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PESQUISA
conhecida como ECO-92 ou Rio-92), quando o siste- que passam várias horas por dia em busca de água?
ma começa a ser confrontado sobre o que seria um Ou ainda: das 1,8 milhão de mortes infantis anuais cau-
desenvolvimento sustentável. sadas por água imprópria para o consumo e por sane-
É consenso entre os autores que analisam a ques- amento básico inadequado. O Relatório do Desenvol-
tão social como questão resultante da contradição vimento Humano da ONU afirma que “nenhum ato
capital/trabalho que ela, hoje, exige que se detecte, de terrorismo gera uma devastação econômica à es-
também, as contradições que se manifestam desde o cala da crise da água e do saneamento” (ONU, 2006, p.
final do século passado, a partir da reestruturação da 3)4. Trata-se, porém, de uma questão ainda com pou-
produção, afirmada na versão da “mundialização fi- ca expressão na agenda da política internacional. Isso
nanceira” que flexibiliza e precariza as relações de tudo nos faz lembrar que estamos ante um problema
trabalho (SCHONS, 2007, p. 9). No que se refere à com origem em nossas escolhas políticas e não na
questão ambiental, o saque dos recursos naturais tam- carência ou na indisponibilidade da água.
bém se globalizou, instalando assim um “imperialis- Efetivamente, as contradições presentes numa
mo ecológico”, na denominação de alguns, que “de- sociedade que mercantilizou o homem, a terra, e a
nuncia a desigualdade estrutural entre as nações do água (POLANYI, 1980, apud SCHONS, 2008), na qual
centro e as da periferia do sistema” (SILVA, 2010, p. predomina a racionalidade econômica expressa na
92). No contexto da exploração dos recursos, Porto- idéia da dominação da natureza, revelam-nos a
Gonçalves (2004, p. 129-137) considera que esta ques- insustentabilidade desse modelo. Haveremos de en-
tão poderia ser traduzida nas palavras “para uns os frentar esses conflitos não só pela escassez da água
proveitos e para outros os rejeitos” 2. Só que os pro- e suas consequências para a vida, senão muito mais
veitos são para poucos, enquanto os rejeitos atingem porque estamos ante um conflito inerente a um siste-
bilhões. ma que se apropriou de forma desigual das terras,
Desnudar contradições é sempre um caminho das águas, e da maioria dos bens do planeta.
penoso. É o que sente quem pretende tratar da ques- A importância da água pode ser deduzida da
tão social. Mas é possível fazê-lo, entendendo que a afirmação de que ela “se infiltra em tudo – no ar,
questão social situa-se na contradição do próprio ca- na terra, na agricultura, na indústria, na nossa casa,
pital. Ou, melhor ainda, entendendo-a como uma for- em nosso corpo – e revela nossas contradições
ma privilegiada de expor a contradição que socializa socioambientais melhor que qualquer outro tema”
a produção da riqueza e individualiza sua apropria- (PORTO-GONÇALVES, 2004, p.161). Não é sem razão
ção, acumulação e consumo. que lideranças da Região Nordeste afirmam que, ao
A questão ambiental atualmente se manifesta de lado e antes ainda da “reforma agrária”, é preciso
forma mais contundente no aquecimento global, cau- a “reforma da água” para que seu acesso seja pro-
sado pelo aumento de gases piciado a todos. De fato, do
de efeito estufa na atmosfe- acesso à água depende a qua-
ra desde a revolução indus- A questão ambiental é uma lidade de vida, a fartura na
trial. Entre as várias con- alimentação e todo o bem-
sequências desenha-se um questão de poucas vozes, que estar coletivo.
novo ciclo da água.3 Acom- Por isso, ao abordarmos a
panhar o aquecimento global
ainda precisam ser questão ambiental e a condi-
sob o prisma do acesso à amplificadas, estimuladas para ção da pobreza hoje – que
água leva-nos à constatação impactam diferentemente so-
de um aprofundamento da se organizarem e produzirem a bre ricos e pobres –, é indis-
exclusão para significativas pensável não perdermos de
parcelas da humanidade, so- pressão da resistência que seja vista o problema da água,
bretudo as mais empobre- cuja escassez e falta serão
cidas. Isto porque, segundo a capaz de inscrevê-la na agenda um dos maiores desafios da
ONU (2006), já temos, no humanidade futura, decorren-
momento atual, cerca de 1,1 política mundial. tes do fenômeno do aqueci-
bilhão de pessoas dos países mento global, resultante da
em desenvolvimento sem nossa forma de vida.
