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Psicóloga. Doutora em Enfermagem em Saúde Pública. Diretora do Centro de Desenvolvimento e Qualificação para o Sistema
Único de Saúde do Departamento Regional de Saúde de Araraquara. São Paulo, Brasil.
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Psicóloga. Mediadora e Consultora do ConversAções Familiares, Ribeirão Preto. Docente aposentada do Departamento
de Psicologia e Educação da Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto. São
Paulo, Brasil.
PALA V RA S - C H A V E : RESUMO: Novos discursos no contexto do Sistema Único de Saúde têm demandado um olhar crítico
Autocuidado. Processos sobre o autocuidado. Este é um estudo de caráter qualitativo baseado teórico-metodologicamente
grupais. Atenção primária no construcionismo social. O objetivo foi descrever sentidos de autocuidado produzidos em grupos
à saúde. comunitários num contexto da Estratégia de Saúde da Família. A coleta de dados se deu durante o ano
de 2001, totalizando 28 participantes na faixa etária de 50 anos, aproximadamente. As conversas foram
gravadas, transcritas e analisadas dando visibilidade às versões de autocuidado. A análise dos dados,
utilizando o referencial do construcionismo social, permitiu ampliar os sentidos de autocuidado em
referência à adesão ao tratamento, favorecendo uma reflexão sobre sua complexidade e as necessidades
mais amplas que vão além da adesão a um medicamento prescrito. Diálogo e foco na relação são
apresentados como recursos transformativos das práticas de cuidado e autocuidado, possibilitando a
construção de ações numa perspectiva mais integral e co-responsável.
KEYWORDS: Self care. ABSTRACT: New discourses about healthcare in the context of the Unified Healthcare System have
Group processes. Primary demanded a more critical view of self-care. This is a qualitative study with its theoretical background
health care. based on social constructionism theory. The objective was to describe meanings of self-care constructed
in community groups which are part of the Family Healthcare Program in Brazil. The data collection
occurred during 2001, totaling 28 participants with an average age of 50 years old. The conversations were
recorded, transcribed, and analyzed, giving visibility to their versions of self-care. The analysis, based on
social construction, amplified these meanings of self-care, enhancing reflection about their complexity and
broadening necessities, which go beyond simple adherence to a prescribed medication. Dialogue and the
focus on relationships are presented as transformative resources for the practices of care and self-care,
making possible the construction of actions in a perspective of integrality and co-responsibility.
PALABRA S CLA V E : RESUMEN: Los nuevos discursos en el contexto del Sistema Unificado de Salud han exigido una
Autocuidado. Procesos de mirada más crítica sobre el auto-cuidado. Este es un estudio de carácter cualitativo, basado teórica
grupo. Atención primaria y metodológicamente en el construccionismo social. Su objetivo es describir los sentidos del auto-
de salud. cuidado producidos en grupos comunitarios en el contexto de la Estrategia de la Salud de la Familia.
Los datos fueron recolectados durante el año 2001, totalizando 28 participantes con 50 años de edad,
aproximadamente. Las conversaciones fueron grabadas, transcritas y analizadas dando visibilidad a las
versiones del auto-cuidado. El análisis, basado en una perspectiva construccionista, permitió ampliar
los sentidos del auto-cuidado, favoreciendo una reflexión sobre su complejidad, señalando necesidades
más amplias, diferentes de la adopción de un medicamento prescrito. Diálogo y foco en la relación son
presentados como recursos transformadores de las prácticas de cuidado y auto-cuidado, los cuales
posibilitan la construcción de acciones dentro de una perspectiva más integral y co-responsable.
envolve respeito e compreensão entre os atores importância da construção de sentidos e a sua va-
sociais envolvidos e o aspecto da ciência que tra- lorização na produção do cotidiano social.6 Nesta
ta do conhecimento e da pesquisa necessários às perspectiva, a linguagem tem um caráter funda-
intervenções em saúde.5 mental, tomada como prática social − linguagem
Nesta perspectiva, cuidado significa a busca em uso, sendo analisada tanto em seu aspecto per-
de assimilação criativa de tudo que possa ocorrer formático como em seu espaço e contexto de uso.
