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CADERNOSAA
Notas etnográficas sobre o retrato: repensando as práticas de documen-
tação fotográfica em uma experiência de produção compartilhada das
imagens
Fernanda Rechenberg1
Universidade Federal de Alagoas, Maceió, AL, Brasil
Este artigo discute o uso do retrato na antropologia com base em dados etnográ-
ficos de uma pesquisa antropológica realizada na cidade de Porto Alegre, RS. A
partir da atuação em um projeto de elaboração de retratos de família no bairro
Vila Jardim, aponto questões metodológicas sobre a produção de retratos na an-
tropologia, e interpreto situações etnográficas orientadas pela produção e observa-
ção de retratos, buscando trazer elementos para repensar as práticas de documen-
tação fotográfica em contextos etnográficos.
Palavras-Chave: fotografia, retrato, família, Vila Jardim
Na história social da fotografia, o retrato despontou desde a produção das primeiras cha-
pas fotográficas como a forma eleita para a representação de si associada à visibilidade de um
processo de ascensão social, inclusive de camadas proletárias, com a popularização do carte-de-
-visite (Freund 1995). Por outro lado, com a captura da linguagem fotográfica pela ilusão do
similar, os retratos fotográficos foram logo incorporados aos documentos de identificação e às
fichas policiais. Sob a ótica de uma “antropologia criminal”, a fotografia foi desde sua invenção
utilizada em prol do desvendamento de estereótipos identificados com a criminalidade (Fabris
2004; Martins 2011).
No período colonial, a violência das práticas que retratavam corpos e medidas orientadas
pelos pressupostos de uma antropologia física, a espetacularização do exótico expressa nos retra-
tos dos povos autóctones, a comercialização, a tipificação, o registro e o controle da imagem das
populações escravizadas marcaram profundamente as relações entre o retrato e a antropologia.
O retrato passou a significar aprisionamento: não apenas pelo incômodo/fascínio que a imagem
miniaturizada e imóvel causava em quem a olhava (Benjamin 1994), mas pelo domínio avassa-
1 Contato: fernandarechenberg@gmail.com
Mesmo com seu indiscutível apelo testemunhal, o retrato não documenta o Outro, e sim
uma interação que se desenrola em um contexto específico. Como afirma Sylvia Caiuby Novaes
(2004), a presença da câmera já é um elemento que aciona a consciência da imagem exibida
para o equipamento e seu operador. No retrato, não há captura do espontâneo, do incidental,
não há flagrante: há uma relação documentada. Phillipe Dubois (1993) e Susan Sontag (2004)
relacionam o retrato a uma inversão nas concepções de objetividade e autenticidade da imagem
que “espelha” o referente: é através do artefato assumido enquanto tal que a pose constrói um
realismo e uma autenticidade próprios de uma imagem convocada2.
É orientada por tais objeções e possibilidades que o presente artigo discute o retrato en-
quanto gênero fotográfico utilizado em contextos etnográficos. Pretende-se explorar as poten-
cialidades interpretativas e metodológicas que o retrato oferece a partir de situações etnográfi-
cas emergentes durante a realização da pesquisa de doutorado3, especificamente no âmbito da
atuação em um projeto de elaboração de retratos de família no bairro Vila Jardim, na cidade de
Porto Alegre, RS.
1º de fevereiro de 2010, sábado pela manhã. O calor em Porto Alegre havia ultrapassado os
40ºC, eliminando os estoques dos aparelhos de ar-condicionado na cidade. Na casa quase sem
janelas que sediava o Ponto de Cultura Ventre Livre4, o calor era ainda maior. Semanas antes,
havíamos feito uma intensa e extensa divulgação pelas ruas, feiras, postos de saúde e casas na
Vila Jardim. “Venha tirar o seu retrato”, era a chamada dos panfletos entregues pelos integran-
tes do projeto e pelas crianças vizinhas ao ponto de cultura, que se tornaram nossas aliadas em
2 As observações de ambos os autores se referem aos retratos da fotógrafa norte-americana Diane Arbus.
3 Ver Rechenberg, Fernanda. Imagens e trajetos revelados: estudo antropológico sobre fotografia, memória e a circula-
ção das imagens junto a famílias negras em Porto Alegre. Tese de Doutorado. Universidade Federal do Rio Grande
do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós Graduação em Antropologia Social., 2012.
