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“PARA CÁ NÃO SERVEM": AS IDEIAS LIBERAIS NA HISTORIOGRAFIA SOBRE

O SÉCULO XIX

Vânia do Carmo1

Resumo: O debate em torno do liberalismo perpassa toda a obra A construção da ordem. Teatro de sombras,
versão publicada da íntegra da tese de Carvalho, assim como em O tempo Saquarema, de Ilmar Rohloff de
Mattos. As questões em torno da mão de obra, representatividade e a relação com o mercado, inserem os textos
de Carvalho e Mattos no debate a respeito do liberalismo, de modo a levar os dois autores a se posicionarem
sobre o lugar das ideias liberais. Este trabalho propõe articular esse debate a partir das obras de Carvalho e de
Mattos, com o objetivo de compreender alguns aspectos da essência do Estado imperial para esses autores a luz
do liberalismo.
Palavras-chave: Liberalismo. José Murilo de Carvalho. Ilmar Horloff de Mattos.

“THERE ARE NO GOOD FOR HERE”: LIBERAL IDEAS IN HISTORIOGRAPHY ABOUT THE 19th
CENTURY

Astract: The debate about liberalism runs through the entire work The construction of order. Shadow theater,
published version of Carvalho's full thesis, as well as in O tempo Saquarema, by Ilmar Rohloff de Mattos. The
questions about labor, representativeness and the relationship with the market, insert the texts by Carvalho and
Mattos in the debate about liberalism, in order to lead the two authors to take a position on the place of liberal
ideas. This work proposes to articulate this debate based on the works of Carvalho and Mattos, with the objective
of understanding some aspects of the essence of the imperial state for these authors in the light of liberalism.
Keywords: Liberalism. José Murilo de Carvalho. Ilmar Horloff de Mattos.

A tese Elite and state-building in imperial Brazil, doutoramento de José Murilo de Carvalho,
foi apresentada no ano de 1975 na Stanford University, na ocasião o texto “As ideais fora do
lugar” de Roberto Schwarz já havia sido publicada como artigo em uma versão em francês
(1972) e em português (1973) (RICUPERO, 2013, p. 528), mas foi somente em 1977 que o
texto foi publicado como primeiro capítulo do primeiro livro de Schwarz de título Ao
vencedor as batatas, resultado de sua tese de doutorado defendida em 1976. Por isso, é
provável que a pouca atenção dispensada diretamente ao debate incitado por Schwarz deva-se
ao fato de o original da tese de Carvalho ter sido produzido, no mínimo, antes da recepção do
texto de Schwarz. Carvalho de posiciona sobre o texto citado, mas não se aprofunda no debate
de maneira direta, mas em A construção da Ordem. Teatro de sombras a particularidade dos

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Doutoranda do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF), bolsista
CAPES.
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ideais liberais na realidade brasileira oitocentista está bem presente. Em O tempo Saquarema,
também não há um aprofundamento direto no debate, mas as questões levantadas a respeito
do liberalismo no Brasil perpassam toda a obra, sobretudo no que se refere a escravidão.

Roberto Schwarz em seu texto expõe a discrepância entre o Liberalismo e a escravidão.


Discute a dissonância entre o ideário liberal, tão difundido entre a elite política brasileira
imperial, e a existência de uma sociedade escravocrata a qual essa elite era parte. Houve
integrantes dessa elite que negaram a validade de tal ideário. Mas, o fato é que as ideias
liberais eram referência para todos nessa sociedade (SCHWARZ, 1973, p. 2), essas ideias
envolviam a liberdade do trabalho, a igualdade perante a lei e o universalismo. Mas mesmo na
Europa isso encobria a realidade da exploração do trabalho, enquanto no Brasil esbarrava
numa sociedade escravista. A impropriedade do pensamento brasileiro do século XIX emerge
em um contexto em que a economia era voltada para o mercado internacional, mas era
alimentada pelo trabalho escravo, embora a Independência tenha sido inspirada por ideias
francesas, inglesas e americanas de liberdade (SCHWARZ, 1973, p. 3).

A existência da escravidão não condicionou somente um complexo de senhores e escravos,


mas também o conjunto de homens livres. Condicionou a relação entre o latifundiário e o
homem livre, já que é entre estes que a vida ideológica vai se efetivar, de maneira que o
último teria acesso à vida e à bens por meio de uma concessão do primeiro, por meio do favor
(SCHWARZ, 1973, p. 4).