na vida, compromissos e trabalhos, encontros Esta concepção convida a outras maneiras
significativos e crises existenciais, sucessos e de conversar sobre um mesmo assunto, gerando
fracassos, saúde e sofrimentos, que são processos posições alternativas frente a um problema, o que,
permanentes de aprendizado e necessitam de através de outras performances, possibilita a criação
espaços de reflexão e atenção.5 de outros sentidos, de outras realidades sociais.7
Como visto, vários autores têm problematiza- Se a linguagem é ação no mundo, a mudança
do a questão do cuidado na perspectiva da saúde narrativa é uma mudança que ocorre não somente
ampliada. Um aspecto do cuidado que também se nas palavras, mas também nas ações. Nessa pers-
reconfigura e ganha destaque nesse novo contexto pectiva, à medida que se conversa, novos sentidos
é o autocuidado. Ao trazer o foco para o usuário e significados podem ser gerados e, portanto,
deste sistema, empoderando-o dentro do processo juntas, as pessoas têm a possibilidade de criar
transformativo da atenção em saúde, agora a res- novas formas de se relacionar e de estar no mun-
ponsabilidade do paciente de saber de si e de seu do, re-significando antigos discursos e criando
tratamento passa a ser considerada fundamental. novos. Assim, esta perspectiva combate uma visão
Com a ampliação do acesso aos serviços de naturalizada das coisas, enfatizando a construção
saúde e aos trabalhadores de saúde, a culpabi- de sentido nas interações. O cuidado em saúde,
lização pelos fracassos nos cuidados em saúde portanto, é considerado uma prática social, e este
pode mudar de lado. O que antes era culpa do estudo tem o esforço de dar visibilidade a isto,
sistema, pela falta de profissionais e de serviços problematizando a questão do autocuidado.
disponíveis, passa a ser culpa do usuário se, ao O processo conversacional tomado como
ter acesso, não assume o autocuidado seguindo o foco neste trabalho, foi objeto de uma pesquisa
tratamento indicado. de mestrado que teve como objetivo gerar uma
No entanto, também há de se problematizar discussão em grupo com uma comunidade acerca
o autocuidado na mesma perspectiva do cuidado. de sentidos sobre o processo saúde/doença.8 Os
Há que se levar em conta a complexidade da re- grupos foram coordenados pela primeira autora
alidade local e do cotidiano popular que faz das que inseriu ativamente três temas na conversação:
práticas de autocuidado algo mais complexo do o que é estar com saúde, o que é estar doente, o
que a simples adesão a um tratamento prescrito. que é cuidar da saúde. Eles foram realizados em
uma comunidade alvo da ESF que tem uma área
de abrangência de 1300 famílias de um bairro de
OBJETIVO classe média baixa, de uma cidade de grande porte
A proposta deste estudo é problematizar no interior do estado de São Paulo.
a questão do autocuidado, complexificando seu Foram realizados cinco grupos comunitá-
entendimento dentro do sistema de saúde e de- rios, cada um deles reunindo moradores de uma
bruçando um olhar mais crítico sobre a tarefa do mesma rua, em cinco ruas diferentes, escolhidas
cuidar de si mesmo. Assim, seu objetivo é des- por critério geográfico dentro da área de abran-
crever sentidos de autocuidado produzidos em gência do serviço. Eles foram de sessão única,
conversações grupais com grupos comunitários, com duração de cerca de uma hora e quinze mi-
realizados num contexto da ESF, explicitando as nutos, com cinco a nove participantes cada um,
múltiplas versões que aí se produziram. totalizando 28 participantes na pesquisa. Apesar
do convite para participação ter sido dirigido às
MÉTODO famílias durante visita da pesquisadora às casas,
os grupos foram compostos apenas por mulheres
Este estudo foi de caráter qualitativo e teve (idade média de 50 anos) e bastante heterogêneos
como base teórico-metodológica o construcionis- com relação às características sócio-demográficas
mo social, no contexto histórico da necessidade de (casadas, separadas e solteiras; desde analfabetas
outros pressupostos e premissas que sustentem a até universitárias; com atividades domésticas e/
ou autônomas pouco qualificadas e com vínculos Quer dizer, eu não vou tomar esse remédio. Que ela não
empregatícios de longa duração). marcou a receita direito, não examinou nem nada. Como
Assim, a composição dos grupos foi baseada é que eu vou tomar esse remédio? Eu não posso tomar
na disponibilidade das participantes, considerando esse remédio! E eu não vou tomar [Tom de braveza]
o critério geográfico e o convite familiar, após Con- [...] (Lucélia, Grupo 3).
sentimento Livre e Informado,9 conforme aprova- Vivi relata que, nessas ocasiões, não compra
ção pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital os remédios indicados e ainda troca de médico.
das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Sirlei por sua vez, se mostra desgastada com a situ-
Preto da Universidade de São Paulo(Nº 04/05). ação que vivencia no Posto, em que toda consulta
O procedimento de coleta de dados consistiu termina com o mesmo remédio sendo prescrito.