Disponível em: http://hdl.handle.net/10183/77135
4 Ponto de Cultura Ventre Livre (www.pontodeculturaventrelivre.blogspot.com).
Realizado em parceria com o Ponto de Cultura Ventre Livre, o projeto “Famílias do Jardim”5
oportunizaria uma das primeiras ações culturais no ponto de cultura, que à época estava se ins-
talando na recém alugada sede e estabelecendo uma rede de relações entre os moradores do
bairro. O projeto consistia em duas etapas: inicialmente, a produção de um estúdio fotográfico
no Ponto de Cultura, aberto aos moradores durante dois dias, e num segundo momento, a pro-
dução de retratos de família no interior das casas dos moradores que se mostrassem disponíveis
e interessados. Através de uma contínua negociação na produção e escolha das imagens, estas
integrariam uma exposição fotográfica, um livro de retratos e um documentário sobre o projeto.
Ainda que a gratuidade dos retratos adicionasse um componente atrativo aos moradores
da vila, era a realização de um retrato individual por uma fotógrafa profissional que parecia
conferir um estatuto diferenciado a estas fotografias. Muitos destes moradores, e especialmente
os mais jovens, nunca haviam se visto retratados em uma fotografia em papel, ainda que alguns
pudessem retratar e se verem retratados em outras mídias, principalmente nos telefones celu-
lares, as quais armazenam imagens em memórias virtuais e raramente são impressas em papel.
5 “Famílias do Jardim” foi um dos projetos selecionados ao Prêmio Interações Estéticas 2010, promovido pela
Fundação Nacional das Artes – FUNARTE, Ministério da Cultura - MINC. O projeto foi uma parceria entre
Coletivo de Comunicação Catarse e Ponto de Cultura Ventre Livre.
6 Em frente ao Ponto de Cultura Ventre Livre, na Rua Galiléia, um grupo de crianças costumava brincar todos os
dias na rua, diante dos altos muros de uma escola de elite, contrastando com as práticas de controle dos pais que
levavam seus filhos da porta do carro até o interior da escola. Esta cena, que pude assistir semanalmente durante
os meses do projeto, oferecia uma espécie de resumo da heterogeneidade social que caracterizava a Vila Jardim.
7 Por estarmos interessados em retratar justamente a diversidade de famílias residentes na vila, fizemos uma ampla
divulgação para que o maior número de pessoas pudesse saber da existência do projeto. Efetivamente, as famílias
com quem tivemos contato eram de classe média, baixa ou baixíssima. Embora tentássemos contato com famílias
de classe média e alta, deixando folhetos nas caixas de correspondência e conversando brevemente nas portas de
suas casas, não tivemos muito retorno às nossas investidas de diálogo. Os moradores de classe média e alta rara-
mente eram encontrados na rua, espaço onde circulávamos com frequência.
8 David MacDougall (2006) denomina “symbolic props” os recursos comumente utilizados nos primeiros retratos
fotográficos, tais como vestimentas, pertences e livros. No contexto deste trabalho, me refiro tanto a objetos, ves-
timentas, cenários como a outras pessoas que auxiliam na construção simbólica desta identidade fotograficamente
representada.
No final semana seguinte à realização dos retratos, montamos uma espécie de banca em
frente ao ponto de cultura onde os retratos eram entregues. Muitos moradores que haviam sido
retratados compareceram, outros deixaram suas imagens conosco, fazendo-nos percorrer ruas e
becos em busca de seus endereços na Vila nas semanas seguintes, para entregar as fotografias.
Neste percurso, fomos aos poucos encontrando as famílias que abririam as portas de suas casas
para um contato mais prolongado, para pensarem suas famílias, para se debruçarem sob um
conjunto de memórias, afetos e experiências vividas que envolveriam a criação de um retrato de
família.
Ao observar os homens, mulheres e crianças os quais havia retratado no estúdio, não mais
isolados de seus cenários cotidianos, mas plenamente inseridos nos contextos sociais e fami-
liares, nas paisagens urbanas e nas moradias em que habitavam, pude perceber como as foto-
grafias realizadas em estúdio haviam oportunizado o retrato do excepcional e de tudo aquilo
que atestava contra a dureza do cotidiano. Os investimentos em torno da própria imagem que
seria retratada em uma situação excepcional expressavam o valor atribuído à aparência externa
e à apresentação pessoal, o qual poderia constituir uma “forma-antídoto” de enfrentamento do
cotidiano (Martins 2011). Retratar o ócio, os afetos, as fantasias, as encenações, mostrava não
apenas a vontade de perpetuar uma imagem do não ordinário, mas um desejo de contemplar, na
constituição de uma representação fotográfica de si, um “querer-ser”, uma identidade prenhe de
projetos e fantasias.