[...]o favor atravessou e afetou no conjunto a existência nacional, ressalvada sempre


a relação produtiva de base, esta assegurada pela força. Esteve presente por toda
parte, combinando-se às mais variadas atividades, mais e menos afins dele, como
administração, política, indústria, comércio, vida urbana, Corte etc. Mesmo
profissões liberais, como a medicina, ou qualificações operárias, como a tipografia,
que, na acepção europeia, não deviam nada a ninguém, entre nós eram governadas
por ele. E assim como o profissional dependia do favor para o exercício de sua
profissão, o pequeno proprietário depende dele para a segurança de sua propriedade,
e o funcionário para o seu posto. O favor é a nossa mediação quase universal [...]
(SCHWARZ, 1973, p. 5)

Por meio do favor o paternalismo se naturalizou, gerando um tipo de dependência tão


incoerente com os princípios liberais, quanto a escravidão. Atingindo inclusive as estruturas
do Estado
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[...] O mesmo se passa no plano das instituições, por exemplo com burocracia e
justiça, que embora regidas pelo clientelismo, proclamavam as formas e teorias do
estado burguês moderno. [...] adotadas as ideias e razões europeias, elas podiam
servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente objetiva , para o
momento de arbítrio que é da natureza do favor. Sem prejuízo de existir, o
antagonismo se desfaz em fumaça e os incompatíveis saem de mãos dadas. [...]
(SCHWARZ, 1973, p. 6)

A incongruência maior do liberalismo era a que conduzia as vidas dos homens livres, a
relação entre os que têm e os que não têm. Um tipo de relação marcada pelo clientelismo, pelo
paternalismo, formas diretas de efetivação do favor, conformo propõe Schwarz.

De acordo com Bernardo Ricupero boa parte do debate fomentado pelo referenciado artigo de
Schwarz ocorreu pois muitos tomaram a tese do autor pelo título. O conteúdo foi considerado
a partir do título (RICUPERO, 2013, p. 528). No entanto o debate sobre o liberalismo e sua
ressonância no século XIX brasileiro era assunto recorrente nos estudos desenvolvidos na
década de 1960 na Universidade de São Paulo (USP). O trabalho de Schwarz foi influenciado
por um marxismo uspiano com “o projeto de entender a particularidade brasileira, ligada a um
quadro maior” (RICUPERO,2013, p. 525 e 526).

José Murilo de Carvalho e Ilmar Rohloff de Mattos acabam desenvolvendo suas discussões a
respeito do liberalismo prioritariamente a partir do estigma da escravidão, discutem também a
percepção dos governantes imperais a respeito do ideário liberal.

A escravidão é tomada por Carvalho como fator social condicionante para a escolha da
monarquia centralizada, pois a escolha desse modelo político evitaria iniciativas que
pudessem comprometer a existência da ordem escravista no território diante de uma
justaposição de países escravistas e não escravistas por conta de uma eventual fragmentação.
A monarquia surgia como opção para assegurar a ordem (CARVALHO, 2003, p. 18). E a
ordem que mais interessava à elite econômica era a escravista. A fragmentação em si não
provocava o medo, mas a guerra civil sim. A ameaça haitiana rondava as Américas. Mesmo
um entusiasta abolicionista como José Bonifácio entendia que a escravidão era o preço a ser
pago para se assegurar a unidade (CARVALHO, 2003, p. 19).

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Os construtores da ordem, defensores de um governo central forte, defendiam também
reformas sociais, “sobretudo ao problema da escravidão” (CARVALHO, 2003, p. 222). Após
considerar que o Partido Conservador em composto em sua maioria por burocratas e
latifundiários de regiões de agricultura para a exportação, Carvalho acentua que esse mesmo
elemento burocrático favorável à centralização, também pendiam ao favorecimento do fim da
escravidão, e contribuíram para a aprovação de medidas antiescravistas.

Ponto sensível nesse processo de construção da ordem imperial, enquanto ação da elite
política a qual se atém Carvalho, era a associação entre os princípios de civilização
defendidos por esta elite e os interesses da “agricultura de exportação de base escravista”,
pois:

[...] Gostando ou não, e muitos não gostavam, a elite política, sobretudo os


magistrados, tinha que compactuar com os proprietários a fim de chegar a um
arranjo, senão satisfatório, que pelo menos possibilitasse, uma aparência de ordem,
embora profundamente injusta. [...] (CARVALHO, 2003, p. 232)