do registro áudio-gravado e da transcrição, na Já Lucélia, revela não poder tomar os remédios
íntegra, das conversas grupais e das anotações de recomendados pela médica já que acha que não
campo realizadas ao longo de um ano de contato foi devidamente examinada, nem houve clareza
com este serviço. A fase de pré-análise consistiu na receita indicada.
de leituras sucessivas das transcrições e das anota- Nesta conversa, as participantes expressam
ções, o que permitiu a elaboração de uma narrativa que muitas vezes arriscam não tomar o remédio ou
sobre cada grupo contendo uma descrição geral não seguir uma conduta médica numa enfermida-
sobre o contexto, os principais temas discutidos, o de. Porém, ao continuarem a conversa, justificam
padrão de interação grupal, a tonalidade afetiva, tal comportamento não como falta de autocuidado
bem como o manejo da coordenadora-pesquisa- ou de responsabilidade mas, ao contrário, como ten-
dora. A análise propriamente dita, baseada no tativa de se proteger diante do que elas entendem
referencial do construcionismo social,6 gerou a como falta de cuidado do profissional de saúde
construção de eixos temáticos, sendo um deles com elas. Nestes casos elas têm como saída, para
relativo ao autocuidado, no contexto das conversas se preservarem, não aderir ao tratamento.
tanto sobre a promoção como sobre a recuperação No segundo recorte, quando o assunto em
da saúde. Os nomes utilizados para identificar as pauta é o Posto de Saúde, as participantes criticam
conversações grupais são fictícios. a forma de atendimento oferecida, o descaso com a
enfermidade dos filhos e o mau acompanhamento
RESULTADOS E DISCUSSÃO dos casos. Com isso, justificam que não aparecem
nos retornos para não terem que passar novamen-
Os três recortes aqui apresentados foram te pela situação de desconsideração, dizendo ser
extraídos de momentos conversacionais do grupo perda de tempo.
em que alguma enfermidade era tema da conversa.
[...] É perda de tempo. É perda de tempo (Cira,
Os diálogos foram, então, se desenvolvendo pela
Grupo 4).
discussão do modo como as participantes lidavam
com suas necessidades de saúde. Porque você vai lá é a mesma coisa de sempre.
“Ah, tem que esperar três quatro dias porque a febre é
Neste primeiro recorte, a discussão no grupo
normal. E eu vou lá já sei o que vão me falar. É isso que
iniciou com o relato de uma participante sobre uma
eles falam. − Daqui a quatro ou cinco dias você me traz
situação em que uma conduta médica foi tomada
ele se a febre não passar, porque pode ser uma virose. Aí
sem que, na visão dela, tivesse havido um exame
você leva num médico particular, a garganta está com
acurado sobre a queixa. As participantes conversam
[incompreensível], os ouvidos infeccionados, então é
sobre as atitudes que tomam quanto aos remédios
isso (Soraia, Grupo 4).
prescritos, diante de situações como esta.
[...] Sabe o que eles fazem? Eles falam que tem que
[...] Não compro, não compro!!! [fala brava].
deixar... uns dias pra evoluir... (Cira, Grupo 4).
Volto no outro médico [se referindo a remédios
que o médico receita sem examinar direito] (Vivi, É. Ah, dá licença [...] (Soraia, Grupo 4).
Grupo 3). Soraia se revolta com o que acredita ser um
[...] Eles te olham, você fala o que você tem e eles descaso médico, podendo resultar inclusive em
te dá. Eu já até sei o que eu vou tomar. Voltarem! Esse sérios riscos para a saúde de sua criança. As par-
Voltarem já tomou conta da minha vida. Eu falo: − Não ticipantes dizem que só vão ao Posto de Saúde em
é possível! Eu vou lá no Posto... (Sirlei, Grupo 3). questões de emergência. Elas não dão seqüência ao
tratamento indicado por não sentirem confiança
Você pensa que eu tomei o remédio que a médica
quanto às orientações dadas.
me deu? No Posto? Tá fechadinho, em casa guardado.
Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2008 Jan-Mar; 17(1): 64-71.
