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EspeciaIs

DE
Correio Internacional

COLAPSO AMBIENTAL
O capitalismo é o responsável
2

Especiales
CONTEÚDOS
O capitalismo é o responsável pelo colapso ambiental

Apresentação......................................................................................................................................................................3

Aquecimento global

Novo relatório do IPCC expõe a catástrofe climática provocada pelo capitalismo ...........................................5

A crise ecológica como elemento-chave da bancarrota histórica do capitalismo................................................12

Desequilíbrio ambiental, capitalismo e pandemias .....................................................................................................28

América Latina, território de extrativismo .....................................................................................................................37

Modo de vida e a crise ambiental.....................................................................................................................................46

Stalinismo e a catástrofe ecológica soviética...............................................................................................................54

O materialismo dialético e ecológico de Engels ...........................................................................................................62

Ensaio: O marxismo e a questão ambiental

Interpretações e análises esquecidas em um aspecto fundamental ...................................................................72

Editor Responsável: Lena Souza

Desenho e diagramação: Natalia Estrada

Acesse as publicações da LIT‐QI em:


www.litci.org
Canal de Marxismo Vivo (YouTube)
@lit.ci (Instagram)

Liga Internacional dos Trabalhadores ‐ Quarta Internacional

Agosto de 2021 ‐ LIT‐QI


Florestas naturais de Cantabria. Fotografia disponível em
APRESENTAÇÃO Turismo de Cantabria - Naturaleza infinita.
https://www.turismodecantabria.com/disfrutala/naturaleza

ropa, América do Norte, Ásia, Oceania e

O
Painel Intergovernamental
sobre Mudanças Climáticas África foram atingidos por tempestades,
(IPCC) publicou no mês de inundações ondas de calor, incêndios flo­
agosto de 2021, o seu sexto relatório de restais e secas.
avaliação destacando que a temperatura Porém os alertas dos cientistas não são
da Terra está subindo mais rápido do que novidade, eles são feitos há pelo menos 50
o esperado e fazendo alertas alarmantes anos e enquanto isso os poderosos do pla­
sobre as consequências da catástrofe cli­ neta não fazem mais que organizar cúpulas
mática para o planeta e, portanto, para a ambientais, como a 26ª que vai acontecer
humanidade. em novembro desse ano em Glasgow, Es­
cócia. Nelas apenas constatamos a sua in­
O relatório fornece evidências abun­ capacidade para cumprir os compromissos,
dantes de que há mudanças no clima da que são esquecidos no dia seguinte, pois de
Terra como um todo e afirma que muitas fato são feitos apenas para acalmar as de­
delas não têm precedentes em milhares e mandas das manifestações pelo clima que
até centenas de milhares de anos, salien­ têm crescido nos últimos anos.
tando que parte das que já estão ocor­ Tudo isso não está acontecendo, nem
rendo, como o aumento do nível do mar, acontecerá sem consequências para a po­
não poderá ser revertido em séculos. pulação do planeta. E elas são catastróficas
para a humanidade, especialmente para
Junto com o relatório podemos obser­ aqueles que têm menos condições de se
var o mundo, através das notícias, e verifi­ proteger das consequências da irresponsá­
car a veracidade de suas conclusões. vel interferência na natureza que incidem
Aquilo que poderia parecer ser um pro­ com peso nas condições sociais e econômi­
blema para o futuro já vem se concreti­ cas e de saúde da população pobre do pla­
zando em fenômenos climáticos extremos neta. O mundo ainda está atravessando a
que aumentam em intensidade, frequên­ pandemia da Covid­19, umas das piores
cia e abrangência a cada ano, no presente. pandemias da história, que já tirou milhões
Tais eventos atingiram várias partes do de vidas, perdas irreparáveis para as famí­
mundo nos últimos 2 meses: Países da Eu­ lias, além de trazer outras consequências
4

Tempestades. Fotografia acessível em https://nuestroclima.com, 3/4/2015

como a crise econômica, a perda de postos É por isso que convidamos você a ler os
de trabalho, etc. E o aparecimento do vírus artigos que trazemos nesse especial, que
Sars CoV2 , assim como de outros vírus cau­ além de aprofundar sobre todos os proble­
sadores de epidemias e pandemias, longe mas que o sistema capitalista está produ­
de ser de origem “natural” como tentam zindo para a vida no planeta, faz um resgate
nos fazer acreditar, é resultado da forma da visão marxista sobre a questão ambien­
como se interfere nos processo naturais. E tal e da elaboração de Marx e Engels sobre
a lógica do lucro a qualquer custo, inerente as contradições inerentes e insustentáveis
ao capitalismo, trará também, como aler­ que um sistema baseado na acumulação in­
tam especialistas, outras pandemias, que cessante de capital possui com os recursos
como a atual, poderiam ser evitadas. naturais finitos do planeta.
Os responsáveis pela catástrofe são Também queremos destacar que não
aqueles que controlam a riqueza, o poder pretendemos com este especial esgotar as
e as decisões e que já provaram que são in­ discussões, mas sim iniciar um processo de
capazes de resolver essa corrida do planeta elaboração, apoiado no marxismo, de um
em direção ao precipício. programa que dê respostas às necessidades
Apesar de os discursos como “mudança colocadas pela urgência da catástrofe am­
de matriz energética”, “transição verde”, biental provocada pela destruição capita­
convencerem uma parte da esquerda e dos lista.
movimentos ambientalistas de que é pos­ Venha conosco nessa tarefa.
sível enfrentar a catástrofe climática fa­
zendo algumas reformas no capitalismo,
essa não é a nossa opinião. Afirmamos que A EDITORA
o capitalismo é um sistema insustentável
do ponto de vista social, econômico e tam­
bém ambiental. Por isso é preciso derrotar
esse sistema para construir uma sociedade
sustentável, solidária e equitativa, uma so­
ciedade socialista.
5

Aquecimento global
Novo relatório do IPCC expõe a catástrofe climática
provocada pelo capitalismo
No começo de agosto, o “Painel Intergovernamental sobre Mudanças
Climáticas” (IPCC, na sigla em inglês) divulgou seu mais recente relatório
a respeito das mudanças climáticas. O tom alarmista do documento
é plenamente justificável. Afinal, o planeta está se aquecendo mais rápido
do que se pensava, os eventos climáticos extremos têm sido cada vez mais
perceptíveis e, salvo há muitos milhares de anos, nossa atmosfera nunca
contou com a presença de tantos gases de efeito estufa como agora.

Jeferson Choma

C
omo aponta o IPCC, a temperatura temperatura média da Terra acima dele teria
média do planeta pode exceder ao efeitos catastróficos e imprevisíveis para a
limite de 1,5º Celsius até 2040, humanidade.
mais rápido do que se pensava. Esse limite
havia sido fixado em um relatório anterior, Enchente município de Kordel, Alemanha (julho/2021).
de 2013, e advertia que uma elevação da Foto: Sebastian Schmitt / imagem aliança via Getty Images
6
Descontrole e falta de iniciativas Quanto à concentração de metano na at-
O relatório concluía que, para manter o mosfera, cuja propriedade de retenção de
aquecimento sob algum tipo de “controle”, calor é 24 vezes maior do que o CO2, o
seria necessário reduzir as emissões de car- nível atual é o maior nos últimos 800 mil
bono pela metade até 2030 e zerá-las total- anos.
mente, em 2050. Estamos a nove anos A maior concentração de CO2 vem tor-
desse prazo e nenhum passo efetivo foi nando os oceanos mais ácidos, pelo fato
dado, em nenhum lugar do mundo, no sen- deles absorverem um terço do carbono lan-
tido de realizar tal meta. De acordo com o çado na atmosfera. Esta acidificação com-
IPCC, desde 1880 a temperatura média da promete toda a cadeia trófica (ou cadeia
superfície do planeta subiu cerca de 1,2º alimentar) e coloca em risco a reprodução
Celsius, sendo que a maior parte do aque- das espécies marinhas.
cimento ocorreu no final da década de
1970.
O pior ainda está por vir
O relatório atual também aponta que os
oceanos estão se elevando. E, não importa Pela primeira vez o IPCC reconhece aber-
o que façamos, o nível dos oceanos vai con- tamente que as mudanças climáticas atuais
tinuar aumentando de dois a três metros no são provocadas pelo ser humano e que já
longo prazo, mesmo que se mantenha o estão produzindo eventos climáticos extre-
aquecimento em 1,5°C. No pior dos cená- mos em todas as regiões do globo.
rios traçados pelo IPCC, o aumento pode Ondas de calor, secas, chuvas torrenciais
atingir cinco metros até 2150, caso se man- e inundações serão cada vez mais frequen-
tenha a quantidade atual de emissões de tes e intensas. Isso já é bastante perceptível,
gases de efeito estufa; ou seja, substâncias basta ver a onda de calor que tem provo-
gasosas que absorvem parte da radiação in- cado imensos incêndios florestais na Eu-
fravermelha emitida pelo Sol e refletida ropa e na Tunísia e o calor inédito em
pela superfície terrestre, dificul- regiões do Canadá (que chegou a 49,5°C)
tando o escape desta ra- ou na cidade siberiana de Verkhoyansk
diação (calor) para o (que registrou 38°C, este ano).
espaço. O relatório avisa que o pior
Já os níveis está por vir. Ao ultrapassar o
de concen- limite de 1,5° C de aqueci-
tração de mento global, o docu-
dióxido de mento afirma que
carbono devemos esperar ver
(CO2) na “eventos extremos sem
atmosfera precedentes no registro
são maio- de observação”.
res hoje do
que em qual-
quer época Em vermelho, a recente onda de calor
dos últimos dois na Europa que vem provocando
milhões de anos. incêndios em vários países
7
Calor extremo fica mais frequente
Aumento previsto na frequência e intensidade de altas temperaturas que só ocorreram
1 vez a cada 10 anos en média sem influência humana no clima

Frequência a cada 10 anos


Possíveis níveis de aquecimento global
Atual
1850 a 1 °C mais 1,5 °C mais 2 °C mais 4 °C mais
1900 quente quente quente quente

Uma vez a Chance de Chance de Chance de Chance de


cada 10 años ocorrer hoje ocorrer 4,1 ocorrer 5,6 ocorrer 9,4
2,8 vezes vezes vezes vezes

Alta na intensidade
Possíveis níveis de aquecimento global
Atual
1850 a 1 °C mais 1,5 °C mais 2 °C mais 4 °C mais
1900 quente quente quente quente

1,2 °C mais 1,9 °C mais 2,6 °C mais 5,1 °C mais


quente quente quente quente

Fonte: IPCC, 2021: Sumário para os Formuladores de Políticas

Em relação à Amazônia brasileira, por Capitalismo leva


exemplo, o relatório prevê que as secas mais
severas diminuirão as chuvas e, associado
humanidade para
ao desmatamento, a floresta poderá atingir a catástrofe ambiental
um ponto de ruptura e se transformar em Embora a situação seja muito séria, as mu-
uma savana degradada (região com vegeta- danças não vão acontecer repentinamente,
ção rasteira, árvores esparsas e arbustos iso- mas ao longo das décadas do século 21. Seus
lados). efeitos, porém, persistirão por centenas ou
Isso diminuirá a umidade produzida pela milhares de anos, pois estamos diante do fim
própria floresta (evapotranspiração), afetará de uma época geológica, o Holoceno, cuja
seu transporte até as regiões Centro-Oeste e estabilidade climática, nos últimos 12 mil
Sudeste do país pelos chamados “rios voa- anos, permitiu à humanidade o desenvolvi-
dores” e produzirá escassez hídrica e ener- mento da agricultura e da civilização.
gética, com consequente diminuição na
produção agrícola.

O
s combustíveis fósseis
Estas mudanças também teriam conse-
quências globais, posto que a Amazônia dei- permitiram o surgimento
xaria de ser um sumidouro de CO2 e e desenvolvimento da
passaria a emitir o gás, aumentando o aque-
cimento do planeta.
acumulação capitalista. zx
Ruas de Zhengzhou, na China central - Foto: Feature China/Barcroft Media via Getty Images (jul.2021)

O gráfico (Influência humana tem aque- Capitoloceno: desequilíbrio


cido o clima) mostra que o aquecimento foi
causado pela emissão de combustíveis fós- e destruição
seis (formados por processos naturais, Em sua critica ao capitalismo, Marx apre-
como carvão mineral, gás natural e petró- senta o conceito de metabolismo entre a so-
leo), a matriz energética que permitiu o ciedade e a natureza. Trata-se do ciclo de
surgimento e o desenvolvimento da acu- apropriação, consumo e excreção dos recur-
mulação capitalista. Sem essa matriz ener- sos naturais, comum a qualquer tipo de so-
gética, abundante e barata, a expansão e ciedade. Uma troca de matéria e energia
acumulação de capital simplesmente não entre os humanos com seu “corpo inorgâ-
teriam sido possíveis. nico”, como Marx definia a natureza. Sob o
No entanto, foi depois da Segunda Gue- capitalismo, houve uma ruptura desse me-
rra que houve um salto nas emissões dos tabolismo, impensável para Marx no seu
gases estufa. Esse período, chamado pelos tempo, ao ponto de criar uma nova época
cientistas de “A Grande Aceleração”, foi geológica.
quando o petróleo e seus derivados torna- O desenvolvimento das forças produti-
ram-se a base energética absoluta do pa- vas, determinado pela lógica da acumulação
drão de desenvolvimento do capitalismo. e do lucro, se converteu no desenvolvi-
Entre 1900 a 2013, a extração de petró- mento de forças destrutivas, que terminam
leo aumentou 207 vezes. Em 1913 o petró- por arruinar até mesmo as condições natu-
leo fornecia 5% da energia mundial. Mas, rais e físicas da própria reprodução capita-
em 1970 era responsável por 50% e, hoje, lista.
do total de consumo mundial de energia, Quando o agronegócio queima a Amazô-
80% pertence a energias fósseis. É isso que nia a fim de expandir a pecuária e o cultivo
nos levou àquilo que muitos autores cha- de soja, ele termina por acabar com os sis-
mam de Capitaloceno, a nova época geo- temas que produzem chuvas, sem a qual não
lógica causada pelo modo de produção será possível realizar esses cultivos. Ao au-
capitalista, cujas consequências vão trans- mentar a temperatura do planeta, regiões
cender o próprio sistema. continentais inteiras ficarão desabitadas, ci-
9
dades costeiras desaparecerão com toda sua Engana-se quem pense que essa é a pre-
infraestrutura e novas epidemias e pande- visão de um catastrofista. Ela está escrita em
mias podem surgir, com a liberação de vírus documentos produzidos pelo próprio “andar
e bactérias do seu habitat natural. de cima”, nas páginas de relatórios que cir-
Em 2016, por exemplo, o degelo dos cularam pelo encontro do Fórum Econô-
solos da Sibéria (conhecido como “perma- mico Mundial, em Davos (Suíça), em 2020.
frost”, formados por terra, gelo e rochas per- A irracionalidade do capitalismo levará a
manentemente congelados) provocou um humanidade à catástrofe. Mais do que
surto de antraz (uma bactéria infecto-conta- nunca, o dilema entre socialismo e barbárie
giosa), com o descongelamento do orga- se apresenta como vital para a sobrevivência
nismo que estava aprisionado no solo há da civilização.
milhares de anos. Isso é uma pequena mos-
tra do que pode estar por vir. Socialismo e economia
planificada podem garantir
A irracionalidade do capitalismo a transição energética
nos levará à catástrofe Atualmente, Joe Biden vem dizendo que vai
O fim do Holoceno nos coloca diante de liderar uma transformação da matriz ener-
um futuro sombrio, com imensos contingen- gética fóssil para fontes renováveis, como
tes de refugiados, despovoamento de cida- as energias eólica (gerada pelos ventos) e
des e de regiões inteiras do planeta, solar. Mas, o dinheiro investido pelos EUA
agravamento da fome, guerras e novas for- nessas novas matrizes é uma quimera perto
mas de crises econômicas, causadas por falta dos subsídios dados pelos governos para a
de recursos. produção de petróleo.

Influência humana tem aquecido o clima


Variação na temperatura global média em relação a 1850-1900,
com temperaturas observadas e simulações matemáticas

Obs.: Áreas sombreadas indicam amplitude de cenários simulados.


Fonte: IPCC, 2021: Sumário para os Formuladores de Políticas
10
O G20 (formado pelos 19 países com as
maiores economias mais a União Europeia)
forneceu mais de US$ 3,3 trilhões em sub-
sídios para combustíveis fósseis desde que
o “Acordo Climático de Paris” foi assinado,
em 2015. Nesse mesmo período, os EUA au-
mentaram esses subsídios em 37%.
Todo o falatório sobre mudança da matriz
energética vinda da boca dos capitalistas não
passa de conversa fiada. Hoje, ainda não há Incêndio florestal em Monchique , distrito de Faro,
região e sub-região do Algarve/ Portugal em 18/08/2021.
nenhuma matriz que possa substituir a ma- Foto: Rui Oliveira / Global Imagens
triz fóssil. As fontes de energias eólica e
solar são de natureza pouco concentrada e tindo uma transição energética para o con-
são irregulares, dependem de condições geo- junto da civilização.
gráficas e meteorológicas. Outro problema
E isso só pode ocorrer sob uma socie-
é que a matriz fóssil é esgotável. Vai acabar.
dade socialista, que restabeleça o metabo-
O que provoca uma elevação dos custos para
lismo entre a sociedade e natureza,
sua obtenção e o de-
permitindo uma rela-
senvolvimento de
´ necessário restabelecer o ção racional com os

E
técnicas ainda mais
recursos naturais, e
destrutivas como o metabolismo entre a sociedade principalmente redu-
“fracking” e a explo-
ração do Ártico e da e a natureza para reverter os
ção do uso energético
que será uma necessi-
Antártida, as últimas efeitos do aquecimento global. zx
dade para reverter os
fronteiras da matriz
efeitos do aquecimento
fóssil.
global que já estão evidentes. O socialismo
será uma sociedade de eco-austeridade, per-
guntaria o leitor? A resposta é que o capita-
O que fazer diante desse cenário? lismo é uma sociedade do desperdício e
Socialismo ou barbárie grande parte da energia que usamos hoje é
Diante de uma realidade em que o capita- na produção de bens de que não precisa-
lismo degrada rapidamente o meio am- mos, que não atendem às necessidades so-
biente, solapa brutalmente os recursos ciais. Seu uso é regulado pela acumulação.
energéticos em uma escala inédita em toda O capitalista que tiver acesso, abundante,
a história, somado ao fato de ainda não exis- mais fácil e barato a fontes energéticas, terá
tem fontes energéticas alternativas a matriz vantagens na competição com seus conco-
fóssil, a humanidade precisará organizar rrentes. Caso contrário será liquidado pela
uma nova forma de sociedade, e portanto, concorrência.
uma nova relação com a natureza, que possa Romper o ciclo expansionista da acumu-
restabelecer o equilíbrio termodinâmico e lação e usar bens comuns como meios de
fluxos de matéria-energia. atender às necessidades coletivas da socie-
Mas, para isso, é preciso por fim à acu- dade vai exigir um uso racional do con-
mulação capitalista, superando esse modo de sumo de energia. Mas o pressuposto para
produção irracional e insustentável e garan- isso é o planejamento socialista e democrá-
11
tico da economia. O capitalismo é avesso ao Vernadski (cientista russo que criou, na dé-
planejamento, pois é governado pela anar- cada de 1920, o conceito de biosfera para de-
quia na produção e a lógica do lucro e da nominar todos os ecossistemas existentes na
acumulação incessante. Só uma sociedade Terra), as forças produtivas
socialista pode planejar democraticamente
a transição energética, começando com a “são independentes, em sua composição e
nacionalização de todas as fontes energéti- abundância, de toda vontade e razão hu-
mana, por mais concentradas ou organiza-
cas, inclusive das matrizes fósseis, que
das que sejam. Como essas forças não são
devem passar ao controle dos trabalhadores.
inesgotáveis, sabemos que elas têm limites
O socialismo é, ao mesmo tempo, uma e que esses limites são reais; não são ima-
revolução das relações de produção e uma ginários e não são teóricos. Podem ser ve-
revolução das forças produtivas, cujo desen- rificados pelo estudo científico da natureza
volvimento está limitado às suas condições e representam para nós um limite natural in-
naturais. Afinal, como nos lembra Vladimir superável de nossa capacidade produtiva”.

Aumento médio do nível do mar em relação a 1900

Fonte: IPCC, 2021: Sumário para los Formuladores de Políticas

Mudanças climáticas
e secas

Com o aquecimento
global, é esperado um
aumento das secas
em algumas regiões.
12

A crise ecológica
como elemento-chave da bancarrota
histórica do capitalismo
Para Nahuel Moreno, o primeiro princípio fundacional da Quarta Internacional foi
“que as forças produtivas da humanidade pararam de crescer sob o imperialismo”1.
Trotsky estabelece que para o marxismo“o problema de reconstruir a sociedade
não surge de nenhuma prescrição motivada por predileções pessoais; é uma
consequência –como uma necessidade histórica rigorosa- da poderosa maturidade
das forças produtivas por um lado; da subsequente impossibilidade de fomentar
essas forças”2.

Juan Ramos

R
etrocedendo ainda mais, Marx e Muitos/as podem questionar se, à luz da
Engels enfatizaram o mesmo: “No história, essa previsão foi revelada como ver-
desenvolvimento das forças produ- dadeira ou não. Para responder à pergunta, é
tivas, chega-se a uma fase na que emergem necessário definir o que são as forças produ-
as forças produtivas e meios de troca que, tivas. Marx escreveu que:
nas relações existentes, só podem ser fontes “O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A
de males, que já não são tais forças produ- natureza é também a fonte dos valores de uso,
tivas, mas sim forças destrutivas”3. tanto quanto o trabalho, que em si mesmo não
é senão a expressão de uma força natural, a
Essa, então, é uma das noções fundamen-
força de trabalho do homem”5. Em outras pa-
tais do marxismo, pois viabiliza e explica a lavras, como resumiu Moreno, “o desenvolvi-
revolução social. Trotsky marcou a data em mento das forças produtivas é uma categoria
que o capitalismo parou de desenvolver as formada por três elementos: o homem, a téc-
forças produtivas. nica e a natureza”6.
“Até aproximadamente a Primeira Guerra Erosão e o carreamento de solos férteis provocada pela derrubada da
Mundial, a humanidade cresceu, se desen- mata e queimadas, de forma a liberar “terras virgens” para plantação
volveu e se enriqueceu através das crises par- de monocultura como a da cana
ciais e gerais. A propriedade privada dos
meios de produção seguiu sendo, nessa
época, um fator relativamente progressivo.
Mas agora o domínio cego da lei do valor se
recusa a prestar mais serviços. O progresso
humano parou em um beco sem saída”4.

1
MORENO, Nahuel. Atualização do Programa de Transição.
2
TROTSKY, Leon. O pensamento vivo de Karl Marx.
3
MARX, Karl. A ideologia alemã.
4
TROTSKY, Leon. O pensamento vivo de Karl Marx.
5
MARX, Karl. O Capital. Tomo I.
6
MORENO, Nahuel. Atualização do Programa de Transição.
13
É neste último fator onde encontramos tratam desse tema) não é mais uma hipótese
a chave para responder à questão levantada milenar, mas um debate rigoroso e atual,
anteriormente. O retrocesso das forças pro- com consequências políticas para a estraté-
dutivas foi desigual e combinado, não oco- gia revolucionária e socialista.
rreu de forma simultânea e semelhante em
seus diferentes elementos. Todo o progresso
humano e técnico que existe foi construído
graças à destruição do terceiro elemento,
a natureza. A exploração desse terceiro
elemento (ou seja, a base material sobre a
qual se encontra o capitalismo atual) está
atualmente atingindo seu limite histórico.
Por isso, o progresso anterior é efêmero, um
castelo construído na areia, que só prenun-
cia a degradação não só do meio ambiente,
mas da sociedade como a conhecemos no
último período. O capitalismo com suas ca-
racterísticas atuais é um sistema social his-
toricamente condenado, em decadência; ou
como se diria em termos mais populares,
insustentável.
Essa ideia não é tão inovadora quanto
Ascensão e queda do imperialismo britânico, do ponto de vista
pode parecer, mas pode ser rastreada niti- de seu metabolismo energético. Fonte: “Why América won´t be great
damente desde o início do marxismo. Nos again” (Economics from the top down)
textos de Marx e Engels podemos encontrar
várias passagens que expressam isso aber- A crise ecológica global
tamente: e o colapso que virá
“A produção capitalista apenas desenvolve a A extrema desigualdade nas emissões de gases de efeito estufa
técnica e a combinação do processo social de
produção, solapando, ao mesmo tempo, as
fontes originárias de toda riqueza: a terra e o
trabalhador”7.
“Não devemos nos orgulhar de nossas vitó-
rias humanas sobre a natureza. Para cada
uma dessas vitórias, a natureza se vinga de
nós. É verdade que cada vitória nos dá, em
primeira instância, os resultados esperados,
mas na segunda e terceira instâncias tem
efeitos diversos e inesperados, que muitas
vezes anulam os primeiros”8. Muitas vezes ouvimos na mídia que “as
A grande notícia é que os sinos começa- pessoas são responsáveis” por este ou
ram a tocar. O problema do "colapso" aquele problema ambiental. Mas o ser hu-
(como geralmente o chamam os autores que mano viveu centenas de milhares de anos
7
MARX, Karl. O Capital. Tomo I.
8
ENGELS, Friedrich. Dialética da Natureza.
sem alterar significativamente os equilíbrios Sítio arqueológico no Vale Sagrado, em Cusco - Peru.
ecológicos fundamentais que permitiram Construído pelos Incas em sumidouros naturais e com utilização
da técnica agrícola de terraceamento, com sistema de drenagem
seu desenvolvimento social. Não é a "huma- e canais de irrigação. Foto: getyourguide
nidade" o problema, mas um sistema social
e econômico concreto, o capitalismo, que que está por vir será pior: aumento de even-
em um curtíssimo período de 150 anos de- tos climáticos extremos, desertificação, perda
gradou completamente o planeta. de produtividade do solo, escassez de abas-
Este debate, longe de ser um exercício tecimento de água ... tudo em um quadro de
abstrato, tem dominado a conjuntura mun- esgotamento dos recursos energéticos e ma-
dial há um ano e meio. O aparecimento do teriais e de degradação dos ecossistemas.
SARS-CoV-2 (uma zoonose produzida pela
destruição do meio natural) é apenas mais
uma advertência dos problemas ecológicos • Uma questão de classe social
que se aceleram e batem à nossa porta, mos- e capitalismo
trando a fragilidade de um sistema que uma Essa realidade não é alheia à divisão entre
“pequena” doença é capaz de rapidamente classes sociais, bem como à divisão entre paí-
pôr em cheque. ses imperialistas e países coloniais / semico-
Vivemos um período sem precedentes, loniais. A responsabilidade por este impacto
marcado pelas mudanças climáticas, pelo corresponde centralmente à classe burguesa
esgotamento das fontes de energia e mate- dos países imperialistas, que se beneficiam do
riais, pela transformação do planeta e pela sistema econômico e acumula consumo de-
perda da biodiversidade. A pegada ecoló- senfreado. No entanto, a maior parte dos
gica da humanidade tem sido maior do que danos é sofrida pela população pobre dos paí-
a capacidade de suporte do planeta há cerca ses coloniais (ou semi), precisamente aqueles
de 50 anos, e hoje ultrapassa 56% da bioca- que têm menos responsabilidade. Os dados
pacidade global9, o que nos leva inevitavel- são nítidos: a pegada de carbono do 1% mais
mente a uma crise que reajuste esse rico é mais do que o dobro da pegada da me-
desequilíbrio. Esta não é apenas uma pre- tade pobre da humanidade7.
visão para o futuro, já é uma realidade pal- A crise ecológica não é um elemento circuns-
pável. Já estamos sentindo claramente os tancial ou conjuntural, não é um “erro” do ca-
efeitos desta crise, mas tudo indica que o pitalismo, mas é algo estrutural do próprio
9
Relatório Planeta Vivo 2020 (WWF).
10
Confronting carbon inequality (Oxfam).
15
larem de "sustentabilidade", uma vez que os
problemas ecológicos são inevitáveis. Prin-
cipalmente, falam em “eficiência” e “des-
materialização da economia”. No
entanto, vimos como essas ideias são
pouco mais do que um artifício discur-
sivo. A tecnologia geralmente vem ga-
nhando eficiência ao longo das décadas,
mas isso não se traduz em menos desper-
dício de materiais e energia, muito pelo
contrário. Por exemplo, a melhoria na
eficiência do carro não teve impacto em
viajar o mesmo que antes, mas com menor
custo em materiais e energia, mas em ven-
der mais carros para andar mais longe e
mais rápido. Melhorar a eficiência (sob o
capitalismo) se traduz em maior busca de
lucros, não em racionalidade produtiva.

A melhoria da eficiência não resulta em menor gasto de energia,


sistema. É independente da vontade das muito pelo contrário
pessoas e é produzida pela dinâmica ine-
rente à economia capitalista. A chave é que
neste sistema não se produz para satisfazer
as necessidades humanas, não sob critérios
de sustentabilidade ambiental, mas para
acumular e reproduzir capital, custe o que
custar e caia quem caia. Essa reprodução
sempre crescente aspira a ser infinita, algo
que se choca com a realidade material fi-
nita do planeta que habitamos. O capita-
lismo sustentável não existiu, nem existe,
nem poderá existir.
Mesmo que este ou aquele burguês qui-
sesse alterar a circunstância, ele não pode-
A questão da dissociação entre cresci-
ria fazê-lo, pois o mercado o engoliria.
mento e dispêndio de energia e materiais
Talvez, com um esforço extravagante de
não passa de um artifício para rechear as
imaginação, possamos pensar que alguns
manchetes.
deles podem querer sacrificar seus lucros e
seu capital incorporando custos ambientais Até agora, e ao longo da história do ca-
aos produtos de sua indústria; mas isso per- pitalismo, o crescimento do PIB sempre im-
mitiria a outros capitalistas oferecer o plicou no crescimento do uso de energia e
mesmo por muito menos, ocupando seu es- materiais.
paço no mercado. Podemos observar essa relação direta
Por outro lado, já é comum hoje ouvir os entre PIB e consumo de combustível fóssil
capitalistas e os governos a seu serviço fa- no gráfico da página seguinte:
16
O PIB é proporcional ao consumo de petróleo ritmo, a temperatura pode subir 4ºC até o
(escalas logarítmicas)
PIB de 2017 (em bilhões de dólares)
final do século. Para dimensionar esse
USA dado, diremos que a diferença de tempera-
tura em relação à última idade do gelo, foi
precisamente 4ºC. É possível que esse
mesmo aquecimento ative ondas de retro-
alimentação positiva que disparem ainda
mais os termômetros, em processos não li-
neares, mas disruptivos, catastróficos. Por
exemplo, se o aquecimento global derreter
Consumo de petróleo (em milhões de barris diários o Mbpd) o permafrost, liberando maciçamente o me-
tano que ele contém, ou interromper a cor-
• Mudança climática rente do golfo.