acesso ou com acesso precário à água e 2,6 bilhões A alteração climática é distinta de outros proble-
que não dispõem de saneamento básico. O que dizer mas que assolam a humanidade, desafiando-nos a
das cerca de 1,4 bilhão de pessoas que vivem em ba- pensar em diferentes âmbitos, diz o Relatório de
cias fluviais, nas quais a utilização da água ultrapassa Desenvolvimento Humano. Sobretudo, continua o
as taxas de recarga; dos 443 milhões de dias escola- mesmo relatório, desafia-nos “a refletir o que signifi-
res perdidos ao ano pelas crianças devido a doenças ca fazer parte de uma comunidade humana ecologi-
relacionadas com à água e de milhões de mulheres camente interdependente”. E ainda, “as alterações
climáticas recordam-nos vivamente aquilo que todos Santa Catarina em março de 2004, todos nós já sen-
nós temos em comum: chama-se planeta Terra. To- timos e aprendemos algo sobre do que se trata. Quem
das as nações e todos os povos partilham a mesma não foi afetado por dias de inverno extremamente
atmosfera. E temos apenas uma” (ONU, 2007/2008, p. frios seguidos de dias de extremo calor, ameaças de
2). Isto nos dá a verdadeira dimensão de responsabi- furacões, enchentes e alagamentos nunca antes ex-
lidade que temos no presente momento histórico, es- perimentados, seguidos de secas prolongadas, densi-
pecialmente em relação às gerações futuras. Não dade atmosférica abaixo de índices toleráveis, ocasi-
bastasse isso, o relatório lembra ainda que a Decla- onando incêndios em várias regiões?
ração Universal dos Direitos do Homem reportava- Sem medo de errar, ousamos dizer que esses fe-
se à Segunda Guerra Mundial como a uma tragédia nômenos fazem parte do “efeito estufa”, do “aqueci-
humana já acontecida, enquanto que mento global”, da “mudança climática” já em curso.
O efeito estufa origina-se da concentração de gases
A questão das alterações climáticas é diferente. Elas de monóxido de carbono, metano, argônio e outros
são uma tragédia humana em curso. Permitir que que retêm o calor solar próximo à superfície da terra,
essa tragédia evolua seria um fracasso político que mantendo-a numa temperatura média de 14 graus
iria ‘ultrajar a consciência da humanidade’. Repre- celsius (14º.C), tornando possível a vida (ANGELO,
sentaria uma violação sistemática dos direitos hu- 2008; FLANNERY, 2007).
manos dos pobres e das gerações futuras e seria É, portanto, uma combinação de gases indispen-
um passo atrás nos valores universais (ONU, 2007/ sáveis para a manutenção de vida. Caso essa con-
2008, p. 4).5. centração fosse mais densa, teríamos um planeta
quente como Vênus, com mais ou menos 500o.C de
Somos assim colocados diante das escolhas: ou calor; caso fosse menor, ou se inexistisse, nosso pla-
continuarmos a ignorar o processo de “saques e neta seria completamente gelado. Em ambos os ca-
predação”, ou coletivamente criarmos resistências sos, a vida seria impossível.
para fortalecer as vozes que denunciam a forma de Mas o que acontece, então? Qual o problema?
ser do sistema e buscam desenvolver os valores da Houve um desequilíbrio. Situando-nos no início da
troca e da solidariedade entre os povos, principal- Revolução Industrial, por volta de 1800, Flannery
mente em vista das gerações futuras. (2007, p. 51) nos informa que existiam cerca de 280
partes de gases de efeito estufa por milhão de partí-
culas de ar (280ppm), mas desde então essa concen-
2 O Aquecimento global e as vozes da tração vem aumentando constantemente, atingindo,
denúncia hoje, em torno de 380 partes por milhão (380ppm).
