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PSICOSSOMÁTICA E POSITIVISMO

Antonio Farjani

Agosto 2007

Aquele que quebra uma coisa para descobrir


o que ela é deixou o caminho da sabedoria

J.R.R. Tolkien1

A herança de Descartes

Quem, sabendo quão diversos autômatos, ou máquinas móveis, a indústria dos homens
pode produzir, sem aplicar nisso senão pouquíssimas peças, em comparação à grande
quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes
existentes no corpo de cada animal, considerará esse corpo uma máquina que, tendo
sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente mais bem organizada e capaz de
movimentos mais admiráveis do que qualquer uma das que possam ser criadas pelos
homens.

Discurso Sobre o Método

No século XVII, o matemático e filósofo francês René Descartes (1596-1650)


consagrou o pensamento racional como instrumento de investigação da realidade. Um
de seus mais famosos postulados, a divisão entre espírito e matéria, trouxe consigo uma
concepção do universo como um sistema mecânico, formado por objetos independentes
e interligados nos moldes de uma engrenagem: a interação entre essas peças, envolvidas
numa sucessão de causas e efeitos, determinava e explicava todos os fenômenos
naturais. O mesmo conceito foi aplicado aos organismos vivos, que não passariam de
máquinas constituídas de peças independentes. Essa concepção mecanicista do mundo,
hoje predominante no mundo científico, igualmente impregnou o senso comum do
homem moderno. A máxima de Descartes, “penso, logo existo”, induziu-nos a equiparar
nossa identidade à nossa mente racional, localizada no cérebro segundo a noção
mecânica dos organismos.

Hoje nossa ciência, apoiada na filosofia de Descartes, na matemática de Isaac Newton e


na metodologia científica de Francis Bacon, vê na matéria a base de toda existência. A
investigação da verdade, por sua vez, passou a consistir na redução dos objetos a seus
componentes básicos e no estudo da interação entre essas partes. Esse método,
conhecido como reducionismo, enraizou-se de tal modo em nossa cultura que passou a
ser considerado o único procedimento verdadeiramente científico na investigação dos
fenômenos.

Esses pressupostos, além de influenciar o senso comum, aparecem nas mais variadas
matérias publicadas por nossos veículos de comunicação, algumas vezes de forma
explícita, e outras de modo subliminar. Ao ler cuidadosamente cada parágrafo desse tipo
de matéria, constataremos que meros postulados são enunciados como verdades
científicas inquestionáveis. O artigo da revista Veja, intitulado Quando o Cérebro é o
Médico... e o Monstro,2 de Anna Paula Buchalla e Paula Neiva, nos servirá de exemplo
de como os pressupostos do mecanicismo cartesiano entremeiam as matérias veiculadas
pela mídia, sem que o leitor ou espectador se dê conta do fato. Já na epígrafe da
reportagem lemos:

“O impacto das emoções e dos transtornos psíquicos sobre a saúde orgânica


é muito maior do que se supunha. A psique é tão importante quanto a
genética e o estilo de vida no desenvolvimento e no tratamento das mais
diversas doenças”.

Capa da revista Veja no 1962:


elogio ao dualismo positivista.

Em seguida, o artigo narra o caso de uma mulher de 39 anos que descobre a origem
emocional de seu hipotiroidismo ao submeter-se à psicoterapia:

“Depois de seis meses de sessões, tudo começou a ficar mais claro: ‘Eu me
sentia constantemente agredida nos relacionamentos pessoais. Eu entregava
muito mais do que recebia, e essa troca desigual não me fazia bem. Era
assim no meu casamento, nas minhas amizades e na minha família’.
Desvendados os mecanismos psíquicos que a levavam a comportar-se dessa
maneira, Lívia resolveu parar com os medicamentos. Hoje, sua tireoide vai
muito bem e sua cabeça idem. O hipotireoidismo era, como se costuma
dizer, de fundo emocional”.

Nestes dois parágrafos, já somos induzidos a aceitar alguns pressupostos cartesianos,


sem questioná-los. Primeiro, que a mente e o corpo constituem sistemas independentes,
de modo que um possa influenciar o outro. Também mencionam-se “mecanismos
psíquicos”, “comportamento”, e a “cabeça” como os responsáveis pelos males físicos de
uma paciente. Ao hipoteroidismo, por sua vez, foi atribuído um “fundo emocional”.
Faz-se necessário, portanto, saber um pouco mais da origem dos pressupostos que
sustentam essa classe de abordagem.

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Descartes descreveu o universo como um perfeito mecanismo de moção vertical que
funciona deterministicamente, nos moldes de uma máquina. Para ele, a natureza se
comporta de acordo com leis mecânicas, atrelada a leis matemáticas exatas, de modo
que todos os elementos e fenômenos do mundo material poderiam ser explicados em
função da organização e do movimento de suas partes. Descartes também viu os corpos
dos animais como máquinas, comparando-os a um “relógio composto de rodas e
molas”, e afirmou: “Não reconheço qualquer diferença entre as máquinas feitas por
artífices e os vários corpos que só a Natureza é capaz de criar”. Sobre o corpo humano,
por sua vez, escreveu: “Considero o corpo humano uma máquina (...) Meu pensamento
(...) compara um homem doente e um relógio mal fabricado com a ideia de um homem
saudável e um relógio bem feito”.

Descartes acreditava que os animais poderiam ser descritos redutivamente


como autômatos (De Homines, 1662). Mais de quatro séculos depois, o mito
persiste. Imagem: The Duck of Vaucanson. Fonte: Wikipedia.

Mas havia uma diferença entre o homem e os demais animais. Enquanto os primeiros,
juntamente com as plantas, se resumiam a simples máquinas, o corpo humano era
habitado por uma alma racional, a ele ligada pela glândula pineal, situada no centro do
cérebro. De fato, ninguém poderia desejar um conceito mais rigorosamente científico do
que esse. Estas ideias explicam, por exemplo, a estranha associação que o senso comum
estabelece entre conceitos tão diferentes quanto o de “mente” ou “cabeça”. Costumamos
dizer que uma pessoa inteligente é “um crânio”, ou tem “uma cabeça incrível”. Pensar
sabiamente é “usar a cabeça”. As pessoas bem humoradas têm “uma cabeça boa”, e as
flexíveis “uma cabeça aberta”. Um indivíduo sofredor possui uma “cabeça
atormentada”. Aos cientistas, chamamos de “grandes cérebros”, e procuramos um
psicólogo para “cuidar da nossa cabeça”. Quando perdemos o controle sobre nossas
emoções, dizemos que “perdemos a cabeça”, enquanto os loucos não passam de pobres
“doentes da cabeça”.

Em princípio, este tipo de associações parece inofensivo: afinal, a mente seria produto
do cérebro, que fica dentro da cabeça... No entanto, por mais naturais que tais
expressões possam parecer às pessoas que as usam, elas consistem no resultado de um
profundo e continuado condicionamento mental que nos influencia desde o século XVII,
quando Descartes publicou o seu Discurso sobre o Método (1637). Ficamos tão

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acostumados a essas equações estabelecidas no cotidiano, que igualam conceitos tão
distintos como psiquismo, mente, pensamento, consciência, emoções, cérebro, cabeça,
que perdemos a capacidade de nos admirar de sua arbitrariedade e de suas estranhas
implicações. Assim, ao afirmar que a “cabeça” da paciente vai bem, o artigo pretende
dizer, no peculiar código cartesiano, que a mente que habita o corpo daquela mulher
voltara a operar de maneira saudável, como um relógio mecânico reparado após uma
revisão. Afinal, a sede de nossas emoções está no cérebro, e o próprio nome do artigo
(Quando o Cérebro é o Médico e o Monstro) reflete essa ideia. Logo na linha seguinte
ao título, a epígrafe (“O impacto das emoções e dos transtornos psíquicos sobre a saúde
orgânica é muito maior do que se supunha”) já enuncia que cérebro = mente = emoções
= psique ≠ corpo. Para continuar nossa leitura, teremos de aceitar a legitimidade desta
duvidosa equação.

No texto, as palavras mente ou mental ocorrem 8 vezes, enquanto que a alma é


lembrada uma única vez, sob a licença de um arroubo poético: “O que os cientistas
acreditam é que, num futuro não tão distante, será possível auscultar o cérebro para
evitar que doenças atravessem a alma e desintegrem o corpo”. A palavra mente parece
mais adequada por conferir uma aura científica ao texto e deter mais credibilidade que
sua suposta correspondente (alma), que nos remete a domínios não tão gratos ao status
quo científico, como fé, metafísica ou religião. Pelo mesmo motivo a tradução inglesa
da obra de Freud, por James e Alix Strachey, substituiu a palavra “alma” (em alemão
seele), usada pelo criador da psicanálise, por termos e expressões mais técnicos como
“psiquismo” ou “aparato psíquico”. O que Freud nomeou “a estrutura da alma” e “a
organização da alma”, no texto em inglês transformou-se em “aparelho mental” ou
“organização mental”. O psicólogo austríaco Bruno Bettelheim, autor de um livro que
critica a tradução de Freud para o inglês, protestou argumentando que “a palavra que os
tradutores empregam para substituir ‘da alma’ – mental – tem um equivalente exato em
alemão, a saber, geistig, que significa ‘da mente’ ou ‘do intelecto’. Se Freud quisesse
dizer geistig, teria escrito geistig” – contesta o autor.3

Termos como emoções ou emocionais são usados 15 vezes, ditando que tudo aquilo que
pertence ao psiquismo deverá se referir invariavelmente ao emocional. As autoras ainda
nos advertem que “o número de pessoas que sucumbem fisicamente às suas próprias
emoções é enorme”. Todavia, aquilo que é psicológico não pertence necessariamente ao
âmbito emocional: essas palavras não são sinônimas. A psicanálise diferencia as
emoções dos afetos inconscientes, e divide as somatizações em categorias como
conversão histérica, conversões pré-genitais e as doenças psicossomáticas
propriamente ditas.4 A conversão histérica se refere a transtornos psicológicos pré-
conscientes ou inconscientes relativos ao processo edípico, entendendo-se este último
como a fase estruturante da personalidade: as conversões pré-genitais, por sua vez,
remetem a aspectos mais primitivos do psiquismo, anteriores ao processo edípico. Os
sintomas da conversão histérica não se devem a doenças orgânicas propriamente ditas, e
sim a distúrbios difíceis de se diagnosticar em um exame clínico, como alterações
motoras ou da percepção sem lesão aparente. As conversões pré-genitais se expressam
em afecções não muito graves mas diagnosticáveis como a asma, as alergias, gastrites e
úlceras estomacais, ou em quadros como a gagueira e os tiques nervosos.

As doenças psicossomáticas, associadas a diagnósticos mais graves, por sua vez se


referem a um estágio ainda mais primitivo do psiquismo, anterior à linguagem e à
capacidade de simbolização: são distúrbios de caráter estrutural, enquanto as
conversões consistem em distúrbios de ordem funcional. Destas três, somente a
4
conversão histérica, com alguma boa vontade, se permitiria ser descrita como pertinente
aos domínios do emocional, embora sua essência se encontre em conflitos e afetos
inconscientes, não necessariamente expressados por alterações emocionais observáveis.
Quanto à questão de existirem ou não as doenças exclusivamente “físicas”, ela será
discutida em todo o decorrer deste ensaio.

Nada parece despertar tanto fascínio nos autores de textos sobre a mente quanto o
cérebro, que, incluindo-se suas derivações como cerebral ou cerebrais, é citado em 22
generosas ocasiões, fora o título da reportagem. Quando uma revista da mídia aberta
publica uma matéria sobre o cérebro, seu título não fugirá a lugares-comuns como: “A
Fascinante Máquina Cerebral”, ou “A Ciência Desvenda os Mecanismos da Mente”. O
pensamento, por sua vez, fica reduzido a uma seqüência de processos neuronais nos
mesmos moldes da seqüência causal que rege o universo, conforme a teoria cartesiana.
A noção do cérebro como uma engrenagem deriva da noção cartesiana do corpo como
uma máquina. Fiéis aos princípios mecanicistas que norteiam seus argumentos, as
autoras declaram, em tom solene (grifos nossos):

“Compreender os mecanismos que determinam os movimentos e buscar uma


forma de codificá-los em linguagem digital é apenas uma das muitas frentes
da ciência no esforço de decifrar o funcionamento do cérebro. Muito se tem
avançado nesse campo nos últimos anos. Tamanho é o interesse pelo
cérebro que é comum ver as mais diferentes áreas trabalhando juntas – da
física e da engenharia à psiquiatria e à neurologia. O experimento na
Universidade Duke é um exemplo dessa conjugação de esforços”.

O parágrafo acima parece anunciar, sob a égide de uma pretensa interdisciplinaridade,


uma suposta cruzada com a finalidade de desvendar a misteriosa “máquina” cerebral. O
mundo científico, por sua vez, parece compor um bloco monolítico, onde todas as
opiniões seriam convergentes. Até mesmo os pobres psicólogos, antes renegados por
tratar de assuntos tão antipaticamente subjetivos, poderão embarcar nessa espécie de
arca de Noé científica empreendida por sábios privilegiados, desde aprendam a
comportar-se como mecanicistas conversos disciplinados.5

Ainda que indiretamente, o texto nos faz acreditar que um dia a ciência decifrará os
mais profundos códigos do cérebro, órgão que, a despeito de sua complexidade, não
passa de um computador superpotente porém finito, e eliminará todas as dúvidas ainda
existentes sobre sua mecânica, iluminando-a com a mítica certeza cartesiana.

5
O Cérebro-Máquina. Para os mecanicistas, o fato de alguns
processos cerebrais poderem ser descritos mecanicisticamente nos
permite reduzir o cérebro a uma máquina. Imagens obtidas no
site Peroratio - origem e direitos não identificados.

A convicção de que o método reducionista cartesiano possa lograr “compreender os


mecanismos que determinam os movimentos do cérebro, e codificá-los em linguagem
digital para decifrar seu funcionamento” ou de qualquer outro órgão não é em absoluto
recente. Em 1928, o então jovem biólogo Joseph Needham (1900-1995) publicou um
ensaio no qual defendia entusiasticamente as ideias contidas em um trabalho do físico
francês Julien La Mettrie, intitulado O Homem-Máquina (1748). No ardor de seus 28
anos, Needham defendeu firmemente uma total identificação da ciência à abordagem
mecanicista cartesiana, alegando que “o mecanicismo e o materialismo estão na base do
pensamento científico” (p.90). Quanto aos processos mentais, ele escreveu:

“Não aceito, em absoluto, a opinião de que os fenômenos da mente não


sejam passíveis de descrição físico-química. Tudo o que nos for
cientificamente dado a conhecer sobre eles será mecanicista” (p.66).

Mais adiante, perto do fim de seu ensaio, sentenciou:

“Para a ciência, o homem é uma máquina; ou, se não o é, então não é


absolutamente nada” (p.86).