Talvez o problema ecológico mais conhe- Os efeitos das mudanças climáticas tam-
cido seja a mudança climática. O aqueci- bém estão começando a aparecer: elevação
mento global já é uma realidade palpável, do nível do mar, acidificação dos oceanos,
a temperatura média global subindo mais perda de biodiversidade, condições meteo-
de um grau desde os tempos pré-indus- rológicas extremas, desertificação, incên-
triais11, colocando-nos muito perto do limite dios florestais de magnitude desconhecida,
de + 1,5ºC considerado pelo IPCC (órgão dificuldades para a agricultura, escassez de
de referência vinculado à ONU) o limite de água ... o impacto deste conjunto de sinto-
segurança que em nenhum caso deve ser mas já é grande e será devastador no futuro
excedido. Partes por milhão de CO2 na at- próximo.
mosfera ultrapassam 41012 e continua a se A Península Ibérica será particularmente
acumular de forma incontrolável. As proje- afetada, como toda a região do Mediterrâ-
ções indicam que, se continuar no mesmo neo. Aqui já notamos claramente os primei-

Incêndio florestal em Ávila,


Estado Espanhol

11
“Nosso planeta se aquece” (WWF).
12
“Máximo histórico de concentração de CO2 na atmosfera (Greenpeace).
17
ros efeitos palpáveis da mudança climática timos para extraí-la) já está diminuindo sis-
como um verão climatológico cinco semanas tematicamente. O problema da energia cada
mais longo, com uma temperatura que já au- vez mais escassa e cara se agravará, afe-
mentou 1,8 ºC nas últimas quatro décadas. tando a economia global, fortemente depen-
Ao final da edição de esta publicação estáva- dente do combustível.
mos às portas de uma nova atualização das pro- As energias renováveis não podem
jeções do IPCC, sua última publicação foi há substituir a capacidade dos combustíveis
oito anos. Tudo indica que será um relatório de- fósseis, devido à sua natureza pouco con-
vastador, que agravará seriamente as previsões centrada (a gasolina é muito densa em ener-
anteriores. Os vazamentos anteriores que gia, assim que você aproxima um isqueiro
foram conhecidos deste relatório são assusta- ela queima ou explode, nada a ver com a
dores: energia do vento ou da luz), porque são irre-
“A vida na Terra pode se recuperar de uma gulares (são fluxos naturais, não um com-
grande mudança climática evoluindo para novas bustível armazenado e pronto para queimar
espécies e criando novos ecossistemas. A huma- quando quisermos) e por sua baixa taxa de
nidade não”. retorno energético (ou seja, são “pouco ren-
táveis” em sua relação entre energia inves-
tida e energia obtida) .
• Energia e materiais
Além disso, as energias renováveis atuais
Os combustíveis fósseis foram, e continuam
dependem de combustíveis fósseis (os com-
sendo, a energia que alimenta o sistema capi-
bustíveis fósseis precisam ser queimados
talista. 80% da energia utilizada atualmente é
para fabricar, transportar e manter os equi-
dessa origem. Este tipo de combustível foi a
pamentos de produção de energia renová-
pedra filosofal que explica a nossa sociedade
vel), portanto, serão afetados por seu
atual, pois tem permitido um grande cresci-
declínio; e estão essencialmente ligados à
mento no gasto energético devido às suas ca-
geração de eletricidade, algo que não pode
racterísticas especiais: alta concentração de
substituir o uso atual de combustíveis fós-
energia, grande abundância, versatilidade de
seis, que é muito mais amplo do que apenas
uso e facilidade de transporte. No entanto, a
eletricidade. Não parece haver outra nova
era dos combustíveis fósseis baratos e acessí-
fonte de energia no horizonte capaz de
veis está chegando ao fim. Se pensarmos nos
substituir a mesma magnitude em que os
filmes dos anos 1950 como Gigante, rapida-
combustíveis fósseis são queimados hoje.
mente identificaremos um clichê que se repete
muitas vezes: alguém encontra óleo em sua Exploração petrolífera no mar de Barents (parte do Oceano Glacial Árctico)
pela Noruega. © picture-alliance/VG/T - Mortensen
terra, jorrando do solo.
Essa era já acabou. Hoje vivemos na
era do fracking e outros tipos de técni-
cas não convencionais para espremer
as últimas reservas de combustível da
terra. Encontramos quatro picos de ex-
tração sobrepostos em um curto espaço
de tempo: petróleo, gás, carvão e urâ-
nio. A taxa de retorno de energia (ou
seja, a quantidade de energia que obte-
mos por unidade de energia que inves-
18
Os materiais não energéticos também
têm seus próprios picos de extração, pois
também são limitados. Sofrem da mesma
tendência de escassez que os combustíveis
fósseis. A reciclagem não pode compensar
o aumento das taxas de extração, pois por
definição é limitada. É fisicamente impos-
sível reciclar 100%, pois uma máquina de
movimento perpétuo é impossível. Nem é
possível substituir os materiais por outros
alternativos em muitos casos. Isso, longe de
ser uma previsão, é uma realidade. Nos úl-
timos meses, setores como o automotivo
foram frequentemente prejudicados pela es- Em vermelho, o consumo de petróleo aumenta.
cassez de chips. Em azul, os depósitos descobertos descem.
Fonte: “Energy and human ambitions on a finite planet”
Finalmente, os recursos hídricos também (Murphy, Thomas W., Jr)

estão sob grande pressão. Os aquíferos su-


perexplorados já são 20% globalmente13, • Biodiversidade
algo que as mudanças climáticas vão agra- Desde 1970, houve um declínio de 68% na
var. 70% da água é usada para produzir ali- população de vertebrados selvagens15. Os
mentos14, portanto, com uma agricultura dados são devastadores: em menos de uma
fortemente dependente de combustíveis geração humana, aniquilamos mais de 2/3
fósseis, ficará duplamente comprometida. dos vertebrados selvagens! Estamos experi-
A dessalinização não é uma alternativa mentando uma extinção em massa, a uma
ativo em longo prazo, pois necessita de uma taxa centenas de vezes mais rápida do que
ingestão energética muito grande para ser o normal. A destruição de habitats por agri-
realizado. cultura intensiva ou construção de infraes-
Recarga de carros elétricos truturas, mudanças climáticas, espécies
invasoras, caça ou a contaminação são os
responsáveis. O capitalismo literalmente
mudou a face da terra, transformando os
usos da terra como nunca antes, encurra-
lando o mundo selvagem. Um milhão de es-
pécies em todo o mundo estão ameaçadas
de extinção, de um total de oito milhões16.
A biodiversidade é a rede que também
sustenta a vida humana. Dela dependem a
nossa comida, a nossa atmosfera, as nossas
matérias-primas, a nossa água ... A sua des-
truição nos afetará inevitavelmente, pois não
deixamos de ser dependentes da natureza.
13
Relatório das Nações Unidas sobre os recursos hídricos (2015).
14
El 70% del consumo de agua se utiliza para la producción de alimentos (Nueva Tribuna).
15
Relatório Planeta Vivo 2020 (WWF).
16
Relatório de avaliação Global sobre a Biodiversidade e os Serviços dos Ecossistemas do Painel Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços
dos Ecossistemas (2019).
Energia eólica gerada por meio dos ventos,
os quais movimentam turbinas e transformam
a energia mecânica em energia elétrica

Um exemplo simples dessa dependência é Além disso, como tem sido, o recebi-
o papel dos animais na polinização de nossas mento dos fundos acarreta a obrigação de
plantações. Sem eles, simplesmente não po- os governos beneficiários aplicarem con-
deríamos produzir a maior parte de nossos trarreformas trabalhistas ou previdenciá-
alimentos. rias, privatizações e cortes sociais.
Mas, nos centrando no ambiental, esses
A política do capitalismo fundos ajudarão efetivamente a transição
ecológica?
para a “transição verde”
Já nos dá uma pista ver quem vai receber
Para além das avaliações gerais, vale parar
esses fundos. Pelo menos € 8,3 bilhões irão
para analisar as políticas que o capitalismo
para a indústria fóssil do Estado espanhol,
vem implementando em relação ao tema
Itália, França e Portugal. No caso espanhol,
abordado. Na Europa, a UE aprovou fundos
Endesa, Naturgy e Iberdrola (segunda, ter-
de “next generation”, apresentados como um
ceira e sétima empresas mais poluentes,
forte investimento para que a recuperação
respetivamente) solicitaram 53 bilhões.
econômica europeia após a crise do corona-
vírus seja “verde”, ajudando na transição Entre os projetos propostos encontram-
ecológica do continente. Seriam a expressão se muitos projetos de renovação de infraes-
em políticas concretas da ideia do “green new truturas, construção de parques eólicos e
deal”. fotovoltaicos ou digitalização de empresas
e administrações.
No Estado espanhol, os 140 bilhões que
serão recebidos serão administrados através Em particular, queremos examinar dois
da colaboração público-privada entre o go- exemplos particularmente relevantes: o im-
verno e grandes empresas financeiras, ener- pulso do carro elétrico e o hidrogênio como
géticas, industriais e de construção; vetor de energia.
geralmente mega-poluentes. No final das O caso do hidrogênio representa o
contas, não deixam de ser fortes injeções de grande cavalo de Tróia da indústria fóssil.
dinheiro público para grandes corporações. A UE vem apostando em um gigantesco
Como no resgate bancário, a dívida gerada é salto na potencia instalada para la eletroli-
pública, os benefícios são privados. zação do hidrogênio: de 60 MW atuales
20
passaríamos a 40.000 MW em 2030. Deve Também apresenta problemas técnicos
ser esclarecido que o hidrogênio não serve não resolvidos, como a necessidade de com-
para produzir energia, mas sim como forma primir o hidrogênio em altas pressões para
de armazenamento de energia. É um vetor torná-lo útil. Mesmo que todos esses proble-
de energia que tentaria resolver alguns dos mas se resolvessem, ainda seria necessário
problemas que já mencionamos sobre as construir toda uma rede de infraestruturas
energias renováveis. Através da aplicação de que permitisse seu uso massivo. Com isso,
eletricidade (que atualmente vem principal- apesar de já ser estudada há mais de 50 anos,
mente do gás natural, apenas 0,1% é de a aplicação real dessa tecnologia é muito es-
energias renováveis17, então na realidade o cassa, reduzindo-se principalmente a proje-
hidrogênio nem pode ser considerado uma tos-piloto experimentais.
alternativa verde), as moléculas de água se Grandes investimentos em hidrogênio
quebram, obtendo o hidrogênio. Esse hidro- têm muito mais a ver com uma bolha espe-
gênio seria usado à vontade como um tipo culativa inflada com injeções de dinheiro
de combustível com maior densidade de público e uma tábua de salvação para a in-
energia e mais facilmente transportável do dústria do gás natural, do que com uma al-
que as energias renováveis atuais. Portanto, ternativa energética verde que pode aparecer
é uma forma de armazenar energia elétrica em larga escala.
nos picos de produção de renováveis, para
ser liberada posteriormente em épocas de A outra grande aposta energética é a mas-
escassez. sificação dos parques eólicos e fotovoltai-
cos para tentar manter o atual nível de
No entanto, a prática está longe dessa teo-
utilização de energia a todo o custo, no con-
ria utópica. O uso de hidrogênio tem gran-
texto descrito de declínio dos combustíveis
des desvantagens. Em primeiro lugar, sua
fósseis.
fabricação e transporte apresentam grandes
problemas de eficiência, com perdas de até A Península Ibérica está se enchendo
20%18, o que prejudica gravemente sua fun- deste tipo de instalações, muito extensas te-
cionalidade. Seu custo também é muito alto, rritorialmente, provocando a destruição de
o que o torna pouco competitivo. inúmeros ecossistemas.

Anúncio do green new deal, por


Ursula von del Leyen (Presidente
da União Europeia)

Painel solar fotovoltaico

17
¿Qué dice el Plan España Puede del hidrógeno “verde”? (La Marea).
18
Un breve análisis de la eficiencia de ciclo completo de la economía del hidrógeno verde (15-15-15).
Sucatas de carros
Em relação à mobilidade, a grande aposta
do capital é a substituição dos veículos energético. E muito menos, na velocidade
atuais por outros elétricos. Não por acaso, o vertiginosa, precisamos tentar diminuir os
governo espanhol concedeu seu primeiro efeitos das mudanças climáticas. A chave
PERTE (junto a SEAT, Iberdrola e Telefó- para enfrentar o desafio é muito mais sim-
nica) ao carro elétrico, com um investi- ples e está ao alcance da mão: é preciso
mento de € 4,3 bilhões. Transformar usar menos energia. Tão simples como
totalmente a frota espanhola em veículos isso.
elétricos significaria aumentar a procura de No entanto, esse truísmo é mortal para
eletricidade em 20-25%19, multiplicando um capitalismo dependente do crescimento,
por dois a necessidade de minerais hoje es- da reprodução ampliada do capital. Os
cassos e com uma economia máxima de grandes investimentos públicos em empre-
emissões por veículo de 30% (integrando sas de energia ou automóveis dos fundos da
todo o ciclo de vida do o carro)20. Além " next generation " têm a ver com a reativa-
disso, seria necessário ampliar a geografia ção de setores econômicos estagnados e não
dos postos de recarga elétrica, com uma com a transição ecológica, e com a tentativa
densidade maior que os postos atuais, dada de salvar os instrumentos que se possam a
a menor autonomia dos veículos elétricos. medida que se esgotem os combustíveis
Em ambos os casos mencionados, ener- fósseis. Se a preocupação fosse realmente
gia (hidrogênio) e mobilidade (carro elé- a necessidade de reduzir as emissões, o pro-
trico), encontramos uma contradição férrea. blema da mobilidade poderia ser resolvido
É extremamente difícil substituir a atual ma- fortalecendo qualitativamente o transporte
triz energética fóssil por uma elétrica reno- público, reduzindo drasticamente o uso de
vável, se mantivermos os níveis de gasto carros particulares. Mas isso seria a ruína
19
Técnica y autonomía. Una reflexión filosófica sobre la no neutralidad de la técnica desde la obra de Cornelius Castoriadis (Adrián Almazán).
20
O carro elétrico não resolverá a crise climática (Ecologistas em Ação).
22
das montadoras. Energeticamente, a solução da economia, diminuindo o uso de mate-
passa pelas energias renováveis, sim, mas riais e energia; permitindo a recuperação
também por meio de uma redução significa- de ecossistemas. É obrigatório que essa re-
tiva de gastos, para que a demanda seja aten- dução seja planificada de forma sustentável
dida sem se chocar com o esgotamento dos com base nos limites produtivos definidos
minerais nelas utilizados e sem destruir o ter- pelos recursos naturais disponíveis. Dentro
ritório propagando moinhos e painéis. desses limites do que é ecologicamente pos-
sível, é preciso articular mecanismos de de-
mocracia direta onde a classe trabalhadora
Um programa revolucionário e o povo possam expressar suas preferên-
cias e necessidades, participando do plane-
para a emergência ecológica
jamento.
Os clássicos do marxismo não viveram essa
realidade emergente, portanto não podemos
encontrar uma resposta automática para a
crise ecológica global em seus trabalhos. No
entanto, responder a esta situação é absoluta-
mente indispensável para um projeto socia-
lista no século XXI. É, portanto, tarefa dos
partidos revolucionários reinterpretar e atua-
lizar seu programa à luz desse novo contexto.
Temos que encontrar nosso melhor ponto
de ancoragem nos próprios Marx e Engels,
que conheceram em sua época os problemas
de esgotamento e perda de fertilidade do solo
inglês. Assim precisamos que as emissões de GEE evoluam para manter
21
Sobre aquela "ruptura metabólica" , conside- o aquecimento abaixo do limite de segurança
raram que “todo o espírito da produção capita-
lista, orientada para o ganho monetário É impossível especificar aqui um pro-
imediato, está em contradição com a agricul- grama desenvolvido para cada país e mo-
tura” e propuseram que “os produtores associa- mento. Mas é útil marcar pelo menos
dos regulem racionalmente sua troca de algumas orientações principais que são mais
materiais com a natureza”22. ou menos comuns em todos os lugares:
Este é um bom ponto de partida para atua- Para fazer frente às mudanças climáticas,
lizar nosso programa. A situação de emergên- é urgente reduzir drasticamente as emis-
cia ecológica precisa de propostas radicais sões de gases de efeito estufa e realizar
que enfrentem a ameaça em sua própria di- uma importante política de reflorestamento
mensão: estamos diante de uma situação de que reabsorva parte do que já foi emitido. É
emergência planetária. É necessário um plano preciso reduzir as emissões em todos os se-
de choque anticapitalista de transição ecoló- tores, principalmente na área de energia (po-
gica, que subordine o interesse privado-capi- tencializando as energias renováveis e
talista às necessidades sociais e à preservação redução de gastos) e o transporte (redução
do meio ambiente. do uso de automóveis e aviões). A energia
Centralmente, é preciso reduzir a escala nuclear (que também não é renovável) deve
21
MARX, K. Grundrisse.
22
MARX, K. O Capital, tomo III.
23
ser apagada. Esse plano exige a nacionaliza- A agricultura e a pecuária devem viver
ção de toda a indústria energética e elétrica. uma verdadeira revolução. É necessário re-
Do ponto de vista da classe trabalhadora, duzir as práticas de tipo industrial atuais para
o emprego é de singular importância, pois é promover outras de tipo ecológico e de pro-
necessária uma reestruturação econômica ximidade. Para isso, é necessária uma pro-
completa, reduzindo ou eliminando setores funda reforma agrária para desapropriar as
econômicos desnecessários ou prejudiciais grandes propriedades.
ao meio ambiente. Por sua parte, setores so- Relacionado a isso, a gestão dos recursos
cial e ambientalmente necessários gerarão hídricos deve ser modificada, reduzindo a
empregos. Em todo caso, qualquer conversão área irrigada, priorizando a restauração eco-
deve ser realizada sem perda de emprego, re- lógica dos corpos d'água e córregos, elimi-
alocando a força de trabalho nas mesmas nando capturas ilegais e proibindo novos
condições às plantas. O ponto chave para ga- depósitos artificiais ou transvases.
rantir o pleno emprego é a redução por lei da A proteção da biodiversidade requer um
jornada de trabalho sem redução de salário. plano de emergência, ao qual todos os tra-
O transporte deve ser modificado, au- balhos ou atividades no ambiente natural
mentando o público e tornando-o acessível a devem ser submetidos. É necessário aumen-
toda a população, reduzindo o espaço para o tar drasticamente os recursos destinados à
privado. Priorizando a caminhada ou a bici- preservação de espécies e ecossistemas pro-
cleta nas cidades, e o trem convencional entre tegidos, ampliando os espaços naturais, res-
territórios, em detrimento do automóvel. taurando áreas degradadas (como o litoral ou
Todas as novas infraestruturas de trans- áreas agrícolas abandonadas). Os crimes am-
porte, as novas explorações de recursos na- bientais devem ser processados com mais
turais e as novas áreas de urbanização devem severidade, aumentando o número de agen-
ser interrompidas imediatamente. Paralela- tes ambientais.
mente, defendemos o desenvolvimento de A expansão das áreas florestais deve ser
um plano de isolamento das construções para favorecida, mas seu manejo deve mudar:
reduzir o consumo de energia nelas; desapro- deve-se priorizar o reflorestamento com es-
priar o parque imobiliário nas mãos de gran- pécies nativas e a recuperação de usos sus-
des proprietários para abri-lo ao seu uso tentáveis, como a biomassa. Os incêndios
social. florestais estão desajustados sazonalmente

Mais de 2,8 bilhões de


animais nativos da Austrália,
como coalas e cangurus,
foram mortos ou deslocados
durante os incêndios
florestais que atingiram o
país entre setembro de 2019
e março de 2020 (WWF)
Os incêndios florestais, que se repetem a cada ano em diversas partes do planeta, produzem, além da perda de vidas e de biodiversidade,
graves efeitos nas águas subterrâneas, uma vez que o carbono liberado nos incêndios pode entrar nos aquíferos.
Fotografia original de Dmitro Gilitukha/123RF, publicada em Fluence Corp, 17/11/2020

e tornam-se muito mais virulentos com as Por exemplo, com uma legislação e incen-
novas condições climáticas. Defendemos a tivos adequados, as empresas de energia re-
profissionalização 100% e proporcionar es- novável ganhariam gradualmente espaço
tabilidade no emprego aos serviços de bom- das empresas de petróleo, até que o sistema
beiros florestais, ampliando as políticas de de produção de energia fosse sustentável.
prevenção durante o inverno. Esse caminho seria defendido pela esquerda
As propostas descritas têm uma dimensão institucional, organizações ligadas à ONU,
gigantesca. Todos os recursos devem ser fo- parte das ONGs ambientalistas e uma fração
cados em realizar essa transformação ecoló- da burguesia, com interesses econômicos
gica. Para isso, bancos, grandes empresas envolvidos.
estratégicas e grandes fortunas devem ser A segunda corrente seria a do “decresci-
nacionalizados e colocados a serviço desse mento”, ligada aos movimentos sociais,
plano. que bebe do anarquismo e do socialismo
utópico. Ela postula estrategicamente a
construção de iniciativas econômicas e so-
ciais ambientalmente responsáveis, como
Socialismo para “ilhas de contra-poder”. Rejeita a política e
a sustentabilidade tenta mudar o mundo sem chegar ao go-
Dentro das tendências ambientais atuais, verno. Estrategicamente, localizam a trans-
podemos distinguir duas tendências de formação social em uma mudança cultural
forma simplificada. A primeira seria de um que faz com que essas "ilhas" cresçam até
tribunal “socialdemocrata”, que se compro- se tornarem socialmente predominantes.
mete a favorecer a lucratividade dos “negó- Para nós, as duas formas são ineficazes.
cios verdes” por meio de mecanismos de No primeiro caso, o capitalismo, mesmo
mercado, seria o “green new deal”. Com que pintado de verde, opera sob o comando
isso, uma economia sustentável se desenvol- da lei sacrossanta do lucro dos negócios e
veria gradativamente no marco da democra- drenará os recursos na medida em que seja
cia burguesa, que gradativamente ganharia lucrativo. É impensável que a burguesia aja
terreno em relação ao “capitalismo sujo”. “por responsabilidade ambiental” sacrifi-
25
cando seu capital em busca da sustentabili- Estado. E essas lacunas de crescimento
dade, deixando sob o solo os combustíveis disponíveis são margens muito, muito es-
fósseis inexplorados. Por que investir gran- treitas.
des quantias na mudança da rede de energia, Nem a “austeridade individual” é uma
meios de transporte, indústria, etc ... quando saída. Nosso modo de vida não é uma es-
é mais benéfico (para eles) continuar fa- colha individual livre, maleável à vontade;
zendo “negócios como de costume”? mas é moldado pela sociedade em que vi-
Para além de qualquer teoria, a crise cli- vemos. Ainda que individualmente possa-
mática mostra como, após dezenas de anos mos ser um pouco mais econômicos ou
de cúpulas internacionais pródigas e decla- perdulários, o acesso aos bens básicos para
rações pomposas sobre a busca pelo “desen- a sobrevivência (alimentação, moradia,
volvimento sustentável”, as emissões, a emprego, etc ...) é estritamente determi-
destruição de ecossistemas, a extinção de es- nado socialmente. Não temos opção de in-
pécies ... simplesmente continuaram aumen- fluenciar significativamente o que e como
tando. é produzido. Isso é determinado nos gover-
No segundo caso, rejeitamos que possa nos e nos conselhos de administração de
haver uma transformação significativa sem grandes empresas multinacionais.
tomar o poder. Como vai prevalecer uma A partir da LIT-QI saudamos cada ati-
agricultura diferente sem expropriar a terra v i s t a que busca de uma forma ou de
dos grandes latifundiários que a monopoli- outra um mundo mais sus-
zam? É impossível pensar que as iniciativas tentável e justo. Cada
de “economia social” possam crescer em protesto, cada ação, cada
rede para além dos limites per- iniciativa, pode ter valor
mitidos pelo mercado, pela ... desde que seja en-
propriedade privada e pelo
Fotografia de acilo/Gettyimages,
É preciso desenvolver outras extraída da página
matrizes energéticas e reduzir futuroverde.org, 14/1/2021.
o seu gasto Fonte: Reuters
26
quadrada dentro de uma estratégia efetiva. A
mudança necessária não virá da evolução si-
lenciosa dos “negócios verdes”, nem do de-
senvolvimento do “consumo responsável”,
nem da mera pressão sobre as cúpulas da
ONU e os governos.
É necessária uma verdadeira revolução so-
cial, que acabe com a atual economia capita-
lista e com os governos e estados que a
apoiam. Que levante um governo da classe
trabalhadora e do povo, baseado na demo-
cracia direta; que pode desenvolver um plano
coordenado de transição ecológica, radical,
em escala nacional e internacional. Que cons-
truam uma economia a serviço das necessi-
dades humanas e da conservação da natureza.
Para nós, isso é socialismo.
A agricultura e a pecuária devem viver uma verdadeira revolução.
Fotografia de Notas e anotas, Portugal,
em artigo de André Gouveia, 29/1/2019
• E a experiência dos “países socialistas”
na história? oriental), eram economicamente muito
Infelizmente, não podemos fechar este artigo mais atrasados do que os países imperialis-
aqui. É impossível referir-se ao socialismo tas centrais. Tendo renunciado à revolução,
sem falar do stalinismo com o qual a maioria sua competição era exclusiva no campo do
da população o identifica. Muito menos neste crescimento econômico, na corrida arma-
tema. Os governos stalinistas entraram para mentista ou a espacial.
a história por muitos crimes, e a questão eco- Começando mais atrás, essa corrida foi
lógica não poderia estar ausente entre eles. baseada no stakhanovismo trabalhista ... e
O desastre de Chernobyl ou a seca do Mar ecológico. A exploração dos recursos natu-
de Aral são apenas dois exemplos bem co- rais levada ao limite e a falta de regulamen-
nhecidos. Também podemos citar que os paí- tação ambiental em busca dos grandes
ses do Leste foram muito intensivos em suas saltos deixaram como um rastro esses cri-
emissões de gases de efeito estufa. A questão mes ecológicos.
relevante é: o socialismo está fadado a ser De nossa parte, desde já renunciamos a
sempre assim? reiniciar essa louca corrida para o abismo.
A resposta é “depende”. A mera gestão Confiamos que a derrota do imperialismo
operária da produção ou do planejamento será fundamentalmente com a política de es-
econômico nada pressupõe a esse respeito tender a revolução ao seu próprio território.
(embora existam certas tecnologias, como a
fóssil ou a nuclear, que jamais serão susten-
táveis mesmo que estejam sob o poder ope-
• Mas então ... o que você quer
é que sejamos mais pobres?
rário). A solução é política. O stalinismo
renunciou à revolução mundial, apostando na Esta pergunta não pode ser respondida de
convivência com o imperialismo. Mas os paí- forma única, é necessário dividir a resposta
ses stalinistas, incluindo a RDA (Alemanha com base na classe social e tipo de país.
27
les que apelam para a sua “liberdade indivi-
dual” de dirigir bêbado, mesmo que venham
a causar acidentes onde morrerão inocentes.
A verdade é que a Revolução já chega
tarde para que o capitalismo não deixe uma
cicatriz profunda e duradoura no mundo,
que será herdada pelo socialismo. Na me-
lhor das hipóteses, nos desenvolveremos em
um planeta gravemente doente. Talvez in-
clusive o socialismo só tenha a opção de
nascer entre verdadeiras ruínas. Se pensar-
mos bem, também não é uma novidade his-
tórica. No meio da Revolução Espanhola,
Durruti foi questionado exatamente sobre
isso:
Williams Morris (1834-1896) «Sempre vivemos na miséria e vamos nos
acomodar a ela por algum tempo. Mas não se
Sem dúvida, a burguesia dos países im-
esqueça de que os operários são os únicos
perialistas baixará muito seu padrão de vida. produtores de riqueza. Somos nós, os operá-
Por outro lado, a classe trabalhadora de um rios, que fazemos as máquinas rodarem nas
país colonial terá que aumentar seu con- indústrias, os que extraem o carvão e os mi-
sumo. No meio, existe uma ampla escala de nerais das minas, os que constroem as cida-
cinza. Porém, não queremos adoçar o nosso des ... Porque não vamos, então, construir e
discurso: a norma é que será necessário até em melhores condições para substituir o
destruído? As ruínas não nos assustam. Sabe-
mudar a forma como estamos habituados a
mos que não vamos herdar nada além de ruí-
viver, de uma forma ou de outra.
nas, porque a burguesia tentará arruinar o
Mas isso não significa que sejamos mundo na última fase de sua história. Mas -
menos ricos e felizes. A menos que enten- repito - não temos medo das ruínas, porque
damos a riqueza e a felicidade como o faria carregamos um novo mundo em nossos cora-
ções. Esse mundo está crescendo neste mo-
um comercial no intervalo da superbowl.
mento».
Preferimos nos inspirar no velho socialista
William Morris. Se devemos diminuir em Tradução: Lena Souza.
alguns parâmetros, devemos crescer em ou-
tras coisas como o tempo livre, a participa-
ção política e social, a segurança pessoal, as
possibilidades de nos dedicarmos ao es-
porte, à ciência ou à cultura, às relações in-
terpessoais, ao lazer ou ao relacionamento
com a natureza.
Talvez essa ideia possa ser perturbadora
para alguns. Mas aqueles que apelam para a
“liberdade pessoal” de consumir sem qual- Buenaventura Durruti, fotografia de anarquismo.net, em entrevista
quer limitação, são basicamente como aque- de 1936 com Van Passen, publicada em 4 de maio de 2014
28

Desequilíbrio ambiental,
capitalismo e pandemias
O desequilíbrio ambiental do planeta, como consequência da exploração
capitalista desenfreada e irresponsável, vem acontecendo há muitas décadas
e tem se aprofundado nos últimos anos. Vários estudos científicos vêm
alertando sobre as consequências, e as mesmas não têm ficado somente na
teoria, já que as secas, enchentes, tempestades, furacões, incêndios florestais,
ondas de calor, etc., estão atingindo países e populações de forma difusa há
alguns anos e têm se intensificado cada vez mais. A interferência
inconsequente no meio ambiente também vinha causando o surgimento de
várias doenças que chegaram a muitas populações e tiraram muitas vidas,
mas a Covid ­19 foi a que se globalizou em curto espaço de tempo
transformando­se em uma tragédia sanitária, econômica e social para
os mais pobres. Tudo isso faz parte de uma mesma e única crise que está se
intensificando em magnitude e frequência e que nos dá um recado: se não
derrotarmos o capitalismo é possível que a natureza o derrote, mas junto
com isso também nos derrotará.
Lena Souza
Vista aérea de uma plantação de óleo de palma na Indonésia
Em meio à catástrofe da Covid 19, na Índia, cadáveres
emergem na cheia do rio Ganges. Fografia: SANJAY KANOJIA

M
uitas explicações são apresenta­ originou em morcegos, passando por um
das para o aparecimento do vírus hospedeiro intermediário, onde pode ter so­
Sars CoV2, causador da Covid­ frido mutações, até chegar no ser humano.   
19. Algumas religiosas, e para algumas reli­ Afirmamos também que a pandemia era
giões esse tipo de evento, como se fosse uma evitável, ainda que os irresponsáveis pode­
praga, já estava previsto. Outras são basea­ rosos do planeta tentem nos fazer acreditar
das na teoria na conspiração, na qual uma que não era possível prever e evitar argu­
das  especulações  é  a  de  que  o  vírus  foi mentando  que  é  um  processo  natural,  já
criado em laboratório de algum país, nesse que as pessoas convivem com os agentes
caso a China é o país mais colocado em sus­ que  causam  doenças  infecciosas  durante
peita, e que seu objetivo é dominar o mundo toda a vida e que a humanidade já enfren­
e impor sua hegemonia sobre o planeta sub­ tou outras pandemias durante sua existên­
jugando outros povos. E ainda existem os cia.  
negacionistas,  em  geral  os  mesmos  que A pandemia do Sars CoV2, assim como
negam o aquecimento global e que, mesmo outras epidemias emergentes são produto,
diante da crua evidência das mortes, as ig­ na verdade, da forma como se interfere nos
noram  e  as  minimizam  afirmando  que  se processos naturais, uma forma mercadoló­
trata  de  uma  manipulação  da  opinião  pú­ gica e, essa relação predatória, poderia ser
blica.  sim evitada. Sua difusão rápida pelo pla­
Avaliamos que as explicações acima se neta é produto das redes de fluxo de pes­
baseiam em contextos que fogem da ciência, soas e mercadorias que o capitalismo criou,
total ou parcialmente, e se abrigam em argu­ transformando o planeta num único orga­
mentos que necessitam de crença e/ou fide­ nismo  econômico.  E  consideramos  que
lidade, sejam elas religiosas ou políticas para essa não é uma simples discussão, mas é
serem aceitas. Sendo assim, partimos da hi­ muito importante para que possamos tirar
pótese, que é praticamente consenso entre a conclusões para a continuidade da luta pela
comunidade  científica,  embora  ainda  não preservação do planeta e a nossa própria
confirmada, que afirma que o Sars­CoV2 se preservação.
30
As Zoonoses Entretanto, a partir dessas informações
não é difícil constatar que em 1725 anos,
É verdade que as zoonoses, que são doen­
considerando apenas o calendário da Era
ças infecciosas transmitidas de animais para
Comum (EC), de 165 até 1890, se registra­
seres humanos, ou vice­versa [zooantropo­
ram dez pandemias, enquanto que em ou­
noses], existem há muito tempo e que con­
tros  100  anos,  de  1919  a  2019,  se
vivemos com os agentes que causam essas
registraram  outras  dez. A  frequência  au­
doenças  durante  toda  a  vida.  Também  é
mentou exageradamente. As informações
fato que a humanidade já sofreu doenças in­
apresentadas pela ciência mostram que as
fecciosas que se espalharam, tornando­se
doenças infecciosas triplicaram a cada dé­
pandemias que causaram muitas mortes em
cada, a partir dos anos 80 e que dessas 70%
vários momentos da sua história1, como:
são zoonóticas.  
• Peste do Egito (430 AEC); 
De acordo com virologistas:
• Peste Antonina (165­180);
“Um determinado vírus pode circular por um
• Praga de Justiniano (541­542); tipo de animal rotineiramente, durante mi ­
• Varíola Japonesa (735­737); lhares  de  anos.  Mas,  ao  longo  desse  pro­
cesso, pode acontecer alguma mudança que
• Peste Negra (1347­1351);
faça o patógeno pular para outra espécie”2.
• Varíola (1520);
• Praga de Londres (1665);
• Praga de Londres (1817­1923);
• Pandemia Cólera (1917­1923);
• Peste Negra (1885);
• Febre Amarela (final dos anos 1800);
• Gripe Russa (1889­1890);
• Gripe Espanhola (1918­1919);
• Gripe Asiática (1957­1958); ZOONOSES
• Gripe de Hong Kong (1968­1970);
• AIDS (1976­atual);
• SARS (2002­2003);
• Gripe Suína – H1N1 (2009­2010);
• Ebola (2014­2016); Esquema de transmissão de zoonoses. Centro de Comunicación
de las Ciencias, Universidad Autónoma de Chile
• MERS (2015­actual);
• Covid 19 (2019­actual).