Por mais que existissem fatores que afastassem as elites políticas dos latifundiários escravistas
– conforme Carvalho, a escravidão impedia a estamentalização dos proprietários rurais, já que
inviabilizava que estes se dedicassem integralmente às tarefas de governo; além disso o
Estado brasileiro, tal qual seu antecessor português, fazia-se fonte de poder em si mesmo, ao
empregar letrados, regular a sociedade e a economia, por grande parte de sua burocracia ser
constituída de elementos marginais à economia escravista (CARVALHO, 2003, p. 232 e 233)
– “o Estado e a elite que o dirigia não podiam [...] prescindir do apoio político e das rendas
propiciadas pela grande agricultura de exportação” (CARVALHO, 2003, p. 233)

Não obstante, dessa associação entre elite política e latifundiários escravistas emergia o que
Carvalho chama de “dialética da ambiguidade”, pois o Estado imperial, por meio da ação de
sua elite, se tornava mantenedor e transformador das estruturas sociais (p. 234). Algumas
forças reformistas surgiam defendendo a liberalização do Estado, com redução do controle
econômico ou social, mas, por vezes, essas mesmas forças exigiam do Estado a solução para
os problemas da escravidão, da imigração e da terra.
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Essa dialética da ambiguidade é que performa a perspectiva de Carvalho sobre o liberalismo
no Brasil do século XIX: uma sociedade escravista governada por instituições liberais e
representativas (CARVALHO, 2003, p. 417). Instituições partícipes de um Estado cujo
governo era sombra da escravidão (CARVALHO, 2003, p. 420).

Uma sombra não possui capacidade de ação. Sua existência é consequência de uma projeção
efetivada por algum tipo de claridade dada sobre algo ou alguém. Se o governo do Estado
constituía-se enquanto sombra da escravidão, sua capacidade de ação era condicionada pelos
interesses escravistas. A estabilidade levada a cabo pelos construtores da ordem até meados
dos Oitocentos, se deu a partir de sua associação às forças latifundiárias e escravocratas, o
resultado foi o estabelecimento de uma monarquia representativa, mas a partir do momento
em que a escravidão colapsa, esta estabilidade passa de fato a suposição, sucumbindo à
República.

Após analisar as atas do Conselho de Estado, Carvalho conclui que não teve “a impressão de
estar assistindo à representação de uma comédia ideológica, na expressão usada mais
recentemente por Roberto Schwarz para caracterizar a natureza da atividade intelectual no
século passado”( CARVALHO, 2003, p. 380).

As atas do Conselho de Estado deixam claro o esforço para inserir o Brasil no conjunto da
civilização cristã europeia. O modelo a ser seguido era claro também, a busca por soluções
aos problemas nacionais ou mesmo propostas de legislação referenciavam os países europeus.
O modelo de civilização se materializara, principalmente, na Inglaterra e na França: os ideais
ingleses e franceses de riqueza , desenvolvimento, representatividade, liberdades públicas
inspiravam. Mas o limite entre conceito e prática eram precisos. Os padrões europeus
provocavam pouca controversa quando se referiam a convivência internacional ou a valores
éticos. A aplicação prática de tais ideais é que percorria um caminho mais acidentado com
intensos debates (CARVALHO, 2003, p. 364 e 365). As discussões sobre as sansões inglesas
quanto ao tráfico de escravos evidenciam bem esse cenário, com conselheiros chegando a
afirmar que as ideias abolicionistas europeias não serviam para o Brasil. O ideal de civilização
existia, o liberalismo enquanto doutrina difundido entre os conselheiros, mas diante de
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problemas concretos predominava a flexibilização. Se a Inglaterra despertava admiração por
ser o maior exemplo de civilização e por sua riqueza, ela também despertada uma unânime
condenação por sua prepotência diante do Brasil (CARVALHO, 2003, p. 366).

Nas discussões a respeito da liberdade de comércio e aumento/redução de tarifas, a rasteira


pragmática dada ao conceito ficou ainda mais explícita. A maioria absoluta dos conselheiros
se põe a favor do liberalismo econômico, mas “a ele se opõe tendo em vista as circunstâncias
brasileiras”, pois havia “o perigo do conhecimento apenas abstrato e teórico dos princípios da
Economia Política” (CARVALHO, 2003, p. 367 e 368). A orientação protecionista
predominou nas decisões do Conselho de Estado.