Hoje Needham não é mais lembrado ou citado pelos mecanicistas, provavelmente


devido ao fato de pouco tempo depois ter mudado radicalmente de opinião.
Descobrindo em si mesmo um profundo interesse pela cultura oriental, ele celebrizou-se
por seu trabalho em ciência, tecnologia e medicina tradicional chinesa. Tornou-se um
defensor da visão de mundo organicista e um historiador da ciência e tecnologia na
China, onde ficou conhecido por seu nome chinês Li Yuese. Sua obra mais famosa foi a
série Science and Civilisation in China, um estudo sobre a evolução da ciência nesse
país.

6
A divisão cartesiana entre mente e corpo

Não há nada no conceito de corpo que pertença à


mente, e nada na ideia de mente que pertença ao corpo

Discurso sobre o Método

Em artigos destinados à mídia aberta, referências estatísticas também podem emprestar


uma suposta seriedade a qualquer informação. Embora não revelem as fontes para a
obtenção dos dados nem a metodologia empregada para se chegar a esse resultado, as
autoras dizem que “de cada dez pacientes que procuram um médico pela primeira vez,
três apresentam queixas inexplicáveis na aparência, sem nenhuma causa orgânica”
(grifo nosso). Diante da falta de dados concretos, o que seria imperdoável no caso de
um trabalho acadêmico, aqui não nos resta outra alternativa senão confiar em sua
palavra.

Note-se ainda o papel central que o termo “causa” ocupa nesta frase. Neste artigo, a
psicossomática resume-se à busca das “causas psicológicas” de certas doenças, onde o
mecanismo pressuposto é o de que, a partir do dogma cartesiano da divisão entre psiquê
e soma, a mente produziria efeitos no corpo, resultando no ganho ou na perda da saúde.
Mas qual seria o embasamento desse conceito?

Descartes dividiu a realidade em dois domínios, a res cogitans (consciência ou mente) e


a res extensa (matéria). Em seu Discurso sobre o Método, lemos:

“Posso duvidar de tudo, até de meu corpo, mas não posso duvidar que
penso. Não posso duvidar da existência de minha mente pensante, mas
posso duvidar do corpo. Obviamente, mente e corpo têm de ser diferentes”.

Para o autor, portanto, existem duas substâncias independentes: a substância da alma e a


substância física. A substância da alma é indivisível, irredutível, da realidade. Somente
a fé domina a substância da alma. A substância física, por sua vez, é infinitamente
divisível, redutível, e governada por leis científicas.

O próprio termo psicossomática (do grego psiché, “alma”, e soma, “corpo”) se baseia
nesse pressuposto cartesiano. A noção de que algumas doenças possam ser
psicossomáticas parte do princípio de que mente e corpo pertencem a realidades
diferentes, e que a área da mente exerce uma ação sobre a área corporal. Da mesma
maneira, o emprego de termos como correlação, interação ou influência de uma
categoria de fenômenos sobre a outra implicam uma aceitação prévia da concepção
dualística do homem. Será este pressuposto científico? Nem tanto.

O princípio dualista que postula a separação entre mente e corpo, e justifica inclusive a
existência de uma ciência assim chamada psicossomática, traz em si mesmo um grande
problema. Em primeiro lugar, tratando-se de duas realidades separadas, fica difícil
explicar como uma mente imaterial poderia interagir com a realidade material dela
destacada. Parece muito mais fantástico - e, por que não, metafísico - acreditar-se nessa
possibilidade do que encarar mente e corpo como duas faces de uma única realidade, e a
razão que nos permite fazer esta afirmação pode ser mais simples do que aparenta. Amit
Goswami, físico teórico nuclear e membro da University of Oregon Institute for
Theoretical Physics desde 1968, escreveu:

7
“Desde o dia em que René Descartes dividiu a realidade em dois reinos
separados - mente e matéria - numerosas pessoas têm-se esforçado para
racionalizar a potência causal da mente consciente dentro do dualismo
cartesiano. A ciência, contudo, oferece razões irresistíveis para que se ponha
em dúvida que essa filosofia dualista seja sustentável: para que haja
interação entre os mundos da mente e da matéria, terá de haver intercâmbio
de energia. Ora, sabemos que no mundo material a energia permanece
constante. Certamente, portanto, só há uma realidade. Aí é que surge o
problema: se a única realidade é a realidade material, a consciência não
poderia existir, exceto como um epifenômeno anômalo”.6

René Descartes: retrato de Frans Hals, 1648.

Explicando o parágrafo acima: a Lei da Conservação da Energia, também conhecida


como a primeira lei da termodinâmica, uma das leis mais importantes da Física e
irrefutavelmente comprovada, diz que, em qualquer sistema isolado, a somatória das
energias no início de um processo é igual à somatória das energias ao fim desse mesmo
processo. Se mente e corpo constituem duas realidades separadas, deverá haver
obrigatoriamente uma transferência de energia entre esses dois sistemas (nesse caso, da
mente para o corpo), e passível de medição. Mas isso jamais ocorre. Diversas
experiências têm sido realizadas em laboratório, e nenhuma delas detectou qualquer
troca de energia entre os dois sistemas: pelo contrário, a quantidade de energia do
sistema material permanece sempre constante durante todo o processo. Esse resultado
só fará sentido se considerarmos mente e corpo como elementos pertencentes a uma
única realidade.

Em outras palavras o dualismo cartesiano, ao separar mente e corpo, transgride uma das
consagradas leis da física newtoniana, a lei da conservação da energia e do momentum
(produto da massa pela velocidade de um objeto), embora isso não pareça perturbar os
mecanicistas estudiosos da psicossomática. Tampouco interessa à formidável ciência
materialista, cantada em prosa e verso na reportagem ora em discussão, discutir tais
minúcias.

O antropólogo estruturalista Edmund Leach descreveu o positivismo como “a visão de


que o inquérito científico sério não deveria procurar causas últimas que derivem de
alguma fonte externa, mas sim confinar-se ao estudo de relações existentes entre fatos
que são diretamente acessíveis pela observação”. Essa noção da investigação científica
8
atinge seu clímax no positivismo lógico de Wittgenstein, mais tarde chamado de
empirismo lógico, filosofia antimetafísica que limita qualquer discussão científica à
dimensão da realidade que pode ser vista. Combina o empirismo, que considera a
observação objetiva imprescindível para o conhecimento do mundo, com uma variante
do racionalismo, que aceita que determinados setores do conhecimento incluam
aspectos não derivados da observação. Segundo Wittgenstein, não cabe fazer perguntas
que não possam ser respondidas: nas próprias palavras do autor, “sobre aquilo que não
podemos falar, devemos nos calar”.7 Não é preciso ser um gênio para perceber que
qualquer sistema de pensamento que se recuse a discutir aquilo que não consiga
responder torna-se virtualmente invencível.

Causa e efeito – O mecanicismo

Podemos considerar o presente estado do universo como o efeito do passado e a causa


do futuro. Um intelecto que em dado momento conhecesse todas as forças que animam
a natureza e as mútuas posições dos seres que a compõem, se esse intelecto fosse vasto
o bastante para submeter os dados para análise, poderia condensar em uma única
fórmula o movimento dos maiores corpos do universo e o do mais leve átomo; para tal
intelecto nada seria incerto e o futuro assim como o passado seria presente a seus
olhos.

Pierre Simon de Laplace8

Fiéis a suas crenças, as autoras sempre procuram conferir um verniz de rigor científico a
seu texto. Assim, embora parta do princípio pretensamente revolucionário de que a
mente, em alguns casos, possa influenciar o corpo, o que atestaria a validade científica
da psicossomática, o artigo nos adverte, como que sugerindo uma certa imparcialidade:

“É um erro, porém, atribuir todos os males a origens psicossomáticas. Essa


visão equivocada é fruto de um certo ‘fundamentalismo psicológico’ e foi
denunciada pela escritora americana Susan Sontag (...) A escritora lançou-se
a uma pesquisa histórica e constatou que, antes de ser descoberto o bacilo
deflagrador da tuberculose, essa infecção pulmonar, um verdadeiro flagelo
até o início do século XX, era também creditada a um dado de
personalidade: gente romântica demais estaria mais afeita a contraí-la.
Contra esse tipo de baboseira, Susan escreveu um livro belíssimo, A Doença
como Metáfora”.

À parte a importante redescoberta do romantismo do século XIX feita por Susan


Sontag, se discriminarmos os pressupostos embutidos no parágrafo acima, diremos que:

1) Algumas doenças são oriundas da mente, outras não. Em outras palavras,


algumas enfermidades procedem unicamente do universo físico, e, nesses
casos, a mente estará excluída do processo;

2) A tentativa de envolver algum processo mental nas doenças “físicas” é


um equívoco, ou, em termos mais técnicos, uma “baboseira” oriunda do
“fundamentalismo psicológico”, uma espécie de heresia hoje em descrédito
e digna de zombaria, que precisa ser combatida até sua completa
erradicação;

9
3) Ao se identificar um mecanismo físico que tenha desencadeado uma
doença, deve-se desconsiderar a possibilidade de haver qualquer processo
mental concorrente.

As duas primeiras assertivas não possuem embasamento científico algum, uma vez que
partem de simples conjecturas. Por mais surpreendente que possa parecer a princípio, a
dualidade mente-corpo proposta por Descartes, adotada como dogma religioso pela
ciência materialista nos últimos quatro séculos, consiste em mera especulação
filosófica, sem comprovação experimental, tanto que, como já observamos, essa
dualidade fere um dos pilares da física que é a lei da conservação da energia.

Embora os representantes da ciência ortodoxa prefiram olvidar esse fato como filhos
que se envergonham da origem de seus pais, seus princípios básicos não passam de
postulados metafísicos, ou seja, suposições sobre a natureza do ser, e não conclusões
apoiadas em experimentos. Ideias consagradas de Descartes como: o princípio da
certeza científica; a dualidade mente-corpo, e a existência de uma “substância da alma”
em oposição a uma “substância física”; a ideia de que os animais consistem em simples
máquinas, enquanto que no homem teria sido instalada uma alma; a sede da alma na
glândula pineal; a máxima de que existimos na medida em que pensamos (o famoso
adágio “penso, logo existo”), a redução do universo a uma máquina e dos processos
fisiológicos a engrenagens derivam de especulações metafísicas sem qualquer
sustentação científica. Até a crença aparententemente mais inquestionável dentre as
demais, a de que quaisquer fenômenos observáveis possam ser reduzidos a séries
sucessivas de causas e efeitos, fracassa totalmente quando aplicada à física pós-
newtoniana.

Não deixa de ser irônico que a concepção do universo como uma máquina fosse
questionada de modo mais contundente no início do século XX não por místicos, gurus
ou militantes do Hare Krishna batendo pandeiros, mas pelos próprios físicos. A
contestação da visão cartesiana do mundo pode ser sintetizada no que o físico,
astrônomo e matemático inglês James H. Jeans (1877-1946), escreveria em 1930:

“Hoje, existe uma ampla medida de concordância (... ) de que a corrente do


conhecimento humano avança em direção a uma realidade não-mecânica; o
universo começa a se parecer mais com um grande pensamento do que com
uma grande máquina. A mente não mais se parece com um intruso acidental
dentro do reino da matéria. Estamos começando a suspeitar de que devemos
saudá-la como a criadora e a governante desse reino”.9

A declaração de Jeans, longe de ser poética ou ingênua, apoia-se em evidências


consistentes obtidas em experimentos sobre o mundo subatômico. Os princípios que
alicerçam a ciência materialista, que podem ser resumidos em cinco (monismo físico,
determinismo causal, objetividade, localidade e epifenomenalismo), têm sido
sistematicamente demolidos pela física quântica, por meio de experimentos descritos
em vasta literatura. Os resultados obtidos empiricamente pela física quântica que
transcenderam a física newtoniana como o movimento descontínuo, a
interconectividade não-local, a causalidade descendente e a necessidade do observador
para o desencadeamento dos fenômenos, não podem ser explicados pela abordagem
tradicional. Apesar disso, obedientes ao princípio de Wittgenstein, os materialistas
preferem se calar sobre o assunto.

10
A ideia de que nenhum processo mental participe das doenças consideradas orgânicas
tampouco se apoia em experimentos: apenas supõe-se que não haja processos mentais
envolvidos porque estes não puderam ser detectados, conclusão coerente com o
princípio de não se discutir aquilo que não possa ser visto. Sequer se considera a
possibilidade de que esse resultado se deva a limitações na concepção do experimento
ou do instrumental utilizado para a medição. Mas pode-se entender o entusiasmo com
que a medicina mecanicista – sem se falar nos laboratórios farmacêuticos - abraça essa
ideia, pelo que podemos observar no terceiro pressuposto identificado há pouco, que
comentaremos em seguida.

As autoras presumem que a descoberta da bactéria “deflagradora” da tuberculose


elimine a suspeita do envolvimento da mente nessa doença, e escrevem:

“Antes de ser descoberto o bacilo deflagrador da tuberculose, essa infecção


pulmonar, um verdadeiro flagelo até o início do século XX, era também
creditada a um dado de personalidade”.

Equivale a dizer que, ao se detectar um processo causal por trás de um fenômeno


observável, deve-se descartar de pronto a participação de outros processos paralelos sem
prejuízo da compreensão do mesmo. Esta crença arbitrária, pouco mais do que uma
superstição, advém do clássico pressuposto de que uma verdade sempre possa ser
totalmente expressada pela descrição de uma cadeia linear e causal, desconsiderando-se
o fato de que, pela própria natureza do processo descritivo, o resultado seja sempre
limitado e parcial. Embora a descrição de um fenômeno possa ser um recurso bastante
útil dependendo da questão investigada e dos objetivos envolvidos, ela não passa de um
recorte da realidade, que jamais poderá abarcar a totalidade desse mesmo fenômeno
tanto quanto uma fotografia em duas dimensões não pode retratar com precisão a cena
tridimensional por ela capturada. Os astrofísicos e físicos nucleares sabem disso quase
tão bem quanto os filósofos orientais, visto que têm sido cada vez mais obrigados a
recorrer a metáforas para ilustrar seus conceitos. Niels Bohr (1885-1962), considerado
um dos mais influentes físicos do século XX, ganhador do prêmio Nobel de Física em
1922 e um dos idealizadores do modelo do átomo que se ensina nas escolas, fez uma
declaração surpreendente em se tratando de um cientista:

“Devemos ser claros que, no caso dos átomos, a linguagem pode ser usada
apenas como na poesia. O poeta, igualmente, não está nem de perto
preocupado em descrever fatos quanto em criar imagens e estabelecer
conexões mentais”.10

Depreende-se que, ao contrário da posição defendida pelo artigo em discussão, alguns


físicos renomados já desistiram há muito tempo de tentar “compreender os mecanismos
que determinam os movimentos [do cérebro ou qualquer objeto] e buscar uma forma de
codificá-los em linguagem digital”. Conforme já comentamos, a divisão das doenças em
duas categorias, das enfermidades de origem orgânica e daquelas provocadas por
processos mentais, não decorre de nenhuma descoberta da física ou da medicina, nem se
apóia em quaisquer experimentos científicos. Trata-se apenas de uma aplicação
automática do princípio cartesiano mais abrangente de que não só o corpo, mas todos os
objetos e fenômenos do mundo material pertençam a uma dimensão da realidade
distinta da res cogitans, a área da consciência ou da mente. Talvez por não ter tido a
oportunidade de ler o livro de Susan Sontag, publicado em 1978, Bernard d'Espagnat,

11
físico francês e filósofo da ciência conhecido por seu trabalho sobre a natureza da
realidade, faria uma afirmação diametralmente oposta a essa filosofia no ano seguinte:

“A doutrina de que o mundo é formado por objetos cuja existência é


independente da consciência humana mostra-se em conflito com a Mecânica
Quântica e com fatos estabelecidos por experimentos”.11

Como a física sempre foi considerada a mais objetiva das ciências pelos materialistas,
pode ser divertido pensar que, conforme a filosofia defendida pelas autoras, um físico
conceituado defenda o famigerado “fundamentalismo psicológico” ao proferir uma frase
que poderia ser qualificada como “a mãe de todas as baboseiras”. Afinal, se o artigo
execra a possibilidade de que o corpo possa ser sempre e incondicionalmente
influenciado pela mente, o que diria da afirmação de que não somente nossos corpos,
mas todos os objetos do universo estariam sujeitos a ela?

