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AS ORIGENS E AS

FRONTEIRAS DA FILOSOFIA
O reconhecimento de Nietzsche e Ricouer sobre
os limiares do pensamento filosófico
LI
Friedrich Nietzsche
A filosofia na era
trágica dos gregos
(1873)
Os gregos souberam começar no momento propício, e esse
aprendizado, o de saber quando se faz necessário começar a
filosofar, eles compreenderam com mais clareza do que qualquer
outro povo. Pois não começaram na miséria como atestam alguns,
que derivam a filosofia do desgosto. Começaram antes
afortunados, no momento de sua viril maturidade, na cálida alegria
robusta e vitoriosa idade adulta. Que os gregos tenham filosofado
nesse momento nos ensina tanto algo sobre o que a filosofia é e o
que deve ser, como sobre os próprios gregos (p. 27-28).
Pois se empenharam em apontar o quanto os gregos podiam encontrar e
aprender no Oriente estrangeiro, e quantas coisas eles realmente de lá
trouxeram. Com certeza era um espetáculo curioso observar os pretensos
mestres do oriente e os possíveis alunos da Grécia lado a lado, exibindo
Zoroastro ao lado de Heráclito, os hindus ao lado dos eleatas, os egípcios
ao lado de Empédocles, ou mesmo Anaxágoras entre os judeus e Pitágoras
entre os chineses… deixemo-nos persuadir pela ideia como um todo,
contanto que não nos molestassem com a consequência de que com isso a
filosofia na Grêcia seria exclusivamente importada, e não cultivada em solo
natural e doméstico, e que, sendo algo estrangeiro, teria antes arruinado os
gregos do que trazido benefícios (p. 28).
Nada é mais tolo do que sugerir uma formação autóctone para os
gregos. Muito pelo contrário: eles absorveram toda a formação que
vivia em outros povos, sendo justamente por isso que chegaram tão
longe — porque souberam arremessar para ainda mais longe a lança
a partir do ponto onde outro povo a havia deixado cair. São
admiráveis na arte do aprendizado frutífero; e, assim como eles, nós
devemos aprender com nossos vizinhos para a vida, e não para o
conhecimento erudito, utilizando todo o aprendizado como suporte
do qual podemos impulsionar-nos para o alto, mais alto do que o
próprio vizinho (p. 28-29)
Para Nietzsche, portanto, as perguntas acerca das origens da
filosofia são totalmente indiferentes, pois a busca por uma
concepção mais pura de saber não levaria aos primeiros princípios,
mas à barbárie. Para ele, o que os gregos nos deixaram de
paradigma foi uma postura que nos poupava de precisar inventar
uma origem autóctone para a ciência e para a filosofia. Eles são os
inventores típicos das cabeças filosóficas porque, desde o início,
aprenderam a preencher, reforçar, elevar e purificar elemento
adquiridos que, posteriormente, lhes acrescentam significado.
LI
Paul Ricoeur
Filosofia e Profetismo I
(1952)
Alguns livros, de tamanhos e importâncias desiguais, estão reunidos por algo diferente
do acaso; as mesmas perguntas lhes foram feitas: o que é a filosofia? Onde estão as
suas fronteiras? O que qualifica um modo de pensamento e de expressão como
filosófico? Essas interrogações precedem e preparam uma pergunta mais atual que
será examinada posteriormente: o que é filosofar hoje?... Esta primeira crônica parte
de alguns trabalhos dedicada a pensadores e a obras manifestadamente situadas na
periferia, até mesmo, fora da filosofia, mas que geraram filosofia por atos ulteriores
que chamaremos de “retomada”, através de uma “retomada” da não-filosofia pela
filosofia... ao descobrir neles alguma das fontes não-filosóficas da filosofia talvez
tenhamos acesso, paradoxalmente, às condições existenciais da autonomia filosófica;
pois, para começar por si, a filosofia talvez deva ter pressupostos que ela repõe em
questão e assumida criticamente em seu próprio ponto de partida (p. 83-84).
É justo interrogar primeiramente o livro de [André] Neher sobre Amós
e o profetismo judaico... sobretudo o profeta de Israel se oferece
imediatamente como a figura que se opõe polarmente à do “filósofo”,
tal como foi modelada pela física jônica, pela matemática pitagórico e
pale sofística ateniense... Neher tem o cuidado de reenraizar o
profetismo em seu contexto geográfico, histórico e cultural, e de
situá-lo no interior da relação não-filosófica por excelência: a Aliança
de Iahweh com Israel a berith israelita… até mesmo o fenômeno
histórico, o profetismo judaico, é ao mesmo tempo um “tipo" de não-
filosofia e uma “fonte" de interrogação filosófica (p. 84-85).
Em sua "eleição", primeiramente, o profeta resiste a qualquer confusão
com o "filósofo"; certamente, Sócrates obedecia ao seu demônio e
Platão não nasceu para a filosofia senão tomado pela morte de
Sócrates. Todavia, o que permanece especificamente hebraico é em
primeiro lugar o seguinte: o profeta é arrancado dele mesmo por um
Deus que o investe e se anuncia como uma ameaça de destruição; ele
é o homem, não da liberdade, mas da necessidade... para esse homem
vinculado, não há lugar para um setor laico da existência, para uma
moral e uma política autônomas. Nem o problema do cidadão, nem o
do cientista, nem o do sábio estão nesta via (p. 86-87).
Outro exemplo: também dissemos que o problema da ciência não era judaico; isso
é verdade... A Grécia intitulou a “vidência" do lado da epistéme sob a influência
dos jônicos, dos pitagóricos, de Demócrito e de Sócrates. Até que ponto, em
contrapartida, essa problemática não mascarou o conjunto dos problemas da
escolha que a "existência bíblica” põe radicalmente? Platão pensa a essência, e
Deus além da essência; o judeu põe a existência na frente de Deus. Sócrates
projeta a falta no plano da epistéme e a degrada a um erro; Amós vê diante dele a
iminência do Nada, e confia ao Dia de Deus o Vão, a vanidade do mau. Todo o
helenismo procura a salvação no conhecimento (Platão, singularmente, pela
matemática e pela dialética); Amós compreende o "conhecimento" com base no
modelo da relação conjugal; a sua justiça não tem modelo geométrico ou musical
(p. 89).
Último exemplo: a sabedoria grega é inteiramente regulada pela idéia de natureza, de
physis, ensinada pelos jônicos em Atenas. Esta noção jamais foi elaborada pelos judeus,
nem como estrutura científica, nem como modelo ético. Em compensação, os judeus, ao
meditar sobre uma história teológica, centraram a reflexão sobre a ligação entre criação
e tempo histórico... a Criação, que interrompe rapidamente toda teogonia e toda
cosmogonia; a familiaridade com o espaço — atestada pelas astrologias, os ritos
agrários, as metafísicas caldéia, fenícia, cananéia e também egípcia — era superada de
maneira diversa da invenção da geometria: pelo reino do Acontecimento, ele mesmo
garantido por uma história excepcional. Assim, a noção de Criação nasceu da de Aliança,
como a relação fundamental que serve de horizonte para a berith de Noé e de Israel...
Platão descobre a Idéia na contemplação atemporal; Amós descobre a onipresença no
passado da Aliança, no presente da eleição, no futuro do Dia de Deus. (p. 89-90).
A partir do exame de trabalhos dedicados a pensadores e obras situados nas
fronteiras e periferias da filosofia grega — os vizinhos que Nietzsche havia
mencionado — Ricoeur acredita que é possível lançar luz, paradoxalmente, às
condições existenciais da autonomia filosófica. Mais do que isso, com um
interesse específico para nós, também podemos nos perguntar se é possível
filosofar a partir da aliança que Deus fez com seu povo em Israel, da sua eleição,
do anuncio e da esperança escatológica? Em resumo, Nietzsche e Ricouer
deixam em aberto a pergunta se o tipo de reflexão que veio dos gregos pode
se descolar de seu próprio particularismo original e assumir uma catolicidade
mínima para fazer parte de outro particularismo específico: o de Israel — e, em
caso negativo, se existe uma alternativa de sabedoria para o povo da aliança.
O FIM DA FILOSOFIA E A
TAREFA DO PENSAMENTO
Um diálogo entre Hadot, Dooyeweerd e Heidegger a respeito
da filosofia como um exercício preparatório para a sabedoria
LI
Herman Dooyeweerd
Raízes da Cultura Ocidental
(1960)
parece que na discussão sobre esse problema de importância
fundamental, nenhum método foi encontrado para revelar a
verdadeira natureza subjacente a essa diferença de opinião. O
resultado disso é que a discussão, apesar de todas as boas
intenções daqueles que participam dela, continuam a
demonstrar o caráter de um solilóquio, um monólogo de cada
participante em si, uma vez que ela não chega realmente a um
verdadeiro diálogo, uma discussão genuína em que aqueles que
participam contribuem de fato para o objetivo mútuo de obter
um esclarecimento íntegro do que é entendido (p. 17).
Devemos simplesmente esperar que duas opiniões sejam
colocadas em pauta e que se dê a cada lado a
oportunidade de apresentar uma série de argumentos a
favor do seu ponto de vista? Parece-me que, desse
modo, pouco ou nada se alcança. Esse tipo de debate
permanece superficial. Os argumentos de ambos os lados
só aparentemente confluem, pois os pontos de partida
mais profundos, os que determinam os argumentos,
permanecem ocultos (p. 18).
LI
Pierre Hadot
O que é a
Filosofia antiga?
(1995)
Se agora falamos de “filosofia” é porque os gregos inventaram a palavra
philosophia, que significa “amor pela sabedoria", e porque a tradição da
philosophia grega foi transmitida à Idade Média e posteriormente aos
tempos modernos. Trata-se de apropriar-se do fenômeno em sua origem,
sempre tendo consciência de que a filosofia é um fenômeno histórico que
teve início no tempo e evoluiu até nossos dias. Tenho a intenção de
mostrar a diferença profunda que existe entre a representação que os
antigos faziam da philosophia e a representação que se faz habitualmente
da filosofia em nossos dias, elo menos na imagem transmitida aos
estudantes por conta das necessidades do ensino universitário (p. 16-17).