Há mesmo quem afirme que já estaríamos muito aci-
Até aqui, reiteradamente, foram empregadas as ma disso. E ainda o mesmo autor, citando cientistas
expressões “efeito estufa”, “aquecimento global” e australianos, informa-nos que em “2002 e 2003 os
“mudança climática”. Mas uma pergunta não quer níveis de CO2 subiram em 2,54 partes por milhão por
calar: o que é mesmo tudo isso? São questões idênti- ano em comparação com o aumento médio de 1,8
cas? Quais as causas? A quais consequências con- partes por milhão por ano durante a década anteri-
duzirão? or.” De tal forma que a Revista Carta Capital (2012,
Apesar da exiguidade deste espaço para respondê- p. 43), citando The Economist, afirma que em 2020
las de forma aprofundada, iremos trazer algum es- “as emissões de carbono desde o início do século 21
clarecimento. terão ultrapassado as de todo o século 20.” Caso esta
Segundo Fagan, (2007, p.12) sempre que “pronun- concentração de gases chegar a 500 partes por mi-
ciamos as palavras ‘aquecimento global’ estaremos lhão (500ppm), já nada mais poderá ser feito para
a provocar uma controvérsia imediata sobre se nós, evitar um colapso com tragédias inimagináveis
os seres humanos, contribuímos para a elevação das (LOVELOCK, 2006; LYNAS, 2009). Pior: estamos em vias
temperaturas na Terra”. E acrescenta outras ques- de chegar somente até o final deste século, se conti-
tões, tais como: trata-se de ação antrópica ou é nuarmos com nosso modelo de desenvolvimento pre-
consequência do processo natural do planeta, já que datório em curso. Portanto, o efeito estufa é a causa,
não é a primeira vez que acontece? Poderíamos, ain- o aquecimento global é a consequência imediata e a
da, perguntar por que tantos se posicionam contra mudança climática, com todas as suas tragédias será
essas teses? Por que tão poucos se preocupam com o nosso futuro inevitável, caso não consigamos deter
isso? Por que a mídia só há bem pouco tempo vem este processo em tempo6.
se dedicando ao tema? Mas aí surge a pergunta: será que nada pode ser
Para iniciar respostas a todas estas questões, po- feito para evitar este desenlace? Para responder a esta
demos afirmar que nos últimos anos, principalmente questão, não se pode desconsiderar o que já está sen-
desde o furacão Catarina atingir o sul do estado de do feito e as vozes da denúncia cada vez mais insis-
tentes e consistentes. Os movimentos em favor de um talando-se a miséria, a fome, eclodindo agora, como
meio ambiente mais respeitado e protegido já fazem nunca, a depredação sem limites da natureza, funda-
eco e se internacionalizam. Desde 1972, em Estocol- mento da questão ambiental.
mo, na Suécia, até 2009, em Copenhague, na Dina- Para nos aproximarmos da questão ambiental, é
marca, passando pela Eco-92, no Rio de Janeiro, Jo- necessário esclarecer que os países ricos, com ape-
hanesburgo, na África, em 2002 e pelo Protocolo de nas 15% da população mundial, são responsáveis por
Kioto, no Japão, em 1997 e já em intensa preparação quase metade das emissões de CO2. Com efeito, a
para a Rio+20, neste ano, a humanidade vem desper- “pegada de carbono”9 per capita dos Estados Uni-
tando e tomando consciência do problema7. dos é cinco vezes maior que a da China e 15 vezes
Muitos cientistas estão empenhados há tempos, maior que a da Índia. Ou ainda, enquanto na Etiópia,
principalmente desde a instalação do Intergo- a média per capita da pegada ecológica é 0,1 tone-
vernmental Panel on Climate Change (IPCC)8, tanto lada de CO2, no Canadá é de 20 toneladas (ONU,
no estudo do fenômeno, quanto na produção de solu- 2007/2008).
