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REVISTA - ano 1 - nº 0 - MG

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SONORIDADES / Maria Fernanda Melgaço

PLURIVERSO MUSICAL
a música e o contato com as diferenças
Q uando vamos assistir a uma que se constrói nas interações de-
orquestra ou banda de música, las é um pluriverso. Somos plurais
múltiplas são as combinações que e, portanto, toda unidade é criada.
tornam a apresentação musical O pluriverso é como um campo de
possível. Dentro de um só grupo, forças em que cada partícula e suas
existe uma quantidade enorme características atua sobre e é afe-
de instrumentos, timbres, sonori- tada por outras partículas. Dessa
dades. Em cada apresentação, há forma, para o autor, trabalhar com
uma variedade de ritmos e gêne- o universalismo iluminista pressu-
ros musicais. Mesmo entre instru- põe adotar um padrão de huma-
mentos iguais, a interpretação de nidade que, diga-se de passagem,
cada músico transparece no som. não existe. Isso, por sua vez, reduz
Para além do que é próprio da ins- todas as experiências de vida a um
trumentação, podemos pensar na bloco de seres humanos que se
pluralidade de corpo/corporalida- pretende homogêneo, como se to-
des e vivências que dividem um dos não estivessem marcados por
mesmo palco. Os grupos costu- atravessamentos.
mam ser heterogêneos em idade, Visualmente, assim como
classe social, identificação étnico- trabalham Marsha Forest e Evelyn
-racial, identificação de gênero, en- Lusthaus sobre a educação inclu-
tre outros. Nesse sentido, a refle- siva, um grupo musical pode ser
xão que buscarei desenvolver em comparado a um caleidoscópio. O
breves linhas daqui em diante se caleidoscópio é um brinquedo in-
refere a como o pluriverso musical fantil, uma espécie de luneta, que
é inclusivo e, por natureza, forma- tem, em uma das extremidades,
do pela diferença. peças que se movimentam forman-
Antes de mais nada, en- do diferentes imagens, as quais
tão, é necessário apresentar como podem ser vistas ao posicionar um
o pluriverso está sendo aqui pen- dos olhos na extremidade oposta.
sado, apesar de a palavra não ser Em um caleidoscópio, cada peça
de difícil compreensão. Segundo retirada torna as imagens menos
o antropólogo francês Bruno La- complexas e reduz o número de
tour, o pluriverso é aquilo que se arranjos/combinações possíveis.
forma a partir dos contatos entre Da mesma forma, a multiplicida-
diferentes. Embora a universali- de de instrumentos, sons, ritmos e
dade tenha se tornado um ideal corpos em um grupo musical per-
para quem vive o pós-Iluminismo, mite que esse grupo se (re)arranje
Escritora e graduanda de História na Latour trabalha com a ideia de que de diferentes maneiras. É o que dá
Universidade Federal de Minas Gerais sendo a diferença uma realidade, o cor, forma e dinamicidade ao gru-

30 Cultura e Gastronomia - Pará de Minas - nº 0 - Nov. 2021


po, surpreendendo ao expectador. a música à audição, o que é uma
Daqui em diante, quero compreensão bastante limitadora
comentar um pouco sobre uma de o que a música pode ser. Em
certa pecinha desse caleidoscópio 2018, tive a oportunidade de assis-
que diz da minha vivência enquan- tir à Evelyn Glennie, uma percus-
to membro da Banda de Música sionista surda mundialmente re-
Lira Santa Cecília (BMLSC) e de conhecida por suas performances.
outras pessoas em outros grupos A Evelyn sabe sentir a música por
musicais. Mais especificamente, a outros caminhos que não a audi-
ideia é apresentar como a defici- ção. Ela diz que o seu corpo é como
ência pode e deve estar presente um grande ouvido, o qual permite
nos palcos, tornando grupos mais que ela faça música sentindo as vi-
complexos e nos fazendo sentir brações em diferentes partes (pés,
dimensões da experiência musical pernas, braços…). Para isso, ela se
que costumamos ignorar. apresenta descalça e veste roupas
Sou musicista antes de ter leves, a fim de que consiga tocar o
me tornado uma pessoa com defi- som. Touch the Sound que, inclusi-
ciência (PcD). Faço aulas de piano ve, é o nome de um documentário
desde os meus cinco anos, ou seja, sobre a percussionista (deixo aqui
desde os longínquos anos de 2005. como recomendação)!
Em 2007, tive minha primeira per- Como o propósito é que
da visual em decorrência de uma seja um texto breve, então, vou
doença degenerativa genética. A parando por aqui, mas, ainda com
perda da visão, por sua vez, não muita coisa a dizer! Antes de en-
me impediu de continuar meus cerrar, só queria enfatizar que tan-
estudos de piano, porém, foi ne- to fazer quanto ouvir música são
cessário inventar outras formas de experiências sensoriais que nunca
fazer música. Desde então, passei se reduzirão a apenas um sentido e
a decorar todas as partituras que devemos explorar isso. Além disso,
toco, o que, embora seja desa- lembro a todos que cada peça de
fiador a quem se apega ao papel, um caleidoscópio/grupo musical
permite que eu desenvolva meu deixa tudo mais colorido, mais di-
“ouvido”, como dizem os músicos, nâmico, mais bonito, mais inclusi-
e minha memória. Na BMLSC, em vo. E é assim que o pluriverso mu-
que ingressei em 2011, a experi- sical deve ser composto: a partir de Maria Fernanda como solista de flauta em
ência é similar. Desprender-me da diferenças que se (re)arranjem. uma de suas apresentações
partitura me permite ouvir o grupo
com maior atenção, além de que
as adversidades do ambiente (lu-
minosidade fraca ou oscilante) e
movimentações no geral não atra-
palhem em nada minha interpreta-
ção. Não são só flores. Muitas ve-
zes, tenho dúvidas sobre a divisão
rítmica e me vicio em interpreta-
ções que divergem da partitura e,
portanto, do grupo. Ainda assim,
tenho certeza de que o grupo e eu
nos arranjamos de formas lindas.
Contudo, existem outras
PcD que conseguem viver e fazer
música, mas que são vistas como
“incapazes”. O estereótipo de que
pessoas surdas não ouvem músi-
ca é um exemplo disso. Enquanto
ouvintes, acabamos por reduzir

Cultura e Gastronomia - Pará de Minas - nº 0 - Nov. 2021 31

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