Eles têm a impressão de que todos os filósofos estudados esforçaram-se
sucessivamente para inventar, cada um de uma maneira original, uma nova
construção sistemática e abstrata, destinada a explicar, de uma maneira ou
de outra, o universo; ou, pelo menos, caso se trate de filósofos
contemporâneos, que eles procuraram elaborar uma nova discussão sobre
a linguagem. Dessas teorias, que se poderia denominar “filosofia geral”,
resultam, em quase todos os sistemas, doutrinas ou críticas da moral que
extraem as consequências, para o homem e para a sociedade, dos
princípios gerais do sistema e convidam, a partir disso, a fazer uma escolha
de vida, a adotar uma maneira de comportar-se. Isso não entra na
perspectiva do discurso filosófico (p. 17).
Penso que essa representação é um erro caso seja aplicada à filosofia da Antiguidade.
Evidentemente, não se trata de negar a extraordinária capacidade dos filósofos antigos de
desenvolver uma reflexão teórica sobre os problemas mais sutis da teoria do
conhecimento, da lógica ou da física. Contudo, essa atividade teórica deve ser situada em
uma perspectiva diferente da que corresponde à representação corrente que se faz da
filosofia. Em primeiro lugar, ao menos desde Sócrates, a opção por um modo de vida não
se situa no fim do processo da atividade filosófica, como uma espécie de apêndice
acessório, mas, bem ao contrário, na origem, em uma complexa interação entre a reação
crítica a outras atitudes existenciais, a visão global de certa maneira de viver e de ver o
mundo, e a própria decisão voluntária; e essa opção determina até certo ponto a doutrina e
o modo de ensino dessa doutrina. O discurso filosófico tem sua origem, portanto, em uma
escolha de vida e em uma decisão e essa escolha jamais se fazem na solidão; precisamente,
uma escola filosófica corresponde, opção existencial, e não o contrário (p. 17).
Em segundo lugar, essa comunidade, em uma palavra, de uma "escola" filosóficare
houve filosofia nem filósofos fora de um grupo, de uma e antes de tudo, a uma
maneira de viver, a uma escolha de vida, a uma opção existencial, que exige do
indivíduo uma mudança total de vida, uma conversão de todo o ser, e, finalmente,
a um desejo de ser e de viver de certa nesse caso maneira. Essa opção existencial
implica, por seu turno, certa visão de mundo, e será tarefa do discurso filosófico
revelar e justificar racionalmente tanto essa opção existencial como essa
representação do mundo. O discurso filosófico teórico nasce, dessa opção
existencial inicial e reconduz, à medida do possível ou por sua força lógica e
persuasiva, à ação que quer exercer sobre o interlocutor, ele incita mestres e
discípulos a viver realmente em conformidade com sua escolha inicial ou, ainda,
conduz de alguma maneira à aplicação de um ideal de vida (p. 180.
A renovação dos estudos historiográficos empreendida por Hadot
se dá quando ele nos mostra que o discurso filosófico deve ser
compreendido na perspectiva do modo de vida. A filosofia antiga,
que aprendeu muitíssimo dos seus vizinhos do antigo oriente
próximo, era um exercício preparatório para a sabedoria. Trata-se
de uma reflexão voltada para às formas de vida e todo o
esquecimento dessa natureza contemporaneamente pelos
exercícios escolares da filosofia — até mesmo os cristãos — deve
ser encarado como um reducionismo empobrecedor.
LI
Martin Heidegger
O fim de filosofia
e a tarefa do pensamento
(1964)
Em que medida entrou a Filosofia, na época presente, em seu
estágio final? Filosofia é Metafísica. Esta pensa o ente em sua
totalidade — o mundo, o homem, Deus — sob o ponto de vista do
ser, sob o ponto de vista da recíproca imbricação do ente e ser. A
Metafísica pensa o ente enquanto ente ao modo da
representação fundadora. Pois o ser do ente mostrou-se, desde o
começo da Filosofia, e neste próprio começo, como o fundamento
(arché, aítion, princípio)… quando falámos do fim da Filosofia
queremos significar o acabamento da Metafísica. (p. 269-270).
lá, onde a Filosofia levou sua questão até o saber absoluto e à evidência última, oculta-
se justamente algo que não pode ser mais pensado pela Filosofia como questão que
lhe compete. Mas o que é que permanece impensado, tanto na questão da Filosofia
como em seu método? A dialética especulativa é um modo como a questão da
Filosofia chega a aparecer a partir de si mesma para si mesma, tornando-se assim
presença. Um tal aparecer acontece necessariamente em uma certa claridade.
Somente através dela pode mostrar-se aquilo que aparece, isto é, brilha. A claridade,
por sua vez, porém, repousa numa dimensão de abertura e de liberdade que aqui e
acolá, de vez em quando, pode clarear-se. A claridade acontece no aberto e aí luta
com a sombra. Em toda parte, onde um ente se presenta em face de um outro que se
presenta os apenas se demora ao seu encontro… impõe-se ao pensamento a tarefa de
atentar para a questão que aqui é designada como clareira. (p. 274-275).
Aqui é nomeada a Aletheia, o desvelamento… O que o desvelamento, antes
de qualquer outra coisa, garante, é o caminho no qual o pensamento
persegue a este único e para o qual se abre… A clareira garante, antes de
tudo, a possibilidade do caminho em direção da presença e possibilita a ela
mesma o presentar-se… Somente o coração silente da clareira é o lugar do
silêncio do qual pode irromper algo assim como a possibilidade do comum-
pertencer de ser e pensar, isto é, a possibilidade do acordo entre presença
e apreensão… Sem a experiência prévia da Aletheia como a clareira, todo
discurso sobre a seriedade ou o descompromisso do pensamento
permanece infundado. De onde recebeu a determinação platônica da
presença como idéa sua legitimação? (p. 277).
LI
Herman Dooyeweerd
Raízes da Cultura Ocidental
(1960)
Enquanto esses pontos de partida não forem colocados sob uma luz
clara e nítida, e confrontados entre si, o contato real entre eles será
simplesmente impossível. É também plausível que aqueles que
defendem seus pontos de vista não tenham consciência dos seus
próprios pontos de partida mais profundos. Nesse caso, a discussão
inteira nunca fluirá para o diálogo, e o ouvinte permaneceria no escuro
sobre os princípios básicos que estão em jogo… Pode ser verdadeiro
que um seguimento do público leitor prefira não se ocupar dos
motivos mais profundos da vida e busque discussão apenas para obter
entretenimento, em vez de discernimento… há também aqueles que
preferem evadir-se e buscam algum tipo de “diversão” (p. 18).
Seja como for, a “renovação espiritual” tornou-se uma palavra de ordem para
o período do pós-guerra. Nós a adoraremos prontamente. Para agir com
seriedade, no entanto, não podemos nos contentar com a superficialidade,
mas procurar a renovação de fundo. Para que o “diálogo” do pós-guerra
possa contribuir para a renovação espiritual da nossa nação, ele deve
penetrar nessa dimensão profunda da vida humana onde uma pessoa não
pode mais fugir de si mesma. É precisamente ai que devemos chegar para
desmascarar as diversas visões sobre a importância e o alcance da antítese.
Apenas quando as pessoas não tiverem mais nada que esconder de si
próprias e dos seus semelhantes na discussão é que o caminho para o
diálogo que procure mais convidar do que repelir se abrirá (p. 19).
LI
Martin Heidegger
O fim de filosofia
e a tarefa do pensamento
(1964)
Estas questões, das quais a Filosofia tão estranhamente se abstém, nem
mesmo podem ser colocadas por nós, enquanto não tivermos
experimentado o que Parménides deveu experimentar: a Aletheia, o
desvelamento. O caminho que conduz até lá separa-se da estrada em que
vagueia a opinião dos mortais. A Aletheia não é nada de mortal, assim
como não o é também a própria morte… A Aletheia é, certamente,
nomeada no começo da Filosofia, mas não é propriamente pensada como
tal pela Filosofia nas eras posteriores… Fique esta questão entre como
tarefa ao pensamento. O pensamento deve considerar se é capaz de
levantar esta questão como tal, enquanto pensa filosoficamente (p. 278).
Mas não é isto tudo mística infundada ou mitologia de ma qualidade; em todo caso funesto
irracionalismo e negação da Ratio? Respondo com uma pergunta: Que significa ratio, nous,
noein, entender? Que significa razão e princípio de todos os princípios?… A racionalização
técnico-científica que domina a era atual justifica-se, sem dúvida, de maneira cada vez mais
surpreendente através de sua inegável eficácia. Mas tal eficácia nada diz ainda daquilo que
primeiro garante a possibilidade do racional e irracional. A eficácia demonstra a retitude da
racionalização técnico-científica. Esgota-se, no entanto, o caráter de revelado daquilo que é,
na demonstrabilidade? Não tranca a insistência sobre o demonstrável justamente o caminho
para aquilo que é? Talvez exista um pensamento mais sóbrio do que a corrida desenfreada
da racionalização e o prestígio da cibernética que tudo arrasta consigo. Justamente esta
doida disparada é extremamente irracional… Se perguntarmos pela tarefa deste
pensamento, então será questionado primeiro, não apenas este pensamento, mas também
o próprio perguntar por ele. Perante toda a tradição da filosofia isto significa (p. 279).
