse a orar. Eu tinha
imaginado que faria isso quando me tornei pastor, mas como ninguém
parecia interessado, pelo menos não a ponto de pedir, comecei a corres-
ponder àquilo que me pediam. Os pedidos eram de que eu os ajudasse com
seu casamento, seus filhos, suas emoções, seus pais, perguntas sobre a Bí-
blia, e ajudá-los foi o que fiz. Estava cuidando deles dentro das condições
que tinham estipulado para mim. Deus não era desconsiderado nesse tra-
balho; eu orava pedindo ajuda e cura, mas os problemas dessas pessoas, as
necessidades para as quais elas pediam ajuda, necessidades que eu muitas
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 197

vezes lhes ajudei a identificar, tornaram-se a agenda. Voltados para as ne-


cessidades, guiados por problemas, cheios de expectativas de soluções. E
muitas vezes eu conseguia encaixar Deus num ponto ou noutro. Mas, em
geral, eu estava entrando no mundo e o aceitando como uma terra sem vida,
desolada, devastada, um mundo onde a necessidade, e não Deus, era sobe-
rana, e tinha me tornado um colaborador inconsciente no ato de reforçar
seus mundos egocêntricos, sua amnésia sobre a natureza do pecado. Como
não estavam pecando descaradamente — roubando, cometendo adultério,
assaltando bancos —, baixei a guarda.
O pedido de Brenda, “Você poderia me ensinar a orar?”, fez-me retornar
ao país das minhas origens; voltado para Deus, atento ao mistério, pronto
a obedecer. Minha tarefa central em meio a essas pessoas não era ajudá-las
a resolver seus problemas, mas ajudá-las a ver como seus problemas podiam
ajudá-las a resolvê-los, servindo de estímulo e incentivo para abraçarem o
mistério de quem eram como seres humanos, e depois oferecer-me para
ser companheiro delas e ensinar-lhes a linguagem deste mundo no qual so-
mos criados por Deus, invadidos por Cristo, movidos pelo Espírito, a lin-
guagem da oração.
Eu lhe dei uma história de minha própria vida, mas os pastores não têm
escapatória nesse assunto. Essa é a vocação cristã; isso é o que os cristãos
fazem. A oração em nosso texto é “Ensina-nos o desvelo”. Brenda pediu
que eu lhe ensinasse a orar, e ao fazê-lo me ensinou a cuidar. Quando o
cuidado é restaurado em nossa vida em seu contexto verdadeiro e adequa-
do, a presença e a ação de Deus, nosso cuidado então se torna uma exten-
são de nossa oração, em vez de ela ser simplesmente anexada ao nosso
cuidado. Quando isso acontece, nosso cuidado é dissociado do contexto
controlador das necessidades distorcidas pelo pecado, dos estratagemas
autogratificantes, essa terra espiritual e cultural sem vida que Eliot descre-
ve tão bem, a terra desolada que exaure do cuidado toda a cura.
E “Ensina-nos o desprezo”.
A oração “Ensina-nos o desvelo” é equilibrada pela oração “Ensina-nos
o desprezo”. No ato de cuidar, há algo que precisamos aprender a fazer, mas
há algo também que precisamos aprender a não fazer. O que aprendemos a
198 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

não fazer é tão importante quanto o que aprendemos a fazer. Uma das
principais causas dessa deterioração do cuidado da qual todos fazemos parte
é a recusa generalizada por aprender a não cuidar aceitando limites e res-
peitar fronteiras.
Em todas as tradições do cuidado (não apenas no Ocidente, mas tam-
bém nas culturas orientais), há frequentes conselhos para agirmos com
reserva, com desprendimento, retirando-nos, largando. “Não faça demais.”
Mas nossos tempos não honram esse conselho. Temos tanto conhecimen-
to para aplicar e tanta tecnologia com a qual aplicá-lo que não usá-lo, não
explorá-lo ao máximo, é impensável. Estamos totalmente decididos a con-
tinuar arando a toda velocidade, em frente, sem parar, ainda que em cam-
po minado. Estamos tão certos de que um pouco mais de conhecimento
nos tornará mais eficientes, que um grande avanço na tecnologia introdu-
zirá um novo nível de competência, que um orçamento mais gordo forne-
cerá os recursos para o sucesso que não fazer nada quando é possível fazer
alguma coisa foge completamente a nossa imaginação.
Mas a razão do conselho para nos reservarmos é que o ato de cuidar,
respondendo a uma pessoa em necessidade, acontece num ambiente que
já pulsa com a vida, sobejante de energia, vitalidade e beleza. Essa vida, cria-
ção em todos os seus aspectos, é excessivamente complexa e muito além
da capacidade do nosso entendimento. Percebemos que somos muito mais
ignorantes em relação ao mundo do que versados nele. Apesar de todas as
nossas explorações e descobertas, toda essa informação que está diante de
nós, todo esse entendimento de como funciona, há ainda muito mais que
não sabemos do que aquilo que sabemos. E de todas as partes da criação
que encontramos em nossas viagens, essa parte que chamamos humana é
a mais maravilhosa, a mais complexa, a mais misteriosa.
Sabemos muito sobre nosso corpo, nossa mente, nossas emoções, nos-
sa alma, sistema digestivo, culpa e perdão, funções renais, amor, fé, força
moral, esquizofrenia, hormônios do crescimento, crescer em Cristo, de-
senvolvimento fetal, formação do caráter, sinapses no cérebro, lesões no
coração, mas, quando nos vemos diante do ser humano, qualquer ser hu-
mano, a maioria do que está acontecendo acha-se além de nós. E por essa
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 199

razão, é melhor não começarmos a bisbilhotar aquilo que não entendemos,


para não destruirmos algo precioso. Há muito de errado no mundo e nas
pessoas ao redor, mas há muito mais que está certo. Tudo o que está erra-
do acontece num ambiente incrivelmente, deslumbrantemente vívido,
atordoantemente belo.
O ato mais importante do cristão em tudo isso é adorar. Quando você e
eu vamos à igreja domingo de manhã e ouvimos alguém dizer “Vamos ado-
rar a Deus”, somos detidos em nosso caminho: sentados, de pé ou ajoelhados,
calados por uma hora, a não ser para cantar alguns hinos ou dizer “amém”.
Estamos adorando, tornamo-nos conscientes daquilo que fomos o tempo
todo, mas estávamos ocupados demais ou distraídos demais para perceber.
Ninguém, que eu saiba, jamais comentou sobre o bem incalculável que
é feito a cada semana quando milhares e milhares de pastores chamam as
pessoas às igrejas e dizem “Vamos adorar a Deus”, fazendo as pessoas saí-
rem das ruas por uma hora. Os índices de criminalidade despencam, os
acidentes diminuem, a poluição diminui só porque deixamos de nos preo-
cupar por uma hora. Não estamos fazendo nada, não estamos no coman-
do. Isso é ainda mais significativo no culto de adoração: nossos olhos se
abrem, nossa boca fica sem palavras, simplesmente olhamos e escutamos.
Não estamos exatamente em estado catatônico; dizemos “Glória a Deus”
ou “Obrigado”, cantamos um pouco. Mas não há nenhuma utilidade em
nada disso, não estamos fazendo nada. Como William James disse certa
vez, “Não há nisso nenhum valor monetário”. Não estamos cuidando; es-
tamos correspondendo à oração de Eliot: “Ensina-nos o desprezo”.
Assim entramos de tempos em tempos em lugares de culto, geralmente
toda semana, lugares para não fazer, não dizer, não cuidar, para que possa-
mos ver o que está acontecendo, ouvir o que está sendo dito. A coisa mais
importante que está acontecendo agora mesmo é o que Deus está fazendo.
Nós atrapalhamos, falamos demais. A coisa mais importante que está sen-
do dita agora mesmo é algo que Deus está dizendo; coisas maravilhosas
estão sendo feitas e ditas agora mesmo. Olhe. Escute.
Nós, cristãos, estamos dispersos pela sociedade, parados nas esquinas,
nas intersecções, em toda parte. Somos aqueles que têm a oportunidade
200 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

de dizer: “Ah, olhe. Escute isso”. Se nos intrometemos e começamos a fa-


zer uma coisa ou outra, apenas fazemos aumentar o barulho, as atividades
frenéticas. O que Deus fez e está fazendo é muito mais significativo que
algo que você ou qualquer outra pessoa jamais venha a fazer. O que Deus
falou e está falando é muito mais importante do que qualquer coisa que
você ou qualquer outra pessoa jamais possa dizer.
Se não estamos sendo constantemente trazidos para essa consciência
da enorme dimensão divina, treinados no ato de prestar atenção a essa gi-
gantesca presença divina, agiremos e falaremos fora de contexto, como se
estivéssemos numa terra vazia. Mas não há nenhuma terra desolada. Esta-
mos num jardim, um jardim de rosas. Por mais puramente motivados que
sejamos, no final causaremos mais estragos que boas contribuições se não
operarmos em resposta a Deus em detrimento do ambiente. Vivemos em
solo santo. Habitamos um espaço sagrado. Esse solo santo está sujeito a
violações incríveis. Esse espaço sagrado sofre sacrilégio constante. Mas não
importa. A santidade está lá, o sagrado está lá. Se nossa vida, e nesse caso
nossa vida de cuidado, é moldada em resposta às violações, ao sacrilégio, e
não do sagrado, é moldada da maneira errada. Estamos correspondendo
ao ambiente errado, um ambiente que não se sustenta, um ambiente sem
vida, desolado, devastado. Somos chamados para ser jardineiros, não li-
xeiros.
Há vários anos, eu, minha mulher e nossos três filhos estivemos no Par-
que Nacional de Yellowstone, o primeiro parque nacional dos Estados
Unidos. Muitas vezes, encaro nossos parques como santuários, em parale-
lo a nossas igrejas. As igrejas são santuários da cruz, da aliança, da salva-
ção. Os parques são santuários da criação. São lugares para proteger a
criação da exploração, lugares nos quais podemos contemplar a terra e a
sua plenitude, adorando o Criador e nos admirando com sua criação.
Yellowstone foi o primeiro lugar deste continente destinado a esse fim.
Sempre me senti de algum modo participante da formação desse par-
que, porque Cornelius Hedges, um advogado de Montana, estava em-
penhado nele. Foi, aliás, sua ideia. Conseguiu que Teddy Roosevelt viesse
ver a região, acampou com ele num pequeno triângulo de terra, uma
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 201

pequena ilha entre o Buraco de Fogo e os rios de Madison, e convenceu


Roosevelt de que aquilo precisava ser feito, de que era importante conser-
var seu aspecto selvagem e sua natureza contra serras elétricas e niveladoras.
Como aluno em Montana, eu estudava na escola de Cornelius Hedges. Com
essa história em minha imaginação ao longo dos anos, adotei a imagem de
Cornelius Hedges, que muito se orgulhava de ter formado esse santuário
da criação.
Caminhando com minha família numa campina na montanha no Par-
que de Yellowstone, vimos um menininho de 4 ou 5 anos a uns 300 metros
para dentro da campina colhendo gencianas franjadas — flores alpinas de
rara beleza. Mas é sabido que é contra a lei arrancar flores em parques
nacionais. Meus filhos sabiam disso; haviam aprendido o lema do Clube
Sierra: “Não tire nada a não ser fotos; não deixe nada a não ser pegadas”.
Conheciam esse bordão tão bem quanto João 3:16 (um deles me disse há
uns poucos anos que ele pensava que era retirado das Escrituras). Então
aqui está esse menininho colhendo flores na campina; eu o vejo e fico ul-
trajado — sacrilégio acontece em solo santo. Gritei para ele: “NÃO ARRAN-
QUE ESSAS FLORES”. Ele ficou parado, de olhos arregalados, inocente — e

horrorizado. Largou as flores e começou a chorar.


Você pode imaginar o que aconteceu em seguida. Minha mulher e meus
filhos, principalmente eles, ficaram todos contra mim. “Papai, o que você
fez foi muito pior do que o que ele fez. Estava apenas pegando algumas flo-
res, e você gritou, o assustou. Você o traumatizou. Talvez ele tenha de pro-
curar aconselhamento quando tiver 40 anos de idade.” Meus filhos tinham
razão. Você não pode gritar e esperar que isso conduza as pessoas à santi-
dade. Não pode horrorizar as pessoas no sagrado. Meu grito era uma vio-
lação muito mais severa do lugar sagrado do que o arrancar de algumas
flores por parte daquele menino. Mais tarde, tive muitas oportunidades para
refletir sobre isso, sendo lembrado, como aconteceu muitas vezes, por meus
filhos.
Faço muito isso, vocifero e grito em nome da santa presença de Deus,
em vez de eu mesmo tirar as sandálias, ajoelhar-me no solo santo e convi-
dar quem quer que esteja ao meu redor para se unir a mim. Platão insistia
202 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

em afirmar que toda filosofia autêntica — e podemos aplicar isso também


à teologia — tem seu começo num senso de maravilhamento. A existência
é vastamente bela, maravilhosamente boa, majestosamente verdadeira. Só
podemos começar com o pé direito quando começamos com a adoração.
Qualquer coisa autêntica tem seu começo num senso de maravilhamento.
E o cuidado deve começar com um senso de adoração e maravilhamento.
Se não começamos com a adoração, começamos pequeno demais. Se co-
meçamos formulando um problema, identificando uma necessidade,
engajando-nos num trabalho necessário, lançando um programa, reduzi-
mos a realidade diante de nós àquilo que podemos fazer ou conseguir que
os outros façam.
Se medimos o mundo e as pessoas nele de acordo com nosso conheci-
mento dele, omitimos a maioria dos dados. Os dados mais significativos
são os dados relacionados a Deus. Como podemos esperar fazer algo que
seja curador, integral e abençoado se não estamos em contato com nosso
ambiente, inconscientes do mundo real?
Assim, aos nos engajar em nossas tarefas de cuidar dessas almas con-
turbadas, esses corpos enfermos, essas comunidades caóticas, precisamos
de constantes interrupções, alguém que nos diga “Vamos adorar a Deus”
ou um equivalente disso, chamando-nos para atentar para o ambiente como
ele realmente é, o ambiente que desconsideramos em nossa pressa por atra-
vessar a rua enquanto a luz do semáforo ainda está verde. Começamos a
prestar atenção às dimensões criadas por Deus nas pessoas ao redor de nós
que perdemos em nossa resolução por torná-las socialmente aceitáveis.
“Senhor, ensina-nos o desprezo, de modo que possamos ver e ouvir o
que tu e alguns de teus servos estão fazendo e cuidando.” Não há lugares
sagrados na terra sem vida. Ponto pacífico. Se achamos que estamos cui-
dando numa terra desolada, nesse momento vamos nos engajar com tudo
de que dispomos. Não há nada com que nos maravilhar. Numa terra de-
vastada, qualquer coisa que façamos é um aprimoramento em relação ao
que está lá. Mas, se estamos num jardim de rosas, esse jardim criado por
Deus, não importa quão desgrenhado esteja, não importa se jogaram
latinhas de cerveja em meio às roseiras, ainda é um jardim de rosas, e há
ENSINA-NOS A NOS IMPORTAR SEM NOS IMPORTAR, A CUIDAR SEM CUIDADOS 203

muito mais para contemplar, tanto que jamais exaurirá nosso maravilha-
mento e nossa adoração.
Assim, à medida que Eliot nos conduz por meio da oração e da poesia
nos ritmos da criação de Deus, uma criação redimida, uma criação que
sempre está sendo formada por esses poderes da cruz e de um Cristo sa-
crificado operando sua vontade no mundo, começamos a olhar em volta.
Não desistimos de fazer as coisas, mas não nos apressamos em fazê-las
seguindo nossas próprias pressuposições. Deus é gracioso e nos dá tarefas
responsáveis para executar no jardim. Mas, se perdermos nosso senso do
santo, se perdermos a percepção do sagrado, apenas contribuiremos para
a deterioração do cuidado. A coisa mais triste, mais alarmante, é essa vas-
ta deterioração do cuidado que acontece nas comunidades cristãs. Perde-
mos o senso da oração, perdemos o senso do sagrado. Saímos para trabalhar
com as melhores intenções do mundo, mas ignorantes de nosso ambien-
te; pensamos que estamos trabalhando numa terra sem vida, quando esta-
mos trabalhando num jardim de rosas. Em vez de melhorar as coisas,
estamos pisoteando as rosas e piorando as coisas.
Ensina-nos o desvelo, ensina-nos a usar todas essas ocasiões de necessi-
dade, que são a agenda de nosso trabalho, como acessos para Deus, aces-
sos para o próximo. Ensina-nos o desvelo ensinando-nos a orar, orar de
modo que a necessidade humana se faça um ensejo para entrar na presen-
ça e na ação de Deus e as abraçar nessa vida. Ensina-nos a cuidar ensinan-
do-nos a orar para que aqueles com quem trabalhemos não fiquem menos
humanos por nosso cuidado, mas se tornem mais humanos. Ensina-nos a
cuidar para que não nos tornemos colaboradores do egocentrismo; antes,
companheiros na busca exploratória por Deus. Ensina-nos a usar cada ato
de cuidado como um ato de oração, para que essa pessoa no ato de ser
cuidada experimente dignidade, e não desdém; perceba a glória de ser par-
ticipante da salvação, da bênção e da cura de Deus, e não seja empurrada
para o merecido castigo e para a terra desolada do eu.
E, o desprezo. Ensina-nos a ser reverentes nessas ocasiões de necessida-
de que constituem a agenda de nosso trabalho, cientes de que estavas mui-
to antes com essas pessoas, criando e amando, salvando e atraindo-as.
204 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Ensina-nos a humildade de não cuidar, para que não usemos a necessidade


de ninguém como uma oficina para construir uma obra messiânica, provi-
sória, que infla nossa importância e indispensabilidade. Ensina-nos a estar
em maravilhamento e adoração diante das belezas da criação e das glórias
da salvação, sobretudo quando chegam a nós nesses seres humanos que pas-
saram a se enxergar como violados, degradados e rejeitados. Ensina-nos a
reserva e a restrição de não cuidar, para que, em nossa avidez por fazer o
bem, não interfiramos ignorantemente no teu cuidado. Ensina-nos a não
cuidar para que tenhamos tempo, energia e espaço para perceber que todo
o nosso trabalho é feito em solo santo e em teu nome santo, que as pessoas
e as comunidades em necessidade não são uma terra sem vida onde de modo
febril e infiel montamos uma loja, mas um jardim, um jardim de rosas no
qual trabalhamos contemplativamente.
Não toleres que nos enganemos com a falsidade.
Ensina-nos o desvelo e o desprezo.
Ensina-nos a permanecer em sossego, mesmo entre essas rochas. Amém.
capítulo 18

Aliados inusitados1

O trabalho pastoral exige muito, e preciso de muita ajuda. Felizmente, há


ajuda de sobra, boa parte dela na forma de livros. Teólogos e conselheiros,
acadêmicos e consultores escrevem para mim. Sou moldado pelo conhe-
cimento deles, guiado pelo conselho deles.
Mas obtenho mais ajuda de escritores que não tinham por objetivo me
ajudar. Meus aliados mais estimados no ministério são aqueles que escre-
vem romances e poemas. Acho que sei por quê. O ato de criar reside no
cerne da vida, seja em biologia, seja na fé.
Os pastores despertam a cada manhã em meio a esse trabalho criativo.
Também acordamos em meio a muitas responsabilidades não criativas, de
bastidores. Essas rotinas são as partes mais visíveis da minha vida. Preparo
sermões, visito pessoas, administro programas.
A maioria dos livros que chegam ao meu caminho tenta me ajudar nes-
sas áreas visíveis. Mas também preciso de ajuda nas partes invisíveis —
no centro criativo. Criação e recriação — formando vidas para a glória de
Deus — são o âmago do evangelho, do trabalho do Espírito, do trabalho
pastoral.
Não raro, no entanto, esse centro é deslocado para a periferia, e “criati-
vo” significa nada mais que “interessante” ou “inovador”. Quem está lá, per-
to de mim, para me manter ciente da própria natureza da criação, o trabalho
envolvido, a sensação que traz?
Meus aliados são os romancistas e os poetas, escritores que não estão
me dizendo algo, mas fazendo algo.

1
Publicado pela primeira vez em Christianity Today, 1.o de fev. de 1985.
206 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Os romancistas tomam os dados crus da existência e constroem um


mundo de significado. Eu também estou no ramo do fazer história. Deus
reúne pessoas ao meu redor numa trama de salvação; cada palavra, gesto e
ação tem um lugar significativo na história. Envolver-se dessa maneira na
criação da realidade exige uma interminável paciência e muita atenção, e
eu fico eternamente seguindo por atalhos. Em vez de ajudar no desenvolvi-
mento de uma personagem, eu apressadamente categorizo: ativo ou inati-
vo, salvo ou não salvo, discípulo ou apóstata, líder importante ou seguidor
confiável, material para líderes ou alimento para quem se assenta nos ban-
cos da igreja. Em vez de enxergar cada pessoa em minha vida como singular,
uma história de graça esplêndida, que jamais se deve procurar reproduzir,
sem precedentes nas maneiras específicas em que a raça e o pecado se acham
em tensão dramática, eu tasco uma etiqueta de modo que possa com eficiên-
cia cumprir minhas rotinas. Uma vez com a etiqueta no lugar, não preciso
olhar mais para a pessoa; sei como usá-la.
É quando leio Fiodor Dostoiévski, William Faulkner, Anne Tyler ou
Walker Percy e vejo como um artista comprometido com um trabalho de
criação trata o ser humano mais comum e menos promissor. Inesperadas
profundezas no comum, capacidades para o bem e o mal no aparentemen-
te convencional.
Repreendido em minha eficiência superficial, retorno à pessoa que em
repulsa ou enfado eu havia despedido de minhas orações e pregações, pron-
to outra vez para ser testemunha e servo no mundo desordenado e inadmi-
nistrável da criação do Espírito.

Os poetas são os vigilantes da língua, os pastores de palavras, preser-


vando-as dos danos, da exploração, dos abusos. As palavras não apenas sig-
nificam alguma coisa; são alguma coisa, cada uma com um som e um ritmo
todo próprio.
Os poetas não estão em primeiro lugar tentando nos mandar fazer algu-
ma coisa nem garantir que a façamos. Cuidando das palavras com uma
disciplina divertida (ou uma diversão disciplinada), eles nos conduzem a
um respeito mais profundo tanto pelas palavras quanto pela realidade que
elas apresentam diante de nós.
ALIADOS INUSITADOS 207

Eu também me encontro no ramo das palavras. Prego, ensino, aconse-


lho usando palavras. As pessoas muitas vezes prestam muita atenção para
o caso de Deus estar usando minhas palavras para lhes falar. Tenho uma
responsabilidade de fazer bom uso das palavras, de usá-las com precisão.
Mas não é fácil. Vivo num mundo em que as palavras são usadas descuida-
damente por alguns, astutamente por outros.
É fácil dizer o que quer que venha à mente, com o meu papel de pastor
compensando meus discursos vazios. É fácil dizer o que lisonja ou manipula
e assim granjear poder sobre os outros. De maneiras sutis, ser pastor su-
jeita minhas palavras à corrupção. É por essa razão que muitas vezes passo
algumas horas com algum amigo poeta — Gerard Manley Hopkins ou
George Herbert, Emily Dickinson ou Luci Shaw —, pessoas que se impor-
tam com as palavras, são honestas com elas, respeitam e honram o puro
poder esmagador que elas têm. Saio de encontros assim menos negligente,
tendo minha reverência pelas palavras e pela Palavra restaurada.
Que significativo que os profetas bíblicos e os salmistas fossem poetas.
É uma constante curiosidade que tantos pastores, cujo trabalho integra o
profético e o salmódico (pregando e orando), sejam indiferentes aos poetas.
Não leio romances para extrair ilustrações para meus sermões. Não leio
poemas para poder citar certas linhas. Leio-os para sentir o ato de criação,
para me associar àqueles que fazem com as palavras o que o Espírito está
fazendo com as vidas.
Esse mundo de criação é a casa essencial do pastor. Mas é uma habita-
ção difícil e às vezes solitária. Há muito mais tapinhas nas costas e falsas
cortesias entre os expositores e exortadores.
Entristeço-me quando ouço dos amigos: “Estou assoberbado com leitu-
ras ‘indispensáveis’; não tenho tempo para romances ou poemas”. O que es-
tão dizendo é que escolheram dar atenção às rotinas, e não ao centro criativo.
Não há leituras “indispensáveis”; nós escolhemos o que vamos ler. O que
não é alimentado não cresce; o que não é apoiado não se sustenta; o que não
é nutrido não desenvolve. Os artistas não são apenas pessoas que nos man-
têm abertos e envolvidos nesse centro de criação essencial, mas facilmen-
te desprezado, mas eles são valiosos demais para ser desprezados.
capítulo 19

Romancistas, pastores e poetas1

Qualquer um de nós, tendo acordado pela manhã e achando-se incluído


naquela parte da criação chamada ser humano, mais cedo ou mais tarde se
vê lidando com a linguagem, com as palavras. Somos as únicas criaturas
nesta vasta e incrível criação que faz isso. A linguagem é exclusiva dos se-
res humanos. Os nabos completam um ciclo de vida bastante complexo
e útil sem o uso de palavras. As rosas encantam o mundo com uma beleza e
fragrância extraordinárias sem proferir uma única palavra. Os cães satis-
fazem dezenas de milhares de nós com uma companhia fiel e extremamente
agradável, sem palavras. Os pássaros cantam uma música de rara beleza
aos nossos ouvidos, elevando nosso espírito, trazendo-nos felicidade, tudo
sem a capacidade de usar as palavras. É muito impressionante, na realida-
de, o que se passa ao nosso redor sem palavras: as marés de oceano, as
alturas das montanhas, as tempestades, as constelações em mutação, os
códigos genéticos, as migrações dos pássaros — a maioria, aliás, do que
vemos e ouvimos ao nosso redor, com uma grande quantidade incrivel-
mente complexa, mas sem linguagem, sem palavras. E nós, seres huma-
nos, temos palavras. Podemos usar a linguagem. Somos os únicos nessa
estonteante variedade caleidoscópica de geologia, biologia e astronomia que
usam palavras. Compartilhamos muita coisa com o restante da criação.
Temos muito em comum com tudo o que nos cerca, o solo sob nossos pés,
os animais ao nosso redor, as estrelas acima de nós, e reconhecemos vín-
culos nessa identidade familiar. Mas quando o assunto é entender nossa
humanidade, quem somos nesse vasto esquema de coisas, vemo-nos

1
Publicado pela primeira vez no periódico Crux, 26, n.º 4, dez. de 1990.
210 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

recorrendo à linguagem, o fato de que proferimos palavras, e o que nos


acontece quando as proferimos.
Quando alguém se torna cristão, redobra o interesse pela linguagem,
porque não somente nós usamos palavras, mas descobrimos que Deus tam-
bém as utiliza. Aquele que revela Deus para nós é chamado a Palavra. Esta
nossa natureza humana, com sua capacidade misteriosa e singular para a
linguagem, encontra um correspondente na natureza de Deus. Deus fala.
No termo que usamos para nos referir ao nosso interesse em Deus, teolo-
gia, as duas palavras são postas uma ao lado da outra e depois unidas; theos
significa Deus, e logos, palavra. Theos é capaz do logos. Logos é caracterís-
tico de theos. Então a importância dessa correspondência nos alcança: te-
mos a capacidade de falar; Deus se revela por meio da fala. Na revelação
completa de Deus, a Palavra tornou-se carne. Nós, que já somos carne,
tornamo-nos palavras, falamos palavras e, ao fazê-lo, tornamo-nos huma-
nos. A linguagem é o que temos em comum. No próprio ato de fala, inde-
pendentemente das palavras que usamos, estamos envolvidos em algo
divino. Uma consequência disso é que aqueles de nós que falam para e com
cristãos têm um compromisso mais que costumeiro no uso da linguagem.
As palavras são um dom precioso; a linguagem é algo maravilhoso. Exigi-
mos, e depois adquirimos, reverência diante do simples fato da linguagem.
“O próprio Deus está conosco, vamos agora adorá-lo e com admiração apa-
recer diante dele. Deus em seu templo, todos dentro guardam silêncio e se
prostram ante ele com reverência.”
“Deus está presente. Vamos adorá-lo, reverentes, exaltá-lo. Deus está
no templo; quietos, pois, fiquemos; diante dele nos prostremos.”2
É motivo de especial desânimo quando aqueles que usam a linguagem a
transgridem. A blasfêmia, o uso da linguagem para contaminar, sempre foi
detestável aos amantes das palavras e da Palavra. Sabe-se que as mentiras,
o uso da linguagem para ocultar ou manipular em vez de revelar e libertar,
são tão perigosas à condição humana quanto cupins para um celeiro. Se

2
Hino n.o 222. Hinário para o culto cristão (HCC), Rio de Janeiro: JUERP, 1990.
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 211

não fazemos nada, as fundações são destruídas, e a estrutura se destroça.


A fofoca e os clichês são também violações da linguagem. As palavras usa-
das negligente, impessoal e irrefletidamente são aspectos do sacrilégio.
Nestes nossos dias, vivemos num túnel aerodinâmico de fofocas e clichês,
de modo que os cristãos, principalmente os cristãos que usam as palavras
na liderança, precisam tomar o cuidado especial de reverenciar a lingua-
gem e usá-la de modo preciso.
Uma maneira óbvia de preservar a reverência e a exatidão é manter-se
na companhia dos mestres da linguagem: os romancistas e os poetas. Que-
ro falar sobre um romancista e um poeta que mantiveram a verdade, a fle-
xibilidade e o frescor da linguagem para mim. O romancista é James Joyce,
e o poeta é Jeremias.