ções possíveis. Além disso, os meios de comunica- A média de hectares de terra por pegada ecológi-
ção estão, finalmente, acordando para o problema e ca mundial situa-se em torno de 2,85 hectares per
alertando a população sobre ações indispensáveis capita, segundo informações de Porto-Gonçalves
para minorá-lo ou postergá-lo para um momento fu- (2004), que nos fornece alguns dados ilustrativos de
turo no qual a humanidade tenha condições de várias regiões. Na África, a pegada ecológica é de
enfrentá-lo. 1,5 hectares; na Ásia e no Pacífico não alcança 1,8
Estamos diante de um quadro descrito por hectares; na América Latina, no Caribe, Oriente
Diamond (2010, p. 581-595) em sua obra Colapso, Médio e na Ásia Central está em torno da média
na qual analisa situações a partir das quais as antigas mundial; na Europa Central e na Oriental, aproxima-
civilizações “escolheram o fracasso ou o sucesso”. se de 5 hectares; na Europa Ocidental chega a 6
Parece-me, diz o autor, “que os problemas ambientais hectares, ou seja, é 110% maior que a média mundi-
mais sérios enfrentados por sociedades do passado e al. Enquanto nos Estados Unidos “corresponde a 12
do presente recaem em uma dúzia de grupos”. Oito hectares per capita, isto é, 425% a média mundial”,
desses já eram significativos no passado, ao passo significando que “um americano médio equivale, em
que quatro [...] “energia, limite fotossintético, produ- termos de impacto sobre o planeta, em torno de dez
tos químicos tóxicos e mudanças atmosféricas, se africanos ou asiáticos”. É importante destacar que
tornaram sérios apenas recentemente.” Afirma se- “para o período de 1970 e 1996, a pegada ecológica
rem “como bombas de tempo com detonador de mundial aumentou de 11 bilhões para 16 bilhões de
menos de 50 anos”. Portanto, nosso padrão de vida, hectares, um aumento de 45%”. Porém, a média
viciado em consumir, conduz-nos à insustentabilidade manteve-se em torno de 2,85 hectares per capita,
da atual civilização. acompanhando, portanto, o crescimento demográfico
Há, porém, mais um problema muito sério: por do planeta no período. Mesmo tendo aumentado muito
que há tantas pessoas, grandes latifundiários, donos mais as populações na África, na Ásia, na América
de indústrias, cientistas e até estudiosos, a se oporem Latina e no Caribe durante esse período, “tendo man-
ferozmente a estas teses? Por que se avançou até o tido a média per capita, fica claro que o crescimen-
século 21 com tão poucas resistências para que algo to demográfico dessas populações não é o fator res-
se modifique em relação ao aquecimento global? ponsável pela manutenção dessa pegada ecológica
que tanto vem agravando os problemas ambientais
globais, com seus níveis de gravidade diferenciados
3 Os empobrecidos, vítimas preferenciais do regional e localmente”. Isto denuncia que “há um forte
aquecimento global componente de injustiça ambiental subjacente ao atual
padrão do poder mundial” (PORTO-GONÇALVES, 2004,
Nos 4,7 bilhões de anos de existência do planeta p. 84-85), com um forte poder de destruição.
Terra, este produziu um montante incalculável de bens Sachs (2005, p. 54) nos traz outros dados
de toda espécie. Em meio a todos estes bens, emer- ilustrativos, especialmente para o período que ele
giu a vida em suas múltiplas formas para, finalmente, chama de “crescimento econômico moderno”, quan-
surgir a vida humana, já há alguns milhões de anos. do não só a população global aumentou mais de seis
Diferentes sociedades, para sua multiplicação e ex- vezes em menos de dois séculos, mas no qual a ren-
pansão, utilizaram os recursos do planeta. No decur- da per capita média no mundo cresceu com mais
so histórico, a humanidade distinguiu-se pela explo- rapidez ainda, “cerca de nove vezes, apenas entre
ração de povos sobre povos, de nações sobre na- 1920 e 2000”. Mas isto não se deu de forma igual,
ções, e indivíduos sobre indivíduos. E é desta realida- pois, segundo o mesmo autor, “nos países ricos de
de que emerge a apropriação sem limites da nature- hoje, o crescimento econômico foi mais espantoso. A
za, a exploração do homem sobre outro homem, ins- renda per capita dos Estados Unidos aumentou quase
25 vezes durante esse período e a da Europa Oci- O mundo tem água mais do que suficiente para fins
dental, 15 vezes”. A produção total de alimentos acom- domésticos, para a agricultura e para a indústria. O
panhou a explosão da população mundial, graças aos problema é que algumas pessoas – nomeadamente
avanços tecnológicos, embora, nas palavras do autor as pessoas carenciadas – são sistematicamente
“até hoje exista um grande número de pessoas croni- excluídas do acesso pela sua pobreza, pelos seus
camente famintas”10. Mais do que isto, reduzidos direitos legais ou por políticas públicas
que limitam o acesso às infraestruturas que forne-
O hiato entre países ricos e pobres é um fenômeno cem água para a vida e para a subsistência. Resu-
novo, um abismo que se escancarou durante o pe- mindo, a escassez é produto de processos políti-
ríodo do crescimento econômico moderno. Em 1820, cos e de instituições desfavoráveis às pessoas
a maior distância entre o rico e o pobre – especifi- carenciadas. No que diz respeito à água potável, o
camente entre o Reino Unido, a principal economia que acontece em muitos países é que as pessoas
da época, e a África, a região mais pobre do mundo carenciadas recebem menos, pagam mais e supor-
– estava numa proporção de quatro para um na tam o fardo dos custos do desenvolvimento huma-
renda per capita. [...]. Em 1998, a distância entre a no associado à escassez (ONU, 2006, p. 2-3).