O PROJETO DE UMA
FILOSOFIA HEBRAICA
O lugar paradigmático da sabedoria bíblica no fim da
filosofia e para a tarefa do pensamento
LI
Dru Johnson
Biblical Philosophy
(2021)
A tradição bíblica é uma tradição intelectual… Os textos e as comunidades que praticaram suas
diretrizes transmitiram uma tradição intelectualmente rigorosa, singularmente capaz de
transformar um povo inteiro em um grupo astuto e perspicaz. E assim, foi transmitida enquanto
textos, rituais e comunidade — a filosofia como uma forma de ser um povo! Estudiosos do antigo
Oriente Próximo geralmente mantiveram esse truísmo próximo de seus coletes por duas
gerações ou mais: a Bíblia Hebraica / Antigo Testamento contém seu próprio estilo filosófico
distinto em associação com as filosofias da Grécia e de Roma. Mais recentemente, um grupo de
estudiosos se convenceu da capacidade intelectual das Escrituras Hebraicas, organizando
conferências e publicando um número crescente de livros. Mas por alguma razão de sociologia
acadêmica, muitos estudiosos da Bíblia nunca souberam que os antigos estudiosos do Oriente
Próximo se sentiam assim… Apenas a ideia de um estilo filosófico hebraico simultaneamente
quebra vários paradigmas amplamente confiáveis sobre: 1. o que conta como filosofia; 2. a
natureza e o propósito da literatura bíblica; 3. como as sociedades têm defendido noções
abstratas de realidade (p. 1).
Este livro não é uma tentativa de pronunciar a única filosofia das Escrituras Cristãs. Em vez disso, sugiro
que a literatura bíblica pode representar um estilo filosófico completo, distinto e coerente. E esse estilo
hebraico muitas vezes passou despercebido pelos filósofos comparativos modernos e meus colegas
religiosos, por razões que eu só poderia supor e que os sociólogos poderiam ser capazes de enumerar.
Argumentarei por que a Bíblia hebraica e o Novo Testamento traem um impulso filosófico semelhante ao
encontrado no helenismo, mas não no Egito ou na Mesopotâmia, executado com um método filosófico
discreto para seus próprios objetivos… examinarei os mundos especulativos dos vizinhos de Israel,
Mesopotâmia e Egito, o que esclarecerá por que os estudiosos do antigo Oriente Próximo geralmente
pensavam em Israel como mais um par filosófico da Grécia e não do Oriente Próximo. Pretendo mostrar
como a influência do helenismo no judaísmo pode ter dobrado esse estilo filosófico hebraico ao ponto da
ruptura, se os autores do Novo Testamento não o tivessem recuperado em um robusto movimento de
recuperação ad fontes. No final, Paulo - sim, até mesmo Paulo - pode estar se inclinando para sua
herança filosófica hebraica enquanto simplesmente vestido com as vestes folgadas da retórica romana e
da filosofia helenística. Finalmente, darei exemplos de como vários tópicos filosóficos podem ser
abordados, desenvolvidos e defendidos dentro e através dos muitos gêneros da literatura bíblica (p. 4).
Se existe um estilo filosófico nos próprios textos bíblicos,
a tarefa do pensamento é rastrear as camadas
arqueológicas do mesmo e definir o que é característico
nele. Essa é uma grande afirmação para a história das
ideias no ocidente e oriente. Com ela, espera-se
estimular a imaginação acadêmica, eclesiástica e pessoal
para construir algo chamado "filosofia hebraica” — que
pode, então, passar a ser testada no mundo da vida.
LI
Dru Johnson
Biblical Philosophy
(2021)
Embora eu queira traduzir conceitos filosóficos das Escrituras Cristãs
para as discussões contemporâneas, não presumo que nossos
esquemas ou métodos filosóficos atuais sejam suficientes ou superiores.
Por exemplo, argumentarei que o esquema bíblico para a verdade e
seus efeitos epistêmicos descreve melhor as realidades do
conhecimento hoje e se ajusta mais apropriadamente à epistemologia
científica moderna do que a visão platônica ou a chamada Visão Padrão
do conhecimento hoje. Portanto, não pretendo presumir uma visão
progressista ou evolucionista da filosofia. Por essa conta, então, não
somos ancestrais de filósofos tornando-se filósofos evoluídos (p. 11-12).
LI
Dru Johnson
Scripture’s Knowing
(2015)
Filosofia é a disciplina acadêmica tradicionalmente preocupada com os processos que
produzem as formas mais confiáveis de conhecimento. Na maioria das vezes, a lógica é
apresentada como a melhor maneira de justificar nossas crenças sobre o mundo…
Surpreendentemente, o processo de raciocínio das Escrituras geralmente não envolve
coisas chamadas "crenças", que então justificamos usando um cálculo lógico, em vez de
fornecer fatos para inserir em fórmulas lógicas (por exemplo, Se todos os homens são
mortais e Sócrates é um homem, então Sócrates é mortal), as Escrituras Hebraicas e
Cristãs estão mais frequentemente preocupadas em tornar os israelitas capazes de ver
o que está sendo mostrado a eles. O Deus de Israel tenta mostrar ao faraó do Êxodo
que ele e seu panteão egípcio não estão realmente no controle da fertilidade, criação,
campos, rebanhos e muito mais, por exemplo. Ao conduzir o Egito e Israel por esse
processo, o Deus de Israel está tentando mostrar ao Egito e a Israel algo que eles não
podem ver, a menos que se submetam ao processo de conhecimento (p. xii).
LI
Dru Johnson
Biblical Philosophy
(2021)
Demonstrar que existe um estilo filosófico hebraico requer que eu pise no pé de
meus colegas de estudos bíblicos, estudos do antigo Oriente Próximo, filosofia e
teologia. Isso presumivelmente exigiria certa competência (ou insanidade) de
minha parte e caridade da parte do leitor… entre os filósofos, isso parece uma
erudição bíblica; entre os teólogos, filosofia; entre os estudiosos da Bíblia,
teologia. Nunca pertencendo totalmente a uma guilda, este projeto mostra por
que esforços interdisciplinares como este são vitais para a compreensão do
mundo intelectual hebraico e até mesmo do nosso mundo hoje. O objetivo é
criar uma discussão vigorosa que eu acredito que vai demorar muito — para
propor e demonstrar suficientemente uma visão robusta da filosofia hebraica
abrangendo o que agora chamamos de Escritura Cristã (p. 18).
Eu uso o termo "filosofia hebraica" para me referir ao estilo filosófico da Torá que
segue para o resto da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento. Certamente os
estudiosos bíblicos perguntarão: Por que não chamar isso de "filosofia semítica" ou
usar algum outro termo, como "israelita", "judeu" ou "judaica", para modificar a
filosofia? O termo "hebraico" refere-se apenas ao idioma e às pessoas de quem a
Bíblia Hebraica descende. Claro, esses textos chegam até nós no início em grego
(isto é, a LXX), tão cedo quanto em hebraico. Mas, o que é mais importante, os
textos bíblicos hebraicos não têm traços de helenismo no conteúdo. Eu poderia ter
escolhido "filosofia israelita" ou "filosofia judaica", que sinaliza o problema com
qualquer termo que eu uso. Cada termo carrega suposições históricas e
complexidades que às vezes são perpendiculares ao que Estou defendendo aqui
(p. 46).
O termo hebraico, com as questões que levanta e os problemas implícitos, me dá uma
designação adequada para um estilo filosófico anterior ao helenismo e distinto de
outras escolas especulativas do antigo Oriente Próximo. Este estilo não pertence
necessariamente aos repatriados de Judá; embora se pudesse argumentar que eles
tiveram suas mãos editoriais finalizadoras sobre esses textos. Talvez pudéssemos
considerá-la filosofia judaica nesse sentido. Mas o Judaísmo que surge do Período do
Segundo Templo como uma religião irmã ao lado do Cristianismo torna o termo "judeu"
muito complicado para os meus propósitos. "Filosofia israelita" parece ignorar a
proveniência judaica desses textos. "Semita" tem muito conteúdo para ser útil, pois
incluiria efetivamente árabes, assírios e muito mais. E assim, o termo "filosofia hebraica"
terá que servir. "O hebraico” oferece, pelo menos, uma maneira de vincular
minimamente a coleção de textos existente com a linguagem que remonta ao décimo
século Antes da Era Comum e o grupo de pessoas em geral associado a ambos (p. 47).
O QUÊ FAZ DA SABEDORIA
HEBRAICA FILOSÓFICA?
Porque a filosofia não está limitada aos pensadores gregos e como
eles nos ajudam a enxergar a sabedoria hebraica com novos olhares
LI
Dru Johnson
Biblical Philosophy
(2021)
O ceticismo em relação à premissa exclusiva — de que a Bíblia contém filosofia —
tem sido a pedra de tropeço mais proeminente e recorrente nessas conversas. Dois
filósofos judeus, Shalom Carmy e David Shatz, resumem bem o sentimento: "Muito
do que a Bíblia tem a dizer sobre assuntos de importância filosófica manifesta
parece primitivo para sensibilidades filosóficas posteriores." Os filósofos podem ser
céticos por um bom motivo: eles precisam ver para si próprios o conteúdo
rigorosamente filosófico demonstrado nas Escrituras… Podemos detectar um estilo
filosófico por meio do uso da lógica, do rigor, do raciocínio de segunda ordem e da
defesa de tal raciocínio. Nem todos os escritos acadêmicos na Antiguidade
exploram noções de segunda ordem e nem todo raciocínio defende um estilo
particular de pensamento. Por isso, se pensadores helenísticos como Sêneca se
enquadram na filosofia — o mesmo acontece com Deuteronômio (p. 24).
Apesar das diferenças de escopo e estrutura, o trabalho de Yoram Hazony
cria o contexto para este livro atual… sua tese básica é que a Bíblia hebraica
tem impulsos filosóficos que não devem mais ser ignorados. Primeiro,
Hazony lançou o desafio contra a suposição ingênua de que a Bíblia
Hebraica é uma obra de revelação. O pensamento é assim porque os
filósofos consideram tacitamente os textos bíblicos como oráculos divinos,
não podendo, portanto, serem analisados como uma obra da razão — como
faríamos os diálogos de Sócrates ou a Summa de Tomás de Aquino, por
exemplo… Mas Hazony aponta que os autores bíblicos nem sempre
alegaram autoria divina e mostra que os filósofos gregos admitiram uma
origem divina por trás de alguns de seus pensamentos (p. 10-11).