ROMANCISTA
O primeiro livro sobre cuidado pastoral que significou alguma coisa para
mim pessoal ou vocacionalmente foi Ulisses, um romance de James Joyce.
Tendo penetrado dois terços nos meandros dessa narrativa, percebi o que
poderia fazer, deveria fazer, em minhas rondas como pastor, indo a casas,
entrando em hospitais, encontrando-me com as pessoas, conversando com
elas nas ruas. Antes de Ulisses, nunca enxerguei essa parte do meu mundo
como particularmente criativa. Sabia que era importante e aceitei que pre-
cisava ser levada a cabo, quer eu tivesse vontade, quer não, mas, exceto
por algumas epifanias esporádicas, não era muito interessante. Quase tudo
o mais que eu fazia — pregar, orar, escrever, ensinar, administrar — exigia
muito mais da minha mente, imaginação e espírito, extraindo o melhor de
mim e forçando-me para além dos meus limites. Mas conversando ameni-
dades com alguém no bebedouro, telefonando para uma mulher solitária,
visitando um homem no hospital, sentando-me com os moribundos — essas
eram funções mais ou menos rotineiras que eu simplesmente cumpria. Eu
as realizava satisfatoriamente, com um investimento considerável em tato,
compaixão e fidelidade. A fidelidade era a grande coisa, simplesmente es-
tar presente.
212 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Foi assim até eu ler Ulisses. Por volta da página 611, um terremoto abriu
uma fissura aos meus pés, e todas as minhas pressuposições do rotineiro
foram por ela sugadas. Todas aquelas rotinas do cuidado pastoral repenti-
namente não eram mais rotinas.
Leopoldo Bloom, o Ulisses da história de James Joyce, era um homem
muito comum. Não havia nenhum detalhe em sua vida que fosse digno de
nota, a não ser a sua rotina monótona. Dublin, cidade onde vivia, era uma
cidade muito comum, com nada nela que fosse empolgante, a não ser sua
rotina depressiva. Um ser humano comum e sem cor numa cidade comum
e sem cor fornece o conteúdo do romance. James Joyce narra um único
dia na vida do judeu de Dublin Leopoldo Bloom. Detalhe por detalhe, Joyce
nos percorre por um dia na vida desse homem, um dia em que nada de
importante acontece. Mas, à medida que os detalhes se somam, observa-
dos com um cuidado tão agudo e imaginativo (pastoral!), começa-se a de-
senvolver a percepção de que, por mais comuns que sejam, esses detalhes
são todos singularmente humanos. Bruxuleios de reconhecimento sinali-
zam lembranças do velho mito, a grandiosa narração feita por Homero das
aventuras do grego Ulisses, enquanto viajou por todo o país da experiência
e das possibilidades e por fim se achou de novo em casa.
Acordei. Joyce me fez despertar para a infinidade de significados den-
tro das limitações da pessoa comum num dia comum. Leopoldo Bloom,
comprando e vendendo, conversando e escutando, comendo e defecando,
orando e blasfemando, é mítico de um modo grandioso. A viagem de vinte
anos de Troia a Ítaca que o Ulisses de Homero fez é repetida a cada 24
horas na vida de qualquer pessoa, desde que tenhamos olhos e ouvidos para
perceber.
Agora eu conhecia meu mundo; esse é o trabalho de um pastor. Queria
poder olhar para cada pessoa em minha congregação com a mesma imagi-
nação, introspecção, abrangência com que Joyce olhava para Leopoldo
Bloom. O enredo é diferente, pois a história que está sendo elaborada diante
de meus olhos, se simplesmente puder permanecer acordado tempo sufi-
ciente para vê-la, não é a história grega de Ulisses, mas a história do evan-
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 213

gelho de Jesus. Os meios, naturalmente, são diferentes. Joyce era um es-


critor com lápis em punho, e eu sou um pastor praticando a oração, mas
estamos fazendo a mesma coisa: contemplando o entrelaçamento ma-
ravilhoso da história, da sexualidade, da religião, da cultura e do lugar na
vida de alguém especificamente, num dia específico.
Vi agora que tinha dois grupos de histórias que precisava entender cor-
retamente. Eu já conhecia muito bem a história do evangelho. Era um pre-
gador, um proclamador da mensagem. Tinha aprendido as línguas originais
da história, imergido por meio da minha formação em seu longo desenvol-
vimento e aprendido a traduzi-la para o presente. Estava imbuído da teolo-
gia que mantinha minha mente sadia e honesta na história, e era versado
na história que lhe dava a proporção em perspectiva. No púlpito e atrás do
leitoril, eu lia e contava essa história semana após semana. Amava fazer
isso, amava ler, refletir e pregar essas histórias do evangelho, tornando-as
acessíveis às pessoas, pessoas em diferentes culturas, vivendo em climas
diferentes, sob políticas diferentes. Esse é um trabalho glorioso, trabalho
privilegiado. Esse é o trabalho que eu esperava fazer quando me tornei pas-
tor, e para o qual eu tinha sido satisfatoriamente treinado.
Mas a esse outro conjunto de histórias, essas histórias de Leopoldo Bloom
e Buck Mulligan, Jack Tyndale, Mary Vaughn, Nancy Lion, Bruce MacIntosh,
Olaf Odegaard, Abigail Davidson —, tinha de compreendê-lo corretamen-
te também. A história de Jesus estava sendo retrabalhada e reexperimentada
em cada uma dessas pessoas dessa cidade, nesse dia. E ali estava eu, vendo
tudo tomar forma, ajudando a tomar forma, escutando a formação das
frases, observando as ações, discernindo as personagens e a trama. Decidi
ser tão exegeticamente sério quando escutava Eric Matthews no america-
no coinê como quando lia Mateus no grego coinê.
Queria enxergar a história de Jesus em cada pessoa em minha congre-
gação com tantos detalhes locais e experiências cruas quanto James Joyce
tinha enxergado com Ulisses em Leopoldo Bloom e seus amigos e vizinhos
de Dublin.
O poeta jesuíta Gerard Manley Hopkins deu-me um texto para minha
obra:
214 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Porque Cristo atua em dez mil lugares, faz-se


Formoso em membros, e olhos de outros, onde é visto
Até ao Pai pelas feições de humanas faces.3

Daquele momento até agora, as visitas a casas e hospitais, conversas nas


ruas, chamadas aos solitários, sentar-se com os moribundos têm sido os
principais ensejos para separar um tempo para esse trabalho, fornecer acesso
a essas histórias. Muito mais que tato, compaixão e fidelidade é exigido
agora. Há muito mais que simplesmente “comparecer”. Encontro-me escu-
tando nuanças, fazendo conexões, rememorando, antecipando, observan-
do como os verbos funcionam (“É um imperfeito, um aoristo, um perfeito?”),
ficando atento aos sinais de expiação, reconciliação (“Será a justificação o
que está sendo operado neste exato momento?”), santificação. Sento-me
diante dessas pessoas como Joyce sentou-se diante de sua máquina de escre-
ver, observando uma história ganhar forma e passar a existir.
O confinamento num único aposento por enfermidade ou debilidade,
do qual se exclui a maior parte do trânsito do mundo e para o qual a maior
parte da moda do mundo fica indiferente, fornece limites que estimulam a
concentração e a observação. Enquanto algumas pessoas consideram isso
enfadonho, a maioria dos escritores tenta se colocar num ambiente enfa-
donho para que possa se concentrar no que está no interior. Demasiada
ação fora de sua janela não resolverá, você nunca escreverá nada. Esses
cômodos enfermos, esses aposentos de moribundos, restringem nossa aten-
ção para que prestemos atenção ao que está bem lá diante de nós.
Depois de vários anos, a maioria das famílias de uma congregação pas-
sa por doenças, confinamentos, mortes de uma espécie ou de outra. Desde
minha conversão joyceniana, não mais considero minhas visitas nesses mo-
mentos obrigações de cuidado pastoral; antes, ocasiões para pesquisar na

3
Tradução inédita do poema de Hopkins As kingfishers catch fire, feita por Alípio Correia de
Franca Neto, sob o título Chispeia o papa-peixe, reproduzida no site <http://www.unisinos.br/
ihuonline/ index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1448>. “Por-
que Cristo atua em dez mil lugares” é o fragmento desse poema que Peterson utiliza para dar
nome a sua obra Christ Plays in Ten Thousand Places, publicado no Brasil pela Mundo Cristão
sob o título A maldição do Cristo genérico, 2007. (N. do T.)
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 215

fonte as histórias que estão sendo formuladas na vida dessas pessoas pelo
Cristo vivo — histórias nas quais às vezes chego a acrescentar uma frase,
ou talvez um ponto final, ou às vezes somente um ponto e vírgula. Vou para
esses compromissos com a mesma diligência e curiosidade que trago para
as páginas dos oráculos de Isaías, ou para um argumento complexo de
Paulo.
Há um texto maravilhoso para esse trabalho no evangelho de Marcos:
“... Ele ressuscitou! [...] Ele está indo adiante de vocês para a Galileia. Lá
vocês o verão, como ele lhes disse” (Mc 16:6-7). Adquiri o hábito de citá-
lo silenciosamente antes de qualquer visita ou qualquer encontro. “... Ele
ressuscitou! [...] Ele está indo adiante de vocês para a Galileia. Lá vocês
o verão, como ele lhes disse”. Cada vez que eu apareço, cheguei depois; o
Cristo ressurreto estava lá antes de mim. O que ele estava fazendo? O que
ele está dizendo? O que está acontecendo? Entro num quarto agora não
me perguntando o que farei ou direi, mas o que o Cristo ressurreto já fez,
já disse. Entro numa história já em andamento, algo que é ressurreição já
em progresso. Às vezes, posso esclarecer uma palavra, afiar um sentimen-
to, ajudar a recuperar um pedaço essencial de alguma lembrança, mas
sempre lidando com aquilo que o Cristo ressurreto já pôs em movimento,
já gerou.
Quando escutamos escritores sobre seus escritos, o que os ouvimos di-
zer é que eles não compõem uma história tanto quanto a história desce sobre
eles. Escrevem coisas que eles nunca souberam, ou ao menos nunca “sou-
beram” que sabiam. As imagens e as tramas entram na consciência deles,
chegando de outro lugar. Tornam-se escritores, escritores de verdade, quan-
do cultivam a abertura diante dessas idas e vindas misteriosas. Tornam-se
atentos, ouvindo essas presenças. Aí está o alicerce de toda obra criativa.
É também o alicerce da espiritualidade. Usamos as palavras para des-
pertar as percepções, para fornecer imagens e vocabulário para aquilo que
o Cristo ressurreto está fazendo nessas vidas. Para quantos Leopoldos Bloom
de Dublin James Joyce devolveu a história particular de Ulisses de cada
um? A quantas pessoas em minha congregação posso trazer a consciência
da história de Jesus que pertence a elas?
216 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

PASTOR
As palavras são o meio pelo qual o evangelho é proclamado e as histórias
são contadas. Nem todas as palavras contam histórias que proclamam o
evangelho, mas não é impossível. Nossa percepção de que toda linguagem
se origina da Palavra agora nos conduz a uma consciência de que todas as
palavras podem retornar para a Palavra e dela testemunhar. Mas muitas
vezes as palavras se separam da Palavra. Os romancistas têm sido impor-
tantes professores em mostrar a mim, um pastor, como religá-las, fazendo
uma história, retirando-as do caos da publicidade comercial, da fofoca e
do clichê, criando algo que tenha integridade e totalidade, ensinando uma
história do evangelho, uma história de Jesus.
Numa classificação meio apressada, mas que funciona, as palavras po-
dem ser postas em duas pilhas: as palavras usadas para a comunicação, e
as palavras usadas para a comunhão. As palavras para a comunhão são as
palavras usadas para contar histórias, para fazer amor, para nutrir intimi-
dades, para desenvolver confiança. As palavras para a comunicação são as
usadas para comprar ações, vender couve-flor, conduzir o tráfego, ensinar
álgebra. As duas pilhas de palavras são necessárias, mas as palavras de
comunhão são a especialidade do pastor. Se abordamos as pessoas como
mestres da comunicação, estamos tão deslocados quanto uma prostituta
num casamento. Não estamos aqui para vender intimidade. Estamos aqui
para ser íntimos. Para isso, usamos as palavras da santa comunhão.
Quando minha filha Karen era jovem, muitas vezes a levei comigo quando
visitei asilos. Era melhor que uma Bíblia. Os idosos dessas instituições se
iluminavam imediatamente quando ela entrava no recinto, encantavam-se com
o sorriso dela, lhe faziam perguntas. Tocavam a sua pele, afagavam seu
cabelo. Numa dessas visitas estávamos com a sra. Herr, que se encontrava
num estado avançado de demência. Ela gostava de conversar, e dirigia toda a
sua conversa para Karen. Contou-lhe uma história, um acontecimento de
sua infância que lhe veio à mente suscitado pela presença de Karen. Quan-
do terminava a história, imediatamente voltava para o começo, e assim
várias vezes, palavra por palavra e depois vez após vez. Depois de uns vinte
minutos disso, comecei a ficar ansioso esperando que Karen não se sentis-
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 217

se desconfortável nem ficasse confusa com o que estava acontecendo. As-


sim, interrompi aquele fluxo de conversa, ungi a mulher com óleo, impus-
lhe as mãos, orei e a deixei. No carro de volta para casa, elogiei Karen por
sua paciência e atenção. Ela havia escutado aquela história repetidas vezes
sem mostrar nenhum sinal de inquietação ou enfado. Eu lhe disse:
— Karen, a mente da sra. Herr não funciona da maneira que a nossa.
E Karen disse:
— Ah, eu sabia disso, papai. Ela não estava tentando nos dizer nada; es-
tava dizendo quem ela era.
Nove anos de idade, e ela sabia a diferença, sabia que a sra. Herr estava
usando as palavras não para se comunicar, mas para ter comunhão. O pai
dela, que devia ser mais bem instruído nessas coisas, estava nervoso por-
que não estava acontecendo nenhuma comunicação. Essa é uma diferença
à qual nossa cultura como um todo presta pouca atenção, mas que não pode
passar despercebida de pastores.
Há uma enorme indústria das comunicações no mundo que sai impri-
mindo palavras como botões. As palavras são transmitidas pela televisão,
pelo rádio, por telégrafo, por satélite, por cabo, pelos jornais, pelas revis-
tas. Mas as palavras não são pessoais. Implícita nessa imensa indústria das
comunicações, acha-se uma enorme mentira: se melhorarmos as comuni-
cações, melhoraremos a vida. Não aconteceu e não acontecerá. Muitas ve-
zes, quando descobrimos o que uma pessoa “tem para dizer”, gostamos
menos dela, não mais. Uma melhor comunicação muitas vezes prejudica
as relações internacionais. Sabemos mais uns sobre os outros na qualidade
de nações e religiões do que jamais antes na história, e parecemos gostar
menos uns dos outros. Os conselheiros sabem que, quando os cônjuges
aprendem a se comunicar mais claramente, isso conduz ao divórcio com a
mesma frequência que conduz à reconciliação.
O dom das palavras é para a comunhão. Precisamos aprender a nature-
za da comunhão. Isso requer o risco da revelação — deixar que um pedaço
de mim seja exposto, esse mistério que eu sou. Se permaneço aqui, emu-
decido, você não tem nenhuma ideia do que se passa comigo. Você pode
me olhar, me medir, me pesar, me testar, mas, enquanto eu não começo a
218 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

falar, você não sabe o que está se passando por dentro, quem realmente
sou. Se você escuta, e eu estou contando a verdade, algo maravilhoso co-
meça a acontecer — um novo acontecimento. Passa a existir algo que não
estava lá antes. Deus faz isso por nós. Aprendemos a fazê-lo porque Deus
o faz. Novas coisas então acontecem. A salvação passa a ser uma realida-
de; nasce o amor. Comunhão. As palavras usadas dessa maneira não tanto
definem quanto aprofundam o mistério — penetrando as ambiguidades,
extrapolando o seguro e conhecido para chegar ao arriscado desconheci-
do. A Eucaristia cristã usa palavras, as palavras mais simples, “Isto é o meu
corpo, isto é o meu sangue”, que nos fazem mergulhar num ato de revela-
ção que estonteia a imaginação, que nunca conseguimos explicar, mas na
qual ingressamos. Essas palavras não descrevem; apontam, alcançam, abra-
çam. Toda vez que eu vou para eles, os moribundos, os solitários, fica ób-
vio depois de alguns momentos que as únicas palavras que importam são
as palavras de comunhão. O que aflige é descobrir quão raramente são usa-
das. Às vezes que descobrimos sermos os únicos que se incomodam em
usar palavras dessa maneira nessas ocasiões. Dentre as provações dos en-
fermos, dos solitários e dos moribundos, o córrego interminável dos clichês
e dos chavões que eles têm de escutar não é menor. Os médicos entram no
quarto para comunicar o diagnóstico; os membros da família, para comu-
nicar suas ansiedades; os amigos, para comunicar a fofoca do dia. Nem todos
fazem isso, naturalmente, e nem sempre, mas a triste realidade é que não
há uma grande dose de comunhão que aconteça nesses lugares com essas
pessoas doentes, solitárias e moribundas, pelas esquinas, nos escritórios,
nos locais de trabalho, nas escolas. Isso torna urgente que o cristão passe a
ser um especialista nas palavras de comunhão.

POETA
A maioria das sociedades tem honrado os poetas por causa da importância
geral das palavras. Martin Heidegger costumava chamar os filósofos de
“pastores do ser”. Penso nos poetas como “pastores de palavras”, velando
por elas, atando-as quando se ferem, indo ao encalço delas quando se per-
dem, conhecendo-as por nome, em amor. Sempre me pareceu que os
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 219

pastores, que tanta relação têm com as palavras, deviam gostar mais dos
poetas. Surpreende-me que amigos pastores sejam indiferentes ou hostis
para com os poetas. Mais da metade da nossa Escritura foi escrita por
poetas. Se a forma em que algo nos chega é significativo — e é —, então a
poesia e os poetas são uma força a ser considerada por qualquer pessoa
que tenha a responsabilidade de transmitir a mensagem cristã de qualquer
maneira, pois essa Palavra se fez carne.
A primeira coisa que o poeta faz é diminuir o nosso ritmo. Não pode-
mos ler um poema celeremente. Os poemas precisam ser relidos. Diferen-
temente da prosa, que enche a página com palavras, os poemas têm muito
espaço em branco, o que significa dizer que o silêncio tem seu lugar ao lado
do som como algo significativo, essencial à apreensão dessas palavras. Não
podemos ter muita pressa ao ler um poema. Observamos ligações, senti-
mos os ritmos, ouvimos as ressonâncias. Tudo isso leva tempo. Há muito
para ver, sentir, perceber. Sentamo-nos diante de um poema da mesma
maneira que nos sentamos diante de uma flor e observamos a forma, o
relacionamento, a cor. Deixamos que comece a trabalhar em nós. Quando
lemos prosa, muitas vezes assumimos o controle, mas no poema nos sen-
timos fora de controle. Algo está acontecendo que não conseguimos espe-
cificar imediatamente, e não raro nos impacientamos e deixamos o poema
para ler Ann Landers em seu lugar. Na prosa, estamos atrás de algo, ob-
tendo informações, adquirindo conhecimento. Lemos o mais rápido pos-
sível para obtermos o que queremos, de modo que possamos fazer bom
uso dele. Se o escritor não escreve bem — ou seja, se não o podemos com-
preender rapidamente —, ficamos impacientes, fechamos o livro e nos per-
guntamos por que alguém não lhe ensina a escrever uma simples frase. Mas
na poesia assumimos uma posição diferente. Somos preparados para ser
aturdidos, para voltar, prantear, ponderar, escutar. Essa observação, essa
espera, essa postura reverente acha-se no âmago da vida de fé, da vida de
oração, da vida de adoração, da vida de testemunho. Se temos demasiada
pressa em falar, cometemos sacrilégio. Os poetas nos desaceleram, os poe-
tas nos fazem parar. Leia outra vez, leia outra vez, leia outra vez.
220 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

O poeta que eu estou usando ao lado do romancista James Joyce é Jere-


mias. Jeremias é um dos grandes poetas não somente de nossa fé, mas da
vida do mundo. Ele abre o livro que recebe seu nome com um poema:

A palavra do SENHOR veio a mim, dizendo:


“Antes de formá-lo no ventre eu o escolhi;
antes de você nascer, eu o separei
e o designei profeta às nações”.
Mas eu disse: Ah, Soberano SENHOR! Eu não sei falar,
pois ainda sou muito jovem.
O SENHOR, porém, me disse:
“Não diga que é muito jovem.
A todos a quem eu o enviar, você irá
e dirá tudo o que eu lhe ordenar.
Não tenha medo deles,
pois eu estou com você para protegê-lo”,
diz o SENHOR.
O SENHOR estendeu a mão, tocou a minha boca
e disse-me:
“Agora ponho em sua boca as minhas palavras.
Veja! Eu hoje dou a você autoridade sobre nações e reinos,
para arrancar, despedaçar,
arruinar e destruir;
para edificar e plantar”.
E a palavra do SENHOR veio a mim: “O que você vê,
Jeremias?” Vejo o ramo de uma amendoeira, respondi.
O SENHOR me disse: “Você viu bem, pois estou
vigiando para que a minha palavra se cumpra”.

Sobre esse poema na página de abertura de Jeremias, quero fazer algumas


observações. Jeremias é um poeta clássico, fazendo coisas que os poetas fa-
zem e exercem um impacto sobre todos nós que usamos as palavras. Ele não
é somente um profeta; ele é poeta, preocupando-se com as palavras, preo-
cupando-se com a linguagem, mostrando-nos como a linguagem funciona.
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 221

A primeira coisa que observo aqui é que a palavra está em primeiro lu-
gar, a palavra é a coisa mais importante. “Antes de formá-lo no ventre eu o
escolhi; antes de você nascer, eu o separei e o designei profeta às nações.”
Antes de Jeremias, Deus é mostrado escolhendo, separando, designando.
Esses são todos verbos de ação. A palavra é anterior a tudo o mais. Antes
de sermos concebidos e formados no ventre de nossa mãe, somos criados
pela palavra proferida. A palavra vem primeiro. Antes do sol, da lua, das
estrelas (no Gênesis), existe a palavra. Antes de árvores, flores e peixes, a
palavra. Antes de governos, hospitais e escolas, a palavra. Se a palavra é
deslocada de seu “primeiro lugar”, de sua primazia, tudo fica em desordem.
Se a palavra fica em segundo, terceiro ou quarto lugar, perdemos contato
com esse ritmo profundo, divino originador da criação. Se a palavra for
empurrada para fora do caminho e transformada num servo da ação e do
programa, perdemos a conexão com esses vastos mananciais interiores da
redenção que brotam da palavra, a Palavra feita carne. Se a palavra for tra-
tada negligentemente, descuidadamente, vagueamos para longe das intimi-
dades pessoais e essenciais que Deus cria pelo uso da palavra. Essa é a razão
por que temos “ministros da palavra” que levam a sério o que significa ter
uma palavra. O poeta nos ajuda a observar a natureza desse ministério, que
é voltado para a palavra, em serviço da palavra, essa Palavra de Deus.
Quando Jeremias ouviu a palavra de Deus, ele atendeu. Ele disse: “Ah,
Soberano SENHOR! Eu não sei falar, pois ainda sou muito jovem”. Foi uma
espécie de resposta cheia de desculpas, mas foi uma resposta. Ele não fi-
cou ali simplesmente parado como um bobo. A palavra não é uma etique-
ta que você afixa numa caixa para identificar o conteúdo do mundo ou de
suas pessoas. Não é uma informação. A palavra é pessoal. Quando a pala-
vra realmente é ouvida, ela suscita uma resposta. De repente, algo foi cria-
do — Jeremias. Ele tem um nome, é alguém, Deus dirige-se a ele, e ele
começa a responder: “Ah, Soberano SENHOR!”. Podemos refletir sobre o fato
de Deus da manhã até a noite para o resto de nossa vida e nunca ter nossa
vida mudada. Podemos fazer exames, ingerir refeições e participar de jo-
gos por toda a nossa vida e nunca mudar senão biologicamente. Mas, quando
a palavra é falada e recebe resposta, algo novo é criado — não somente
222 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Deus lá falando e assim formando o universo, não somente eu aqui senta-


do, sofrendo as consequências de meus próprios erros, mas um relaciona-
mento cheio de energia, de mudança, de desenvolvimento, de amor.
Jeremias não acredita nisso ainda; não enxerga o que está se passando. É
modesto e não consegue perceber como uma palavra de Deus pode ter
alguma relação com sua palavra: “ainda sou muito jovem — não sei falar,
não posso usar o mesmo tipo de linguagem que Deus usa, a linguagem que
eu uso não tem nenhuma conexão com a linguagem que Deus usa”. Mas
Deus diz que tem. Ele diz: “Falamos a mesma linguagem, Jeremias, não diga
que ainda é muito jovem”. Uma conversa pode ser travada entre o Deus
que cria mundos por sua palavra, que cria vidas por sua palavra, e o ho-
mem ou a mulher que usa as palavras para pedir mais uma rodada de ba-
tatas, ou para dizer a um caixa que ele cobrou um excedente de três reais
no brócolis que ele comprou. Essas palavras são compatíveis — a palavra
de Deus e a nossa palavra.
Os poetas fazem o que não pensamos que possa ser feito; agrupam dois
conjuntos de palavras que não parecem compatíveis, que parecem não
combinar, e assim mostram como fazem parte da mesma conversa — Deus
falando, eu falando. Ao menos parte do que significa ser feito à imagem de
Deus é poder fazer uso da linguagem, poder falar e escutar palavras que
ligam esses interiores misteriosos de nossa vida com esse vasto mistério
de quem é Deus.
Então o Senhor estendeu sua mão e tocou os lábios de Jeremias, o lugar
onde as palavras se formam e a ação se inicia. Há uma energia que flui dessas
palavras de ação, expressões vocais. Três pares de palavras, seis verbos,
arrancar, despedaçar, arruinar, destruir, edificar, plantar. Cada um com
origem na palavra. É tão fácil perder o contato com essa realidade. Deixa-
mo-nos intimidar pela força, pelo poder, pelo dinheiro, pelo cavalo-vapor,
pelo poder nuclear.
Precisamos observar mais uma coisa no poeta Jeremias, outro aspecto
da poesia; talvez seja o mais importante. “E a palavra do SENHOR veio a mim:
‘O que você vê, Jeremias?’ Vejo o ramo de uma amendoeira, respondi. O
SENHOR me disse: ‘Você viu bem, pois estou vigiando para que a minha pa-
lavra se cumpra’”.
ROMANCISTAS, PASTORES E POETAS 223

A palavra que Deus nos dá para proferir é confirmada no mundo que


ele criou. As palavras são análogas à matéria, a palavra que Deus dá para
falar é confirmada no mundo que ele cria. Há uma congruência entre pa-
lavra e mundo. A congruência geralmente é destruída pelo pecado, pela re-
belião. A tarefa do poeta é reuni-los novamente. Jeremias usa um trocadilho
e uma visão para conseguir isso em seu poema.
Deus pergunta a Jeremias o que ele vê. Jeremias olha para fora da jane-
la e diz: “Vejo o ramo de uma amendoeira”. Suponho que seja primavera.
O ramo da amendoeira é uma florescência branca semelhante às nossas
macieiras quando dão flores com grupos de pétalas cheias de fragrância.
“Vejo o ramo de uma amendoeira”. Deus responde com um trocadilho:
“Você viu bem, pois estou vigiando para que a minha palavra se cumpra”.
Não é possível reproduzir o trocadilho em nossa língua. Em hebraico, soa
assim: “O que você vê, Jeremias?”. “Vejo um shaqed (ramo de amendoei-
ra).” “Certo, Jeremias, eu estou shoked (vigiando sobre) minha palavra para
cumpri-la.” Percebe o que está acontecendo aqui? Cada pessoa que usa
palavras se pergunta às vezes se alguma coisa lhe acontece. Estará em
congruência com o que Deus está fazendo neste mundo? A cada primave-
ra, pelo resto de sua vida, Jeremias veria o ramo da amendoeira (shaqed)
irromper em flor, e ouviria “estou vigiando para que a minha palavra se
cumpra” (shoked). Essas palavras são vigiadas, mantidas, confirmadas,
validadas. “Nenhuma palavra retornará para mim vazia.” É o que os poetas
fazem; eles nos aproximam numa congruência experimentada de palavra
e forma. Toda vez que ele vê shaqed, ouve shoked. A conexão divina pro-
funda, interna, orgânica é restaurada entre palavra e mundo, entre o que é
dito e o que acontece.
Para aqueles de nós que usamos as palavras — pastores, professores, tes-
temunhas de todo tipo a serviço de Cristo — precisamos acreditar nessa
conexão entre palavra e sacramento, entre o que vemos e o que acontece.
Esse ramo de amendoeira em flor torna-se em três ou quatro meses um
apanhado de nozes. As palavras não são apenas palavras bonitas, tornam-
se algo porque Deus está vigiando para que sua palavra se cumpra. Ele é o
pastor das palavras, não deixará que nenhuma dessas palavras escape. As
224 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

palavras nunca são meras palavras; entram sob nossa pele, moldam nossa
vida, criam-nos de dentro para fora. Quando a palavra é proferida, pre-
gada, ensinada, dita, cantada, orada, meditada, não é o fim dela. Deus con-
tinua a vigiar essa palavra, cuidar dela, preocupar-se com ela. E nós o
vigiamos, observamos Deus vigiando sua palavra. Não, contudo, como
espectadores num jogo, mas como pastores de um rebanho, pais de filhos,
como amantes, amigos, observando os sinais da graça, observando movi-
mentos de alegria, buscando as provas de que mais uma vez essa palavra
está se tornando carne.
Os romancistas e os poetas podem ser nossos aliados para ajudar-nos a
respeitar as palavras e mostrar como elas funcionam em nossa vida. Ao
escutar as histórias ao seu redor e ao escutar as palavras diante de você,
saiba que a palavra de Deus está presente em todas essas palavras que fa-
lamos e pode se encarnar.
capítulo 20

Pastores e romances1

Foi uma observação fortuita numa conversa informal. Mencionei a um


pastor conhecido meu que eu estava lendo de novo Middlemarch.2 “De
novo?”, disse ele. “Por que se incomodaria de lê-lo sequer uma única vez?”
Detectei certo tom de superioridade quando prossegui dizendo o seguinte:
“... mas estou ocupado demais para ler esse tipo de coisa — quando leio,
leio coisa séria”. Imediatamente depois chegou outro colega que trouxe as
mais recentes notícias sobre o sexto turno do jogo da Série Mundial que
estava acontecendo naquele momento. Meu sério amigo tinha sérias opi-
niões sobre o que estava ainda para ser decidido naquela competição, e
Middlemarch passou totalmente despercebido. Fiquei aliviado. Pareceu-me
que, se a conversa tivesse continuado, eu teria passado a ideia de um pas-
tor a quem faltava seriedade, aliás um pastor muito vazio.
Muitas vezes me acho meio obtuso nas conversas, facilmente vencido
por respostas argutas. Mais tarde, porém, no santuário do meu estúdio,
escrevo e saio à desforra. E, embora a pessoa para quem e sobre quem
escrevo, muito provavelmente, jamais lerá o que escrevo, há grande dose
de satisfação em ter a última palavra. A última palavra nesse exemplo é
que ler um romance está entre as atividades mais sérias disponíveis a um
pastor. Os pastores que negligenciam a leitura dos romances não têm
seriedade, ou ao menos um aspecto dela. Leia a Escritura, certamente;
teologia, naturalmente; comentários, diligentemente; e os romances, a todo
custo.