economia mais rica, a dos Estados Unidos, e a re-
gião mais pobre, ainda a África, aumentara para Como são eventos já em curso, as ações de adap-
vinte para um (SACHS, 2005, p. 55). tação já são imperativas. E nestes casos, novamen-
te, as desigualdades mais se manifestam, dadas às
Trata-se, portanto, de um sistema que apresenta restrições financeiras que os países pobres e os em
um fosso cada vez maior entre ricos e pobres, que se desenvolvimento têm para fazer frente aos investi-
afirma num consumo desmesurado de alguns, enquan- mentos preventivos exigidos.
to exclui a maioria, seja no uso da energia, da alimen- O bispo Desmond Tutu, a partir da realidade afri-
tação ou da água, pouco importando se os primeiros cana, alertava que “estamos a rumar para um mundo
já gastaram sua quota da “pegada de carbono” ou de apartheid em termos de capacidade de adapta-
sua quota na “pegada da água”11, pois podem exportá- ção”, completando:
la e/ou comprá-la de outros lugares. Alguns dados
são impactantes: um residente na Espanha necessita A adaptação está a tornar-se um eufemismo da in-
de um milhão de litros de água ao ano, enquanto um justiça social a nível global. Enquanto os cidadãos
norte-americano necessita de 2,5 milhões e um chi- do mundo rico estão protegidos contra o mal, os
nês de 700 mil litros. Para se obter estes números, pobres, os frágeis e os famintos estão expostos,
segundo Garrido (2008), é preciso calcular a água cada dia, à dura realidade das alterações climáticas.
que se gasta em produzir todos os bens da economia. Para ser franco, os pobres deste mundo estão a ser
Na alimentação, por exemplo, para produzir um litro prejudicados devido a um problema pelo qual não
de azeite de oliva são necessários 350 litros de água. foram responsáveis (ONU, 2007/2008, p. 168).
Assim, a dieta de uma pessoa tem enorme importân-
cia na magnitude de sua pegada hidrológica. São questões que expõem um mundo desigual,
Na esteira do comércio de carbono já está em sustentado em um sistema que se apropria dos bens
curso o comércio da “água virtual” (GARRIDO, 2008), produzidos coletivamente pelo trabalho humano,
na medida em que os países mais desenvolvidos, não convertendo tanto o trabalho humano quanto a natu-
querendo baixar seu nível de vida, estão transferindo reza em mercadorias que geram lucro, apropriado de
para os países pobres a produção que utiliza muita forma privada por uma expressiva minoria. Assim
água. como a “acumulação de capitais supõe a produção e
Fala-se, ainda, em crise da água como sendo um reprodução contínuas da ‘questão social’, também o
problema de gestão: é em relação à ‘questão ambiental’, cuja expressão
mais emblemática é a incessante produção de
[...] alterações climáticas e com as crescentes pres- descartáveis” (SILVA, 2010, p. 76), seja de materiais
sões sobre os recursos mundiais de água doce, o pela “obsolescência programada”, seja de humanos
desafio da gestão da água no século 21 pode vir a pela produção e reprodução da pobreza.