Átomo de lítio segundo o modelo de Bohr: a representação das partículas subatômicas como
pequenos blocos sólidos girando em torno de um núcleo, nos moldes do sistema solar, tem apenas
fins ilustrativos. Não se trata de uma tentativa de retratar a “verdadeira” aparência física do
átomo, que não passa de um conjunto de funções de onda. Figura extraída do Human
Thermodynamics.

Essa assertiva de d’Espagnat, em vez de ser novidade, apenas retrata uma constatação
obtida por experimentos realizados com as partículas subatômicas desde o início do
século XX, quando surgiu a teoria quântica. Tampouco constitui uma questão em aberto
ou ponto de discussão no meio científico, e sim uma verdade tão inquestionável quanto
difícil de se aceitar pelos próprios cientistas que a descobriram. Antes de d’Espagnat, o
físico Eugene Wigner (1902-1995) já escrevera:

“Foi impossível formular as leis [da teoria quântica] de um modo


plenamente consistente sem se fazer referência à consciência”.12

Como as citações nesse campo nunca serão demasiadas, lembremos também a


declaração de Max Planck em uma palestra proferida em Florença, em 1944 (grifo
nosso):

“Como um homem que tem devotado sua vida inteira à mais sóbria ciência,
o estudo da matéria, posso lhes dizer como resultado de minha pesquisa
sobre os átomos o seguinte: Não existe matéria como tal. Toda matéria se
origina e existe somente por virtude de uma força que induz a partícula de

12
um átomo a vibrar e mantém esse sistema solar do átomo reunido. Nós
temos de supor que por trás dessa força exista uma mente consciente e
inteligente. Essa mente é a matriz de toda matéria.13

Quem duvidar das afirmações acima, no entanto, pode encontrar consolo no fato de que
Albert Einstein, um dos grandes corresponsáveis pelo surgimento da Nova Física na
aurora do século XX, reagiu do mesmo modo diante dos paradoxos do mundo
subatômico. Recusando-se a aceitar as conseqüências da nova teoria, ele preferiu
acreditar que as equações da física quântica permitiriam descrever apenas o
comportamento das partículas subatômicas, não se aplicando à experiência cotidiana.
Apesar de toda sua genialidade, Einstein não resistiu às mesmas armadilhas a que todos
nós sucumbimos em nosso dia-a-dia, onde os objetos macroscópicos não parecem se
comportar à maneira bizarra das partículas subatômicas. Devido a uma ilusão sensorial,
somos facilmente levados a acreditar que a matéria macroscópica difere de algum modo
das partículas microscópicas, já que seu comportamento convencional pode ser descrito
pelas leis newtonianas.

A exemplo de Einstein muitos outros físicos, em vez de perder tempo com os


incômodos paradoxos da física quântica, renderam-se à tentação de encarar a matéria
como se ela fosse dividida em duas categorias, a dos objetos quânticos e a dos objetos
clássicos (uma outra versão do velho dualismo de sempre). Enquanto o reino dos
objetos quânticos se restringiria ao mundo subatômico, caracterizado por objetos
infinitamente pequenos e de alta velocidade, o reino dos objetos clássicos, composto de
objetos de tamanho visível a olho nu e dotados de baixas velocidades em relação à da
luz, continuaria submetido unicamente às antigas e seguras leis da física newtoniana.
Grosso modo, essa noção equivale a considerar um edifício como um objeto real mesmo
que ele seja totalmente composto de tijolos imaginários. Embora os princípios da física
clássica continuem valendo na maior parte da realidade macroscópica e suas equações
permaneçam válidas nessas circunstâncias, ela perdeu o status de tradutora da realidade
material como um todo, passando a consistir apenas num caso particular na nova
física.14

Por mais estranho que possa soar aos defensores da isenção científica na busca da
verdade e na compreensão dos fenômenos da natureza, a hipótese de que os princípios
da física quântica só se apliquem ao mundo subatômico, como uma realidade destacada
do mundo macroscópico, não decorre de experiências de laboratório ou de formulações
racionais, e sim do instinto de autopreservação de uma instituição, a escola clássica
mecanicista. Nunca houve um experimento científico que indicasse em seu resultado
que a matéria microscópica e a macroscópica pertencessem a duas realidades separadas,
embora dessa conclusão dependa a sobrevivência da ciência clássica como paradigma
para explicar o mundo material em sua totalidade. As implicações das descobertas
proporcionadas pela física quântica pareceram tão absurdas que assustaram até mesmo
os seus fundadores, como demonstram estas palavras de Werner Heisenberg:

“Recordo as discussões com Bohr que se estendiam por horas a fio, até altas
horas da noite, e terminavam quase em desespero; e, quando no fim da
discussão, eu saía sozinho para um passeio no parque vizinho, repetia para
mim, uma e outra vez, a pergunta: Será a natureza tão absurda quanto parece
nesses experimentos atômicos?”15

13
Niels Bohr, por sua vez, vaticinou que “quem não se sentiu chocado com a Teoria
Quântica, não pode tê-la compreendido”,16 enquanto Erwin Schrödinger fez uma queixa
amargurada: “Não a aprecio, e lamento ter estado ligado a ela”. 17 Como se pode
constatar, a nova física incomodou não somente a uns poucos, mas a todo o meio
científico, que acabou por dividir-se em duas facções: a daqueles que enfrentaram essa
nova realidade e se propuseram a compreendê-la, e a dos que, por medo, preconceito,
vaidade ou mesmo incompetência, apegaram-se às velhas teorias. Dentro do espírito da
reportagem aqui comentada, dir-se-ia que as posições hoje assumidas pelo meio
científico podem ser divididas em duas classes: as posições advindas de experimentos
físicos, e as assumidas por necessidades emocionais. Nesse assunto, o fisico norte-
americano David Bohm, por exemplo, não deixou dúvidas sobre sua escolha:

“Se o preço de se evitar [o problema da] a não-localidade [a transferência de


informação ou influência entre objetos sem transmissão de sinais locais] é
tornar impossivel uma explicação intuitiva, teremos de perguntar se esse
custo não é alto demais”.18

A oportuna - embora infundada e nem um pouco corajosa - divisão da realidade em


objetos clássicos e objetos quânticos protege a ciência conservadora das ameaças
trazidas pela nova física, de modo que se possa continuar a pesquisar e descrever os
fenômenos de acordo com os confortáveis padrões da física clássica. Graças a esse
sofisma a ciência tradicional, apoiada na lógica cartesiana, na física newtoniana e nos
dogmas do positivismo lógico, pôde manter sua proverbial arrogância e ainda se dar ao
luxo de desprezar quaisquer evidências que não se encaixem em sua doutrina. John
Gribbin, graduado em física com mestrado em astronomia na Universidade de Sussex e
PhD em astrofísica por Cambridge, faz uma boa síntese do problema:

“Por setenta anos, os físicos têm se atormentado sobre o que a mecânica


quântica significa. Eles podem usar a física quântica, com certeza;
testemunham os bem-sucedidos projetos de lasers e de microchips, e o
entendimento das moléculas que torna possível a engenharia genética. Mas
as equações que fazem parte da rotina desse tipo de trabalho contêm uma
embaraçosa característica. Elas dizem, de acordo com a interpretação padrão
(a interpretação de Copenhagen), que nada é real até que seja observado,
que um elétron existe somente como uma onda de probabilidade, chamada
função de onda, que colapsa realidade adentro quando é medida, e
prontamente se dissolve quando você cessa de observá-la. Nós não nos
encontramos filosoficamente além, nesse cenário, da imagem da árvore num
quadrado que desaparece quando ninguém está olhando para ela. Na
verdade, poucos cientistas se preocupam com estes assuntos. A maioria
deles prefere ignorá-los, na esperança de que desapareçam por si mesmos”.19

Um dos grandes desafios trazidos pela física quântica foi a constatação do papel
fundamental do observador para a existência da matéria e para o desencadeamento dos
fenômenos. Uma das conseqüências filosóficas dessa descoberta pode ser traduzida pela
pergunta: se a matéria necessita ser observada para adquirir uma forma, e o cérebro é
um objeto material, como poderia este órgão gerar e abrigar a consciência? Em outras
palavras, como uma porção de matéria poderia gerar o colapso de onda necessário para
que sua própria substância se manifeste? E mais: se todos os objetos e fenômenos
físicos não passam de percepções e interpretações de uma realidade fugaz, o que seria o
cérebro? Não se pode fugir à hipótese de que o cérebro não passe de mais uma

14
interpretação de um observador a ele transcendente, mas esta questão crucial, a de quem
é esse observador que desencadeia o colapso de onda de modo a dar contornos ao
universo, não caberá à atual discussão.

Os resultados das experiências – novamente, não se trata de especulação - com as


partículas subatômicas sugerem o contrário, que o cérebro – por ser um objeto material -
ao invés de produzir a consciência, é produzido por ela. Embora esta seja apenas uma
dentre tantas complicações trazidas pela física quântica, ela pode por si só tirar o sono
de muita gente, e por isso mesmo os cientistas ortodoxos optaram, como denunciou
Gribbin, por “ignorá-los, na esperança de que desapareçam por si mesmos”, estratégia
semelhante ao (falso) costume atribuído pelo folclore aos avestruzes, de enfiar a cabeça
em um buraco diante de qualquer ameaça até o perigo passar. A estratégia de ignorar as
assustadoras características do mundo subatômico e suas implicações em nossa visão da
realidade como um todo repousa sobre a esperança de que um dia alguém consiga
sujeitar o que hoje parece inexplicável ao velho modelo descritivo cartesiano, em uma
atitude semelhante à da espera pelo Messias no judaísmo.

Uma indicação de que esse dia nunca vai chegar é o fato de que as estranhas
constatações sobre a matéria e a realidade trazidas pela física quântica não se devem a
quaisquer limitações dos experimentos nem da aparelhagem neles utilizada, mas à
natureza essencial do mundo subatômico. A única solução para essa classe de impasses,
que de tempos em tempos encontramos na busca da verdade, reside numa mudança de
paradigma na maneira de abordar tais fenômenos, ao invés de tentar adaptá-los a leis
que se aplicam apenas a estados particulares da realidade conhecida.

Apesar de toda sua empáfia, a ciência conservadora dá conta somente do


comportamento dos objetos macroscópicos ou mesmo dos átomos e moléculas (quando
estes últimos se comportam mecanicisticamente, é claro), mas nada sabe sobre a sua
essência: em outras palavras, sabe-se que em determinadas circunstâncias um objeto,
seja ele um átomo, um elemento químico ou um dispositivo tecnológico, vai agir de
uma certa maneira, mas não se sabe exatamente o porquê desse comportamento. Por
exemplo, sabe-se o papel que um chip ou transístor cumprem em um aparelho de TV,
mas seu funcionamento só poderá ser descrito considerando esses dispositivos como
macro-objetos, verdadeiras caixas-pretas: descrever seu funcionamento no nível
subatômico é impossível em termos mecanicísticos, e os mecanicistas sabem disso,
embora finjam não sabê-lo. Essa mesma atitude é adotada na biologia, e deverá ser
discutida em um outro ensaio.

Do mesmo modo, não se pode definir o que seja efetivamente um átomo ou uma
partícula subatômica dentro do modelo cartesiano, considerando-se a existência
concreta das partículas, sua exata localização no tempo e no espaço, seu momentum (o
produto da massa pela velocidade), sua aparência e a descrição de seu comportamento
baseadas nas hoje saudosas relações de causa e efeito descritas pela mecânica clássica.
O velho modelo do átomo contendo um núcleo em torno do qual giram os elétrons,
como admitiram desde sempre seus próprios idealizadores Bohr e Rutherford, não
passam de uma interpretação ou ilustração de um objeto que sequer possui forma
definida. A noção dos elétrons como partículas materiais rígidas girando e
entrechocando-se não é mais que uma projeção fantasiosa da visão newtoniana dos
macro-objetos para o mundo subatômico.

15
Uma ironia do destino levou o status quo científico a assumir, guardadas as devidas
diferenças, um papel histórico semelhante ao da Igreja, de tentar impedir a humanidade
de efetuar um salto qualitativo no conhecimento para não ter de renunciar a seus
próprios dogmas. Assim como a Igreja um dia negou o fato do Sol ocupar o centro do
sistema solar, obrigando Galileu a retratar-se diante da corte inquisidora, hoje a ciência
ortodoxa se apega a conceitos arcaicos que sequer explicam a fusão nuclear ocorrida no
centro das estrelas. Como assinalou Gribbin – e esta é mais do que uma simples
metáfora -, “entre outros aspectos, a mecânica quântica explica-nos porque brilha o sol,
enquanto a mecânica clássica afirma que ele não pode brilhar”, uma forma delicada de
dizer que a física newtoniana e os sacerdotes da religião mecanicista, que se jactam de
ter uma explicação para cada fenômeno observável, sequer explicam o amanhecer que
contemplamos ao despertar.20

A resistência de Einstein em ceder às evidências levou-o, na década de 1920, a um


histórico debate público com Niels Bohr, após o qual se viu obrigado a reconhecer a
consistência da interpretação da Teoria Quântica feita por Bohr e Heisenberg, embora
ainda guardasse no íntimo a convicção de que um dia ela viria a ser refutada. Mais
tarde, em 1935, ele elaborou junto com Boris Podolsky e Nathan Rosen um experimento
que ficou conhecido como Paradoxo EPR, na tentativa de contestar um dos princípios
da teoria quântica (a não-localidade)21, tendo, mais uma vez, suas intenções frustradas.
Desanimado, Einstein viria a declarar:

“Todas as minhas tentativas para adaptar os fundamentos teóricos da Física


a esse [novo] conhecimento fracassaram completamente. Era como se o
chão tivesse sido retirado de baixo de meus pés, e não houvesse em qualquer
outro lugar uma base sólida sobre a qual pudesse construir algo”.22

Três décadas após o experimento EPR, John Bell formulou um teorema baseado nesse
experimento que demonstrou que a concepção cartesiana da realidade, por consistir em
partes separadas e submetidas a conexões locais, é incompatível com as previsões
estatísticas da mecânica quântica.23 No campo da física, o teorema demonstra que que a
hipótese das variáveis ocultas não pode descartar a natureza estatística da física
subatômica. Filosoficamente, implica que, de acordo com as evidências fornecidas pela
mecânica quântica, o universo não é localmente determinístico, e portanto nem um
pouco previsível ou parecido com o jogo de bilhar cósmico imaginado por Laplace.24
Segundo o princípio do determinismo causal, todos os eventos podem ser previstos com
exatidão se conhecermos as condições iniciais dos objetos envolvidos, ou seja, sua
posição no espaço, a massa, a direção e a velocidade com que se deslocam.