1
Publicado pela primeira vez no periódico Theology, News and Notes, dez. de 1991.
2
Trad. e pref. Leonardo Fróes. Rio de Janeiro: Record, 1998.
226 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Estou apresentando razões vocacionais, não pessoais, para os pastores


lerem romances, razões relacionadas com o tipo de trabalho que fazemos
e com as condições em que o fazemos. Os pastores proclamam a história da
salvação de Deus em Cristo a pessoas específicas num lugar em particular.
O aspecto proclamatório do nosso trabalho é na maioria inquestionável. O
mundo, mesmo quando nos ignora, espera que tomemos nosso lugar nos
púlpitos a cada domingo e preguemos. Perguntaria o que estaria errado se
não o fizéssemos. Mas as condições do mundo nas quais executamos esse
trabalho podem, se não forem detidas vigorosamente, silenciosamente
matar a folha e a flor de nosso trabalho como chuva ácida na floresta.
As condições do mundo, uma garoa constante e inexorável de chuva
ácida, privam-nos da história, da identidade e do lugar. Mas é a história da
salvação a pessoas específicas num lugar específico que compõe as condi-
ções de nosso trabalho. Se o evangelho proclamado é transmitido sem uma
história e endereçado a um “Habitante” em “Algum Lugar, EUA”, os traços
pastorais inconfundíveis desse ministério são apagados. Entrementes, qual-
quer número de escritores de ficção trabalha dia após dia, ano após ano,
combatendo essas condições, mostrando a forma historiada de toda exis-
tência, insistindo na identidade irredutível de cada pessoa, e na glória des-
sa porção geográfica.
Qualquer pessoa que leve a sério as condições singulares do chamado
pastoral, história, pessoa, lugar, dará as boas-vindas a esses romancistas
como amigos e passará tempo na companhia deles. Nem todos os escrito-
res de ficção, naturalmente, qualificam-se como aliados. Há um discerni-
mento a ser exercido, mas um grande número deles toma sua posição
conosco contra as condições do mundo que debilitam o pastor.

HISTÓRIA
A existência tem o formato de uma história. A forma mais satisfatória de
representar o mundo em palavras é por meio da narrativa. É a forma de lin-
guagem menos especializada e mais abrangente. Tudo, qualquer coisa, pode
ser historiado. E no momento em que está na história adquire significado,
toma parte na trama, é de alguma forma significativo. A revelação bíblica
PASTORES E ROMANCES 227

chega até nós em forma de história. Nada menos que a história é suficiente
para a grandeza e para a complexidade da verdade de Deus e da criação,
ou do ser humano e da redenção.
Um dos efeitos verbais do pecado é a destruição ou a ofuscação da his-
tória, a fragmentação da história em historietas desconexas, a redução da
história à fofoca, o desmembramento da história em listas, fórmulas ou
regras. A maioria das palavras que se nos apresentam hoje é entregue pela
televisão, pelos jornais e pelas revistas. Essas palavras não contêm nenhu-
ma história além do acontecimento, do discurso, do acidente. Não há nada
que se ligue ao passado, se estenda até o futuro, mergulhe nas profundezas
ou alce vôo às alturas. Em vez de conectar com uma dimensão mais ampla
da realidade, as palavras nos desconectam, deixando-nos numa confusão
de episódios e comentários.
Cada vez que alguém conta uma história e a conta bem e de forma ver-
dadeira, o evangelho é servido. De fora do caos dos incidentes e dos aci-
dentes, as palavras que fazem história trazem luz, coerência e conexão,
significado e valor. Se há uma história, então talvez, somente talvez, haja
(creio eu) um contador de histórias.
Wallace Stegner atuou como um dos mais importantes contadores de
histórias em e para minha vida. Cresci no Oeste americano, numa atmos-
fera um tanto anarquista/populista. Afrouxamos na autoridade e não tínha-
mos nenhum senso de vínculo com o passado. A cidade em que fui criado
tinha somente quarenta anos quando para lá me mudei. Eu não tinha nenhum
senso de tradição. A Escandinávia dos meus avós já estava distante meio
mundo, e os índios kootenai e salish, naturais do vale em que fui criado,
não eram antepassados em sentido algum.
As pessoas mudavam-se muito, em busca de “algo melhor”. Nós mes-
mos nos mudamos dez vezes enquanto eu crescia. As experiências eram
intensas e às vezes gloriosas, mas não faziam parte de nada grande ou his-
tórico, e meu entendimento do evangelho era assim reduzido ao temporá-
rio e ao “algo melhor”.
Em seu romance The Big Rock Candy Mountain [A grande e doce
montanha rochosa], Stegner constrói uma história a partir dos materiais
228 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

da minha vida. Ele foi criado a mais ou menos uns cem quilômetros de mim
(mas trinta anos antes) numa cidade não diferente da minha. Quando leio
seu romance sobre o oeste americano/canadense e seu povo, reconheço
nele a maioria das pessoas com as quais cresci, e também os sentimentos
que eu tinha, a linguagem que eu aprendi e usava, a pobreza/prosperidade
sem raízes, sem religião, com o desejo ardente de correr mundo, de ficar
na solidão. Quando adulto, corri o risco de rejeitar tudo isso a favor de algo
mais em harmonia com aquilo que eu entendia como cultura cristã. A nar-
rativa de Stegner colocou numa história os materiais da minha experiên-
cia, a terra e o clima, a gíria e os costumes, as cidades bem construídas e os
trabalhos provisórios. Ele construiu um cosmo de tudo isso, mostrou essa
região e as pessoas como capazes de trama e coerência como qualquer coisa
na Grécia de Homero ou na Galileia de Marcos.
É significativo, creio eu, que não foi o pastor em minha congregação nem
o professor em meu seminário que fez isso por mim, mas um romancista
que convencia e continua a treinar minha imaginação para assimilar tudo
ao meu redor e perceber que vale a atenção de um Autor. Não é somente
para mim que necessito dessa ajuda, mas para as pessoas ao redor de mim,
os homens e as mulheres de quem eu sou pastor. Eles também se experi-
mentam como indignos da atenção de um Autor, não sendo suficientemente
interessantes nem suficientemente importantes para ser incluídos numa
trama. E então, para que eu não seja inadvertidamente condicionado pelo
mundo a adotar uma visão jornalística dessas pessoas, ou seja, boa durante
um hora mais ou menos de atenção, mas somente se acontecem num aci-
dente ou se ganham um prêmio, leio romances com frequência e a sério,
para aprofundar e reter o hábito da história em minhas conversas e procla-
mação.

PESSOA
As pessoas a quem essa história do evangelho é proclamada são, cada uma
delas, singulares. “Não há réplicas entre as almas”, gostava de dizer o ba-
rão Friedrich von Hugel. Quando crianças, na escola, aprendemos a nos
maravilhar com o fato de que nenhum floco de neve é igual a outro, nenhu-
PASTORES E ROMANCES 229

ma folha de carvalho é idêntica a outra. De flocos de neve e folhas, pouco


a pouco nos movemos para captar a intensificação da unicidade própria do
ser humano. Por mais que tenhamos algo em comum com outras partes
da criação, no que se refere a ser humanos, não existe nada exatamente
como nós. E por mais que eu tenha algo em comum com todos os outros se-
res humanos, no que se refere a ser eu, sou muito diferente do que pareci-
do em relação a qualquer pessoa que eu encontre. Quando ouvimos de verdade
o evangelho, sempre há a assimilação do especificamente pessoal. “Eu o
chamei pelo nome” é um elemento essencial na economia da salvação.
Entrementes, as condições do mundo estão em constante funcionamento,
desgastando os aspectos específicos elevados de cada pessoa numa genera-
lidade plana e desfigurada, identificada por rótulo: introvertido, material para
presbíteros, ectomorfo, não salvo, anoréxico, bipolar, pai/mãe solteiro(a),
diabético, dizimista, usa mais o lado esquerdo do cérebro. Os rótulos são
marginalmente úteis para entender algum aspecto da condição humana, mas,
no momento em que são usados para identificar uma pessoa, obscurecem
exatamente aquilo em que nós como pastores temos maior interesse, a alma
sem precedentes e irrepetível à qual Deus está se dirigindo.
Toda vez que alguém é chamado pelo nome e percebe que nessa abor-
dagem está sendo tratado como singular, não como mais um freguês, não
como um paciente, não como um votante, não como um presbiteriano,
não como um pecador, o evangelho é servido. O amor salvífico é sempre
pessoalmente específico, jamais meramente genérico. A misericórdia de
Cristo sempre é personalizada numa história distinta, jamais engolida pela
abstração.
Anne Tyler fornece-me os olhos para ver além dos rótulos, ouvidos para
ouvir o que está por baixo dos clichês estereotipados. Ela cria personagens
em seus romances que são sempre só um pouquinho estranhos, sem se
encaixar muito bem na sociedade. Quando encontro pessoas assim em
minha paróquia, fico sempre um pouco impaciente e tento encaixá-los em
categorias com as quais estou familiarizado, de modo que eu não precise
gastar mais tempo conhecendo-as. Tenho, afinal de contas, muito para fa-
zer. A igreja tem programas para várias necessidades, e as pessoas precisam
230 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

se encaixar nas categorias. A maioria das pessoas está habituada a se en-


caixar em categorias fornecidas para elas por hospitais, escolas, shopping
centers e serviços sociais, que não fazem nenhuma objeção quando a igreja
os trata da mesma maneira. Mas, à medida que se submetem, perdem a
capacidade de perceber o que Deus está mais interessado em realizar ne-
las: a santidade, que significa tornar-se mais, não menos, o seu eu criado/
redimido, não sendo reduzido ao que se encaixará num programa, não sendo
impessoalizado na causa da eficiência.
Quando deixo Anne Tyler me mostrar como a personagem é formada,
aprendo a tratar os membros de minha congregação com respeito, mesmo
com reverência, e exatamente como são, não somente quando se encai-
xam naquilo que é conveniente para mim e útil para a organização. Quan-
do hesito diante dos detalhes que tornam esse homem estranho e um tanto
vergonhoso no momento do café depois do culto, Anne Tyler me treina a
assimilar estranheza e amá-lo não apesar dela, mas por causa dela. Essas
irregularidades que tornam essa mulher inadequada como modelo em nosso
ministério de jovens, Anne Tyler me treina para que eu veja como ocasiões
para a graça de nosso Senhor, não obstruções dela.
Todos os bons romancistas fazem isso por nós, desenvolvem persona-
gens de maneiras que nos mostram essa pessoa diferentemente de qual-
quer outra antes ou depois, e mostram que a condição humana é capaz de
variações intermináveis, e que cada variação é uma maravilha. Mas Anne
Tyler, para mim, é a mestra contemporânea: sua caracterização inesquecí-
vel de Morgan em A passagem de Morgan,3 de Macon em O turista aci-
dental,4 de Maggie em Lições de vida5 tem sido uma fonte importante de
energia para identificar, sem menosprezo e zombaria, personagens que con-
tinuam surgindo em minha congregação. Ela faz que eu as conheça por nome,
e não por rótulo. Ajuda-me a pronunciar o nome delas de tal maneira que

3
Trad. A. B. Pinheiro de Lemos. São Paulo: Mandarim, 1997.
4
Trad. Wilma Freitas Ronald de Carvalho. Rio de Janeiro: Imago, 1987.
5
Idem, 1989.
PASTORES E ROMANCES 231

percebem que são preciosas, exatamente como são, aos olhos de Deus, e
têm um lugar na salvação que ninguém jamais ocupará.
Sempre que me flagro ficando irritado e impaciente com algum peca-
dor que não se encaixa, pego outro romance de Anne Tyler e me matriculo
num retreino em reconhecimento de personagens e no ato de chamar as
pessoas pelo nome.

LUGAR
A obra da salvação é sempre local. A geografia faz parte do evangelho tan-
to quanto a teologia. A criação da terra e da água, das estrelas e dos plane-
tas, das árvores e das montanhas, da grama e das flores fornece chão e
ambiente para as bênçãos da providência e para os mistérios da salvação.
A aliança sempre tem a criação como contexto. Nada que seja espiritual
em nossas Escrituras é servido à parte do aspecto material. A criação, a
encarnação, os sacramentos, todos esses são inseparáveis do evangelho.
Quando Deus formou um evangelho universal para “todo o mundo”, ele
tornou-se encarnado em alguns quilômetros quadrados das colinas e vales
da Palestina. Um endereço de rua preciso é muito mais importante na pro-
clamação do evangelho que um mapa-múndi.
Mas as condições do mundo não favorecem essa valorização do local. O
lugar rotineiro, o lugar da residência e do trabalho, é desconsiderado, usan-
do-se termos como “lugar atrasado”, “povoado rústico”, “lugar afastado”,
“terrinha”, “provinciano” e “lugar de pouco valor”. Os lugares que são va-
lorizados são os lugares para visitar, como as Bermudas, ou lugares para
nos divertirmos, como Disney World. As paisagens exóticas e as distrações
animadoras conferem valor ao lugar, mas o lugar como tal é limitação e
confinamento, um lugar para ficar parado. O Diabo e seus anjos são tão
bem-sucedidos em nos convencer de que a criação de Deus é uma pedra
de tropeço em nossa espiritualidade que recorremos aos mais improváveis
expedientes para conferir valor ao nosso lugar: uma casa com a cama em que
George Washington dormiu, uma batalha travada duzentos anos atrás, o
reinado vitorioso de uma equipe de futebol. Quando as condições do mundo
aviltam de tal forma nossa imaginação levando-nos à desvalorização do
232 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

lugar, falta-nos um contexto para a fé em Jesus Cristo. A fé é reservada


para o extremamente exótico, ou a fé se circunscreve ao êxtase esporádi-
co. Jamais nos ocorre que o lugar em que de fato vivemos e trabalhamos é
adequado para servir de base para grandes empreendimentos espirituais
como a salvação e a santificação.
E assim é necessário que se recupere um amor pelo local: esta rua, estas
árvores, esta umidade, estas casas. Sem uma reverência pelo local, a obe-
diência flutua nas nuvens da abstração. Toda vez que uma pedra recebe um
nome, uma flor é identificada, o número de uma casa é localizado, uma
rua é percorrida a pé, percebendo detalhes, observando a textura e a cor,
insistindo na particularidade imediata, o evangelho é servido, pois se abre
espaço e se fornece um local para ainda outro subproduto da encarnação,
que em sua maioria veio a sua forma definitiva em povoados pequenos e
em estradas de vilarejos.
Os pastores estão encarregados do evangelho numa localidade, uma área
limitada e restrita (embora o automóvel tenha estendido em muito as linhas).
Somos particularmente vulneráveis a desvalorizar o lugar por estarmos
habituados a transitar em grandes ideias, proclamando o evangelho a todo
o mundo e contando as histórias de missionários corajosos através de mares,
em tensão com membros de igrejas locais que examinam o jornal todo dia
em busca de pechinchas e calculam os benefícios da previdência social. Man-
têm-se atualizados quanto aos movimentos adúlteros do sr. Auchinclos na
terceira casa depois da próxima esquina. Mas, se perdemos contato com o
local imediato, perdemos contato com o único lugar em que essas pessoas
jamais terão a possibilidade de ter uma vida abundante em Cristo.
Os romancistas são especialmente bons em manter-nos em contato com
a localidade. Eu os uso para me manter em contato com meu local. Obser-
vo como são cuidadosos com os detalhes reais de fragrância, cor e forma
— as coisas que as pessoas compram, o que fica jogado nos quintais, o que
pode ser visto numa sarjeta, logo abaixo do meio-fio, na beleza de um caco
de vidro.
Wendell Berry é mais ou menos um especialista no exame dos lugares.
Ele não somente cria lugares com sua escrita, o que todos os romancistas
PASTORES E ROMANCES 233

habilidosos fazem, mas continua imaginando esse local, comentando so-


bre a glória do próprio solo sob nossos pés, um solo local. Ele faz isso numa
época em que a terra está sendo arruinada por pessoas que se recusam a
honrá-la como lugar onde viver, mas apenas como um recurso para explo-
rar. Seus romances Nathan Coulter e A Place on Earth [Um lugar na ter-
ra] têm sido para mim, pessoalmente, poderosos antídotos das condições
do mundo. Ele me atrai para observar quão precioso o lugar é, quão sagra-
do é o solo que é dado a nós pelo Criador para cuidar e nutrir, e que todo
lugar é local onde quer que seja. O lugar jamais é “em geral”. Ele valoriza
as delicadas interações espirituais que acontecem entre o ser humano e o
húmus. O lugar não é simplesmente um espaço vazio no qual podemos
exercitar nossa vontade. Tem sua própria natureza criada, que deve ser
tratada com respeito para que não violemos o que Deus determinou que
fosse bom e nossos antepassados experimentaram como sagrado. Enquanto
Wendell Berry põe no papel sua percepção de algumas dezenas de hectares
das regiões montanhosas do Kentucky, aguça-se e aprofunda-se minha apre-
ciação do clima e do solo local de minha congregação. Essas são as condi-
ções em que eu e meus paroquianos cometemos nossos pecados e
recebemos perdão. É onde alguns dias o louvor irrompe, e em outros o
desespero se avoluma. Eu mergulho, outra vez, nos aromas e sons deste
lugar, e me protejo, temporariamente ao menos, de abstrações grandiosas
e menosprezos reservados.
Os romancistas não são, naturalmente, imprescindíveis para manter os
pastores atentos à história, à pessoa e ao lugar. Muitos pastores parecem
se sair bem sem eles. Ler somente a Bíblia, esse livro extraordinário en-
charcado de histórias, pessoas, lugares, deve bastar. Mas as condições do
mundo, que insidiosamente corroem esses fundamentos de nossa realida-
de, são tão penetrantes e impenetráveis que parece muito solitário não fa-
zer uso desses companheiros habilidosos e agradáveis que se apresentam
entre as capas de um romance.
1
Conversas
capítulo 21

Uma conversa com


Eugene Peterson1

MICHAEL J. CUSICK
Nos meios editoriais cristãos em que o potencial de marketing, o carisma
e as fórmulas inéditas de autoajuda são, com frequência, mais valorizados
do que textos de conteúdo mais profundo, Eugene Peterson não chama a
atenção. No âmbito da espiritualidade, integridade, arte e imaginação, con-
tudo, Peterson certamente se sobressai.
Conhecido há anos como pastor de pastores, mais recentemente tornou-
se pastor do mundo anglófono com o lançamento de The message 2 [A Men-
sagem] em inglês contemporâneo. Nessa paráfrase das Escrituras, o primor
exegético de Peterson encontra-se impetuosamente com seu gênio poético,
forjados no fogo de quase trinta anos de pastorado.
“O pastorado”, diz Peterson, “é um dos poucos lugares de nossa socie-
dade onde você pode levar uma vida verdadeiramente criativa”. E, de fato,
esse homem tem sido criativo. Recebe o crédito de ter produzido dezoito
livros, inúmeras contribuições em outros tantos e dezenas de artigos de
periódicos e revistas. Sua carreira de escritor tem sido prolífica. Realiza-
ção não insignificante para um homem que ao mesmo tempo pastoreou
Christ Our King Presbyterian Church [Igreja Presbiteriana Cristo Nosso
Rei], em Bel Air, Maryland, por 29 anos.
A fim de dedicar mais tempo para escrever e ensinar, Peterson aposen-
tou-se do pastorado em 1991. Atualmente é professor de Teologia espiritual

1
Publicado pela primeira vez em Mars Hill Review, periódico de ensaios, estudos e lembretes
sobre Deus, 3: 73-90, outono de 1995. Artigo com direitos autorais reservados, reproduzido
com permissão de Mars Hill Review.
2
Colorado Springs: NavPress, 2002. Publicada na íntegra.
238 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

na Regent College [Faculdade Regent] em Vancouver, Colúmbia Britâni-


ca, no Canadá.

Mars Hill Review : Você é professor de Teologia espiritual na Regent College.


Em que pontos sua teologia espiritual difere dos estudos teológicos tradi-
cionais?
Eugene Peterson: A teologia espiritual está relacionada a viver a vida cris-
tã, e não somente pensar sobre ela. Tem uma longa história que remon-
ta aos períodos pré e pós-Reforma. Conta com uma tradição acadêmica
aliada a ela — oração, orientação espiritual e bases teológicas de como
se entende a fé. Até a época da Reforma, teologia era apenas teologia.
Os teólogos oravam e pensavam. Não havia nenhuma divisão entre vi-
ver a vida cristã e pensar sobre ela. Mas então houve o surgimento do
escolasticismo e a polêmica da Reforma, e esses dois elementos se
dissociaram. O teólogo sistemático tornou-se um acadêmico, e o teólo-
go espiritual tornou-se o capelão. Nas escolas católicas romanas sem-
pre houve uma forte liderança em teologia espiritual, em adoração e em
oração. No protestantismo, perdeu-se isso de vista, e se deixou para o
indivíduo cuidar de sua vida de oração.
As pessoas geralmente perguntam “Mas por que o adjetivo — toda a
teologia não é em si espiritual?”. Na realidade, aqui na Regent você vai
ter teologia espiritual tanto num curso de hebraico quanto em um de
meus cursos sobre espiritualidade. O objetivo é integrar os dois, de modo
que todo o seu pensamento seja imbuído de uma postura de oração.

MHR: A que você atribui o ressurgimento da espiritualidade e o intenso


interesse pela orientação espiritual?
EP: Em parte é simplesmente o fim da chamada era moderna. Não basta
apenas pensar. O racionalismo simplesmente não funciona. E o ativismo
não funciona. Assim, a igreja evangélica está tentando recuperar sua santi-
dade. Começamos a prestar muito mais atenção às tradições mais antigas,
ou à oração, à orientação espiritual e à liturgia. Não as estamos reduzindo
a algo individualista que você faz em seu devocional ou hora silenciosa.
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 239

Por isso acho que começamos a perceber certa superficialidade. Es-


tamos descobrindo que deixamos de fora algo muito essencial. Sempre
que há qualquer tipo de movimento como o evangelicalismo que come-
ça com uma quantidade incrível de energia, o ímpeto dessa energia o
carrega por longo tempo. Mas não está sendo capaz de carregá-lo ago-
ra. De repente, as pessoas estão se sentindo sem profundidade, empo-
brecidas, e percebendo que nossos antepassados espirituais contavam
com ricos recursos que precisamos recuperar. Felizmente, os estamos
recuperando.

MHR: Teria sido o fracasso do aconselhamento da atualidade em oferecer


algo transcendente às pessoas o fator que serviu de palco para esse au-
mento no interesse pela orientação e formação espiritual?
EP: Parece-me que em parte, sim. O movimento de aconselhamento, mes-
mo dentro da igreja, tornou-se pesadamente psicologizado e quase ex-
clusivamente terapêutico. Se você tivesse um problema, procuraria um
conselheiro. Assim, as pessoas acabaram fazendo tudo girar em torno
de problemas. E na maioria dos casos o aconselhamento perdeu a reve-
lação bíblica como sua âncora. Mas a orientação espiritual, em certo
sentido, não se inicia com um problema.
Ninguém precisaria ter um problema para então começar a lidar com
as coisas espirituais. A orientação espiritual parte muito mais de uma
saúde e de uma identidade de santidade cristã. Então, sim, creio que
buscar superar esse fracasso é uma reação esperada e óbvia.

MHR: Quando você se refere a santidade aqui, bem como em seus escritos,
apresenta uma imagem revigorante do assunto que não parece ter muita
semelhança com a visão evangélica conservadora mais comum. Como você
define santidade?
EP: Santidade é a vida cristã madura. É conseguir juntar todas as partes,
todos os pedaços de sua vida num ato de corresponder a Deus e a ele
obedecer, além de viver com certa dose de energia. A santidade é algo
flamejante, energético. Parte da razão porque a igreja de hoje perdeu
240 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

seu gosto pela santidade é que ela tornou-se mecanizada. Embora


tenhamos total convicção sobre o fato de que a justificação se dá por
meio da fé, a santidade acontece por meio de disciplinas, de trabalho,
de organização. Então ela passou a ser um constante ato de dispor aqui
e ali as regras, as dicas, os regulamentos e a tecnologia. Portanto, tor-
nou-se muito enfadonha e claustrofóbica.

MHR: Você quer dizer “enfadonha e claustrofóbica” em oposição ao que é


transmitido na The Message — que a santidade é algo que cresce natu-
ralmente de sua vida à medida que você desfruta de um relacionamento
com Deus?
EP: Sim, mas eu não diria que a santidade cresce naturalmente de sua vida.
Eu diria que se trata da obra do Espírito Santo em sua vida. É uma obra
em que há uma participação e uma obediência consciente e aplicada. É
viver a vida do Espírito sob as mesmas condições teológicas que você
vive a vida de fé e de justificação. É muito trinitária. Infelizmente, per-
demos essa integralidade trinitária, um senso de uma integralidade
relacional. Creio que seja um resultado da cultura e da fragmentação da
cultura, porque nos especializamos em muitas coisas diferentes. Como
protestantes, ficamos apreensivos com qualquer coisa que não tenha
brotado do último avivamento.

MHR: De que forma essa nossa perda da integralidade relacional afetou a


igreja?
EP: Tornou a igreja muito ocupada — porque, se você perde de vista um
cenário maior em Deus, entra num frenesi. Há muita coisa para fazer, e
é melhor pôr a mão na massa. Também afetou a igreja impessoalizando
os relacionamentos. Agora somos definidos pela nossa função. Você é
um bom professor da Escola bíblica dominical ou um missionário zelo-
so; desse modo, a atividade que você exerce torna-se um substituto da
espiritualidade trinitária.
A Trindade é um conceito muito dinâmico. Se perder isso, você aca-
ba tão somente com doutrinas — uma doutrina de Deus, uma doutrina
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 241

da justificação, todas as proposições que você precisa continuamente


reativar em sua vida.
A espiritualidade cristã tradicional não está coletando fragmentos,
pedaços de doutrina e os pondo em uso — mas significa entrar na vida
de Deus, que já está em movimento. Já existe movimento na Trindade.
É uma questão de mudar sua visão do que está acontecendo. Estamos
num bazar espiritual onde escolhemos versículos e textos que possamos
usar, ou estamos numa casa ordenada pelo Pai, Filho e Espírito Santo,
onde podemos ingressar naquilo que já está em andamento? Podemos
aprender a ser obedientes, a participar, a receber afeto e dar afeto. Mas
não é nossa casa; não somos os responsáveis por ela.

MHR: Parte do que se perdeu pode ser recuperado por meio de uma recupe-
ração da doutrina da Trindade?
EP: Sempre precisamos de recuperação. A igreja sempre se acha num ponto
ou noutro em que precisa ser resgatada, e hoje precisamos ser resgata-
dos dessa cultura do excesso, voltada para o conforto. Tudo é coisificado,
e nós nos tornamos coisificados. Neste exato momento, está havendo uma
grande recuperação da doutrina da Trindade, mas talvez ainda não
tenha chegado ao ponto de moldar pastores, líderes e professores.