Mas também pode haver alguma hipocrisia em nossa predileção pelo estilo
de discurso do helenista. Embora eu não me aproprie de sua dicotomia
razão-revelação em todos os seus detalhes, Yoram Hazony argumenta que
apenas em nossa miopia intelectual podemos ignorar os aspectos divino-
reveladores das filosofias grega e romana. Hazony mostra, com um mínimo
de exemplos, que a revelação divina fundamenta a tradição filosófica
helenística, mesmo que optemos por ir além dela. Citando passagens de
Parmênides, Empédocles, Heráclito e Sócrates, ele nos lembra que todos
eles atribuem porções de seu pensamento e razão à revelação divina. Seu
resumo nos surpreende de nossa percepção geral da filosofia grega como
baseada exclusivamente na razão (p. 24).
LI
Yoram Hazony
The Philosophy of
Hebrew Scripture
(2012)
O que esses textos sugerem é o seguinte: Durante os
duzentos anos entre Jeremias (o profeta bíblico) a
Platão, floresceu uma tradição filosófica — a própria
tradição que deu origem à filosofia ocidental — na
qual a capacidade de conduzir a investigação
filosófica foi freqüentemente vista como parcialmente
ou totalmente dependente de revelação ou alguma
outra forma de assistência de um deus (p. 9).
LI
Dru Johnson
Biblical Philosophy
(2021)
E embora essa influência da divindade para o filósofo não seja nova nem reveladora,
Hazony observa que Bertrand Russell a assinala sem explorar sua história da filosofia…
Em certa época, eu poderia ter tacitamente presumido que o raciocínio rigoroso
financia e permeia toda a filosofia grega, o que parece excluir as Escrituras Cristãs
como fonte de pensamento filosófico. Mas Hazony efetivamente dissolve a nítida
dicotomia razão-revelação meramente reconhecendo o que é óbvio: tanto a literatura
grega quanto a hebraica incorporam a razão e a revelação como comumente as
entendemos hoje. Pierre Hadot argumentou que a filosofia helenista preocupava-se
principalmente com a prática da vida vivida aperfeiçoada por meio de "exercícios
espirituais". A filosofia não era apenas as definições, argumentos e discursos que
passamos a considerar como caracterizando a filosofia grega. Portanto, o fino
paradigma da razão-contra-revelação deve ser rejeitado ou reparado, mesmo que
apenas nas suposições que trazemos para esses textos (p. 25).
Depois que os estudiosos voltaram às leituras literariamente sensíveis dos textos
bíblicos, a questão eventualmente e repetidamente veio à tona: O que aqueles antigos
autores e editores hebreus pensavam que estavam fazendo ao elaborar esses textos
dessas maneiras particulares? Eles parecem pensar que estão moldando algo dentro do
mundo conceitual de seu público, mas o quê? Em outras palavras, a arte de escrever
por trás do texto evidenciou um senso de propósito, e eu quero propor que um dos
propósitos da literatura bíblica é prescrever um método ritualizado para pensar sobre o
mundo tanto em seu aspecto histórico quanto em abstrato-transcendente
granularidades. Em todo o processo, um método epistemológico discreto é prescrito,
desenvolvido e apresentado repetidamente em sua forma de gênero (conhecimento
adequado) e differentia (conhecimento errôneo). Esse método epistêmico adequado é
tão primário quanto determina a formação adequada e os limites da filosofia
ontológica, metafísica, ética e política de Israel (p. 26).
O ESTILO FILOSÓFICO
HEBRAICO DA BÍBLIA CRISTÃ
Os traços distintivos que caracterizam os movimentos
filosóficos únicos presentes no interior da Escritura cristã
LI
Dru Johnson
Biblical Philosophy
(2021)
Da mesma forma, proponho que o estilo hebraico consiste em modos de
levantar problemas filosóficos, muitas vezes em contraposição à sabedoria
dos vizinhos de Israel, e pedindo ao leitor para pensar sobre os
compromissos doxásticos exigidos por eles. Assim como podemos discernir
um "método socrático” nos textos díspares que retratam Sócrates, um
conjunto particular de disposições e compromissos é necessário para ver
esse estilo filosófico nas Escrituras Cristãs. Ao lado de uma epistemologia
apropriada defendida no texto, uma batida constante de representações e
acusações contra o entendimento errôneo e incoerente pulsa nas Escrituras.
Da Torá aos profetas e nos Evangelhos, a “dureza de coração” e os “tem
olhos, mas não veem” são apenas duas dessas acusações (p. 82).
Quero demonstrar que o estilo filosófico hebraico é distinto e distinguível
das tradições de seus pares… Eu proponho que a literatura bíblica funciona
como uma tradição filosófica coletada e com curadoria, e os marcadores
genéticos de seu estilo são matizados o suficiente para detectar
movimentos filosóficos únicos nos textos. Esses marcadores genéticos não
são apenas traços, mas formam uma unidade orgânica dentro do estilo.
Essa unidade orgânica, então, criará dificuldades para a posterior
hibridização do estilo hebraico no judaísmo helenístico. Demonstrarei que os
autores do Novo Testamento (examinados nesta obra) exibem uma
tendência originalista, buscando manter a unidade orgânica hebraica (p. 83).
Estilos Filosóficos Hebraicos e Helenistas
Bíblia Hebraica Tradição Hellenista

Modos de Argumento:
Modos de Argumento:
1. Pixelado (apresenta exemplos que são
1. Linear
sistematicamente arranjados)
2. Em rede (desenvolvido intertextualmente da
2. Autônoma
Toráe aos profetas até os Evangelhos e além)

Convicções:
3. Misterionista (reconhecimento da Convicções:
inabilidade da lógica em ser exaustiva no 3. Domesticacionista
entendimento da natureza da realidade per si
4. Criacionista (alicerçada na noção de que
4. Abstracionista
Yahweh é o criador e sustentador do real)
5. Transdemográfica (busca desenvolver
5. Classisista
sabedoria a partir da posição social de Israel)
6. Ritualista (o entendimento é
desenvolvimento a partir da participação em 6. Mentalista
rituais)
Pixelizada. Por "pixelada", quero dizer que os autores bíblicos
definem os contornos de uma abstração de segunda ordem
com imagens e episódios sobre um conceito por meio de
iterações e reiterações na narrativa, lei e poesia. Assim como um
pixel participa da montagem da imagem sendo exibidos em uma
tela, os argumentos da Escritura são abordados e reificados em
vários locais da Escritura. Para ver o padrão de segunda ordem
emergir, é preciso dar um passo para trás e ver a imagem
inteira, que necessariamente inclui cada pixel discreto (p. 84).
Em rede. O estilo estrutural em rede refere-se à prática literária de confiança intra e
intertextual em ideias desenvolvidas em coordenação com significado (intra) ou
derivado (inter) de outros textos. Em outras palavras, o próprio raciocínio requer
que o leitor transponha ou contextualize o material de outro lugar no corpus
imaginado, mas alerta o leitor para essa demanda ao estabelecer redes literárias
claras para esse outro material. Óbvio para qualquer leitor das Escrituras Cristãs, os
autores bíblicos não definem abertamente seus termos ou os conceitos aos quais
aludem. Na verdade, a busca por definição pode violar o próprio ponto da filosofia
que está sendo defendida. Em vez disso, as instâncias são tornadas coerentes pela
compreensão de sua rede dentro do todo. Podemos considerar a rede literária uma
boa prática interpretativa, e é, mas a rede a que me refiro aqui também inclui as
expectativas do autor em relação aos leitores (p. 89).
Misterionista. Por misterionista, quero dizer que, se existe
um sistema causal fechado para o hebraico antigo, não
temos acesso a seu funcionamento interno ou estruturas
holísticas. Essa inclinação misterionista pode ser semelhante
ao misterianismo de Colin McGinn em relação à consciência
mente-corpo: estruturada e real, mas, em última análise,
incapaz de ser compreendida holisticamente. O estilo
filosófico hebraico defende uma convicção misterionista, mas
sem perda de uma metanarrativa criacionista (p. 92).
Criacionista. Por criacionista, refiro-me à convicção da filosofia hebraica em fundar sua
metafísica, ética, epistemologia e muito mais no evento de criação de Gênesis 1-3 que flui
historicamente para a história presente de um israelita. A disposição criacionista
pressupõe contiguidade com uma narrativa cosmológica e genealógica particular. Como o
Egito e a Mesopotâmia, um retorno às narrativas da criação, aos temas da criação e à
linguagem da criação permeia o pensamento filosófico das Escrituras Cristãs. A maioria
dos textos bíblicos abertamente ou secretamente presume uma estrutura metafísica
criacional, onde Yahweh organiza e ordena o cosmos como um campo de objetos
separados dele e uns dos outros. Nada semelhante à unidade Brahminista, panteísmo ou
panenteísmo deriva da formação e comissionamento bíblico de Yahweh da humanidade, a
descoberta guiada da mulher e a unidade do par biologicamente sexuado dificilmente é
referido diretamente após Gênesis 4. No entanto, vemos o presunção disso em quase
todos os lugares da literatura bíblica (p. 94-93).
Transdemográfica. Por "transdemográfico", quero dizer que o objetivo do empreendimento
filosófico nas Escrituras Cristãs visa promover um corpo social com discernimento com perspectivas
diversas, mas mutuamente enriquecedoras sobre a realidade. Ninguém pode ser "o filósofo
hebraico". Nem Moisés nem Jesus confiaram sozinhos por ser o filósofo singular; em vez disso,
ambos foram descritos como especialistas em uma comunidade que poderia levar outros a ver o
que estava lá antes deles. A epistemologia transdemográfica se concentra no know-how:
discernimento socialmente distribuído para compreender adequadamente os fatos e estado de
coisas (sabe-se). Isso reconhece que o corpo individual sempre pratica o pensamento filosófico
dentro do corpo social, treinado desde a juventude por especialistas… As convicções
transdemográficas não permitem um inclusivismo ingênuo, mas, em vez disso, uma dispersão de
conhecimentos. Formas díspares de participação incluíram todos os que se juntaram a Israel. O
sumo sacerdote, profetas, sacerdotes, reis, pais, filhos, mães, leprosos, emigrados, juízes e anciãos,
todos tinham acesso e discernimento diferentes que trouxeram para a comunidade. A Torá e mais
tarde Jesus e seus apóstolos esperavam que a comunidade empregasse esses tipos díspares de
know-how para apreender intelectualmente noções de segunda ordem (p. 96).