Em 1982 um experimento realizado pelo físico francês Alain Aspect, na Universidade


de Paris-Sud, encerraria de vez as esperanças daqueles que pretendiam refutar o
princípio da não-localidade verificado no comportamento das partículas subatômicas.
Em 2004, ele escreveu:

“Certamente nós não precisamos da mecânica quântica para os objetos


macroscópicos, que são bem descritos pela física clássica – essa é a razão
pela qual a mecânica quântica parece tão estranha à nossa vida cotidiana”.25

Em uma entrevista concedida por ocasião do Gold Medal Award Ceremony do Centro
National para Pesquisa Científica da França (CNRS) em dezembro de 2005, Aspect
afirmou:

16
“A principal dificuldade em se popularizar a física quântica é a de que nós
de fato não sabemos como ilustrá-la em nosso mundo. Nesse sentido ela é
realmente anti-intuitiva”.

Albert Einstein: o gênio da nova Física


sentiu falta das velhas leis newtonianas.

Amit Goswami, por sua vez, denunciou a resistência em se absorver as conseqüências


filosóficas da física quântica ao escrever:

“Embora uma nova disciplina científica denominada física quântica tenha


substituído formalmente a física clássica neste século, a velha filosofia da
física clássica - a do realismo materialista - continua a ser amplamente
aceita”.26

Portanto, a abordagem da realidade empregada pelas autoras em seu artigo, longe de ser
atual ou revolucionária, só reflete a dificuldade dos meios científicos conservadores, da
mídia leiga e do senso comum em abrir mão de conceitos ultrapassados há cerca de um
século. Por trás dessa atitude há um laivo de hipocrisia: embora os princípios da física
quântica sejam hoje largamente utilizados no ramo da tecnologia, desde em
supercomputadores até os aparelhos de uso doméstico, persiste a resistência a admitir
suas implicações filosóficas e suas conseqüências na nossa visão de mundo, de nós
mesmos, e de nosso cotidiano. Mais uma vez em obediência à regra de Wittgenstein, de
não se falar sobre aquilo que não se possa explicar, esses conceitos têm sido largamente
utilizados, jamais discutidos. Assim, hoje em dia, nosso entendimento da realidade e
nosso senso comum, tanto quanto a mais moderna tecnologia do século XXI, ainda se
apóiam em fundamentos oriundos da filosofia do século XVII e da física do século
XVIII.

Por falar na filosofia do século XVII, lembremos que, sob o enfoque mecanicista, a
noção de cura fica circunscrita à busca de uma maneira de interromper a cadeia causal
verificada no processo da doença. Por essa mesma razão, no caso das terapias cognitivo-
comportamentais, “o que importa, para seus seguidores, é ensinar o paciente a evitar a
cadeia de reações emocionais que leva o corpo a responder com sintomas físicos”
(grifo nosso).

17
No caso das doenças infecciosas, todos os remédios e vacinas desenvolvidos têm como
único objetivo sustar o mecanismo da infecção interrompendo sua cadeia causal. Como
já se sabe, esse tipo de intervenção só funciona até o vírus ou bactéria sofrer uma
mutação, produzindo uma cepa resistente ao medicamento, e exigindo novas pesquisas e
mais bilhões de dólares na busca de um novo antídoto. Devido a essa alta capacidade de
adaptação dos vírus e bactérias, a medicina mecanicista tem sido incapaz de descobrir
uma cura para doenças triviais como o resfriado ou a herpes, enquanto assistimos ao
retorno de doenças antes consideradas controladas como a malária e a tuberculose, e ao
surgimento de formas mais agressivas de germes comuns como o staphylococcus
aureus.27 Mas não serão as multinacionais farmacêuticas a lamentar esse fato: o
princípio reducionista de que as doenças não passam de processos físicos decorrentes de
algum defeito na “máquina” corporal tornam a produção química de remédios bastante
lucrativa.

A noção do corpo como uma máquina também incentivou e multiplicou as


especialidades da medicina, em que os profissionais da saúde se concentram em partes
isoladas do corpo como um engenheiro mecânico se dedica a uma determinada peça de
automóvel. Devemos igualmente à abordagem mecanicista essa geração de médicos que
nem olha o rosto de seus pacientes, ou sequer se interessa por sua história pregressa,
família, circunstâncias pessoais em que o sintoma se originou, ideais, frustrações,
traumas, hábitos e visão de mundo, e mesmo a interpretação pessoal que o paciente faz
sobre sua própria enfermidade. Não raro nem cumprimentam o paciente, e preenchem
uma receita enquanto ouvem com indiferença – se não arrogância - o relato dos
sintomas, mostrando-se incapazes de despertar empatia ou demonstrar sentimentos
básicos como, solidariedade, interesse ou compaixão. A figura do médico da família,
por outro lado, tornou-se dispensável e obsoleta. Afinal, se um médico é um mecânico
do corpo, cabe-lhe unicamente consertar a peça defeituosa para que seu paciente-
autômato volte a funcionar, digam-no especialmente aqueles que dependem dos
serviços públicos de saúde. Assim, não é à toa que ainda hoje ocorram erros como o de
se prescrever um medicamento para a dor de estômago a um paciente em vias de
enfartar, graças a esse enfoque “objetivo” na diagnose.

De acordo com os valores e os princípios da objetividade científica, que consideram


apenas as qualidades estritamente intelectuais e o volume de informação adquirido em
detrimento das qualidades subjetivas das pessoas, nada impede em tese que um
indivíduo com sérias limitações afetivas - ou mesmo um quadro psicopatológico mais
grave -, incapaz de emocionar-se, de amar, comunicar-se com a esposa, fazer amizade
com os vizinhos ou ouvir os próprios filhos, se torne um médico psiquiatra autorizado a
interferir na saúde mental das pessoas que ficam à sua mercê nos hospitais e
ambulatórios psiquiátricos.

O procedimento de consertar a peça defeituosa da engrenagem em vez de avaliar o todo


também se estende aos fenômenos familiares, grupais ou sociais. Uma criança agitada,
ansiosa, agressiva, hiperativa, depressiva, ou, como está na moda, com “transtorno de
atenção”, se olhada como um item isolado, deve ser submetida a medicamentos como
anfetaminas, ansiolíticos ou antidepressivos, sem que se considere a possibilidade de
que essas alterações de comportamento provenham de desordens na estrutura familiar,
dificuldades na escola, abusos, problemas de relacionamento em família ou de
distúrbios psíquicos dos pais.28 Na psiquiatria, equivale a internar e entupir de remédios
um esquizofrênico sem que a saúde psíquica da família seja concomitantemente
questionada e investigada, nem tentar determinar a função intersubjetiva do “enfermo”
18
na dinâmica familiar. Noções da psicologia não-comportamental como as de paciente
identificado, emergente grupal, bode expiatório ou de psicopata passivo da família são
completamente ignoradas juntamente com quaisquer leituras sistêmicas da psicose. Nas
revistas de comunicação de massa, sem se fugir a esse modelo, a esquizofrenia será
sempre descrita como uma disfunção bioquímica individual de origem genética, mas
jamais como um sintoma de desordens familiares ou psicossociais.

A filosofia de se tratar as doenças interrompendo a cadeia causal dos processos


bioquímicos nelas envolvidos tem seu equivalente na tentativa de acabar com o uso de
drogas bombardeando plantações de coca na Colômbia, amputar as mãos de um ladrão
para que deixe de roubar ou eliminar o terrorismo capturando Osama Bin Laden. Tal
estratégia lembra a antiga anedota do marido que, tendo surpreendido a esposa com
outro homem no sofá da sala, resolveu vender o sofá para acabar com a traição. Este
tipo de cruzada sempre falhará porque fatores paralelos e motivadores do fenômeno a
ser erradicado, como aspectos políticos, socioeconômicos e psicossociais, sempre
acabam recompondo a cadeia dos eventos indesejados pela criação de vias alternativas,
da mesma forma que os microrganismos sofrem mutações que anulam a eficácia dos
medicamentos. Sobre as limitações do reducionismo na medicina, Capra comentou:

“As conseqüências adversas dessa falácia reducionista tornaram-se


especialmente evidentes na medicina, onde a adesão ao modelo cartesiano
do corpo humano como um mecanismo de relógio impediu os médicos de
compreender muitas das mais importantes enfermidades da atualidade”.29

Pode-se ainda apontar uma notável ironia na abordagem mecanicista do tratamento das
doenças infecciosas: o procedimento de se tentar erradicar um microrganismo atacando-
o com um antibiótico colide com os princípios do darwinismo, um dos baluartes mais
intocáveis do status quo científico atual. De acordo com as leis da evolução, os
antibióticos não farão mais que aperfeiçoar, por meio da seleção natural, esses mesmos
organismos, tornando-os cada vez mais resistentes e difíceis de ser eliminados.

A filosofia materialista nasceu com Demócrito, há cerca de dois mil e quinhentos anos.
No século XVII, quando Descartes lançou as bases do materialismo moderno apoiado
na ideia de objetividade de Aristóteles, os objetos fisicos foram considerados
independentes e separados da mente. No século seguinte, Isaac Newton consolidou o
materialismo com o princípio do determinismo causal, no qual se baseia o senso comum
de nossa época. Aos princípios cartesianos devemos igualmente a conclusão de que, se
encontrarmos um vírus ou bactéria responsáveis por uma seqüência de causas e efeitos
corporais que levem a uma determinada doença, poderemos excluir a mente como
participante desse processo. Considerados como entidades separadas, mente e corpo
tornam-se elementos mutuamente excludentes, levando-nos a uma conclusão
tipicamente cartesiana: OU uma doença tem origem psíquica, OU orgânica.

Aprisionados por seus dogmas, os mecanicistas parecem se esquecer da alternativa -


nada revolucionária, aliás - de que os vírus e bactérias funcionem como oportunistas que
se aproveitam da baixa imunológica de um corpo debilitado por questões psicológicas.
Esta leitura, bastante simples, estaria a seu alcance por não ferir os princípios do
dualismo cartesiano, mas ainda assim poderemos estar exigindo demais de sua
capacidade de abstração.

19
O "Eu Interior", apagado em laboratório?

Certa vez eu, Chuang Tzu, sonhei que era uma borboleta, agitando-me de lá para cá,
em todos os sentidos e intenções uma borboleta. Estava consciente apenas de minha
alegria como borboleta, sem saber que era Chuang. Quando acordei, lá estava eu,
verdadeiramente eu mesmo de novo. Agora não sei se eu era um homem sonhando ser
uma borboleta, ou se agora sou uma borboleta sonhando ser um homem.

Chuang Tzu (369-286 AC)

Dentro do artigo aqui comentado, ainda existe uma questão digna de nota que parece ter
representado uma espécie de apoteose para as autoras, a prova definitiva da supremacia
do materialismo sobre a metafísica que consta do parágrafo abaixo (grifos nossos):

“Para o reconhecimento da psicossomática, deu-se um passo decisivo na


década de 90, com o surgimento de máquinas capazes de flagrar o cérebro
em pleno funcionamento. Graças a esses aparelhos, conseguiu-se verificar
que as emoções e as sensações são fenômenos físicos, que ocorrem em
lugares específicos do cérebro. Para desilusão dos metafísicos, a ligação
mente-corpo não é etérea, mas quase palpável. Na década de 90, o físico
inglês Francis Crick (1916-2004), o gênio da dupla Crick-Watson que
descobriu a forma de hélice do DNA, deu um passo gigantesco na
aproximação de corpo e mente. Crick classificou os pensamentos e emoções
de acordo com as ondas cerebrais que produziam. A alegria e a tristeza, o
doce e o amargo, o claro e o escuro são sensações que produzem registros de
ondas cerebrais tão distintas quanto as impressões digitais.

De todas as medidas de Francis Crick, a mais estupenda foi a da freqüência


da onda que o cérebro dos seres humanos utiliza para definir a consciência
– ou seja, a individualidade, o dom de saber que você é você e o outro é o
outro. A autoconsciência, descobriu Crick, é expressa por ondas cerebrais de
40 hertz. Em experimentos de laboratório Crick conseguiu algo antes
inimaginável. Com a ajuda de eletrodos, o gênio do DNA banhou o cérebro
de alguns voluntários com ondas de 40 hertz de picos invertidos. As ondas
simétricas que os eletrodos de Crick injetaram no cérebro dos voluntários
anularam as ondas da autoconsciência. Resultado: os voluntários
continuaram com as mesmas habilidades mentais que possuíam (jogar
xadrez ou falar idiomas, por exemplo), mas não mais sabiam quem eram.
Seu "eu interior", com toda a riqueza de amores, emoções e auto-estima, foi
momentaneamente anulado por um mero impulso elétrico externo”.

Percebe-se nestas linhas um certo ufanismo em se decretar, num espaço menor do que
uma página, o fim da “metafísica” e o triunfo do realismo materialista por obra e graça
dos deuses da ciência moderna. Segundo as autoras, “as emoções e as sensações são
fenômenos físicos, que ocorrem em lugares específicos do cérebro. Para desilusão dos
metafísicos, a ligação mente-corpo não é etérea, mas quase palpável”.30

O enfoque reducionista, neste caso, resume as emoções a um simples processo


bioquímico, transformando a hipótese de que esses dois fenômenos consistam em duas
faces de uma única moeda em uma ilação metafísica indigna de pesquisadores sérios. A
conclusão de que as emoções consistam apenas em fenômenos químicos se apoia no

20
epifenomenalismo, princípio já mencionado neste ensaio como um dos pilares da
ciência materialista. Segundo essa visão os estados mentais não passam de
epifenômenos (efeitos secundários ou subprodutos) dos diferentes estados da matéria. O
epifenomenalismo nega que a mente exerça influência sobre o corpo ou qualquer objeto
físico, ao contrário dos estados mentais que seriam sempre causados por processos
físicos. Assim, a falsa impressão de uma postura aberta para novas ideias que o artigo
pode dar aos leitores por admitir, ainda que com muitas ressalvas, que alguns estados
mentais possam influenciar o corpo, advém de uma postura mais flexível adotada pelo
texto que pode ser atribuída a um simpático “epifenomenalismo light”, que em nenhum
momento transcende o modelo dualista, nem abre mão da primazia da matéria sobre a
mente ao reduzir as emoções a reações bioquímicas. Essa relativa flexibilidade não se
deve a um insight nem representa uma mudança de paradigma por parte dos dualistas
quanto à inter-relação mente-corpo, e sim a uma concessão calculada, uma decisão
estratégica do tipo “vergar-se para não quebrar”, já que vinha ficando cada vez mais
difícil sustentar a total separação entre mente e corpo proposta por Descartes no estudo
das doenças psicossomáticas.31

Por outro lado, talvez o próprio Dr. Crick, ganhador do Prêmio Nobel e codescobridor
da dupla hélice do DNA, pudesse ser incluído no rol desses metafísicos esconjurados
pelas autoras: atônito perante a complexidade da vida terrestre, ele defendeu várias
vezes por escrito a opinião de que os problemas advindos da crença na origem da vida
como produto do acaso eram tão grandes que deveríamos considerar a ideia de que
alienígenas tenham enviado uma nave à Terra para semeá-la com esporos e assim iniciar
o processo. Crick divulgou essa ideia pela primeira vez em 1973, junto com o químico
Leslie Orgel, no artigo Panspermia Dirigida, publicado pela revista especializada
Icarus. Na década seguinte, reiterou a ideia em seu livro Life Itself e, em 1992, fez o
mesmo em uma entrevista para a Scientific American.