E
m quase 2.000 anos houve
no mundo dez pandemias,
Vírus do SarsCoV2.
e nos últimos cem anos já
1
https://coronavirus.butantan.gov.br/graficos-sobre-a-pandemia aconteceram outras dez. zx
2
https://www.bbc.com/portuguese/internacional-54669808
Ou seja, um vírus pode circular em várias Produção industrial de porcos
gerações de animais por muito tempo e tam­
bém passar por mutações aleatórias, mas se As doenças e sua relação
ao  longo  do  processo,  há  interferências com o uso indiscriminado
muito profundas no seu meio, pode levar a dos recursos naturais
mutações e torná­lo apto para infectar seres Os vírus e micro­organismos que vivem na
humanos e a partir daí serem transmitidos de natureza necessitam de um ambiente natural
um ser humano para outro. O vírus Sars CoV para  seguir  existindo.  Se  esse  ambiente  é
2 é um exemplo de tal situação, pois circu­ destruído, tais organismos podem escapar e
lava entre os morcegos, sofreu algumas alte­ buscar novos hospedeiros.
rações e a partir daí, direta ou indiretamente,
conseguiu infectar os seres humanos.  A destruição dos habitats naturais, através do
desmatamento e outras interferências, provo­
O IPBES (Plataforma Intergovernamental cam  mudanças  na  diversidade  local  e  au­
sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistê­ menta  a  proliferação  de  hospedeiros
micos) afirma que, considerando o nível de zoonóticos. Estudo publicado na revista Na-
interferência nos ecossistemas, futuras pan­ ture3 concluiu que “populações de animais
demias vão aparecer com maior frequência, hospedeiros de doenças zoonóticas eram até
com proliferação mais rápida e serão mais 1,5 vezes maiores em locais degradados, e a
letais que do que a Covid­19. Estima­se a proporção de espécies que carregam esses
existência de 631.000 a 827.000 vírus des­ patógenos aumentou em até 70% em compa­
conhecidos com capacidade de infectar os ração  com  ecossistemas  não  danificados”.
humanos.    Tal estudo agrega que quando se destrói os
A conclusão, a partir de tudo isso é apenas habitats, diminuindo ou se extinguindo os
uma. É verdade que os vírus estão presentes animais do topo da cadeia alimentar, os ani­
na natureza, mas a contaminação de seres mais na base da cadeia, como os ratos e mor­
humanos, na frequência que estamos presen­ cegos  que  carregam  patógenos,  tendem  a
ciando nas últimas décadas, é consequência proliferar e preencher esse espaço.
de um processo rápido de degradação da na­ “Nunca houve tantas oportunidades para os
tureza. O avanço irresponsável sobre os re­ patógenos passarem de animais selvagens e
cursos naturais tem sido a verdadeira causa
das, cada vez mais frequentes, zooneses que 3
https://climainfo.org.br/2020/08/05/degradacao-ambiental-pode-
nos atingem. abrir-caminho-para-novas-pandemias/#:
32
domésticos para as pessoas”, diz a diretora Entre essas a principal é a agricultura co­
executiva do Programa das Nações Unidas mercial em grande escala, que foi respon­
para o Meio Ambiente (PNUMA), Inger An­ sável  por  40%  do  desmatamento  das
dersen. florestas tropicais entre os anos de 2000 e
“Nossa erosão contínua da natureza nos dei­ 2010,  que  foram  usados  principalmente
xou desconfortavelmente próximos das espé­ para a criação de gado, a plantação de soja
cies portadoras – isto é, animais e plantas que e de óleo de palma. A agricultura de subsis­
abrigam doenças que podem ser transmitidas tência foi responsável por 33% do desma­
aos seres humanos”4. tamento.    Ainda  segundo  o  mesmo
relatório, um terço do território mundial é
E a destruição dos ecossistemas, a des­
utilizado para o pasto de ruminantes, e um
peito das várias cúpulas ambientais e com­
terço da terra arável do planeta é designado
promissos  de  preservação  realizados  pela
à plantação de sementes para a prática da
maioria dos países, é contínua.  Relatório da
pecuária.
própria FAO (Organização das Nações Uni­
das  para  a  Alimentação  e  a  Agricultura) O desmatamento, ao mesmo tempo em
mostra  que,  ainda  que  tenha  diminuído  a que priva o planeta das florestas, que são os
taxa de desmatamento anual nos últimos 30 sumidouros  de  carbono,  também  faz  au­
anos, a extensão total das matas está se re­ mentar a emissão de CO2 que alimenta o
duzindo a um ritmo de 10 milhões de hecta­ aquecimento global, provocando todos os
res por ano. Esse já é um dado calamitoso, desequilíbrios que estamos assistindo e que
mas ainda é preciso levar em conta que o impactam toda a vida no planeta. E todo o
critério da FAO para definição de florestas desequilíbrio  ambiental  provocado  pelo
é questionado5, por avaliar como floresta a aquecimento tem retroalimentado a destrui­
qualquer área coberta por árvores, o que per­ ção dos ecossistemas, o que aumenta ainda
mite que plantações industriais de monocul­ mais os riscos de todo tipo de vírus e bac­
turas  sejam  consideradas  “florestas térias capazes de provocar pandemias al­
plantadas”. Ainda  de  acordo  com  a  FAO, cançar os seres humanos. Um exemplo é a
entre 1990 e 2020, a área de floresta dimi­ fragmentação de florestas provocada pelos
nuiu em 178 milhões de hectares e atual­ incêndios florestais, que se propagam de­
mente elas ocupam 4,06 bilhões de hectares, vido à maior frequência de estiagem, e que
ou seja, 31% da superfície terrestre. No ano atingem todo o ecossistema.
de  2020  foram  destruídos  4,2  milhões  de Desmatamento da Amazônia
hectares de florestas intocadas, 12% mais
que em 2019.
A razão de tal destruição está em um sis­
tema que não dá nenhuma importância aos
custos sociais e ecológicos das atividades
produtivas, desde que seja lucrativo econo­
micamente. As principais causas do desma­
tamento, segundo a FAO6, são a agricultura,
a urbanização, a construção de infraestrutu­
ras e a mineração.
4
https://www.unenvironment.org/es/noticias-y-reportajes/reportajes/seis-datos-sobre-la-conexion-entre-la-naturaleza-y-el-coronavirus
5
https://wrm.org.uy/pt/livros-e-relatorios/engano-e-destruicao-por-tras-da-definicao-de-florestas-da-fao/
6
http://www.fao.org/3/ca8642es/CA8642ES.pdf
Além disso, as mudanças climáticas estão
provocando o derretimento das regiões po­
lares,  que  segundo  cientistas  carregam,
abaixo de metros e metros de gelo, micró­
bios latentes e desconhecidos e que agora
estão  sendo  liberados  pelo  degelo.  Em
agosto de 2016, houve um surto de antraz
em uma região remota da Sibéria, chamada
Península Iamal. A hipótese científica ex­
plica  que  uma  rena  infectada  morreu  há estão comprometidos devido à utilização de
mais de 75 anos e sua carcaça ficou presa antibióticos e hormônios para crescimento
no  solo  congelado  até  2016,  quando  no e desenvolvimento em tempo menor que o
verão o permafrost foi derretido e liberou o normal. Em ambientes de alta densidade,
agente infeccioso para o ambiente local7. fechados e insalubres isso pode propiciar
O desmatamento provocado pela agricul­ hospedeiros  intermediários  para  vírus  e
tura industrial que destina as terras a mono­ bactérias  provenientes  de  outros  animais
cultivos de alimentos para o gado, suínos e impactados pelo desequilíbrio de seu ecos­
aves, associado à sua própria criação inten­ sistema. A partir daí eles se tornam ampli­
siva de forma industrial é descrita por cien­ ficadores dos vírus e bactérias que passam
tistas, como Rob Wallace8, como o ambiente por mutações e podem evoluir e se dissemi­
mais propício para o contato com os pató­ nar entre os seres humanos. De acordo com
genos e para permitir organismos para suas Wallace10, “das 39 transições  documenta­
mutações. E isso não começou a acontecer das de vírus de baixa para alta letalidade em
agora, mas se intensifica a cada ano.  Nos gripes aviárias a partir de 1959, todas, ex­
anos noventa, a destruição de florestas na ceto duas, ocorreram em operações avícolas
Ásia para plantação de óleo de palma aca­ comerciais, tipicamente caracterizadas por
bou  com  áreas  em  que  viviam  morcegos plantéis de dezenas ou centenas de milhares
frutíferos,  que  se  deslocaram  para  buscar de aves”.
alimentos em fazendas de criação de ani­ Com o ritmo colocado, muitos milhões
mais. Isso propiciou a transmissão do vírus de hectares de terra serão transformados em
Nipah dos morcegos para porcos, que em uso agrícola nas próximas décadas, aumen­
seguida  passaram  para  humanos  e,  na tando o maior bioma terrestre atual, que é a
época,  causaram  105  mortes9.  Esse  vírus superfície  utilizada  para  agricultura,  a
com  taxa  de  mortalidade  entre  de  40%  a maior parte, como já visto, para alimentar
75% dos infectados, continua sendo de al­ os  animais  criados  em  ritmo  industrial,
tíssimo risco e já provocou alguns surtos em como as aves e o gado que hoje represen­
países como Malásia e Bangladesh.  tam 72% da biomassa animal global11.
A criação intensiva pressupõe o confina­ E as consequências são sistêmicas, pois
mento de milhares e até milhões de animais o  uso  de  agrotóxicos,  utilizados  nessas
geneticamente homogêneos, cujos mecanis­ plantações aumentou 75% entre o ano 2000
mos  normais  de  defesa  contra  infecções e 2017, o que reduz as populações de inse­
7
https://www.bbc.com/portuguese/vert-earth-39905298
8
https://apublica.org/2021/04/rob-wallace-agronegocio-e-a-juncao-perfeita-de-circunstancias-para-surgimento-de-novas-epidemias/
9
https://super.abril.com.br/sociedade/onu-e-oms-alegam-que-pandemias-sao-resultados-da-destruicao-da-natureza/
10
https://diplomatique.org.br/planeta-fazenda/
11
https://diplomatique.org.br/planeta-fazenda/
34
tos polinizadores e outros que são alimen­ cumulativo  dessas  mudanças  também
tos dos morcegos, aumentando sua inter­ pode fazer com que partes fundamentais
face com animais industriais e populações do  sistema  terrestre  mudem  de  maneira
humanas, na medida em que aumenta sua dramática e irreversível. São os chamados
área em busca de alimentos. Sem conside­ pontos de não retorno (tipping points), que
rar a contaminação das águas, dos solos, significa que, a partir de certo nível, uma
do  ar  e  dos  alimentos  produzidas  pelos pequena  mudança  faz  uma  grande  dife­
agrotóxicos, que também prejudica nossa rença e muda o estado ou o destino de um
saúde. sistema, o que significaria que tal sistema
Além disso, também destrói ecossiste­ não voltaria ao seu estado original mesmo
mas e nos coloca em risco o tráfico ilegal que a força causadora do processo diminua
de espécies que passou a ser um negócio ou se reverta.
lucrativo dentro do capitalismo e é consi­ A floresta amazônica, a floresta boreal
derada a terceira maior atividade ilícita do e o manto de gelo da Groelândia são al­
mundo, uma das atividades mais lucrati­ guns dos ecossistemas que podem sofrer o
vas atualmente. ponto de não retorno segundo estudos de­
Considerando a amplitude e o ritmo de senvolvidos por vários cientistas12.
destruição dos ecossistemas, as previsões
de novas pandemias ganham força, pois o O capitalismo é o sistema
papel  desempenhado  pelas  florestas  de que produz a destruição dos
nos  proteger  do  contato  com  patógenos ecossistemas e gera um modo
que são perigosos para nossa saúde está
sendo anulado pelo ritmo desenfreado e
de vida insustentável
irresponsável  com  que  os  capitalistas  e Pra  quem  não  acredita  na  ciência  por
seus  representantes  políticos  almejam convicção ou conveniência, essas previ­
ganhar dinheiro, sem se preocupar com a sões podem parecer mau agouro ou infor­
vida no planeta.  mações  catastrofistas,  mas  a  ciência  há
alguns anos já vem prevendo a possibili­
E essa destruição provocada pelo sis­
dade de uma pandemia, embora essa infor­
tema capitalista pode alcançar uma situa­
mação nunca tenha sido levada a sério por
ção  mais  crítica,  pois  o  impacto
O avanço das plantações
de soja sobre as áreas
de floresta

O
s agro-tóxicos
prejudicam
nossa saúde e
contaminam as
águas, os solos, o ar
e os alimentos. zx
12
https://www.carbonbrief.org/explainer-nine-tipping-points-that-could-be-triggered-by-climate-change
35
Assim, o sistema capitalista em sua in­
cessante busca por acumulação e produção
de  mais­valor  vai  provocando  o  esgota­
mento dos recursos naturais e aumentando
a exclusão social e a morte de um número
cada vez maior de pobres pelas catástrofes
que provoca. 
Engels já colocava essa questão em seu
O derretimento do gelo pode provocar doenças
até agora desconhecidas.
texto “O papel do trabalho na transforma-
Fotografia: © Wild Wonders of Europe/de la L/naturapl.com ção do macaco em homem”, de 1876:
“Não nos deixemos dominar pelo entu­
aqueles  que  priorizam  o  lucro  acima  da
siasmo em face de nossas vitórias sobre
vida e que continuam aumentando suas ri­
a natureza. Após cada uma dessas vitó­
quezas  com  a  anuência  dos  governos  de
rias a natureza adota sua vingança. É ver­
cada país, que estão no comando apenas
dade  que  as  primeiras  consequências
para  servi­los.  São  esses  bilionários  que
dessas vitórias são as previstas por nós,
mantém esse sistema econômico e social
mas em segundo e em terceiro lugar apa­
vigente baseado numa tendência expansio­
recem consequências muito diversas, to­
nista da riqueza concentrada numa pequena
talmente  imprevistas  e  que,  com
minoria que se choca totalmente com os li­
frequência, anulam as primeiras...”.
mites à produção impostos pelo meio na­
tural, que não é ilimitado.   As consequências têm sido sérias e, em­
E essa prática transformada em números bora tentem nos convencer de que elas não
nos  mostra  que  o  planeta  precisa  de  1,5 escolhem classe social ou raça, na prática,
anos para regenerar os recursos renováveis vemos que isso é uma grande mentira. São
que  são  consumidos  em  apenas  um  ano. os  pobres  e  trabalhadores/as  e,  entre
Poderia se dizer, como afirmam alguns que eles/as, os mais vulneráveis como as mul­
estão no topo da pirâmide, ou os que os de­ heres, grupos étnicos minoritários, os ne­
fendem, que a causa de tal pressão sobre os gros/as,  imigrantes  do  planeta  que  mais
recursos naturais é o aumento da popula­ sofrem ou morrem.
ção. No entanto, apesar do crescimento po­
pulacional ser um dos elementos que deve O capitalismo é incapaz
ser levado em conta, ele não é considerado de reverter a situação.
o principal neste momento, pois a questão Só uma sociedade socialista,
que deve ser analisada de forma prioritária
planejada e democrática
é o aumento da produção e o consumo. Nos
últimos dois séculos o chamado “cresci­
poderá garantir a
mento” da economia global, que na reali­ sustentabilidade
dade é acumulação capitalista, se concentra Para alguns defensores do sistema, o capi­
nas mãos de poucos que vão ficando cada talismo é capaz de se autorregular ou en­
vez mais ricos, enquanto a grande maioria contrar  e  desenvolver  as  tecnologias  e
luta por um mínimo de sobrevivência. E ferramentas para reverter a catástrofe am­
esses poucos  estão transformando o pla­ biental.  No  entanto,  o  capitalismo  é  ba­
neta em um lugar inabitável para a maioria seado na lei de acumulação de capital, na
dos humanos e outros organismos vivos.   busca incessante pelo lucro. 
36
A produção capitalista é completamente como elemento-chave da bancarrota histó-
anárquica, e os meios de produção estão nas rica do capitalismo”, neste Especial.
mãos  de  um  punhado  de  burgueses  que Há necessidade de uma mudança drás­
controla  o  poder  político.  Para  o  capita­ tica e imediata na produção de bens e de
lismo não existe mediações, limites plane­ alimentos para garantir a sustentabilidade
jados que possam diminuir sua voracidade do planeta.
pelo lucro. 
Tal orientação é dada por vários estudio­
Tanto é assim que no período de pande­ sos e cientistas que alertam sobre a neces­
mia, ou seja, a partir de março de 2020 até sidade  de  transformar  nosso  sistema
março de 2021, segundo a revista Forbes, alimentar para deter o desmatamento e a
se produziu mais 493 bilionários, um bilio­ perda da biodiversidade e, por consequên­
nário a cada 17 horas. A riqueza dos bilio­ cia, proteger a saúde do planeta e a nossa.
nários aumentou em cerca de US$ 5 trilhões Mas isso só pode caminhar se houver um
de  dólares  nesse  período13.  A  pandemia, planejamento da produção realizado pela
uma verdadeira catástrofe para os pobres, maioria da sociedade e uma mudança no
foi aproveitada pelos ricos para acumular modo de vida, o que é incompatível com o
mais. Os maiores exemplos estão na indús­ capitalismo e suas ideologias consumistas.
tria farmacêutica, no agronegócio e na in­
dústria da alimentação.  A preservação do planeta e da vida da
classe trabalhadora e pobre do planeta não
Até  mesmo  entre  aqueles  que  tentam pode ficar nas mãos da burguesia bilioná­
passar  a  ideia  de  que  estão  preocupados ria. É necessário que nós trabalhadores (as)
com a sustentabilidade do planeta como Joe pobres do mundo assumamos esse desafio
Biden  e  outros  governos  imperialistas,  o e nos organizemos para fazer a necessária
objetivo é investir dinheiro público para en­ revolução que tire das mãos desses irres­
contrar uma forma dos setores burgueses ponsáveis a condução de nossas vidas.
continuarem produzindo e acumulando lu­
cros,  como  se  pode  ler  em  análise  mais O único sistema capaz de planejar uma
aprofundada no artigo “A crise ecológica vida que preserve a sustentabilidade da na­
tureza e dos seres humanos é o socialismo,
Desmatamento das florestas para utilização dos solos na pecuária que pode realizar o planejamento da pro­
dução  de  bens  materiais  e  de
uma  alimentação  necessária  à
nossa sobrevivência em equilí­
brio com a sobrevivência do pla­
neta.
Mas para que realmente seja
um sistema socialista sustentável
deverá garantir que as decisões
sejam tomadas de forma demo­
crática  pela  maioria,  que  é  a
classe trabalhadora, em espaços
construídos para tal fim.

13
https://forbes.com.br/forbes-money/2021/04/covid-19-provoca-a-maior-aceleracao-da-riqueza-em-toda-a-historia-da-humanidade/
37

América Latina,
território de extrativismo
A história da América Latina está profundamente ligada ao extrativismo,
processo que é caracterizado pela exportação de matérias-primas em larga
escala, destinado aos países imperialistas. O extrativismo não se resume
apenas a minerais, mas também podemos identificar o extrativismo agrário
e florestal. A colonização europeia nas terras que hoje chamamos de América
Latina estava voltada ao extrativismo e à acumulação primitiva do capital.

Samanta Wenckstern

M
arx aponta em sua principal obra,
O Capital, que “a descoberta das
terras auríferas e argentíferas na
América, o extermínio, a escravização e o
soterramento da população nativa nas minas
(…) caracterizaram a aurora da era da pro­
dução capitalista”1 e que “o sistema colonial
amadureceu  o  comércio  e  a  navegação
como plantas num hibernáculo”2. Ou seja,
a invasão, a colonização da América Latina
e a subsequente política de extrativismo es­
teve  profundamente  ligada  à  expansão  e
consolidação do capitalismo.
Entretanto, longe de algo que ficou na
história, o processo de expropriação e ex­
trativismo segue em Abya Yala, nome que manecem presentes no capitalismo e pode­
muitos povos indígenas vêm denominando mos acrescentar, no continente americano.
a América Latina.
Harvey denominou de “acumulação via
Como  destacam  Rosa  Luxemburgo3 e, espoliação” processos como “mercadifica­
mais recentemente, David Harvey4, todas as ção e a privatização da terra e a expulsão
características da acumulação primitiva per­ violenta de populações camponesas; (…)
mercadificação da força de trabalho e a su­
1
MARX, Karl. O Capital, Livro I. Boitempo, 2013, p. 821. pressão de formas alternativas (autóctones)
2
Ibidem, p. 823. de produção e de consumo; processos colo­
3
LUXEMBURGO, Rosa. “A acumulação do capital”, 1912. niais e neocoloniais e imperiais de apropria­
4
HARVEY, David. O novo imperialismo. Ediciones Loyola, 2014. ção  de  ativos  (inclusive  de  recursos
5
Ibidem, p. 121. naturais)”5.
38
Este artigo visará analisar um processo tas foram distintas de país para país, com es­
recente da história latino americana, deno­ pecificidades  locais,  porém  podemos  ver
minado de neoextrativismo, que pode ser tendências gerais. Além disso, algo que é
lido dentro desse contexto de “acumulação muito destacado por estes intelectuais é o
via espoliação”. fato de que neste período, parte importante
dos países latino­americanos era governado
por  governantes  ditos  “progressistas”,  ou
Neoextrativismo seja,  que  se  colocam  no  espectro  da  es­
O neoextrativismo é caracterizado por al­ querda, como por exemplo Tabaré Vásquez
guns intelectuais latino­americanos6 como (Uruguai), Lula (Brasil), Evo Morales (Bo­
um  processo  que  começa  no  século  XXI, lívia),  Rafael  Correa  (Equador)  e  Manuel
onde governos na América Latina reforça­ Zelaya (Honduras).
ram o modelo extrativista exportador, igno­ O neoextrativismo está inserido num mo­
rando  os  impactos  sociais,  ambientais  e mento histórico de profunda crise social e
territoriais deste. Esse reforço se deu perante ecológica, onde a mudança climática, extin­
a  alta  de  preços  de  commodities,  que  fez ções em massa de espécies e ecossistemas e
com que os países da América Latina tives­ pandemias  ameaçam  a  vida  humana  e  do
sem um crescimento econômico continuado planeta, colocando na ordem do dia o debate
até pelo menos 2014, inclusive destoando da ambiental.  Nesse  sentido,  vemos  que  o
situação mundial, perante a crise econômica neoextrativismo  subestima  e  ignora  esse
de 2009. A exportação de bens primários in­ contexto e provoca uma superexploração de
cluiu hidrocarbonetos como gás e petróleo, bens naturais, que são cada vez mais escas­
metais e minerais e também produtos agrá­ sos, o que promove inclusive a expansão de
rios, como soja e cana­de­açúcar. É impor­ fronteiras  de  exploração. Acosta  e  Brand
tante  ressaltar  que  a  forma  como  cada (2018)  apontam  que  o  extrativismo  e  o
governo administrou as políticas extrativis­ neoextrativismo criam uma concepção redu­

Acordo comercial União Europeia-


Mercosul intensificará a crise
climática provocada pela agricultura

• A previsão de aumento das emissões


provenientes do comércio bilateral de oito
produtos agrícolas principais é de um
terço (34%).

• As exportações de carne bovina do


Mercosul para a UE serão a maior fonte de
novas emissões (82%).

• A pegada climática da UE resultante das


exportações de produtos alimentares para
o Mercosul pode quintuplicar.

Fonte: GRAIN, 25 de novembro de 2019


Climate. Extraído de:
https://grain.org/e/6356

6
Alguns autores que se debruçam sobre o tema são Alberto Acosta, Ulrich Brand, Maristella Svampa, Eduardo Gudynas, Emiliano Terán Mantovani
e Jürgen Schuldt.
7
ACOSTA, Alberto e BRAND, Ulrich. Pós-extrativismo e decrescimento. Editora Elefante, 2018.
39
cionista  da  natureza,  tendo  em  vista  que são indevidamente descartados. Sem contar
redes biofísicas e processos de reprodução que o agronegócio contribui para o aqueci­
naturais extremamente complexos são redu­ mento global.
zidos a “recursos naturais”, que estão dispo­
níveis para exploração e mercantilização7.
Os autores também salientam que o extra­ Ilusão desenvolvimentista
tivismo  e  o  neoextrativismo  ignoram  as Svampa (2019) aponta que diante do auge
consequências negativas dos processos de das commodities, o extrativismo deu uma
extração,  lesionando  assim  o  meio  am­ nova ilusão desenvolvimentista aos gover­
biente  natural  e  social  em  que  intervém, nos “progressistas” da região8 e assim estes
rompendo ciclos naturais da natureza, im­ adotaram um discurso produtivista. Porém o
pedindo assim a regeneração. que vimos na prática foi uma política que au­
Tomemos como exemplo a mineração e o mentava a dependência do mercado exterior.
agronegócio para entender alguns impactos A ênfase no extrativismo teve como conse­
ambientais. Atualmente, lugares com alta quências a reprimarização da economia dos
concentração de minérios são raros e, por­ países  latino­americanos,  que  se  voltaram
tanto, é necessária uma mineração indus­ para atividades primárias, com pouco valor
trial de grande escala em lugares onde o agregado. Para ilustrar esse processo, o eco­
mineral é escasso, com uso maciço de quí­ nomista Pierre Salama caracteriza que, nesse
micos extremamente tóxicos, que deixam período, o Brasil, sofreu um fenômeno de
dejetos da mineração que se acumulam por “desindustrialização precoce”9.
muitos anos, contaminando o solo e a água. “A “desindustrialização precoce” não
A contaminação da água a torna inutilizável se traduz necessariamente por uma de­
para uso humano e da agricultura, afetando sindustrialização absoluta. No Brasil, a
comunidades, além de problemas graves de
saúde. O agronegócio exige grandes
concentrações de terra para planta­
ção  de  monoculturas  e  pasto  para
criação de animais, o que incentiva
o desmatamento e a destruição de
diversos biomas. Essas monocultu­
ras necessitam de grandes quantida­
des  de  agrotóxicos,  que  poluem  o
solo, a água, e provocam diversos
danos à saúde. Além disso, é neces­
sário grandes quantidades de água,
gerando esgotamento de mananciais
e  principalmente  a  agropecuária Impactos da mineração sobre os recursos hídricos, o ambiente e a sociedade.
Fotografia extraída do artigo “El derecho al agua en comunidades afectadas
gera uma grande quantidade de re­ por actividades mineras”, de Marco Arana Zegarra, disponível em:
síduos, como fezes de animais, que https://www.ocmal.org, 18 de dezembro de 2012

8
SVAMPA, Maristella. As fronteiras do neoextrativismo na América Latina. Editora Elefante, 2019.
9
SALAMA, Pierre. China-Brasil: industrialização e “desindustrialização precoce”, Cadernos de Desenvolvimento,
Rio de Janeiro, v. 7, n.° 10, janeiro-junho 2012, pp. 229-251.
40
americanas sofressem com problemas reco­
rrentes em suas balanças de pagamentos.
Perante o aprofundamento das dependên­
cias das economias aos mercados estrangei­
ros, os países latino­americanos, ao verem
os preços das matérias­primas diminuírem,
aumentam sua extração, o que beneficia os
países centrais.
A América Latina sofreu com diversas
políticas neoliberais nos anos 90, e vimos
diversas lutas e resistências a essas políticas.
Essas lutas levaram ao poder diversos go­
vernos “progressistas” e de frente popular
Um dos efeitos da desindustrialização precoce é a maior no continente, eleitos vendendo uma ideia
dependência dos países participantes de acordos internacionais
como Mercosul-União Europeia. de  mudança.  Apesar  de  esses  governos
Fotografia: “América Latina mejor sin TLC”, 11 de junho de 2021 apresentarem  um  discurso  aparentemente
contrário ao neoliberalismo, Svampa (2019)
indústria  de  transformação  conhece aponta  que  esse  projeto  progressista  não
uma taxa de crescimento positiva. Para questionou de fato a hegemonia do capital
um índice de 100% em 2002, a indús­ transnacional na economia periférica. Muito
tria de transformação alcança o índice pelo contrário, perante a adoção do discurso
de  121,5%  no  primeiro  trimestre  em desenvolvimentista, se apoiou no neoextra­
2011. A desindustrialização no Brasil é tivismo, deixando em segundo plano os im­
relativa no plano nacional e em escala pactos ambientais e sociais, priorizando as
mundial. Em âmbito nacional, a contri­ demandas do capital estrangeiro.
buição da indústria de transformação Esses governos “progressistas” viam o
diminui no PIB, passando de 16,8% em neoextrativismo como um meio para gerar
1996 a 15,8% em 2010. Por outro lado, divisas ao Estado, que geraria distribuição
a contribuição das atividades primárias de renda, criando uma falsa oposição entre
aumenta,  entre  as  mesmas  datas  (de a  questão  social  e  a  questão  ambiental,
5,5% a 5,8%, para a agricultura, e de como se a devastação ambiental fosse con­
0,9% a 2,5% para as indústrias extrati­ trapartida justa para uma maior distribuição
vas, segundo o IBGE). No plano inter­ de renda. O que verificamos foi uma distri­
nacional, a indústria de transformação buição de renda num caráter de curto prazo,
brasileira recua de maneira relativa. A e baseado no modelo de inclusão pelo con­
participação dessa indústria na indús­ sumo, que não se sustentou após a queda
tria de transformação mundial diminui dos preços das commodities. Além disso,
de 2% entre 2004 e 2010. Comparada por mais que muitos discursos de governan­
à indústria de transformação das eco­ tes “progressistas” fossem contra o imperia­
nomias emergentes, ela cai 25% entre lismo, a América Latina mais uma vez se
as  mesmas  datas”  (Salama,  2012,  p. adaptava às necessidades do próprio impe­
245). rialismo. Se na década de 90, o Consenso
O preço das matérias­primas no mercado de Washington impôs a aplicação de diver­
internacional possui uma volatilidade pró­ sas políticas, como as maciças privatizações
pria, fazendo com que as economias latino­ e  diminuição  do  Estado,  nos  anos  2000,
41
com o aumento da demanda de commodi­ política e o próprio discurso dos governan­
ties, a América Latina mais uma vez cum­ tes da época não condizem com a própria
priu  o  papel  de  fornecedor  dessas constituição. Perante a não aprovação do
matérias­primas. uso de sementes transgênicas no Equador,
e com relação aos Tipnis [Território Indí­
Qualquer  discurso  crítico  às  políticas
gena  e  Parque  Nacional  Isiboro  Seguro,
neoextrativistas eram vistas como partindo
ndr.], na Bolívia, ambos os governos, “pro­
da direita, como ambientalismo colonial e
gressistas”,  tiveram  um  discurso  seme ­
infantil. As contradições aparecem com bas­
lhante: negou­se a legitimidade das queixas,
tante relevo em países como Bolívia e Equa­
assumindo  uma  linguagem  nacionalista,
dor.
chamando os opositores de ecologismo in­
A Constituição da Bolívia de 200910 de­ fantil no Equador12 e de ambientalismo co­
fine o Estado como plurinacional, intercul­ lonial na Bolívia13. No Brasil, o discurso
tural e que defende o “bem viver” (sumak também  foi  bastante  semelhante  quando
kawsay,  em  quechua)  ou  o  “viver  bem” havia críticas e lutas contra a construção de
(suma qamaña, em aymara). A Constituição Belo Monte. O governo “progressista” pe­
do Equador de 200811 incorpora um capí­ tista atribuiu as críticas ao envolvimento de
tulo de direitos da Natureza. Entretanto, a ONGs estrangeiras, que estariam manipu­
lando os povos indígenas14.
Surpreendentemente ou não, governos
de extrema direita da região também ado­
tam um discurso parecido. Bolsonaro, ao
receber inúmeras críticas sobre as queima­
das na Amazônia, denunciou uma cobiça
internacional sobre a Amazônia, defendeu
supostos interesses nacionais e responsabi­
lizou ONGs pelo desmatamento15.