MHR: A Regent College procura mostrar que não é um seminário. Qual é


sua opinião sobre os seminários hoje?
EP: A Regent começou como uma escola para leigos. Era para ser uma escola
internacional para estudos cristãos de pós-graduação. Ao longo do ca-
minho, os alunos começaram a dizer: “Queremos poder nos preparar
para a liderança pastoral na Regent”. Por causa do maravilhoso corpo
docente que temos aqui, há pessoas de todas as partes do mundo que se
sentiram atraídas para estudar na Regent. Então aumentou a pressão para
que tivéssemos um curso de M.Div. [mestrado em teologia], e mante-
mos um curso assim há dez anos. Mas há um estranho senso na Regent
da resistência à profissionalização do clero. Assim há uma tentativa cons-
tante de manter uma igualdade funcional entre o mercado de trabalho,
242 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

a igreja e os ministérios paraeclesiásticos. E a igualdade funcional sobre


a qual ambos se sustentam chama-se Deus. Assim, quando a escola se
apresenta como um não seminário, creio que está tentando fazer a se-
guinte declaração: “Esta não é uma escola comercial para a qual você
vem a fim de aprender a ser um líder eclesiástico de algum tipo. É um
lugar onde você é imerso na mente cristã, no espírito cristão, de modo
que possa ser preparado para ser ou pastor ou arquiteto”. Acabei de
concluir um curso nesse último fim de semana sobre ministério e espi-
ritualidade, com cem pessoas no curso. Metade dos estudantes era de
leigos, e metade achava-se em vocações relacionadas à igreja.

MHR: Que conceito fora do comum, radical! Preparar pessoas para vive-
rem para Deus em sua vocação, onde quer que estejam. Você certa vez
disse que, se fosse iniciar um seminário, gastaria os primeiros dois anos
estudando literatura. Poderia explicar isso melhor?
EP: Mesmo agora, em todos os meus cursos, os alunos leem poesia e nove-
las. No meu curso sobre espiritualidade, eles escrevem resenhas críti-
cas dos livros Middlemarch, O poder e a glória3 e o livro de Walter
Wangerin Book of the Dun Cow [Livro da vaca parda]. A importância da
poesia e dos romances reside no fato de que a vida cristã envolve o uso
da imaginação — afinal de contas, estamos lidando com o invisível. E a
imaginação é como somos treinados para lidar com o invisível — fazen-
do conexões, buscando enredo e personagens. Não quero descartar nem
denegrir a teologia ou a exegese, mas os nossos principais aliados nessa
questão são os artistas. Quero que a literatura esteja em pé de igualdade
com essas outras coisas. Precisam ser introduzidos como parceiros ple-
nos de todo esse negócio. A arte reflete onde vivemos. Vivemos na nar-
rativa, vivemos na história. Não vivemos como exegetas.

MHR: Usando de novo suas palavras, “A existência tem o formato de uma


história”. É isso o que você quer dizer?

3
Graham GREEN. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 243

EP: Sim, temos um começo e um fim, temos um enredo, temos persona-


gens. Não somos jornalistas — antes, acumulamos significado. Se con-
siderarmos a estrutura mais ampla das coisas, Deus tem uma história.
As Escrituras nos são dadas na forma de uma história. Eu gasto muito
tempo no que escrevo, no que ensino, no que prego, chamando a aten-
ção para esse caráter historiado de nossa vida. É bem natural — a
maioria das pessoas conta histórias, especialmente em outras culturas.
Meus estudantes africanos têm feito isso por toda a vida. Mas há algo
na América do Norte e no evangelicalismo que quer empacotar todas
as coisas numa pequena fórmula bem ordenada.

MHR: Você se considera um teólogo narrativo?


EP: Eu acolho todas essas ênfases à teologia narrativa, mas o problema de
um rótulo como “teólogo narrativo” é que o movimento de teologia
narrativa perdeu, ou nunca teve, as operações interiores do Espírito.
Encontra sentido na história — mas Jesus é a história, ele é o fascínio.
Em seu deslumbramento por ver como a narrativa funciona, muitos deles
perderam toda a dimensão teológica. Não vejo muito ganho nisso.

MHR: Você fala da importância dos artistas e da arte, mas parece haver
tamanha falta da arte na comunidade cristã. De que maneira pode-
mos incentivar a expansão das artes — música, literatura, teatro, escul-
tura?
EP: Aqui no câmpus da Regent sempre temos mostras artísticas, com obras
de arte que chegam a nós de artistas de toda a Vancouver. Chega tam-
bém muita música nova. A Regent é um lugar muito aberto para as ar-
tes. Creio que estejamos incentivando as artes. Parece que as artes estão
recebendo um grande foco também na igreja; ocorre, no entanto, que
não recebem a melhor projeção. Parece que há mais abertura em rela-
ção às artes.

MHR: Fale sobre a Chrysostom Society [Sociedade Crisóstomo], da qual


você faz parte. Como ela nasceu?
244 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

EP: Richard Foster, Calvin Miller e Karen Mains se reuniram porque esta-
vam muito isolados em seu ofício de escritores. Como escritores, senti-
ram que ninguém se importava se eles escreviam ou não. E ninguém se
importava se escreviam bem. Os editores se importavam se eles escre-
viam ou não, mas somente dentro das condições do mercado editorial.
Então esse grupo sentiu que era importante simplesmente se reunir,
escrever juntos e acreditar uns nos outros como praticantes de um ofí-
cio para a glória de Deus. Reuniram-se e alistaram quinze ou vinte no-
mes de pessoas que iriam desejar fazer isso. Foi algo bem aleatório. Não
creio que tenha havido um processo de eleição, por assim dizer, mas
minha mulher, Jan, e eu fomos convidados. Não participei no primeiro
ano porque eu estava numa licença sabática, mas no segundo ano parti-
cipei, de modo um tanto hesitante, porque na realidade não sentia aquele
isolamento. Eu era pastor. Calvin Miller era o único pastor além de mim,
Walter Wangerin tinha sido pastor, mas a maioria deles sentia mais ain-
da o isolamento. Alguns deles são professores, editores. Mas, depois de
participar nos primeiros dias, tive certeza de que queria fazer parte.
Ninguém mais me havia tratado como escritor. Significou alguma coisa
para mim ter a confirmação de colegas como eu que se importavam se
eu escrevia bem ou não. Não me perguntaram quantos livros ou contra-
tos eu tinha em andamento. Tudo o que perguntaram foi “Somos escri-
tores para a glória de Deus?”. Nossas reuniões são anuais, durante quatro
dias. Eles passaram a ser amigos maravilhosos.

MHR: O que significa “Crisóstomo”?


EP: Crisóstomo foi um pastor da Ásia Menor no terceiro século. Acredito
que o nome fosse na realidade uma alcunha, pois significa “Boca de
Ouro”. Era um orador, um grande pregador. Ninguém no grupo gostou
do nome. Mas Richard Foster continuou chamando o grupo Sociedade
Crisóstomo, e ninguém sugeriu nada melhor.

MHR: Ainda no assunto das palavras, você escreveu: “Eu trabalho com
palavras. Ao pastorear, trabalho com pessoas; não meras palavras nem
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 245

meras pessoas, mas palavras e pessoas como portadoras do Espírito. No


momento em que as palavras são usadas sem um espírito de oração, pa-
rece haver na vida um vazamento de algo essencial”. O que significa esse
espírito de oração em relação às pessoas e às palavras?

EP: Isso se acha bem no cerne de nossa teologia. No começo era a Palavra.
A Palavra estava com Deus. A revelação vem pela Palavra. E todas essas
palavras são pessoais, não há nenhuma palavra abstrata. O próprio Deus
está encarnando-se pela palavra. A linguagem é a maneira pela qual nos
revelamos uns aos outros — é o principal meio de aprofundar e manter
a intimidade. No instante em que a linguagem se torna funcionalizada,
ocorre o sacrilégio.

MHR: O que você quer dizer com “No instante em que a linguagem se torna
funcionalizada”?
EP: Torna-se funcionalizada quando usada apenas para informar ou conse-
guir que alguém faça algo por você. Ou para conseguir que alguém com-
pre alguma coisa. Como cristãos, vemo-nos presos nessa cultura, e
começamos a usar a linguagem, ainda que por necessidade, em seu sen-
tido mais aviltado. O sentido mais importante para o qual recebemos a
linguagem foi para a revelação, para a bênção. Abandonamos nossa
herança — nossa teologia, nossas Escrituras —, e tomamos essas mes-
mas palavras que começaram em santidade, um tipo trinitário de santi-
dade — uma santidade relacional —, e pensamos que, somente porque
temos as palavras certas como “Jesus salva” ou João 3:16, podemos usá-
las da maneira que quisermos. Mas não podemos. Precisam ser proferi-
das da maneira em que foram reveladas, pelo menos com a mesma
postura e tom. Creio que tenha chegado a hora de haver uma grande
recuperação da linguagem. Precisamos recuperar a natureza de nossa
linguagem porque as palavras são santas.
As pessoas são da mesma maneira. Quando olho para você, posso
ver que foi feito à imagem de Deus. Preciso estar ciente disso. Se não,
você passa a ser para mim uma maneira de encontrar um trabalho
246 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

melhor. Quando você não tem mais serventia para mim, está fora
daqui.

MHR: Você está querendo dizer, então, que precisamos ser muito mais in-
tencionais com nossas palavras?
EP: Sim, mas que isso não soe como se você tivesse de ser calculista, astuto.
Quando você leva as palavras a sério, quando respeita a linguagem, pode
ser bastante espontâneo. Por isso uso a expressão “em espírito de ora-
ção”. Se as palavras estiverem brotando de quem você é e do relaciona-
mento que você tem com Deus e com seus amigos, você pode ser bem
espontâneo com as palavras. Assim, se você está pensando em “intencio-
nal” no sentido mais fundamental do termo, concordo com você. Co-
meça com a maneira em que você percebe a linguagem e as pessoas,
como elas são exatamente. Mas, se, quando usa a palavra “intencional”,
quer se referir a um tipo de obsessão quanto a dever ou não dizer alguma
coisa, então eu discordaria. As palavras brotam de relacionamento e de
oração — uma vida de oração, não apenas de orações que você repete.

MHR: Você poderia falar um pouco mais sobre a ideia de “uma vida de ora-
ção” em oposição a orações que você repete?
EP: A oração é uma vida na qual você foi imergido. É uma dimensão inte-
rior da nossa vida num relacionamento com o Deus que falou conosco
— tão profundamente dentro de nós que há uma realidade dialógica.
Deus fez nascer a vida pelo poder de sua palavra, e nós respondemos. É
assim que a nossa vida é: quando nossa vida entra nessa palavra vívida,
essa revelação, a oração é viver nossa vida agora em resposta a isso. A
oração não pode ser confinada a determinado período de tempo. É ape-
nas nutrida nessas disciplinas, e percebemos certos aspectos dela nes-
ses períodos.
A certa altura percebi que, quando eu gasto muito tempo no ato ex-
terno da oração — no qual alguém me poderia ver pelo buraco de uma
fechadura e dizer que estou orando —, não estou então orando de fato;
estou apenas me preparando para orar. Quando me levanto depois da-
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 247

queles momentos de joelhos ou saio daquela cadeira às oito horas, é aí


que começo a orar. Aquele momento em que eu profiro orações é ape-
nas o tempo que gasto preparando-me para orar. Livrando-me das dis-
trações e fazendo coisas pré-decididas sobre o meu dia possibilita o
espaço para que eu não seja engolido pela agenda de todo mundo.
Na infância e na adolescência, meus pais muitas vezes convidavam
missionários para passarem um tempo em nossa casa em Montana a
fim de descansarem e se recuperarem. Eu tinha por volta de quinze anos
quando, num verão, um homem veio nos visitar. Era um francês chamado
John Writ Follett — um homem pequeno, franzino, que nunca tinha
casado. Era um professor de grande aceitação no movimento pentecos-
tal das décadas de 1930 e 1940, e como o nome dele era um daqueles
conhecidíssimos em nossos círculos, eu tinha profunda admiração por
ele. Quando o conheci pessoalmente, contava provavelmente setenta anos
de idade.
Um dia ele estava recostado numa rede, com os olhos fechados, e eu
querendo falar com ele. Disse a minha mãe que queria falar com ele, e
ela respondeu: “É só se aproximar e falar com ele. Sem nenhum proble-
ma”. Timidamente aproximei-me da rede e perguntei: “Dr. Follett, como
o senhor ora?”. Ele nem abriu os olhos. Simplesmente grunhiu e disse:
“Faz quarenta anos que não oro!”. Fiquei alarmado. Saí totalmente con-
fuso. Desde esse momento, venho percebendo a sabedoria do homem.
Você vê, qualquer coisa que ele tivesse me dito eu teria imitado. Eu te-
ria feito o que ele disse e fez, pensando que oração era isso. Ele arriscou
algo para me ensinar o que era oração, e fico feliz que tenha consegui-
do. Oração não era algo que ele fizesse — era algo que ele era. Ele leva-
va uma vida de oração. Levei uns seis ou sete anos para compreender o
que ele tinha feito. Mas com certeza foi melhor do que desperdiçar tempo
tentando imitar o que ele fazia.

MHR: Conte sobre a The Message e como ela nasceu.


EP: Começou com uma chamada telefônica de Jon Stine, que é agora meu
editor na NavPress. Ele disse: “Lembra-se de Traveling Light, o livro que
248 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

escreveu sobre Gálatas? Bem, eu recortei todas as partes parafraseadas,


fiz cópias, grampeei e carrego comigo há dez anos, mostrando a todos
os meus amigos. Realmente estou ficando bem cansado de permanecer
só em Gálatas. Você poderia parafrasear todo o Novo Testamento?”.
Bem, levei um ano para fazer Gálatas. Então pensei: “Como vou con-
seguir fazer todo o Novo Testamento?”. Jon ligou três ou quatro meses
depois, quando, nesse ínterim, para outras razões, eu tinha decidido me
aposentar da igreja local que pastoreava. Jan e eu chegáramos à conclu-
são de que era hora de deixar o pastorado, principalmente para que eu
pudesse investir mais tempo escrevendo. Depois dessa decisão, quando
ainda estávamos com a congregação, Jon me ligou outra vez. Achei que
pudesse fazê-lo naquele momento — mas pessoalmente não pensei
que pudesse. Talvez pudesse fazer Paulo, visto que Paulo é fácil em cer-
to sentido. Ele se enreda, e você o desenreda. Mas nunca pensei que pu-
desse fazer os evangelhos. Concordei em trabalhar dez capítulos de
Mateus, e Jon ia então mostrá-los a seus colegas para ver o que acha-
vam. Os primeiros capítulos ficaram bem ruins mesmo — fiz me arras-
tando. Mas, quando cheguei ao capítulo 5, o Sermão do Monte, deu aquele
estalo, e de repente tive a sensação: “É isso que eu sei fazer”. Foi quando
percebi que estava em algo que poderia dar certo.
Para falar a verdade, todo o tempo em que escrevi a The Message e
mandava para Jon o material, pensei que ele iria pedir que eu parasse.
Veja, escrever e parafrasear não pareciam na realidade ser trabalhos di-
ferentes para mim, porque eu tinha feito isso a vida toda. É o que eu
faço. Como amo a linguagem e as palavras, sempre li minha Bíblia em
hebraico e em grego na idade adulta. Assim, eu sempre tentei colocar
essas línguas no inglês americano, especialmente na minha pregação
e no meu ensino. Mas sempre estive numa congregação pequena, e
ninguém lá pensava que era tão maravilhoso assim. Enquanto eu fiz a
The Message, muitas vezes tive o sentimento de colheita. Era como se
eu nem estivesse trabalhando nela, porque simplesmente estava toman-
do o que vinha crescendo e se desenvolvendo. De algumas maneiras foi
fácil, como percorrer um pomar e colher maçãs de uma árvore.
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 249

MHR: A colheita sendo o resultado de uma vida inteira pastoreando pessoas,


e sua bagagem acadêmica?
EP: Sim, mas diz respeito a algo que está mais atrás ainda. Percebi que vinha
sendo preparado para isso desde muito pequeno, porque meu pai era
açougueiro. Sempre moramos perto de seu açougue, e eu estava sem-
pre lá, na verdade cresci lá dentro. Minha mãe me fazia um avental de
açougueiro todo ano. E como meu pai usava um avental de açougueiro,
e sorria, e as pessoas gostavam muito de ir a nossa loja, eu costumava
pensar nele como um sacerdote. Eu conhecia a história de Samuel, Eli e
Ana. E sempre imaginava que, enquanto Samuel crescia, ele usava um
avental de açougueiro exatamente como eu. Eu pensava que as vestes
sacerdotais eram isso.
Então sempre tive esse senso de santidade, de sacralidade no local de
trabalho. O lugar de trabalho era o lugar e a língua em que você falava
sobre Deus e orava. Era um lugar todo novo. Tínhamos um pregador
que se especializou em Levítico e no templo e em tudo o que acontecia
lá. Então eu sabia o que acontecia lá — eles matavam animais, e havia
muito sangue, vísceras e moscas. Assim todo aquele material sobre o
culto que ouvia na igreja, eu traduzia em nosso açougue com meu pai,
que era um sacerdote. Estávamos numa pequena cidade do Oeste, e havia
muitos indivíduos desajustados e excêntricos, de modo que a linguagem
era colorida. Não cresci com uma linguagem sofisticada.

MHR: Então você não foi criado com a mentalidade de que a Bíblia era um
livro cerimonial, elisabetana?
EP: Exato, nunca foi assim para mim. Mas, quando me tornei pastor
presbiteriano, todas aquelas pessoas vinham à igreja aos domingos pela
manhã e deixavam 80% do vocabulário delas para trás. Como poderiam
ouvir o evangelho nessa linguagem reduzida, agradável, boa parte da qual
aprenderam na faculdade? Eu sabia que precisava usar uma linguagem que
elas usassem o tempo todo. E foi o que fiz durante trinta anos como
pastor. O tom e os ritmos da minha linguagem tinham de ser congruentes
com o texto, o que deu início à língua de rua.
250 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

MHR: Ouvindo como a mão de Deus estava sobre sua vida mesmo quando
era um menino, e como os seus primeiros dias no açougue de seu pai in-
fluíram em como você traduziria as Escrituras mais tarde na vida —
que retrato poderoso da providência!
EP: Creio nisso, com certeza. Consigo enxergar tanta coisa agora, como o
fato de que eu estava sendo preparado para fazer a The Message quando
tinha 4 anos de idade. A The Message foi tão bem recebida, e é algo que
me deixa totalmente surpreso. Eu não tinha nenhuma ideia, nem mes-
mo a mínima noção, de que isso aconteceria. Comecei a pensar: “Como
isso acontece?”. Nunca me sentei para fazê-lo — simplesmente aconte-
ceu. Em certo sentido, foi totalmente sem esforço. Trabalhei arduamente
e investi longas horas, mas não era como se eu estivesse tentando fazer
algo que eu não sabia fazer.

MHR: Algumas das palavras usadas para descrever a The Message são “de
tirar o fôlego”, “cativante”, “vai deter as pessoas em seus caminhos”.
Como você se sente com essas descrições?
EP: Entendo que as pessoas se entusiasmam e exageram. Mas parece-me
que as pessoas ficam surpresas que a The Message seja tão comum. Não
sabiam que Deus estava falando com elas onde estavam, que entrou na
vida delas onde estavam. Temos essa ideia de uma vida dicotomizada —
uma vida religiosa e uma vida secular. Bem, aqui está algo secular, e as
pessoas são pegas de surpresa. Se é disso que elas estão falando, então
fico contente. Mas acho que é o caráter comum da The Message que
surpreende as pessoas.

MHR: Parece que é o caráter comum que se mostra mais poderoso para as
pessoas. Um pastor disse que espera que a The Message “despedace to-
talmente nosso pensamento acomodado sobre a Bíblia”. Por que você acha
que ficamos tão à vontade com as Escrituras?
EP: Creio que seja em parte o nosso pecado. Uma das mais incríveis
façanhas do Diabo é fazer que as pessoas passem três noites por sema-
na em estudos bíblicos.
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 251

MHR: Estou certo de que isso vai surpreender muitos leitores!


EP: Bem, por que as pessoas gastam tanto tempo estudando a Bíblia? Quanto
você precisa saber? Investimos todo esse tempo em compreender o texto,
o que em si tem toda uma vida à parte, e pensamos que estamos sendo
mais santos e espirituais quando o fazemos. Mas a Bíblia está toda ali
para ser vivida. Foi-nos dada para que a vivêssemos. A maioria dos cris-
tãos sabe muito mais da Bíblia do que a está vivendo. Precisa estudá-la
menos, não mais. Você só precisa do suficiente para prestar atenção em
Deus.

MHR: Você diz que tratamos o texto como se tivesse vida própria. Muitos
diriam que de fato ele tem vida própria — então, obviamente você deve
ter outra coisa em mente quando diz isso.
EP: Acho que gostaria de expressar isso de outra maneira. Tratamos o tex-
to como se estivesse num mundo todo seu, à parte, separado de nossa
vida. Ainda assim, esse texto revela Deus agindo amorosamente no
mundo. E a intenção do texto é aproximar-nos desse mundo da ação de
Deus. O estudo é normalmente um processo hiperintelectualizado —
nos tira dos relacionamentos. Assim, imagino que toda a ênfase no es-
tudo bíblico não é a melhor coisa quando encarado como algo especial
que os cristãos fazem, e, quanto mais fazem, melhor. Precisa ser inte-
grado a algo mais integral.

MHR: Então existe uma interação muito natural entre o texto e nossa
vida.
EP: Sim, mas aqui também eu digo que, enquanto formos ignorantes em
relação às Escrituras, não teremos a menor ideia do que Deus está fa-
zendo. Realmente precisamos recuperar o mundo da Bíblia como um
todo. O que vejo acontecer é que, quando as pessoas leem a Bíblia, elas
reduzem o mundo a algo que chamam estudo bíblico. Mas o mundo da
Bíblia — o mundo revelado nas Escrituras — é um mundo muito maior
do que qualquer coisa que você tenha nos jornais ou nos livros de histó-
ria. Se estamos fazendo o estudo bíblico corretamente, precisamos ter
252 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

um vislumbre disso. Mas a maneira em que os estudos bíblicos são ge-


ralmente conduzidos põe as pessoas que o fazem num gueto.

MHR: Você escreveu a The Message para “os de fora que não dão a mínima,
e para os de dentro, totalmente entediados”. Quem são essas pessoas?
EP: Os de fora não veem que a fé cristã tenha alguma relação com eles.
Acham que o cristianismo é para os religiosos. E, como não são religio-
sos, não vão abrir a Bíblia. Há muitos também que foram intimidados
pelos cristãos e não se sentem à altura. Pensam que, se não passarem
por um estágio preliminar, como pré-requisito, não podem compreen-
der o que se passa. Há uma enorme quantidade de ignorância sobre Deus
e as Escrituras. Parte dela é perpetuada pela intimidação. É como se você
tivesse de ter um curso introdutório especial antes de saber o que está
se passando. Os entediados de dentro são os que encontro o tempo todo.
Ouviram as Escrituras vez após vez, e perderam contato com a realida-
de dessas palavras.
Aqui também vemos algo que faz parte da providência que você men-
cionou. Eu tinha uma congregação que era um misto dos dois grupos.
Havia pessoas que tinham crescido na igreja e estavam lá a vida toda.
Era uma espécie de convenção para elas. Também havia pessoas que nun-
ca tinham ouvido falar de nada que fosse cristão. Não poderia dizer o
nome Abraão e esperar que as pessoas soubessem de quem eu estava
falando. Então tive de aprender a dizê-lo porque eu tive todos esses “de
fora” que não sabiam nada sobre a religião ou sobre o cristianismo. Eles
me forçaram a deixar que a linguagem deles fosse a língua da minha
pregação e do meu ensino. Tive de aprender isso. Mas se você é “de
dentro”, é bem fácil ter os ouvidos embotados — e eu queria acordar
essas pessoas. É o que os pregadores devem fazer a cada domingo — e
é o que tenho feito toda a minha vida.

MHR: Estou sabendo que atualmente está trabalhando na paráfrase do


Antigo Testamento. Como isso está se processando para você?
EP: Acabei de concluir Cântico dos Cânticos, que foi o último escrito
sapiencial que tive de fazer. Creio que Cântico dos Cânticos foi a coisa
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 253

mais difícil que eu já fiz até agora. Fiz tudo aos poucos, e deixei esse
para o final. Acho que o resultado foi muito bom. O que percebo é que
perdemos uma linguagem em torno da sexualidade. Ou temos eufemis-
mos, ou vulgaridades. Mas a inocência doce e erótica de Cântico dos
Cânticos — onde você vai encontrar isso? Não sabia se havia sobrado
alguma linguagem para expressar isso. Fiquei feliz com o que fiz lá.

MHR: No meu entender, você fica mais à vontade com a língua semítica do
Antigo Testamento. O trabalho de tradução aí é mais fácil e mais natu-
ral para você do que no Novo Testamento?
EP: Creio que sim, mas é difícil ter certeza a esta altura. Meus estudos de
pós-graduação foram em línguas semíticas. Assim tecnicamente sei mais
hebraico, mas tenho lido grego há 35 anos e me sinto igualmente à vontade
nessa língua. Mas há de fato um senso de estar totalmente à vontade que
passo a experimentar à medida que avanço no Antigo Testamento.

MHR: Há planos para algum dia publicar a The Message como uma Bíblia
inteira num único volume?
EP: Sim, se o Senhor não retornar antes! Acabei de propor uma progra-
mação para o meu editor. Espero terminá-la em seis anos. Eu a dividi
em quatro seções, com dois anos por seção. Acabei de concluir os
Sapienciais. Em seguida, farei os Livros Históricos, depois os Proféti-
cos, depois o Pentateuco. Acredito ter uma programação que funciona-
rá bem. O Novo Testamento foi concluído em aproximadamente um
ano e meio. Foi demais, com muitos longos dias nos quais eu não fazia
mais nada além disso. Quando terminei, decidi nunca mais manter esse
ritmo. Então a NavPress perguntou se eu faria o Antigo Testamento, e
minha primeira reação foi: “Não! Não posso viver assim”. Mas à medi-
da que as respostas começaram a chegar, percebi o que estava aconte-
cendo. Depois de aproximadamente seis meses, pensei: “Senhor, talvez
esse seja o meu trabalho”. Orei longas horas e conversei sobre isso por
muito tempo. Era um compromisso assombroso. Mas concluí que esse
era o meu trabalho agora.
254 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Pode soar estranho, mas sou escritor, e escritores gostam de escre-


ver. Ainda assim, a The Message não é escrever — é traduzir. Quando
você escreve, pode trabalhar uma hora ou duas numa frase, e de repen-
te está lá. Você sente que ninguém a fez daquela maneira antes, e jamais
a farão de novo. Há um senso de “Ah! Eu fiz isso”. Mas nunca tive isso
com a The Message. Fico sempre em segundo lugar em relação a Paulo,
Marcos e João. Uma vez, logo depois de concluir a The Message, lem-
bro de ter dito a Jan: “Estou tão cansado de ficar em segundo lugar”. Eu
não queria mais fazê-lo.

MHR: Parece algo que nos põe no nosso lugar. E ainda assim você tem a
excelente companhia de Paulo, João e outros.
EP: Exato. Mas meu trabalho no Antigo Testamento significa que não es-
tou escrevendo muita coisa que gostaria de escrever. Ainda estou escre-
vendo algumas coisas. Mas percebi que esse é o meu trabalho. Foi o que
me deram para fazer. Então vou fazer.

MHR: Você já tinha uma carreira prolífica. O que significa realizar um


projeto tão importante e agora ser conhecido como o homem que parafra-
seou a Bíblia? É um peso que você carrega?
EP: Para ser sincero, não é algo sobre o que eu tenha pensado muito. Você
diz coisas sobre ser prolífico, e sei que não está criando essas coisas, mas
no meu interior eu praticamente não tenho nenhum senso disso. De certa
maneira, fico feliz que não tenha sido minha ideia. Não foi algo que eu
vinha planejando ou traçando. Simplesmente fiz e está feito.

MHR: Temos notícia de que J. B. Phillips lutou com depressão pelo fato de
sua tradução do The New Testament in Modern English [Novo Testa-
mento em inglês moderno] ter sido tão aclamada. A The Message exer-
ceu uma influência assim sobre você?
EP: A depressão de Phillips começou logo depois que ele concluiu a tradu-
ção. E ele tinha também um histórico de depressão mesmo antes de seu
trabalho de tradução. Foi muito maltratado. Houve gente que pegou
pesado com ele, dizendo que não poderia ter feito a tradução. Acho que
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 255

isso o fez entrar em parafuso e exerceu um grande impacto sobre ele.


Não diria que teve esse efeito em mim, exceto pela distração. Mas re-
solvemos esse problema de alguma maneira, porque agora não aceito
nenhum compromisso para palestrar. Não vou a nenhum lugar. Só fico
aqui na Regent, dou minhas aulas e vejo meus alunos e colegas. Jan está
escrevendo várias cartas por semana e atendendo a chamadas telefôni-
cas, recusando os convites para palestrar que me destruiriam se os acei-
tasse. Há algo muito impessoalizante nas viagens e nas palestras. Acho
tudo isso muito destrutivo para a alma. Sempre estive numa congrega-
ção pequena, e todo o meu trabalho foi sempre realizado em um lugar
de intimidade. Quando as pessoas começaram a falar sobre mim e não
comigo, e comecei a ser usado como um alto-falante ou algo assim, achei
que tudo isso era muito estranho e doloroso. Assim, tomamos essa de-
cisão uns três ou quatro meses depois que vim para cá. Consequente-
mente, sinto-me muito mais protegido.

MHR: Como você tem respondido a seus críticos?