Dentre outras reações, Crick recebeu a crítica de que sua especulação sobre panspermia
“enquadra-se perfeitamente ao conceito de design inteligente”,32 teoria que, grosso
modo, propõe que a evolução consista em mais do que um produto do mero acaso. A
menor possibilidade de que o processo evolutivo sofra a influência de uma espécie de
ordem ou padrão subjetivo traz de volta o fantasma da religião ao mundo científico. Por
isso, a teoria do design inteligente tem recebido a pecha de “neocriacionista” por parte
dos darwinistas mais arraigados, o maior insulto por eles aplicado para se referir a
alguém que ouse enxergar no processo da evolução algo mais do que uma sequência de
processos aleatórios. Portanto, embora não se possa afirmar com certeza se as
experiências do Dr. Crick incomodariam de fato alguns metafísicos, suas ideias, por
outro lado, deverão decepcionar alguns de seus mais ardorosos fãs materialistas, sejam
eles cientistas sérios ou redatores de revistas populares de fim de semana.33

James Watson, seu parceiro na descoberta da estrutura do DNA e com quem dividiu o
prêmio Nobel, também merece menção por ideias como a publicada na revista do
Sunday Times, edição de 14/10/07, sobre “a inteligência inferior dos negros em relação
à dos brancos” como explicação pelo atraso do continente africano. Sua manifestação
provocou fortes reações na comunidade científica e lhe acarretou o cancelamento de
palestras no Museu de Ciência de Londres e na Universidade de Edimburgo, assim
como sua demissão do Cold Spring Harbor Laboratory de Nova York. Em 2000, ele já
havia causado comoção numa universidade da Califórnia, quando estabeleceu uma
relação entre a cor da pele e o impulso sexual. Sua contribuição ao folclore científico
inclui a opinião em favor do aborto no caso do feto ser portador de um suposto “gene da
21
homossexualidade”. Mesmo nos abstendo de julgar a seriedade das afirmações de
Watson para não perder o foco deste ensaio, podemos constatar que o “mundo
científico” aclamado pela reportagem não forma um corpo tão coeso quanto se
imagina.34

Um pouco mais difícil será determinar exatamente a quais “metafísicos” as autoras


pensam incomodar quando relatam a experiência do Dr. Crick, na qual o “eu interior” -
qual seja o significado atribuído à expressão - dos voluntários teria sido apagado “por
um mero impulso elétrico externo”. O próprio meio científico parece estar repleto desses
abomináveis metafísicos. Como um exemplo dentro da própria genética, pode-se apontar
o americano Francis Collins, biólogo evolucionista que dirige o Projeto Genoma
Humano, fundador e presidente da BioLogos Foundation, e diretor do National
Institutes of Health em Bethesda. Reconhecido por suas importantes descobertas na
genética das doenças, Collins foi apresentado como “um dos mais completos cientistas
de nosso tempo” pela The Endocrine Society.35 Collins obteve reconhecimento
profissional apesar de suas convicções religiosas, e escreveu livros nos quais defende
simultaneamente a existência de Deus e a importância da ciência para a humanidade,
por acreditar que a investigação do mundo natural não colide com a fé. Na introdução
de seu livro The Language of God, publicado em 2006, ele propõe “uma harmonia
satisfatória entre as visões de mundo científica e espiritual”, já que, em seu ponto de vista,
“os princípios da fé são complementares aos da ciência”.

Fora do campo da genética, temos Erwin Schrödinger, físico austríaco ganhador do


prêmio Nobel de 1933 pela formulação da equação que leva seu nome - a equação
ondulatória da matéria que substituiu as leis de Newton na nova física - e autor do
sinistro paradoxo do gato. Schrödinger lembra mais um Dalai-Lama do que um cientista
ao escrever (grifo nosso):

“O Nirvana é um estado de puro e prazeroso conhecimento (...) não tem


nada a ver com a individualidade. O ego ou sua separação é uma ilusão”.36

Pelo que se depreeende da declaração acima, feita em 1918, a constatação da fatuidade


de nosso “eu interior” não constitui novidade em certos campos da ciência. Essa
retumbante descoberta, celebrada pelo artigo como um golpe de misericórdia sobre os
oponentes do materialismo, tampouco provocaria mais que um bocejo num xamã ou
num monge taoísta, pois a despeito da preocupação das autoras com o bem-estar dos
metafísicos a fragilidade do “eu”, em vez de ameaçar, confirma as mais antigas
tradições filosóficas e religiosas. Desde a religião natural dos aborígenes até as religiões
e filosofias orientais e as religiões iniciáticas do Mediterrâneo, sem se falar nas escolas
esotéricas europeias, todas comungam a ideia de que nossa identidade individual, a
psyché dos gregos ou o kama-manas dos hindus, é uma entidade ilusória que deve
dissolver-se para que possamos atingir estágios superiores de consciência. 37 Mais do que
isso, a própria noção de um eu individual separado dos demais simplesmente inexiste
em algumas culturas fora do eixo judaico-cristão.

Helena Blavatsky, fundadora da Teosofia, doutrina de filosofia religiosa e metafísica,


chama esse aspecto do homem de “Ego Inferior ou Eu Pessoal”, e o define como “O
homem físico em união com seu inferior, isto é, os instintos animais, as paixões, os
desejos, etc. É chamado ‘falsa personalidade’, e compõe-se do Manas [mente] inferior
combinado com o Kama-Rupa [corpo de desejos], que age por meio do corpo físico e
seu fantasma [corpo astral]”.38

22
As palavras pessoa e personalidade vêm do latim persona, nome das máscaras usadas
no teatro, e que ocultam a verdadeira face de seu portador. O objetivo da iniciação nas
religiões de mistérios, tanto quanto da meditação budista ou das reflexões taoístas,
consiste em superar nossa parte profana, esse “eu” ilusório com o qual nos
identificamos, para atingir uma iluminação que exige antes de tudo a renúncia à
individualidade. Assim, provavelmente os metafísicos, longe de sentir-se desiludidos,
deverão saudar o Dr. Crick pelo brilhante experimento que ratifica em laboratório uma
das proposições mais antigas e básicas da espiritualidade universal.

Embora os meios de comunicação de massa não costumem veicular este tipo de notícia,
sabe-se que mesmo no meio científico a abordagem mecanicista do cérebro está longe
de constituir unanimidade. Desde as primeiras décadas do século XX, diversos estudos
têm mostrado que, ao contrário do que se apregoa nos meios mais ortodoxos, as
memórias estão dispersas pelo cérebro, em vez de confinadas a uma localização
específica. Em uma série de experiências efetuadas na década de 1920, o psicólogo
behaviorista Karl Lashley (1890–1958), conhecido por suas significativas contribuições
ao estudo do aprendizado e da memória, descobriu que, independentemente de que
porção do cérebro de um rato fosse removida, era impossivel erradicar a memória de
como eram realizadas atividades complexas que tinham sido aprendidas pelo animal
antes da cirurgia. A impossibilidade de se determinar um local biológico de
armazenamento da memória (ou engram, como ele o chamou) indicava que as
informações não estariam localizadas em uma parte do cérebro, mas amplamente
distribuídas pelo córtex.39

Nos anos 1960, o neurocirurgião Karl Pribram propôs que as memórias não seriam
codificadas nem nos neurônios, nem em pequenos grupos destes, mas em padrões de
impulsos nervosos de tipo cruzado em todo o cérebro, assim como a interferência da luz
laser atravessa toda a área de um pedaço de filme contendo uma imagem holográfica. O
fato do cérebro funcionar como um holograma é a única maneira de explicar esse
padrão de armazenamento de informação. O mesmo conceito pode ser aplicado na
genética, o que nos levaria a trocar a busca por genes especializados em cada
característica física ou psicológica isolada pelo entendimento de que essas
características se definem na inter-relação entre os genes, e de como o padrão
holográfico otimizaria o armazenamento da informação genética em tão pouco espaço.
Aplicado à informática, esse mesmo conceito proporcionaria uma revolução na
tecnologia de armazenamento de dados.40

Diferentemente da abordagem cartesiana, onde o todo contém as partes, na abordagem


holográfica são as partes que contêm o todo. Esta conclusão, ao contrário dos princípios
cartesianos aqui comentados, não parte de especulações metafísicas mas de
experimentos com raios laser relativamente fáceis de se realizar. Descoberta em 1947
pelo físico húngaro Dennis Gabor (1900–1979), a holografia tem sido aplicada
industrialmente na confecção de aparatos eletrônicos desde a segunda metade do século
XX. Para o físico David Bohm, nossos cérebros são partes menores de um holograma
maior, e contêm - pela própria natureza da imagem holográfica – todo o conhecimento
do universo.41 De acordo com essa abordagem, como já sugeria a física quântica, é a
consciência que dá forma ao cérebro – e não o contrário - assim como ao corpo físico e
o próprio mundo externo. Submetendo-se a medicina e o conceito de cura ao modelo
holográfico, a noção de saúde e doença sem a participação da mente, tanto quanto a
divisão entre doenças físicas e psicológicas, perderá todo sentido.

23
A obstinação da ciência cartesiana em buscar explicação para todos os fenômenos
descrevendo-os como sequências lineares de eventos, desencadeadas por objetos
isolados, trafega na contramão do que tem sido constatado nas mais diversas disciplinas,
o fato de que a interação entre as partes predomina sobre a função individual dos
objetos.

Na física quântica, as partículas em si mesmas perdem a consistência de que desfrutam


na física newtoniana, enquanto a interação entre elas ganha o papel central. Niehls Bohr
declarou que “partículas materiais isoladas são abstrações, e suas propriedades só
podem ser definidas e observadas através de sua interação com outros sistemas”. 42
Heisenberg, por sua vez, disse que “o mundo se apresenta, pois, como um complicado
tecido de eventos, no qual conexões de diferentes espécies se alternam, se sobrepõem ou
se combinam, e desse modo determinam a contextura do todo”. 43 Segundo Henry Stapp,
PhD em física das partículas da Universidade da Califórnia e professor no Lawrence
Berkeley National Laboratory, “uma partícula elementar não é uma entidade não-
analisável que tenha existência independente. É, em essência, um conjunto de relações
que se estendem a outras coisas”.44 Fritjof Capra, físico e teórico de sistemas norte-
americano, afirmou que “no nível subatômico, as inter-relações e interações entre as
partes do todo são mais fundamentais do que as próprias partes. Há movimento, mas
não existem, em última análise, objetos moventes; há atividade, mas não existem atores;
não há dançarinos, somente a dança”.45 David Bohm, por sua vez, escreveu:

“Nós invertemos a noção clássica usual de que ‘partículas elementares’


independentes do universo constituem a realidade fundamental, e que os
vários sistemas são meros modelos e arranjos eventuais entre essas partes.
Dizemos especialmente que a inseparável interconexão quântica de todo o
universo é a realidade fundamental, e que o comportamento dessas partes
relativamente independentes são meros modelos e arranjos eventuais dentro
desse todo”.46

O biólogo e epistemólogo da comunicação Gregory Bateson, que postulou que qualquer


objeto deveria ser definido por suas relações com os demais objetos e não pelo que é em
si mesmo, por sua vez sugeriu que as relações fossem usadas como base para todas as
definições, e que esse conceito deveria ser ensinado às crianças desde a escola
primária.47

Cabe aqui ressaltar que o tipo de ciência descrito acima não costuma ser divulgado pelas
revistas de comunicação de massa: a chamada mídia aberta demonstra uma notável
predileção pelas abordagens lineares dos fenômenos em detrimento das abordagens
totalizantes da realidade. Apesar da imensa variedade da produção científica atual,
somente se publica esse mesmo ramerrão mecanicista, impregnado de um horror à
subjetividade diretamente proporcional à paixão pela certeza científica. Na área da
medicina, divulgam-se principalmente novas técnicas cirúrgicas e novos compostos
químicos destinados a suprimir sintomas ou quebrar a cadeia causal descoberta em
alguma doença, de preferência uma doença que esteja na moda. Costuma-se também
divulgar a criação de novos diagnósticos de validade duvidosa que ajudem a vender
mais remédios, como as síndromes do pânico, do déficit de atenção ou a das pernas
inquietas.

24
Igualmente comuns são as matérias alarmistas mencionando guerras imaginárias contra
vírus ou bactérias: segundo estas, vivemos uma cruzada contra quaisquer seres que se
atrevam a contestar nossa superioridade sobre as demais formas de vida da Terra,
mesmo aquelas que a habitam desde muito antes de nossa chegada e que permanecerão
depois da nossa extinção. Esses microrganismos são considerados “inimigos” da
humanidade, que devem ser combatidos num confronto mortal, mostrando que nosso
senso comum, mesmo amparado em modernos conceitos científicos, parece não ter
evoluído um passo além do maniqueísmo que infectou nossa cultura desde os últimos
dezessete séculos.48

Duas dentre as inúmeras aplicações da holografia: um HVD (Holographic Versatile Disc) e um


identigrama usado como dispositivo de segurança em um cartão alemão de identidade
(personalausweis). Fonte: Wikipedia. Mais uma vez, a tecnologia traz para o cotidiano artefatos
baseados em princípios que a ciência tradicional não pode explicar: para desilusão dos
materialistas, as teorias “metafísicas” também podem produzir tecnologia.

Nas reportagens sobre genética, anunciam-se periodicamente descobertas de genes


“causadores” de aspectos da personalidade humana como a religiosidade, a
homossexualidade, o vício na roleta ou no carteado, que só não ganham ainda mais
destaque por causa de seu viés politicamente incorreto. Na área da psicologia o
comportamentalismo, representante do mecanicismo cartesiano na área da alma e
periodicamente reciclado em abordagens como as terapias cognitivo-comportamentais
ou a programação neurolinguística, domina todo o cenário. Mesmo quando se entrevista
um psicanalista, cuja escola professa uma abordagem subjetiva dos fenômenos
psicológicos, a própria natureza das questões a ele apresentadas o impedem de escapar a
esse modelo para a formulação de uma resposta. Já os livros de auto-ajuda, repositórios
de lugares-comuns e filosofia barata, predominam sobre livros que façam uma
abordagem subjetiva das questões existenciais humanas e transcendam essa psicologia
massificada que não ajuda a ninguém exceto a seus próprios autores. As razões
psicossociais desse fenômeno não são tão difíceis de se descobrir, embora extrapolem
os objetivos deste trabalho.