Embora esse tipo de retrato expresse um código que associa a família a uma instituição
solenemente reafirmada na ocasião da fotografia, como forma de tornar pública a trama bem
urdida da harmonia e coesão familiar, diversas famílias se recusaram a nos receber, ou o fizeram
com muito receio, mostrando que os espaços íntimos e muitas vezes dramáticos das vivências
familiares não seriam compartilhados com estranhos.
Este mote fotográfico também proporcionava uma oportunidade reflexiva na pesquisa an-
tropológica com imagens, em que cada encontro com as respectivas famílias constituía uma
ocasião “boa para pensar” as interlocuções necessárias para produção de imagens compartilha-
das. Minha atuação como fotógrafa e agente de uma política cultural em um contexto nacional
de valorização do “popular”, do “periférico”, do “étnico”, e de “resgate” de memórias silenciadas,
fez com que o olhar “de perto e de dentro” que buscávamos compor ao retratar estas famílias
em um processo colaborativo e compartilhado fosse re-situado no agenciamento de propostas
discursivas de éticas diferenciadas. A ação social proposta pelo projeto produzia o encontro de
uma meso-ética através de uma política cultural mediada por um grupo de profissionais e suas
respectivas éticas de atuação na vida social, com uma micro-ética própria dos agenciamentos
cotidianos dos moradores da Vila Jardim em suas lógicas de habitar, conviver, lembrar9.
A aceitação da continuidade deste vínculo por parte destas famílias fez com que com-
partilhássemos escolhas na produção do retrato fotográfico, o que envolveu um processo de
negociação entre as minhas preferências estéticas e narrativas na composição da imagem, e as
preferências da família em relação à escolha do local, dos participantes da fotografia, do enqua-
dramento, da luz e da composição.
9 Os conceitos de micro e meso-ética são aqui utilizados segundo as reflexões de Roberto Cardoso de Oliveira
(1996) acerca das intersecções entre o saber e a ação social, reconhecendo a existência de éticas diferenciadas.
Após ser retratada junto a seus dois filhos no estúdio fotográfico, Ediane retornou na
semana seguinte ao Ponto de Cultura para buscar seu retrato. Lá, conversamos animadamente
sobre a fotografia, a Vila Jardim e as muitas ideias que ela tinha para ajudar outros moradores
do bairro, especialmente os mais jovens. Ediane dizia ter se identificado com o nosso trabalho.
Esta identificação com algo que era “diferente”, que alterava a rotina do bairro, foi, segundo ela,
o principal atrativo para que ela aceitasse a realização de um retrato familiar em sua casa.
Encontrar a casa de Ediane, na parte baixa da Rua São Leopoldo, onde dezenas de casas
eram identificadas como “os fundos do número 163”, não foi uma tarefa fácil. Ela morava ao
fundo da casa de seu avô, em um dos muitos “becos” da Vila Jardim, com seu segundo marido
e seus dois filhos. Fizemos vários contatos telefônicos, nos quais ela sempre se mostrava entu-
siasmada para nos receber em sua casa. Sua casa tinha apenas três cômodos: a sala/cozinha, um
quarto onde todos dormiam e o banheiro. Para fazer a fotografia na sala, tive que me posicionar
do lado de fora da casa, na porta ou no beiral da janela de modo a enquadrá-los. Esta pequena
casa em que habitava, significava para Ediane a constituição de uma nova família.
Ediane: A gente até brinca aqui em casa quando a gente olha essas foto, que nós somo muito humilde, saiu
todo mundo de pé descalço. [risos] A família dos humilde!
Jocosamente, Ediane evocava toda uma história social do retrato marcada por segregações
e distinções sociais. Ao final do século XIX, quando a fotografia se fazia anunciar como um
equipamento protótipo da modernidade, as famílias abastadas vestiam suas melhores roupas a
exemplo dos retratos pictóricos da nobreza europeia. Apenas os escravos eram fotografados de
pés descalços. Embora Ediane e o marido tenham se disposto em frente à câmera sem sapatos
nem chinelos na ocasião do retrato, e tenham escolhido justamente a fotografia que enquadrava
seus pés descalços, a relação entre humildade e ausência de sapatos não passou despercebida.