Ritualista. Exclusivo para a Bíblia Hebraica entre seus pares, os rituais são
designados para efeito epistemológico e moldar a comunidade. Eu argumentei em
outro lugar onde todas as atividades pedagógicas e cognitivas são inerentemente
ritualísticas e corporificadas. No entanto, por "ritualista", quero dizer que os autores
bíblicos estão abertamente cientes da função epistêmica dos rituais e os empregam
descaradamente em prol de um conhecimento preciso. Nem apenas saber, mas
Israel se tornará um tipo particular de comunidade, que inclui, mas não se limita ao
seu mundo intelectual compartilhado entre eles. Na Torá, Moisés instrui os hebreus
a realizar ritos para saber. O tipo de conhecimento que resulta de uma performance
ritual é um tipo de discernimento. Levítico 23 fornece o exemplo mais claro disso,
embora a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento estejam repletos de rituais com
enfoque epistemológico (p. 98).
Esses dois elementos estruturais (pixelizados, em rede) e
quatro convicções (misterionista, criacionista,
transdemográfica e ritualista) formam os marcadores do estilo
filosófico hebraico. Quando eles estiverem presentes, vemos
um estilo discreto de filosofia sendo praticado, distinto dos
vizinhos de Israel no antigo Crescente Fértil e, posteriormente,
dos conquistadores do norte do Mediterrâneo. Além disso,
esses aspectos do estilo hebraico serão distinguidos dos
modos particulares de discurso filosófico.
JESUS PODE ASSUMIR
UM ROSTO FILOSÓFICO?
Sobre a visão dos primeiros discípulos de Cristo a respeito de sua
relação com a filosofia — e quão inesperada ela ainda é hoje.
LI
Jonathan T. Pennington
Jesus the great philosopher
(2020)
Imagine uma igreja cristã de hoje em algum lugar do cinturão da bíblia
na América, um lugar onde o cristianismo tem raízes profundas o
suficientes e galhos largos por meio dos quais os seus membros podem
construir suas mega igrejas… Agora, olha para as paredes do interior do
santuário. Você pode ver os bonitos banners que relembram os valores
da igreja e suas preciosas verdades a respeito dAquele que eles vieram
adorar, Jesus… Pastor, Rei, Salvador, Messias, Amigo de pecadores,
Emanuel. E Filósofo. Filósofo? Não é possível. Como voce reagiria a
isso? Pode um pregador concluir seu sermão convidando seus ouvidos
a “orar para receberem Jesus como seu filosofo pessoal”? (p. 3).
Foi só logo após a Primeira Guerra Mundial que os arqueólogos europeus toparam com
Dura-Europos. Quando o fizeram, descobriram que os prédios construídos nas laterais das
paredes eram o sonho de um arqueólogo! Eles estavam completamente intactos,
preservados e intactos por causa dos escombros empalhados. Entre outras descobertas
importantes, os pesquisadores encontraram uma igreja doméstica, congelada no tempo.
Agora podemos olhar para as paredes de suas igrejas. Quais foram suas decorações? Como
aqueles em nossa megaigreja imaginária, esses cristãos fiéis também usaram suas paredes
para lembrar aos adoradores quem é Jesus. As imagens pintadas nesta igreja antiga
retratam Jesus de várias maneiras, como o Bom Pastor, o Grande Médico e o Caminhante
da Água. E como filósofo. Na verdade, em todas as imagens de Jesus curando, ensinando e
realizando milagres, ele está usando as vestes de filósofo reveladoras, tem o corte de
cabelo que indicava o seu status como um filósofo, e sua pose em uma postura de um
professor de filosofia. Filosofo. Pintado nos muros de uma igreja. Por que? (p. 4-6).
No entanto, o que chamou a atenção dos estudiosos e da grande mídia religiosa foi exposto
pelo jornalista Sandro Magister em uma pergunta precisa: “por que foi dado o rosto de um
filósofo a São Paulo?” (2015). Na figura de um apóstolo com aspecto de um filósofo pensativo,
olhar penetrante, testa alta, calvície incipiente e barba pontiaguda, esconde-se muito mais do
que a simples fusão artificial entre a fé cristã e a arte helênico-romana. Para o diretor dos
Museus do Vaticano, Antonio Paolucci, o que está em jogo é a ariscada decisão da Igreja, já
estabelecida e difundida, em assumir como sua um mundo de imagens e formas que a tradição
iconográfica helênica e romana já havia elaborado. Nesse contexto, foi quase natural e
esperado que a questão “como representar os apóstolos da igreja?” fosse respondida através
das formas e semblantes dos filósofos gregos e romanos. Foi a partir dessa ideia que Paulo de
Tarso “calvo, barbudo, com o ar grave e absorto do intelectual, teve o rosto de Platão ou talvez
de Plotino, enquanto que o rosto de Aristóteles foi dado ao pragmático e terreno Pedro, que
tem a tarefa de guiar a Igreja praticante e combatente em meio às insídias do mundo (s/p.).
LI
Jonathan T. Pennington
Jesus the great philosopher
(2020)
Acontece que os crentes de Dura-Europos não estavam sozinhos… Por volta dessa
época, um homem chamado Justino nasceu em Flavia Neapolis, na Palestina,
cerca de cinquenta quilômetros ao norte de Jerusalém… Justino começou a buscar
a vida, alguma direção que lhe desse sabedoria e significado. Ele tentou ser
discípulo de um mestre estóico, a filosofia mais popular da época. Insatisfeito,
tentou ligar-se a um peripatético, professor dos costumes de Aristóteles. Isso
também se mostrou impraticável. Quando ele abordou um filósofo pitagórico, foi
informado de que ele não tinha o treinamento exigido em música, astronomia e
geometria. Em seguida, ele começou a treinar nos caminhos do platonismo, com a
esperança de encontrar a verdade e contemplar o deus das Ideias. Ele finalmente
sentiu que sua busca pela sabedoria estava indo bem. Mas o verdadeiro Deus
tinha outros planos (p. 6).
Enquanto caminhava perto do mar, Justino iniciou um intenso diálogo com
um homem idoso, um homem que se revelou seguidor de Jesus de Nazaré.
O homem cuidadosamente envolveu Justino, desafiando-o com várias
perguntas perspicazes, levando-o a pensar sobre a alma e o destino da
humanidade — nosso destino que depende do Deus verdadeiro e eterno.
Justino perguntou como ele poderia aprender a praticar essa filosofia. A
resposta do velho cristão foi que são os profetas hebreus, inspirados pelo
Espírito, os verdadeiros filósofos do mundo e que apontam para a
verdadeira sabedoria encontrada em Jesus. O coração de Justin ficou em
chamas e ele começou a ler e meditar sobre os profetas e os "amigos de
Cristo", passando a amar a verdade que eles falavam (p. 6).
Esta informação autobiográfica de Justino tem um propósito. Diálogo conta a história de um
judeu chamado Trypho que se aproximou de Justino e iniciou uma conversa com ele.
Porque? Porque ele reconheceu pelas roupas de Justino que ele era um filósofo… Justino
explica a Trypho sua própria história — como ele passou por muitas filosofias insuficientes
para finalmente encontrar a verdade filosofia de Jesus. Os profetas do Antigo Testamento
eram filósofos. Jesus foi o maior filósofo. E agora, como discípulo de Jesus, Justino também
é filósofo. Filosofia é uma maneira de encontrar a vida verdadeira, Justino explica, e agora
ele encontrou essa verdade vida em Jesus. O cristianismo é a verdadeira filosofia que, pela
fé e pelo poder do Espírito, permite que as pessoas vejam o mundo de uma determinada
maneira e vivam de acordo. É o caminho para a verdadeira vida boa. E foi isso que Justino
fez . Vivendo em Roma, no coração do império e de suas muitas escolas filosóficas, ele
ensinou às pessoas a verdadeira filosofia do Cristianismo. Ele dialogou, defendeu, e fez
apologética (isto é, deu a razão de sua fé), tanto pessoalmente quanto em escritos (p. 7).
Ainda que o encontro da fé cristã com filosofia no Império Romano
seja marcado por sínteses — em maiores ou menores proporções —
com a tradição helenística, comprometendo e modificando a
abordagem hebraica de encarar o AT e o NT, o que fica evidente é
que: tanto a visão da filosofia antiga como exercícios espirituais,
quanto a abordagem hebraica de filosofia bíblica cooperaram para
que fosse natural o surgimento da forma de enxergar o Cristianismo
como “verdadeira filosofia” — que seriam muito comum não só nos
Pais da Igreja, como também em toda a Patrística.
LI
Jonathan T. Pennington
Jesus the great philosopher
(2020)
Avance agora para outro diálogo que aconteceu alguns anos depois, em 1999. O local não é
Roma, mas Iowa, no debate primário do Partido Republicano na corrida para as eleições
presidenciais de 2000. O moderador do debate fez a cada candidato a seguinte pergunta:
"Com qual filósofo ou pensador político você mais se identifica e por quê?" O primeiro a
responder foi o então governador George W. Bush. Sem hesitar, em seu sotaque texano
sincero, Bush respondeu que o filósofo que mais o influenciou foi “Cristo”…. Essa resposta talvez
seja um pouco menos sofisticada do que a de Justino, mas não é menos sincero. Tanto Justino
Mártir quanto o governador Bush reconheceram em Jesus alguém que oferece a verdadeira
sabedoria para saber como viver bem. Quando examinamos o longo espaço da história cristã
entre as respostas de Bush e Justino, encontramos uma rica tradição de cristãos respondendo
da mesma maneira… cristãos falando de Jesus como filósofo e o cristianismo como uma
verdadeira filosofia de vida. O cristianismo não é apenas um conjunto de doutrinas, mas uma
divina filosofia de vida completa que, se necessário for, devemos morrer por ela! (p. 8-9).