25
A Ciência como paradigma da verdade - a idealização do conhecimento científico

Cientificismo consiste numa exagerada confiança na eficácia


dos métodos da ciência natural aplicada a todas as áreas do
conhecimento, como filosofia, ciências sociais e humanas

Martin Ryder49

A palavra ciência e suas derivadas, como cientista e científico, aparecem 13 vezes no


artigo, fato que não constitui surpresa: os meios de comunicação de massa outorgam à
ciência e aos cientistas a última palavra sobre qualquer área do conhecimento. Uma
assertiva científica detém hoje em dia o mesmo poder que uma bula papal na Idade
Média, assumindo um status de verdade inquestionável. Para dar credibilidade a uma
informação, basta atribuí-la aos cientistas para torná-la acima de qualquer suspeita. Mas
a realidade pode ser menos encorajadora. Em julho de 2008, o articulista Saswato R.
Das, que escreve sobre astronomia e astrofísica, publicou um artigo no New York
Times intitulado “Fraude Científica é Mais Comum do que se Pensa”, faz revelações
preocupantes como:

“Um vasto estudo da incidência de fraude científica nos Estados Unidos foi
recentemente publicado com resultados alarmantes: as fraudes são mais
comuns do que pensamos. Cientistas desfrutam de grande credibilidade em
seus pronunciamentos públicos - como aquecimento global, clonagem e
evidências de novos mundos extraterrestres. Mas esse estudo sugere que tal
confiança não é merecida” (...)

Quase nove por cento dos 2.012 cientistas de 605 instituições pesquisadas
pelo Escritório de Integridade Científica (ORI, na sigla em inglês), uma
agência de monitoramento de pesquisas científicas nos EUA, disseram ter
testemunhado algum tipo de fraude ou conduta inadequada nos últimos três
anos. A agência estima que todo ano ocorram três incidentes de fraude para
cada 100 pesquisadores” (...)

“É claro que a fraude na ciência não é um fenômeno recente. As mais


respeitadas figuras da história da ciência já sofreram essas acusações.
Galileu supostamente exagerou no resultado de seus experimentos; Newton
manipulou informações em seu Principia para sustentar sua teoria do poder
preditivo, e os experimentos de Mendel com ervilhas contêm dados
estatisticamente bons demais para serem verdade. Diz-se que no século II
a.C. o astrônomo grego Hiparco se apropriou de um catálogo de estrelas
babilônio e alegou que era o resultado de suas próprias observações”.50

Outro texto publicado pelo NYT, Pesquisas Científicas Podem Enganar, de Gina
Colata, pode ser igualmente ilustrativo quanto à confiabilidade das pesquisas científicas.
Se muitas fraudes são cometidas por causa da vaidade pessoal, pode-se apenas imaginar
quantas mais ocorrerão em função de interesses econômicos de grandes corporações.
Mas nada parece perturbar os crentes desta importante religião do terceiro milênio: em
todo o texto, as autoras jamais fogem a uma crença inabalável na Ciência, e passam-na
adiante em mensagens nem tão subliminares, como no parágrafo abaixo (grifos nossos):

26
“Foi somente a partir da década de 70, no entanto, que a aproximação entre
a medicina e a psicologia se estreitou,51 e a área psicossomática começou a
ganhar reconhecimento científico. O ‘fundamentalismo psicológico’
denunciado por Susan Sontag atrasou o progresso de um campo da medicina
que só agora reclama sua posição no mundo científico”.

É notável como um pequeno parágrafo pode transbordar axiomas dos quais o leitor não
tem a menor chance de escapar. O primeiro deles é o de que a verdade se constitui numa
prerrogativa da ciência, e por extensão, dos cientistas. A área da psicossomática
somente se reveste de seriedade quando ganha “reconhecimento científico”, e uma
“posição no mundo científico”. O “fundamentalismo psicológico”, por sua vez,
semelhante à Al Qaeda para o pensamento formal e mecanicista, fez todo o possível
para prejudicar a busca da verdade absoluta, aqui resumida à utópica certeza cartesiana.

Atualmente as disciplinas objetivas, como a engenharia ou a medicina, 52 predominam


sobre as disciplinas de caráter subjetivo como a filosofia, a sociologia ou a psicologia: a
medicina mecanicista, por sua vez, predomina sobre áreas não-mecanicistas como a
acupuntura ou a homeopatia, inclusive por serem pouco lucrativas e não utilizar
substâncias de ação química em seus tratamentos. Observe-se que, segundo o trecho da
reportagem anteriormente selecionado, a pobre psicologia só começa a ganhar mais
credibilidade quando se submete à medicina, que aqui deve ser entendida como uma
instituição de fins lucrativos aliada aos grandes laboratórios.

Existe em nossa cultura o preconceito de que uma área do conhecimento só deve ser
reconhecida se acatar os preceitos básicos da ciência tradicional, e a psicologia não
escapa a esse dogma. O artigo acusa o “fundamentalismo psicológico”, praticado por
psicólogos ainda não domesticados, de atrasar o progresso da nossa nobre medicina na
busca pela verdade absoluta, apesar do livro-denúncia escrito por uma crítica de arte e
ativista norte-americana ter nos legado uma conclusão inequívoca sobre a verdadeira
origem das enfermidades. Mas isso ainda não é tudo. Esse poderoso parágrafo também
outorga um status bastante elevado à medicina como a instituição detentora da verdade
definitiva nas questões referentes à saúde, uma espécie de franquia da Ciência como um
todo, fato que nos obriga a nela acreditar cegamente. A própria psicossomática reduz-se
a “um campo da medicina”. 53 Faz-nos crer igualmente que os médicos e pesquisadores
formam um bloco uniforme, compartilhando as mesmas ideias e interesses, o que é uma
falácia, como podemos observar no exemplo abaixo.

Num artigo publicado em 2007 no The New York Times,54 os doutores Gilbert Welch,
Lisa Schwartz e Steven Woloshin denunciam os vícios do sistema de saúde norte-
americano:

“Para a maioria dos americanos, a principal ameaça à saúde não é a gripe


aviária, a febre do Nilo ou o mal da vaca louca. Mas sim o próprio sistema
de saúde. Você pode pensar que isso é porque os médicos cometem erros
(sim, nós erramos). Mas você jamais será vítima de um erro médico se você
não estiver no sistema. A maior ameaça apresentada pela medicina
americana é o fato de cada vez mais estarmos nos afundando nesse sistema,
não por uma epidemia de doenças, e sim por uma epidemia de diagnósticos.
Apesar de os americanos viverem mais do que nunca, cada vez mais nos
dizem que estamos doentes (...)

27
Essa epidemia é uma ameaça à saúde e tem duas fontes distintas. Uma delas
é a ‘medicalização’ da vida cotidiana. A maioria de nós passa por sensações
físicas ou psicológicas desagradáveis que, no passado, eram consideradas
como parte da vida. No entanto, hoje tais sensações são consideradas, cada
vez mais, como sintomas de doenças. Eventos como insônia, tristeza,
inquietação das pernas e diminuição do apetite sexual, hoje, se transformam
em diagnósticos: distúrbio do sono, depressão, síndrome de pernas inquietas
e disfunção sexual (...)

Dois progressos aceleram esse processo. Em primeiro lugar, a avançada


tecnologia permite que os médicos olhem profundamente para as coisas que
estão erradas. Nós podemos detectar marcadores no sangue. Nós podemos
direcionar aparelhos de fibra ótica dentro de qualquer orifício. Além disso,
tomografias computadorizadas, ultrassonografia, ressonâncias magnéticas e
tomografias por emissão de pósitrons permitem que os médicos exponham,
com precisão, tênues defeitos estruturais do organismo.

Essas tecnologias tornam possíveis quaisquer diagnósticos em qualquer


pessoa: artrite em pessoas sem dores nas juntas, úlcera em pessoas sem
dores no estômago e câncer de próstata em milhões de pessoas que, não
fosse pelos exames, viveriam da mesma forma e sem serem consideradas
pacientes com câncer.

Em segundo lugar, as regras estão mudando. Conselhos de especialistas,


constantemente, expandem os conceitos de doenças: todos os valores de
referência para o diagnóstico de diabetes, hipertensão, osteoporose e
obesidade caíram nos últimos anos. O critério utilizado para considerar o
nível de colesterol normal despencou múltiplas vezes. Com estas mudanças,
doenças agora são diagnosticadas em mais da metade da população”.55

Igualmente instrutiva pode ser a leitura do artigo Sense About Science – Making Sense
of Testing, assinado por vários médicos britânicos de renome, do qual transcrevemos o
trecho que se segue:

“Corporações médicas de ponta, clínicos e cientistas estão alertando o


público e os políticos para os potenciais danos causados por testes e
mapeamento corporal às pessoas saudáveis e para a necessidade da criação
de um órgão nacional para avaliar testes de laboratório (...) Apesar do
grande desenvolvimento dos testes de laboratório, e da explosão sem
precedentes de novas tecnologias e marketing em favor dos testes para
pessoas saudáveis, ainda não há um sistema (equivalente ao British National
Formulary for Drugs) que informe médicos ou pacientes sobre seu
desempenho e utilidade.

Em um texto publicado hoje, clínicos gerais e cientistas advertem o público


que a maioria dos testes não foi concebida para pessoas sãs, muitos testes
não foram pesquisados ou adequadamente regulados, que os testes
compõem apenas parte do diagnóstico, e que os mesmos podem causar
danos ou lesões, especialmente em pessoas saudáveis”.

28
Pode-se depreender dos dois trabalhos acima mencionados o quanto os médicos estão
longe de formar o bloco único e concordante que artigos como a reportagem ora em
análise pretendem fazer crer. Tamanha idealização da medicina, colocada em um altar
incensado pelas autoras, quase nos faz esquecer do quanto ela hoje se encontra
comprometida com ideologias, interesses políticos e financeiros, e submetida aos
interesses dos governos e das grandes corporações. Cada vez mais, a função da
medicina parece concentrar-se no papel de perseguir as doenças criadas, modificadas ou
potencializadas pela própria civilização, e nos fazer sentir doentes mesmo que à custa de
revisões para baixo de índices de normalidade para vender mais medicamentos. O artigo
de Welch, Schwartz e Woloshin ainda acrescenta:

“Talvez ainda mais preocupante seja a medicalização da infância. Se uma


criança tossir depois de fazer exercícios, ela tem asma. Se tiver problemas
com leitura, é disléxica. Se estiver infeliz, tem depressão. Se alternar entre
euforia e tristeza, tem distúrbio bipolar (...) O que, exatamente, estamos
fazendo com nossas crianças, uma vez que 40% das que vão acampar estão
sujeitas a uma ou mais prescrições crônicas de medicamentos?”

A banalização do uso de medicamentos também ocorre na área da psiquiatria. Em


agosto de 2004, a BBC noticiou que vestígios signifativos do antidepressivo Prozac
foram encontrados na água potável na Grã-Bretanha. “O relatório da Agência para o
Meio-Ambiente sugere que tanta gente toma o remédio que resíduos estão se
concentrando em rios e na água encontrada em solo britânico. Uma reportagem
publicada pelo jornal Observer afirma que a agência do governo que monitora o meio-
ambiente discutiu o impacto na saúde humana”. O parlamentar da oposição Norman
Baker, porta-voz para meio-ambiente do Partido Liberal Democrata, disse que “a
princípio parece um caso de medicação em massa disfarçada para um público que não
suspeita de nada”. A reportagem ainda informa que, entre 1991 e 2001, o número de
receitas médicas para antidepressivos aumentou de 9 milhões por ano para espantosos
24 milhões por ano, o que nos faz especular a que níveis esses números terão chegado
atualmente.

Antes de mais nada, interessa ao sistema consumista convencer as pessoas de que


precisam de coisas das quais realmente não precisam, incluindo os medicamentos.
Quem se dispuser a observar as propagandas na televisão ficará surpreso com a
proporção de anúncios de remédios que é veiculada, como se a mídia estivesse
empenhada em nos transformar num exército de hipocondríacos. Atores usando óculos
sóbrios e fantasiados de médicos ou dentistas nos aconselham a comprar cada nova
criação dos laboratórios. Doses diárias absurdas de vitamina C são recomendadas para
que nunca fiquemos gripados, enquanto cremes cada vez mais potentes impedem que
fiquemos velhos ou sejamos tostados pela luz do sol ao sair à rua mesmo em dias
nublados.

Uma informação importante é a de que nossos corpos são sujos e potencialmente


perigosos. A boca é mostrada como um reduto de bactérias mortais, que precisa ser
tratada diariamente com bochechos de desinfetantes aromatizados: nossos dentes serão
arruinados pelas cáries se não usarmos fio dental, uma escova “projetada por dentistas”
e um creme dental com “múltipla proteção” após o lanche. Nossa pele pode esboroar-se
a qualquer momento sem o uso de hidratantes, e nossos cabelos decompor-se sem o
auxílio dos condicionadores. Aparentar a idade real torna-se a maior tragédia que

29
poderia ocorrer na vida de qualquer pessoa. As mulheres são convencidas a manter seus
genitais “protegidos” de suas próprias impurezas usando absorventes íntimos não
apenas durante a menstruação, mas todos os dias do mês.

Como a medicina curativa suplantou a medicina preventiva, os órgãos de comunicação


parecem pouco preocupados em informar que roupas justas de jeans, cotton ou lycra,
assim como roupas íntimas apertadas, podem favorecer a candidíase vulvo-vaginal,
problema que poderia ser evitado com o uso de roupas folgadas em casa e na hora de
dormir. Mas podemos ficar tranqüilos, pois a medicina moderna já desenvolveu
medicamentos contra essa incômoda moléstia a preços acessíveis. Outro bom exemplo
do descaso com a prevenção de doenças em favor de uma medicina meramente curativa
pode ser o problema da flatulência: a TV aconselha a quem se sinta incomodado por
gases intestinais que use um remédio feito à base de dimeticona. Esse composto, útil na
preparação dos pacientes para exames radiológicos do tubo digestivo, torna-se
disponível para a automedicação em circunstâncias em que poderia ser dispensável. A
informação de que uma dieta composta de fibras e a reposição da flora intestinal
destruída por uma diarreia, pela alimentação inadequada ou pelo uso, muitas vezes
inconseqüente, de antibióticos e anti-inflamatórios pode fazer muito mais por nossa
saúde intestinal (e total) do que a ministração de uma droga produzida em laboratório.