Consequências
do neoextrativismo
Uma das principais consequências sociais
do neoextrativismo e dos megaprojetos foi
o aumento expressivo de conflitos e da cri­

10
BOLÍVIA. Constitución (2009). Constitución de la República de Bolivia, 2009. Disponível em:
<http://pdba.georgetown.edu/Constitutions/Bolivia/bolivia09.html>, acesso em 31/7/2021.
11
EQUADOR. Constitución (2008). Constitución de la República del Ecuador, 2008. Disponível em:
<https://siteal.iiep.unesco.org/pt/bdnp/290/constitucion-republica-ecuador>, acesso em 31/7/21.
12
Ver mais em: <https://conaie.org/2015/12/08/alarma-gobierno-ecuatoriano-anuncia-nuevo-paquete-de-reformas-a-la-constitucion-propone-
levantar-la-prohibicion-al-ingreso-de-transgenicos/>, acesso em 31/7/21.
13
Ver mais em: <https://www.lostiempos.com/actualidad/economia/20170806/garci<a-acusa-ambientalistas-coloniales-desconocer-
necesidades-sociales>, acesso em 31/7/21.
14
Ver mais em: <https://cimi.org.br/2013/05/34820/>, acesso em 31/7/21.
15
Ver mais em: <https://www1.folha.uol.com.br/ambiente/2020/09/na-onu-bolsonaro-diz-haver-cobica-internacional-sobre-amazonia-e-acusa-
ongs.shtml>, acesso em 31/7/21.
42
minalização  dos  movimentos  sociais.
Assim, a ONG Global Witness classifica
a América Latina como a região mais vio­
lenta do mundo para o ativismo ambiental
e onde ocorreram mais de dois terços dos
assassinatos de ativistas ambientais, desde
que a dita ONG começou a publicar esses
dados, em 201216.
As resistências aos megaprojetos tem
gerado grande repressão dos governos lo­
cais. Em 2012, o governo de Ollanta Hu­ chegava  a  198,  com  297  comunidades
mala, no Peru, reprimiu violentamente a afetadas e 207 projetos envolvidos. Em
população  que  se  manifestava  contra  o janeiro de 2017, havia 217 conflitos, que
Projeto Conga, deixando dezenas de mor­ envolviam 227 projetos e 331 comunida­
tos e feridos. des. Os países com maior quantidade de
conflitos  são  Peru  (39),  México  (37),
Berta Cáceres, importante ativista indí­
Chile (36), Argentina (26), Brasil (20),
gena foi assassinada brutalmente em 2016,
Colômbia  (14)  e  Equador  (7).”
enquanto  lutava  contra  a  construção  de
(SVAMPA, 2019, p. 66)
uma hidrelétrica.
A ativista Laura Vásquez Pineda foi as­
Os territórios extrativistas adotam uma
sassinada enquanto lutava contra a mine­
configuração nova, onde problemas sociais
ração na Guatemala.
são  agravados.  Um  exemplo  dramático
Durante a construção de megaprojetos disso é que a grande presença de homens
são comuns denúncias, greves e mobiliza­ nessas regiões, onde numa sociedade extre­
ções contra as péssimas condições de tra­ mamente  machista  na  qual  vivemos,  au­
balho, como aconteceu em Belo Monte e menta consigo redes de tráfico de mulheres
Jirau [Brasil]. Em maio deste ano de 2021, e exploração sexual, inclusive de meninas
garimpeiros invadiram a terra Yanomami menores de idade.
e atiraram em indígenas, com a omissão e
incentivo do governo brasileiro.
A atividade de mineração de metais em
grande  escala  é  a  principal  geradora  de
conflitos sociais entre as empresas mine­
radoras e as lideranças comunitárias na re­
gião:
“Assim,  segundo  o  Ocmal,  em  2010
havia 120 conflitos mineiros que afeta­
vam  150  comunidades,  em  2012,  os
conflitos já eram 161, com 173 projetos
e 212 comunidades afetadas. Em feve­
reiro  de  2014,  o  número  de  conflitos

16
Ver mais em: <https://www.globalwitness.org/pt/global-witness-records-the-highest-number-of-land-and-environmental-activists-murdered-in-
one-year-with-the-link-to-accelerating-climate-change-of-increasing-concern-pt>, acesso em 31/7/21.
Altamira e as promessas furadas sobre melhorias sociais e econômicas com a
construção da hidroelétrica Belo Monte. Fotografia: Fernando Calvancanti para
o artigo de Elton Alisson, em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/belo-
monte-e-as-promessas-furadas/, 6/9/2019. / Agência FAPESP

Indígenas e população ribeirinha protestam contra os impactos ambientais,


sociais e econômicos da construção de Belo Monte

As mulheres e meninas que mais sofrem
com esse processo são as mulheres negras
e indígenas. O alcoolismo e a criminalidade
também aumentam nessas regiões. assim, ações etnocidas. Para o autor, mega­
Em  relação  aos  megaprojetos,  vemos projetos, programas e ações do Estado ou de
uma rápida reconfiguração dos territórios, entes privados que não levam em considera­
e após o ápice da etapa de construção dos ção a consulta aos povos tradicionais, repre­
empreendimentos, há poucos empregos di­ sentam uma grave ameaça à sobrevivência e
retos, deixando um legado nocivo na região autonomia sociocultural dos povos.
reconfigurada.  Estima­se  que  no  caso  da O megaprojeto de Belo Monte teve um
mineração em larga escala, a cada milhão grande impacto ambiental na região, devido
de dólares investidos, são criados entre 0,5 ao desmatamento, diminuição da vazão do
a dois empregos diretos, apenas17. Rio Xingu, destruição e alterações nos ecos­
Essas reconfigurações afetam o modo de sistemas, que impactam o modo de vida das
vida das populações locais e tradicionais, populações tradicionais e indígenas, que não
provocando etnocídio, ou seja, a morte da foram  consultados  sobre  a  construção  do
cultura e da identidade de um povo. Belo Monte, sendo um infeliz exemplo de
etnocídio aos povos indígenas19.
Viveiros de Castro18 aponta que decisões
tomadas à revelia das minorias étnicas re­ Devido  a  extensão  e  a  larga  escala  dos
sultam no ataque de seus territórios e na empreendimentos,  seja  para  plantação  de
destruição  de  seu  modo  de  vida,  sendo monoculturas, megaprojetos ou mineração
17
Colectivo Voces de Alerta. 15 mitos y realidades sobre la minería transnacional en Argentina. Buenos Aires:
El Colectivo/Herramienta, 2011.
18
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Sobre a noção de etnocídio, com especial atenção ao caso brasileiro. Museu Nacional, UFRJ, 2015.
19
A entrevista com Thais Santi consegue detalhar a tragédia que foi Belo Monte:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2014/12/01/opinion/1417437633_930086.html>, acesso em 31/7/21.
44
a céu aberto, o neoextrativismo realiza uma e  no  Chile  de  13,7%  em  2006  para
ocupação intensiva do território e conse­ 11,5% em 2009. O percentual de po­
quente  grilagem  de  terras,  redefinindo  e breza  também  caiu  no  Paraguai  (de
aprofundando  os  conflitos  de  terra  e  ge­ 58,2% em 2008 para 56% em 2009),
rando  grandes  concentrações  de  terra.  O na República Dominicana (de 44,3%
Atlas  do  Agronegócio20 mostrou  que  a em 2008 para 41,1% em 2009) e no
América Latina possui a maior concentra­ Uruguai (de 14% em 2008 para 10,7%
ção de terras no mundo, onde 51,19% das em 2009).”21
terras agrícolas pertencem a apenas 1% dos
proprietários rurais. Porém, a partir de 2014, vemos uma ten­
dência de aumento da pobreza e extrema
pobreza na região, aumentando substancial­
Para além do discurso mente  com  a  pandemia.  Além  disso,
O discurso de governos “progressistas” que Svampa (2019) mostra que estudos recentes
viam as problemáticas do neoextrativismo afirmam que a redução da pobreza não se
como contrapartidas necessárias para me ­ refletiu numa redução da desigualdade:
lhorias  gerais  na  sociedade  se  mostrou
falso. De fato, houve uma diminuição da “Pesquisas inspiradas nos estudos de
pobreza na América Latina na primeira dé­ Thomas Piketty, concentradas nos se­
cada  do  século  XXI.  Segundo  dados  da tores  super­ricos,  que  consideram  as
CEPAL [Comissão Econômica para Amé­ declarações fiscais das camadas mais
rica Latina e o Caribe]: rica  da  população,  mostram  que,  em
“A queda da pobreza na Região é clara países como Argentina, Chile e Colôm­
quando  se  é  observada  a  tendência bia, 1% da população detém entre 25%
geral entre 2002­2009. Por exemplo, e 30% da riqueza (Kessler, 2016, p.26).
na Argentina  caiu  de  21%  em  2006 Outras pesquisas, realizadas no Brasil,
para  11,3%  em  2009,  no  Brasil  de um dos países mais desiguais da região,
25,8% em 2008 para 24,9% em 2009 questionaram  a  diminuição  da  desi­
20
Atlas do Agronegócio, 2018. Disponível em <https://br.boell.org/sites/default/files/atlas_agro_final_06-09.pdf>, acesso em 31/07/21.
21
CEPAL, https://www.cepal.org/pt-br/comunicados/pobreza-america-latina-cai-2010-retoma-tendencia-pre-crise. Acesso em 31/7/2021).

Fotografia de “Neoextractivismo y violencia de Estado en América Latina”,


Aldo Orellana López, disponível em: https://cronicon.net/, 26/5/2021
gualdade entre 2006 e 2012. Os traba ­
lhos  do  Instituto  de  Pesquisa  Econô­
mica (Ipea) mostram um aumento da
desigualdade,  já  que  em  2012  o  1%
mais rico detinha 24,4% da renda do
país, sendo que em 2006 essa porcen­
tagem era de 22,8%. Entre os 10% mais
ricos, a renda passou de 51,1% a 53,8%
no  mesmo  período  (Zibechi,  2015).
Assim, ainda que a pobreza extrema no
Brasil tenha se reduzido, e o consumo,
se expandido, as desigualdades persis­
tem  e  inclusive  aumentam  ligeira­
mente.” (SVAMPA, 2019, p. 139)

Isso ocorreu porque não houve mudanças
estruturais na sociedade, e a inclusão social
se  deu  principalmente  pelo  consumo.  Os
governos  “progressistas”,  não  querendo
mexer no interesse das burguesias nacionais
e internacionais, não realizaram nenhuma
reforma mais profunda na sociedade, como
a tributária ou agrária, para dar dois exem­
plos.
Apesar de um discurso populista, esses
governos contavam com a sorte para a ma­
nutenção da alta dos preços das commodi­
ties e assim manter as políticas de inclusão
social. Fotografia da Revista Norte para entrevista com Félix Díaz,
após a morte de um jovem Qom, 8/1/2015.
Houve assim, um aprofundamento da de­ Disponível em: https://revistanorte.com.ar
pendência  externa,  inclusive  com  uma
orientação dos mercados latino­americanos biental, como é o caso do governo Bolso­
à China. Além da falta de reformas mais es­ naro.
truturais, não há nessas lideranças e parti­ Porém  como  demonstrado  neste  texto,
dos “progressistas” uma vontade genuína não é possível ter ilusões em governos “pro­
de mudança de sociedade, ou seja, em dire­ gressistas” em relação a uma política am­
ção ao socialismo. biental consequente com os perigos que se
Apesar do discurso, esses governos ser­ avizinham.
viram e continuam servindo aos interesses Independente  do  espectro  político,  ne ­
das burguesias nacionais e internacionais. nhum  governante  no  capitalismo  trará  as
E em troca disso, a degradação ambiental mudanças necessárias. A mudança na socie­
continua  e  a  classe  trabalhadora  sofre  as dade  partirá  daqueles  que  lutam  por  um
consequências sociais dessas políticas. mundo em equilíbrio com a natureza e so­
O ascenso de governos de direita e ex­ cialmente justo: os povos indígenas, as po­
trema direita aprofundam a degradação am­ pulações tradicionais e a classe trabalhadora.
46

Modo de vida e a crise ambiental


Trotsky escreve, em 1924, seis anos após a revolução de outubro na URSS,
Questões do Modo de Vida, onde diz que o ser humano não vive só de
“política” e que a atenção naquele momento deveria se voltar para os
detalhes, às questões culturais, aos comportamentos, à educação, ou seja,
ao modo de vida das massas proletárias. Dizia que era necessário refletir
sobre o modo de vida e os costumes para transformá-los. Entretanto, antes
de tudo afirma que para construir um novo modo de vida é preciso mudar
as bases econômicas e materiais da sociedade, questão que já estava resolvida
na URSS naquele momento.

Lena Souza e Jeferson Choma

A
tualmente, diante da crise ambien­
tal que vivemos, a discussão sobre
o  modo  de  vida  tem  ganhado
muita importância. E a pergunta que está
colocada  é  se  é  possível  estabelecer  um
modo de vida que respeite os limites dos re­
cursos  naturais  dentro  do  próprio  capita­
lismo.  Tomando  como  base  o  texto  de
Trotsky, acreditamos que sua obra pode ter
enorme serventia sobre o tema.

O modo de vida capitalista cibidos por Marx e Engels, como atestam


e a preservação dos certas partes do “O Capital” e do livro “A
recursos naturais Situação da Classe Trabalhadora na In­
O  capitalismo  constrói  o  seu  modo  de glaterra”.
vida  baseado  na  produção  e  no  consumo Para a sobrevivência do sistema, no ca­
permanente de mercadorias, uma vez que o pitalismo o consumo é sinônimo de feli­
consumo desenfreado é a razão da manu­ cidade  e  o  prestígio  está  diretamente
tenção do próprio sistema. Isso explica, em ligado à capacidade de adquirir mais e
parte, a razão da grande explosão das me­ novas mercadorias. O consumo significa
trópoles  urbanas  que  serviram  historica­ felicidade e bem­estar e a conquista de
mente ao capital para concentrar a força de um nível superior na concorrência. Para
trabalho, a produção e o consumo das mer­ isso valores como o individualismo e a
cadorias. O desdobramento desse processo competição são reforçados em todos os
foi enormes consequências sociais e tam­ âmbitos na formação de nossa personali­
bém ambientais que não passaram desper­ dade.
47
Junto  com  estabelecer  esses  valores As consequências ambientais da obsoles­
como base do nosso modo de vida, estra­ cência planejada são devastadoras. Imagine
tégias publicitárias e a obsolescência dos a quantidade de lixo eletrônico, como celu­
produtos (programada, perceptiva e tecno­ lares, computadores, baterias e seus inúme­
lógica) nos mantém presos a uma lógica de ros componentes tóxicos que seguem para
consumo que garante a aceleração do ciclo “lixões”,  isto  é,  são  descartados  e  sem  o
de acumulação do capital, ou seja, mais ra­ menor cuidado, mundo afora. Mundo afora
pidez na produção e consumo para concre­ não. A grande maioria desses componentes
tizar o lucro. é descartada em países pobres e miseráveis,
Com essa lógica o capitalismo não pode como as nações africanas. A ONU estima
conviver com a produção de bens duráveis que 80% do lixo eletrônico do mundo vão
e que possam ser reutilizáveis, por isso os parar nesse continente. Além disso, há um
bens  chamados  “duráveis”  foram  tendo enorme desperdício de matérias­primas na
uma diminuição de seu tempo de vida, o obsolescência  planejada.  Matéria­prima
que  é  chamada  a  obsolescência  progra­ que geralmente é extraída desses países pe­
mada. Como isso não é suficiente, outro riféricos do sistema com enormes conse­
método utilizado é a obsolescência percep­ quências  ambientais  a  la  Brumadinho
tiva, na qual se utiliza o recurso da mu­ (MG).  Imagine  a  enorme  quantidade  de
dança do design dos produtos, com novos aço, ferro e plástico que são usados para a
retoques visuais que leva a uma percepção fabricação de celulares que duram apenas
de que um modelo se tornou ultrapassado, um ano ou de automóveis cuja vida útil é
colocando novos modelos no mercado e estimada em cinco ou seis anos. Sem falar
induzindo à sua compra.  E para comple­ que, para baratear cada vez mais as merca­
mentar vai se adicionando a tecnologia em dorias,  o  capital  instala  indústrias  nesses
conta­gotas  para  que  uma  pequena  mu­ países da periferia do sistema para explorar
dança de capacidade tecnológica no pro­ mão de obra barata e recursos, como ocorre
duto  possa  obrigar  o  seu  descarte  e em Bangladesh, China, Índia, Vietnã, entre
reposição por outro novo. muitos outros países.
Ilustração: islaBit, 3/8/2021. https://www.islabit.com

A
s consequências da
obsolescência
planejada são
devastadoras para o
meio ambiente. zx
Performance
consumismo.
Fonte:
Yandex Pictures.

A chamada “liberdade
de consumo” no
capitalismo, na verdade,
significa uma prisão
milimetricamente
calculada com muitos
algoritmos e alimentada são alcançadas por apenas 20% da socie­
pela propaganda. zx dade, que também padece dos mesmos pro­
blemas  de  saúde  provocados  pela
Além  disso,  a  sociedade  de  consumo necessidade de estar sempre alerta, em es­
construída pelo capitalismo se utiliza cada tado de ansiedade para manter­se no topo da
vez mais da inteligência artificial. Essa tec­ cadeia de prestígio.
nologia permite associar uma simples busca Para os pobres, que são a grande maioria
que você faz na internet sobre um determi­ a compra de um produto com maior tecno­
nado produto ao seu perfil nas redes sociais. logia, mais qualidade e melhor aparência é
É  por  isso  que  surgem  anúncios  quando sinônimo de conquista de prestígio e acei­
acessamos o computador ou celular. Essa tação  em  camadas  superiores.  Mas  essa
associação dos nossos dados pessoais, pre­ maioria da população apenas consegue ter
ferências de consumo (e até mesmo de lei­ acesso a mercadorias de menor qualidade,
turas  ou  participação  de  grupos  virtuais) na maioria das vezes imitações dos produ­
procura nos integrar em determinados ni­ tos sonhados, e que são mais rapidamente
chos de consumo. descartados.  Em  geral  o  consumo  de  um
Os  teóricos  do  capitalismo  dizem  que produto dos sonhos, para esse setor, é colo­
isso significa liberdade de mercado, conco­ cado como objetivo de vida e se passa anos
rrência, mas essa chamada “liberdade” na de trabalho para adquiri­lo. Muitas vezes,
verdade significa uma prisão milimetrica­ quando consegue, antes mesmo de terminar
mente calculada, com muitos algoritmos e de pagar, o perde ironicamente em uma en­
alimentada pela propaganda a favor do con­ chente ou deslizamento pelo qual é atingido
sumo. Significa também a contaminação de como consequência do desequilíbrio am­
rios, solos, do ar e muito, mas muito desper­ biental.
dício. Significa, por fim, empurrar toneladas E, na realidade o sistema capitalista é ba­
de lixo para os países da periferia do sistema seado numa lógica tão absurda e irrespon­
capitalista, evidenciando uma “divisão in­ sável que se fosse possível estender o nível
ternacional da crise ambiental”. de  consumo  desses  20%  ou,  o  chamado
Mas isso também tem consequências psi­ “sonho americano de consumo”, para toda
cológicas. Com esse modo de vida capita­ a população, nos moldes da produção no
lista  vêm  as  doenças  relacionadas  com  a sistema capitalista, seria necessário recur­
frustração e o estado permanente de ansie­ sos de mais 5 planetas terra. De acordo com
dade, pois a grande maioria não consegue a WWF, a quantidade de combustíveis fós­
chegar ao padrão de consumo idealizado. seis consumida atualmente aumentaria 10
Essa  qualidade  e  quantidade  de  consumo vezes e a de recursos minerais, 200 vezes.
49
Por isso para sustentar esse modo de vida De acordo com Trotsky: 
também é preciso instituir uma visão de uma
natureza apartada, colocando a questão am­ “É  o  problema  do  modo  de  vida  que
biental, a utilização dos recursos naturais e o nos  mostra,  mais  claramente  do  que
seu esgotamento como algo muito abstrato e qualquer outra coisa, em que medida
separado  da  realidade  de  cada  um.  Nesse um indivíduo isolado se mostra ser ob­
marco, toda “individualização” do problema jeto dos acontecimentos e não o seu su­
ambiental, isto é, as ideologias que jogam o jeito.  O  modo  de  vida,  isto  é  o  meio
problema na conta no indivíduo e buscam so­ ambiente e os hábitos cotidianos, ela­
luções “individuais” para solucionar a crise bora­se mais ainda do que a economia
ecológica, ganham bastante serventia ao sis­ ‘nas costas das pessoas’.”
tema,  posto  que  reforçam  a  alienação  dos
seres humanos com o produto do seu trabalho Portanto, pensar a relação do sistema eco­
e com a própria natureza. nômico com a natureza, e a forma como o
Isso é necessário para impor um ritmo que ser humano se relaciona com ela no contexto
não o da natureza, mas do capital impulsio­ do modo de produção capitalista é necessário
nando a utilização irracional dos recursos na­ para entender como chegamos à crise am­
turais  e  provocando  consequentemente  a biental que vivemos e sobre as perspectivas
crise ambiental, pois a utilização dos recursos de superá­la. E para isso é preciso pensar e
naturais não é compatível com o tempo ne­ elaborar conscientemente um modo de vida
cessário para a sua recomposição. que respeite os limites dos recursos naturais.

A
frustração e o estado permanente de ansiedade muitas vezes têm
a ver com o modo de vida capitalista, quando não se conseguem
alcançar os padrões de consumo idealizados. zx

Time Square, Nova York,


concentração de grandes
lojas de famosas marcas
internacionais
50
É possível construir um modo fundamento da crise ambiental. Na reali­
de vida que mude a relação dade a suposta produção sustentável foi in­
corporada  pelo  próprio  capitalismo  e
da sociedade com a natureza tornou­se mais uma forma de marketing
no sistema capitalista? que  é  utilizada  pelas  empresas  para  au­
Com a crise ambiental crescendo a olhos mentar o consumo, através da propaganda
vistos nas últimas décadas uma parte dos de que seus produtos têm certificações am­
ricos e administradores do capitalismo as­ bientais como selo ecológico, selo verde e
sumiram um discurso enganoso baseado no outras.  É comum ver propagandas na TV
desenvolvimento sustentável dentro do pró­ de empresas automotivas, mineradoras e
prio sistema. até mesmo petroleiras vendendo uma su­
Essa definição surgiu na Comissão Mun­ posta imagem de “sustentabilidade ecoló­
dial  sobre  Meio Ambiente  e  Desenvolvi­ gica”.
mento,  criada  pelas  Nações  Unidas  em Para dar fôlego a essa grande mentira,
1972, na Conferência sobre Meio Ambiente os administradores do sistema capitalista,
em Estocolmo. através de organismos internacionais cria­
Em 1987, o Relatório Brundtland, forma­ dos para discutir a questão ambiental, co­
lizou o termo e em 1992, na ECO­92 esse meçaram  a  realizar  cúpulas  ambientais
conceito definido como “satisfazer as ne- onde são estabelecidas metas de emissões
cessidades presentes, sem comprometer a de carbono para os países. Outra fraude do
capacidade das gerações futuras de suprir sistema capitalista que também já foi per­
suas próprias necessidades” tornou­se  a cebida e movimentos como o “Fridays for
principal  discussão  com  a  elaboração  da future” tem questionado a aplicação dessas
Agenda 21, ou seja, o estabelecimento do metas.
compromisso de cada país acerca dos pro­ Diante dessa realidade, outras alternati­
blemas  socioambientais.  Também  consa­ vas que se auto intitulam “fora do poder”
grou  o  conceito  de  desenvolvimento têm ganhado muitos adeptos nos últimos
sustentável, amplamente utilizado por go­ anos e estão relacionadas com estimular
vernos e grandes empresas capitalistas. um modo de vida mais sustentável,
No entanto, como não poderia defendendo ações individuais para
deixar  de  ser,  esse  caminho enfrentar  a  crise  ambiental.
está cada vez mais desmorali­ Dessa  forma,  algumas  pessoas
zado, pois embora tenha sido assumem um modo de vida al­
apresentado na década de 70 não ternativo, individualmente ou
modificou a tendência ao apro­ em grupos, para praticar e mos­
trar uma saída à crise ambiental.
Nesse  contexto  se  insere  desde  a
economia solidária, comércio justo
e  solidário,  o  Lowsumerism (ser
mais consciente e consumir menos),
até  reciclar,  consertar,  trocar,  etc.
Todo esse movimento se baseia em
que a mudança tem que vir da cons­
ciência de cada um.
Tecnologia e design a conta gotas
51
Infelizmente, ainda que esses movimen­ riais e econômicas da sociedade. Tem que
tos partam de uma questão real e necessá­ fazer parte da luta da classe trabalhadora
ria,  que  é  a  preocupação  com  a  crise desde já.
ambiental e com o futuro da humanidade, a Aliás, o surgimento de tecnologias sus­
verdadeira causa não se encontra no âmbito tentáveis, como a agroecologia ou a agri­
individual. cultura sintrópica apontam para um modelo
Como diz Trotsky em Questões do Modo de  agricultura  muito  mais  racional  e  em
de Vida para que haja mudanças de hábitos equilíbrio com os sistemas naturais do que
de comportamento e de um modo de vida os modelos voltados à produção de commo­
em sua totalidade é necessária uma revolu­ dities. Assim como existem projetos urba­
ção social que destrua as bases econômicas nos que podem servir para auxiliar no fim
do modo de vida capitalista, isto é, construir da dicotomia entre a cidade e o campo. Ou
novas relações de produção em que a natu­ ainda, o desenvolvimento atual de tecnolo­
reza seja transformada em um bem comum gias que diminuam o uso de combustíveis
a toda humanidade, e não apenas a uma pe­ fósseis e permitam uma transição para ou­
quena parte que destrói o planeta e ganha tras matrizes energéticas. Podemos também
muito dinheiro com isso. De acordo com citar a necessária ampliação massiva da re­
Trotsky “não se pode racionalizar o modo ciclagem, um tema que fez o próprio Marx
de vida, isto é, transformá-lo segundo as dedicar um capítulo no O Capital.
exigências da razão, se não se racionaliza Tudo isso somado a luta contra a destrui­
a produção, visto que o modo de vida tem ção e mercantilização da natureza são es­
suas raízes na economia”, ou seja, na apro­ senciais  para  a  construção  de  qualquer
priação privada ou coletiva dos recursos na­ sociedade futura pautada no fim da explo­
turais. ração do trabalho e da natureza. Afinal, fica
Isso não significa que para Trotsky, a luta mais difícil construir o socialismo em um
relacionada às questões do modo de vida planeta devastado pelas forças destrutivas
tenha que ser relegada e menosprezada até do capital. Mas não é só isso. Só em uma
que se possam transformar as bases mate­ sociedade,  na  qual  a  reprodução  humana

Lixo eletrônico
52
seja o central (e não da mercadoria), pode E, ao mesmo tempo é preciso que avan­
fazer florescer de verdade modos de vida cemos em um programa, inclusive nos ba­
mais ecologicamente sustentáveis, sintrópi­ seando  em  várias  experiências  existentes,
cos, pautados na colaboração (e não domi­ que contemple um modo de vida compatível
nação) dos processos naturais. com a utilização e preservação dos recursos
Afinal, a construção de uma nova socia­ naturais em uma sociedade socialista, que é
bilidade e de um novo modo de vida será a única que pode estabelecer as bases para
muito mais fácil se ela estiver apoiada em uma relação sustentável com a natureza.
elementos que já existem no nosso mundo,
mas  que  são  marginalizados  pelo  capita­
lismo.
Mas é imprescindível entender que den­
tro do sistema capitalista qualquer conquista
nesse  campo  vai  ser  incompleta,  parcial,
desvirtuada e provisória, já que o sistema
capitalista é incompatível com as mesmas.
E isso fica evidente quando vemos, no
caso da questão ambiental, vários movimen­
tos serem incorporados pelo sistema, trans­
A mineração causou a perda de 11.670 km² da floresta amazônica
formando  alguns  hábitos  de  preservação entre os anos de 2005 e 2015. Foto: Felipe Werneck – Ibama
ambiental em mais um nicho de mercado
capaz  de  fazer  as  pessoas  manter  o  con­

P
sumo. Um exemplo concreto no Brasil é o ara atingir mudanças
consumo de alimentos orgânicos que é res­
tringindo a uma pequena parcela da popu­
profundas no modo de
lação que tem condições financeiras para vida é necessário fazer
adquirir  esse  tipo  de  alimento  que  é  bem uma revolução social que
mais caro enquanto que a maioria, o amplo
consumo  é  de  alimentos  produzidos  com destrua as bases
agrotóxicos, muitos deles proibidos em vá­ econômicas capitalistas. zx
rios países. A maior parte do povo pobre não
tem a opção de escolher entre um alimento
Eco92 no Rio de Janeiro – de Cúpula em Cúpula as metas
envenenado ou não. nunca foram cumpridas
Assim todas as tentativas de modificar o
modo de vida no capitalismo vão ser insu­
ficientes, pois é impossível concorrer com
a máquina do sistema montada para estabe­
lecer um modo de vida dirigido pelo mer­
cado.
Podemos concluir que é necessário que
os movimentos ou indivíduos que identifi­
cam no atual modo de vida as causas dos
problemas ambientais avancem para a cons­
ciência da necessidade de destruir as bases
econômicas da sociedade capitalista.
Movimento Fridays for Future,
em Berlim, na Alemanha

A preservação dos ecossistemas é condição essencial para a vida. zx

Se tomarmos como referência o pensa­ esses regimes de base comum são ameaça­
mento de Trotsky, a transformação revolu­ dos  pelo  avanço  do  capitalismo,  como
cionária das bases econômicas é a primeira vemos nas investidas do governo Bolsonaro
etapa da mudança revolucionária da socie­ contra as terras indígenas.
dade capitalista e a tomada do poder polí­ A construção de uma sociedade socialista
tico  pelo  proletariado  é  a  condição exige  a  criação  e  o  florescimento  de  um
preliminar para a transformação das tradi­ novo o modo de vida para criar uma socie­
ções conservadoras nas relações sociais. A dade  ambientalmente  sustentável.  Para  a
partir daí, é necessário todo um lento pro­ superação da crise socioambiental é preciso
cesso de autoeducação para estabelecer um a construção de uma outra lógica de pro­
novo modo de vida. dução e de consumo na sociedade, pautada
A história da humanidade e a própria re­ em uma relação racional com a natureza.
alidade atual mostram que uma relação co­ Para isso é preciso mudar as bases econô­
letiva ou comunitária com a natureza, isto micas e materiais que permitirá uma socie­
é, sem a presença da propriedade privada, dade socialista desenvolver uma nova ética
é muito mais eficiente na preservação dos e um modo de vida que respeite os limites
ecossistemas. da natureza, superando a alienação produ­
É justamente por esse motivo que terri­ zida pela propriedade privada e os valores
tórios indígenas servem como exemplo de estabelecidos em base a essa alienação.
preservação  ambiental  no  Brasil,  saindo Sem essa condição, como diz Trotsky “é
em  imagens  de  satélite  como  “manchas impossível pensar numa verdadeira racio-
verdes” de florestas preservadas em meio nalização do modo de vida das massas po-
à devastação do agronegócio. Mas mesmo pulares”.
54

Stalinismo e a catástrofe
ecológica soviética
Neste momento da história em que o capitalismo, em seu afã por acumulação,
promove uma catástrofe ambiental global inédita e inaugura sua própria época
geológica, o Capitaloceno1, a defesa de uma transformação socialista da
sociedade ganha espaço e se apresenta como alternativa à crise ecológica
que ameaça a humanidade.