EP: Tive a sorte de ter tido muito poucos críticos. Uma pessoa me pegou e
fez uma campanha em cima disso por um tempo. Mas não fiz nada a
respeito — a NavPress cuidou de tudo. Eles foram muito corteses e aten-
ciosos com suas preocupações e críticas. Tenho uma equipe de acadê-
micos que verifica tudo que faço, e ela respondeu muito bem a essa pessoa.
Não que eu não tenha sido atingido, mas ela cuidou de tudo muito bem.
Dentro do que entendi ter acontecido, o homem que tinha empreendi-
do a campanha foi barrado pelas pessoas, que diziam: “Não faça isso”.
Quando publicamos a The Message, eu sabia sobre J. B. Phillips, e
sabia sobre Kenneth Taylor, que escreveu a Bíblia Viva. Taylor realmente
enfrentou grandes dificuldades, a ponto de receber ameaças de morte. Foi
horrível para ele. Pensei: “A gente simplesmente se muda para os Mares
do Sul por uns dois anos e se esconde esperando a poeira assentar”.

MHR: E aquela crítica que se dá porque as pessoas ficam incomodadas com


algumas expressões mais inusitadas, e com aquela franqueza e aquele
realismo da linguagem?
256 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

EP: Não tive muito esse tipo de reação, e acho que a NavPress também
não. Uma vez ou outra, alguém escreve uma carta, mas só às vezes mes-
mo. Tenho tido surpresas muito agradáveis, porque recebo cartas ma-
ravilhosas. Uma mulher de 87 anos, por exemplo, me escreveu. Ela disse:
“Sou uma mulher da Bíblia King James, mas tenho todos esses sobri-
nhos e sobrinhas que não leem a Bíblia. Pensei que talvez pudesse presen-
tear-lhes com a The Message; então comprei um exemplar e fui analisá-lo.
Quero que saiba que eu mesma nunca mais vou lê-la, mas eu a comparei
com a minha King James e acho que está aprovada. Estava certa todas as
vezes, então vou dá-la a todos os meus sobrinhos e sobrinhas”.

MHR: Você poderia colocá-la em seu conselho consultivo!


EP: Foi uma carta tão amável. E ela me garantiu umas duas ou três vezes
que ela mesma não iria lê-la.

MHR: Você escreveu muito sobre ser subversivo no pastorado e na liderança


espiritual. E você é um poeta. A poesia e as artes são subversivas?
EP: Sim — a poesia e as artes são subversivas. Elas tocam indiretamente
nas coisas. Geralmente não são frontais. Elas penetram furtivamente
em você, e são silenciosas. Espiritualmente falando, o eu está constan-
temente se interpretando contra Deus. É a natureza do nosso pecado —
queremos ser nossos próprios deuses. Assim, temos todas essas cama-
das de defesa que muitas vezes tomam a forma de falsa piedade. A reli-
gião é a principal defesa que temos contra Deus. Então como você pega
pessoas que se defendem pesadamente contra Deus por meio da reli-
gião e rompe a defesa delas? É por meio da subversão. Você circunda as
defesas. É o que fazem a parábola e o provérbio. Jesus fez muito pouca
coisa direta. As pessoas estavam sempre coçando a cabeça e se pergun-
tando: “O que ele quer dizer?”.
Em outro nível, menor, a cultura desenvolve ideologias para prote-
ger as pessoas da realidade. Então como você consegue superar a ideo-
logia? Imagine que alguém diga “Todos os negros são inferiores” e você
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 257

tem vivido essa ideologia toda a sua vida. Como você chega por trás
disso? Geralmente não é argumentando, nem sendo racional.

MHR: Você escreveu que Jesus era “o mestre das indiretas”. Os evangélicos
são diretos demais com o evangelho, frontais demais?
EP: Eu hesitaria em dizer que somos demasiadamente frontais, porque faz
parte da proclamação — o reino de Deus está perto, arrependam-se,
creiam no evangelho. Mas, sim, precisamos praticar muito mais a arte
de ser indiretos. É basicamente o que faz o poeta ou o romancista. Não
diria que precisamos fazer menos trabalho frontal com o evangelho.
Apenas precisamos praticar mais os elementos subversivos.

MHR: Eu li um artigo em que você escreveu: “Toda vez que alguém conta
uma história e a conta bem, o evangelho é servido”. Você quer dizer que
precisamos apresentar o evangelho de outras maneiras que não apenas
“Aqui estão os passos para ser salvo?”.
EP: Creio que a palavra-chave no que eu disse é “servido”. Não quis dizer
que o evangelho é proclamado toda vez que alguém conta uma história.
Quando as histórias são contadas, as pessoas começam a adquirir um
senso de que a vida tem valor e significado, e de que elas são significan-
tes. Então começam a buscar esse significado, perguntando “Onde
está o significado? Onde posso encontrar valor?”. Mas enquanto as
pessoas não começam a perceber como estão entrelaçadas na criação
e no sofrimento, que não são meros acidentes de percurso, na verdade
elas não ouvem a história do evangelho. Então a palavra importante é
“servido”.
Se você estivesse parado numa esquina, e um solitário se aproximas-
se, você poderia perguntar “Como vai?”, e a pessoa poderia começar a
responder. Se você a escutar, em cinco minutos, parte da vida dessa pes-
soa renasce. O fato de você deixar que ela conte sua história fornece
um contexto para ela receber Jesus e para o Espírito Santo trabalhar.
Mas, se sente que não tem nenhuma história, então não há nenhum con-
texto, nenhum senso de pertença.
258 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

MHR: Então seria mais uma porta de entrada para proclamar o evan-
gelho?
EP: É também uma forma de se familiarizar com a maneira em que o evan-
gelho chega a nós por padrão. Chega-nos por meio da história de Jesus,
não por meio da doutrina de Jesus. Ele nasce, vive, morre, ressuscita —
é história do começo ao fim. É muito importante manter a história, e
não apenas extrair ideias dela.

MHR: Evangelismo é uma palavra com a qual você fica pouco à vontade tendo
em vista a maneira em que ele vem sendo usado. O que é evangelismo
para você?
EP: Não fico à vontade com ele em seu sentido intimidador. Não tenho
nenhum problema com ele em seu sentido etimológico. Evangelismo é
crer e viver como se isso realmente fosse boa notícia, como se fosse uma
notícia inacreditável, e temos algo a dizer. O evangelismo também sig-
nifica que aprendemos a contá-la da maneira que Jesus a contou, e não
apenas da maneira que queremos contá-la. Precisamos aprender não só
a verdade dele, mas também seus métodos, de modo que possamos
aprender a tratar as pessoas com dignidade.
Outro dia, ouvi uma história terrível de uma de minhas alunas que
tinha acabado de chegar de Ruanda. Enquanto trabalhava em meio a mo-
ribundos, pessoas sangrando e chacinados, saiu andando entre os cor-
pos marcando sobre a testa os que poderiam se beneficiar de tratamento
médico. Uma equipe de médicos seguia após ela para cuidar e tratar de
cada um. Mas havia um homem, um colega missionário, que estava ven-
dendo folhetos para essas pessoas. Ela perguntou:
— O que você está fazendo?!
Ele respondeu:
— É surpreendente que tenham dinheiro com eles. É espantoso quan-
to dinheiro essas pessoas têm.
Parece inacreditável. Mas, se você parar para pensar por dez segun-
dos, verá que já viu isso em você mesmo. Talvez não de maneira tão cho-
cante, mas já viu em você mesmo.
UMA CONVERSA COM EUGENE PETERSON 259

Os evangélicos precisam aprender a fazer evangelismo com base em


Jesus, não em um manual. Tenho um aluno que é pastor em Hong Kong.
Está escrevendo uma dissertação para mim sobre o evangelismo em Hong
Kong. Todos em Hong Kong estão em estado de pânico por causa de
1997, quando estarão sob o governo da China continental. Sabem que
precisam evangelizar o lugar antes disso. Por isso, estão usando todo
método de relações públicas e tecnológico disponível. Mas, na mente
deles, não há pessoas em Hong Kong. Nenhum pecador lá é uma pes-
soa; antes, um alvo. Esse pastor está extremamente entristecido com a
impessoalização de toda a cidade em nome do evangelismo.

MHR: E esse tipo de impessoalização contradiz toda a ideia da encarnação.


EP: Sim, com certeza. A coisa mais importante com a qual estamos lidan-
do é o fato de que Deus está fazendo algo. Não é simplesmente que ele
existe, mas está fazendo algo. Por isso dizemos que cremos no Espírito
Santo, porque cremos que ele esteja fazendo algo. Se Deus está fazendo
algo, o mais importante que eu posso fazer é sair em busca disso, pres-
tar atenção nisso e corresponder a isso.
Todo esse engajamento na luta por “fazer algo para Jesus” acaba atra-
palhando. Tiramos a atenção das pessoas daquilo que Deus está fazen-
do. Você ouve falar de todas essas coisas quando as pessoas seguem a
onda do momento, sem realmente prestar atenção em nada simplesmen-
te. Quando você chega à minha idade, fica cada vez mais cético sobre
qualquer coisa em que haja grande dose de entusiasmo, porque na se-
mana que vem vai ter outra onda.
Não acho que eu seja um quietista de forma alguma, incentivan-
do as pessoas a serem espectadores. Por sinal, é muito revigorante
quando você começa a responder dessa maneira. É também muito li-
bertador, porque você não está operando a partir de uma ansiedade, mas
da graça.

MHR: Por qual coisa você gostaria de ser lembrado?


EP: (Risos.) Michael, não é uma boa pergunta!
260 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

MHR: Por que não? Você não gosta de falar de si mesmo, gosta?
EP: Gostaria de ser lembrado como bom marido, bom pai, bom pastor.
Gostaria de ser lembrado da perspectiva das pessoas com as quais con-
vivi.

MHR: Acho poderosa sua resposta. Muitas pessoas poderiam pensar: “Ele
fez a The Message, escreveu dezesseis livros, foi pastor...”. Mas você sabe
que nada disso tem sentido se os mais próximos a você não foram ama-
dos. Se soubesse que teria de entregar seu último sermão ou mensagem,
quais seriam seus possíveis temas?
EP: Creio que gostaria de falar de coisas imediatas e comuns. No tipo de
mundo em que vivemos. A principal maneira de chamar a atenção das
pessoas para Deus é dizendo “Com quem você vai tomar o seu próximo
café da manhã, e como vai tratar essa pessoa?”. Não sinto que eu faça
parte da grande visão, ou do slogan mais atraente. Somente quero pres-
tar atenção ao que as pessoas estão fazendo, e ajudá-las a fazê-lo em atos
de fé e oração. Talvez gostaria de dizer: “Vá para casa e seja bom para
sua esposa. Trate seus filhos com respeito. E faça um bom trabalho na-
quilo, o que quer que seja, que colocaram em suas mãos para fazer”.
capítulo 22

Casualmente intencional:
uma abordagem ao pastorado1

Em seus dezoito anos como pastor da Christ Our King Church [Igreja Cristo
Nosso Rei] em Bel Air, Maryland, Eugene Peterson fez muitas reflexões sobre
o pastorado bem-sucedido: O que é ele? Quem o exerce? Como é exercido?
As respostas? Eugene não sabe se há respostas claras e definidas, mas
concordou conversar sobre os problemas numa entrevista à revista
Leadership [Liderança]. No processo, obtemos vislumbres de sucessos e
fracassos, suas frustrações, as satisfações e, sim, as constantes lutas. Em
suma, obtemos um retrato da maneira em que ele exerce o pastorado.
Eugene desenvolveu sua abordagem ao pastorado com base em sua ex-
periência e no estudo bíblico em sua obra O pastor que Deus usa.2
O diretor editorial Harold Myra, o editor Terry Muck e o editor assis-
tente Dan Pawley acharam Eugene particularmente iluminador, não somen-
te por suas estratégias ministeriais, mas também pelos aspectos pessoais
de sua vida. Eugene é um homem que lê mistérios, extrai introspecções
teológicas de romances clássicos, corre em maratonas e faz longas trilhas
com a mulher pelas montanhas.

Você se vê como pastor, não como administrador. Como desenvolveu essa


visão de seu papel pastoral?
Um dos piores anos que tive foi nos primórdios desta igreja. Nosso pré-
dio estava concluído, e percebi que não estava sendo um pastor. Estava
tão engajado em tocar os programas da igreja que não tinha tempo para

1
Publicado pela primeira vez em Leadership, inverno de 1981.
2
São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
262 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

ser pastor. Então uma noite me reuni com o conselho para renunciar ao
cargo. “Não estou fazendo o que vim fazer aqui”, eu disse. “Estou infe-
liz, e nunca me sinto à vontade”. O que precipitou aquilo foi quando uma
filha me disse: “Faz 32 dias que você não para em casa de noite”. Ela
ficou marcando os dias! Eu era obsessivo e compulsivo com meus deve-
res administrativos, e não via como me livrar das pressões que me esta-
vam deixando daquela maneira. Foi quando eu disse “Desisto”.

E como lidaram com o problema?


Queriam saber o que estava errado. “Bem”, eu disse, “estou fora o tem-
po todo, estou fazendo todo esse trabalho administrativo, atuando em
todos esses comitês, e resolvendo todos esses probleminhas de rua.
Quero pregar, quero conduzir a adoração, quero passar tempo com as
pessoas na casa delas. Foi isso que vim fazer aqui. Quero ser líder espi-
ritual de vocês; não quero administrar sua igreja”. Pensaram por um
momento e disseram então: “Deixe que nós administremos a igreja”.
Depois de conversarmos a respeito pelo resto daquela noite, eu final-
mente disse: “Tudo bem”.
Nunca vou esquecer o que aconteceu por causa daquela conversa.
Duas semanas depois, o comitê de administração se reuniu, e eu entrei
na reunião sem ser convidado. O presidente do grupo olhou para mim e
perguntou: “Qual o problema? Você não confia em nós?”. Então admiti:
“Acho que não, mas vou tentar”. Dei meia-volta, saí da sala e nunca mais
retornei desde aquele dias.
Embora agora eu jamais participe de reuniões de comitê, levou um ano
ou mais para eu me desprogramar.

Mas você não precisa ser o moderador da reunião?


Sim, eu realmente modero a sessão. E informo outros comitês que, caso
queiram que eu participe por uns vinte minutos para me consultarem
sobre um problema específico, terei o maior prazer em estar presente.
Mas faz doze anos que não participo de reuniões de comitê, a não ser
nessa função.
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 263

Faz agora dezoito anos que você ficou na Christ Our King Church [Igreja
Cristo Nosso Rei], e, nos últimos doze, seus presbíteros administraram a
igreja com sucesso. A que você atribui isso?
Imagino que à confiança mútua. Nem sempre fazem as coisas da ma-
neira que eu quero, mas, quando decidi que não ia administrar a igreja,
também tive de decidir que, para eles a administrarem, precisavam fa-
zer as coisas do jeito deles, não do meu. Eles me ouvem pregar, fazem
parte da mesma comunidade espiritual e conhecem os valores que es-
tão sendo criados e desenvolvidos; então confio que administrarão a
igreja da melhor maneira que sabem. Às vezes fico impaciente, porque
não é a forma mais eficaz de administrar uma igreja; muitas coisas fi-
cam sem fazer.

Por que seria isso? Por que são voluntários?


Em parte. Alguns dos líderes não são totalmente motivados. Uma con-
gregação elege presbíteros e diáconos e às vezes os escolhe pelas razões
erradas. Alguns se interessam apenas secundariamente pela vida da igre-
ja, de modo que lhes falta tanto a introspecção quanto a motivação para
serem produtivos. Ou eu lhes dou a oportunidade de fracassarem, ou
entro em cena e treino as pessoas para serem exatamente o que quero
que sejam. Escolhi deixá-los em paz.

Você está dizendo que sua principal prioridade tem de ser seu ministério
pastoral? E que algumas outras coisas boas, como tornar a administração
da igreja mais eficiente, devem ser deixadas para outras pessoas? Não há
nada que você possa fazer a respeito porque sua prioridade é seu ministério?
Exatamente.

Mostre-nos uma das coisas ineficazes que você permitiu que acontecesse,
ainda que muitos líderes o encarassem como um lapso administrativo.
Recordo-me do caso de uma mulher que estava trabalhando como vo-
luntária na coordenação de diversos programas bem relacionados entre
si. Quando começou, ela estava muito empolgada com aquilo e realizou
264 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

um bom trabalho. Mas, passado o tempo, ela mergulhou em outras


coisas e começou a fazer seu trabalho com indiferença. Eu estava tra-
tando dela como pastor em problemas de família, e senti que era im-
portante não criticar sua administração nem pedir que ela renunciasse
ao cargo. Então não fiz nada.
As coisas pioraram. Recebi muitas chamadas telefônicas e ouvi mui-
tas reclamações. Eu disse: “Gostaria de melhorar a situação, mas não
posso prometer nada”. Apenas esperei e continuei sendo um pastor para
ela. Senti que, para não comprometer minha posição de pastor em rela-
ção a ela, eu tinha de deixar os programas em certo sentido fracassar
naquele ano e sofrer com uma administração precária. Agora, muitos
pastores não teriam permitido isso, e, tendo em vista o estilo de minis-
tério deles, talvez fosse correto que entrassem em cena e lidassem com
a situação administrativamente. De forma alguma, sou contra esse tipo
de eficiência, mas preciso saber em que sou bom. Preciso pagar o
preço de ser bom em determinadas coisas e não ser um homem de sete
instrumentos.

Você está dizendo que não há problemas em os pastores diferirem sensivel-


mente em como administram as igrejas?
Com certeza. Fui pastor assistente de Bill Wiseman em White Plains,
no Estado de Nova York. Ele é um homem íntegro e altamente treinado
em todas as áreas do trabalho pastoral. Fez mais que qualquer outra
pessoa para permitir que eu fosse um pastor, especialmente nos aspec-
tos administrativo e gerencial. Ele administra uma estrutura bem orga-
nizada e altamente disciplinada; coisas como estrutura e eficiência são
muito importantes para ele. Entretanto, nossos estilos de ministério con-
trastam acentuadamente. Ele agora tem uma igreja de 5.000 membros
em Tulsa, Oklahoma, e ficaria maluco de administrar uma igreja como
eu administro.
Mais tarde, percebi que meus verdadeiros dons não eram adminis-
trativos; que o que eu queria de fato era passar a maior parte do meu
tempo no ministério pessoal a minha congregação.
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 265

Você tem uma equipe de funcionários de tempo integral?


Não, temos um homem que foi pastor e que trabalha conosco somente
aos domingos como pastor de jovens. Também remuneramos o dirigente
do coro e o organista; e temos um sacristão que trabalha perto de doze
a quinze horas por semana. Não há funcionários administrativos assa-
lariados — apenas voluntários.

Secretários voluntários? Como isso tem funcionado?


Maravilhosamente! A ideia me ocorreu enquanto lia um romance poli-
cial de Dorothy Sayers. Peter Wimsey está atrás de resolver um assassi-
nato, e encontra dificuldades em obter informações. Ninguém fala com
ele, porque é um estranho, alguém de fora. Então ele procura alguém
que conheça a comunidade, localiza uma solteirona idosa e emprega-a
como datilógrafa. Depois ele pede que ela contrate um grupo de datiló-
grafos, e essas dez ou quinze pessoas são seus vínculos com a comuni-
dade.
Pensei: “É exatamente o que preciso”. Então pedi a uma mulher que
eu achava competente nessas áreas que fosse a coordenadora do escri-
tório da igreja. Encontramos duas pessoas para cada dia da semana que
trabalhassem das 9 às 14 horas e informamos à congregação o novo
horário de funcionamento do escritório. Dividimos o trabalho do escri-
tório para dias específicos e definimos as responsabilidades de cada
pessoa. Precisamos planejar com um pouco mais de antecedência; não
podemos ter tudo feito imediatamente. Mas a parte positiva é que de
fato desenvolvemos muitas formas de ministérios. Essas pessoas es-
cutam muito, têm contato com muitas pessoas e me informam de coi-
sas que estão acontecendo. São importantes para a administração da
igreja.

Essas ideias fazem diferença em como as pessoas enxergam a igreja? Elas


conseguem aproximar a comunidade?
Comunidade para mim significa pessoas que precisam aprender a cui-
dar umas das outras, e em certo sentido toda organização eficiente
266 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

milita contra a comunidade, porque ninguém vai tolerá-lo se você co-


meter erros.
Não é essa a situação na igreja. Temos falta de eficiência em nossa
equipe de escritório da igreja, mas a eficiência nem chega perto de ser
tão importante quanto ter paciência com as pessoas e trazê-las para um
senso mútuo de ministério. É como operamos; nem tudo precisa “acon-
tecer hoje”. Se o trabalho for planejado bem o bastante, há espaço para
a espera. Às vezes, preciso que as pessoas simplesmente atendam o te-
lefone ou façam uma ligação para mim. Eu digo: “Por que você não liga
para fulana? Ela está sozinha e entediada; veja se ela pode vir um dia nos
ajudar”. Às vezes, é tudo o que precisa para trazer as pessoas de volta a
um senso de ministério e comunidade. Eles planejam minhas visitas nos
lares a partir de uma lista que lhes dou. É importante, e eles sabem que
é importante.

Conte sobre seu programa de visitação.


Nunca fiz visitas de forma sistemática. Já li sobre pastores que percor-
rem o rol de membros inteiro da igreja durante o ano e se mantêm den-
tro de uma agenda rígida. Nunca trabalhei dessa forma. Faço visitas por
perceber necessidades, quando sei de algo que está ocorrendo na vida
de alguém. Nascimento, morte, desemprego, mudança de cidade ou
problemas no lar são bons indicadores de que eu devo fazer uma visita.
Eu vou, falo com as pessoas, escuto seus problemas, descubro a postura
do coração e oro com elas. Essa é a vantagem do trabalho pastoral —
pode corresponder a todas as pequenas nuanças da vida da comunidade
e delas participar. Há um verso de um poema sobre um cão que segue
pelo caminho com uma intencionalidade casual. A vida pastoral é as-
sim. Há certa casualidade nela, para mim pelo menos, porque não que-
ro ficar aprisionado em sistemas em que eu tenha de dizer: “Não, estou
ocupado demais para fazer isso; não posso ver você porque tenho essa
programação”. Mas casualidade não é descuido; há um objetivo. Gosto
de manter a liberdade para poder ser responsivo diante daquilo que está
acontecendo com as pessoas.
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 267

É fascinante como você utiliza alusões literárias. Por que um pastor deveria
ter tempo para ler Dorothy Sayers? Não seria um desperdício? Você não
deveria estar mergulhando em teologia?
Leio porque amo ler. Os romances são alimento para mim. Preciso es-
tar imerso nesse tipo de realidade para manter minha mente nos trilhos
e me manter em contato com as coisas que estão acontecendo. Às ve-
zes, leio histórias de detetives; são como um tônico espiritual para mim.
Quando realmente me sinto obstruído e pesado, quando tudo é compli-
cado, quando não consigo me entender, saio por dois dias e leio roman-
ces policiais. Tenho de fazê-lo às escondidas — ou seja, preciso manter
meu trabalho em funcionamento. Faço as chamadas telefônicas, vejo
as pessoas, realizo as visitas, mas depois corro de novo para algum
cantinho e devoro outra história.

Mas, Eugene, você não se sente culpado?


Sim! Mas algum tempo atrás por fim me entreguei ao fato de que nunca
me recuperarei do sentimento de culpa. Meu pai era açougueiro de pro-
fissão, e quando eu era jovem raramente ele permitia que eu ficasse
sentado. Sempre tinha de fazer alguma coisa. Quando eu estava em casa
lendo um livro, ele entrava no quarto e perguntava: “Gene, por que você
não está fazendo nada?”. Então me criei sentindo-me culpado por ler
livros.
Às vezes, enquanto leio, minha mulher, Jan, me diz: “Mas você não
tinha de visitar fulano?”. Meio que brincando, respondo: “O que eu es-
tou fazendo é trabalho teológico para valer”. Um dia, escrevi um artigo
sobre Rex Stout intitulado “Lobo em pele de cordeiro”, no qual eu mos-
trei como Nero Lobo e Arquelau Boaventura eram na realidade um tipo
de ministério — um suporte teológico no trabalho pastoral. Foi um tex-
to fantasioso, mas eu elaborei todos os detalhes e o enviei a uma revista
cristã com uma nota ao editor dizendo que eu esperava que ele o levasse
a sério, porque, caso contrário, toda a credibilidade com a minha espo-
sa ia escoar pelo ralo. Felizmente, ele o aceitou.
268 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Você mencionou que também lê romances. Quais foram importantes para


você em seu papel como pastor?
Primeiramente, Os irmãos Karamázovi,3 de Dostoiévski. Você precisa
lê-lo repetidas vezes. Há um senso da teologia do destino e da vocação
pastoral no padre Zossima. A percepção de Dostoiévski a respeito da
condição humana é leitura essencial para um pastor. Moby Dick, de
Herman Melville, especialmente para americanos, é em certo sentido
talvez o livro teológico mais importante já escrito. Surgiu num momen-
to crucial da nossa história; mostrou o que nos faltava por todo o nosso
otimismo sentimentalista, nossas atitudes de que tudo vai dar certo.
Faulkner articula muito bem o senso de pecado e redenção, por exem-
plo, em Luz de agosto.4
As histórias e os romances de Flannery O’Connor são também mui-
to importantes. Ela era uma grande teóloga. Um livro que acredito se-
ria importante para pastores é uma coletânea de suas cartas chamada
The Habit of Being [O hábito de ser]. Uma das coisas que ela diz é que
alguém revisou um de seus livros e a chamou de niilista caipira. Ela dis-
se: “Não me importa a segunda palavra, mas preferia que me chamas-
sem teóloga caipira”. Ela era muito consciente da teologia cristã que
apresentava por meio de sua obra.
Walker Percy é útil para pastores cristãos hoje. Percy tem uma das per-
cepções mais poderosas do ministério, como romancista, de alguém que
está em atividade, e ele sente os apuros em que nos encontramos espiritual
e moralmente. Ele é um cristão realmente crente e consegue apresentar
essa realidade em seus romances The Moviegoer [O frequentador de cine-
ma], Amor nas ruínas5 e The Last Gentleman [O último cavaleiro].

É importante que todos os pastores leiam?


Não. Outros podem extrair o mesmo tipo de satisfação de atividades
completamente diferentes. Creio que todos os pastores devem ter alguma

3
Há várias traduções para o português.
4
Rio de Janeiro: Globo, 1948.
5
Rio de Janeiro: Artenova, 1974.
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 269

maneira de recarregar suas baterias, mas ler não é a única maneira de


fazê-lo.
Por exemplo, algumas pessoas correm para recarregar suas baterias.
Comecei a correr há dois anos só para provar que eu conseguia. Mas
não me bastava ir lá fora e me sentir bem — eu queria ganhar corridas.
A primeira corrida de que participei, uma corrida de dezesseis quilô-
metros em Delaware, terminei em primeiro lugar, e meu filho de 16 anos
de idade terminou em segundo. Foi muito divertido.

Você usa alusões literárias em suas pregações?


Não, porque as pessoas que me ouvem não estão lendo essas coisas.
Não quero lançar citações para elas com as quais não têm nenhum
contato.

Mas, se você está lendo um romance e encontra uma ilustração muito boa e
clara, não é uma tentação transmiti-la às pessoas que o escutam?
Sim, mas quero pregar a Palavra de Deus. As Escrituras são o único texto
importante para mim quando prego. Quero que a minha congregação
saiba o que as Escrituras têm a dizer sobre o que elas estão passando.
Começo meu sermão na terça-feira, escolho a passagem, e por toda a
semana dialogo com aquela passagem, não apenas pessoalmente, mas
em comunidade.
Quando me apresento no púlpito no domingo, espero que as pessoas
percebam que estou me dirigindo a elas no sermão, porque as escutei;
eu fiz as perguntas delas, expressei as dúvidas delas, andei com elas em
meio ao seu tédio.

Você não usa às vezes ilustrações da literatura?


Com certeza. Agora mesmo estou lendo Specimen Days, de Walt
Whitman, e vou usar a ilustração de Whitman nos hospitais durante a
Guerra de Secessão. Ele passa por todo esse terrível massacre. Quando
entra na ala de um hospital, vê braços e pernas amputados empilhados
do lado de fora porque ninguém tem tempo de jogá-los fora. Mas ele
270 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

entra nas alas do hospital alegre e feliz — não insensível, mas trazendo
consigo aquele senso de vida e vitalidade. Essa é uma excelente passa-
gem para ensinar os pastores sobre a visita pastoral em hospitais.

Você disse que a pregação deve ser da Palavra. Que dizer do papel do pastor
como um todo? Ele brota direto da Palavra, ou os tempos mudaram seus
critérios?
Há mais ou menos cem anos, os pastores tinham um claro senso de
vinculação com as tradições passadas. Você sabia que estava fazendo um
trabalho que não existia num vácuo, mas estava integrado ao de outros
tantos antes de você; sua vida tinha um valor e uma integralidade reconhe-
cidos. Hoje, isso simplesmente não é assim; estamos fragmentados fa-
zendo coisas distintas. Já no púlpito, você tem esse senso de vinculação.
Quando estou pregando, sei que estou realizando um trabalho que está
vinculado lá atrás com Isaías. Eu preparo sermões um tanto como Agos-
tinho e Wesley preparavam sermões. Estou operando a partir da mesma
Escritura, de modo que não me sinto um pregador de terceira categoria
quando estou no púlpito.
Durante a semana, entretanto, com certeza me sinto desdenhado —
quando vou fazer visitas no hospital, por exemplo, não passo de um in-
cômodo mal tolerado. Eles podem falar tudo o que quiserem sobre as
equipes de cura, mas…

Você não aceita isso?