Mas algo mudou. Algo foi perdido. Se fôssemos conduzir uma entrevista ao estilo Jimmy Fallon
do tipo "Word on the Street" hoje, eu duvido que muitos, se houver, ofereceriam que o
Cristianismo é uma filosofia e que Jesus é um filósofo. Ninguém está fazendo banners "Jesus, o
Filósofo" para os cartazes de suas igrejas. A Amazon oferece sucessos mínimos nas buscas
que contêm "Jesus" e "Filósofo" em seus títulos, e os poucos que são encontrados são
geralmente estudos históricos acadêmicos, não para o freqüentador comum da igreja. Os
programas de cursos em faculdades bíblicas, departamentos de religião de universidades e
seminários não apresentam Jesus como um filósofo. Isso sem falar nos cursos universitários de
filosofia. Se um professor de filosofia sugeriu "Jesus" como uma das disciplinas a serem
estudadas com Aristóteles, Kant e Hume, ele provavelmente receberia o duplo presente de
sobrancelhas levantadas e uma reprimenda. Mas isso reflete uma grande mudança histórica.
Ao longo de todo o vasto período da história da igreja, o Cristianismo foi entendido como uma
sofisticada filosofia de vida com Jesus como o Grande Filósofo. Então o que aconteceu? (p. 9).
POR QUE JESUS NÃO ASSUME
SUA POSIÇÃO FILOSÓFICA HOJE?
As qualidades pessoais para tornar efetivo o trabalho intelectual
rigoroso que Jesus desempenhava e convidada seus discípulos
LI
Dallas Willard
Jesus, o lógico
(2006)
Em nossa cultura uma relação incômoda entre Jesus e a inteligência. Ao declarar
que Jesus é o homem mais inteligente que já existiu, ouvi cristãos responderem:
"Isso é um oximoro". Hoje, posicionamos Jesus automaticamente longe do (ou em
oposição ao) intelecto e da vida intelectual. Quase ninguém o consideraria um
pensador que tratou das mesmas questões que Aristóteles, Kant, Heidegger ou
Wittgenstein, e que o fez com o mesmo método lógico. Esse feto tem implicações
importantes para a maneira de vermos hoje a ligação de Jesus com o mundo e a
vida — sobretudo se nosso trabalho é relacionado à arte, ao pensamento, à
pesquisa ou ao âmbito acadêmico. Como ele pode se encaixar nessas áreas e nos
guiar dentro delas sendo logicamente obtuso? Como podemos ser seus discípulos
no trabalho e levá-lo a sério como mestre se, ao entrarmos em nossas áreas de
competência técnica ou profissional, precisamos deixá-lo de fora? (p. 165).
LI
Jonathan T. Pennington
Jesus the great philosopher
(2020)
Sentado em diversos cafés trabalhando neste livro, muitas vezes encontrei amigos,
membros da igreja e alunos que gentilmente perguntavam no que eu estava
trabalhando. Portanto, experimentei várias versões de "discurso de elevador" para
descrever Jesus como um filósofo. Depois de um desses relatos, um amigo
particularmente atencioso compartilhou como isso se relacionava com sua experiência.
Apesar de seu forte compromisso com a igreja, sua experiência com o cristianismo foi
de fato a necessidade de encontrar gurus alternativos. Conforme ele descreveu, ele
aprendeu na faculdade bíblica e em muitos grandes pregadores os aspectos verticais
do Cristianismo - quem é Deus e o que Jesus fez por nós e isso é ótimo. Mas ele não
encontrou muitos professores ou líderes na igreja que o ajudaram a pensar sobre os
aspectos horizontais do que significa ser uma vocação cristã, emoções, política e assim
por diante - em resumo, uma filosofia de vida. Ele encontrou ajuda para isso em outros
lugares, em pessoas como o famoso psicólogo-visionário Jordan Peterson (p. 13).
Não acho que a experiência do meu amigo seja incomum. Por termos perdido a imagem de
Jesus como um filósofo de toda a vida, muitos cristãos fiéis encontram outros gurus para
ajudá-los a resolver as questões da vida diária. Nossa cultura moderna tem muito de filósofos
na torneira. Temos filósofos das finanças (Warren Buffett), filósofos dos livros que devemos ler
para nos sentirmos fortalecidos (Oprah), filósofos dos princípios de liderança (Ray Dalio),
filósofos da produtividade (David Allen) e como entrar no fluxo (Mihaly Csikszentmihalyi) ,
filósofos da moda e do cool chique (Heidi Klum), filósofos da criatividade (Austin Kleon) e
filósofos da organização e do descarte de coisas (Marie Kondo). Os cristãos freqüentemente
criam sua filosofia de vida a partir de uma mistura dessas, muitas vezes acrescentando uma
versão cristianizada dos mesmos pensadores…Mas é melhor perceber que Jesus, o Filósofo,
está fazendo mais do que falar às partes religiosas e espirituais da vida — os aspectos verticais.
Ele é um guru para todas as realidades humanas e horizontais também. Quando perdemos a
ideia de que Jesus é um filósofo da vida, ficamos presos à procura de gurus alternativos (p. 14).
LI
Dallas Willard
Jesus, o lógico
(2006)
Quando falamos de "Jesus, o lógico", não estamos dizendo, é claro, que ele
desenvolveu teorias de lógica como fizeram, por exemplo, Aristóteles e Frege. Se
Jesus é quem os cristãos acreditam que ele é, sem dúvida, poderia muito bem ter feito
isso. Ele poderia ter apresentado uma Begriffsschrift (Conceitografia) ou Principia
Mathematica, ou formado axiomas alternativos de lógica modal ou estabelecido
premissas lingüísticas… Quando falo de "Jesus, o lógico", estou me referindo a seu uso
de insights lógicos, a seu domínio e emprego de princípios lógicos em seu trabalho
como mestre e personalidade pública. Convém observar que aqueles que trabalham
em áreas criativas ou no campo da teoria lógica não são necessariamente mais lógica
ou filosoficamente competentes que outras pessoas… Entender de teoria lógica
avançada pode, sem dúvida, ajudar um indivíduo a pensar de forma lógica, mas não é
suficiente para garantir o pensamento lógico e, exceto em casos raros, nem sequer é
necessário (p. 166).
Sem dúvida, para ser lógico é preciso entender os conceitos de implicação e contradição
e ter a capacidade de reconhecer sua presença ou ausência em casos óbvios. Mas
também é preciso ter a vontade de ser lógico, assim como certas qualidades pessoais que
tornam isso possível e efetivo… Tudo isso, por sua vez, exige um forte caráter moral. Não
apenas em pontos como determinação e coragem, apesar destas serem necessárias. Os
hipócritas, por exemplo, não se dão bem com a lógica, nem mentirosos, ladrões,
assassinos e adúlteros. Pessoas desse tipo estão sempre atentas para aparências e
inferências que podem implicá-las logicamente em seus maus procedimentos… Um fato
menos compreendido é aquele que só pode ser lógico caso a pessoa tenha assumido
como valor fundamental o compromisso de ser lógica. Ninguém é lógico por acaso, assim
como ninguém é moral por acaso. Aliás, a coerência lógica é um fator importante do
caráter moral. Esse é, em parte, o motivo pelo qual, numa era de ataques à moralidade
como a nossa, a vontade lógica também é desmerecida ou ignorada (p. 167).
Jesus usa a lógica sempre por entimema, como é comum na vida e nas conversas
cotidianas. No que se refere à clareza, seus argumentos não são inteiramente expostos nem
explicados. A importância do entimema está no fato de ele envolver a mente do ouvinte ou
dos ouvintes a partir de seu interior, algo que a exposição completa e explícita de argumentos
não é capaz de fazer… Ao usar a lógica, o objetivo de Jesus não é vencer batalhas, mas sim
promover o entendimento ou o discernimento em seus ouvintes. Esse entendimento só
pode vir de dentro, do entendimento que o indivíduo já possui. Ele parece "verter" de
dentro da pessoa. Assim, Jesus não segue o método lógico que vemos com freqüência nos
diálogos de Platão, nem o método que caracteriza a maior parte do ensino e dos textos de
hoje. Ou seja, ele não procura tornar tudo tão explícito a ponto de a conclusão ser imposta
ao ouvinte. Antes, ele apresenta as questões de tal maneira que as pessoas que desejam
saber podem encontrar seu caminho, chegar até a conclusão apropriada como algo que
elas descobriram — quer seja algo que aceitem, quer não (p. 167-168).
meu desejo é nos capacitar para ver Jesus sob uma nova ótica: vê-lo
realizando um trabalho intelectual com os instrumentos apropriados da lógica,
vê-lo como alguém que domina e se sente à vontade nessa área. Precisamos
entender que Jesus é um pensador, que essa não é uma palavra repulsiva,
mas sim um trabalho fundamental, e que seus outros atributos não excluem o
raciocínio; antes, garantem que ele é, sem dúvida alguma, o maior pensador
da raça humana: "a pessoa mais inteligente que já viveu aqui na terra". Ele usa
constantemente o poder do discernimento lógico para possibilitar que as
pessoas descubram a verdade acerca de si mesmas e de Deus a partir do
interior de seu coração e de sua mente. Sem dúvida, essa lógica também
contribuiu para o crescimento de Jesus em "sabedoria" (Lc 2:52) (p. 172).