Jeferson Choma

N
o entanto, ecologistas burgueses e negam a fazer uma crítica severa e profunda
defensores  de  um  programa  de sobre a “pegada ambiental” soviética. Uma
“desenvolvimento  sustentável” parte,  felizmente  minoritária,  defende  o
que  procura  reformar  o  capitalismo  se­ modelo  soviético  e  segue  o  identificado
meiam uma confusão deliberada: apresen­ como “socialista”. É o caso do fenômeno
tam as graves e enormes crises ambientais do neoestalinismo, um tipo de corrente te­
na  União  Soviética  como  um rraplanista existente no interior da esquerda
exemplo  da  “insustentabili­ que nega fatos e propaga mentiras.
dade  ecológica”  do  socia­
lismo. Por outro lado, muitos
ativistas socialistas (e mesmo Usina de Chernobyl
alguns  ecossocia­
listas),  lamen­
tavelmente,  se

1
O termo foi apresentado
pelo historiador ambiental e
geógrafo norte-americano
Jason W. Moore, que
preferia usar Capitaloceno
em vez de Antropoceno.
Segundo ele, foi o
capitalismo que criou a
crise ecológica global que
está nos levando a uma
mudança de era geológica.
55
Na realidade, a URSS foi palco de imen­
sas catástrofes ecológicas, muitas delas lis­
tam entre as mais graves do século XX, e
certamente sua poluição industrial contri­
buiu  para  as  mudanças  climáticas.  Mas
isso não foi resultado de uma suposta “in­
sustentabilidade ecológica” do socialismo,
e sim de um processo que sufocou a revo­
lução e instituiu uma ditadura burocrática,
o stalinismo.

A
Sob a direção de Stalin, tragédia de Chernobyl
essa contrarrevolução ser­ é certamente o maior Usina de Chernobyl
viu para que uma casta de
burocratas  (dirigentes, símbolo destrutivo
materiais.  Por  isso,
cumpre  cegamente  as
funcionários do partido e provocado pelo planejamento ordens  da  hierarquia
do  Estado)  mantivesse
seus  privilégios  e  benes­
burocrático stalinista. zx burocrática, oculta des­
perdícios  e  fracassos,
ses, eliminando lideranças corrompe outros burocratas administradores
bolcheviques e mesmo cientistas que não e explora a força de trabalho.
estivessem  de  acordo  com  seus  planos.
Essa casta burocrática se apropriou do apa­ A lógica do planejamento burocrático é de
rato do Estado soviético, do Partido Comu­ curto prazo. No afã de se conquistarem as
nista e, ao final, restaurou o capitalismo. grandes metas e disputar privilégios na hie­
rarquia partidária (sejam promoções no inte­
Uma planificação democrática e centra­ rior  do  aparato,  um  carro  privativo,  uma
lizada da economia que levasse em conta dacha [casa de campo ou de praia] para fe­
uma  relação  sociometabólica  racional  e riados, mercados especiais com bens de luxo,
equilibrada com o meio ambiente nunca educação especial ou quartos privativos em
existiu na URSS. Pelo contrário, o que vi­ hospitais), ignorava­se completamente a ca­
gorou foi seu avesso, o planejamento bu­ pacidade de recuperação da natureza e as es­
rocrático  marcado  por  uma  profunda pecificidades  locais.  Por  isso,  os  efeitos
ideologia produtivista e industrialista, sem ambientais,  tanto  na  agricultura  soviética
a  menor  preocupação  com  o  meio  am­ quanto na indústria, foram catastróficos.
biente.
Numa planificação burocrática, os pro­ Seguindo a pegada ecológica
dutores e consumidores estão apartados de
qualquer discussão sobre um plano econô­ A  tragédia  de  Chernobyl  é  certamente  o
mico. O planejamento é monopólio de um maior  símbolo  destrutivo  provocado  pelo
grupo de especialistas que assumem fun­ planejamento burocrático stalinista. Um nú­
ções administrativas e de chefia. A respon­ mero  incalculável  de  pessoas  foi  afetado.
sabilidade por sua execução fica nas mãos Ecossistemas, o solo, a água foram profun­
dessa camada. A decisão é vertical e dita­ damente contaminados. Estima­se que a re­
torial, e todo o potencial produtivo do país gião afetada pelo acidente nuclear continuará
deve cumpri­la, mesmo que implique de­ inabitável  por  até  20  mil  anos.  Mas  Cher­
cisões irracionais e opressivas. O burocrata nobyl não é o único símbolo da “pegada eco­
administrador da fábrica procura manter lógica  soviética”.  Há  outros  menos
com unhas e dentes seu posto e vantagens lembrados.
56
Na agricultura, o planejamento burocrá­ Na  indústria,  o  desperdício  de  matéria­
tico resultou em consideráveis investimen­ prima foi prática comum em face da pressão
tos na construção de canais de irrigação que da burocracia pelo cumprimento de metas.
comprometiam os cursos naturais de rios As plantas fabris careciam de equipamentos
inteiros. A terra cultivável sofreu com pro­ para controlar a contaminação ambiental, e
cessos erosivos ou salinização. as crianças que nasciam próximas a fábricas
O Mar de Aral é um dos grandes símbo­ de alumínio tinham sete vezes mais probabi­
los da catástrofe ecológica provocada pelo lidade de padecer de raquitismo do que os jo­
planejamento  burocrático.  Localizado  no vens das zonas mais limpas. O problema da
Uzbequistão,  na  Ásia  Central,  o  Mar  de poluição do ar, da água e do solo foi tão crô­
Aral, este que já foi o quarto maior lago do nico que chegou a ser reconhecido pelos pró­
mundo, com mais de 68 mil quilômetros prios administradores soviéticos da época.
quadrados e uma próspera zona pesqueira, “A República está em uma situação catastró­
possui  hoje  apenas  10%  do  seu  tamanho fica”, explicava o presidente do Comitê da
original. Desde os anos 1960, projetos de Federação Russa para a Proteção da Natureza
irrigação formulados pelos soviéticos des­ em  abril  de  1989.  Segundo  seu  relato,  as
viaram os rios que o alimentavam para re­ cinco regiões do país estavam à beira de um
alizar projetos de irrigação para a indústria desastre ecológico e viver em uma de cada
de algodão. Assim, foram desviados os dois sete cidades da Rússia era teoricamente im­
maiores rios da região para transformar a possível2.
Ásia Central na maior região produtora de No Leste da Europa a situação era seme ­
algodão do mundo. Por algum tempo, o Uz­ lhante, senão pior, frente ao papel subalterno
bequistão registrou um enorme crescimento desses países à URSS. O cinturão do aço e do
econômico,  mas  pouco  depois  os  efeitos carvão, que se estendia desde o sul da Ale­
ecológicos começaram a ser sentidos. manha Oriental, passando pelo norte da Tche­
Logo,  a  diminuição  do  lago  afetou  o coslováquia  até  o  sul  da  Polônia,  era  uma
clima e diminuiu drasticamente as verdadeira trilha de devastação.
chuvas. A vegetação secou e os pe­
quenos lagos que existiam no en­
torno também. Para compensar a
ineficácia das suas práticas agríco­
las,  os  soviéticos  recorreram  ao
uso  massivo  e  descontrolado  de
produtos  químicos  tóxicos.  Mas,
na medida em que o Mar de Aral
foi secando, resíduos tóxicos que
eram despejados nos rios e acaba­
vam  sedimentando  no  fundo  do
lago  se  transformaram  em  uma
poeira envenenada que era carre­
gada pelos ventos até campos fér­
teis que se encontravam há mais de
mil quilômetros de distância.
Colapso do Mar Aral em imagens de satélite

2
FESHBACH, Murray; FRIENDLY, Alfred Jr. “Ecocidio en la antigua URSS”. Política Exterior, vol. 7, n.o. 31, 1993, p. 183.
Até hoje, a maior parte dos arquivos do campo de testes nucleares Semipalatinsk continuam “confidenciais”. Os testes faziam-se com fines militares
e industriais. O lago atómico se produz depois da explosão de janeiro de 1965 e ficou como legado nuclear após o fechamento do campo em 1989

Em 1990, mais de 15 milhões de pessoas de Semipalatinsk, o principal do programa
viviam nessa área, onde cerca de 40% das nuclear da União Soviética, com aproxima­
florestas foram danificadas pela chuva ácida. damente  18  mil  quilômetros  quadrados.
Na Polônia a fumaça das usinas siderúrgicas, Quando foi criado em 1947, os burocratas
centrais elétricas e fábricas de produtos quí­ de Moscou diziam que a região era prati­
micos castigava as cidades da Silésia, onde camente  desabitada.  No  entanto,  havia
homens de 30 e 40 anos morriam de câncer, aproximadamente 700 mil pessoas vivendo
doenças cardíacas e enfisema3. em seu entorno. Por quatro décadas elas
foram expostas à radiação dos testes nu­
No século passado, a URSS foi o segundo cleares. A região registrou uma explosão de
maior  produtor  mundial  de  emissões  de doenças, incluindo inúmeros casos de cân­
gases de efeito estufa. As emissões totais do cer, leucemia, crianças que nasciam sem al­
país em 1988 foram cerca de 79% do total guns membros, depressão e suicídios.
dos EUA. No entanto, o PIB soviético era
apenas por volta de 54% o dos Estados Uni­ Na década de 1980, bem no início das
dos. Ou seja, a União Soviética gerava 1,5 revoltas populares contra a ditadura buro­
vezes mais poluição do que os EUA por uni­ crática soviética, a poluição do meio am­
dade de PIB4. Aqui se percebe que o “socia­ biente esteve no centro da pauta de muitos
lismo” soviético de Stalin, confinado “em protestos. Em várias pequenas e médias ci­
um só país”, na verdade era apenas a socia­ dades, a luta contra a poluição do ar e das
lização da miséria. Uma industrialização li­ águas serviu como catalisadora da indigna­
mitada, arcaica e poluidora.   ção contra o regime. Não por acaso, entre
1988­1989, os mineiros em greve da Ucrâ­
A contaminação por radiação também não nia e da Sibéria deram prioridade à purifi­
se  restringiu  ao  caso  de  Chernobyl.  Entre cação  do  meio  ambiente  em  sua  lista  de
1949 e 1989, a URSS detonou cerca de 456 reivindicações  políticas.  Nas  repúblicas
bombas atômicas no chamado Polígono do não russas, o ecologismo se fundiu à luta
Cazaquistão. Ali ficava o Campo de Testes pela autodeterminação nacional de inúme­

ma planificação democrática e centralizada da economia que levasse


U em conta una relação sociometabólica racional e equilibrada con o
meio ambiente nunca existió na URSS. zx
3
Uma reportagem dessa época pode ser lida aqui: https://www.nytimes.com/1990/04/29/magazine/eastern-europe-the-polluted-lands.html
4
SHAHGEDANOVA, María; BURT, Timothy P. New data on air pollution in the former Soviet Union, Global Environmental Change, Vol. 4, 1994,
pp. 201-227.
58
ras etnias oprimidas que expressaram uma Podyapolski  relembra  o  encontro  com
ira generalizada contra medidas para explo­ Lenin:
ração dos recursos locais à custa do seu ha­ “Depois de me fazer algumas perguntas
bitat. As decisões tomadas facilmente por sobre a situação militar e política na re­
técnicos e burocratas em Moscou já não po­ gião de Astrakhan, Vladimir Ilich expres­
deriam mais ser executadas com a mesma sou  sua  aprovação  por  todas  as  nossas
tranquilidade de outrora. iniciativas, em particular aquela relativa
ao projeto para o zapovednik. Ele afirmou
Lenin e a conservação que a causa da conservação era impor­
tante,  não  apenas  para Astrakhan,  mas
ambiental também para toda a república.”6
À luz do que foi a catástrofe ambiental pro­ Podyapolski sentou­se e redigiu uma re­
vocada pelo planejamento burocrático in­ solução que acabou sendo aprovada pelo
dustrialista  soviético,  parece  até  difícil governo  soviético  em  setembro  de  1921,
acreditar que a URSS foi uma das nações com o título “Sobre a proteção da natureza,
pioneiras do conservacionismo ambiental jardins e parques”. Uma comissão foi esta­
no século XX. belecida para supervisionar a implementa­
Mas isso ocorreu, e foi durante os pri­ ção  das  novas  leis,  incluindo  um
meiros anos da Revolução Russa, quando geógrafo­antropólogo,  um  mineralogista,
Lenin ainda estava vivo. Praticante de mon­ dois zoólogos e um ecologista que criaram
tanhismo e amante da natureza, o líder bol­ o zapovednik da floresta em Astrakhan.
chevique  ficou  sensibilizado  quando  um Em seguida, foi criado o zapovednik de
jovem agrônomo chamado Nikolai Podya­ Ilmenski, uma região que incluía minerais
polski o procurou para a aprovação de um preciosos. 
novo zapovednik, como são conhecidas as
reservas naturais soviéticas.
Podyalpolski pediu a criação do "zapo­
vednik" que conservacionistas russos de­
fendiam muito antes da revolução. Alguns,
inclusive, já haviam sido criados antes da
revolução. Neles não poderia haver explo­
ração  econômica,  nem  mesmo  turística,
apenas observações científicas.
O jovem agrônomo queria criar uma des­
sas zonas de proteção ambiental no delta do Após a revolução de 1919, Lenin ampliou a criação de zapovednik
Rio  Volga,  ameaçado  pela  degradação. por toda URSS
Lenin imediatamente concordou e sugeriu
a ele que elaborasse, no dia seguinte, um Naquele momento, os bolcheviques en­
projeto de decreto sobre proteção da natu­ frentavam uma guerra civil, a economia do
reza,  um  documento  bastante  importante país estava em frangalhos, e o país preci­
que  Lenin  considerou  “um  assunto  ur­ sava  desesperadamente  de  recursos.
gente”5. Mesmo sabendo que em Ilmenski haviam

5
SHTILMARK, F. History of the Russian Zapovedniks 1985-1995, 2003.
6
WEINER, Douglas R. Modelos da Natureza: Ecologia, Conservação e Revolução Cultural na Rússia Soviética, 2000.
Reserva Natural (zapovednik) de Astrakhan

muitos metais para exploração, Lenin pen­ “History of the Russian Zapovedniks, 1895-


sava  que  a  região  deveria  ser  preservada 1995” (História dos Zapovedniks da Rús-
para  fins  de  pesquisa  científica.  A  com­ sia, 1895-1995),  analisa  com  minúcia  o
preensão  científica  pura  teve  prioridade período em que Lenin foi entusiasta das po­
sobre a acumulação de capital. líticas  territoriais  de  conservação  natural
As atitudes ecológicas de Lenin também defendidas por cientistas e ecologistas so­
se  manifestaram  logo  após  a  tomada  do viéticos. O autor comenta que a criação dos
poder  pelos  bolcheviques,  quando  o  go­ zapovedniks em vastas áreas da URSS só
verno emitiu um decreto "Sobre a terra" em poderia ocorrer sob o poder dos Sovietes. A
1918,  declarando  que  todas  as  florestas, abolição da propriedade privada dos recur­
águas e minerais eram propriedade do Es­ sos  naturais  e  a  nacionalização  da  terra
tado, um pré­requisito para uma relação ra­ foram medidas fundamentais. No entanto,
cional e de equilíbrio com a natureza. como ressalta, é preciso dar crédito aos es­
forços extraordinários de abnegados ecolo­
Naquela época, o governo soviético emi­ gistas,  cientistas  e  líderes  soviéticos
tiu o decreto "Sobre florestas", em uma reu­ daqueles anos, que se engajaram em uma
nião presidida por Lenin em maio de 1918, entusiástica campanha de proteção ambien­
estabelecendo o que hoje chamaríamos de tal em um momento histórico do seu país:
zoneamento ecológico­econômico das flo­
“Não devemos esquecer que o sistema de
restas, divididas em um setor explorável e
zapovedniks científico  soviético  nasceu
um protegido para controlar a erosão, pro­
durante o período em que Lenin estava à
teger bacias hidrográficas e “preservar os
frente do partido e do Estado. Ao mesmo
monumentos da natureza”. Em 1919, o go­
tempo, revisando a enorme pilha de lite­
verno também emitiu o decreto “Sobre as
ratura soviética sobre o papel excepcional
estações  de  caça  e  o  direito  de  possuir
de Lenin nos assuntos de proteção da na­
armas de caça”, que proibiu a caça de alces
tureza, deveríamos considerar essa apolo­
e cabras selvagens e encerrou as tempora­
gia com uma pitada de sal. Sabe­se que os
das de caça na primavera e no verão.
instigadores  de  muitos  dos  decretos  de
Essas são algumas das medidas adotadas proteção à natureza de Lenin – e cerca de
pela jovem república soviética que atende­ 300  foram  emitidos  em  sua  vida  ­  não
ram as principais demandas dos conserva­ eram apenas justos. F. Petrov, N. Fedo­
cionistas.  Feliks  Shtilmark,  em  sua  obra rovski ou F. Shillinger, mas também V. D.
60
Bonch­Bruyevich, N. P. Gorbunov e ou­ modo que se abriram esses territórios para
tros  indivíduos  próximos  ao  centro  do enorme expansão da agricultura, exploração
poder. Podemos lembrar que muitos dos madeireira, mineração e caça.
primeiros  líderes  políticos  soviéticos  – Também  foram  tempos  difíceis  para  a
em particular Trotski, Bukarin, Krylenko grande maioria dos ecologistas soviéticos.
e Vorashilov – eram amantes da natureza, E eles eram muitos e extremamente talento­
sejam como caçadores, viajantes ou mon­ sos. Estamos falando de gente como Vladi­
tanhistas.  Pesquisas  mais  abrangentes mir  Vernadsky,  o  criador  do  conceito  de
ajudarão futuros pesquisadores, não so­ biosfera; Vladimir Stanchinskii, defensor da
brecarregados  com  os  estereótipos  do dinâmica trófica, ou ecológica­energética;
passado recente, a refletirem mais objeti­ Sukatchov, conhecido por seu conceito de
vamente o que realmente aconteceu du­ biogeocenose, tributário das  noções de Ver­
rante  esse  período  extraordinário  e nadsky sobre a biosfera e ciclos biogeoquí­
complicado da história.”7 micos; Alexander  Oparin,  o  pioneiro  que
apresentou a hipótese sugerindo que a vida
O terror stalinista na Terra se desenvolveu através de uma evo­
lução química gradual de moléculas basea­
Infelizmente, sob Stalin, os zapovedniks das em carbono na sopa primordial da Terra;
se transformaram em empresas econômicas o  economista Aleksandr  Chayánov,  cujas
polivalentes. O Plano de Transformação da pesquisas  revelaram  a  peculiar  lógica  da
Natureza  (esse  era  exatamente  o  nome!) economia camponesa, ou economia natural
proposto pelo ditador possuía um indisfar­ e que manteve um importante debate com
çável perfil tosco produtivista. A visão era Lenin  sobre  o  cooperativismo;  e  um  dos
de que a exploração planejada de recursos mais eminentes ecologistas dos primeiros
naturais deveria ser a principal precondição anos pós­revolução, o geneticista e botânico
da proteção da natureza, segundo F. Shtil­ russo Nikolái Vavílov (1887­1943).
mark. Assim, em 1951 Stalin mandou cortar
em 89% o sistema zapovednik, e restaram O Grande Terror stalinista calou muitos
apenas 40 reservas compostas por aproxi­ deles através de intimidações, prisões e exe­
madamente 3,5 milhões de acres. Foi desse cuções.  Vavílov  é  certamente  o  exemplo
mais dramático da perseguição aos ecolo­
gistas soviéticos. Ele tinha como ob­
Mar Aral hoje sessão acabar com a fome, e por isso
percorreu quase todos os continen­
tes da Terra, coletou espécimes ve­
getais  e  entrou  em  contato  com
agricultores tradicionais, buscando
incorporar seus saberes e técnicas.
Vavílov foi um dos primeiros cien­
tistas a ouvir realmente os agricul­
tores tradicionais, a gente do campo
mundo  afora,  para  saber  por  que
achavam que a diversidade das se­
mentes  era  importante  nos  seus
campos. Tentou, assim, penetrar em
culturas ancestrais, conhecer os se­
7
SHTILMARK, F., op. cit, pp.42-43. gredos mais bem guardados na me­
61
mória coletiva e as­ Sua vida foi dedi­
sociá­los  ao  seu cada a catalogar, do­
conhecimento aca­ cumentar e coletar a
dêmico. agrobiodiversidade
Desse  modo, global, no sentido de
procurava aplicar a criar uma agricultura
genética  mende­ ecológica  que  pu­
liana à teoria da se­ desse  solucionar  a
Nikolái Vavílov, o homem que queria acabar com a fome no mundo
leção  natural  para morreu de fome em um campo de concentração stalinista fome.  Hoje  a  ciência
desenvolver  espé­ de  Vavílov  seria  cha­
cies, aumentar o vigor das culturas e propi­ mada de agroecologia. É fascinante imagi­
ciar  uma  melhor  produtividade  da nar por um momento quais teriam sido os
agricultura do país, através de um modelo resultados práticos desses esforços no de­
muito diferente da agricultura intensiva pre­ senvolvimento  da  agricultura  soviética.
datória, imposta após a coletivização for­ Pensar  no  exemplo  que  teria  sido  para  o
çada de Stalin. conjunto da humanidade em organizar um
sistema de produção agrícola efetivamente
Como qualquer pesquisa científica séria,
sustentável  do  ponto  de  vista  ambiental.
o trabalho de Vavílov era lento, e os resul­
Mas todo esse processo magnífico sucum­
tados duradouros seriam alcançados apenas
biu à brutalidade do terror de Stalin.
em médio e longo prazos. Mas essas são
palavras que não existem no vocabulário da Vavílov e todos os ecologistas soviéticos
lógica  imediatista  do  burocrata.  Vavílov dos primeiros anos da revolução demostram
caiu em desgraça e foi substituído por outro o quanto a ciência pode avançar quando está
ambicioso cientista da época, que prometia livre  das  amarras  da  propriedade  privada
resultados imediatos ao seu grande chefe. dos  meios  de  produção  e  da  competição
Seu  nome  era  Trofim  Lysenko  (1898­ mercantil. Ensinam­nos que a revolução so­
1976), o defensor de uma das maiores im­ cial precisa mudar radicalmente as relações
8
posturas científicas da história . sociais de produção, instituir uma forma de
Em julho de 1941, Vavílov e dois dos democracia superior, na qual o poder polí­
seus colegas foram condenados à morte. tico esteja efetivamente nas mãos dos ope­
Os colegas foram fuzilados, mas a sentença rários  e  seus  aliados,  camponeses  e
de Vavílov acabou por ser comutada em 20 oprimidos. Mas, sobretudo, também mos­
anos de prisão. Em 6 de janeiro de 1943, tram que uma nova sociedade precisa revo­
aos 55 anos de idade, o homem que tanto lucionar  as  forças  produtivas  para  assim
lutou para acabar com a fome no mundo equacionar o enorme desequilíbrio metabó­
morreu de fome na prisão. lico provocado pelo capitalismo.

8
A partir de 1935, Lysenko iniciou uma torpe campanha de calúnias contra a ciência de Vavílov. Promotor de uma autointitulada “genética soviética”
que negava a própria existência dos genes, alegava que a ciência de Vavílov não era “dialética” nem “materialista”. Lysenko desprezava a teoria de
evolução de Darwin, qualificada por ele como “burguesa”. Sugeriu uma abordagem evolutiva que se apoiava nas ideias de Jean-Baptiste Lamarck, do
início do século XIX. Qual seja: que os organismos poderiam adquirir traços em suas vidas e passá-los através da hereditariedade para seus descendentes.
Arraigado ao argumento de que a mudança do genótipo é resultado das influências externas, Lysenko foi à guerra contra a genética mendeliana e,
consequentemente, contra Vavílov. Essa teoria, entretanto, já estava absolutamente superada na época e carecia totalmente de evidências empíricas. A
maioria dos biólogos evolucionistas, como Vavílov, defendia que nos processos evolutivos as características de um organismo vivo eram herdadas
geneticamente pelos seus ancestrais. Nos anos 1950, isso foi totalmente comprovado com a descoberta do DNA. Lysenko foi a figura dominante na
biologia soviética até o final da década de 1950, ocupando a diretoria da Academia de União de Lenin de Ciências Agrícolas e, em seguida, o Instituto de
Genética da Academia de Ciências da URSS.
62

O materialismo dialético
e ecológico de Engels
É inegável que Marx nutria uma profunda curiosidade sobre o desenvolvimento
das ciências do seu tempo. Não somente das ciências naturais como das
ciências humanas, o que ficou patente em seu caderno de estudos sobre
Lewis Henry Morgan, que acabou se tornando a matéria-prima do livro
A Origem da Família, da Propriedade e do Estado, escrito em 1884 por
Friedrich Engels (1820-1895). No entanto, foi o próprio Engels quem mais
dedicou atenção aos problemas das ciências e da relação entre o ser humano
e a natureza sob o prisma do materialismo dialético, enquanto Marx
se encontrava absorvido com sua pesquisa em economia política, desvelando
as engrenagens da exploração capitalista.

Jeferson Choma

E
ambos foram parceiros em um pro­ Foi um Engels maduro que escreveu “Dia­
jeto de organização independente do lética  da  Natureza”,  obra  inacabada  e  que
movimento operário, sob a base de contém apenas anotações e fragmentos para
um programa revolucionário, que se mani­ um projeto de um livro nunca concluído. 
festou em iniciativas como a elaboração do
Manifesto  do  Partido  Comunista  e,  poste­
riormente, na criação da Associação Interna­
cional dos Trabalhadores (AIT).
Mesmo assim, são muito interessantes suas
passagens e notas incompletas sobre como a
lógica dialética pode contribuir substancial­
mente no entendimento dos processos natu­
rais a partir de uma aproximação das ciências
com a filosofia, à luz das descobertas cientí­
ficas revolucionárias que testemunhava.
No século XX, essa obra foi muito criti­ Na realidade, sua crítica é baseada em
cada por autores como Lukács e outros in­ abstrações filosóficas que, em muitas oca­
fluenciados  pela  Escola  de  Frankfurt.  Um siões, flertam com o idealismo.
exemplo é o livro “O Conceito de Natureza Entretanto, nas críticas feitas à obra de
em Marx”, de Alfred Schmidt, um trabalho Engels,  tanto  por  autores  da  Escola  de
de doutorado orientado por Max Horkheimer, Frankfurt como em Lukács, há também cla­
no qual Engels é acusado de cair em uma me­ ramente um rechaço ao positivismo e a sua
tafísica dogmática e apresentar uma interpre­ generalização  arbitrária  dos  métodos  das
tação da natureza desligada de toda a práxis ciências naturais aplicados às ciências hu­
humana1.  Engels  também  foi  acusado  de manas, como foi o darwinismo social, uma
“desvios  positivistas”,  já  que  ele  –  assim ideologia reacionária burguesa que serviu
como os positivistas2– procurava aplicar um para “naturalizar” o domínio dos capitalis­
método que fosse válido tanto nas ciências tas e a exploração dos trabalhadores. Não
sociais como nas ciências naturais. que Engels fosse positivista, o problema é
A maioria das críticas a Engels são despro­ que muitos marxistas da Segunda Interna­
vidas  de  qualquer  referência  ou  conheci­ cional  foram  bastante  influenciados  pelo
mento sobre ciências naturais, o que resultou evolucionismo.
na total impossibilidade de compreender em Kautsky,  por  exemplo,  compreendia  a
profundidade as conexões ecológicas conti­ obra de Marx como uma síntese entre mar­
das no seu pensamento e no de Marx. Ambos xismo e darwinismo e que ambos tinham
não  eram  alheios  às  ciências  naturais  e  às em comum o fato de serem teorias da evo­
transformações tecnológicas de sua época. lução. Na sua interpretação de Marx, a “[…
Schmidt, por exemplo, cita em vários mo­ ] evolução social foi assim situada no qua­
mentos  o  conceito  de  falha  metabólica  de dro da evolução natural; o espírito humano,
Marx. Contudo, o faz sem baixar a terra, sem mesmo nas suas manifestações mais eleva­
relacionar as condições materiais naturais e das e mais complicadas, nas suas manifes­
sem explicar o contexto histórico do seu sur­ tações sociais, era explicado como sendo
gimento no pensamento de Marx3. uma parte da natureza […]”4.

1
A maior demonstração desse argumento está na segunda parte do primeiro capítulo da obra de SCHMIDT, Alfred, El concepto de la naturaleza en Marx.
Madri: Ed. Siglo Veintiuno, 1977.
2
O positivismo é uma corrente filosófica que surgiu na França no século XIX com Auguste Comte e foi desenvolvida por pensadores como Herbert Spencer
e Émile Durkheim. O positivismo alega que a sociedade precisa ser estudada com um rigoroso “método científico imparcial”. Para isso aplica o mesmo
método utilizado nas ciências naturais para o estudo das ciências sociais. Durkheim, por exemplo, comparava a sociedade a um organismo biológico,
“um sistema de órgãos no qual cada um tem o seu papel em particular”. Certos órgãos têm uma situação especial e privilegiada, o que é natural para o
bom funcionamento de todo organismo. Desse modo, o positivismo justificava aos privilégios de classe e a ordem social estabelecida. O darwinismo
serviu a essa ideologia quando conceitos como “sobrevivência do mais apto” foram importados às ciências sociais para justificar o domínio de classes.
3
Para saber mais, leia: https://www.pstu.org.br/usar-marx-para-entender-e-enfrentar-a-crise-ecologica/
4
KAUTSKY, Karl. As três fontes do marxismo. São Paulo: Centauro, 5° ed., 2002, p. 17.
64
O principal teórico da socialdemocracia logia de Estado que serviu para corroborar
alemã entendia que as leis da sociedade po­ uma pseudociência materialista a serviço de
diam ser definidas por leis sociais, e o mar­ uma odiosa burocracia que havia se apro­
xismo  seria  simplesmente  um  meio  de priado do poder soviético. De certo modo,
busca científica das leis da evolução e do o stalinismo criou um positivismo inver­
movimento do organismo social. tido: se o positivismo buscava extrair das
Plekhanov, “o pai do marxismo russo”, ciências naturais uma ideologia para natu­
foi outro autor fortemente influenciado pelo ralizar  as  relações  sociais,  o  stalinismo
evolucionismo. Para ele, o marxismo tinha ideologizava as ciências da natureza a partir
o mesmo status científico das ciências na­ da política.
turais  e,  portanto,  seria  possível  prever O Caso Lyssenko é um dos mais repug­
todos los fenômenos sociais com precisão nantes episódios da ideologização das ciên­
matemática. cias  na  União  Soviética.  Nos  anos  1930,
“Eliminando da ciência social todo vestí­ Lyssenko iniciou uma torpe campanha de
gio de teleologia e explicando a atividde calúnias contra a genética mendeliana, ale­
do  ser  social  por  suas  necessidades  y gando que ela não era “dialética” nem “ma­
pelos meios e modos de satisfazer as exis­ terialista”  e  que  ainda  possuía  desvios
tentes  hoje,  o  materialismo  dialético[3] burgueses. Os geneticistas soviéticos che­
confere pela primeira vez à dita ciência o garam  a  ser  chamados  de  “sabotadores
“rigor” que tão frequentemente se vana­ trotskystas”  que defendiam uma “ciência
gloriava sua irmã, a ciência da natureza”5. burguesa”, o neodarwinismo, isto é, gené­
tica moderna. Em seu lugar, promoveu­se
Muito desse materialismo dogmático foi uma autointitulada “genética soviética” que
resgatado  pelo  stalinismo,  e  o  “materia­ negava a própria existência dos genes e va­
lismo dialético” se converteu em uma ideo­ lorizava “o meio ambiente”, os “fatores ex­
ternos”6.

O
estalinismo “ideologizou”
O  stalinismo  transformou  o  “materia­
as ciências da natureza a lismo dialético” em um materialismo tosco
partir da política. zx travestido de “dialético” até torná­lo uma
cartilha que todos os cientistas deveriam re­
verenciar e, por vezes, citar alguma
passagem  do  livro  de  Engels,  em
busca  de  uma  verdadeira  “ciência
proletária”. 