As crianças, comumente usadas como isca pelas agências de publicidade para vender
medicamentos, inseticidas e produtos de limpeza, são as grandes protagonistas nos
anúncios de xaropes, pastilhas, pomadas e curativos autoaderentes. Enquanto antigos
remédios amargos cedem lugar a poções cada vez mais saborosas, os adesivos vêm
decorados com desenhos coloridos para encantar crianças e adolescentes. Oferecem-se
diversos produtos de ação antibacteriana, como sabonetes que “protegem” uma criança
do contato diário com objetos prosaicos como a terra, a água, plantas, insetos ou mesmo
o cachorro da família, subitamente convertido em uma potencial besta assassina. A
eficácia prometida chega a impressionantes detalhes como o de fornecer estatísticas
exatas da eliminação dos microrganismos. “Nosso produto remove 97% das bactérias”,
diz a legenda, e, como o comercial não informa quais tipos de bactérias são eliminados,
resta-nos rezar para que os 3% restantes não sejam justamente aqueles que oferecem
algum risco real a nossa saúde. As bactérias necessárias a nossa saúde, por sua vez,
acabam sepultadas nessa vala comum.

Um mínimo arranhão deve ser imediatamente desinfetado por uma mãe vigilante que
acorre com um antisséptico e uma bandagem em punho. Um pequeno acidente com
sangramento, que antigamente se enfrentava lavando a ferida com sabão em uma
torneira, hoje leva uma criança ao pronto-socorro onde lhe serão ministrados
antibióticos e injeções antitetânicas. Tomar chuva pode acarretar uma pneumonia,
embora talvez não ofereça tanto perigo quanto uma vacina contra a gripe. Uma dor de
garganta comum demanda o uso de pastilhas com antibióticos, uma leve pancada requer
anti-inflamatórios e um mau jeito nas costas exige pomadas, emplastros e analgésicos,
para não mencionar as assustadoras substâncias corticoides acessíveis em qualquer
farmácia de bairro.

O mundo ao nosso redor é pintado como um ambiente hostil e contagioso do qual


devemos nos isolar ao invés de interagir, como se nosso sistema imunológico não
necessitasse dessas experiências para aperfeiçoar-se e permanecer ativo e alerta contra
ameaças mais sérias que possam surgir no decorrer da vida de cada um. As instituições
que gastam bilhões de dólares em pesquisas contra a obesidade ou a impotência

30
enquanto milhões de pessoas morrem de esquistossomose são as mesmas que produzem
antibióticos que ao tratar um órgão danificam outros, e cujo uso indiscriminado nos
legou as superbactérias que aterrorizam os hospitais. 56 Sua falta de ética inclui testes de
novos medicamentos em populações pobres de países do terceiro mundo, a instituição
de lobbies e pressões para acelerar a liberação de novos remédios para consumo
público, tornando os usuários cobaias na descoberta de efeitos colaterais devido ao uso
prolongado.

Nessa área, há exemplos de arrepiar os cabelos. Wilson da Costa Bueno, jornalista,


professor do curso de pós-graduação em Comunicação da Universidade Metodista de
São Paulo (UMESP) e do curso de graduação em jornalismo da Universidade de São
Paulo (USP), relata casos como o de antrópologos (!) que realizaram, sem autorização,
experiências com os índios ianomâmis da Venezuela, para testar uma vacina contra o
sarampo. O autor ainda acrescenta:

“A utilização de segmentos da população, geralmente crianças, prisioneiros


e deficientes, como cobaias humanas povoam os relatos recentes de
atrocidades cometidas em nome da ciência. É o caso dos bebês de orfanatos
e albergues australianos, da cidade de Melbourne, submetidos a testes feitos
com vacinas experimentais contra a herpes, por exemplo, segundo denúncia
do jornal australiano The Age. ‘Nos testes mais longos, continua o jornal,
350 crianças entre 3 e 36 meses foram injetadas com doses de adulto de
vacinas experimentais contra gripe para testar reações tóxicas’. Também
está na mesma situação o apartheid sul-africano que chegou a realizar uma
pesquisa para desenvolver uma bactéria capaz de matar ou pelo menos
causar infertilidade somente a pessoas da raça negra. Segundo o cientista
Daan Goose, responsável por um laboratório clandestino naquele país, o
projeto, conduzido nos Laboratórios de Investigação Roodeplaat, nas
cercanias de Pretória, não obteve sucesso, mesmo porque foi interrompido
com o fim do regime, mas o produto, provavelmente, ‘poderia ser
distribuído por meio de sua mistura à cerveja de sorgo ou à farinha de milho
(consumidos quase que exclusivamente pela população negra) ou usando
como pretexto uma campanha de vacinação’.”57

Em meio à descrição de um verdadeiro circo de horrores que se estende por quase


quarenta páginas, o autor expressa uma preocupação com a mídia bastante pertinente à
nossa discussão:

“Mas os relatos de relações espúrias e eticamente condenáveis não se


restringem ao campo da ciência e da tecnologia, mas incorporam, também, a
indústria cultural e, muito particularmente, a comunicação científica. Os
meios de comunicação têm, de caso pensado ou por ingenuidade
(incompetência, despreparo?), se tornado cúmplices de interesses políticos,
econômicos e comerciais, atuando como autênticos porta-vozes de
indústrias, institutos de pesquisa ou governos mal-intencionados”.58

O principal objetivo dos laboratórios em nada difere dos resultados buscados por
qualquer empresa, o de gerar mais e mais lucros com a criação de compostos químicos
que amenizem os sintomas de males desencadeados por fatores que poderiam ser
minimizados ou evitados sem a necessidade de intervenções medicamentosas. Em vez
da cura, busca-se transformar as moléstias fatais em doenças crônicas, que exigiriam o

31
consumo vitalício de drogas, levando a uma eterna dependência química do paciente.
Muitas doenças “físicas” advêm de estilos de vida inadequados, do vício do fumo,
alcoolismo ou uso de drogas, problemas ou conflitos familiares, alienação e subversão
dos valores,59 automedicação e uso indiscriminado de remédios, esteroides e
suplementos vitamínicos,60 destruição sistemática de ecossistemas, poluição sonora, do
ar e das águas, a violência, o trânsito e a deterioração da qualidade de vida nos grandes
centros urbanos, o excesso de horas ou condições insalubres de trabalho, falhas na
prevenção de acidentes, obesidade, sedentarismo ou excesso de exercícios físicos.

Na área da alimentação fatores como o uso de agrotóxicos, a fast-food, a aplicação de


conservantes, corantes, aromatizantes e os mais diversos aditivos químicos nos
alimentos industrializados, bebidas armazenadas em recipientes plásticos, adoçantes
artificiais, excessos no consumo de sal, farinha e açúcar refinados, a gordura
hidrogenada e a contaminação por hormônios e antibióticos na carne cooperam
decisivamente para tornar necessário no futuro o uso de medicamentos contra o
colesterol, hipertensão, diabetes, câncer, sobrepeso ou obesidade, depressão e assim por
diante. O descaso com a educação ambiental, cidadania, segurança, alimentação
saudável, medicina preventiva, higiene e saneamento básico fazem igualmente um papel
importante nesse processo. Investimentos nesses setores não exigiriam mais dinheiro do
que os bilhões gastos na busca de novos remédios, em ocupação de leitos,
equipamentos, materiais e serviços hospitalares, horas de atendimento médico ou
mesmo no desperdício financeiro, material e de produtividade decorrido da doença,
invalidez ou morte de cada indivíduo.

32
Um novo paradigma

É um desatino supor que as únicas


formas de explicação sejam científicas

Max Bennett e Peter Hacker61

A fidelidade irrestrita à Ciência e o culto quase religioso a seus princípios, que


comentamos no item anterior, deve-se também às ideias de Auguste Comte (1798-
1857), considerado o primeiro sociólogo moderno e o fundador do positivismo.
Segundo Comte, a humanidade teria passado por três estágios evolutivos:

1) Teológico: corresponde à infância da humanidade. Nessa época, o


homem dá explicações fantásticas sobre os fenômenos naturais, utiliza
categorias antropológicas para compreender o mundo, e técnicas mágicas
para dominá-lo (Religião).

2) Metafísico: as explicações são racionais, se busca o porquê das coisas e


substituem os deuses por entidades abstratas e conceitos metafísicos
(Filosofia).

3) Positivo: a etapa definitiva. Não se busca mais o porquê das coisas, mas
sim o como. O conhecimento se baseia nas observações e nas experiências e
se expressa com o recurso da matemática. Busca-se o conhecimento das leis
da natureza para conseguir o seu domínio técnico. Nega-se que a filosofia
possa dar informação sobre o mundo, tarefa essa que cabe exclusivamente à
Ciência.62

Assim, de acordo com o positivismo, a religião e a filosofia não passam de precursores


primitivos do verdadeiro processo de conhecimento, então a portentosa ciência do
século XIX, quando se acreditava que a humanidade estaria perto de solucionar todos os
mistérios da natureza. Em 1888, o astrônomo canadense Simon Newcomb expressou
como ninguém a extensão dessa confiança na ciência ao declarar: “Estamos
provavelmente nos aproximando do limite de tudo o que podemos saber sobre
astronomia”.63 Era o alvorecer de uma época marcada por grandes sonhos como o de
viajar à Lua em uma bala de canhão, e pela construção de prodígios da engenharia como
o navio Titanic e o dirigível Hindenburg.

Lembremos que este tipo de progressão linear e gradual descrita acima, em que Comte
enfeixa o desenvolvimento da humanidade, harmoniza-se à noção clássica de que os
objetos e fenômenos do universo partem sempre do mais simples para o mais complexo,
onde partículas compõem átomos, átomos produzem moléculas e estas últimas dão
origem às células e consequentemente aos organismos, e que essa progressão é gradual
e sem saltos evolutivos, é chamada de causalidade ascendente pela física moderna.
Quando a física quântica detectou fenômenos devidos a uma causalidade descendente,
onde alguns processos se iniciam a partir de estados complexos, o fato provocou o
espanto dos próprios cientistas que a descobriram.

Mas será que a ciência detém mesmo o monopólio da investigação da verdade? O


“fundamentalismo psicológico”, satanizado pelo artigo em estudo, encontra sua
contrapartida no fundamentalismo científico, o chamado cientificismo, que domina

33
alguns setores da ciência e a mídia nos dias de hoje. Fritjof Capra sintetiza-o muito bem
em um único parágrafo:

“A visão de Descartes despertou-lhe a firme crença na certeza do


conhecimento científico (...) ‘Toda ciência é conhecimento certo e evidente’,
escreveu ele. ‘Rejeitamos todo conhecimento que seja meramente provável
e consideramos que só se deva acreditar naquelas coisas que são
perfeitamente conhecidas e sobre as quais não pode haver dúvidas’. A
crença na certeza do conhecimento científico está na própria base da
filosofia cartesiana e na visão de mundo dela derivada, e foi aí, nessa
premissa essencial, que Descartes errou. A física do século XX mostrou-nos
de maneira convincente que não existe verdade absoluta em ciência, que
todos os conceitos e teorias são limitados e aproximados. A crença
cartesiana na verdade científica é, ainda hoje, muito difundida e reflete-se no
cientificismo que se tornou típico da cultura ocidental. Muitas pessoas em
nossa sociedade, tanto cientistas como não cientistas, estão convencidas de
que o método científico seja o único meio válido de compreensão do
universo”.64

Peter Hacker, filósofo britânico especializado na filosofia da mente e na filosofia da


linguagem, conhecido por sua exegese da obra de Wittgenstein e uma postura crítica
frente à neurofilosofia, rejeita a identidade entre mente e cérebro e outras formas de
reducionismo, como o funcionalismo e o eliminativismo. Em um livro publicado em
2003 junto com o neurocientista Max Bennett, que denuncia a superficialidade
filosófica dos trabalhos científicos contemporâneos, em especial na neurociência,
Hacker rejeita a noção de que a ciência possa “explicar tudo”.65 Segundo os autores, as
teorias científicas não podem explicar o mundo em si mesmo, mas apenas os fenômenos
nele observados.

Os pressupostos cartesianos têm sido questionados, em seus aspectos mais básicos, até
em áreas mais subjetivas do conhecimento. Na psicanálise, Jacques Lacan contrapôs ao
“penso, logo existo” seu famoso enunciado: “Penso onde não sou, logo sou onde não
penso”. Lacan sustenta que, ao invés de pensar, somos “pensados” por um registro da
ordem do simbólico que é o lugar do código fundamental da linguagem, uma estrutura
regulada sem a qual não haveria cultura, à qual o autor chama de “grande Outro”. Esse
Outro refere-se a um discurso universal, de tudo o que foi dito ou pensado, anterior ao
sujeito e a ele determinante. O “eu” que habita dentro de nós segundo a doutrina
cartesiana aqui deixa de ser uma entidade isolada e torna-se um campo, uma função
subjetiva e transpessoal, onde o sujeito, em vez de pensar, é pensado pela estrutura
simbólica, consistindo em mero produto da cultura. Mas uma abordagem desse tipo
pode soar um tanto excêntrica para quem crê que as emoções se resumam a simples
processos bioquímicos, que nosso “eu interior” se confine numa parte do cérebro, e
nossa “consciência” ou “individualidade” consista no “dom de saber que você é você e
o outro é o outro”.

Contudo, ainda que involuntariamente, as autoras confirmam a assertiva lacaniana de


que não passamos de um produto da cultura: assim como as posições defendidas pelas
autoras, todos os pressupostos verificados em seu texto refletem os princípios básicos da
cultura que os sustenta. Dentre outras falácias, o artigo promete subliminarmente uma
certeza científica sobre os fenômenos que jamais será alcançada, não por causa de
quaisquer limitações dos métodos experimentais, mas por uma característica intrínseca

34
da própria realidade, como demonstra o princípio da incerteza de Heisenberg na física
quântica. Os prejuízos advindos do reducionismo cartesiano são expostos sucintamente
por Capra, a quem deixaremos a tarefa de encerrar este ensaio:

“A divisão cartesiana entre matéria e mente teve um efeito profundo sobre a


civilização ocidental. Ela nos ensinou a entender a nós mesmos como egos
isolados existentes ‘dentro’ de nossos corpos; levou-nos a atribuir ao
trabalho mental um valor superior ao do trabalho manual; habilitou
indústrias gigantescas a venderem produtos – especialmente para as
mulheres – que nos proporcionem ‘o corpo ideal’; impediu os médicos de
considerar seriamente a dimensão psicológica das doenças, e os
psicoterapeutas de lidar com o corpo de seus pacientes.

Nas ciências humanas, a divisão cartesiana redundou em interminável


confusão entre mente e cérebro; e, na física, tornou extremamente difícil aos
fundadores da teoria quântica interpretar suas observações dos fenômenos
atômicos. Segundo Heisenberg, que se debateu com o problema durante
muitos anos, ‘essa divisão penetrou profundamente no espírito humano nos
três séculos que se seguiram a Descartes, e levará muito tempo para que seja
substituída por uma atitude realmente diferente em face do problema da
realidade’.”

© 2007 Antonio Farjani: psicólogo, psicanalista e escritor.