Não a equipe de cura. O médico, a enfermeira e o pastor fazem parte da
equipe de cura, mas você não é visto dessa maneira. Eu sou um amador,
e eles são os peritos. E, em certo sentido, isso é verdade. O hospital de
hoje é um tipo de centro de cura diferente de qualquer coisa que a igreja
tenha experimentado, e não nos encaixamos ali — somos estranhos.
Outros fatores também contribuem para esse senso de inutilidade.
Quando você tem sérios problemas para administrar sua igreja, o que
faz? Você contrata uma empresa e pede que mandem alguém para mos-
trar como operar a máquina de fotocópias, ou faz um curso em gerên-
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 271

cia eclesiástica. E quem ensina? Alguém da comunidade dos negócios.


Por toda a semana, parece que somos intimidados por peritos que nos
estão ensinando a fazer nosso trabalho —, mas eles não sabem o que o
nosso trabalho envolve. Estão tentando tornar-nos membros respeitá-
veis de uma espécie de suborganização que estão administrando, e
consequentemente desenvolvemos uma autoimagem que é saudável
somente aos domingos. Creio que o trabalho pastoral deve ser bem fei-
to, mas acho que deve ser feito a partir do interior, de sua própria base.
Essa base, naturalmente, deve ser a Bíblia; por isso procuro mergulhar
em recursos bíblicos. Em meu livro O pastor que Deus usa,6 falo mais
sobre isso.

A que se refere esse título?


Cinco livros do Antigo Testamento — Cântico dos Cânticos, Rute, La-
mentações, Eclesiastes, Ester —, cada um deles é um exemplo de tra-
balho pastoral. Cântico dos Cânticos oferece um modelo para direcionar
a oração; Rute é uma história sobre visitação e aconselhamento; Lamen-
tações trata de dor e sofrimento; Eclesiastes é uma investigação sobre
os valores, o sermão altamente negativo; e Ester é a história da forma-
ção de uma comunidade. Não são as únicas áreas do trabalho pastoral,
mas são cinco recursos importantes que fornecem para o meu mi-
nistério pastoral um grande senso de vinculação com princípios bíbli-
cos tradicionais. Os pastores de hoje precisam voltar a verdades
escriturísticas semelhantes. Nada mais bastará. Os modelos de sucesso
da atualidade não podem bater a eficácia e o valor próprio fornecidos
pela Escritura.

Então você encontrou seu modelo de papel pastoral na Escritura?


No exercício desse dever, descobri que de fato gosto de ser pastor; é
minha vocação, o trabalho pastoral. Em todo o processo, descobri aqui-
lo que Deus me chamou para fazer e os dons que me foram concedidos

6
São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
272 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

por ele a fim de fazê-lo. Quando eu era mais jovem, sempre me via fa-
zendo coisas que não estavam em meu ministério. Por fim, aprendi a dizer
“Não, você não vai mais fazer isso”. Muitas vezes, digo não. Eu decepcio-
no muitas pessoas, sobretudo as da comunidade e da minha denomina-
ção. Elas têm expectativas que querem que eu atenda.

Falemos da perspectiva dos sinais externos do sucesso. Suponhamos por um


instante que você tenha sido procurado pelo comitê de prospecção de uma
grande igreja. Eles não o tentam com os atrativos tradicionais do sucesso
como um salário maior ou uma igreja maior — apelam para seus valores de
ministério. Aqui está uma oportunidade de ministrar a 3.000 pessoas, quando
sua congregação atual tem apenas 300. Veja todas essas pessoas que você
pode tocar. Não é necessariamente o discurso americano do sucesso, mas o
discurso ministerial do sucesso. Como você responde?
Simples. Se você estiver falando a 5.000 pessoas e não estiver falando
a partir de sua própria verdade, o lugar que lhe pertence e onde Deus
o colocou, não será mais eficaz como servo de Deus. Não creio que o
número de pessoas que o escutem pregar ou ensinar signifique tanto
assim. O importante é que você realize um bom trabalho onde quer que
esteja.
Eu odeio aqueles bairros residenciais nas regiões adjacentes aos gran-
des centros, cheios de conforto; detesto. Não gosto da arquitetura, das
casas nem da cultura. Muitas vezes, perguntei: “Senhor, por que estou
aqui?”. Minha congregação não compartilha do meu interesse por lite-
ratura. Não estamos no mesmo lugar. Mas é aqui que estou. Se você
sente que um de seus objetivos ou ministérios é construir uma comuni-
dade espiritual, então é onde necessita ser construída. Aceitei este como
meu lugar pelo tempo que tiver de estar aqui. Poderia ser pelo resto do
meu ministério ou poderia ser até o ano que vem.

O que desencadearia uma mudança?


Difícil dizer. Várias vezes, vi-me no ponto de achar que estava pronto
para sair. Eu não estava trabalhando bem e não me sentia realizado. Cada
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 273

vez, eu dizia: “Você vai se certificar de que não se trata de uma inquieta-
ção normal”, e mergulhei de novo e saí bem. Deixe-me ilustrar:
Nos últimos anos, senti como se estivesse perdendo impacto. Deixei
de fazer muitas coisas com as quais costumava me entusiasmar. Senti
que minha vida foi ficando cada vez mais interiorizada. Meu interesse
mais profundo é pela orientação espiritual, e, como nossa comunidade
tem muitos psiquiatras e conselheiros, parei de aconselhar para poder
gastar mais tempo sozinho estudando e orando. Mas então percebi que
grandes lacunas começaram a se formar na vida da minha congregação.
Eu havia subestimado as necessidades da comunidade, na realidade não
estava fornecendo liderança à comunidade. Senti que meu povo mere-
cia mais de seu pastor do que eu estava oferecendo. Pensei que talvez
me enquadrasse numa igreja com uma equipe de funcionários aos quais
se pudessem atribuir as tarefas relacionadas aos programas da congre-
gação, e eu pudesse estudar mais e manter um ministério de orientação
espiritual e de pregação.
Conversei com um amigo sobre isso por três dias. Ele me escutou
pensativamente e então me disse: “Não acho que você precisa sair; só
precisa de alguém que seja diretor da vida da igreja”. No momento em
que ele disse isso, pensei em Jane. Ela é uma mulher de aproximada-
mente 35 anos que me procurou na primavera passada dizendo que es-
tava numa fase de transição, imaginando qual seria o próximo desafio
para ela. Ela havia organizado programas para a comunidade, tinha rea-
lizado um trabalho extraordinário na administração desses programas;
e agora estava relativamente ociosa. Quando perguntei se ela aceitaria
ser diretora da vida da congregação, um grande sorriso se abriu em seu
rosto. Ela me disse: “Vou lhe contar uma história”. Seu marido era pres-
bítero, e dois anos antes estava numa reunião em que eu compartilhara
esse problema sobre minha liderança. Depois daquela reunião, Fred
voltou para casa e disse: “Sabe de que o Eugene precisa? Precisa de você”.
Levei dois anos para reconhecer isso. E agora Jane se encontra num ponto
em sua vida em que está pronta para assumir seu papel de diretora da
congregação. Ela precisa estar no ministério e está preenchendo parte
da lacuna deixada pela minha retirada. Estou livre para estudar mais e
274 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

ser mais sensível às necessidades espontâneas dentro da congregação. Em


certo sentido, atravessei um período de fracasso para encontrar a graça.

Qual sua avaliação do movimento de crescimento da igreja?


Muitos pastores ouvem o seguinte: “Você não precisa passar o resto de
sua vida numa rotina. Você pode fazer diferente e melhor”. Isso estimu-
lou e despertou muitos pastores e lhes deu algumas ferramentas com as
quais trabalhar. Tem sido uma boa injeção de adrenalina para muitas igre-
jas. A pior coisa a respeito é que todo o processo e todas as fórmulas são
facilmente distorcidas, e num estalar de dedos pode se transformar em
algo muito ruim. Há pessoas que o fazem muito bem, contudo outros fa-
zem uma imitação muito precária. O fato é que alguns ministérios não
nasceram para existir num lugar em florescimento. Há ministérios que
nasceram para ser pequenos, em lugares pequenos, com poucas pessoas.
Crescimento, certamente... mas nem sempre em quantidade.

Sua igreja está crescendo em números?


Lentamente. Meus alvos pastorais são aprofundar e nutrir o crescimen-
to espiritual nas pessoas, e construir uma comunidade cristã — não reunir
multidões.

Poderia crescer mais rapidamente?


Bem, poderia. Se eu fizesse certas coisas, poderíamos dobrar o número
de membros. Poderíamos organizar visitas de casa em casa, fazer anún-
cios e cartazes, trazer palestrantes e pregadores especiais, criar progra-
mas para a comunidade que se ajustassem a algumas necessidades que
a comunidade julga ter, ou desenvolver um programa musical centrado
no entretenimento. Poderíamos fazer tudo isso — mas destruiríamos
nossa igreja.

Por que isso destruiria? Por que não pregar no domingo para mais 350 pessoas?
Porque eu teria de parar de fazer o que preciso fazer — orar, ler, prepa-
rar-me para o culto, visitar, dar orientação espiritual às pesoas, desen-
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 275

volver líderes na congregação. Preciso trabalhar dentro dos limites de


minhas capacidades enquanto continuo amadurecendo nelas.

Você não está negligenciando os sem-igreja de sua comunidade?


Não somos a única igreja em Bel Air, e eu não sou o único pastor. Pou-
cos lugares nos Estados Unidos não têm igreja. Vou confiar que o Espí-
rito Santo fará sua obra por meio de outras igrejas em minha comunidade,
ou vou pensar que, se não fizermos, não vai ser feito?
Muita dose de arrogância se desenvolve do sentimento de que, quando
temos algo de bom acontecendo, precisamos triplicá-lo para que todos
sejam beneficiados. Muitos ministérios diferentes ocorrem na comuni-
dade e no mundo, e tenho uma fé desencaminhada quando suponho que
o Espírito Santo não está tão ativo neles quanto no meu ministério.

Algumas pessoas neste momento talvez dissessem: “Tudo bem, você ficou
dezoito anos em sua igreja; mas fica evidente que tem pouquíssima sensibi-
lidade pela necessidade de evangelização. Se todas as igrejas agissem como
a sua, como o mundo seria evangelizado?”.
Minha resposta é que o Senhor tem muitas outras pessoas. Preciso apren-
der a usar meus dons. Não sou evangelista, sou pastor. Há evangelistas
em minha congregação que fazem um trabalho muito bom. Não acres-
cento muita coisa a eles; não sei como conduzi-los. Outro pastor conse-
guiria desenvolver um trabalho melhor com eles. Creio que a
evangelização é trabalho essencial, mas não significa que deva torná-la
o foco total de minha igreja. Meus dons acham-se em outras áreas.

Muitos pastores desejam focar seu ministério, mas, quando tentam, as


pressões de vários grupos na igreja que querem outras coisas os impe-
dem de se focarem. Transformam-se em reagentes dentro de seu ambien-
te eclesiástico.
É verdade, e as pressões são reais. Não acredito que ninguém possa fa-
zer isso sozinho. Ajuda a ter colegas que estejam experimentando as
mesmas coisas, amigos com os quais possa compartilhar.
276 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Você tem um grupo íntimo de colegas de ministério?


Encontro-me com um grupo de doze pastores de várias denominações
a cada terça-feira das 11h30 às 14 horas para orar e estudar a Bíblia.
Como todos usamos um lecionário, pregamos na mesma passagem.
Nosso debate relaciona-se com o nosso ministério de pregação — faze-
mos a exegese da passagem, debatemos e sugerimos maneiras em que
podemos pregá-la. Todos estamos comprometidos com a pregação,
então não falamos de programas da igreja, de problemas ou de como
administrar a igreja. Quando alguém está atravessando dificuldades pes-
soais, descartamos a agenda e lidamos somente com aquilo. Mas não
deixamos que nada mais atrapalhe.

De que maneira esse compartilhar de ideias influi em sua pregação?


Conferindo profundidade. Ele insiste em que haja certa disciplina e lhe
dá a prioridade; você não pode adiar a pregação para o sábado. Tive raras
semanas em que toda a preparação de sermão que pude fazer foi naque-
la reunião semanal. Tudo deu errado naquela semana, com mortes e ou-
tros acontecimentos inesperados, mas pude me apresentar no púlpito
com um sermão respeitável.

Algum tempo atrás, você ressaltou que a pregação é de alguma maneira muito
mais difícil do que um século ou dois atrás. O que mudou para produzir
esse resultado?
A pregação cem anos atrás era um tipo de conversação instruída e so-
fisticada entre pastor e ouvintes. As pessoas conheciam a Bíblia tão bem
quanto o pastor, e todos compartilhavam da mesma cultura. Hoje a
maioria das pessoas são iletradas biblicamente; entram de manhã no
culto de domingo duvidosas, não com maturidade e integralidade, mas
fragmentadas por todo tipo de coisas. A congregação reunida no domin-
go pela manhã é um hospital, e você simplesmente não pode fazer o que
se fazia anos atrás.

Você sabe que é um hospital porque esteve envolvido com pessoas, viu trau-
mas e dores em primeira mão durante a semana?
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 277

Sim, você sabe — o alcoólatra, o adúltero, a família cujo filho simples-


mente fugiu de casa. Estão todos sentados bem diante de você. Nos sá-
bados à noite, eu vou à igreja, caminho pelo auditório por uma hora e
penso de antemão na manhã de domingo e na diversidade e no caos ali
representados. Pode ser desanimador. É algo que Alexander Whyte, um
dos maiores pregadores do século XIX, não tinha de enfrentar. Ele se
apresentava no púlpito, e seu sermão era uma conversa com as pessoas
que eram bem versadas nas Escrituras e que liam os mesmos livros. Ele
fazia seu povo ler livros. Ele as acompanhou pelo O Peregrino, William Law,
Teresa de Ávila, Dante. Era professor, e não somente pastor daquele povo.
As pessoas para as quais eu prego assistem à televisão, escutam rá-
dio, estudam à noite e participam de seminários especiais por causa de
seu trabalho. Estão simplesmente bombardeadas. Não precisam que eu
diga: “Você precisa ler este livro”. Preciso dizer: “Vamos adorar a Deus”,
e então conduzir-lhes à Escritura e fazer daquele um momento privile-
giado na vida delas. Mas também há uma eletricidade na pregação; de
repente, você está interrompendo um mundo de monotonia, tecnológico,
com suas competições insanas, e tem algo realmente novo, uma nova
dimensão para compartilhar. Isso é empolgante.

Que conselho você daria a pastores que estejam em situações difíceis, ou


que estejam em igrejas pequenas e enfermas e se julgando verdadeiros fra-
cassos?
Difícil de responder. Estou convencido de que muitos pastores estão na
realidade fazendo um trabalho muito bom.

Mas não necessariamente eles acreditam que estejam?


Não o sabem — que estão pregando, aconselhando e conduzindo bem.
Não contam que estão sendo perfeitos, mas estão fazendo um bom tra-
balho. Creio que isso se relaciona aos outros temas de que falamos. Uma
pessoa precisa estar satisfeita para fazer aquilo em que é boa e oferecer
isso constantemente ao Senhor. Se você continua tentando fazer aquilo
em que não é bom, está fadado ao fracasso. Ninguém de fora sabe o que
278 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

é o trabalho de um pastor, então ficam nos pedindo que façamos coisas


— coisas nas quais não somos bons —, e assim acabamos nos sentindo
culpados por não realizar um bom trabalho.

Mas todo pastor não tem de ser um administrador ainda que esse não seja
o seu dom?
Todo pastor tem de se certificar de que haja administração. Se você não
cuidar para que ela aconteça, está em apuros. O pastoreio no século XX
requer duas coisas: primeira, ser pastor, e segunda, administrar uma
igreja. Não são a mesma coisa. Todo seminário deveria dizer o seguinte
para seus alunos que buscam o ministério pastoral: “Olhe, Deus o cha-
mou para ser pastor, e queremos ensinar-lhe como ser pastor. Mas o
fato é que, quando sair em busca de trabalho, há uma grande proba-
bilidade de que eles não queiram contratar somente um pastor, vão
contratar alguém para administrar a igreja. Agora, vamos mostrar como
administrar uma igreja, e, se você dominar o que estamos lhe dizen-
do, talvez gaste de dez a doze horas por semana nessa atividade. Esse é
o preço que terá de pagar a fim de estar na posição de pastor”.

Quais são algumas das coisas que você faz para pagar esse preço?
Eu respondo às ligações telefônicas prontamente. Respondo rapidamente
às minhas correspondências. Semanalmente publico o boletim da igre-
ja. Creio que isso é essencial. Quando o boletim de notícias da igreja é
publicado uma vez por semana, as pessoas percebem que você está no
comando das coisas; elas veem seus nomes e o que está acontecendo. É
um bom instrumento de relações públicas.

Você não poderia fazer isso no boletim de domingo?


Não, porque muitas pessoas não o receberiam. A cada semana, nosso
jornalzinho de notícias de uma página assegura à congregação que tudo
está sob controle. Se você quer manter seu emprego, as pessoas têm de
acreditar que a igreja está funcionando bem.
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 279

Como um pastor desenvolve comunicação com sua congregação?


Não tenho total certeza de como aconteceu comigo. Aproximar-se de
seus presbíteros é importante. Muitas vezes, durante meu ministério,
eu contei a meus presbíteros como me sentia, o que estava passando,
minhas percepções acerca do ministério, o que era importante para mim
e o que eu acreditava estar fazendo bem. Doze anos atrás, eu parei, sim-
plesmente porque não acreditava que poderia atender às expectativas
que estabeleci para mim mesmo. Imaginei que eles tivessem as mesmas
expectativas, mas estava errado. Eles não queriam que eu surtasse.

Que mais um pastor pode fazer?


Periodicamente se reunir com os líderes de sua igreja e dizer o que real-
mente está em sua mente. Eles têm direito de ter o tipo de pastor que
sentem que precisam. Talvez a combinação não seja a melhor. Acho que
deve haver aquele senso de sacrifício. Tenho me surpreendido de ver
como as pessoas são responsivas em minha congregação quando com-
partilho essas coisas.

Como essa comunicação começa? Com quem os pastores podem conversar?


Certamente não há tempo em uma reunião de diretoria.
Não resolvi esse problema, mas na maior parte acho que é espontâneo.
Várias vezes em meu ministério, quando senti que as coisas não iam bem,
selecionei pessoas da congregação e perguntei-lhes se poderiam se en-
contrar comigo umas três ou quatro vezes. “Não tenho total certeza do
que está acontecendo comigo”, eu dizia, “mas estou preocupado com o
ministério da igreja. Quero ser o melhor pastor possível, e estou confu-
so. Você conversaria comigo?”. Eu crio assim grupos pequenos, de cin-
co ou seis líderes, e são sempre pessoas em contato com a congregação.
Às vezes, simplesmente preciso compartilhar minhas preocupações. Mas
às vezes essas pessoas podem me dar também uma orientação sólida.

Várias igrejas têm um grupo que se reúne mensalmente para ser uma placa
de som para o pastor, para realmente ouvir suas preocupações, e talvez para
280 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

atuar como uma espécie de ombudsman para ele. Como você se sentiria em
estabelecer um grupo assim?
Eu me sentiria muito bem!

Em sua reunião semanal com seus ministros locais, quais são os maiores
problemas que você ouve?
Familiares e conjugais. Diria que são as coisas mais dolorosas em se
tratando de crise pastoral. Outro problema, que não tem o mesmo peso
de gravidade, é o sentimento de ser insatisfatório. Quando os pastores
não têm congregações grandes ou não recebem afirmação de sua con-
gregação, é muito difícil para eles fornecer uma liderança espiritual
criativa. Aliás, considerando a baixa afirmação que muitos recebem, sur-
preende que eles consigam fornecer alguma. Um dos ministérios-chave
de leigos é a afirmação de seus líderes.

Pode se recordar de ocasiões em que a afirmação impulsionou seu senso de


valor?
Sim, embora muitas dessas coisas sejam sutis e pequenas, e simples-
mente se acumulem. Tenho lecionado num seminário católico romano.
Faz dois anos, e ainda me sinto um pouco desconfortável. Estou num
território estrangeiro, de modo que nunca sei se estou fazendo um bom
trabalho. Semana passada, dei uma aula, e não fiz um trabalho muito
bom. Simplesmente não ensinei muito bem. Passei a maior parte do
período deixando a classe falar sobre o que estava sentindo em relação
às Escrituras em vez de lhe passar conteúdo. Eu tenho uma aluna, uma
freira, que é Ph.D. Ela é muito brilhante e sabe mais do assunto do que
eu. Temo que ela sinta que o curso não vale o dinheiro empregado. En-
tretanto, ela me chamou dois dias depois da aula e disse: “Quero ape-
nas dizer-lhe que suas aulas são a melhor das que já tive aqui. É muito
bom ver essa matéria sujeita não apenas como símbolos acadêmicos na
lousa, mas como parte de meu desenvolvimento pessoal como cristã”.
Isso realmente me impulsionou; a pessoa a quem acreditei estar decepcio-
nando disse-me que algo estava acontecendo com sua espiritualidade.
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 281

Foi uma grande forma de afirmação. Eu poderia percorrer uma longa


distância só com aquilo.

Como você encontra maneiras de se afirmar sem ser dependente dos elogios
das pessoas?
Creio que esteja ligado a uma descoberta da minha necessidade de nu-
trição espiritual e a garantir que eu obtenha essa nutrição. A oração é
muito importante para mim — não posso funcionar sem ela.

Como funciona sua vida de oração?


Nas manhãs, passo umas duas horas a sós com o Senhor. Levanto às
seis horas e faço o café. Muitas vezes, não faço nada além de orar os
salmos — sempre os amei. Foram por muito tempo o livro de oração
da igreja. Há um velho tipo de nostalgia monástica em mim; em alguns
monastérios, tudo o que faziam era orar os salmos. Também leio o Novo
Testamento, e então, depois de uma hora e meia mais ou menos, às ve-
zes leio algo mais ou escrevo. Se começo a escrever, geralmente escre-
vo por um par de horas.
As segundas-feiras são importantes. Nos primeiros anos de meu
ministério, nunca tirei um dia de folga. Havia muitas coisas “importan-
tes” para fazer. Agora minha mulher e eu saímos de casa e vamos fazer
trilha na floresta o dia inteiro, independentemente do tempo. Levamos
um lanche e um binóculo para observar os pássaros. Há doze anos, toda
segunda-feira fazemos isso. É importante para nós dois, porque é um
ambiente totalmente diferente e algo que nós dois apreciamos fazer. Na
manhã, é um momento silencioso no qual podemos simplesmente ser
quem somos, bem como entrar em contato com nós mesmos. No almo-
ço, conversamos, e depois geralmente continuamos pelo resto da tarde.

Que papel sua esposa desempenhou em seu ministério?


Um papel muito proeminente e forte, porque tem sido um ministério
compartilhado. Ela é uma anfitriã maravilhosa, e muitas vezes temos
pessoas em nossa casa. Ele é mestre na arte de fazer as pessoas se
282 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

sentirem em casa, e é boa em se preocupar com as pessoas. Ela real-


mente ajudou a criar um senso de comunidade em nossa igreja.
Eu lhe disse que, quando chegamos, um de nossos objetivos era de-
senvolver uma comunidade espiritual. Achei que seria muito fácil: con-
vidaríamos essas pessoas para virem a nossa casa, oraríamos juntos,
cantaríamos alguns hinos e chegaríamos lá. Bem, simplesmente não
aconteceu. Às vezes, sentíamos que estávamos fazendo progresso, mas
na verdade nunca aconteceu. Então uma mulher jovem de nossa con-
gregação morreu de câncer. Tinha 31 anos de idade e seis filhos. Perto
de um mês depois que ela morreu, o pai foi demitido do trabalho e de-
pois perdeu a casa. Levamos aquelas crianças para nossa casa. De re-
pente, as coisas começaram a acontecer. Comida era deixada na soleira
da porta; as pessoas ligavam, levavam as crianças para sair e as recebiam
em suas casas. Era quase como se tivéssemos chegado a um lugar de
crítica confusão. Então simplesmente explodiu, e de repente tínhamos
comunidade na congregação. E continuou assim. A hospitalidade aumen-
tou, e as pessoas passaram a se interessar umas pelas outras. Parecia
quase um milagre, e só foi preciso um único incidente para servir de
gatilho. Todas as nossas tentativas anteriores de criar comunidade ago-
ra davam fruto por termos atendido a uma necessidade que não fazia
parte da nossa estratégia.

Como outras igrejas podem desenvolver uma comunidade?


É muito difícil, e não há muito senso de comunidade em nosso país. A
maior parte de nossos relacionamentos é baseada em necessidades, em
papéis que nos são impostos. Não há atalhos para a verdadeira comunida-
de. Estamos imersos numa sociedade transacional onde negociamos
coisas e consumimos coisas. Simplesmente não é fácil chegar ao ponto
em que ficamos abertos e vulneráveis o bastante para apenas estar com
as pessoas. Mas a coisa que se destaca em minha mente agora é que, em
nossa igreja, fizemos tudo o que pudemos para desenvolver uma comu-
nidade, e não se desenvolveu. Fizemos uma coisa que não fazia parte de
nossa estratégia, e o sucesso, se quiser chamá-lo assim, veio.
CASUALMENTE INTENCIONAL: UMA ABORDAGEM AO PASTORADO 283

O desejo presunçoso, que o domina, de ser bem-sucedido, parece-


me, impede que se alcance a verdadeira comunidade e o verdadeiro su-
cesso. Impede que façamos coisas arriscadas, nas quais podemos
fraquejar.

Um pastorado longo ajuda no desenvolvimento de uma comunidade?


Certamente não é a fórmula secreta que assegura o sucesso. Há muitos
perigos num pastorado de longa duração.

Como quais?
Você faz aquilo que atende às expectativas da congregação de modo que
possa desenvolver uma sociedade confortável onde todos são legais com
todos. Ou você faz boas obras e as pessoas passam a respeitá-lo, e então
fica fácil parar de crescer e viver dessas realizações passadas. Há tam-
bém o perigo bem real de se tornar muito imponente para as pessoas —
seu alvo é desenvolver nelas um senso de maturidade, de independên-
cia, de relacionamento direto com Deus.
O outro lado da moeda é como é possível desenvolver uma comuni-
dade se não numa situação de longo prazo? Demorou cerca de cinco anos
para acontecer o primeiro incidente em nossa igreja. Somente nos últi-
mos seis ou sete anos, senti que o senso de comunidade realmente co-
meçou a acontecer.
Agora posso sentir que sou pastor de uma comunidade de pessoas, não
apenas de um apanhado de próximos.
capítulo 23

Espiritualidade subversiva1

Por 29 anos, Eugene H. Peterson foi o pastor fundador da Christ Our King
Presbyterian Church [Igreja Presbiteriana Cristo Nosso Rei], em Bel Air,
Maryland, Estados Unidos. Na época da entrevista, 1991, tinha acabado
de pedir exoneração do cargo de pastor. Ele descreveu sua decisão da
seguinte maneira:

No verão passado, meu filho, Eric, foi ordenado. Um moderador do presbité-


rio pediu que eu fizesse a oração de ordenação. Eu o ungi com óleo, impus as
mãos sobre ele, orei e, enquanto tudo isso estava acontecendo, tive essa sen-
sação fora do comum de que eu chegara ao final da minha carreira. Eu havia
passado o bastão para o Eric. Fui tomado de total surpresa. Minha mulher e eu
conversamos e oramos sobre isso por muito tempo e, por fim, cerca de seis se-
manas atrás, anunciamos a nossa congregação que estávamos nos aposentando.

Eugene decidiu ser escritor-residente no Seminário de Pittsburgh por


um ano e acabou, assim esperamos, numa escola ou seminário onde possa
ensinar e escrever. O que quer que ele faça, esperamos que consiga escre-
ver muito porque Eugene Peterson é um dos escritores mais importan-
tes deste século. Ele é brilhante, prolífico, apaixonado pelo evangelho e
radical em sua compreensão de ministério. As pessoas disputam sua lista
de leituras recomendadas: Uma longa obediência na mesma direção, 2
Traveling light, Onde o seu tesouro está,3 Ânimo, 4 Um pastor segundo o

1
Publicado pela primeira vez no periódico The Door, nov./dez. de 1991.
2
São Paulo: Cultura Cristã, 2005.
3
Rio de Janeiro: Textus, 2005.
4
São Paulo: Mundo Cristão, 2008
286 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

coração de Deus, 5 Trovão inverso, 6 Answering to God [Respondendo à


Deus],7 O pastor contemplativo.8
Eugene Peterson é apaixonado pela vida também. É muito intenso e muito
focado. Não sabemos ao certo, mas não nos parece que seja conhecido em
seu presbitério local como o Pregador de peças. Perguntamos se ele tem
mesmo uma daquelas almofadas que fazem aquele barulho quando alguém
senta sobre ela inadvertidamente... ele não parecia saber do que estávamos
falando. Achamos, entretanto, que você compreenderá bem claramente
sobre o que ele está falando nesta entrevista.

Door: Até que ponto quanto somos ocupados afeta nossa vida espiritual?
Peterson: A vida de muitas ocupações e afazeres é inimiga da espiritualida-
de. No fundo, é o mesmo que preguiça. É fazer a coisa fácil em lugar da
difícil. É encher nosso tempo com nossas próprias ações em vez de prestar
atenção às ações de Deus. É assumir o comando.