Charles Darwin. Ilustração de


Entretenimiento y Cultura Fantasymundo,
do artigo Diarios de Campo, Evolución I:
Charles Darwin, de Emilio José Serrano Loba,
1/10/2020

5
PLEKHANOV, G. V. Os Princípios Fundamentais do Marxismo. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/plekhanov/1908/principios/index.htm
6
Lysenko, ver nota 8 do artigo “Stalinismo e a catástrofe soviética”, de Jeferson Choma, p. 61.
65
Dentro na União Soviética o resultado É importante notar que na época em que
para as ciências foi catastrófico, especial­ Engels escreveu suas anotações, o desen­
mente no campo da biologia, e  fora dela volvimento das forças produtivas do capi­
muitos cientistas se afastaram  da dialética talismo, a filosofia e as ciências naturais
ao associá­la com as atrocidades científicas avançavam  cada  vez  mais  distanciadas
cometidas pelo stalinismo. entre si, e cada vez mais se cristalizava a
Mas nem Engels nem seu livro tem al­ tendência à especialização. As discussões
guma responsabilidade  por essa deforma­ filosóficas eram vistas como meras especu­
ção  grotesca  ou  pelo  fato  do  stalinismo lações. Justus von Liebig, químico alemão
imputar  normas  ideológicas  à  pesquisa que tanto influenciou Marx no desenvolvi­
científica. Ao contrário, as anotações de En­ mento do conceito da falha metabólica, res­
gels são uma declaração de guerra contra as ponsabilizava as especulações filosóficas
visões mecanicistas e reducionistas da na­ por terem atrasado o progresso das ciências
tureza, e não apenas contra formas idealis­ naturais na Alemanha por mais de 50 anos7.
tas  de  pensamento  contidas  nas  ciências Nesse sentido, Engels procurava uma re­
naturais.  Contra  um  materialismo  tosco, aproximação da filosofia e da ciência e sua
Engels apresenta uma visão dialética das re­ obra procurava mobilizar o melhor das ca­
lações seres humanos­natureza e também tegorias lógicas da dialética hegeliana para
da própria maneira de se ver os processos expor  uma  abordagem  filosófica  original
naturais. Uma visão radicalmente oposta ao dos processos naturais.
reducionismo  que  vê  os  fenômenos  em Foi nessa obra que Engels combateu a
fragmentos isolados e que, portanto, pos­ noção de imutabilidade da natureza e defen­
suem propriedades a serem estudadas iso­ dia que a matéria está em permanente trans­
ladamente. “O todo da natureza acessível a formação, e que há mudanças abruptas, do
nós – explica Engels – forma um sistema, tipo “saltos”, no transcorrer dos processos
uma totalidade interconectada de corpos, e naturais. Por isso seu entusiasmo com Dar­
por corpos nós entendemos aqui como exis­ win, pois via nele alguém que finalmente
tências materiais que se estendem de estre­ apresentava uma concepção de que a natu­
las a átomos”, explica.
Engels  opõe  ao  materialismo  vulgar  a Trofim Lysenko, biólogo russo. Fotografia: European Scientist
dialética como um método heurístico, útil a
uma visão mais refinada da complexidade
da natureza e das ciências que a estudam.
Não por acaso, sua obra influenciou muitas
décadas depois toda uma geração de biólo­
gos anglo­saxões, como Stephan Jay Gold,
Richard Lewontin, Richard Levins, Steven
Rose e Leon Kamin, que polemizaram con­
tra formas atuais do reducionismo cientí­
fico,  como  a  sociobiologia  que  explica
comportamentos como racismo e a agres­
são como determinados geneticamente.

7
UTZ, Konrad; SOARES, Marly Carvalho (Org.). A noiva do espírito: natureza em Hegel. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010.
66
reza  tinha  um  desenvolvimento  histórico. terísticas se tornam predominantes em gera­
Aliás, sua conhecida assertiva a respeito da ções sucessivas de uma população de orga­
transformação de quantidade em qualidade nismos que se reproduzem, ao mesmo tempo
influenciou  a  noção  de  desenvolvimento em  que  outras  características  tornam­se
“por saltos” presente na teoria de equilíbrio menos comuns e podem desaparecer.
pontuado de Stephan Jay Gold8. Não há nenhuma forma pré­dirigida para
Um exemplo da sofisticação do seu pen­ que  a  variação  se  incline  a  características
samento é o fato de Engels ser o primeiro a mais favoráveis. Pelo contrário, em geral, as
ver na teoria de Darwin a explicação prática variações de novos organismos não resultam
da ligação interna entre contingência e ne­ em vantagens adaptativas ao meio, e seu des­
cessidade. tino, inexoravelmente, é a sua extinção. No
entanto, há variações casuais que podem re­
Assim ele explica:
sultar em alguma vantagem adaptativa, e esse
“Na sua obra que fez época, Darwin parte organismo sobreviverá e passará suas carac­
da base factual mais ampla que repousava terísticas  aos  seus  descendentes.  Como
na contingência. São precisamente as dife­
afirma Stephan Jay Gold, “a evolução é um
renças infinitas criadas pelo acaso entre in­
misto  de  acaso  e  necessidade  –  acaso  no
divíduos  no  interior  de  cada  espécie,
diferenças que se acentuam até fazer reben­
nível da variação, necessidade no trabalho de
tar o caráter da espécie e de que mesmo as seleção”10.
causas  mais  imediatas  só  podem  ser  de­
monstradas em casos muito raros, que obri­
gam  a  reconsiderar  os  fundamentos
anteriores  de  qualquer  lei  biológica:  a
noção de espécie na sua rigidez e imutabi­
lidade  metafísica  de  outrora.  Mas  sem  a
noção de espécie, toda ciência ruiria. Ne ­
nhum desses ramos poderia ignorar a noção
de espécie como base: que seriam, sem ela,
a anatomia humana e a anatomia compa­
rada, a embriologia, a zoologia, a paleon­
tologia, a botânica etc.?”9
Não há nenhum propósito definido na evo­ Evolução filética. Noção do desenvolvimento por saltos, presente
na teoria do equilíbrio puntuado, de Stephen Jay Gould.
lução da vida. O processo não transcorre com Ilustração extraída do blog origenolife.blogspot.com, no artigo
o objetivo de formar sempre organismos mais “Origen de la vida y de las especies”, 22/10/2016.
complexos ou mais “evoluídos”. A seleção
natural  não  funciona  como  um  engenheiro Engels, natureza e história
que age sob um projeto e busca perfeição. No  que  se  refere  à  natureza,  entendida
Não há nenhum plano definido. como processos biogeoquímicos, Engels
O surgimento de novas espécies está rela­ compartilhava da mesma visão de Marx.
cionado à variabilidade dos organismos. Va­ Em “A Ideologia Alemã”, ambos critica­
riações que ocorrem aleatoriamente e que são ram as limitações do materialismo estático
herdadas pelos seus descendentes. Tais carac­ de Feuerbach, sublinhando sua incapaci­

8
Para saber mais: GASPER, Phil. “O Biólogo dialético Stephan Jay Gould”. In: Marxismo Vivo n.º6, novembro de 2002. Disponível em:
http://marxismovivo.org/wp-content/uploads/2019/01/Primera-Epoca/POR/MV6/MV6pt/mv06pt.pdf
9
ENGELS, Friedrich. Dialética da Natureza, Lisboa: Ed. Presença, 1974, p. 230.
10
GOULD, Stephen Jay. Darwin e os Grandes Enigmas da Vida. São Paulo: Martins Fontes, s/d, p. 2.
67
dade de apreender o mundo como um pro­
cesso,  como  uma  matéria  compreendida
numa  continua  formação  histórica,  in­
cluindo a relação da natureza com a vida
prática humana.
Marx e Engels concordam com Feuer­
bach sobre o primado da natureza externa,
que se apresenta independente da existência
humana, sendo apreendida pela nossa capa­
cidade sensorial. No entanto, os dois pen­
sadores  alemães  vão  muito  além.  Para
Feuerbach, a natureza é meramente  con­ Imagem do Google Sites, Conceitos de Ecologia -
templativa. Ele ignora que a percepção sen­ Ciências Ambientais.
sorial é feita por homens históricos reais. uma ou outra ilha de coral australiana de ori­
Sobre isso, Marx e Engels explicam: gem recente […]”.
“Ele [Feuerbach] não vê como o mundo Desde o surgimento da espécie humana,
sensível  que  o  rodeia  não  é  uma  coisa portanto, iniciou­se um processo de trans­
dada de imediato por toda a eternidade e formação da natureza, onde não existe nen­
sempre igual a si mesma, mas o produto hum  ambiente  natural  que  não  tenha  sido
da indústria e do estado de coisas da so­ afetado pela história e pela cultura das dife­
ciedade, e isso precisamente no sentido rentes sociedades que se apresentaram no
de que é um produto histórico, o resul­ curso da civilização, e cada formação histó­
tado da atividade de toda uma série de ge­ rica  apresentou uma forma de se relacionar
ração, cada uma das quais ultrapassava a com a natureza. Daí a famosa frase de Marx,
precedente, desenvolvendo sua indústria “a natureza sem o homem não é nada”, estar
e  o  seu  comércio,  modificando  a  sua bem  distante  de  frequentes  interpretações
ordem social em função da modificação idealistas.
das necessidades. (…). Como se sabe, a
A natureza tem seu próprio desenvolvi­
cerejeira,  como  quase  todas  as  árvores
mento comandado por processo biogeoquí­
frutíferas, foi transplantada para nossa re­
micos, independente da ação humana. Mas
gião pelo comércio, há apenas alguns sé­
desde o surgimento da espécie humana, a
culos  e,  portanto,  foi  dada  ‘certeza
nossa história se entrelaça com a história da
sensível’ de Feuerbach apenas mediante
natureza. Assim, defende Marx, o homem
essa ação de uma sociedade determinada
sempre teve diante de si “uma natureza his­
numa determinada época”11.
tórica e uma história natural”.
Desse modo, o próprio mundo sensorial
Anos mais tarde, Engels retoma essa dis­
já não existe mais em sua forma originária,
cussão de uma maneira ainda mais explícita:
pois se tornou o repositório da atividade de­
sencadeada por sucessivas gerações de ho­ Pois, nós não vivemos apenas na Natu­
mens, isto é, o próprio meio, a natureza, foi reza, mas também na sociedade humana,
continuamente transformado pela ação hu­ e também esta tem a sua história de desen­
mana. Essa natureza apresentada por Feuer­ volvimento e a sua ciência, não menos do
que a Natureza. Tratava­se, portanto, de
bach,  ironizam  Marx  e  Engels  “[…]  não
pôr a ciência da sociedade, isto é, o con­
existe em nossos dias, à exceção, talvez, de

11
MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã, São Paulo. Ed. Boitempo, 2005, p. 32.
68
Deve­se ter cuidado ao apontar que En­
gels sugere, em seu manuscrito, noções la­
marckianas  como  a  transmissão  de
caracteres adquiridos. Tal interpretação foi
catastrófica para el desenvolvimento cien­
tífico soviético. De fato, Engels está sendo
fiel  ao  próprio  Darwin,  que  manteve  a
noção  de  uso  e  desuso  de  Lamarck,  ao
mesmo tempo en que a superou ao inserirla
em sua teoria da seleção natural. A seleção
natural é favorecida pelo uso e o desuso,
Impacto ambiental pela ação do homem. Imagem extraída
de https://www.timetoast.com, Omar A. Gómez Montes de Oca. como o próprio naturalista britânico recon­
heceu.  Somente  no  século  20,  a  genética
junto das chamadas ciências históricas e fi­ mostrará como os caracteres adquiridos são
losóficas, em consonância com a base mate­ transmitidos aos seus descendentes. Engels
rialista e de reconstruí­las a partir dela. Isto,
apresenta uma noção dialética da natureza,
porém, não foi dado a Feuerbach. Aqui, ele
que é vista como un todo, un complexo de
permaneceu,  apesar  da  ‘base’,  preso  nos
relações de intercâmbios recíprocos, inclu­
laços idealistas tradicionais […]12.
sive entre os organismos bióticos e abióti­
cos  y  sua  íntima  conexão,  como  Darwin
Engels ecológico havia mostrado e posteriormente foi desen­
volvido pela própria biologia e geologia.
Mas Engels também se notabi­
lizou pelas suas preocupações Assim como Marx, Engels também via
ecológicas  e  a  destruição  do que o trabalho mediava a relação do meta­
meio ambiente provocado pela bolismo entre os seres humanos com a na­
sociedade capitalista. Tais preocu­ tureza. O processo de trabalho é condição
pações ficam explícitas em seu famoso manus­ universal  da  relação  metabólica  ser  hu­
crito, “O papel desempenhado pelo trabalho mano/natureza. Mas diferentemente dos ou­
na transição do macaco para o homem”, no tros  animais,  há  um  propósito,  uma
qual Engels apresenta uma compreensão ins­ intencionalidade na realização de um tra­
tigante sobre o papel do trabalho no desenvol­ balho humano. Se um animal destrói uma
vimento dos seres humanos. Ele refuta a visão vegetação  qualquer  sem  ter  consciência
unilateral de que nossa evolução foi impulsio­ dessa ação, o ser humano destrói uma ve­
nada por um cérebro em crescimento. O bipe­ getação para semear e cultivar o solo; do­
dismo permitiu o desenvolvimento do cérebro mestica plantas e animais úteis a ponto de
e das mãos; as mãos humanas libertaram­se deixá­los irreconhecíveis, e os transfere de
para que os seres humanos pudessem transfor­ uma  região  para  outra,  modificando  todo
mar a natureza e a si próprios. O desenvolvi­ um sistema ecológico, transformando a pai­
mento das mãos é visto por Engels como parte sagem, se apropria de territórios. E, desse
“de todo um organismo extremamente com­ modo, estabelece uma coevolução com o
plexo”. “Aquilo que revertia em proveito da seu ambiente e as criaturas que modificou.
mão,  revertia  em  proveito  ao  corpo  inteiro, Nessa relação os seres humanos afirmam
corpo ao serviço do qual ela tra balhava […]” sua  própria  objetividade  e  subjetividade,
(p. 174). modificam o meio ambiente e, ao mesmo
12
ENGELS, Friedrich. Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã. Disponível em:
https://www.marxists.org/portugues/marx/1886/mes/fim.htm
69
tempo, a si próprios. É pelo trabalho que os Apesar  de  exibir  algumas  vezes  certo
seres humanos alargam o seu horizonte, posto tom “triunfalista” em suas linhas sobre os
que por sua ação cada elemento natural, cada feitos realizados pela civilização, algo tí­
potencial contido nele, mostra propriedades pico da sua época, que assistia em veloci­
até então ignoradas. Basta lembrar da ancestral dade  avassaladora  as  descobertas
domesticação de plantas ou ainda nosso enten­ científicas, Engels revela ao mesmo tempo
dimento atual da energia contida em um átomo uma profunda consciência ecológica iden­
de hidrogênio. tificando os limites da natureza. Tinha plena
Ao agir sobre a natureza e transformá­la, os consciência de que estava testemunhando
seres humanos aprofundam laços de sociabili­ grandes inovações técnicas revolucionárias
dade entre os membros da sociedade, multipli­ que transformariam o mundo. Mas também
cam  a  assistência  mútua,  promovem  a alertava para problemas ecológicos causa­
cooperação comum e transmitem esses conhe­ dos por muitas dessas inovações e desco­
cimentos  às  gerações  futuras.  Imagine,  por bertas que, inclusive, poderiam resultar no
exemplo, como foi para os primeiros seres hu­ desaparecimento  de  espécies  e  ecossiste­
manos a invenção de uma simples canoa, que mas.  Em  tom  de  advertência  sobre  o  su­
quebrou barreiras naturais até então insuperá­ posto  domínio  humano  da  natureza,
veis e lhes permitiu desbravar novos horizon­ escreveu:
tes, rompendo limites geográficos até então “[…]  não  nos  lisonjeemos  demasiado
insuperáveis. Isso transformou totalmente sua com as nossas vitórias sobre a natureza.
mentalidade sobre o mundo e sua relação com É verdade que as primeiras consequên­
cias dessas vitórias são as previstas por
a natureza. Mas a invenção de uma simples
nós, mas em segundo e em terceiro lugar
canoa, por mais rústico e primitivo que tenha aparecem consequências muito diversas,
sido o seu projeto, requer mobilizar e coorde­ totalmente  imprevistas  e  que,  com  fre­
nar esforços e experiências de todo um grupo quência, anulam as primeiras. Os homens
social para construí­la: escolher (ou reconhe­ que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia
cer) uma madeira adequada, mobilizar pessoas Menor  e  outras  regiões  devastavam  os
para cortá­la, imprimir nela com o trabalho da bosques para obter terra de cultivo, nem
mão humana o que foi pensado no cérebro, as sequer podiam imaginar que, eliminando
formas adequadas para que flutue, resista às junto com os bosques os centros de acu­
mulação e reserva de umidade, estavam
intempéries e longas travessias etc.
assentando as bases da atual aridez dessas
Fabricar um instrumento como esse susci­ terras. Os italianos dos Alpes, que destruí­
tou aptidões até então desconhecidas por aque­ ram nas encostas meridionais os bosques
les  homens  e  mulheres,  transformou  as de pinheiros, conservados com tanto ca­
relações entre eles, transformou o indivíduo, a rinho nas encostas setentrionais, não tin­
sociedade, sua visão de mundo, sua relação ham ideia de que com isso estavam […]
com a natureza, a linguagem e a própria espé­
cie. Do mesmo modo, a atividade caça ou a in­
venção  da  agricultura  também  deixaram  os
humanos mais hábeis, inteligentes e astutos.

O
processo do trabalho é condição
universal da relação metabólica
entre o ser humano e a natureza. zx
privando de água os mananciais das suas crementando  a  apropriação  da  mais­valia
montanhas,  e  que  durante  a  estação  de relativa. Mas nunca apresentou uma visão
chuvas  iriam  se  produzir  inundações unilateral reprovando os avanços da ciência,
ainda mais furiosas. […]  A cada passo, a
uma vez que ela poderia servir de via para
natureza vinga­se. […] os fatos lembram­
nos a cada passo que não reinamos sobre
a superação da alienação do ser humano pe­
a natureza como conquistadores sobre um rante a natureza:
povo  estrangeiro  submetido,  como  al­ “[…] quanto mais caminhamos nesta via,
guém que estaria para além da natureza, mais sentiremos e melhor saberemos que
mas  que  lhe  pertencemos  como  nossa nós  e  a  natureza  formamos  um  todo,  e
carne, o nosso cérebro, que mergulhamos mais impossível se tornará a ideia absurda
nela e que o domínio que sobre ela exer­
cemos  reside  na  vantagem  que  temos
sobre outras criaturas de lhe conhecermos
as leis e de nos podermos servir delas ju­
diciosamente”13.
Em tempos em que a humanidade se vê
acossada por uma pandemia causada pela
apropriação mercantil da natureza e por mu­
danças climáticas que ameaçam toda a civi­
lização,  essas  palavras  soam  como
proféticas  e  tentaram,  sim,  despertar  um
justo alarmismo em meio a uma sociedade
embriagada pela ideologia do progresso.
Engels sabia que o desenvolvimento das
ciências servia aos senhores do capital, in­

N
ão nos lisonjeemos demasiado com as nossas vitórias sobre a natureza
(F. Engels). zx
13
ENGELS, Friedrich. Dialética da Natureza. Lisboa: Ed. Presença, 1974, pp. 182-183.
71
e contranatureza de uma oposição entre o plicar  a  razão  do  desequilíbrio  do  fluxo
espírito e a matéria, o ser humano e a na­ energético, que está na explicação de como
tureza, a alma e o corpo […]”14.
uma  sociedade  é  estruturada,  nas  lutas
Mas  acreditar  que  o  desenvolvimento entre classes sociais, nos interesses econô­
científico vai por si só nos salvar da catás­ micos e nas relações de poder que regem a
trofe  ambiental,  permitindo  uma  relação apropriação realizada pelas classes sociais
mais regulada com o meio ambiente, é tão de uma fração da crosta terrestre. Afinal,
ingênuo como responsabilizar o desenvolvi­ quem é o anthropos responsável pelo aque­
mento  científico  pelos  desequilíbrios  am­ cimento global e pela destruição dos ecos­
bientais. Sobre isso, já alertava Engels:  sistemas  em  uma  escala  global  que  nem
““[…] para conseguirmos essa regulação, Engels ou Marx imaginaram?
faz falta algo mais do que mero conheci­
mento. Precisamos de uma revolução com­ O  desenvolvimento da nossa compreen­
pleta  do  nosso  modo  de  produção são sobre a natureza reforça o alerta de En­
dominante até os dias de hoje e, com ele, gels: “não reinamos sobre a natureza como
de toda nossa ordem social existente”15. conquistadores”.  Pandemias  e  mudanças
A profunda concepção dialética sobre a di­ climáticas  provocadas  pelo  capitalismo
nâmica dos sistemas naturais está em perfeita exigem a necessidade da superação desse
consonância com aquilo que Ernst Haeckel sistema baseado na exploração do trabalho
chamou  em  1866  de  ecologia.  Mas,  como e da natureza. Exigem a criação de uma so­
vimos acima, o estudo sobre ecossistemas ciedade socialista, que revolucione as rela­
precisa levar em consideração o desenvolvi­ ções  sociais  e  as  forças  produtivas,  para
mento histórico das sociedades. O “fator an­ que seres humanos superem sua alienação
trópico” não deve ser uma mera abstração de em relação ao produto do seu trabalho e se
contabilidade sobre o desequilíbrio do fluxo reconheçam  como  parte  da  natureza,
energético de um ecossistema. É preciso ex­ aquela que pensa sobre si mesma.
14
Ibidem, p. 183. https://culturafilosofica.com/vinculo-hombre-naturaleza-pandemia/,
15
Ibidem, p. 184. 17/10/2020.
72

O marxismo e a questão ambiental


Interpretações e análises esquecidas em um aspecto fundamental*

«Depois dos grandes poetas românticos, os mais fortes opositores da ideia


de conquista da natureza durante a revolução industrial, foram Karl Marx
e Friedrich Engels os fundadores do clássico materialismo histórico» .1

Matteo Bavassano

O
objetivo desse contrário, quando o problema
artigo é substan- climático e ambiental alcançou
cialmente o de um nível sem precedentes e en-
chamar a atenção do leitor quanto ocorrem mobilizações
não apenas para a existên- imponentes, sobretudo dos jo-
cia de um debate sobre o vens, pela proteção do nosso
papel da ecologia no pensa- planeta, as obras mais recen-
mento de Marx, mas, sobre- tes dos escritores marxistas
tudo, para o desenvolvimento não apenas não são traduzi-
desse debate nos últimos das e publicadas em ita-
vinte anos, baseado principal- liano4, mas estão
mente em um novo estudo mi- praticamente ausentes do debate sobre o
nucioso dos textos de Marx, e graças à tema. Esse vazio foi preenchido muito par-
recuperação dos trabalhos de publicação da cialmente pela publicação de um ensaio de
MEGA2. De fato, os primeiros estudos John Bellamy Foster5, na coletânea Marx
nesse campo foram publicados na Itália no Revival6, na qual o autor reconstrói de
final dos anos 19602, e isso levou a que mi- modo muito abrangente os pontos funda-
litantes que estavam próximos ao trots- mentais das análises que está conduzindo
kismo aprofundassem a temática inclusive com o grupo de autores da Monthly review,
do ponto de vista programático3. Hoje, ao em particular Paul Burkett.
* Este artigo foi publicado originalmente na revista teórica Trotskismo Oggi, do PdAC – Itália.
1
J.B. Foster, B. Clark, The robbery of nature. Capitalism and the ecological rift, 2020, Monthly review press, versão ebook, p. 143. A tradução do inglês
é nossa.
2
Pensamos por exemplo no texto “clássico” de Alfred Schmidt, O conceito de natureza em Marx, publicado na Alemanha Ocidental em 1962 e cuja
edição italiana de 1969 (para a editora Laterza) foi também a primeira tradução da obra.
3
Pensamos nos estudos levados avante por Tiziano Bagarolo, seja em nível individual seja na então Liga Comunista Revolucionária, e no livro de Michele
Nobile, Merce-natura ed ecosocialismo, 1993, Erre emme edizioni.
4
As edições Alegre publicaram 2 livros de Daniel Tanuro, L’impossibile capitalismo verde (2011) e È troppo tardi per essere pessimisti (2020), que
propõem novamente a mesma análise do ex Secretariado Unificado (agora Comitê Internacional) da Quarta Internacional, cuja expressão mais completa
é talvez o livro Ecossocialismos de Micheal Löwy, que ainda não foi traduzido para o italiano. É inútil dizer, por exemplo, que das dezenas de livros
publicados pelos autores ligados a Monthly review não há vestígios.
5
John Bellamy Foster (1953) é professor de na universidade do Oregon e desde 2000 è diretor da Monthly review. Entre os seus livros sobre o tema am-
biental recordamos Marx’s ecology (2000), The ecological revolution (2009), The ecological rift (2010, con B. Clark e R. York), Marx and the Earth
(2016, con P. Burkett) e outros citados nesse artigo.
6
Marcello Musto (organizador), Marx revival. Concetti essenziali e nuove letture, 2019, Donzelli editore. O ensaio de J.B. Foster, “Ecologia”, se encontra
nas páginas 199 a 219. Aproveitamos a ocasião para assinalar que foi publicado em italiano pelo menos um outro ensaio de J.B. Foster, “I Grundrisse e
le contraddizioni ecologiche del capitalismo”, sempre em coletânea organizada por M. Musto, I Grundrisse di Karl Marx. Lineamenti fondamentali della
critica dell’economia politica 150 anni dopo, 2015, Ets.
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Sem a pretensão de querer dar
uma opinião definitiva nem de
querer apresentar uma teoria
ecológica completa, nos limita-
remos substancialmente em tra-
zer as análises dos autores (e fazer
as nossas considerações a respeito).
Acreditamos que esse debate é funda-
mental, principalmente em um momento no
qual as mobilizações de organizações como
Fridays for future estão catalisando a aten-
ção de milhões de jovens em todo o mundo:
muito frequentemente se parte de uma série
de preconceitos contra o pensamento mar-
xista e a sua dimensão ecológica, chegando
a negar a validade do marxismo em si, sus-
tentando a necessidade de que tome por base
“novos paradigmas”, majoritariamente cor-
respondentes ao desenvolvimento da socie-
dade contemporânea. Da nossa parte,
reafirmamos a validade total do marxismo e
do seu programa revolucionário para resol-
ver os problemas da humanidade, inclusive
do problema ambiental, para destruir o sis-
tema capitalista e construir uma economia
socialista. Dessa forma, se conseguirmos
desconstruir no jovem leitor a convicção de
que, no campo ambiental, o pensamento de
Marx foi antiecológico e levá-lo a aprofun-
dar os vários aspectos do marxismo revolu- Manifestação do Fridays for Future em Veneza
cionário, poderemos nos dar por satisfeitos.
dutivas (uma vez que elas fossem liberadas
Os preconceitos “ambientalistas” das cadeias das relações de produção capita-
contra Marx e Engels listas), de completo domínio do homem sobre
No imaginário coletivo dominante, Marx e, a natureza. Esse preconceito foi reforçado cen-
sobretudo Engels7, eram defensores de uma tralmente por obra do stalinismo no poder:
ideia de progresso ilimitado das forças pro- assim como o “socialismo real” desacreditou
7
Não é supérfluo lembrar que existe todo um conjunto de análises que contrapõem ao pensamento dialético de Marx um suposto “dogmatismo” de
Engels. Segundo essa visão teria sido Engels a criar o “marxismo” depois da morte de Marx, com textos como o Anti-Dühring que distorceriam o espírito
da dialética marxiana. Seja dito rapidamente, o Anti-Dühring foi escrito enquanto Marx ainda estava vivo, e os seus comentários ao texto de Engels foram
entusiasmados, o que demonstra que esta análise é infundada. Todavia, autores que reivindicam visões desse tipo (por exemplo o já citado Alfred Schmidt)
tendem a contrapor a visão da natureza de Marx à de Engels, em particular aquela contida na Dialética da natureza: esta que é uma obra incompleta, na
qual Engels trabalhou dos anos 1870 até 1883, e cujos manuscritos foram publicados em 1925 pelo instituto Marx-Engels-Lênin, seria uma antecessora
do diamat [sistema teórico] stalinista, isto é, uma aplicação do “materialismo dialético” em campos os quais não deveria ser aplicado. Da nossa parte,
não identificando Marx com Engels, acreditamos que o marxismo seja o resultado das contribuições tanto de Marx quanto de Engels, e não encontramos
contraposições significativas entre os dois, nem mesmo no que se relaciona com a concepção da natureza. Sem pretender dar um veredito sobre a
Dialética da natureza, aconselhamos ao leitor o último livro de J.B. Foster, The return of nature: socialism and ecology, 2020, Monthly review press, no
qual o autor dedica uma das 3 partes do livro especificamente à figura de Engels, com um capítulo específico de análise da Dialética da natureza, que
além de analisar o conteúdo, reconstrói exaustivamente o contexto no qual Engels trabalhou na obra.
74
aos olhos das massas traba- morto. Nessa visão, o ecosso-
lhadoras a própria noção de cialismo seria herdeiro aparente
ditadura do proletariado, do socialismo”10.
obrigando os marxistas revo-
lucionários a uma dura ba- A resposta a essa leitura,
talha para resgatar esse fundada sobre um estudo
conceito que representa o fun- cuidadoso dos escritos de
damento do programa mar- Marx, dá vida à “segunda
xista, o produtivismo stalinista fase do ecossocialismo”,
também desacreditou a visão que segundo Foster se
marxista da relação homem-na- abre com a publicação do
tureza, transformando Marx em livro de Burkett Marx
uma espécie de positivista que and nature: a red and
cultuava o progresso como um green perspective, que
fim em si mesmo. “Tende-se a “foi escrito como uma
transferir para Marx aquela “von- negação dessas visões ecossocialistas
tade de potência” irracional e destrutiva que da primeira fase por meio de uma recons-
caracterizou as burocracias dominantes dos trução e reafirmação da própria perspectiva
socialismos de Estado e em particular da crítico-ecológica de Marx. Marx and nature
União Soviética”8. Essa leitura de Marx é representa então o nascimento de uma se-
também a que caracteriza os autores da- gunda fase de análises ecossocialistas que
quela que Foster e Burkett chamam de “pri- procuravam voltar a Marx e mostrar a sua
meira fase do ecossocialismo”9. Esses concepção materialista da natureza como
autores, interpretando a crítica de Marx contraparte essencial de sua concepção ma-
como falácias do ponto de vista ecológico, terialista da história. O objetivo era trans-
consideram necessário unir o marxismo cender o ecossocialismo da primeira fase,
com o “pensamento verde”. Dependendo assim como os limites das teorias verdes
do caso se tratava de introduzir, no mar- existentes, com as suas ênfases excessiva-
xismo, concepções ecológicas, mas na mente espiritualistas, idealistas e moralis-
maioria das vezes se afirmava um fracasso tas, como um primeiro passo no
do socialismo (sem distinguir entre “socia- desenvolvimento de um marxismo ecoló-
lismo real” e as teorias de Marx e Engels) e gico mais rigoroso”11.
assim se tratava de inserir a análise de ( ). O ecossocialismo era concebido
classe do marxismo no interior das teorias então “não como um sucessor do mar-
ecológicas. xismo, mas como uma forma mais aprofun-
dada da práxis ecológica que emerge dos
““Esses ecossocialistas da primeira fase sus- fundamentos materialistas do marxismo
tentavam que o socialismo de Marx seria clássico. Na medida em que termos entre os
falho (para alguns irremediavelmente) pelo quais “socialismo ecológico” e “marxismo
seu restrito produtivismo. Alguns chegam in- ecológico” foram usados pelos ecossocia-
clusive, como vimos, a declarar o socialismo
listas da segunda fase, não se referiam a
8
M. Nobile, op. cit., p. 13.
9
Não é necessário compreender essa “primeira fase” apenas no sentido temporal: e estão efetivamente incluídos os primeiros estudos dos anos 80 e
do início dos anos 90, mas si compreendem todos aqueles que ainda sustentam que a análise marxiana seja falha do ponto de vista ambiental e que deva
ser integrada com o ambientalismo, como a exemplo de Löwy.
10
J.B. Foster, “Foreword” (“Prefácio”) à segunda edição de P. Burkett, Marx and nature: a red and green perspective, 1999, Haymarket books, 2016,
p. 6. A tradução é nossa do inglês.
11
Ibidem, p. 6.
75
uma ruptura com a