Por falta de uma compreensão apropriada de Jesus, fazemos nosso trabalho nos
campos intelectuais, acadêmicos e artísticos por nossa própria conta. Não temos confiança
(também conhecida como fé) na capacidade de Jesus como líder e mestre nas
questões às quais dedicamos a maior parte de nosso tempo de trabalho. Assim, com
freqüência, nossos esforços ficam a desejar quanto aos resultados que deveriam
produzir e podem até exercer menos impacto sobre os incrédulos, pois os realizamos
com o "braço de carne”… Não se trata de um estudo detalhado dessa dimensão, mas
ela merece tal estudo, pois é de suma importância para o desenvolvimento de uma fé
saudável em Jesus (especialmente nos dias de hoje, em que é tão natural as instituições
investidas de autoridade em nossa cultura — as universidades e as profissões — o
omitirem). Porém, uma vez que soubermos o que procurar nos evangelhos, não
teremos dificuldade em ver o uso perfeito, cuidadoso e criativo da lógica ao longo de
todas as suas atividades de ensino (p. 174).
OS EVAGELHOS COMO ÁPICE
DA LITERATURA SAPIENCIAL
A apresentação histórico-teológica de Jesus como um mestre em
busca de transformação na vida de seus discípulos pelas virtudes
preconizadas pela abordagem hebraica de filosofia
LI
Richard Bauckham
Prólogo à obra Lendo
os Evangelhos com Sabedoria
(2012)
Não faz muito tempo que quase todos os estudiosos do evangelho teriam dito, com
muita confiança, que os Evangelhos não são biografias de Jesus. Agora, porém,
muitos diriam que é precisamente o que eles são, embora com a qualificação de que
são o tipo de biografia que as pessoas escreveram naquela época. No entanto, isso
faz deles uma história confiável ou são como lendas, mitos, romances ou
propaganda? Muita literatura acadêmica está envolvida na busca pelo Jesus histórico,
tentando voltar os Evangelhos para o que o Jesus histórico era realmente, antes de
os primeiros cristãos começarem o processo de interpretação que se transformou
nos Evangelhos. Materiais refinados de método histórico foram desenvolvidos para
estudar os Evangelhos dessa maneira, mas as ferramentas e seus usos são discutíveis.
Além disso, os resultados da busca são tão variados e contraditórios que colocam em
dúvida a viabilidade de todo o empreendimento (p. 7).
Alguns diriam que a busca pelo Jesus histórico é necessária para a fé e o discipulado,
hoje; outros diriam que é irrelevante ou mesmo perigosa. A fé cristā e a teologia
deveriam adotar a noção iluminista de "história”, como a busca geralmente tem feito,
ou questionar? Embora grande parte da erudição dos Evangelhos tenha-se preocupado
com questões históricas, as indagações teológicas também são grandes. Não
deveríamos, afinal, ler os Evangelhos principalmente como Escritura, com todo o cànon
da Bíblia como seu contexto principal de significado? E assim que a Igreja geralmente
os lê, e há aqueles que, agora, advogam fortemente que devemos retornar as práticas
eclesiais tradicionais de leitura dos Evangelhos, das quais as preocupações históricas
modernas nos distraíram. Há a hermenêutica, ciência da interpretação de textos, que
possui uma grande literatura, parte filosófica e muito técnica. Isso, por sua vez, interage
com outras questões sobre os Evangelhos e gera seus próprios tipos de indagações.
Assustador e confuso? (p. 8).
[Jonathan Pennington quer] ajudar os cristãos a lerem os Evangelhos de uma forma
que seja fiel ao tipo de textos que eles são…. Ele não rejeita a maioria dos textos do
Evangelho por uma busca minimalista do Jesus histórico, tampouco deixa a história
de lado em favor do cânon ou da teologia. Ele convida-nos a ler os quatro
Evangelhos como história e teologia — cada um como uma narrativa inteira em si,
como o clímax da grande metanarrativa das Escrituras e como a pedra angular no
arco de todo o cânon das Escrituras. O que talvez seja mais distintivo em sua
abordagem é sua preocupação com virtude e discipulado cristãos. Não é
suficientemente definido o tipo de literatura dos Evangelhos, por dizer que são
históricos e teológicos. Eles também são uma literatura que visa fazer a diferença
na vida de seus leitores. Eles são formadores de virtude. Eles chamam seus leitores
a seguirem Jesus de uma forma que é transformadora (p. 8).
LI
Jonathan T. Pennington
Jesus the great philosopher
(2020)
É apropriado, então, compreender o clímax do sermão nas palavras do
versículo acima (Mateus 7.24-27). Nessa imagem parabólica final, Jesus
descreve Seu ensino como uma bifurcação na estrada, que divide Seus
ouvintes em dois grupos distintos: o sábio e o tolo. Não há meio-termo.
Os sábios se distinguem dos tolos não só por ouvirem os ensinamentos
de Jesus, mas também por agirem sobre eles; isto é, eles ordenam suas
vidas de acordo com seus caminhos e sabedoria. O conteúdo do ensino
de Jesus é importante, mas, aqui, no final do sermão, a ênfase é na
audição responsiva. Pessoas sábias devem ouvir corretamente o que
Jesus ensina e também responder a essa graça com fé e vida fiel (p. 9).
Somos sábios em seguir os ensinamentos de Jesus quando nos
aproximamos do tópico fascinante sobre como ler os Evangelhos… é
apropriado que sigamos nossa leitura dos Evangelhos com o
objetivo de sermos sábios e a imagem de construir a casa de alguém
com sabedoria… como ser um sábio ouvinte e seguidor. É isso o que
significa tratar os Evangelhos como Sagrada Escritura e com
sabedoria. Não estamos procurando apenas um arsenal de boas
técnicas, sejam elas pré-modernas, modernas ou pós-modernas.
Não buscamos o mero conhecimento (scientia) pelo conhecimento
(p. 10).
Nossos Evangelhos canônicos são teológicos, históricos e narrativas biográficas
aretológicas (formadoras de virtude), que recontam a história e proclamam o significado
de Jesus Cristo, que, por meio do poder do Espírito, é o restaurador do Reino de Deus…
em qualquer outra coisa que possamos extrair dos Evangelhos, devemos entendê-los
como uma mensagem — na verdade, eles afirmam ser a mensagem final — sobre o Reino
de Deus vindo do céu para a terra na pessoa de Jesus, o Cristo. Concentrando-nos
inicialmente na última parte de nossa definição anterior, aprendemos que os Evangelhos
têm um propósito na comunicação que inclui tanto a narrativa quanto a proclamação
significativa e aplicada… Os Evangelhos não podem ser considerados “meros” dados
históricos ou apenas o pano de fundo da proclamação apostólica, mas eles próprios são
de natureza homilética e exortacional. A mensagem intencional dos Evangelhos tem um
conteúdo especifico, centrado em Cristo e no Reino. Essa mensagem sobre o Reino de
Deus é tanto uma boa nova como uma natureza restaurativa (p. 190).
A segunda implicação que podemos derivar de nossa definição dos Evangelhos é
que sua natureza biográfica significa que, em grande parte, eles existem para
convidar-nos a olhar para os bons personagens e a evitar os maus; eles são
aretológicos (formadores de virtude). Narrativas — especialmente bioi — servem
para incutir a virtude em seus leitores mediante o poderoso meio de história… o
veículo da história é tão transformador que envolve todo o nosso ser, permite-nos
ter experiências de vida indiretamente e proporciona-nos um encontro real e
experiencial com Cristo. Portanto, uma parte significativa de nosso objetivo na leitura
dos Evangelhos deve ser experimentar a transformação e o crescimento da virtude
de Deus. Logo, não podemos apenas ler os Evangelhos em busca de dados
históricos ou mesmo informações teológicas, se estivermos separados do objetivo
final que é aprender a viver de maneira diferente como seguidores de Cristo (p. 191).
Gosto de pensar nos quatro livros evangélicos, ou Tetraevangelho, como os princípios básicos
em uma arcada romana. Esses princípios são essenciais para unir ambos os lados da arcada e,
isoladamente, possibilitar sua sustentação, além de servir como entrada. Assim também, esses
quatro Evangelhos funcionam como uma porção da Escritura Sagrada que é tão encaixada e
posicionada que une a arcada com seus dois lados - as Escrituras do Antigo Testamento de um
lado e o restante dos escritos do Novo Testamento de outro. Os relatos do Evangelho
completam e, em última instância, fazem sentido à história da obra de Deus no mundo conforme
encontrados nas Escrituras judaicas, enquanto, ao mesmo tempo, servem como o manancial
para os demais testemunhos e ensinamentos apostólicos. Os quatro testemunhos dos
Evangelhos fornecem o principio orientador (inclusive a regula fidei) e guiam para o
entendimento e suporte de toda a Escritura Sagrada. Os Evangelhos, providencial e unicamente,
funcionam como o ponto de apoio interpretativo para a leitura de toda a Biblia, pois eles focam
na revelação de Deus em Jesus Cristo, a Palavra final pronunciada por Deus (p. 298).
Cada um dos evangelistas fornece um ponto crucial ou a conclusão da história do trabalho de
Deus no mundo. Isso não é o mesmo que dizer que eles seriam contrariados por outras
escritas, explicações ou pregações apostólicas que os precedem, mas sim que seus objetivos
em escrever uma história continuada e consumadora são revelados mediante o método com
que abordaram sua tarefa: os Evangelhos são escritos na forma narrativa da maioria das
Escrituras judaicas, cientes dessas histórias e imitando-as de modo claro, além de intertextual
e ilustrativamente explicando os eventos da história de Jesus, como o propósito e o telos da
história de Deus. Esse propósito é manifestado, de forma implícita, nas particularidades com
que Jesus restabelece e completa a história israelita, tais como Suas travessias pelo mar e a
provisão de pães em uma região desértica (Mt 14.13-33), bem como em comentários mais
explícitos, como o procedimento hermenêutico que Jesus concede na leitura das Escrituras
judaicas em Lucas 24.27. Os demais testemunhos apostólicos claramente interpretam a vida
de Jesus da mesma forma, como a leitura dos textos paulinos em 1 Coríntios 10 revela (p. 319).