revelar-se um dos mais intimidativos problemas No entanto, é com esta compreensão que órgãos
com que a história humana já se deparou (ONU, internacionais – inclusive a própria ONU – reconhe-
2006, p. 21). cem no Desenvolvimento Humano a base mais se-
gura para a adaptação às alterações climáticas. As-
Entendemos que a escassez não se prende à falta sim, em 2000, ao analisar os maiores problemas mun-
do fornecimento físico da água, mas se encontra no diais estabeleceram oito objetivos para o milênio, dos
coração da crise do sistema, no modo de apropria- quais exporemos os dois principais em relação a este
ção e do uso: contexto. O primeiro objetivo se propõe a erradicar a
extrema pobreza e a fome: até 2015 cortar pela me- Conferências e convenções sobre os temas liga-
tade a pobreza extrema e até 2025 acabar com a dos à mudança climática, à água, à biodiversidade,
miséria mundial. O sétimo, “garantir a sustentabilidade às florestas, distintos fóruns de âmbito internacional,
ambiental”, refere-se ao aumento de áreas protegi- regional, encontros locais, estão se desenvolvendo ou
das, tanto na terra quanto no mar12. E propõe, de sendo programados e poderão influenciar as concep-
forma especial, reduzir em 50% o número de pesso- ções de diferentes órgãos, mesmo os centrais da
as sem acesso à água potável, e conduzir questões ONU, na perspectiva da redução da pobreza e de
relativas ao saneamento. “Elevados índices de po- um planeta mais habitável.
breza e baixos níveis de desenvolvimento humano li-
mitam a capacidade dos agregados familiares pobres
de gerirem riscos climáticos”, afirma o Relatório do Conclusão
Desenvolvimento Humano (ONU, 2007/2008, p. 8).
É a partir dessa compreensão que se enfrenta o Está em curso uma questão social que produz po-
debate, sendo uma das questões a transferência de breza e exclui imensas populações dos bens produzi-
renda dos países ricos para os mais pobres, para que dos. Ao seu lado surge uma questão ambiental, que atu-
estes alcancem um mínimo. Quanto a isso, Sachs almente mais se manifesta no aquecimento global – pro-
(2005, p. 331) afirma: “[...] a questão não é se o mundo duzido pela ação antrópica – que impacta o planeta e
rico tem condições de ajudar os pobres, mas se pode toda a vida que nele existe. Entendemos que tanto a
dar-se ao luxo de não ajudá-los”. É importante que questão social quanto a questão ambiental resultam do
se registre que “essa ajuda” consistiria em nada além modo de produzir e se apropriar dos bens produzidos –
de administrar as “consequências” deixadas pela tanto pelo trabalho quanto pela natureza – pelo sistema
pobreza e pela depredação ambiental, a partir de sa- que se afirmou a partir da racionalidade econômica.
ídas tecnológicas, distantes dos determinantes eco- É um sistema que, ao mesmo tempo, produz e re-
nômicos, políticos e sociais que as produzem. produz a questão ambiental como a questão social. Con-
Para o capital, tanto a questão social quanto a forme Silva (2010, p. 144) “se empenha em atenuar
questão ambiental somente se constituem em “uma suas manifestações, administrando as contradições atra-
problemática” na medida em que impedem ou criam vés do impulsionamento de programas compensatórios,
“obstáculos às formas que historicamente utilizou para lastreados pelo discurso do solidarismo, do respeito aos
apropriar-se da natureza, isto é, a propriedade dos direitos humanos e da defesa do meio ambiente.”