E
teoria e a prática xiste, sem dúvida, um “fio de
marxiana, mas re-
presentavam um continuidade” que percorre
revigoramento toda a obra marxista, inclusive
da sua clássica
no que diz respeito à crítica
perspectiva ma-
terialista”12. ecológica. zx
Ainda que em
a mesma importância. Os estudos mais re-
nosso caso
centes, ainda ligados à pesquisa da MEGA2,
continuamos
tendem a enfatizar a existência de um “fio
acreditando
condutor” que atravessa toda a obra mar-
que, uma vez
xista: Kohei Saito, no seu livro O ecosso-
esclarecido
cialismo de Karl Marx (2016), quer
que Marx e
demonstrar que “a crítica ecológica de
Engels não ignoravam a
Marx possui um caráter sistemático e
natureza em suas análises, é melhor falar de
constitui um momento essencial no inte-
socialismo e marxismo sem acrescentar
rior da totalidade do seu projeto do Capi-
nenhum prefixo ou sufixo, de modo a não
tal”14. Mas Saito não para aqui.
gerar confusão, não se pode perder de vista
que a utilização do termo ecossocialismo “A ecologia não está simplesmente presente
no pensamento de Marx, a minha tese é
difere profundamente entre os autores das
muito mais forte. Eu sustento que não seja
“diversas fases”13. possível compreender completamente a
Tendo esclarecido o quadro geral no qual crítica da economia política se, se ignora
se desenvolve esse debate teórico cheio de a sua dimensão ecológica”15.
consequências político-programáticas, Não pretendemos certamente que o leitor
antes de passar ao mérito das refutações dos tome como corretas essas afirmações, então
preconceitos ecológicos com relação ao entraremos nos pontos chaves dos argu-
marxismo, queremos discutir brevemente a mentos de modo que o leitor possa tirar as
questão do lugar que as reflexões ecológi- suas conclusões, mas ainda assim nos per-
cas ocupam no pensamento de Marx. Dei- mitimos sugerir a todos a leitura do interes-
xando de lado aqueles que ainda sustentam sante livro de Kohei Saito.
que Marx não se ocupou dos problemas
ecológicos, tese que agora é insustentável
(como veremos a seguir), ainda que quem O “produtivismo” de Marx
reconheça a atenção de Marx à natureza, As passagens dos escritos de Marx e En-
não necessariamente atribui a essa atenção gels, nas quais os revolucionários susten-

12
Ibidem, p. 6.
13
O próprio Foster em realidade escreve: “O socialismo da primeira fase com a sua eclética combinação de Green Theory e marxismo é substituído por
uma visão marxista ecológica mais aprofundada e desenvolvida, derivada das bases teóricas fornecidas pelo próprio Marx, trazidas à luz pela pesquisa
ecossocialista da segunda fase. A práxis ecológica socialista resultante poderia ser chamada marxismo ecológico (ou ecossocialismo de terceiro nível).
Todavia, isso também poderia ser visto como constituinte do marxismo em seu sentido autêntico, prescindindo de qualquer adjetivo qualificante. Nada
poderia estar mais alinhado com a visão clássica de Marx que os produtores associados racionalmente que regulam o metabolismo entre a humanidade
e a natureza”. Cfr. J.B. Foster, “Ecologia”, in M. Musto, op. cit., 2019, p. 217.
14
Kohei Saito, O ecossocialismo de Karl Marx. Capitalismo, natureza e a crítica inacabada da economia política, 2016, Monthly review press, 2017, pp.
13-14 da edição em inglês. 1ª edição em português; Boitempo - 2021.
15
Ibidem, p. 14.
tam que o capitalismo é historicamente pro-
Manifestação do movimento Fridays for future
gressivo em relação aos modos de produção
pré-capitalistas, são utilizadas para dizer 25.01.2018 - Berlim
que Marx atribuía importância fundamental
necessariamente “a apropriação do mundo
ao desenvolvimento das forças produtivas
natural para as necessidades humanas, ainda
em si mesmas. Para apoiar essa tese tam- que essas necessidades sejam necessidades
bém são utilizadas (dando-lhe uma leitura da produção ou consumo individual” [K.
unilateral) aqueles trechos nos quais é dito Marx, Manuscritos econômicos de 1861-63].
que no comunismo as forças produtivas, li- O trabalho só pode produzir riqueza “através
beradas dos vínculos do capital (as relações de uma troca de matéria entre homem e Na-
de produção capitalistas), poderão se desen- tureza” [K. Marx, O capital, vol. I]; é em
volver indefinidamente. Essa visão, que consequência disso que “o operário não pode
produzir nada sem a natureza, sem o mundo
reduz o desenvolvimento das forças produ-
externo e sensível” [K. Marx, Manuscritos
tivas ao crescimento quantitativo da pro- económico-filosóficos, de 1844].
dução industrial, implica a atribuição a
Marx de uma ética produtivista, ou “prome- A conclusão apropriada está nítida e fir-
teica”, de domínio da natureza por parte do memente tratada por Marx:
homem. Burkett responde a esse precon- ““Vejamos, então, que o trabalho não é a
ceito a partir de três pontos. Primeiramente, única fonte de riqueza material, dos valores
de uso produzidos pelo trabalho. Como disse
rebate afirmando que para Marx a riqueza
William Petty, o trabalho é seu pai e a terra
humana não é redutível apenas ao trabalho: sua mãe” [El Capital, vol. I]16.
«Marx sustenta que tanto a natureza quanto
o trabalho contribuem com a produção da ri-
A contribuição da natureza para a criação
queza ou valores de uso”. A argumentação dos valores de uso também é demonstrado
basilar aqui é que “na medida em que o tra- sinteticamente por Marx na Crítica ao Pro-
balho efetivo cria valor de uso, isso implica grama de Gotha: “O trabalho não é a fonte
16
P. Burkett, Marx and Nature: a red and green perspective, 1999, St. Martin’s press, p. 26. A tradução é nossa do ingles. Todas as citações de Marx e
Engels contidas no texto de Burkett, na impossibilidade de controlar as edições das quais foram tiradas, foram por nós traduzidas do texto em inglês,
com a indicação entre parentheses da obra original da qual foram tiradas.
77
de toda a riqueza. A natureza é tanto a fonte por parte da forma social de produção espe-
dos valores de uso (e não consiste nisso a ri- cífica. Os limites da exploração por parte do
capital sobre o trabalho e a natureza são, no
queza material?) quanto o trabalho, que em entanto, limites elásticos, em que a elastici-
si é apenas a expressão de uma força natural, dade é devida, em parte, às características na-
da força de trabalho humana”17. turais da força de trabalho e da natureza
extra-humana, e em parte pelo caráter social-
Em segundo lugar, Marx estava cons- mente definido dos próprios limites. Os efei-
ciente do fato de que a produção humana tos danosos do capital sobre a força de
está vinculada às leis naturais, físicas, bio- trabalho e sobre a natureza deriva da sua ten-
lógicas e também ecológicas: dência a explorar essa elasticidade enquanto
as pressões da acumulação monetária conco-
“A perspectiva de Marx se baseia na consta- rrencial tensionam as forças naturais huma-
tação de que, uma vez que se compreende a nas e extra-humanas até o ponto de ruptura,
produção humana como produção social, não tendo necessidade de restrições sociais à ex-
se pode mais falar simplesmente de limites e ploração por parte do capital sobre as duas
condições naturais. Ao contrário, à pergunta fontes basilares de riqueza«20.
sobre quais condições naturais contam como
Por último, Marx era consciente do fato de
valores de uso, e quais limites colocam para
a produção de riqueza, se deve responder
que o desenvolvimento das forças produti-
com referência às relações sociais específi- vas por parte do homem no capitalismo
cas que estruturam o nexo produtivo entre havia cau- sado desperdício e
trabalho e natureza. Essa abordagem não destruição das ri-
faz pouco caso dos impactos ambientais da quezas naturais.
produção. Ao contrário: somente reconhe-
“No capitalismo, a
cendo como uma forma social de produção
divisão do trabalho
particular que desvincula as suas necessárias
toma a forma de
condições de produção da evolução humana
relações de mer-
separada da natureza se pode analisar a sus-
cado (mercado-
tentabilidade material dessa forma”18.
rias e dinheiro),
A produção humana em geral está su- baseado na histo-
jeita a restrições ligadas às leis já citadas, ricamente ex-
mas cada modo de produção estabelece trema separação
social dos pro-
uma “interação metabólica” específica19
dutores huma-
entre a sociedade e a natureza, uma relação nos das
específica com esses limites. Aquilo que se necessárias
relaciona com o capitalismo em particular,
«os limites da exploração da força de trabalho

N
humana por parte do capital, como os limites
da exploração das condições naturais por o capitalismo, o desenvolvimento
parte do capital, não são completamente de- das forças produtivas produz a
terminadas pelo próprio capital. Em ambos
os casos, os limites implicam certas caracte- destruição de riquezas naturais. zx
rísticas materiais não sujeitas a uma alteração

17
Karl Marx, Crítica ao Programma di Gotha, 1875, Massari editore, 2008, p. 33.
18
P. Burkett, op. cit., 1999, p. 31.
19
O termo utilizado por Marx é stoffwechsel, que foi traduzido de diversas maneiras, entre as quais “interação metabólica”, “metabolismo” ou ainda
“intercâmbio orgânico”. Segundo Alfred Schmidt, Marx teria tomado esse termo do filósofo Jakob Moleschott (1822-1893), mas Foster contesta esta
interpretação de Schmidt, destacando que o termo já estava em uso na literatura científica e Marx o teria tomado depois de ter estudado atentamente
o químico alemão Justus von Liebig (1803-1873). Cfr. J.B. Foster, Marx’s ecology: materialism and nature, 2000, Monthly review press, p. 161.
20
P. Burkett, op. cit., 1999, pp. 133-134.
21
Ibidem, p. 57.
78
condições de produ- em forças do capi-
ção. A análise de tal, as condições
Marx explica como naturais e sociais
essa separação, que
da produção exer-
permite que o tra-
cem um poder so-
balho e as suas con-
dições naturais e cial alienado sobre
sociais desenvol- os produtores, os
vam-se como condi- quais são incapa-
ções de acumulação zes, enquanto a
concorrencial do ca- produção perma-
pital, conduz a um Atualmente, a degradação da terra e do solo está afetando pelo menos 3,2 bilhões nece na forma capi-
crescimento sem pre- de pessoas, cerca de 40% da população mundial. Fonte: https://news.un.org/pt
talista, de exercer
cedentes do seu potencial produtivo de ri-
queza. Ao mesmo tempo, Marx destaca a um controle qualquer cooperativo sobre sua
tendência do capital a saquear e destruir as interação orgânica com a natureza»24.
suas próprias condições humanas e naturais de Essa separação, junto com a tendência do
existência”21. capital de produzir sempre mais valor na
Nesse processo a separação dos produto- forma de mercadoria, para realizar esse
res das condições de produção tem um peso valor e reconvertê-lo em mais capital, é a
importante:22 base da tendência do capitalismo para
“Em resumo, a separação social dos produto- minar as próprias bases (naturais e sociais)
res das condições naturais limitadas, a conver- da sua acumulação, através da superação
são dessa condição em propriedade privada constante dos limites naturais sobre os
capitalista, e a conversão dos valores de uso quais falávamos anteriormente:
naturais em condições de produção capitalis-
“A ilimitada tendência expansionista contida
tas livremente apropriadas, na perspectiva
no capital como forma social de riqueza con-
marxiana são todos aspectos de um só pro-
tradiz todos os fatores limitantes impostos à
cesso”23.
produção humana pelo seu ambiente natural.
«Marx atribui um grande significado social à Isso se reflete na tendência do capitalismo de
livre apropriação, vendo-a como um elemento superar limites naturais particulares e locais
integral do desenvolvimento do caráter social expandindo os limites naturais da produção
da produção por parte do capitalismo através – a pressão da produção sobre os ecossiste-
mas e outros recursos naturais – em nível
da subordinação das forças produtivas latentes
global, da biosfera”25 “assim o capital abusa
do trabalho e da natureza aos impulsos expan- dos limites elásticos da capacidade de recu-
sionistas, transformativos, da acumulação mo- peração do trabalhador tanto quanto abusa da
netária concorrencial. Ao mesmo tempo, capacidade de absorção e da resiliência de
Marx indica como a livre apropriação das con- ecossistemas particulares, levando em ambos
dições naturais e sociais por parte do capita- os casos à destruição das forças naturais”26.
lismo reforça a alienação humana inerente à Marx analisa em especial o abuso, por
socialização da produção do capitalismo. Com parte do capital, da força de trabalho com o
o crescente domínio do capital sobre as con- aumento da jornada de trabalho para além
dições de produção, o valor de uso (a combi-
22
nação social de trabalho e natureza para Sobre a importância desta separação para Marx também insiste muito
Kohei Saito, o qual defende que esta seja a base da concepção marxiana
satisfazer as necessidades humanas) torna-se da alienação. Cfr. o capítulo “Alienation of nature as the emergence of
cada vez menos o motivo dominante por trás the modern”, in K. Saito, op. cit., pp. 25-62.
23
P. Burkett, op. cit., 1999, 74.
da produção e é posto cada vez mais a serviço 24
Ibidem, pp. 76-77.
da acumulação de valor. Uma vez convertidas 25
Ibidem, p. 88.
79
das necessidades biológicas de recuperação “A mercadoria, como todos os valores de uso,
humana, mas também da fertilidade das ter- é um produto tanto do trabalho quanto da na-
ras agrícolas, que progressivamente vai de- tureza. O valor, a substância da riqueza na sua
forma especificamente capitalista, é, todavia,
finhando gradualmente devido à exploração
simplesmente o tempo de trabalho social abs-
excessiva da agricultura capitalista trato objetivado nas mercadorias. Quantitati-
vamente, o capitalismo acrescenta valor à
natureza somente na medida em que a sua
A teoria do valor trabalho apropriação exige um trabalho que produz
e a sua relação com a natureza mercadorias, mesmo que a contribuição da
natureza à produção – e à vida humana mais
O pensamento ecológico tem sustentado geral – não seja materialmente redutível a
que a análise econômica marxista do capi- esse trabalho de apropriação.
talismo, e especialmente a teoria do valor,
“Em resumo, a forma do valor se abstrai qua-
exclui ou não tem em consideração de
litativamente e quantitativamente das carac-
forma adequada a real contribuição da na- terísticas úteis e vivificantes da natureza,
tureza à produção. Mas a desvalorização da ainda que o valor seja uma forma social par-
natureza é gerada pela lógica do sistema ca- ticular de riqueza – uma objetivação social
pitalista, não pela análise que Marx desen- particular tanto da natureza quanto do tra-
volve sobre esse modo de produção! E a balho. Essa contradição ajuda a explicar a
análise da forma do valor capitalista é cen- tendência do capitalismo a depredar o seu
ambiente natural”27.
tral não apenas pelo aspecto econômico
dessa análise geral do capitalismo, mas
Rompimento da barragem de Brumadinho/MG - Brasil,
também pelo aspecto ecológico-ambiental. em janeiro de 2019. Destruição de recursos naturais,
de ecossistemas e vidas humanas - Foto: Agência Brasil/EBC

26
Ibidem, p. 135.
27
Ibidem, pp. 79-80.
Central é a distinção marxista entre valor, Foto aérea da enchente provocada por chuvas extremas em Erftstadt,
Alemanha (julho de 2021).
valor de uso e valor de troca: os valores de Rhein-Erft District / @ BezRegKoeln / Twitter
uso, que são a verdadeira fonte da riqueza valor, valor de troca e valor de uso. Esse
material, são considerados apenas se a eles ponto deve ser destacado porque foi negli-
puder ser atribuído um valor. genciado – ou no mínimo, esquecido – por
“Os valores de uso que não podem ser pro- muitos dos críticos ecologistas de Marx que
duzidos e vendidos com lucro – inclusive queriam atribuir valor (e não apenas o valor
muitas condições naturais e condições so- de uso) à natureza. Em segundo lugar, a su-
ciais exigidas ou que contribuem com a pro- bordinação do valor de troca e do valor de
dução e com o desenvolvimento humano – uso como formas particulares do valor, co-
tendem a ser subestimados ou completa- rresponde a crescente dominação da produ-
mente desconsiderados, e essa é uma fonte ção para a venda lucrativa (D-M-D’ na
importante de crises ecológicas e sociais”28 . terminologia marxiana, com D que repre-
senta o dinheiro e M as mercadorias) sobre
A compreensão da essência do valor e a produção para uso (na qual qualquer troca
das suas características específicas é funda- monetária que ocorra tende a ser motivada
mental para apreciar plenamente o caráter pelo desejo de valores de uso diversos,
intrinsecamente antiecológico do capita- como síntese no circuito M-D-M’). [...]
lismo como sistema social particular de O crescente domínio do valor (na forma de
produção: força motriz do dinheiro) no reino da produ-
ção e da troca, na visão marxiana, é baseado
“a importância da abordagem marxiana é trí-
na mercantilização da força de trabalho
plice. Em primeiro lugar, ao afirmar que o
“livre” e dos meios de produção, isto é, sobre
valor de troca é uma forma de valor e não o
a avaliação monetária do trabalho e da pró-
contrário, Marx destaca que o valor surge
pria produção. [...] Isso se relaciona com o
apenas na produção, não no domínio da
terceiro [...] aspecto da análise marxiana do
troca.
valor, isto é, que dado que a riqueza existe
De fato, o procedimento marxiano é o único apenas como uma miríade de valores de uso
caminho coerente com uma teoria do valor produzidos de formas materialmente varia-
baseada na produção que não identifica das de trabalho e natureza, a subordinação
28
Ibídem, p. 52.
81
do valor de troca e do valor de uso ao valor

A
(tempo de trabalho social homogêneo) re- s “taxas verdes” propostas
presenta uma abstração social do valor de
uso (o caráter material da produção desti- pelos ecologistas não salvam as
nado a satisfação das necessidades). Desse
modo, o valor se abstrai formalmente das
contradições doi capitalismo. zx
bases naturais e da substância da riqueza»29.
Mas, repetimos, essa abstração do valor
da natureza não pode ser atribuível a Marx,
mas ao próprio capitalismo; antes, a teoria
do valor, quando é considerada inclusive
em sua dimensão “ecológica”, pode se tor-
nar um instrumento insubstituível de aná-
lise das contradições do capitalismo em
relação ao ambiente natural.
«A contradição entre valor de troca e valor
de uso intrínseco à mercadoria é também
uma contradição entre a forma da riqueza es-
pecificamente capitalista e as suas bases na-
Incêndio florestal em Antália, na Turquia, provocado por seca extrema (2021)
turais e sua substância. A natureza contribui www.globalvillagespace.com
com a produção de valores de uso, mas o ca-
pitalismo representa a riqueza com uma abs- sejam adequadas para solucionar essa con-
tração puramente quantitativa, sócio-formal:
tradição do capitalismo. Na realidade, Marx
o tempo de trabalho em geral. A “livre apro-
priação” das condições naturais por parte do não exclui que alguns recursos naturais pos-
capital (que ocorre sempre que a natureza sam ter um valor econômico – “a teoria mar-
contribui com a produção capitalista de va- xiana da renda reconhece que podem ser
lores de uso sem acrescentar valor à produ- atribuídos valores de troca a condições na-
ção) manifesta essa contradição na medida turais que não possuem valor, mas que são
em que é consentida pela valorização da escassas e monopolizáveis”32– mas,
própria natureza do sistema, ou seja, se-
gundo o tempo de trabalho social necessário “… a contradição valor-natureza não pode ser
para a sua apropriação na produção de mer- resolvida através de rendas privadas ou im-
cadorias, e não segundo a real contribuição plementando taxas “verdes” e esquemas de
da natureza para a riqueza ou à satisfação das subsídios em um sistema econômico mol-
necessidades humanas»30. dado e orientado pelo dinheiro e pelo capital.
Uma regulação ecológica que use técnicas
Para concluir essa parte, nos parece ne- monetárias e baseadas no mercado é uma
cessário fazer uma precisão “antirrefor- busca de um “optimum” nos termos do ca-
mista”, por assim dizer. O fato de que “os pital. O valor, com todas as suas característi-
valores de uso que não podem ser produzi- cas antiecológicas, permanece “o fator ativo”
dos e vendidos com lucro [...] tendem a ser que desagrega a co-evolução da sociedade e
da natureza, dado que trata os homens e a na-
subestimados ou não considerados”31 não
tureza apenas como “formas dissimuladas”
significa que soluções como as “taxas ver- do próprio valor” [O Capital, vol. I].
des”, que são frequentemente propostas
pelos ecologistas (em uma ótica reformista), Isso mostra um fenômeno mais geral, ou
seja, que qualquer um que “queira colocar
29
Ibidem, pp. 80-82. barreiras à produção [capitalista] de fora,
30
Ibidem, p. 82.
31
Ibidem, p. 52.
através de práticas, leis etc.” descobrirá rá-
32
Ibidem, p. 94.
82
pido que tais “barreiras meramente externas forças vitais que são geradas pela divisão in-
e artificiais serão necessariamente demoli- dustrial capitalista entre cidade e campo. En-
das pelo capital” [Características funda- quanto as interrupções na acumulação de
capital devido à carência de materiais envol-
mentais da crítica da economia política]”33.
vem as condições naturais como condições de
As “taxas verdes” não são assim um com- acumulação, a mais ampla concepção mar-
plemento útil à visão marxiana que o pró- xiana das crises ambientais se concentra na
prio Marx não teria considerado, mas fazem degradação da riqueza natural como condição
parte de uma visão oposta da relação capi- do desenvolvimento humano. No entanto, os
talismo-natureza. dois tipos de crise se sobrepõem consideravel-
mente na medida em que ambas envolvem re-
duções na qualidade e quantidade da riqueza
Contradições capitalistas natural apropriada, assim, ambas implicam a
e condições naturais livre apropriação das condições naturais por
parte do capital, juntas com todas as tensões
de produção qualitativas entre valor e natureza. Mais pre-
O terceiro e último dos preconceitos ecoló- cisamente, a tendência do capital em acelerar
gicos da análise de Marx e Engels defende a produção material além dos seus limites
naturais não é apenas fonte de escassez de re-
que suas análises das crises capitalistas não
cursos e crises de acumulação; é também um
contemplam as crises ambientais. Isso é to- elemento integrante do processo de degrada-
talmente falso. ção ecológica produzida pela divisão capita-
Não apenas, como já vimos, a contribui- lista entre cidade e campo»34.
ção da natureza na criação da riqueza é re- Analisemos o primeiro tipo de crise: essa
conhecida em todas as obras econômicas deriva do fato que “com o crescimento da
marxianas fundamentais (Grundrisse e O produtividade e do avanço tecnológico
Capital sobretudo), sendo assim, parte da existe um crescimento da quantidade de ob-
sua análise geral das crises, Marx ainda jetos e forças naturais que o capital deve
analisa especificamente dois tipos de crises apropriar-se como materiais e instrumentos
especificamente ambientais. da produção a fim de alcançar qualquer ex-
«Em especial, Marx considera dois tipos de pansão do valor e do mais valor [mais-
crises ambientais produzidas pelo capita- valia] determinado. A produtividade
lismo: (1) crise de acumulação do ca- crescente significa que cada hora de tra-
pital, baseada sobre o equilíbrio balho abstrato necessita de uma
entre as necessidades ma-
quantidade sempre maior de
teriais do capital e as
condições naturais da valor de uso e dos seus pré-
produção de maté- requisitos materiais.
rias-primas; (2) Nesse sentido, a acumu-
uma crise mais lação de capital implica
geral da quali- um crescente equilí-
dade do desen- brio quantitativo entre
volvimento
a acumulação de valor
humano-social,
derivada dos dis-
e a acumulação como
túrbios na circula- processo material depen-
ção da matéria e das dente das condições natu-
rais”35.
33
Ibidem, p. 98.
34
Ibidem, pp. 107-108.
35
Serviços ecossistêmicos. Fonte: metrovancouver.org
Ibidem, p. 110.
83
fletem mudanças nos valores das mercado-
rias. Nesse contexto, Marx indica que “uma
crise pode surgir: 1. no curso da reconversão
[do dinheiro] em capital produtivo; 2. Atra-
vés de mudanças no valor dos elementos do
capital produtivo, particularmente das maté-
rias-primas, por exemplo, quando há uma
diminuição na quantidade de algodão col-
hido: o seu valor aumentará”. [...] As carên-
cias de materiais não perturbam apenas a
acumulação aumentando o valor do capital
constante: podem também desagregar fisi-
camente a produção “tornando impossível
continuar o processo na escala exigida por
Tomates descartados na rodovia devido à queda no preço (Janeiro/2015). suas bases técnicas, assim, apenas uma parte
Foto: TV Vitória
das máquinas continuarão operativas, ou
Para usar as nossas palavras, os tempos todas as máquinas trabalharão somente uma
da produção dominada pelo capital (e por fração do tempo normal.» [K. Marx, Teorias
sua busca insaciável de lucro) não são com- sobre a mais-valia]. [...]
patíveis com os tempos de regeneração das Ainda que tais interrupções na aquisição
forças naturais: o aumento da produtividade de materiais envolvam condições naturais
devido ao avanço da produção social capi- incontroláveis, implicam também uma in-
talista é tão grande que, guiado apenas pela controlada acumulação de capital. Essa é
lógica de valorização do capital e não pelas em parte a causa da concorrência anárquica
necessidades humanas, exige um fluxo que impede o tipo de planificação ex ante
constante de energia e matérias-primas [prévia] necessária para minimizar os efei-
muito superior às capacidades que a natu- tos destrutivos dos eventos naturais, mas há
reza possui para sustenta-lo. Isso liga a es- ainda o desequilíbrio fundamental entre a
cassez das matérias-primas a uma crise de tendência do capital para uma expansão ili-
acumulação do capital: mitada e os limites da produção material em
«As análises formais marxianas sobre a es- determinadas condições naturais e sociais.
cassez de materiais e as crises de acumulação [...] Marx destaca que a barreira a acumu-
se desenvolvem em dois níveis. O primeiro lação da produção imposta pelos limitados
nível especifica “as condições gerais das cri- recursos materiais manifesta uma contradi-
ses, na medida em que são independentes das
ção entre a aceleração da produção e dos in-
flutuações dos preços (pois elas estão ligadas
ao sistema de crédito ou menos) assim como
vestimentos por parte do capital, de um
são distintas das flutuações do valor”. Nesse lado, e as leis naturais e os ritmos temporais
nível, as possibilidades de crise são tratadas que governam a produção material de
nos termos de “condições gerais da produção outro. Uma “análise completa” dessa tensão
capitalista”, abstraindo-se de todas as varia- entre os tempos da natureza e aqueles do
ções nos preços e na produção que implica a capital deve compreender “o sistema de
concorrência no interior e entre os setores;
crédito e a concorrência no mercado mun-
então, fenômenos como a especulação sobre
os preços dos materiais e a busca competitiva dial”: Marx deixou o grosso dessa segunda
por novas fontes materiais, para não falar das análise para uma “eventual continuação” de
rendas, são excluídas; as variações nos pre- O Capital, o que não foi possível reali-
ços são tratadas apenas na medida em que re- zar”36.
36
Ibidem, pp. 113-116.
84
Como podemos ver, se trata de uma aná- o reconhecimento precoce por parte de Marx
lise inacabada, mas certamente não esque- da importância estratégica de restabelecer
mática ou pouco desenvolvida, e que, uma “unidade” consciente entre os homens
e a natureza como uma tarefa central da so-
sobretudo, pode fornecer aos marxistas um
ciedade comunista”40.
método útil para o estudo das crises e das
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contradições específicas do processo pro-
dutivo capitalista moderno na sua relação
com a natureza.

A teoria marxiana
da fratura metabólica
Chegando ao segundo tipo de crise ambien-
tal, aquela “mais geral [...] da qualidade do
desenvolvimento humano-social”, devemos
introduzir a concepção marxiana da antítese
homem/natureza (e da sua articulação espe-
“Na sua análise da alienação de 1844, já
cífica na antítese cidade/campo) no interior
existe um tema central da sua crítica do ca-
do regime capitalista, concepção que, ainda
pitalismo, isto é, a separação e a unidade
que frequentemente subestimada, tem uma
entre humanidade e natureza. Por isso, em
grande importância no marxismo37.
contraste com as discussões filosóficas pre-
Essa temática, que segundo Kohei Saito cedentes, é necessário conduzir um exame
é a base da teoria marxiana da alienação, é sistemático do desenvolvimento do con-
central nos chamados Manuscritos econô- ceito de natureza de Marx em relação com
micos-filosóficos de 1844-4538, mas reapa- a sua economia política”41, e ainda “a crítica
recerá em seguida em outras obras marxiana da alienação de 1844 considera a
maxianas, em particular nos Grundrisse e reorganização “racional” da relação entre
no O Capital, testemunhando, que seja dito os homens e a natureza como essencial, e
de passagem, que não existe nenhuma “rup- desse modo ele concebe a ideia do comu-
tura epistemológica” no pensamento de nismo como “humanismo = naturalismo”.
Marx39. Esse é o início, ainda que somente o início,
“Seria certamente fútil, e em contradição da crítica econômica e ecológica do capita-
com as intenções de Marx, procurar encon- lismo por parte de Marx”42.
trar uma versão plenamente desenvolvida da
Pode-se ver então, como esse é um tema
sua ecologia nos seus cadernos de 1844, to-
davia, esses cadernos contém inegavelmente absolutamente relevante na concepção mar-