Atualmente, não se faz um pequeno debate em alguns grupos sobre a antiga pergunta do que
exatamente é “o evangelho”… Na condição de documentos que apresentam a história nele
consumada, os Evangelhos ajudam-nos a ver que apresentar as “boas novas” às pessoas
significa prover e entender todo o trabalho divino no mundo como completado em Jesus Cristo.
“O evangelho" não é apenas uma mensagem sobre o perdão de pecados, mas também uma
visão mundial completa. Assim, embora certamente não seja errado pensar no evangelho em
termos da resposta de Cristo ao homem e a Deus, é melhor conceitualizá-lo e apresentá-lo em
categorias históricas de salvação da criação, queda, redenção e consumação, e os Evangelhos
certamente nos ajudam a ter essa perspectiva mais ampla. Da mesma forma, eles ainda
fornecem um enfoque mais narrativo para pensarmos em como apresentar e explicar a obra de
Jesus. Como temos dito, a teologia bíblica é essencialmente uma história sobre o que Deus tem
feito na história verdadeira e o que Ele fará em nosso real futuro. Portanto, uma apresentação do
evangelho que deixa de falar de Cristo em termos narrativos ou históricos viola a forma e a
essência da apresentação bíblica (p. 330).
O cristianismo nunca deve ser entendido como mero assentimento intelectual e moral,
por um lado, ou como ganhar ou manter-se em um pacto por meio da obediência, por
outro. A tendencia para ambos os extremos está sempre presente. Porém, mantê-los
em tensão equilibrada é a noção de seguir ou ser um discípulo, que mantém a visão de
constante aprendizado e crescimento em conhecimento e maior virtude, seguindo o
exemplo daquele que nos chamou pela graça… Nos Evangelhos, a compreensão do
cristianismo com referência ao Mestre em conhecimento e obediência brilha mais
claramente. Ao mesmo tempo, qualquer noção de que esse seguimento é apenas o
mesmo que seguir Moisés ou Platão, ou qualquer outro professor, é consistentemente
criticada e finalmente destruída: Jesus é repetidamente apresentado como mais do que
um mero professor para imitarmos, e os Evangelhos estão aflitos para mostrar-nos que
o fim da história desse professor é a Sua morte e ascensão em nome do Seu povo, para
fazê-lo nascer de novo pela obra escatológica do Espírito de Deus (p. 333).
TENHAM A MENTE DE CRISTO
A visão de Paulo sobre a mente transformada pelo Espírito enquanto
verdadeira sabedoria para a prática Teológica e Filosófica para hoje
No entanto, transmitimos sabedoria entre os que são maduros. Não, porém,
a sabedoria deste mundo, nem a dos poderosos desta época, que são
reduzidos a nada. Pelo contrário, transmitimos a sabedoria de Deus em
mistério, a sabedoria que estava oculta e que Deus predeterminou desde a
eternidade para a nossa glória. Nenhum dos poderosos deste mundo
conheceu essa sabedoria. Porque, se a tivessem conhecido, jamais teriam
crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito: “Nem olhos viram,
nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que
Deus tem preparado para aqueles que o amam.” Deus, porém, revelou isso
a nós por meio do Espírito. Porque o Espírito sonda todas as coisas, até
mesmo as profundezas de Deus.
Pois quem conhece as coisas do ser humano, a não ser o próprio espírito humano,
que nele está? Assim, ninguém conhece as coisas de Deus, a não ser o Espírito de
Deus. E nós não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de
Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuitamente. Disto
também falamos, não em palavras ensinadas pela sabedoria humana, mas ensinadas
pelo Espírito, conferindo coisas espirituais com espirituais. Ora, a pessoa natural não
aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura. E ela não pode
entendê-las, porque elas se discernem espiritualmente. Porém a pessoa espiritual
julga todas as coisas, mas ela não é julgada por ninguém. Pois quem conheceu a
mente do Senhor, para que o possa instruir? Nós, porém, temos a mente de Cristo.

1 Coríntios 2:6-16
LI
Craig S. Keener
A Mente do Espírito
(2016)
Muitos pensadores da Antiguidade buscavam a transformação por meio da
visualização do ser divino; místicos judeus também se esforçavam para ver
algo do Deus entronizado, mas o exemplo fundamental de transformação
resultante de vislumbrar a verdadeira glória divina é Moisés (3.7-16). Aquilo
que Moisés experimentou de modo parcial, os ministros da nova aliança
experimentam de modo mais pleno pela habitação do Espírito de Deus
dentro deles (3.3,6,8,17,18)… Na clareza do plano de Deus proporcionada
pela perspectiva da eternidade, aquilo que para o mundo parece ser a
simples execução de Jesus por traição pelas elites se torna o ponto
culminante da história da salvação, o prelúdio do triunfo de Deus por meio
da ressurreição (p. 256).
Os cristãos coríntios estavam imitando os valores do mundo que exaltava pessoas que Deus
não havia escolhido acima deles próprios, a quem Deus havia escolhido. Paulo desafia os
coríntios exatamente nas questões das quais eles se gloriam (cf. 1Co 1.29-31). As filosofias do
mundo defendiam a disciplina mental ou a obtenção de sabedoria por meio da dependência
da divindade natural inata. Para Paulo, contudo, a sabedoria de Deus é revelada em seu plano
na história (como em Romanos 11.30-34), que chegou a seu ápice na cruz, o epítome da
corrupção humana. O cerne da sabedoria divina e, portanto, o cerne do que significa
participar da mente de Cristo (1Co 2.16) é o caminho da cruz. Longe de adotar a sabedoria
desta era, esse caminho confia no plano mais abrangente de Deus que o mundo despreza,
pois o considera absurdo. Aqueles que são verdadeiramente sábios devem se gloriar em sua
fraqueza e depender do poder de Deus (cf. 1Co 3.18; 2Co 12.9,10); devem dar toda honra (ou,
em termos ocidentais atuais, todo o crédito) a Deus. Tal sabedoria que depende de Deus se
harmoniza com a teologia de Paulo, por exemplo, naquilo que chamei de mente da fé (p.
258-259).
Em 1 Coríntios 1 e 2, Paulo admoesta os crentes a se tornarem
maduros na verdadeira sabedoria divina. Também descreve o
conteúdo de tal sabedoria: a mensagem da cruz que inverte
os valores do mundo e nos convida a ver as coisas da
presente era à luz da era vindoura (2.6-10), em que a
sabedoria de Deus prevalecerá incontestada… Aqueles que,
com base nas filosofias do mundo, se consideram divinos,
devem, em lugar disso, cultivar a verdadeira aceitação da
perspectiva divina (3.3,4) (p. 255-256).
Tal sabedoria estava “oculta” (2.7),22 escondida até mesmo dos mais
instruídos e dos membros da elite do mundo (2.6,8); portanto, não foi
discernida por olhos, ouvidos ou pela imaginação humana (2.9). O tema da
sabedoria em questão aqui é a glória eterna que Deus projetou para seu povo
no futuro (2.7), “as coisas que Deus preparou para os que o amam” (2.9). (A
ideia de bênçãos futuras imperscrutáveis também ocorre no pensamento
paulino em Efésios 2.7). São questões que não podem ser reveladas nem
pelos sentidos nem pelo raciocínio humano (1Co 2.9), mas apenas pela
experiência do Espírito (2.10). Ou seja, o Espírito provê uma experiência
antecipada da vida no mundo por vir, a qual é também reconhecida por
alguns dos primeiros cristãos (veja esp. Hb 6.4,5) (p. 261-262).
Desde que somente o Espírito de Deus conhece de fato a
mente dele (1Co 2.11), somente o Espírito de Deus pode revelar
verdades escatológicas (2.9,10) e as profundezas do coração
de Deus (2.10). Deus revelou essas realidades escatológicas
aos crentes por meio do Espírito (1Co 2.10), supostamente em
um nível mais profundo que o entendimento ou a linguagem
humana por si mesma é capaz de comunicar.27 O Espírito
pode revelar as verdades de Deus porque consegue sondar
até mesmo as profundezas do coração de Deus (2.10) (p. 262).
Alguns pensadores, especialmente da tradição platônica, consideravam a
divindade suprema inefável ou, pelo menos, além da compreensão humana,
enquanto outros autores advertiram que a mente mortal jamais seria capaz
de entender os planos dos deuses. Tendo em vista as citações bíblicas
inequívocas que Paulo usa nesse contexto, é possível que fontes judaicas
sejam mais relevantes. As meditações judaicas tradicionais sobre a
sabedoria já entendiam que só Deus é plenamente sábio e, portanto, que
sua sabedoria precisa ser “revelada” (Ef 1.6-9). Paulo explica que o mundo
não é capaz de entender Deus, mas o próprio Espírito de Deus, que o
entende, pode revelá-lo àqueles que aceitam sua sabedoria (1Co 2.12,16) (p.
265).
Como as pessoas só eram capazes de entender plenamente
a esperança escatológica e a perspectiva escatológica por
meio do Espírito (1Co 2.9-11), de que maneira a pregação de
Paulo podia comunicá-la? Paulo já afirmou que ele não
anuncia sabedoria humana, mas, sim, a mensagem da cruz
(2.2) e a sabedoria oculta (2.7) por meio do Espírito (2.4,5).
Agora ele reitera que não comunica sabedoria humana, mas
sabedoria transmitira pelo Espírito (2.13) (p. 266).
Uma vez que a passagem tem em comum o mesmo contexto,
as duas interpretações levam praticamente à mesma
aplicação. Como na teologia joanina, a sabedoria meramente
humana não é capaz de entender as coisas do Espírito ( Jo
3.3,8,10); João permite o uso de analogias terrenas, mas até
mesmo essas analogias parecem não passar de enigmas de
um sábio para alguém que não conhece as coisas celestiais
(3.12)… Na mesma tradição, só é possível conhecer a Deus
por meio da revelação divina em Cristo (Mt 11.27) (p. 268).

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