bens sociais e naturais e sua transformação em mer- Para enfrentar esta contradição, além de
cadorias” (SILVA, 2010, p. 118). Utilizando-se de pes- compreendê-la, tomar consciência de que toda a for-
quisas e dezenas de cálculos a partir de referências ma de vida está em jogo, faz-se necessário que se
de quantos seriam os pobres, o quanto possuem e fortaleçam as vozes da denúncia. A questão ambiental
qual é o déficit para completar-lhes o mínimo13, a é uma questão de poucas vozes, que ainda precisam
conclusão é de que as transferências necessárias ser amplificadas, estimuladas para se organizarem e
seriam “dentro do alvo de 0,7% do PNB dos países produzirem a pressão da resistência que seja capaz
doadores” (SACHS, 2005, p. 334). Esse seria o com- de inscrevê-la na agenda política mundial. A nature-
promisso a ser assumido pelos países ricos. za, embora pareça silenciosa, expressa-se a partir do
É nessa mesma lógica que o mundo se prepara aquecimento da terra, dos sinais do degelo, das chu-
para mais uma Conferência das Nações Unidas, a vas desordenadas, do esgotamento hídrico, do
Rio+20, em 2012, com o tema Rumo a uma econo- acúmulo do lixo, o que para consciências pouco sen-
mia verde: caminhos para o desenvolvimento sus- síveis, ainda não é o suficiente. Aos empobrecidos,
tentável e a erradicação da pobreza, que expres- certamente os mais atingidos porque mais vulnerá-
sa em seu relatório inicial seu compromisso com o veis, apresenta-se a exigência de também reagirem
desenvolvimento sustentável e a erradicação da po- e exigirem outra sorte para serem inscritos no lugar
breza. Prevê que um “investimento de 2% do PIB onde efetivamente contam; por fim, às gerações fu-
mundial pode combater a pobreza e gerar um cresci- turas – ainda sem voz – que contam com nossa res-
mento mais verde e eficiente”, ou ainda, “investir 2% ponsabilidade histórica para com elas.
do PIB mundial em dez setores estratégicos pode
ser o pontapé inicial para a transição rumo a uma
Economia Verde de baixo carbono e eficiência de Referências
recursos” (UNEP, 2011, p. 1). É a meta que desafia a
humanidade que quer compatibilizar crescimento eco- ANGELO, C. O aquecimento Global. São Paulo: Publifolha,
nômico e sustentabilidade ambiental. 2008.
Mesmo diante das grandes desproporções de ren-
da14 entre ricos e pobres e os limites de tal proposta, não CARSON, R. Primavera silenciosa.Tradução de Claudia
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fazer para evitar uma catástrofe. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009. poluidores sob a forma de uma lama vermelha na região onde ocorre
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sobre a terra com suas águas salgadas invadindo rios e lagos de água
______. Relatório do Desenvolvimento Humano 2007/2008. doce. Torna águas mais disponíveis em alguns lugares e menos em
Combater as alterações climáticas: solidariedade humana num outros. Com a escassez provocada, intensifica-se a exploração das
mundo dividido. Disponível em: <www6.cptec.inpe.br/ águas dos aquíferos como também poderá levar um aprofundamento
mudanças-climáticas>. Acesso em: 5 jun 2011. das águas subterrâneas, enfim, “a crise ambiental, vista a partir da
água, também revela o caráter da crise da sociedade” (PORTO-
PEREIRA, P. A. P. Questão social, Serviço Social e direitos da GONÇALVES, 2004, 152).
cidadania. Revista Temporalis, Brasília: Abepss, ano II, n. 3, p.
51-62, jan./jun. 2001. 4 O Relatório do Desenvolvimento Humano da ONU (2006),
elaborado pelo PNUD, sobre o tema “A água para lá da escassez:
PORTO-GONÇALVES, C. W. O desafio ambiental. Rio de poder, pobreza e a crise mundial da água”, estabelece uma relação
Janeiro: Record, 2004. entre o acesso à água e a pobreza.
REVISTA CARTA CAPITAL. Alto custo, baixo benefício. São 5 O Relatório do Desenvolvimento Humano 2007/2008 pretende
Paulo: Confiança, n. 689, p. 38-45, 21 mar. 2012. ser um suporte de reflexão e análise. No subtítulo Combater as
alterações climáticas: solidariedade humana num mundo dividido,
SACHS, J. O fim da pobreza. Como acabar com a miséria mundial há a constatação de que se não forem devidamente enfrentados os
nos próximos vinte anos. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. problemas ambientais e os da pobreza, eles serão um impeditivo
para alcançar os Objetivos do Milênio.
SCHONS, S. M. Questão social hoje: a resistência um elemento
em construção. Revista Emancipação, Ponta Grossa: UEPG, ano 6 Para mais informações sobre esse assunto, sugerimos a leitura de
7, n. 2, p. 9-39, 2007. Flannery (2007).