37
Em Literatura e revolução, um texto escrito entre 1922 e 1923 para celebrar a Revolução vitoriosa e para delinear uma parte das suas tarefas no
campo artístico e na criação de um «novo homem», Lev Trotsky escreverá: «A máquina não se contrapõe a terra. A máquina é o instrumento do homem
moderno em todos os campos da vida. A cidade moderna é passageira. Mas ela não se dissolverá no velho vilarejo. Ao contrário, será o vilarejo a elevar-
se a cidade. Essa é a nossa tarefa principal» (L. Trotsky, Literatura e revolução, 1923, Einaudi, 1973, p. 223). Pode-se ver como nesse caso emerge no-
vamente a necessidade, já indicada por Marx, de que a superação da antítese cidade/campo (como forma específica da antítese homem/natureza) seja
um dos objetivos programáticos da sociedade comunista.
38
A leitura desses escritos, que fazem parte dos Cadernos de Paris, como uma obra completa em si mesma foi objeto de uma série de críticas. Saito con-
textualiza estas críticas, a nosso ver perfeitamente, no seu livro O ecossocialismo de Marx.
39
Esta teoria, defendida em particular por Louis Althusser, é criticada por Saito no livro já citado.
40
K. Saito, op. cit., p. 26.
41
Ibidem, pp. 28-29.
42
Ibidem, p. 44.
85
xiana. Mas que tipo de relação tem com a
questão das crises ecológicas do “segundo
tipo”?
“A lucratividade dos aglomerados industriais
capitalistas revela as características antieco-
lógicas de valor e capital. Nessa área, as em-
presas concorrentes apropriam-se livremente
dos potenciais produtivos dos seus ambientes
naturais e sociais como meios de exploração
da força de trabalho. Fazendo isso, ignoram
os impactos combinados do crescimento e da
densidade material das indústrias e da popu-
lação sobre diversos sistemas ecológicos e
conexões da biosfera que constituem a base
natural última do desenvolvimento humano.
A análise de Marx e Engels da antítese ci-
Engels e Marx, extraído de Ñángara Marx.
dade/campo enfrenta esses impactos através
Karl Marx & Friedrich Engels, G.Goron [s f.]
do tratamento dos intercâmbios entre agricul-
tura e indústria manufatureira no capita- dida em que a produtividade do trabalho in-
lismo”43. dustrial é potencializada, ela mesma, pela
Os efeitos característicos do capitalismo, concentração. Os efeitos adversos dos resí-
diferente daquilo que ocorre com os outros duos industriais sobre a saúde da população
modos de produção, minam as condições urbana foram detalhados por Engels em A
naturais necessárias à produção e para a pró- situação da classe trabalhadora na Ingla-
pria vida. “A transformação espacial e tec- terra. Além disso, no entanto, uma boa
nológica da produção por parte do parte dos recursos urbanos tomam a forma
capitalismo, degrada a qualidade da riqueza de “excreções do consumo (...) produzidas
natural como condição do desenvolvimento pela transformação natural da matéria no
humano. A concentração da indústria e da corpo humano e parcialmente [como] obje-
população nas áreas urbanas, e a industria- tos que sobram depois do seu consumo” (O
lização da agricultura baseada na redução Capital, vol. III). [...] Muito frequente-
da autossuficiência e o despovoamento da mente, Marx e Engels analisam os efeitos
economia rural, produzem uma circulação das excreções do consumo sobre a saúde
social de matéria-prima que é ambiental- humana como parte da sua mais ampla crí-
mente insustentável e diretamente perigosa tica da circulação da matéria produzida pela
para a saúde humana. A crítica ambiental da divisão capitalista entre agricultura e indús-
produção capitalista é uma temática reco- tria urbana”45.
rrente nos escritos de Marx e Engels”44, isso E de fato, Marx e Engels voltam a esse
porque “a crescente produtividade do tra- conceito da “circulação da matéria” falando
balho industrial se traduz em crescentes ní- inclusive da industrialização da agricultura:
veis “normais” de volumes materiais e “O contraste capitalista entre cidade indus-
energéticos necessários para uma produção trial e campo agrícola cria uma circulação de
e uma venda lucrativa de mercadorias. Esse matéria que corrói a qualidade das condições
volume cresce de maneira acelerada na me- naturais não apenas para a produção agrí-
cola, mas para o desenvolvimento humano
43
P. Burkett, op. cit., 1999, p. 125. mais geral. [...] A industrialização da agricul-
44
Ibidem, p. 126. tura saqueia ainda mais a riqueza natural da
45
Ibidem, p. 126. terra, além dos efeitos dos resíduos urbano-
86
industriais e da incapacidade de reciclar as ex- “metabolismo social prescrito pelas leis na-
creções do consumo urbano. Nas condições de
turais da vida”, através de um “saque” dos
busca competitiva pelo lucro, a tecnologia
agrícola é transformada usando as máquinas e
elementos constitutivos do solo, fazendo-se
outros meios fornecidos pela indústria urbana. necessário sua “restauração sistemática”.
O exaurimento do solo é assim acelerado lado Essa contradição se desenvolve através do
a lado com a intensificação da exploração da crescimento simultâneo da indústria em
força de trabalho agrícola que, dada a destrui- larga escala e da agricultura em larga escala
ção das atividades rurais não-agrícolas, é lar- no capitalismo, com a primeira que fornece
gamente empregada em base sazonal”46. para a segunda os meios para a exploração
Assim, chegamos naquela que foi cha- intensiva do solo. [...] Marx afirmava que o
mada por Foster “teoria marxiana da fra- comércio de longa distância de comida e fi-
tura metabólica”. bras para vestuário produzia o problema da
Em um ensaio47 de 1999 que trazia esse alienação dos elementos constitutivos do
mesmo nome, cujas conclusões foram depois solo muito mais que uma “fratura irrepará-
retomadas no livro Marx’s ecology: materia- vel”. Para Marx, isso era parte do curso na-
lism and nature, publicado no ano seguinte, tural do desenvolvimento capitalista. Como
Foster, depois de ter citado Marx, sustenta escreve em 1852, “o solo deve ser uma mer-
que “aquilo que é comum em todas essas cadoria comercializável e a exploração do
passagens do Capital de Marx – o primeiro solo deve ser efetuada segundo as leis co-
que conclui a sua análise da renda fundiária merciais comuns. Devem existir produtores
capitalista no terceiro volume, e o segundo de alimento assim como fabricantes de fios
que conclui a sua discussão sobre a agricul- e algodão, mas não deve mais existir nen-
tura em larga escala e indústria no primeiro hum senhor de terra”48.
volume – é o conceito teórico central de uma Além disso, as contradições associadas
“fratura” na “interação me- com esse desenvolvimento eram de caráter
tabólica entre o homem global. Como observa Marx no primeiro vo-
e a terra”, isto é, o lume do Capital, o fato de que o “desejo

O lixo urbano-industrial degrada


os solos e as águas e a
qualidade de vida das pessoas

Bombaim, na Índia, os plásticos


e outros resíduos causando
grandes problemas para os
ecossistema marinho e para a
qualidade de vida da população.
FOTO: RAJESH NIRGUDE / NTB
SCANPIX

46
Ibidem, p. 127-128.
47
J.B. Foster, “Marx’s theory of metabolic rift”, in American journal of sociology, n. 105, settembre 1999, pp. 366-405.
48
K. Marx, “The Chartists”, 10 agosto 1852, publicado originalmente no New York daily tribune, n. 3543, 25 agosto 1852, in da K. Marx, F. Engels, Co-
llected works, vol. XI, International publishers, 1979, p. 333. A tradução é nossa do inglês. A citação continua assim «Não pode, em breve, ser tolerada
qualquer restrição política ou social, regulação ou monopólio, a menos que não descendam das “leis eternas da economia política”, isto é das condições
em que o Capital produz e distribui».
Destruição de florestas para abrir espaço às pastagens acelera o desmatamento da Amazônia Brasileira. (Foto: João Laet/AFP/Getty)

cego pelo lucro” tivesse “exaurido o solo” elementos constitutivos do solo”50. O leitor
da Inglaterra, poderia ser observado cotidia- nos perdoará o tamanho dessa citação, mas
namente no fato de que “se era obrigado a pensamos que seria necessário para expor
fertilizar os campos ingleses com os dejetos com clareza a base dessa teoria marxiana,
(guano)” importados do Peru. O próprio fato fundamental e quase desconhecida por mui-
de que sementes, dejetos etc., fossem impor- tos.
tados “de países distantes”, destacava Marx “Marx utilizou o conceito de uma “fratura”
nos Grundrisse (1857-1858), indicava que a na relação metabólica entre seres humanos e
agricultura no capitalismo tinha deixado de a terra para compreender o estranhamento
ser “autossuficiente”, que já não encontrava material dos seres humanos, no interior da so-
mais as condições naturais da sua própria ciedade capitalista, com relação às condições
naturais que constituem a base para a sua
produção dentro de si, despontadas natural-
existência – aquilo que ele chamava “as con-
mente, espontaneamente, ao seu alcance, dições da existência humana impostas pela
mas elas existem como indústria indepen- eterna natureza”. Insistir sobre o fato de que
dente separada dela”. Uma parte central da a sociedade capitalista em larga escala criasse
argumentação de Marx era a tese de que o uma tal fratura metabólica entre seres huma-
caráter inerente da agricultura em larga es- nos e o solo, significava defender que as con-
cala no capitalismo impede qualquer apli- dições de sustentabilidade impostas pela
cação realmente racional da nova ciência natureza haviam sido violadas”51.
de gestão do solo.49 No entanto, com todos Acreditamos que o conceito de “fratura
os desenvolvimentos científicos da agricul- metabólica” esteja agora suficientemente
tura, o capital era incapaz de manter aquelas claro, e que a demonstração de como o am-
condições necessárias para a reciclagem dos biente natural e a ecologia ocupam um lugar

49
O itálico é nosso.
50
J.B. Foster, op. cit., 2000, pp. 156-157. A tradução do inglês é nossa. O trecho é uma transposição quase idêntica daquele contido no ensaio do ano
anterior, cfr. J.B. Foster, op. cit., 1999, pp. 379-380.
51
J.B. Foster, op. cit., 2000, p. 163.
88
relevante (senão central) no pensamento de O conceito de natureza
Marx seja algo incontestável. Todavia, que-
remos debater a forma como isso se liga à
e o stoffwechsel em Marx
antítese cidade/campo como uma questão Agora estamos prontos para recapitular qual
programaticamente central para a sociedade é o conceito de ambiente natural de Marx53
comunista: e a ver a sua relação com a produção hu-
“Para Marx, a fratura metabólica associada
mana, e em particular com a produção capi-
em nível social à divisão antagônica entre ci- talista. Das extensas citações que
dade e campo era evidente também em nível propusemos pode-se extrair aquela que é a
mais global: todas as colônias viam os seus concepção de Marx e Engels: se nos escritos
territórios, os seus recursos, e o seu solo, sa- de 1844 é ainda detectável em Marx a in-
queados para sustentar a industrialização dos fluência do materialismo de Feuerbach54,
países colonizadores. [...] Assim, é impossí- que considerava um homem a-histórico e
vel escapar da conclusão de que a visão mar-
uma natureza abstrata, os fundadores do ma-
xiana da agricultura capitalista e da fratura
metabólica nas relações impostas pela natu- terialismo histórico rapidamente superarão
reza entre seres humanos e o solo levava estas concepções:
Marx a um conceito muito mais amplo de «A caracterização antropológica que Feuer-
sustentabilidade ecológica – uma noção que bach faz do homem com relação ao resto da
ele considerava ter uma relevância prática natureza, permanece abstrata. A natureza é
muito limitada para a sociedade capitalista, para Feuerbach um substrato privado de his-
que era incapaz de aplicar métodos racio- tória, homogêneo, cuja definição em uma dia-
nais-científicos nesse campo, mas essenciais lética de sujeito e objeto constitui o cerne da
para uma sociedade de produtores associa- crítica marxiana. A natureza é para Marx um
dos”52. momento da práxis humana e ao mesmo
tempo a totalidade de tudo o que existe»55.
52
Ibidem, p. 164.
53
O leitor está no direito de perguntar por que quisemos «proceder ao contrário», isto è, das fases marxianas da crítica ecológica do sistema capitalista à
sua concepção geral da natureza, e não da concepção geral às análises particulares. Achamos que esse modo de proceder tenha dado o destaque correto
ao componente prática-real da análise de Marx, evitando que as suas considerações pareçam filosóficas-abstratas, coisa que não o são absolutamente.
54
Sobre a questão da influência do materialismo de Feuerbach sobre o jovem Marx, e sobre a superação dessas concepções materialistas vulgares por
parte de Marx, recomendamos o artigo de Fabiana Stefanoni, “Por que os filósofos não mudam o mundo. A crítica de Marx e Engels aos Jovens hegelianos
e a Feuerbach. O que ainda há de atual nesse debate?”, in Trotskismo oggi, n. 16, primavera 2020, pp. 12-19. [Disponível também no site.]
55
Alfred Smith, Il concetto di natura in Marx, 1962, Edizioni Punto rosso, 2017, p. 83.
Fotografia acessível em Home Hunters by Trovit, Celia Méndez, 22 de novembro
89
produção é sempre social. Essa é sempre
“apropriação da natureza por parte do indiví-
duo no interior e mediante uma determinada
forma social” [K. Marx, Para a crítica da
economia política]” 59.
Assim, o conceito de metabolismo ou in-
teração orgânica, que é também um sinô-
nimo do trabalho humano, demonstra toda a
sua importância:
“a categoria conceitual chave na análise teó-
rica marxiana nessa área é o conceito de me-
tabolismo (stoffwechsel). A palavra alemã
stoffwechsel enuncia diretamente nos seus
elementos a noção de “intercâmbio material”
Ludwig Feuerbach que está na base da noção de processos estru-
turados de crescimento e decomposição bio-
A práxis humana é central no pensamento lógica contidos nos termos “metabolismo”.
de Marx, inclusive no que se refere à especi- Na sua definição do processo de trabalho,
ficidade da natureza: Marx tornou o conceito de metabolismo cen-
tral em todo o seu sistema de análise, ba-
“A Crítica ao Programa de Gotha fala da na-
seando a sua compreensão do processo de
tureza como “a primeira fonte de cada instru-
trabalho a partir desse conceito”60.
mento e objeto de trabalho”. O Capital vê na
natureza a base das “formas materiais de exis- O interação orgânica tem então um duplo
tência do capital constante”, a fornecedora dos significado:
instrumentos de produção às que pertence,
também, o trabalho vivo, o homem”56. “Assim, Marx utilizava o conceito seja para
referir-se à real interação metabólica entre a
A divisão social do trabalho, determinada natureza e a sociedade através do trabalho hu-
pelo grau de desenvolvimento das forças mano (o contexto usual no qual o termo foi
produtivas, implica uma relação particular do utilizado em suas obras), e em um sentido
homem com a natureza, que por sua vez, mais amplo (em particular nos Grundrisse)
contribui para determinar as relações sociais para descrever o conjunto complexo, dinâ-
mico, interdependente, de necessidades e re-
entre os homens.
lações criadas e constantemente reproduzidas
“Uma vez que as relações dos homens com a de forma alienada no capitalismo, e o pro-
natureza constituem o pressuposto para as re- blema da liberdade humana que suscitou:
lações dos homens entre si, a dialética do pro- tudo isso pode ser visto como conectado ao
cesso de trabalho como processo natural, se modo no qual o metabolismo humano com a
estende a uma dialética da história humana em natureza se exprimia através da organização
geral”57; “depende sempre do nível alcançado concreta do trabalho humano. Desse modo, o
pelas forças produtivas materiais e intelec- conceito de metabolismo assume, tanto um
tuais, quais possiblidades inerentes à matéria significado ecológico específico, quanto um
e em qual medida podem ser realizadas58. “A significado social muito mais amplo”61.

56
Ibidem, p. 124.
57
Ibidem, pp. 124-125.
58
Ibidem, p. 126.
59
Ibidem, p. 132.
60
J. B. Foster, op. cit., 2000, p. 157.
61
Ibidem, p. 158.
90
material, em uma unidade que é também ne-
ma concepção correta da
U interação orgánica é necessária
cessariamente uma distinção”64; “a contradi-
ção e o antagonismo entre as forças
produtivas (homem/natureza) e as relações
também para a construção da nova sociais de produção (homem/homem) como
sociedade socialista. zx o motor fundamental da história humana, e
da história da totalidade natural desse pla-
neta”65.
A concepção de interação metabólica
homem/natureza está estreitamente ligada Uma concepção correta da interação or-
àquela fratura metabólica no capitalismo, gânica é necessária também para a constru-
que tem suas raízes, como vimos, na antítese ção da nova sociedade socialista: “para a
cidade/campo: sociedade futura Marx prevê uma “síntese
superior... de agricultura e de indústria”, o
“A concepção marxiana de interação orgâ-
que pressupõe certamente que aquela intera-
nica, não apenas no sentido metafórico, mas
também fisiológico, emerge claramente da
ção orgânica se realize “sistematicamente
crítica de Marx à rígida separação, típica da como lei reguladora da produção social e em
produção capitalista da sua época entre ci- uma forma adequada ao pleno desenvolvi-
dade e campo”. 62. mento do homem”66.
Não existe uma interação orgânica
“pura”, “abstrata”: cada modo de produção Domínio da natureza?
estabelece uma interação orgânica com a
natureza. Para completar o exame da concepção de
Marx e Engels sobre a natureza, não nos
“A relação entre homem e natureza está
resta mais que retornar à questão do domí-
assim mediada, no sentido de que a natureza
é conhecida pelo homem através da pesquisa nio da natureza por parte do homem. Essa
científica, e é apropriada e manipulada pelo tese fundamentalmente positivista não tem
homem através do trabalho, isto é, mediante nada a ver com o marxismo, ainda se, como
a produção social organizada nas formas his- vimos, seja falsamente atribuída a Marx
tórico-sociais transitórias cujas dinâmicas in- uma confiança ilimitada no progresso das
ternas não são postas pela natureza, ainda forças produtivas. Isso deriva também do
que por elas possam estar condicionadas”63.
fato que Marx e Engels consideram, em
É assim que a história do desenvolvi- certos aspectos, o capitalismo como pro-
mento das formas de interação orgânica co- gressivo com relação aos modos de produ-
rrespondem à história humana no sentido ção pré-capitalistas: desta ideia é dada
mais completo: frequentemente uma representação absolu-
“através da categoria de interação orgânica a
história social é parte da história natural, o
sujeito intencional que dá forma ao objeto

Mais de 80% do esgoto do mundo é descartado sem tratamento


no meio ambiente. Fonte: https://meam.openchannels.org/news/.
Foto: Agencia SINC

62
A. Schmidt, op. cit., p. 157.
63
M. Nobile, op. cit., p. 43.
64
Ibidem, p. 42.
65
Ibidem, p. 53.
66
A. Schmidt, op. cit., p. 158.
91
tamente distorcida, de Marx como industria- principalmente quantitativa, do progresso
lista a todo custo. No entanto, para Marx humano com produção e consumo de massa
às custas da natureza. Essa falsa identifica-
“o capitalismo é progressivo não apenas por- ção ignora a crítica marxiana, qualitativa e
que desenvolve as forças produtivas, mas por classista, da produção e do consumo capita-
que: (1) ao fazê-lo, nega cada lógica de escas- lista”69.
sez material por causa dos monopólios de
classe sobre a disposição do tempo de tra- Mas como é então interpretada a expres-
balho e dos produtos excedentes da sociedade, são “domínio da natureza” que é utilizada
portanto, sobre oportunidades de desenvolvi- por Marx e Engels?
mento humano na medida em que tais opor-
“A cada momento nos é relembrado que nós
tunidades sejam função da distribuição do
não dominamos a natureza como um con-
tempo livre e do nível e da segurança dos pa-
quistador domina um povo estrangeiro sub-
drões de vida materiais; (2) o faz desenvol-
jugado, que não a dominamos como quem é
vendo as formas cooperativas e sociais de
estranho a ela, mas que nós lhe pertencemos
trabalho e produção permitindo, de tal modo,
com carne e osso e cérebro e vivemos no seu
à humanidade superar as formas de desenvol-
ventre: todo o nosso domínio sobre a natureza
vimento socialmente e naturalmente restritas
consiste na capacidade, que nos eleva acima
que caracterizam as sociedades pré-capitalis-
das outras criaturas, de conhecer as suas leis
tas”67.
e de emprega-las de modo apropriado”70.
Esse desenvolvimento, para Marx e En- “Vejamos então que o “domínio sobre a na-
gels, é um meio e não um fim: tureza” é na realidade um conhecimento (his-
toricamente sempre maior) das leis da
“O desenvolvimento das forças produtivas
natureza. “O materialismo dialético não ig-
por parte do capital (ou seja, a negação das ló-
nora nem fetichiza as leis inerentes à natureza
gicas da escassez pelos limites de classe sobre
material, com as quais a sociedade deve sem-
o desenvolvimento humano), junto com o de-
pre tratar para alcançar os seus objetivos”71.
senvolvimento extensivo e intensivo da divi-
são social do trabalho e das trocas (ou seja, a Engels nos dá, em um trecho magistral
potencial universalização da livre individua- de uma das suas obras mais maltratadas por
lidade humana), são os veículos aqui, não o aqueles que não entenderam nada da dialé-
conteúdo evolutivo humano”68.
tica, uma precisa imagem da interdependên-
Reiteramos então a absoluta falta de fun- cia entre leis naturais e desenvolvimento
damento da ideia de um Marx “produti- qualitativo da sociedade humana:
vista”: “a liberdade não consiste no sonhar com a
“Marx defende que, ainda que o capitalismo independência das leis da natureza, mas no
crie o potencial para uma forma menos restrita conhecimento dessas leis e na possibilidade,
de desenvolvimento humano, esse potencial ligada a esse conhecimento, de fazê-la agir
só pode ser realizado com a transformação segundo um plano para um determinado
qualitativa por parte do comunismo das forças fim”72. “O domínio da natureza pressupõe
e das relações de produção desenvolvidas no sempre o conhecimento dos processos e das
capitalismo. A interpretação prometeica con- conexões naturais, enquanto esse conheci-
verte arbitrariamente a visão qualitativa mar- mento por sua vez é resultado exclusivo da
xiana, de um desenvolvimento humano transformação prática do mundo. [...] Os ho-
menos restrito em uma concepção que não mens podem dominar a natureza apenas se,
leva em conta as relações sociais humanas, por sua vez, se submetem às leis naturais”73.
67
P. Burkett, op. cit., p. 152.
68
Ibidem, p.154.
69
Ibidem, p. 172.
70
F. Engels, Dialética da natureza, 1925, in K. Marx, F. Engels, Obras completas, vol. XXV, Editori Riuniti, 1974, p. 468.
71
A. Schmidt, op. cit., pp. 163-164.
72
F. Engels, Anti-Dühring, 1878, Edizioni Lotta comunista, 2009, p. 141.
73
A. Schmidt, op. cit., p. 162.
92
Claramente não é apenas questão de co-
nhecimento das leis naturais, mas um pro-
blema preciso de classe, isto é, da classe
que governa as escolhas políticas da socie-
dade e do mecanismo anárquico e perverso
da produção capitalista, que impede a apli-
cação racional dos conhecimentos científi-
cos74.
“O imperativo categórico do capitalismo é a
acumulação intensiva e a sua reprodução em
escala sempre mais ampla a qualquer custo:
e os custos dessa lógica louca que constitui
inclusive a enorme força que chamamos de
As guerras e a repressão capitalista causam fome aos povos
crises econômicas, desperdício de preciosas e destruição da natureza e dos recursos naturais.
capacidades humanas, poluição, congestio- Fotografia: AFP, acessível em El Nuevo Diario, 22/3/2018
namento urbano, destruição da natureza,
consumo de recursos não renováveis, fome, As necessárias
guerra. Ele “revoluciona” as próprias “con-
dições produtivas” sociais e naturais em uma consequências políticas
dialética de destruição e inovação cujo cen- De tudo que foi dito, resulta que o pro-
tro é constituído pelas transformações e pela grama marxista para a revolução socialista
generalização desigual em escala nacional e
é ainda extremamente atual, mas isso é ape-
mundial da relação social fundamental: o
trabalho assalariado, seja na produção, seja nas o início. Contribuições de estudiosos
nas normas de consumo”75. como Burkett, Foster, Saito e outros são ab-
solutamente preciosas na medida em que
Eis, portanto, porque não é possível pen-
ajudam os militantes a redescobrir alguns
sar com soluções minimalistas, mas é ne-
aspectos da obra de Marx, mas os militantes
cessário destruir desde a raiz o vírus
revolucionários devem “apropriar-se” de
capitalista e construir uma sociedade na
tais resultados para colocá-los a serviço de
qual sejam os “produtores associados” a
um programa de transição para o socia-
gerir a economia e a política.
lismo. E é neste aspecto, que para nós é
“Não é possível estabelecer uma nova coo- central, no momento de construir um pro-
peração entre a sociedade e a natureza sem
grama coerentemente revolucionário e que
uma forma radicalmente nova de coopera-
ção entre os homens, para não se entender
tenha um caráter de classe proletário e in-
como uma questão apenas de consciência,

O
mas como transformação da materialidade imperativo categórico do
social, ou seja, da materialidade objetiva- capitalismo é a acumulação
mente restritiva das relações econômicas e
políticas, cristalizadas na técnica, mas não intensiva e sua reprodução em escala
redutível a ela”76.
sempre mais ampla a qualquer custo. zx
74
Não temos condições para aprofundar o tema da economia nesse ensaio, mas a mesma pesquisa científica está condicionada pelo modo de produção:
a pesquisa, financiada quase inteiramente pelas empresas privadas, não pode com certeza ir além de certos limites ou em direções não úteis para o
capital. E as descobertas feitas no interior desses limites já restritos, não são aplicadas racionalmente na interação metabólica da sociedade com a na-
tureza. Uma revolução que mudasse o modo de produção abriria possibilidades inimagináveis hoje.
75
M. Nobile, op. cit., pp. 14-15.
76
M. Nobile, op. cit., pp. 52-53.
93
dependente, que as nossas estradas se sepa- criará as condições para uma segunda, e mais
ram de Foster77. Enquanto eles afirmam que decisiva, fase ecossocialista da luta revolu-
“os marxistas ecologistas sugerem que já se cionária, direcionada para a criação de uma
possam identificar os sinais de nascimento sociedade inspirada no lema “de cada um se-
gundo a sua capacidade, a cada um segundo
daquilo que pode ser chamado de um nas-
as suas necessidades!” e fundada sobre uma
cente “proletariado ambiental”78, os marxis- base sustentável”80.
tas revolucionários consideram que essa
posição seja incorreta, e que ecoa as velhas Seria assim uma fase democrática da luta
posições terceiro-mundistas que já caracte- ao menos cronologicamente distinta da,
rizavam Monthly review historicamente, mas talvez até mesmo contraposta a, uma
desde a época de Sweezy79. sucessiva fase socialista.
Claramente nós não negamos que os Em suma, uma tipologia de impostação
efeitos das mudanças climáticas e da devas- da luta morta (mas infelizmente não sepul-
tação da natureza sejam mais sofridos pelos tada) em 1917...
povos mais oprimidos pelo imperialismo, E quem fala de “proletariado ambiental”
mas a individualização de um novo “sujeito de fato reafirma essa análise “etapista”
social revolucionário” nos parece uma pro- dando à luta uma conotação geopolítica, de-
blemática apenas do ponto de vista analí- fendendo os países do sul do mundo, em
tico, mas, sobretudo, errado política e particular aqueles chamados “socialismo do
programaticamente: para nós, central no século XXI”, que representam o “proleta-
processo revolucionário é a classe operária, riado ambiental real”, isto é, dos governos
o proletariado no sentido “clássico”, exata- nacionalistas burgueses anti-operários!
mente porque pensamos em um processo
que deve visar a subversão do sistema pro- Para Marx, os reformistas são como Don Quixote. Em um texto
preparatório de O Capital, Grundrisse, chama às ações reformistas
dutivo e das relações de produção capitalis- “quixotadas”, em referência à personagem de Cervantes que lutava
tas. A noção de “proletariado ambiental” contra os moinhos de vento, significando que é impossível reformar o
nos parece prefigurar uma luta sem um capitalismo (ilustração do texto de Gustavo Machado para Teoria & Revolução).

claro caráter de classe, e isso é coerente


exatamente com aquilo que Foster afirma
depois sobre as fases (etapas?) que ele
prevê para esta luta:
“um movimento ecológico revolucionário
adequado a essa tarefa passará sem dúvida
por uma fase ecodemocrática, procurando
construir uma aliança ampla, na qual a maio-
ria absoluta da humanidade, fora dos interes-
ses dominantes, será obrigada pela crescente
desumanidade a exigir um mundo caracteri-
zado por um desenvolvimento humano sus-
tentável. Com o tempo, isso provavelmente

77
Tomemos por exemplo Foster apenas porque as suas conclusões políticas são explicitadas no ensaio “Ecologia” já citado, e assim nos oferece uma
simples ocasião de crítica.
78
J.B. Foster, “Ecologia”, in M. Musto, op. cit., 2019, p. 215.
79
Paul Marlor Sweezy (1910-2004) foi um economista marxista, fundador da Monthly review em 1949. As posições chamadas terceiro-mundistas sus-
tentavam que o ponto central da luta de classe havia se deslocado dos países capitalistas avançados para os países dependentes, tornando segundo
alguns, uma luta entre norte e sul do mundo. Não está claro como seja possível que estas teorias tenham sobrevivido ao Maio francês de 68…
80
Ibidem, pp. 216-217.
94
Não é então um acaso que um dos livros Consideramos que mesmo o debate mar-
de Foster, The ecological revolution xiano do problema ecológico, bem recons-
(2009), se fecha com as palavras de “um truído por Burkett e Foster, seja a
dos mais eloquentes defensores, em escala demonstração de como, sobretudo nesse
mundial, do meio ambiente global e dos di- campo, a necessária revolução socialista
reitos dos indígenas”81 ... Evo Morales!82 A não pode prescindir da classe operária e do
frase que é apresentada é que “não haverá seu papel na produção: “É através da valo-
solução para a crise ecológica global “até rização da categoria de interação orgânica
que não se mude o sistema capitalista com como regulação racional da relação entre
um sistema baseado sobre a complementa- sociedade e natureza e da crítica das suas
ridade, a solidariedade, a harmonia entre determinações históricas que se podem co-
os povos e a natureza”83. locar as bases para a integração na perspec-
Não parece que Morales tenha feito tiva anticapitalista de uma estratégia
nada disso enquanto governava a Bolívia... ambientalista”84.
Os governos “progressistas” da América Latina, dizem defender Como vimos, “interação orgânica” é em
o meio ambiente mas até mesmo os povos originários são despojados certo sentido, sinônimo de “trabalho”85.
de suas terras para a entrada dos megaprojetos de exploração
dos recursis naturais Como podemos então aceitar as catego-
rias marxianas e não colocar no centro do
nosso programa revolucionário o proleta-
riado, com a sua necessidade de indepen-
dência de classe da burguesia?
Isso significa talvez que não procuramos
outros aliados na luta pela mudança climá-
tica? Não, significa que estamos dispostos
a nos aliar com quem pode partilhar as nos-
sas batalhas contra a mudança climática e a
destruição do meio ambiente, mas que le-
vamos avante desde o início em uma pers-
pectiva socialista.
De novo, isso significa que defendemos
apenas propostas socialistas e nos contra-
pomos àquelas “democráticas”? Não, sig-
nifica que o programa que apresentamos à
classe operária e a todos que com ela que-
rem salvar o planeta Terra é um programa
transitório para o socialismo, que incorpora
diversas reivindicações e objetivos, inclu-
sive os democráticos, mas que deve culmi-

81
A citação é reportada por M. Löwy no seu livro Ecossocialismo no fechamento do oitavo capítulo. Seja dito de passagem, Löwy não move nenhuma
crítica a Foster por essa referência a Evo Morales. Mas pelo o que se refere a Löwy deixamos para o apêndice desse ensaio.
82
Deveria ser supérfluo reafirmar que não compartilhamos em nada com a caracterização de Evo Morales dada por Foster.
83
Idem.
84
M. Nobile, op. cit., p. 18.
85
Esses dois termos indicam dois aspectos diferentes (relação homem/homem e relação homem/natureza) da mesma atividade humana, isto è a criação
de valores de uso.
nar, para ser eficaz e não ilusório, na to-
mada do poder por parte dos trabalhado-
res e dos setores sociais a eles aliados, na
destruição do sistema capitalista e na
construção de uma economia nova. Esse
é o método que desde sempre como trots-
kistas, reivindicamos, porque levou à vi-
tória em Outubro de 17.
A este ponto o leitor poderia legitima-
mente perguntar-se se as críticas políticas
Protesto de estudantes contra as mudanças climáticas em Valencia –
que direcionamos a Foster e à sua corrente Estado espanhol em 2019. Agência EFE.
acadêmica não invalidam os seus estudos Acessível em https://www.lasprovincias.es/valencia-ciudad/
teóricos. aquilo que há de bom nessas análises, liber-
Na medida em que pudemos conhecer tando-as das escórias políticas reformistas,
essas elaborações, nos parece, em nível e coloca-las a serviço do nosso projeto re-
teórico, a mais coerente análise do pensa- volucionário geral.
mento de Marx sobre o tema. Talvez te- “Para Marx o socialismo era uma nova
nhamos alguns conceitos a aprofundar ou forma revolucionária de reprodução me-
discutir, como o conceito de desenvolvi- tabólica social objetivando a realização
mento humano sustentável86, no entanto, de necessidades comunitárias, enraizada
conceitos como o de “fratura metabólica” em condições de substancial igualdade e
nos parecem que recolocam Marx no seu de sustentabilidade ecológica. Isso estava
lugar de direito inclusive no “campo eco- definido como uma sociedade na qual “o
lógico”. livre desenvolvimento de cada um é a
condição para o livre desenvolvimento de
Pensamos que não se possa atribuir à todos”, mas na qual também era essencial
teoria da fratura metabólica as posições po- proteger o poder produtivo da própria
líticas equivocadas de Foster, assim com a terra no interesse daquilo que Marx cha-
política das “frentes populares” não se mava no Capital “a cadeia das sucessivas
pode atribuir a necessidade da classe ope- gerações da raça humana87.
rária de se defender da reação.
Só uma revolução proletária baseada na
Sabemos bem que os reformistas estão democracia operária, isto é, que organiza
em grau de justificar a sua aliança com a um novo Estado no qual os trabalhadores
burguesia com qualquer desculpa. Os limi- se organizam em conselhos para dirigir a
tes do marxismo acadêmico, ou seja, a pes- economia e o próprio Estado, pode garantir
quisa teórica sem o compromisso militante tudo isso.
é essencialmente aquele de não poder liber-
tar-se da influência do reformismo. E essa é a perspectiva pela qual lutam os
marxistas revolucionários.
Como marxistas revolucionários, no en-
tanto, não devemos hesitar em tomar Traducción: Nívea Leão.

86
Distinto do conceito de «desenvolvimento sustentável» utilizado pelos economistas burgueses. Cfr. P. Burkett, Marxism and ecological economics.
Toward a red and green political economy, 2006, Brill, em particular o capítulo dez, “Marxism, ecological economics, and sustainable human development”.
A eeconomia deste ensaio, que já é robusto, não nos permitiu enfrentar esta ou outras questões, mas apenas dar um quadro geral.
87
J.B. Foster, “Ecologia”, in M. Musto, op. cit., 2019, p. 217.

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