Em outra fotografia, que retratava os quatro na janela, Ediane e o marido se referiam ao mo-
mento em que eles “esperavam o resgate” de uma enchente imaginária que inundaria o vulne-
rável beco em que habitavam.
Ao tecer esses comentários, Ediane nos fazia ver a existência de um olhar etnocêntrico
e eurocêntrico que está na ontologia da captura fotográfica, e que perdura no entrelaçamento
temporal das formas de ver e retratar o Outro. Não é possível retratar estes moradores sem
carregar no dispositivo e no olhar, o peso de uma história social do retrato que é densa de ex-
clusões, segregações e padrões de diferenciação na documentação de sujeitos os quais aparecem
diferentemente nas fotografias. Se por um lado, Ediane considerava positivo dar visibilidade a
seu cotidiano, mostrando um pouco do seu dia a dia e das condições pelas quais ela passava,
por outro, ser retratada em sua humilde casa, sem sapatos, reforçava o registro da imagem das
condições de vida que tornavam seu cotidiano tão áspero.
Já as fotografias que haviam sido realizadas no Ponto de Cultura pareciam retirar estes
moradores de seus cenários cotidianos, apontando para as possibilidades de construção mo-
mentânea de uma identidade liberada da imagem do “pobre descalço”. Estas eram as fotografias
preferenciais para serem dispostas nos porta-retratos e nas paredes das salas que recebiam as
visitas, como pude notar nos momentos subsequentes à realização dos retratos, quando entrava
nas casas destes moradores. As fotografias de Ediane e de seus filhos feitas no estúdio foram
disputadas entre seus familiares:
Ediane: Uma eu tive que dar pra sogra de presente, senão bate aquele ciúmes... uma eu dei pra minha mãe, e
a outra pra minha cunhada. Ah, e outra pra minha irmã. Aí [...] a minha mãe disse assim, nossa, vocês foram
no estúdio? Eu falei, não, a gente fez ali no ponto ali, de cultura, ali. Aí ela bem assim: ah, ta, me empresta
então que eu vou tirar xerox pra mim. Até hoje to esperando a minha foto. Eu digo ta, mãe, faz o seguinte,
como eu ganhei duas eu dou uma pra sogra e a outra fica pra senhora.
A reação dos familiares diante de uma inusitada fotografia de estúdio e o desejo de guar-
darem para si os retratos de outrem mostrava o circuito percorrido por estas imagens em um
âmbito familiar. Possuir a imagem do outro a quem se destinava um afeto era mais importante
do que a nitidez ou resolução fotográfica da imagem: a fotocópia era um recurso alternativo que
possibilitava a reprodução da imagem a um baixo custo e com relativa autonomia do fotógrafo
que a produziu.
Tais códigos estão muito ligados à produção de imagens destas famílias e à construção
de seus acervos particulares – e todos os processos de lembrança e esquecimento implicados
na guarda, no descarte e nos esconderijos que preservam certas fotografias à distância do olhar
cotidiano.
Paulo Cezar era entregador de jornais e chefe de uma extensa família de oito filhos e dez ne-
tos. Conheci-o através de seu extrovertido filho, em um dos becos da Vila Jardim. Conversamos
diversas vezes pelo telefone até conseguirmos marcar uma data para a realização do retrato em
família. Por telefone, ele se mostrava muito animado com a ideia, e todos os familiares corrobo-
ravam em dizer que ele gostava muito de fotografia e fazia questão de reunir a numerosa família
Muitos dos momentos do casal e de todos os filhos e netos, irmãos e sobrinhos, estavam
retratados nas fotografias dispostas em um mural na sala. Ali, convites de aniversário, fotogra-
fias recentes e fotos de até 20 anos atrás encadeavam uma narrativa familiar por imagens. A
fotografia era um gosto particular de Paulo Cezar. Mesmo com as dificuldades financeiras que
envolvem a criação de oito filhos, o casal colocava em prioridade o registro fotográfico da vida
familiar, como contou sua filha Shaina:
Shaina: Aniversário aqui tem que ter foto! Se não tiver foto, deu, ele fica brabo. Não tem
aniversário! Pode ter um prato de arroz e feijão pra gente comemorar, mas tem que ter a foto. A
foto não pode faltar. É mais essencial do que o bolo.