- 68 - Camargo-Borges C, Japur M
No terceiro e último recorte apresentado, ator social muito pouco ouvido. E nesta aproxima-
Nice conta uma situação pela qual passou no Posto ção e conversa uma outra versão de autocuidado
em que se sentiu menosprezada e desrespeitada. foi produzida. As mulheres demonstraram uma
[...] − Ah, não dá pra medir pressão num bração grande preocupação com a saúde e, justamente por
desse tamanho [profissional de saúde dizendo não ter esse motivo, decidiram não aderir a um tratamento
aparelho de medir pressão que servisse em seu bra- prescrito ou tomar um remédio que fosse orientado
ço]. Quer dizer, agora, numa comunidade como a nossa, por um profissional que não as ouviu da forma que
tem um monte de gente obesa, quer dizer, é o mínimo acreditavam ser imprescindível para uma correta
que o Posto deveria se preocupar era ter alguma coisa na compreensão de suas queixas.
medida, né? [...] Aí ele falou: − O seu problema é pressão O ambiente da consulta, de acordo com as
alta. E, me deu Voltarem. Quer dizer, Voltarem não é pra participantes, não parece contemplar um espaço
pressão alta. Então qual foi minha atitude. Eu arranquei propício ao diálogo e à escuta, limitando-se a um
a agulhinha. Então... e não tomei o Voltarem nenhum. monólogo. A paciente, ao entrar no consultório,
Então, se minha pressão estava alta, ele me desafiando tem a restrita função de dizer seus sintomas para
dessa forma, como médico ele sabe que minha pressão vai o médico dar, em seguida, o veredicto final.
subir, né? Porque eu não tive a acolhida necessária pra As conversas das mulheres nos grupos possi-
uma pessoa que está numa crise, né? Então esse tipo de bilitam ampliar um sentido bastante prevalente, o
sensibilidade também, eu acho que devia ser despertado da irresponsabilidade, segundo o qual os pacientes
no profissional de medicina [...] (Nice, Grupo 5). que não cumprem com o tratamento indicado são
A tensão pela qual Nice passou no Posto considerados irresponsáveis com sua saúde. No
de Saúde sentindo-se ofendida pelo profissional, entanto, as dificuldades mencionadas pelas parti-
pode, segundo ela, piorar sua situação de saúde. cipantes dos grupos não estavam referidas a serem
Sua atitude perante o que considerou desrespeito responsáveis ou não ao ato de se cuidar, mas sim
foi não tomar a medicação prescrita. Acredita ain- ao sentimento de insegurança por não se sentirem
da que o acolhimento e a sensibilidade são fatores compreendidas em suas queixas. Nesta ampliação
fundamentais para o trabalho em saúde dar certo de sentidos, somos convidados a pensar a questão
e que deveria haver um maior investimento nos do autocuidado em um contexto mais complexo,
“profissionais da medicina” para essas questões. da relação entre sistema de saúde, profissionais e
Estes recortes explicitam momentos das con- pacientes envolvidos, deixando assim de ser um
versas grupais em que as participantes falavam problema de (falta de) responsabilidade individu-
preocupadas sobre o que consideram uma falta de al, apenas da parte dos pacientes, como vem sendo
cuidado por parte dos profissionais de saúde − uma mais freqüentemente descrito.
não escuta médica, que elas entendem que gera É interessante refletir que, apesar das parti-
exames mal realizados e consequentemente uma cipantes relatarem que não concordavam com a
prescrição mal feita. Encontram como solução pos- conduta médica, elas permaneceram em silêncio,
sível neste momento, como forma de se protegerem, sem questionarem a conduta perante o profissional.
como forma de autocuidado e cuidado com sua A problematização e a dúvida se dão entre elas, em
família não aderir às prescrições do profissional. suas casas, com a família; mas não com o médico,
que por sua vez, acredita que foi bem compreen-
dido/aceito em sua conduta e prescrição. Ele não
Ampliando os sentidos de autocuidado
pode entender a não adesão ao tratamento indi-
As conversas grupais apresentadas desmisti- cado, senão como irresponsabilidade do paciente.
ficam a idéia, muito difundida, de uma população Pelo silenciamento, o profissional é levado a crer
assistida pelo SUS como sendo eminentemente ig- que o problema está no descuido por parte da pa-
norante ou resistente às prescrições e ao tratamen- ciente, faltando a ele assumir seu autocuidado.
to em saúde. Essa população “SUS-dependente”, Mas Nice reage diante do profissional não
como tem sido chamada, que não assume o auto- se deixando medicar. Uma possível compreensão
cuidado − por não seguirem as “ordens médicas” desta reação diferenciada é pensar que ela é uma
− é identificada, muitas vezes, como necessitando usuária com formação universitária, na área da
de mais programas de educação em saúde. saúde. Desta forma, a relação que estabelece com o
A aproximação a essa população, através des- profissional de saúde acaba sendo menos vertical,
sas conversas grupais com a comunidade, a escuta inclusive por ela possuir conhecimento acerca da
às suas histórias de vida, permitiu dar voz a este medicação prescrita.