Door: Há um velho ditado russo que diz: “Ore a Deus e continue remando
até a praia”. Implica que a vida é tanto ativismo quanto espiritualida-
de. A vida não tem de ser uma coisa em detrimento da outra, tem?
Peterson: Precisa ser uma coisa em detrimento da outra. Ativismo em nada
se relaciona com atividade, e espiritualidade não é a ausência de ativida-
de. Ou você participa daquilo que Deus está fazendo, ou não. Uma pes-
soa ocupada é uma pessoa preguiçosa porque não está fazendo o que
deve fazer.

Door: O que isso quer dizer?


Peterson: Significa que o pastor ou presbítero de sua igreja que vai a todas
as reuniões, lidera todos os comitês e, em consequência disso, não cui-
da de seus filhos ou da mulher não está fazendo o que deve fazer. Todos,

5
Rio de Janeiro: Textus.
6
Rio de Janeiro: Habacuc.
7
São Francisco: Harper Row, 1989.
8
São Paulo: Mundo Cristão, 2008.
ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA 287

dentre os quais o pastor titular, pensam que esse pastor ou presbítero é


maravilhoso, mas a esposa e os filhos dele não pensam que é tão mara-
vilhoso assim.

Door: Parece que a maioria dos pastores que conhecemos é exatamente como
você descreveu. Ocupados e ocupados, fazendo o trabalho da igreja.
Peterson: A maioria dos pastores quer dirigir uma boa igreja, e fará sim-
plesmente quase qualquer coisa para que isso aconteça. Nós, pastores,
costumamos ter bom faro. Sentimos quando as pessoas estão começando
a ficar um pouco enfadadas e aí agitamos um pouquinho as coisas,
desafiamo-las com um projeto novo e usamos o “culto de adoração” de
domingo de manhã como o palco para isso. Estou convencido de que a
maioria dos pastores não dá um trocado pelo culto de adoração. Com
certeza não. E há uma razão boa para isso. O verdadeiro culto de adora-
ção não faz nada acontecer. É ali que a gente na verdade perde o contro-
le, é desmamado da linguagem e do entretenimento manipulativos. É
difícil praticar essa realidade porque, diante da escolha entre adorar e
dançar em torno do bezerro de ouro, os pastores sabem que as pessoas
vão dançar. Os pastores sentem que, se realmente forem praticar o cul-
to de adoração, vão esvaziar muito rapidamente o santuário.

Door: Concordamos que os pastores não podem estar no ramo do entreteni-


mento; então o que devem fazer?
Peterson: O principal trabalho do pastor é conduzir as pessoas no culto de
adoração no domingo pela manhã, proclamando a Palavra de Deus, sendo
instruídos em teologia e nas Escrituras e comprometendo-se com o cui-
dado pastoral sem o modelo terapêutico como estrutura. O pastor é aque-
le disponível em interações pessoais e individuais durante a semana para
pessoalizar, personalizar e lidar com a singularidade da situação de cada
pessoa. Os pastores oram muito. A oração é trabalho árduo, mas deve
ser nosso elemento diferenciador. Precisamos ter um relacionamento
deliberado ou consciente, inteligente, pessoal com Deus, que seja arti-
culado em oração.
288 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Door: Mas é muito mais fácil ficar cheio de ocupação.


Peterson: Odeio essa profissionalização do ministério da igreja, na qual
o pastor comanda o espetáculo o tempo todo. Os leigos deviam se
comprometer fazer o ministério efetivo da igreja, e o pastor deveria
se comprometer com a direção espiritual dos leigos.

Door: Ficamos chocados porque não ouvimos você mencionar uma única
palavra sobre a participação do pastor em reuniões de comitês.
Peterson: Eu não participo dessas coisas.

Door: Que heresia!


Peterson: Eu tinha um amigo — ele já morreu — e o forte dele eram as
reuniões de comitê. Era um pastor de reuniões de comitê, e era sua melhor
estrutura de funcionamento. Então não quero ser dogmático a esse res-
peito, mas, se o pastor reclama das reuniões de comitê, deve deixar de
participar delas. Há 25 anos que não participo de uma única reunião
de comitê.

Door: Incrível! Ouvimos muitos ministros reclamarem de todas as reuniões


de comitê em que têm de participar.
Peterson: A razão por que estão indo a todas essas reuniões de comitê é
que não confiam em seus leigos.

Door: Não confiam em seus leigos?


Peterson: Não. É uma questão de ego, na realidade. Temos milhares de
eufemismos para o nosso ego — preocupação espiritual, sabedoria teo-
lógica, preparo dos leigos. Todos esses termos podem ser eufemismos
para não confiarmos nos leigos.

Door: As pessoas de sua congregação não ficam um pouco irritadas com


sua ausência nessas reuniões de comitê?
Peterson: Elas amam isso. Entendem que estão no comando. Confere-lhes
dignidade. Agora, compreenda, não fiz isso de uma hora para outra. As
ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA 289

pessoas não sabem o que o pastor faz. Sabem o que seu médico faz,
sabem o que seu advogado faz, então ajudo-as a compreender o que seu
pastor faz. A razão por que não vou às reuniões de comitê não é porque
sou bom demais para elas; não vou porque acredito nelas. O ministério
delas têm simplesmente tanta validade quanto o meu. Não entendo que
o pastor é a pessoa mais importante da igreja, mas a tarefa que recebe-
mos é muito importante, e é melhor cumpri-la.

Door: Você mencionou anteriormente que seu modelo de ministério é a orien-


tação espiritual. A maioria dos pastores não descreveria seu modelo de
ministério mais como administração ou gerência?
Peterson: Infelizmente esse é o modelo predominante do pastor norte
americano.

Door: Como seria o modelo de orientação espiritual?


Peterson: Não tem uma definição muito exata, mas classicamente é uma
amizade ou um companheirismo que permite que outra pessoa reconhe-
ça Deus e corresponda a ele em sua vida em detalhes, não de modo ge-
nérico. Exige muito tempo livre. Não dá para fazer de forma apressada.
Exige um conhecimento profundo de seu povo. Você consegue isso de-
pois de vários anos, não vários dias. Não tem nenhum objetivo no fim.
Não é aconselhamento. O aconselhando tem um objetivo, mas não há
nenhum objetivo na orientação espiritual.

Door: Soa tão... ãh... pouco produtivo.


Peterson: Existe uma história fantástica em Moby Dick. Eles estão no bar-
co baleeiro, perseguindo Moby Dick. Os marinheiros estão remando
intensamente, e o mar bravio, mas uma pessoa no barco não está fazen-
do nada. Está só sentada lá, quieta e tranquila. É o arpoador, pronto para
lançar o arpão. Melville então faz esta declaração incrível: “Para assegu-
rar a maior eficiência no arpão, os arpoadores deste mundo precisam se
preparar para tomar sua posição a partir do ócio, não da labuta”. Por mui-
to tempo, o arpoador parece “pouco produtivo”. Mas é somente para que,
quando chegar o momento certo, ele possa ser produtivo.
290 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Door: Então a orientação espiritual é um processo lento que parece ocioso e


ineficiente.
Peterson: É subversiva. Eu sou subversivo, de verdade. Reúno as pessoas
em adoração, oro por elas, muitas vezes as engajo em questões de cor-
reção espiritual e as levo a dois retiros bem fortes por ano. Sou um ver-
dadeiro subversivo. Vivemos em uma cultura que imaginamos cristã.
Quando uma congregação se reúne em uma igreja, pressupõe que este-
ja entre amigos em um mundo basicamente amigável (à exceção dos
pornográficos etc.).
Se eu, como pastor, levanto-me e digo para eles que o mundo não é
amigável e que eles são na realidade adoradores de ídolos, pensam que
estou louco. Essa cultura torceu todas as nossas metáforas, imagens e
estruturas de compreensão. Mas não posso dizer isso diretamente. A
única maneira em que você pode abordar as pessoas é indiretamente,
obliquamente. Um ataque frontal não resolve.
Jesus era o mestre das indiretas. As parábolas são subversivas. Suas
hipérboles são indiretas. Há uma espécie de qualidade ultrajante nelas
que desafia o senso comum; mais tarde, porém, a compreensão chega.
A maior peça de literatura poética da Bíblia, o Apocalipse, é subversiva.
Em vez de (ser) um palestrante de três pontos, o pastor é um contador
de histórias e alguém que ora. A oração e a história passam a ser os
principais meios pelos quais você ultrapassa os mecanismos de autode-
fesa das pessoas.
Em meu livro, eu expresso isso desta maneira: “Preciso me lembrar
que sou subversivo. Minha eficácia a longo prazo depende de eu não ser
reconhecido por quem sou como pastor. Se o membro de igreja realmente
percebesse que o jeito americano de vida está fadado à destruição e que
outro reino está neste exato momento sendo formado em segredo para
tomar o seu lugar, ele não ficaria nada contente. Se ele soubesse o que
estou realmente fazendo e a diferença que isso faz, me demitiria”.
A verdadeira subversão requer paciência. Aos poucos, você conse-
gue células de pessoas que acreditam no que você está fazendo, e parti-
cipam disso.
ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA 291

Door: Isso soa tão... bem… o contrário do que a maioria das pessoas pensa
que um pastor bem-sucedido deve fazer.
Peterson: Os pastores não devem dar às pessoas o que elas querem só por-
que isso faz encher a igreja... e faz mesmo. O maior inimigo da igreja é
o desenvolvimento e a proliferação dos programas que buscam satisfa-
zer as necessidades das pessoas. Todos têm fome de Deus, mas nossos
gostos (necessidades) estão deteriorados. Fomos criados à base de ali-
mento de baixa qualidade, de modo que o que pedimos é frequentemente
errado ou distorcido. A arte da liderança espiritual não é dizer às pes-
soas que elas não podem ter o que querem, mas dar a elas parte daquilo
que pediram, mas sem deixar por isso mesmo. Você tenta deslocar len-
tamente as dimensões da vida delas em direção a Deus.

Door: Que palavras poderosas.


Peterson: Posso ir mais longe ainda, porque fico estarrecido de ver a ma-
neira leviana com que muitos pastores conduzem seu ministério. Sim-
plesmente se ocupam todo dia com insignificâncias.

Door: Por exemplo…?


Peterson: Ficam em reuniões de comitês o dia inteiro, gastam muito tem-
po em organizações comunitárias, fazem trabalho de escritório, visitam
para recrutar gente, estimulam o entusiasmo para o próximo projeto.
Estamos num lugar desesperado. Há uma urgência no que fazemos que
não pode aceitar envolvimento com coisas de somenos importância. A
tarefa que recebemos é muito importante, urgente, e é melhor cumpri-
la. Certamente há uma dimensão apocalíptica no que fazemos. Eu creio
que o Novo Testamento é um livro escatológico moldado por um apo-
calipsismo redimido.

Door: Apocalipsismo redimido? Ah... sabemos o que quer dizer, mas para
muitos de nosso leitores você terá de traduzir o termo.
Peterson: Tudo no Novo Testamento é escrito sob a pressão do fim. Cristo
está voltando. O tema floresce com mais exuberância em Apocalipse,
mas está presente em todo o Novo Testamento. Infelizmente, o Novo
292 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Testamento foi reinterpretado numa espécie de coluna de aconselhamen-


to moral das Seleções. Não surpreende que não haja nenhum senso de
urgência. Mas esta é uma era urgente, e a tarefa do cristão é aprender a
manter essa urgência sem entrar em pânico, ficar firme sem ceder à cul-
tura. Essa simplesmente não é uma cultura benigna em que tudo vai fi-
car bem. Nada vai ficar bem.

Door: Como as pessoas aprendem a viver com a tensão que você acabou de
descrever?
Peterson: O pastor precisa dar o exemplo para a congregação. Pessoas es-
tão morrendo e sendo mortas, divorciando-se. Todos vivemos em uma
comunidade em constante crise, e o pastor é quem está presente nesses
momentos de crise, subversivamente modelando o que significa viver o
evangelho.

Door: Parece estranho que, em consequência de sua visão acerca da urgên-


cia da hora, você não tenha mencionado a palavra “evangelismo”.
Peterson: Não uso muito a palavra “evangelismo”. É uma palavra deterio-
rada. Sou muito preocupado com o evangelismo. É da própria natureza
do evangelho ser transmitido e compartilhado. Mas não acho que o evan-
gelho jamais será muito popular. Nunca foi e nunca será. Se vivermos
bem a fé cristã, não resultará em igrejas cheias, transbordantes. Sim-
plesmente não há nenhuma prova disso em nenhum lugar da Escritura
ou da história. Se medimos o evangelismo bem-sucedido pelo número
de pessoas que trazemos para a igreja, estão já começamos tudo errado.
O que precisamos fazer é nos certificar de que estamos sendo pessoais
e vigorosos em compartilhar nossa fé — mas também honestos. E creio
que honestidade é a parte difícil.

Door: Você ficou muito tempo em sua igreja — 29 anos. Qual sua opinião
sobre o pastorado de longo prazo?
Peterson: Os pastorados de longo prazo dão crescimento ao ministro. Você
tem de crescer. Você pode pregar, e adorar, e disfarçar quem você é por
ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA 293

alguns anos, mas então chega o tempo em que tem de tomar uma deci-
são. Vou me mudar para outro lugar e me disfarçar outra vez até que
descubram quem sou, ou vou me transformar em algo mais? Se você
decidir permanecer, será forçado a se tornar uma pessoa mais profunda
e mais completa.

Door: Como você descreveria sua igreja?


Peterson: Não é uma igreja grande — contamos 438 membros na últi-
ma assembleia geral. Na maioria das vezes, foi muito menor que isso
— mais como 250 a 300 pessoas. Mas nos 29 anos em que aqui esti-
ve, provavelmente recebemos 2.000 membros. Isso sem nenhum pro-
grama de evangelização. Mas quero deixar claro que essa não é a única
maneira de fazer igreja, e o que estou fazendo não é a única maneira de
ser pastor.

Door: Você tem algum problema com as igrejas grandes de, por exemplo,
2.000 membros?
Peterson: Quando começamos nossa igreja, decidimos planejar para ter uma
igreja de quinhentos membros. Eu achava que quinhentos era adminis-
trável. Decidimos então que, quando excedêssemos os quinhentos mem-
bros, começaríamos uma nova igreja. Chegamos agora a esse ponto, e
tentamos começar outra igreja, mas o presbitério barrou porque é me-
nos custoso ter uma igreja duas vezes o nosso tamanho.

Door: Excelente motivo.


Peterson: Exato. Agora temos pessoas cuidando de coisas sem que isso nos
custe tanto. Temos de seguir nessa direção porque não acredito em in-
sultar minhas autoridades. Mas deixe-me dizer uma coisa sobre a igreja
de 2.000 membros. Existe uma maneira na qual você pode ter uma
igreja de 2.000 membros — ou 5.000 membros que seja. Requer mais
pastores, naturalmente, mas parte da minha questão é de caráter pes-
soal. Seria um equívoco para mim ser um pastor de uma igreja desse
tamanho, mas não tenho nada contra uma congregação grande.
294 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Door: Você gostou de ser pastor?


Peterson: Ser pastor é um trabalho incrivelmente bom, maravilhoso. É um
dos poucos lugares de nossa sociedade em que você pode levar uma vida
criativa. Você vive na intersecção entre a graça, a misericórdia, o peca-
do e a salvação. Tomamos assento nas primeiras fileiras, e às vezes até
chegamos a fazer parte da ação. Como alguém poderia abandonar a glória
desse tipo de vida para se tornar um perito em administração? Somos
artistas, não diretores executivos. O verdadeiro pastorado é uma obra
de arte — a arte da vida e do espírito.
capítulo 24

Sobre pentecostais,
poetas e mestres1

TSF: Há quanto tempo você está fora dos seminários, Eugene?


EP: Há 26 anos.

TSF: O seminário foi uma experiência positiva ou negativa para você?


EP: Bem, para mim foi uma experiência mista. O seminário que frequen-
tei era um velho Seminário Bíblico, uma escola não denominacional de
Nova York que é agora o Seminário Teológico de Nova York. Eu não
tinha realmente planejado ir para o seminário. Fui criado numa igreja
pentecostal que era muito anti-intelectual. Tinha receio da instrução de
nível superior e já havia estendido os limites quando fui para a faculda-
de. Vários pastores e várias pessoas tinham enchido minha cabeça com
advertências: “Você vai perder a fé; vai deixar o Senhor”. Mas acabei no
seminário, na verdade meio que pela porta dos fundos, porque outras
coisas não deram certo. Eu não sabia nada do lugar, a não ser o fato de
que foi um professor da faculdade que me encaminhou para lá. Em
certo sentido, tive muita sorte, porque tinha curiosidade intelectual
e motivação de sobra. Não precisei que ninguém me estimulasse inte-
lectualmente; só de uma biblioteca. O Seminário Bíblico naquele mo-
mento estava em declínio, e na verdade não tinha muita coisa a seu favor
na área dos estudos teológicos. Mas era uma comunidade espiritual, e
assim encontrei minha instrução teológica num lugar onde a oração era
central e importante.

1
Publicado pela primeira vez no TSF Bulletin, mar./abr. de 1984.
296 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

TSF: Como exatamente operava essa comunidade espiritual?


EP: Havia orações diárias, e uma reunião de oração. Ao longo do ano, ha-
via dias de retiro e um incentivo à oração. Muitos dos professores realmente
criam na oração. Era importante para eles, e o demonstravam na pró-
pria vida. Parte da ênfase na comunidade espiritual estava ligada ao cor-
po de alunos. Tínhamos muitos missionários de licença. Não era um
corpo discente muito grande, de modo que essas pessoas exerciam in-
fluência. Como viviam e oravam fez uma grande diferença.

TSF: Se você fosse ao seminário hoje, que tipo de instrução teológica bus-
caria?
EP: Não vejo nenhum seminário que esteja fazendo o que, para mim, pare-
ce essencial — oferecer incentivo e direção para a vida de fé, treinar
pessoas nas tradições que sempre fizeram parte dessa vida e no proces-
so fornecer uma estrutura teológica por meio da qual seja capaz de
articulá-la. Mas se deixou perder todo o teor do material, e ainda temos
a parte intelectual e teológica, mas fora de contexto. Sei que há seminá-
rios tentando reparar isso. Mas alguns dos reparos parecem-me não
passar de cirurgia cosmética, e eu não sei quais serão os resultados.

TSF: Você encontrou um equilíbrio entre espiritualidade e academicismo entre


seus professores no seminário?
EP: Não. Encontrei um interesse pela vida espiritual, um compromis-
so com a vida espiritual. Não encontrei o rigor intelectual, que eu
tinha de buscar por conta própria; mas, não, não encontrei esse equilí-
brio.

TSF: Você estava em busca de uma carreira acadêmica?


EP: Sim.

TSF: Depois você planejou obter o grau de Ph.D. em que área?


EP: Em línguas semíticas. Fui para o Johns Hopkins e estudei com William
Albright no campo das línguas semíticas.
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 297

TSF: De que forma você procura em sua vida pessoal manter esse equilíbrio
entre o academicismo e a piedade?
EP: Bem, não sei, Bill. Muito disso a gente faz meio às cegas. Meu passado,
a igreja, o ambiente em que fui criado eram todos muito intensos espi-
ritualmente, e assim desenvolvi em minha infância e adolescência uma
vida que era apaixonada pela questão da espiritualidade. Ainda que muito
fosse exagerado e parte daquilo tudo fosse irrelevante, o que me foi
passado é que a vida cristã está relacionada a intensidade, a paixão, a
profundidade. E assim fiquei mal-acostumado. Nunca consegui lidar com
o diletantismo devocional. Se eu tinha de brigar por alguma coisa, era
pelo rigor intelectual. E não encontrei isso por muito tempo. Você vê,
tudo o que eu tinha era uma fome por aprender, por saber. Eu sabia que
era possível porque tinha tido contato com alguns dos velhos mestres
que estavam mortos já fazia uns mil anos.

TSF: Você pode citar alguns desses mestres?


EP: Bem, Agostinho era um, Bernardo, Gregório, Tomás de Aquino. Fo-
ram esses os que primeiro atraíram minha atenção. Mais tarde, desco-
bri outros que eram mais protestantes e puritanos, mas esses primeiros
mestres foram os que me inspiraram. Em certo sentido, eles eram pré-
Reforma, eram pré-controvérsia, e assim minha bagagem pentecostal
não tinha nenhum rótulo para eles. O tipo da espiritualidade com a qual
fui criado estava relacionada a paixão, a intensidade, a interioridade —
então esses mestres encaixavam-se nesse estilo. Quando deixei a cultu-
ra da igreja pentecostal, consegui deixar tudo o que jamais se enquadra-
va nessa visão, principalmente o entretenimento — e há muito
charlatanismo em toda essa indústria. Mas, de algum modo, por causa
do lar em que vivi, consegui escapar disso.

TSF: Você leciona agora?


EP: Sim, dou aulas numa universidade secular e num seminário católico
romano.
298 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

TSF: Você poderia falar um pouco sobre o ensino do seminário?


EP: Bem, tem sido muito estimulante para mim. Estou trabalhando com
uma comunidade da qual nunca estive próximo antes, a comunidade
católica romana. Percebi que do ponto de vista do ministério não há
grande diferença. Estamos lidando com o mesmo material. Fiquei mui-
to animado pelo fato de me quererem lá com eles, que tivessem procu-
rado em mim algo que lhes faltava — uma teologia do ministério e uma
interpretação das Escrituras que tem a espiritualidade como base. Eles
também foram apanhados em toda essa síndrome secularizante — mi-
nistério como opção de carreira e as Escrituras como uma espécie de
exercício acadêmico. Eles têm sido muito receptivos e têm calorosamen-
te aceitado uma abordagem de ministério que tem a espiritualidade em
seu cerne — junto com uma integridade intelectual.

TSF: Parece-me que hoje muitos alunos estão vendo o seminário como um
lugar para estudar a fé e desenvolver alguns tipos de sistemas de crença,
ainda que não tenham nenhum tipo de chamado especial ou desejo de
ingressar no ministério. Você encara com bons olhos essa tendência co-
mum hoje entre os alunos cristãos?
EP: Os alunos que tenho na maioria não estão lá realmente para aprender.
Estão lá para conseguir um emprego ou se prepararem para obter um
emprego, e é bem desanimador que um professor que se empolgue muito
com o material e queira ensinar o que está lá ter como interesse funda-
mental do aluno “Como posso passar neste curso?”. Creio que não há
problema na motivação que você mencionou. Qualquer lugar é um bom
lugar para começar. Mas, se estou lendo os sinais corretamente, não creio
que os seminários tenham se ajustado para esse desejo, de modo que
não estão desenvolvendo o tipo de comunidade que atende a essa ex-
pectativa ou a essa necessidade. Não vejo nada de errado em ir para o
seminário com esse desejo, mas acho que seria melhor se o seminário
dissesse “nossa tarefa preliminar é ser uma comunidade espiritual que
desenvolve habilidades teológicas”. Porque pensar sobre a aprendizagem
teológica não é uma tarefa espiritual. Tive um aluno no Mary’s Seminary
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 299

que deixou seu preparo para o ministério há vários anos, mas continuou
mantendo seu interesse em teologia. Continuou vindo ao Mary’s
Seminary apenas porque amava teologia, embora não fosse à igreja e
não cresse em Deus. E, num curso que dei no último outono, ele se con-
verteu, e concluiu o curso fazendo um compromisso tanto com a fé cristã
quanto com o ministério. Era a primeira vez que participava de um cur-
so que tinha alguma relação com sua vida pessoal e vocação. Agora, é
difícil de acreditar que alguém frequente uma escola teológica por qua-
tro anos e jamais se sinta tocada pessoalmente a ponto de integrar a vida
com o pensamento.

TSF: Você se consideraria parte da tradição evangélica tradicional?2


EP: Sim.

TSF: Em razão da situação do termo hoje em dia, você poderia descrevê-lo


para nós brevemente.
EP: Evangélico tradicional para mim, Bill, significa duas coisas. Primeiro,
está relacionado a certo compromisso com as Escrituras e com o evan-
gelho, que os vê como realmente transformadores de vida. Diz também
respeito a uma cultura, certa cultura da igreja que brota da tradição
pietista, reavivalista, sectária que em muitos momentos se fez sentir
também em outras partes da igreja. Essa foi a igreja em que fui criado,
o movimento em que fui criado. Embora eu faça parte de uma denomi-
nação oficial neste momento, a igreja evangélica tradicional no sentido
teológico e cultural é onde eu me sinto bem. Não faço parte dela
denominacionalmente, mas é onde encontro meus aliados, amigos e
comunidades naturais.

2
O termo “evangelical” em inglês não é empregado exclusivamente no sentido em que é em-
pregado no Brasil, ou seja, numa oposição “católico/evangélico”. Na língua inglesa, o sentido de
“evangelical” é mais amplo e inclui contornos de uma teologia conservadora, tradicional, ortodo-
xa, que tem a Palavra de Deus e o evangelho por fundamento. A oposição então é mais ampla:
é entre “evangelicais” e “liberais”, “evangelicais” e “neopentecostais” etc. Em outras palavras, o
termo não classificaria muitas das igrejas que no Brasil se denominam evangélicas só por não
serem católicas. O termo “evangélicos tradicionais” transmite mais adequadamente a ideia do
termo original. (N. do T.)
300 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

TSF: Que futuro você vislumbra para o evangelicalismo neste país?


EP: Bem, acho que é um futuro bem positivo, bem forte, porque o
evangelicalismo tornou-se, no meu entender, muito menos sectário,
muito menos defensivo, mais confiante. Os evangélicos tradicionais já
não se veem como um grupo assediado de crentes que defendem a ver-
dade, mas estão de fato plenamente confiantes de que estão no centro
das coisas, bem como dispostos a fazer parte de outras denominações,
cruzando barreiras denominacionais. Posso estar entre os docentes de
um seminário católico romano sem nenhum senso de traição ou de aban-
dono da fé ou algo assim. Então creio que seja uma posição muito forte.
Está tendo uma influência fermentadora na igreja.

TSF: Você enxerga algum perigo no movimento?


EP: Os perigos no evangelicalismo parece-me que fluem de um pietismo
irrefletido. O elemento pietista do passado não é compreendido em toda
a sua profundidade, de modo que são tomadas apenas pequenas porções
dele. Os perigos brotam também do sectarismo que desenvolve uma
mentalidade de minoria e de contrariedade com um tipo de paranoia.
Ainda observo essa agressividade, mas parece que em doses cada vez
menores. Estou animado. O perigo é que haja uma força que brote da
paranoia. Você pode reunir muita energia se estiver suficientemente
paranoico; então, à medida que o movimento evangélico tradicional se
torna mais ecumênico ou aberto, há um perigo natural de perder seus
contornos bem delimitados. Não sou um analista cultural bom o bas-
tante para saber se isso está acontecendo. Não que eu saiba, mas devo
crer que teoricamente o risco existe.

TSF: Como evangélico conservador dentro da Igreja Presbiteriana (dos EUA),


quais foram suas batalhas?
EP: Não tive nenhuma batalha, creio que não. Mas nunca me senti em casa.
Fui sempre alguém de fora. Mas isso está relacionado ao meu histórico
de vida. Não fui criado nesse ambiente, então nunca fiz realmente parte
do clube, mas a culpa não é deles. A igreja presbiteriana foi muito boa
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 301

para mim. Deram-me um local para trabalhar, uma congregação para


pastorear, de modo que nunca achei que meu sentimento de ser um
estranho no ninho fosse culpa deles. Nunca me senti muito à vontade
com as tendências nacionais, mas me sinto muito à vontade com os de-
senvolvimentos históricos, toda a raiz da igreja presbiteriana, de modo
que eu tenho a disposição de conviver com modelos que não tenham
lá muito que ver comigo caso eu perceba que a estrutura básica como
um todo tem uma boa fundação, e acho que tem.

TSF: Você aprendeu alguma lição em especial que gostaria de passar adian-
te ao trabalhar dentro de uma das denominações tradicionais?
EP: A igreja presbiteriana é pluralista. Para algumas pessoas, natural-
mente, isso é negativo. Para mim, como faço parte da minoria, é algo
positivo. E, se você for um negro num mundo de maioria branca, fica
feliz que ela seja pluralista. E, como evangélico tradicional e ainda mais
oriundo de um passado mais sectário, fico feliz que minha igreja seja
pluralista.

TSF: Você incentivaria mais alunos de antecedentes evangélicos tradicionais


a buscar uma instrução ou ordenação dos seminários mais tradicionais?
EP: Você está fazendo duas perguntas diferentes. Não tenho nenhuma opi-
nião fechada sobre onde você deve buscar sua instrução. Mas parece-
me que é sempre melhor viver a partir de sua própria tradição do que
deixá-la. Isso não foi possível para mim. Tentei e não funcionou. Eles
não me aceitaram; não me encaixei nas denominações pentecostais,
então tive mesmo de sair. Creio que teria sido muito errado eu perma-
necer porque sempre seria um descontente. Eu sempre ia estar dificul-
tando as coisas. Exige muita energia emocional. Eu invejo as pessoas que
estão dentro da denominação em que cresceram e conseguem edificar
a partir dessas raízes e se desenvolver a partir dessa tradição. Acho que
lhe dá certa força. Então, se possível, acho que você deve permanecer
onde nasceu, mas nem sempre é possível.
302 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

TSF: Então para os alunos quem saem para a faculdade e aprofundam seu
compromisso com a fé por meio de várias organizações paraeclesiásticas
evangélicas tradicionais, você incentivaria esses alunos a permanecer
dentro da Igreja Presbiteriana ou da Igreja Metodista Unida ou da Igre-
ja de Cristo Unida?
EP: Sim, sim. Com toda a certeza.