No Natal, Paulo Cezar levava os filhos ao shopping-center para fazer as conhecidas foto-
grafias de crianças junto ao velho senhor vestido de Papai Noel, inserindo sua família em um
território o qual, embora geograficamente próximo a sua casa, destinava-se às famílias de cama-
das médias e altas com poder de consumo dos produtos de preço elevado, expostos nas vitrines
das lojas.
Esta encenação proporcionada pelo retrato expressa uma tática de subversão de fronteiras,
na qual a fotografia testemunha como próximo e integrado aquilo que é socialmente distante
e segregado. A esposa e a filha de Paulo Cezar, ao contarem as situações armadas por ele para
fotografar a família, mostravam como a fotografia oferecia uma possibilidade de burlar uma
fronteira de classe:
Shaina: A gente adorava tirar foto quando era criança. Meu pai sempre acostumou a gente assim, o tempo
inteiro. A gente passava nos bairros chiques, meu pai parava na frente das casas bonitas pra tirar foto. Pra
depois mais tarde se exibir como se a casa fosse dele!
Jussara: Ah, é, lá na praia também, né Shaina, tiraram na frente de um edifício assim, enorme: “ah, onde é que
vocês tavam?” “Nós tava aí!” Que, tava aí, nada [risos].
As fotografias de Paulo Cezar pareciam tanto fabular uma realidade inexistente quanto
materializar em sua característica testemunhal as aspirações de uma ascensão social pouco pro-
vável. Fotografar sua esposa e filhos em frente a prédios chiques e casas grandes na praia ex-
pressava, jocosamente, uma possível fluidez nos limites que separam as distintas classes e grupos
sociais, transgredindo as linhas imaginárias que mantêm cada um no lugar que lhe é próprio.
As fotografias e as práticas do fotografar são, para usar uma expressão cara ao pensamento
antropológico, “boas para pensar”. “Boas”, por revelarem valores e motivações implícitos em
uma prática cultural de representação de si, “boas” como um campo privilegiado para o estudo
da memória e das aspirações ao devir que a pose projeta ao futuro, “boas” para pensar a relação
entre a classe social, raça, poder econômico e político, e o controle que os sujeitos retratados
tinham e têm sobre a produção e circulação de suas imagens.
Se, no campo dos estudos da imagem, diversos pensadores vêm insistindo na “desmonta-
gem” do efeito de realidade proporcionado pela fotografia (Soulages 2012; Kossoy 2002 2007;
Fatorelli 2003; Machado 1984) cabe à Antropologia pensar em que medida as situações etno-
gráficas incitam reflexões acerca do caráter de veracidade atribuído à fotografia pelos próprios
antropólogos. Para José de Souza Martins, a imagem na sociologia e na antropologia ainda de-
pende de um “conformismo factual” que a torne documental, ou seja, que atribua a ela um valor
de interesse científico (Martins 2011).
No campo dos estudos de imagem na Antropologia, a potência que encobre este “pro-
blema incontornável” na fotografia pode estar justamente neste jogo entre realidade e ficção,
habilmente compreendido por muitos fotógrafos amadores e profissionais menos comprome-
tidos com a manutenção de um estatuto de verdade à fotografia. Trata-se de compreender que
a existência de uma cena registrada pela câmera não constitui um documento da factualidade
social, mas sim de todo um imaginário associado a ela (Martins 2011). É nesta perspectiva que
o retrato fotográfico enquanto recurso etnográfico traz em si uma potência capaz de subverter,
pela força de um realismo que é apenas aparente, a própria crença do antropólogo na autenti-
cidade de seus registros visuais.
Referências
Benjamin, Walter. 1994. “Pequena história da fotografia”. Magia e técnica, arte e política. São
Paulo: Brasiliense.
Caiuby, Sylvia. 2004. “Imagem em foco nas Ciências Sociais”. In: Caiuby Novaes S.; Barbosa
A.; Cunha E.; Ferrari, F.; Sztutman R. e Hikiji, Rose Satiko. (Org.). Escrituras da Imagem.
This article discusses ways of using portrait in anthropology, based on an anthropological research in
Porto Alegre, RS, Brazil. Ethnographic data from a photographic documentation project of families
from Vila Jardim neighbourhood are used to discuss methodological issues about the use of portrait in
anthropology and the interpretation of ethnographic situations, suggesting a new view of photographic
documentation practices within ethnographic settings.
Keywords: photography, portrait, family, Vila Jardim