35
1
“He who breaks a thing to find out what it is, has left the path of wisdom” - The Lord of the Rings, Book II, The Council of
Elrond. Frase de Gandalf, o mago.
2
Edição 1962, 28 de junho de 2006 – Editora Abril.
3
Freud and Man's Soul, - Knopf, 1983, cap. X.
4
Existem outros conceitos como o de doenças histeriformes (juntamente com a neurose de angústia e as organoneuroses)
de Fenichel, as patoneuroses de Ferenczi, etc., que não interessariam a um estudo não psicanalítico.
5
Mesmo assim, os psicólogos continuam sendo considerados uma espécie de casta inferior em relação aos médicos nos
hospitais psiquiátricos. Desde a segunda metade do século XX, com o aperfeiçoamento das drogas psicoativas, a
subjetividade perdeu espaço para as intervenções medicamentosas como conduta básica no tratamentos dos pacientes.
6
The Self-Aware Unierse, cap.I.
7
Tractatus Logico-Philosophicus, 1921 – “For an answer which cannot be expressed, the question too cannot be expressed.
The riddle does not exist. If a question can be put at all, then it can also be answered” (proposição 6.5). “Whereof one
cannot speak, thereof one must be silent” (proposição 7).
8
A Philosophical Essay on Probabilities - New York : J. Wiley; London : Chapman & Hall (1902), cap. II, p.4. Citado por
Milic Capek, The Philosophical Impact of Contemporary Physics (1961), p.121 (163 e 395).
9
The Misterious Universe, Macmillan, New York, 1930. Citada por Fritjof Capra em O Ponto de Mutação – Cultrix, 1982,
cap. II-3. Publicação original, The Turning Point, 1982. Vide também o domínio Today in Science History.
10
Em seu primeiro encontro com Werner Heisenberg, em 1920, em resposta a questões sobre a natureza da linguagem.
Relatado em Discussions about Language (1933), citado em Defense Implications of International Indeterminacy (1972)
por Robert J. Pranger, p.11, e Theorizing Modernism: Essays in Critical Theory (1993) por Steve Giles, p.28.
11
The Quantum Theory and Reality: Scientific American, 1979, p.158.
12
Symmetries and Reflections - Scientific Essays: MIT Press, Cambridge, Massachusets, 1970, p.172.
13
Das Wesen der Materie (A Natureza da Matéria), 1944 (do Archiv zur Geschichte der Max-Planck-Gesellschaft, Abt. Va,
Rep.11 Planck, n.1797).
14
Vide também O Princípio da Correspondência de Bohr.
15
Physics and Philosophy: The Revolution in Modern Science (1958). Lectures delivered at University of St. Andrews,
Scotland, winter 1955-56.
16
Apud Karen Michelle Barad, Meeting the Universe Halfway (2007), p.254, citando em rodapé The Philosophical Writings
of Niels Bohr (1998).
17
Apud John Gribbin, In Search of Schrödinger's Cat, na epígrafe do livro - ISBN 0-552-12555-5.
18
On the Intuitive Understanding of Nonlocality as Implied by Quantum Theory - Foundations of Physics, vol. V, 1975).
19
Solving the quantum mysteries.
20
Op. Cit. Essa observação de Gribbin refere-se ao quantum tunneling (efeito túnel), que ocorre no interior do Sol e das
estrelas. Prótons mantidos a uma certa distância entre si pela repulsão de suas cargas positivas ainda assim se fundem por
causa do efeito túnel, sem o qual a fusão nuclear, que mantém o centro do Sol aquecido e faz sua superfície brilhar, não
poderia ocorrer. O problema dos cientistas conservadores é que a física newtoniana não pode explicar esse fenômeno, e não
há a menor esperança de que possa fazê-lo um dia. Entretanto, o pragmatismo positivista lhes permite fabricar usinas e
bombas nucleares - que respectivamente produzem energia elétrica e matam pessoas - sem jamais discutir o porquê dos
átomos se comportarem da maneira que o fazem nesses processos.
21
Em termos simples, a não-localidade refere-se à propriedade das partículas de se influenciar e comunicar mutuamente
mesmo que estejam separadas por grandes distâncias ou afastando-se entre si a uma velocidade maior que a da luz (como
ocorre no experimento de Alain Aspect). Segundo a física tradicional, essa influência só será possível se os objetos
estiverem próximos e a velocidades inferiores à da luz, que é a velocidade limite para a transmissao de sinais.
22
Apud Capra, Op.Cit, cap. II-3, p.72.
23
Ibid., cap. II-3, p.67.
24
Vide epígrafe do item Causa e efeito – O mecanicismo.
25
Introdução do livro Speakable and Unspeakable in Quantum Mechanics, 2nd edition, de John Stewart Bell. Cambridge
University Press. 2004. p. xxix.
26
Op.Cit., cap. II.
27
Uma nova cepa do staphylococcus aureus se propagava mais rápido do que se pensava nos Estados Unidos e poderia
causar mais mortes que a aids, indicou um estudo dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) publicado pela
revista Journal of the Medical Association, em outubro de 2007.
28
Acrescente-se aqui a possibilidade de se contratar um psicólogo para cuidar da “cabeça” da criança, como coadjuvante do
tratamento químico ministrado pelo médico, que cuida apenas do “corpo” de seu paciente.
29
Ibid., cap.2:3.
30
Hoje se sabe também que o fascículo uncinado, conjunto de fibras do cérebro que une as circunvolunções do lobo frontal
à região anterior do lobo temporal, é uma via para nossas memórias pessoais, servindo como canal por onde estas são
transmitidas. Uma lesão nesse local pode suprimir a noção de identidade e a memória pessoal do sujeito. Portanto, não nos
encontramos totalmente a salvo de um dia ler que nosso “eu interior”, além de poder ser apagado facilmente por um impulso
elétrico, reside num simples feixe de fibras cerebrais. Ficaria faltando apenas a comprovação científica de que nossa alma
habita a glândula pineal.
31
Note-se também a arrogância da ciência ortodoxa tal como ela se apresenta neste caso. Depois de negar por quase quatro
séculos qualquer ligação entre a mente e o corpo, os dualistas se viram obrigados a reconhecer que essa interação existe,
pelo menos em alguns casos. Claro que, ao aceitar essa realidade, apegaram-se à suposta identidade entre mente e cérebro
para manter a origem das doenças em última análise dentro do corpo. Embora tenham sido eles os “vencidos”, visto que
tiveram de ceder em sua posição radical de que essas duas realidades jamais poderiam se tocar, os dualistas, últimos a
aceitar a disciplina da psicossomática, já chegam arrogando-se o direito de decidir quando, como e porque essas “exceções”
acontecem. Essa tradicional insolência, que consegue até transformar uma derrota em uma vitória, é a mesma que autoriza
as autoras a desqualificar como “baboseira” aquilo que a medicina mecanicista se recuse a aceitar.
32
Intelligent design tied to creationism in Dover trial - Bill Toland, para o Pittsburgh Post-Gazette, 28 de setembro de
2005.
33
Não custa registrar, como curiosidade, que Descartes menciona Deus 34 vezes em seu Discurso do Método. Isaac
Newton, por sua vez, além de físico, matemático e astrônomo, era filósofo, alquimista e teólogo, e foi definido por seus
biógrafos como um homem extremamente religioso e um profundo estudioso da Bíblia. Newton acreditava que a Terra
tivesse os 6000 anos de idade sugeridos pela Bíblia, e que a mecânica celeste era governada em parte pela gravitação
universal e em parte por Deus. Embora essas características não diminuam o valor desses extraordinários pensadores, elas
servem para ilustrar como o “mundo científico” pode não ter raízes tão céticas quanto alguns gostariam de crer.
34
O cientista político Charles Murray, co-autor com o psicólogo Richard J. Herrnstein do polêmico livro The Bell Curve,
que afirma a superioridade intelectual dos brancos em relação aos negros, é um dos poucos a defender algumas das posições
de Watson. Na posição oposta, Stephen Jay Gould (1941-2002), paleontólogo, biólogo evolucionário e historiador da
ciência, questionou a validade dos métodos de medida da inteligência, como os testes de Q.I., em seu livro The Mismeasure
of Man (1981).
35
The Medical News: August 7, 2009.
36
Writings of July 1918, citado in A Life of Erwin Schrödinger (1994), por Walter Moore - ISBN 0521437679.
37
Segundo Annie Besant, o kama-manas designa a mente inferior de desejos, que funciona em e por meio do cérebro
humano, e corresponde à consciência cerebral e à inteligência racional. “Este se enlaça ao Kama, a natureza passional, de
modo que as paixões e emoções se convertem em uma parte da Mente, tal como a define a psicologia moderna” (Death, and
After?, 1906, cap.I).
38
The Key to Theosophy, p.196.
39
Não só as memórias, mas até mesmo as funções motoras parecem apresentar essa característica. Veja-se o exemplo da
canadense Dominique X que, mesmo tendo o lado direito do cérebro removido, tem recuperado gradualmente o controle
sobre seu braço esquerdo. Em 2010, os casos da menina britânica Cameron Mott e o da americana Michelle Mack , de 37
anos, obrigaram os médicos a rever seus conceitos. Nascida com metade do cérebro, Michelle fala normalmente.
40
Um exemplo das possibilidades da tecnologia holográfica é o HVD (Holographic Versatile Disc), disco ótico que deverá
suceder o blu-ray, com capacidade de 3.9 terabytes , equivalente a 100 DVDs, e pode ser lido à velocidade de 1 Gbps.
41
Essay on Life & Ideas of David Bohm. No campo da psicologia Keith Floyd, do Virginia Intermont College, defende que
toda a realidade concreta consiste apenas numa ilusão holográfica em seu texto Of Time and the Mind.
42
“Isolated material particles are abstractions, their properties being definable and observable only through their interaction
with other systems” - Atomic Physics and the Description of Nature - Wiley, New York, 1934.
43
Citado por Daniel Garber: Science and Certainty in Descartes – Michael Hooker (org.), Descartes, John Hopkins
University Express, Baltimore, 1978.
44
S-Matrix Interpretation of Quantum Theory, Physical Review D, 15 de março de 1971.
45
Op. Cit. – Cultrix, 1982, cap. II-3, p.86.
46
On the Intuitive Understanding of Nonlocality as Implied by Quantum Theory - Foundations of Physics, vol. V, 1975).
47
Steps to an Ecology of Mind, Ballantine, New York, 1972, p.17.
48
O maniqueísmo floresceu na pérsia no século III de nossa era, influenciou o cristianismo e subsiste até os dias de hoje nos
meios mais inesperados. A introdução de um programa intitulado “Understanding Viruses”, do Discovery Channel, anuncia:
“Os vírus são elementos à margem da vida. Não podemos sentir o seu gosto, seu cheiro, nem vê-los... mas estão lá: no ar, na
água, em todas as coisas vivas. São as menores dentre todas as formas de vida na Terra: entretanto, conhecem meios de
penetrar em nossos corpos, seqüestrar nossas células, e sobrepujar nossas defesas imunológicas”, etc. O discurso paranoide,
aliado a um fundo musical algo sombrio, e o enfoque da realidade como de um confronto mortal entre o homem e os germes
pouco diferem da luta entre o Bem e o Mal anunciada no livro do Apocalipse, que há dois milênios apavora gerações. Assim
como o diabo tenta capturar nossas almas, os vírus nos espreitam à espera de uma oportunidade de destroçar nossos corpos.
Enquanto a salvação da alma depende das instituições religiosas, a salvação do corpo repousa nas abnegadas mãos dos
laboratórios químicos.
49
Encyclopedia of Science Technology and Ethics - 3rd ed. Detroit: MacMillan Reference Books, 200.
50
Artigo em português aqui. As suspeitas não pairam apenas sobre cientistas de segundo escalão, pois nem mesmo Einstein
e Darwin escaparam da acusação de plágio.
51
Tradução: a psicologia foi se submetendo à medicina convencional, aderindo ao comportamentalismo mecanicista e
tornando-se mais simpática aos grandes laboratórios.
52
Melhor retirar a Física da lista das ciências objetivas, pois a astrofísica e a física subatômica vêm contrariando os
princípios da bem comportada e previsível física newtoniana. Na física subatômica, o elétron não possui propriedades
objetivas independentes do observador, e não há uma nítida divisão entre matéria e mente, ou entre o observado e o
observador.
53
A Wikipedia em português diz que “Atualmente a psicossomática tem se desenvolvido segundo uma ótica
multidisciplinar promovendo a interação de vários profissionais de saúde, dentre eles, médicos, fisioterapeutas e psicólogos.
A versão em inglês também inclui a psicologia como uma das disciplinas aplicadas à psicossomática.
54
What’s Making us Sick is an Epidemic of Diagnoses, jan.2, 2007 (O que está nos tornando doentes é uma epidemia de
diagnósticos – tradução aqui e aqui).
55
Um dos últimos golpes que os laboratórios tentaram aplicar foi o da revisão para baixo dos níveis saudáveis da pressão
arterial, que passou para 11x7. Desse modo, os milhões de pessoas com a pressão em 12x8 passaria a precisar de remédios.
Nem os médicos levaram a sério essa proposta, que parece fadada ao esquecimento.
56
Segundo estudo realizado pelo Instituto Latino Americano de Sepse (ILAS), a septcemia atingiu 400 mil pacientes e
causou a morte de 230 mil pessoas em 2004,. "Isso representa uma mortalidade cerca de 12 vezes maior do que o número de
mortes provocadas por infarto", declarou Nelson Akamine, diretor do ILAS e integrante do comitê de sepse da Associação
de Medicina Intensiva Brasileira (AMIB).
57
Jornalismo Científico, Lobby e Poder, em Parcerias Estratégicas, uma publicação trimestral do Centro de Estudos
Estratégicos do Ministério da Ciência e Tecnologia, no 13 - dezembro de 2001, p.175, ISSN 1413-9375.
58
Ibid., p.176.
59
Por exemplo, considerar a estética acima da saúde, ou priorizar gastos com bens ou atividades que deem status social,
muitas vezes em detrimento da qualidade de vida.
60
Bueno relata que “Estudo realizado pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Medicamentos, do Conselho Federal do
Comércio e pelo Projeto de Colaboração do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), com a Universidade de
Brasília, mostrou que 84% dos anúncios relativos a medicamentos não trazem as mínimas informações necessárias para um
prescrição adequada pelos médicos. Revelou, por exemplo, que ‘a maioria das propagandas não citava informações que
podem restringir a indicação do remédio, como contra-indicações (73%), reações adversas (70%), precauções (74%) e
advertências (84%). Além disso, apenas 58% dos anúncios informavam para quais problemas o produto é indicado e mais
da metade desses fornecia indicações diferentes das aprovadas pelo Ministério da Saúde. Nove sugeriam o uso de
medicamento para finalidades que não foram aprovadas pelo órgão’.” (Ibid., p.179).
61
Philosophical Foundations of Neuroscience – Blackwhell Publishing, 2003, p.374.
62
Extraído da Wikipedia, versão em espanhol.
63
Lembre-se ainda que nessa época se acreditava que o universo se resumia à Via Láctea. Somente a partir de 1925 Edwin
Hubble anunciaria que a Via Láctea era apenas uma entre incontáveis galáxias, mudando para sempre nossa visão do
universo.
64
Op. Cit. – Cultrix, 1982, cap. II-3, p.53.
65
Philosophical Foundations of Neuroscience – Blackwhell Publishing, 2003, p.372-376.

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