TSF: Que perigos há nas igrejas mais tradicionais que não estão presentes
nas igrejas independentes da tradição bíblica?
EP: Bem, creio que haja mais perigo nas igrejas ditas tradicionais, que po-
dem acabar aderindo a uma cultura burguesa ou uma cultura eclesiásti-
ca. Há mais perigo em se deixar levar por um tipo de profissionalismo,
um profissionalismo clerical. Nas denominações tradicionais, as con-
gregações deixam você fazer o que deseja, desde que seja competente.
Entretanto, as congregações evangélicas tradicionais muitas vezes têm
expectativas teologicamente bem definidas, e às vezes expectativas es-
pirituais, e talvez haja um grau maior de prestação de contas. É apenas
uma impressão que eu tenho. Por outro lado, o perigo das igrejas inde-
pendentes é de o pastor se transformar numa espécie de superstar ou
ditador, e se ver como o líder da igreja em vez de o servo ou o pastor da
igreja. Creio que seja um perigo muito forte.

TSF: Você lê muito. E não apenas dentro do campo estritamente religioso ou


filosófico?
EP: Exato.

TSF: Parece-me que mais alunos hoje carecem de uma instrução nas artes
“clássicas”, e assim parece que lhes falta aquela capacidade imaginati-
vo-criativa. Como você sugeriria a um seminarista que corrigisse esse
desequilíbrio? Você tem sua oportunidade, Eugene, de corrigir todos aque-
les alunos que lerão o TSF Bulletin.
EP: O melhor aliado do teólogo é o artista. Creio que precisamos despertar
um interesse na literatura que é natural à maioria das pessoas, mas fica
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 303

reprimido. Precisamos ver a imaginação como um aspecto do ministé-


rio. É de criatividade que realmente estamos falando aqui. Estamos par-
ticipando de algo que Deus está fazendo. Ele está criando nova vida. Ele
criou a vida e tem criado vida. Agora, como funciona o processo criati-
vo? As pessoas que tentam responder a essa pergunta são em geral es-
critores, artistas, escultores, músicos. As pessoas que se envolvem na
liderança da igreja deviam estar apaixonadamente interessadas em como
funciona o processo criativo — não em como dizer as coisas com exati-
dão. Esse enorme realce que se dá a como se comunicar com exatidão
é um beco sem saída. Não estamos atrás de nos comunicarmos com
clareza. O que buscamos é criar vida nova. O escritor criativo não está
interessado em dizer as coisas tão simples ou tão precisamente quanto
possível, mas em tocar os mananciais da criatividade e dar vazão à ima-
ginação para que opere de maneira analógica. Creio que, se fosse mon-
tar um programa de cursos de um seminário, eu gastaria um ano inteiro
em cima de alguns poetas. Eu insistiria com os alunos para que apren-
dessem a ler poesia, aprendessem como as palavras funcionam. Não
prestamos a devida atenção às palavras — usamos as palavras o tempo
todo, mas as usamos de uma maneira comercializada, consumista. Esse
uso das palavras com orientações consumistas tem pouco lugar na igre-
ja, no púlpito, no aconselhamento. Estamos tentando descobrir como
as palavras funcionam, que papel elas têm.
Não estou insistindo em nenhum poeta específico aqui. Acabei de ler
um livro de poemas de William Stafford. Há anos, leio Stafford, e uma
antologia de poemas que acabou de ser lançada seria útil. Ele é cristão.
Seu cristianismo é indireto e nada transparece de modo indesejável, e
ele usa as palavras com grande habilidade. Eu iria querer prestar aten-
ção junto com as pessoas a como isso operou, como a imaginação cria-
tiva lida com a experiência comum e aprende a expressá-la corretamente.
Eu usaria alguns poetas que se envolveram no ministério. George
Herbert era pastor; Gerard Manley Hopkins era padre. Eu tomaria
pessoas que se envolveram no cerne do evangelho e estavam tentando
compreendê-lo, mas prestaram atenção à maneira em que as palavras
funcionavam.
304 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

E também iria querer aprender com os críticos literários. Estamos


engajados no estudo das Escrituras e fomos completamente intimida-
dos por todo o movimento da crítica histórica, que tem insistido em que
examinemos as Escrituras analiticamente, historicamente, objetivamen-
te. Não é possível ler literatura imaginativa analiticamente. Você preci-
sa participar. E a toda a revolução hermenêutica ocorrida nos últimos
trinta anos faltam as duas coisas. Nossos melhores aliados são os críti-
cos literários — pessoas como Northrop Frye, C. S. Lewis em suas obras
críticas e George Steiner — pessoas que nos ensinam a ler com todo o
nosso ser. Não basta simplesmente ler com a mente. Temos emoções,
temos corpo, temos história, temos emprego, temos relacionamentos,
e precisamos abordar esses textos com todo o nosso ser — com cotove-
los e joelhos tanto quanto com nossas células cerebrais. E alguns desses
homens nos ensinam a fazer isso ou nos mostram o caminho e insistem
em que o sigamos. Foi assim que as Escrituras foram lidas até a Refor-
ma e ao longo da Reforma. Mas no pós-Reforma desenvolvemos um
desejo tão arrogante de sermos intelectualmente respeitáveis.
Temos tanto medo de superstição e de alegoria que esprememos todo
o elemento imaginativo das Escrituras para nos certificarmos de que elas
eram exatas e precisas. Se é a Palavra infalível, então você precisa ter o
sentido exato e nada mais, e assim toda a ambiguidade tem de sair. Bem,
toda boa linguagem é ambígua. É poética. Tem níveis de significado. Então
qual desses níveis de significado é infalível? Precisamos retirar tudo isso
e ficar com um nível só para que tenhamos a verdade exata. Não é só a
igreja evangélica ou conservadora que fez isso, mas também o
academicismo liberal. As razões teológicas para fazê-lo eram distintas,
mas acabou dando na mesma coisa.

TSF: E com isso veio esse realce desmedido nas formulações doutrinárias e
teológicas à custa da formação espiritual.
EP: Não tenho nada contra qualquer realce que se queira dar à forma-
ção teológica e doutrinal; aliás, é uma de minhas tônicas. Mas esse des-
taque faz parte de uma família, e matamos os filhotes, eliminamos todos
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 305

os elementos imaginativos que pessoas como William Faulkner ou


Walker Percy trazem de volta. Você não pode ler um grande artista
simplesmente com sua mente analítica. Precisa usar sua imaginação.
E com a Escritura não é diferente, mas insistimos em ler as Escrituras
de uma maneira subliterária, e assim perdemos boa parte de sua
genialidade.

TSF: Quando fala e escreve, você se refere a uma “integralidade”. Qual o


significado desse termo para você?
EP: Refiro-me a algo cristão. Quero dizer todos os aspectos do cristianis-
mo nos quais estamos num relacionamento consciente e crescente com
Deus e uma insistência em que nossa vida conforme descrita nas Escri-
turas e experimentada em graça seja desenvolvida dessa maneira. Não
quero dizer “integralidade” da perspectiva de um subjetivismo psicoló-
gico, aquilo que me faz bem. E não quero dizer “integralidade” da pers-
pectiva de atender a certas expectativas culturais do que significa ser
uma pessoa completa e simétrica, de modo que existe certa tensão na
maneira em que uso a palavra. Insisto na validade da palavra para o cris-
tão, entrando em contato com a realidade como um todo. Mas também
estou ciente de que é fácil ser malcompreendida, porque muitas pes-
soas, quando falam de “integralidade”, simplesmente querem dizer “te-
nho tudo resolvido do jeito que eu quero”.

TSF: Como você sugeriria que um aluno de seminário buscasse a “integra-


lidade”? Uma coisa é dizer aos alunos de seminário que eles precisam ler
mais, outra coisa é quando os alunos de seminário têm emprego, cônjuge
e talvez filhos, e raras vezes dinheiro suficiente. No meio de tudo isso,
queremos que saiam do seminário ao menos buscando a direção da inte-
gralidade.
EP: Creio que, se há uma coisa realista em relação a sugerir “integralida-
de” ao aluno de seminário, é oferecer uma visão do que signifique e
despertar o apetite para ela. “Integralidade” é uma busca, e precisamos
saber o que estamos buscando. Não é razoável dizer “Está certo, agora
306 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

dê um jeito de desenvolver uma vida equilibrada e junte todos os frag-


mentos num todo bem ordenado”. É possível adquirir um gosto por isso
e enxergar o que é possível. É importante ler os melhores escritores. É
importante conhecer as pessoas que tiveram alguma “integralidade”.
Precisamos conhecer algo sobre Gregório e Bernardo, Tomás de Aquino,
Calvino e Lutero, buscar a melhor literatura e não nos enganarmos
com uma literatura de segunda ordem. Os místicos, acredito, muitas
vezes foram as pessoas integrais de nosso passado. Se formos capa-
zes de desenvolver um gosto por eles, para que ao menos saibamos
como soa, como parece, então talvez fiquemos insatisfeitos com qual-
quer substituto que seja lançado em nosso caminho à medida que pros-
seguimos.

TSF: Você já tocou nisso de certa forma, mas talvez possa tratar do assunto
de novo: que qualidades você gosta de ver naqueles que saem do semi-
nário hoje? Se tivesse de empregar alguém que tivesse acabado de sair
do seminário para ser pastor assistente, que tipo de pessoa você bus-
caria?
EP: Eu iria querer alguém que tivesse a convicção básica de que o cerne do
trabalho ou da liderança pastoral na igreja está relacionado ao desen-
volvimento de um relacionamento de longa duração com Cristo que
envolve o todo da vida. Em outras palavras, iria querer alguém compro-
metido com a tarefa da formação espiritual. Desejaria também alguém
que tivesse certa disciplina e curiosidade intelectual sobre como com-
preender e imaginar as diferentes maneiras em que a vida é experimen-
tada. Sem essa curiosidade intelectual, as primeiras experiências
tornam-se clichês e não são reaplicadas em novas maneiras e em situa-
ções novas. Aquilo que começa como uma experiência vital se deterio-
ra num chavão. E assim a formação espiritual e a curiosidade intelectual
são recíprocas, porque mantêm uma à outra em crescendo, vivas, reno-
vadas. É isso que eu buscaria. Já disse antes que as colunas gêmeas do
ministério são aprendizado e oração, e eu buscaria encontrar um desejo
por essas coisas.
SOBRE PENTECOSTAIS, POETAS E MESTRES 307

TSF: Você já falou sobre a tentação no ministério de mentir sobre Deus.


Mentimos sobre Deus por cobiçarmos o poder ou com medo de não conse-
guirmos responder a perguntas?
EP: As duas coisas. Acho que as duas coisas, mas creio que sejam sutis.
Parece-me que talvez fossem irreconhecíveis se fôssemos acusados des-
sa maneira. Eis o que diríamos: “Não, não quero poder, não estou com
medo”. Mas creio que parte disso, Bill, se dá porque a maioria das pes-
soas que entra no ministério quer ajudar pessoas. De fato, somos pro-
gramados para ajudar pessoas, e isso é bom. Quando as pessoas pedem
que façamos algo, queremos fazer o que elas querem fazer. Se querem
respostas, damos respostas, porque é o que pediram. Então boa parte
daquilo que eu chamo mentir sobre Deus, respostas sobre Deus que
obscurecem ou distorcem certas ambiguidades da vida ou certa inte-
gralidade na doutrina acerca de Deus, é bem-intencionada. Penso que o
fazemos com as melhores motivações, o que torna muito difícil detectá-
lo em nós mesmos, porque, se nossas motivações estão certas, então
pensamos que os frutos também são aceitáveis, principalmente se fo-
rem ortodoxos.

TSF: Qual o papel que a dúvida desempenha no desenvolvimento espiritual


de alguém?
EP: A dúvida empurra-me para as profundezas. A dúvida me faz ultrapas-
sar a intelectualização, o superficial, e me faz lidar com questões da vida
em que não posso compreender ou controlar tudo. Preciso mergulhar
de qualquer maneira. A dúvida nunca funcionou na minha vida como
uma forma de sair das coisas. Sempre me levou para mais adiante. Sei
que ela gera espectadores em algumas pessoas, mas por alguma razão
nunca funcionou dessa maneira comigo. Fez que eu estivesse envolvido
em dimensões da fé das quais não tinha ciência antes.

TSF: Você falou recentemente sobre o equilíbrio entre lutar pela excelência e
a humildade. Como isso funciona? Você diz: “Quero ser mesmo um exce-
lente ajudador de pessoas”, mas aí acabamos sempre forçados à posição
308 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

de fazermos propaganda sobre nós mesmos e sobre nossa capacidade de


ajudar os outros.
EP: Não é possível tratar dessa pergunta, Bill, neste contexto de forma ple-
namente satisfatória, mas é uma das perguntas-chave do ministério,
porque não há outra área da vida espiritual que seja mais sujeita ao or-
gulho, à ambição, à autoafirmação, à falta de humildade do que as posi-
ções de liderança no ministério. Contudo, tampouco há outra área em
que a busca pela excelência seja mais importante. Aprender a distinguir
entre excelência e ambição é uma tarefa muito difícil. Exige um exame
de toda uma vida e uma boa dose de discernimento. Acho com certeza
que é possível aprender a fazer o nosso melhor, disciplinar nossa vida de
tal maneira que consigamos extrair o melhor das duas (ou que o Se-
nhor extraia o melhor das duas), e ao mesmo tempo fecharmos a porta
para a autoafirmação, para o engrandecimento pessoal, para a autopro-
moção. O problema é que a maioria dos modelos de excelência que nossa
cultura fornece alimenta a ambição, de modo que ficamos sem mode-
los a partir dos quais operar. É por isso que realmente precisamos satu-
rar nossa imaginação com pessoas como Teresa de Ávila, João da Cruz,
Francisco de Assis, Gregório de Nissa; essas pessoas que realmente
buscaram levar uma vida de excelência em incrível humildade e numa
completa indiferença quanto ao que os outros pensavam sobre elas ou
quanto a terem ou não alguma posição na vida qualquer que fosse. É
lamentável que tenhamos de recuar quinhentos anos para encontrar nos-
sos modelos, mas é melhor que nada. Ainda se encontram modelos úteis
ao redor, mas precisamos ficar bem atentos para detectá-los.
capítulo 25

De paixão, oração e poesia1

KATHY BUBEL

Poderia ter sido apenas outra tentativa calculada de tornar a Bíblia mais fácil
de ler, mas a tarefa foi designada a ninguém mais que um pastor, professor e
poeta apaixonado, Eugene Peterson. O resultado — adequadamente intitulado
The Message — é uma versão notável, pungente, do Novo Testamento que talvez
seja a tradução mais eloquente e compreensível de todas ao redor.

No começo, queria saber a razão de todo o alvoroço. Folheando um calha-


maço de matérias da imprensa sobre a The Message, encontrei uma longa
lista de autores, músicos e líderes espirituais praticamente se atropelando
uns aos outros para endossar esse livro. Sempre pensei na tradução da Bí-
blia como um processo um tanto entediante, apaticamente realizado por
acadêmicos em processo de envelhecimento e em bibliotecas empoeiradas.
Depois de me encontrar com Eugene Peterson e ler por mim mesma a
The Message, agora compreendo.
Marcamos para nos encontrar do lado de fora da livraria na Regent
College, em Vancouver, na Colúmbia Britânica, Canadá, onde Eugene atua
como professor de teologia espiritual. Regent é talvez um dos edifícios
de faculdade mais brilhantes e arejados que existem, e, embora Eugene
tenha mais de 60 anos, o homem que se aproxima parece como alguém
que faz trilhas nas montanhas ou veleja pela baía que se acha atrás do câmpus.

1
Publicado pela primeira vez em Release ink Magazine,1 (2): 14-17, dez. de 1994/ jan. de
1995. Reproduzido com permissão de Kathy Bubel.
310 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

Sem dúvida alguma, não um acadêmico em processo de envelhecimento


em uma biblioteca empoeirada.
Ele me leva até seu escritório, um espaço pequeno, mas livre com uma
parede de janela, uma parede de livros. Retratos de sua família ficam lado
a lado no peitoril da janela à frente de sua mesa. Eugene assenta-se confor-
tavelmente na cadeira de balanço. Acabou de retornar de uma peregrina-
ção anual à casa da família em Montana. Parece descontraído e bem
descansado. Tudo, menos sua voz. É quase um sussurro, obviamente
desgastada por 35 anos de pastoreio e ensino entusiásticos.
A entrevista inicia-se com ele me fazendo perguntas sobre mim. Isso de
saída, e sou pega um tanto desprevenida. Sem com as palavras na ponta da
língua, entretanto, eu me lanço. Por alguma razão, acabo confessando. Falo
do meu desencantamento atual com o “cristianismo evangélico norte-ame-
ricano” — o lugar de onde venho e onde me encontro: ainda que à mar-
gem. Consulto incontáveis amigos e conhecidos que compartilham da
minha perplexidade, e então de repente percebo que poderia estar afastan-
do meu anfitrião — nem sempre a melhor maneira de começar uma en-
trevista. Felizmente para mim, ele compreende.

BEM-VINDOS À PRIMEIRA IGREJA DOS DESLOCADOS


Felizmente para todos nós. É a nós que Eugene tinha em mente quando
empreendeu a tradução do Novo Testamento do grego para o inglês atual.
O cristão privado de seus direitos e o “pagão moderno”. As pessoas que ele
pastoreou por trinta anos.
Sua igreja em Bel Air, Maryland — lugar que ele descreve como um
“clássico bairro nobre americano afastado dos grandes centros” — inclui
“deslocados, pessoas estranhas que não se encaixaram, os espiritualmente
perdidos. Havia muitas pessoas em programas de reabilitação, muitos al-
coólatras e viciados em drogas em recuperação”. Ele responde aos meus
comentários sobre o estado da igreja falando de uma mulher que escreveu
para ele dizendo de sua experiência na igreja.
A mulher, uma artista, contou que fora criada num lar culturalmente
sofisticado, mas sem religião. Ela não sabia nada sobre a igreja. Alguns
DE PAIXÃO, ORAÇÃO E POESIA 311

amigos a convidaram para ir à igreja, sentiu-se instigada e permaneceu.


Acabou abraçando a fé.
Mais tarde, porém, seu pastor deixou a igreja e, quando veio o novo
pastor, ela se viu em dificuldades. O novo pastor como que fazia alarde
demais, falava demais, agitava demais. “Recebi uma carta de não muito
tempo atrás dizendo ‘Larguei mão de ir à igreja’. Você vê, quando a igreja
não funciona mais a partir de um centro, simplesmente...”, então ele se
afasta com a cadeira com tristeza. “Acho que eu sinto que é muito difícil ir
à igreja. Acho que é importante ir à igreja — não pensaria em não ir —,
mas você precisa ser maduro. Não é para iniciantes.”
Quando questiono se a igreja foi sempre assim, ele sacode a cabeça como
um médico preocupado. “Não, creio que estamos num momento sem-par
nessa cultura norte-americana. Estamos num mau momento, e a igreja não
é saudável, não é madura. Não é fácil, não é fácil.”
Como professor de teologia espiritual da Regent College, Eugene vive
exatamente no meio do cristianismo tradicional norte-americano. Mas há
algo diferente aqui. Está relacionado com aquele “centro místico” que ele
mencionou. Uma explanação do termo “teologia espiritual” revela exata-
mente o que vem a ser esse centro.
“A teologia espiritual tradicionalmente tem sido oração, formação espi-
ritual, desenvolvimento do caráter cristão, leitura da Bíblia com propósi-
tos formativos, não apenas intelectuais. E assim esse é o centro da Regent.
Este é um lugar de oração no qual você estuda teologia, ética e história.
Em todos os meus cursos, as pessoas escrevem dissertações reflexivas e
integradas sobre as circunstâncias nas quais elas lidam com sua espiritua-
lidade, as formas em que aprendem a orar.
“Eu levo meio semestre para ter os meus alunos me acompanhando.
Eles querem tomar notas, querem encontrar materiais que possam usar. E
eu meio que fico driblando-os o tempo todo, vindo até eles de todas as di-
reções, tentando fazer que levem a vida deles a sério, como um texto estu-
dado pelo Espírito Santo.”
O que Eugene está fazendo por seus alunos na Regent, ele o faz vez após
vez pelas pessoas que “pastoreia” e ensina por meio dos muitos livros que
escreveu. A oração é um tema comum. A oração é o centro.
312 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

DO PÚLPITO AO PAPEL
Foi para essa “vasta congregação” que ele decidiu aposentar-se da pequena
igreja em Maryland em 1991 e dedicar todas as energias para escrever.
Embora a partida tenha sido difícil, a transição não foi. Como ele afirma
em Reality and the Vision [A realidade e a visão], “Ser escritor e ser pastor
são basicamente a mesma coisa para mim; um ingresso no caos, na desor-
dem das coisas e depois o trabalho lento, misterioso, de criar alguma coisa
disso, algo bom, algo abençoado — poema, oração, conversa, sermão, vis-
lumbre da graça, reconhecimento do amor, formação de uma virtude”.
Depois de um mês de ter tomado a decisão, a NavPress chamou Eugene
perguntando se traduziria o Novo Testamento inteiro da mesma maneira
que havia traduzido Gálatas em seu livro Traveling Light. Ele concordou, e
essa foi sua primeira atribuição como escritor de tempo integral.
Uma primeira atribuição bastante significativa, eu diria. Uma que deve
ter sido acompanhada de certa dose de temor e tremor.
“Muitas vezes, ao fazê-lo”, ele diz, “eu tinha o sentimento ‘Ah, sempre
fiz isso — mas agora é tempo de colheita. Isso é o fruto de tudo o que venho
fazendo já’. Então foi uma experiência maravilhosa nesse sentido. Mas foi
muito enfadonho para mim. Toda o tempo em que estava [traduzindo],
sentia como se estivesse fazendo algo de segunda categoria. Eu nunca era
tão bom quanto João, Marcos, Paulo. Às vezes, como escritor, você escre-
ve uma frase e pensa ‘Ah, ninguém fez isso tão bem antes, e você conse-
guiu’. Eu nunca ‘cheguei lá’ — e, quando terminei, disse a minha esposa:
‘Ainda bem que acabou — estou tão cansado de ficar em segundo plano’.”
Como ele disse à Publishers Weekly, “Eu olho e fico satisfeito, mas o
trabalho não foi realmente meu. Senti como se fosse um servo o do texto
por dois anos, e fui compelido a obedecer. Agora estou livre para seguir
minha própria criatividade novamente”.
Sem querer, essa é a melhor defesa de Eugene contra aqueles críticos que di-
zem que a The Message é uma interpretação pessoal, e não uma tradução fiel.

UMA VOZ QUE FALA


Ele parece não se deixar afetar pela crítica. “Creio que a origem da contro-
vérsia seja uma preocupação genuína de que esta é a Palavra de Deus, a
DE PAIXÃO, ORAÇÃO E POESIA 313

autoridade da Escritura. Então, toda vez que alguém faz algo assim, mere-
ce ser criticado porque a vida das pessoas está em risco — sua maneira de
acreditar, sua maneira de pensar, sua maneira de viver. Toda vez que alguém
faz isso [tradução da Bíblia], é trabalho perigoso, é trabalho arriscado.
“A outra parte disso, entretanto, é que muitas pessoas não compreen-
dem como a tradução funciona e que todas as traduções são interpretativas.
Toda vez que você transita de uma língua para outra, você interpreta, por-
que não falamos em palavras; falamos em frases e parágrafos. Quando você
enquadra um diálogo, não vê nenhuma separação entre as palavras — é tudo
um discurso contínuo.
“Então, se você pensa em tradução como algo por meio do qual cienti-
ficamente, gramaticalmente, toma uma palavra desta língua e a põe naquela
língua, então, se eu uso três palavras para traduzir uma palavra grega, você
vai dizer que estou interpretando e acrescentando coisas. Mas não estou
— está tudo lá, mas você precisa de três palavras em nossa língua. Fico
maravilhado de como fiz isso, que Deus Espírito Santo tenha usado a lin-
guagem como revelação, porque a linguagem é inerentemente ambígua.”
E eu fico maravilhada, sentada nesse escritório, com a combinação sin-
gular de professor, pastor e poeta que é Eugene Peterson. É por isso que ler
a The Message é uma experiência tão original. Cada livro recebe uma in-
trodução para pôr as coisas em contexto para o leitor, seu aluno. Cada pa-
lavra é cuidadosamente escolhida para se comunicar a nós, sua
congregação, em uma linguagem clara, sem interferências.
Quanto ao lado poético, o cantor Michael Card expressou isso como
ninguém quando descreveu a The Message como “uma tradução de tom.
Leio não somente as palavras, mas ouço uma voz atrás delas que fala —
como, aliás, todos esses documentos foram experimentados originariamen-
te. A tradução de Peterson transforma o olho em ouvido, escancarando a
porta do Novo Testamento mais ainda do que jamais talvez tenha sido”.
Eugene explica: “Queria escrever isso para que as pessoas que jamais
ouviram de Deus, jamais ouviram de Jesus, captassem a mensagem pela
primeira vez. É o que o pregador faz. Então minha principal qualificação
para fazer isso não é que sei grego ou hebraico — muita gente sabe —, mas
314 ESPIRITUALIDADE SUBVERSIVA

que sou pregador e pastor, e na maior parte para esses pagãos norte-ame-
ricanos que não sabem nada sobre a fé. O pressuposto que opera para mim
em a The Message é que as pessoas que leram o texto do Novo Testamento
pela primeira vez o entenderam de primeira”.
E as pessoas o estão de fato entendendo. Pessoas de diferentes origens e
idades estão lendo o Novo Testamento pela primeira vez — ou como se fosse
a primeira vez. A NavPress viu a luz e percebeu que era mais eficaz que
qualquer folheto, vídeo ou cruzada evangelística. No início do grupo A
parábola, uma associação de livrarias independentes dos Estados Unidos,
extraíram-se trechos da The Message que foram colocados num livrete evan-
gélico despretensioso, intitulado The Message of Hope [A mensagem de es-
perança]. Seu título e capa não ameaçadores aliam-se à facilidade com que
pode ser distribuído. Não só isso, mas também saber o que está em seu
interior. Outro dia, até mesmo passei o exemplar do meu editor para a
minha babá.
É nisso que Eugene se deleita. “Eu recebo uma tonelada de cartas”, diz
com um brilho nos olhos. “Outro dia, recebi uma de uma senhora de 74
anos que se descrevia como uma mulher da Bíblia King James que fora cristã
toda a sua vida. Ela disse: ‘Comprei a The Message para meus sobrinhos e
sobrinhas, mas então comecei a lê-la eu mesma, e poderia dizer que é isso
que a King James diz! É o que ela diz!’.
“Depois foi uma menininha, perto de 12 anos de idade, que me encon-
trou numa livraria outro dia. Adoro isso”, ele sorri. “Ela disse: ‘Estamos
usando A Mensagem em nossas devoções em família’. Depois, baixando o
tom de voz: ‘Mas eu já adiantei a leitura’. Agora, prefiro mil vezes receber
um elogio desses que o de qualquer um de meus críticos!”.
O que os críticos não perceberam é que a The Message não gira em tor-
no de Eugene Peterson. Ninguém está mais ciente disso que o próprio
Eugene, que raramente dá entrevistas. Ele dosa o tempo que passamos jun-
tos recontando uma lembrança que expressa muito bem como se vê na qua-
lidade de intérprete, de mensageiro.
“Minha mulher e eu fomos ouvir uma palestra de Paul Tournier. De volta
para casa, vínhamos falando sobre como tinha sido maravilhoso, e minha
DE PAIXÃO, ORAÇÃO E POESIA 315

mulher disse uma coisa que me fez parar. Ela disse: ‘E não era o intérprete
bom?’. De repente, percebi que Tournier tinha falado em sua língua mãe, o
francês, e eu nem mesmo tinha percebido.” Quando o Novo Testamento
fala conosco em sua língua mãe — o grego terreno, o divino celeste —,
Eugene espera que não o observemos lá, bem ali ao lado, traduzindo.

ORE COM SIMPLICIDADE — MATEUS 6


“E, quando vier à presença de Deus, tampouco transforme isso numa pro-
dução teatral. Todas essas pessoas que transformam suas orações regula-
res em espetáculos, à espera do estrelato! Você acha que Deus fica sentado
num camarote?
“Quero que faça isto: encontre um lugar quieto, reservado, para não ser
tentado a representar um papel diante de Deus. Permaneça ali com toda a
simplicidade e honestidade que conseguir obter. O foco se deslocará de você
para Deus, e você começará a sentir sua graça. [...] Esse com que você está
lidando é seu Pai, e ele sabe do que você precisa melhor do que você mes-
mo. Com um Deus assim, amando-o, você pode orar com bastante simpli-
cidade. Assim:

‘Nosso Pai nos céus,


revele quem você é.
Endireite o mundo:
faça o que é melhor — tanto acima como abaixo.
Mantenha-nos vivos com três refeições principais.
Mantenha-nos perdoados com você e perdoando os outros.
Mantenha-nos protegidos de nós mesmos e do Diabo.
Você está no controle!
Você pode fazer o que quiser!
Você brilha de tanta beleza! Sim. Sim. Sim.’”
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Editora responsável: Silvia Justino


Assistente editorial: Miriam de Assis
Preparação: Marcos Granconato
Revisão: Tereza Gouveia
Supervisão de produção: Lilian Melo
Capa: Douglas Lucas
Imagem: Image 100
Diagramação: Sonia Peticov
Fonte: Revival
Gráfica: Imprensa da Fé
Papel: Chamois fine dunas 67/gm 2 (miolo)
Papel: Cartão Royal 250/gm2 (capa)

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