Tais alegações encontradas na obra de Carvalho converge para a sua tese da “duplicidade do
liberalismo” (CARVALHO, 2003, p. 212), usado como ideário sustentáculo da Independência
e soberania nacional, como fator de justificação e enaltecimento do sistema representativo
enquanto parte do Estado brasileiro, ao mesmo passo que se torna relativo, inadequado ou
mesmo desnecessário, quando tende a propor uma redução ou liberalização desse Estado, ou
pior ainda, quando é manuseado como justifica ideológica capaz de ameaçar as estruturas
escravocratas.

A importância do liberalismo para o processo duplo analisado por Mattos, isto é a construção
do Estado imperial e a formação da classe senhorial, é evidenciado pelo autor quando este fala
do sentimento aristocrático que tendia a reduzir as diferenciações entre Luzias e Saquaremas:

Podemos dizer, por um lado, que este sentimento aristocrático – síntese da visão da
política e da sociedade prevalecente à época da Maioridade – expressava um fundo
histórico forjado pela colonização, que as forças predominantes na condição do
processo de emancipação política não objetivaram alterar: o caráter colonial e
escravista dessa sociedade.[...] (MATTOS, 2011 p. 126)

Mattos destaca o caráter utilitarista do liberalismo para classe senhorial performada em classe
dirigente. Sustentadas em nomes como Jeremias Bentham e James Mill as ideias liberais
enfatizavam os monopólios de mão de obra e da terra, os monopólios fundadores da classe
senhorial. (MATTOS, 2011, p. 128) Desta forma:

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[...] o aumento da felicidade, a restauração dos monopólios e a expansão da riqueza
constituíam-se em objetivos fundamentais para Luzias e Saquaremas, a razão
essencial que os distinguia tanto do “povo mais ou menos miúdo” quanto dos
escravos. E tais objetivos acabavam por pôr em destaque dois atributos
fundamentais nesta sociedade: liberdade e propriedade. (MATTOS,2011, p. 128)

O segundo atributo fundava o primeiro. A propriedade distingue os que tem liberdade dos que
não tem liberdade, há ainda aqueles que possuem liberdade, mas são proprietários somente de
si mesmos. Por outro lado, entendia-se que ser portador de liberdade é que condiciona o
homem, não ter liberdade significava não ser considerado pessoa. Mas ao privilegiar o
atributo da propriedade, sobressai o bem que fundamenta essa sociedade: a propriedade
escrava (MATTOS, 2011,p. 129)

Essa será a marca de distinção da classe senhorial, não somente a propriedade de escravos,
mas o monopólio da mão de obra. Por ser portadora dos atributos liberais de liberdade e
propriedade, à classe senhorial compete governar. Desta forma, tais atributos não
condicionam somente a classe senhorial, mas determinam a classe dirigente – constitui
critério para o estabelecimento de quem governa, e também atua como crivo para o
estabelecimento de pelo que, para quem e sobre quem governa, dando sustentação para as
bases do sistema representativo.

É no momento que Mattos sinaliza o quanto o sentimento aristocrático da classe senhorial se


sustentou nos ideais liberais que ele se posiciona sobre o texto do Schwarz: “Não
pretendemos discutir se as ideias do liberalismo burguês estão ou não no lugar” (MATTOS,
2011, p. 127). A afirmação evasiva se dissolve rapidamente na mais extensa nota de rodapé
do Tempo Saquarema. Mattos reafirma que não quer tomar partido de quem entende que as
ideias estão no lugar pois se sustentam nos fundamentos econômicos de uma sociedade
voltada para o lucro, nem tão pouco quer concordar com quem entende que as ideias estão
fora do lugar pois serviam para destacar a distinção. Embora considere ser Florestan
Fernandes quem contribuiu melhor para a discussão, pois este entendeu que embora não
tivesse o liberalismo atuado como dinamizador social capaz de conduzir para uma autonomia
econômica, ele contribuiu para a formação de uma ordem nacional, mesmo que dependente. A
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discordância de Mattos em relação a explanação de Florestan Fernandes em A revolução
burguesa no Brasil está no fato de o citado autor considerar que o liberalismo cumpriu papel
civilizador na realidade brasileira do século XIX. (MATTOS, 2011,p. 127).

A discordância de Mattos frente a Florestan Fernandes se expressa na terceira parte dO tempo


Saquarema, quando o primeiro constata que foram os Saquaremas, por meio de uma ação
permanente e inconclusa que atua na direção moral e ideológica do país (MATTOS, 2011,p.
205-215). Mesmo havendo uso utilitário do ideário liberal, este não permitiu a ascensão de
um contingente burguês capaz de tomar o curso dos destinos políticos e econômicos do país.

