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Quando um cego guia outro cego…

Há duas acepções principais da palavra fé (grego pistis) que poderíamos chamar


"fé" e "a fé".

A primeira, da qual nos diz o autor de Hebreus que sem ela é impossível agradar a
Deus, é a confiança absoluta no Senhor. É por meio desta fé que nos apropriamos
do dom da salvação oferecido por graça, por meio de Jesus Cristo.

A segunda acepção diz respeito à doutrina, ou seja, às coisas que como cristãos
devemos crer. Quando Judas fala de contender pela fé dada aos santos, não se
refere à confiança em Deus mas às proposições doutrinais e históricas que
constituem o núcleo da doutrina cristã.

Entretanto, o magistério da igreja católica faz não raras vezes confusão entre estas
duas acepções da palavra "fé". Se não entendem esta simples e óbvia distinção,
quem poderão pastorear? "Se um cego guia outro cego...".

Um exemplo flagrante desta confusão pode-se ver na própria declaração dogmática


da infalibilidade papal.

E certamente, a apostólica doutrina deles [dos "sucessores de Pedro"], todos os


veneráveis Padres a abraçaram e os Santos Doutores ortodoxos veneraram e
seguiram, sabendo pleníssimamente que esta Sé de São Pedro permanece sempre
intacta de todo erro, segundo a promessa de nosso divino Salvador feita ao
príncipe dos seus discípulos: Eu roguei por ti, para que a tua fé não desfaleça; e tu,
uma vez convertido, confirma os teus irmãos [Lc. 22,32].

Constituição dogmática I sobre a Igreja de Cristo. Concílio Vaticano I, Sessão


IV de 18 de julho de 1870; Denzinger # 1836.

Note-se que os bispos do Concílio Vaticano I pretendiam fundamentar a pureza


doutrinal da sede romana. No entanto, o texto ao qual acodem não fala de
doutrina. Jesus Cristo anuncia a Pedro que estava prestes a passar por uma prova
(Satanás vos pediu para vos cirandar como trigo) mas, acrescenta o Senhor, ele
tinha orado para que a fé de Pedro "não desfalecesse".

O verbo grego traduzido "desfalecer" é ekleipô. Pode significar também "faltar" ou


"cessar". Ora, se Jesus se referisse aqui à doutrina este verbo seria muito
inapropriado, pois a doutrina pode ser recta ou desviada, mas não "desfalecer" ou
"cessar". É pois óbvio pelo contexto e pelo verbo, que a "fé" de Pedro que não
devia cessar era a plena confiança em Deus, não a sua "doutrina".

Portanto, este texto não apoia em absoluto a declaração da infalibilidade.

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