Dedicado ao estudo na formação da classe senhorial, da qual deriva a classe dirigente, Mattos
desenvolve uma reflexão que mostra o quanto essa classe senhorial alimentava expectativas
de civilização, isto é de aproximação (e até equiparação) da realidade brasileira com a
realidade europeia, mas não passava desapercebida a particularidade do Brasil, o que lhe
provocava uma diferenciação, residente na permanência da escravidão(MATTOS, 2011, p.
23). Se os olhos se voltavam para a Europa, como um sonho, um devaneio, uma aspiração, os
pés permaneciam fincados na América (MATTOS, p. 139), eles presenciavam os dilemas de
um país cujas forças políticas e econômicas que ditavam seu destino não eram capazes de
desconsiderar a escravidão.

Considerar a escravidão implica em reafirmar que nela se assenta a origem da classe


senhorial, com o monopólio da mão de obra e da terra (MATTOS, 2011,p. 39; p. 85). Um
monopólio que precisava ser assegurado, sobretudo diante da expansão do café – uma
expansão territorial sobre o Vale do Paraíba, atingindo as províncias do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e São Paulo; mas também econômica na medida que em meados do século XIX se
tornava o principal produto de exportação do país (MATTOS, 2011,p. 80) – , se o café se
expande a escravidão também se expande, se a economia do país depende do café, o país
precisa da escravidão (MATTOS, 2011, p. 176). Não se trata de uma necessidade uniforme ao
considerar-se o território nacional, mas uma necessidade que condicionou a formação da
classe dirigente e, por extensão, a formação do Estado imperial. (MATTOS, 2011, p. 230).

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Nesses termos [...] a soberania do Império não mais se constituía apenas pela
referência aos demais Estados, as “Nações Civilizadas”. Ela era construída tendo
como referência principal a própria sociedade [...]. (MATTOS, 2011, p. 161)

Para Carvalho o cenário ideológico da sociedade brasileira da segunda metade do século XIX
não se figurava como uma comédia – uma situação risível, onde as ideias estão deslocadas,
deitadas em um contexto de incongruências. Muito pelo contrário, a perspectiva pragmática
do liberalismo possibilitava seu uso conveniente, muito mais atenta à realidade nacional do
que ao vislumbre de uma equidade frente às nações civilizadas. Atentar para a realidade
nacional, no caso, significava considerar as necessidades e interesses daqueles aos quais o
Estado privilegiava.

Não muito diferente se posiciona Mattos. Mesmo olhando para a Europa, a classe dirigente
sabia onde estava seus pés. Sob um território ainda por ser totalmente esquadrinhado, em
meio a uma sociedade cuja distinção maior era a escravidão. Nem por isso os valores liberais
de defesa da liberdade e da propriedade não deixavam de ser caros à essa sociedade. Não
carregavam o mesmo sentido que seu contexto original, mas regavam o tom utilitarista de
prático que as ideias eram referenciadas pelos governantes brasileiros.

Não parece furtivo dizer que a tomada da tese pelo título do artigo delineou o posicionamento
evasivo dos autores. Da impressão de não “estar assistindo à representação de uma comédia
ideológica”, por Carvalho, à fala que não se pretende “discutir se as ideias do liberalismo
burguês estavam ou não estavam no lugar”, por Mattos, o teor do debate sobre o liberalismo
na realidade do Brasil Império se dissolve nos textos dos autores, tanto nas ocasiões em que o
ideário liberal é exposto, reivindicado e confrontado pela elite política, como nas situações em
que a existência da escravidão é justificada, ou mesmo quando o Estado e seu agentes
institucionais articulam meios para o privilegiamento, sendo ele próprio sujeito primeiro de
efetivação do favor. Mais pertinente do que estarem ou não as ideais no lugar, as reflexões
sobre a prática do liberalismo no Brasil de D. Pedro II, permitem pensar seus contornos e
limites.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, José Murilo d. A construção da ordem. Teatro de sombras. 3ª edição. Rio de


Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
MATTOS, Ilmar R. O tempo Saquarema. 6º edição. São Paulo: Editora Hucitec, 2011.
RICUPERO, Bernardo. O lugar das ideias: Roberto Schwarz e seus críticos. Sociol.
Antropol. [online]. 2013, vol.3, n.6, pp.525-556. Consulta ao site:
https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2238-
38752013000600525&script=sci_abstract&tlng=pt, dia 09 de julho de 2020, as 13h.
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Estudos CEBRAP, nº 3, São Paulo, 1973.

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