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Sobre a (não) adesão ao tratamento: ampliando sentidos


do autocuidado
CONCERNING (noN) ADHERENCE to treatment: amplifying SELF-CARE meanings
SOBRE LA (NO) ADOPCIÓN DEL TRATAMIENTO: AMPLIANDO LOS SENTIDOS DEL AUTO-
CUIDADO

Celiane Camargo-Borges1, Marisa Japur2

1
Psicóloga. Doutora em Enfermagem em Saúde Pública. Diretora do Centro de Desenvolvimento e Qualificação para o Sistema
Único de Saúde do Departamento Regional de Saúde de Araraquara. São Paulo, Brasil.
2
Psicóloga. Mediadora e Consultora do ConversAções Familiares, Ribeirão Preto. Docente aposentada do Departamento
de Psicologia e Educação da Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto. São
Paulo, Brasil.

PALA V RA S - C H A V E : RESUMO: Novos discursos no contexto do Sistema Único de Saúde têm demandado um olhar crítico
Autocuidado. Processos sobre o autocuidado. Este é um estudo de caráter qualitativo baseado teórico-metodologicamente
grupais. Atenção primária no construcionismo social. O objetivo foi descrever sentidos de autocuidado produzidos em grupos
à saúde. comunitários num contexto da Estratégia de Saúde da Família. A coleta de dados se deu durante o ano
de 2001, totalizando 28 participantes na faixa etária de 50 anos, aproximadamente. As conversas foram
gravadas, transcritas e analisadas dando visibilidade às versões de autocuidado. A análise dos dados,
utilizando o referencial do construcionismo social, permitiu ampliar os sentidos de autocuidado em
referência à adesão ao tratamento, favorecendo uma reflexão sobre sua complexidade e as necessidades
mais amplas que vão além da adesão a um medicamento prescrito. Diálogo e foco na relação são
apresentados como recursos transformativos das práticas de cuidado e autocuidado, possibilitando a
construção de ações numa perspectiva mais integral e co-responsável.

KEYWORDS: Self care. ABSTRACT: New discourses about healthcare in the context of the Unified Healthcare System have
Group processes. Primary demanded a more critical view of self-care. This is a qualitative study with its theoretical background
health care. based on social constructionism theory. The objective was to describe meanings of self-care constructed
in community groups which are part of the Family Healthcare Program in Brazil. The data collection
occurred during 2001, totaling 28 participants with an average age of 50 years old. The conversations were
recorded, transcribed, and analyzed, giving visibility to their versions of self-care. The analysis, based on
social construction, amplified these meanings of self-care, enhancing reflection about their complexity and
broadening necessities, which go beyond simple adherence to a prescribed medication. Dialogue and the
focus on relationships are presented as transformative resources for the practices of care and self-care,
making possible the construction of actions in a perspective of integrality and co-responsibility.

PALABRA S CLA V E : RESUMEN: Los nuevos discursos en el contexto del Sistema Unificado de Salud han exigido una
Autocuidado. Procesos de mirada más crítica sobre el auto-cuidado. Este es un estudio de carácter cualitativo, basado teórica
grupo. Atención primaria y metodológicamente en el construccionismo social. Su objetivo es describir los sentidos del auto-
de salud. cuidado producidos en grupos comunitarios en el contexto de la Estrategia de la Salud de la Familia.
Los datos fueron recolectados durante el año 2001, totalizando 28 participantes con 50 años de edad,
aproximadamente. Las conversaciones fueron grabadas, transcritas y analizadas dando visibilidad a las
versiones del auto-cuidado. El análisis, basado en una perspectiva construccionista, permitió ampliar
los sentidos del auto-cuidado, favoreciendo una reflexión sobre su complejidad, señalando necesidades
más amplias, diferentes de la adopción de un medicamento prescrito. Diálogo y foco en la relación son
presentados como recursos transformadores de las prácticas de cuidado y auto-cuidado, los cuales
posibilitan la construcción de acciones dentro de una perspectiva más integral y co-responsable.

Celiane Camargo-Borges Artigo original: Pesquisa


Endereço: R. Abrão Caixe, 786, Ap. 21 Recebido em: 18 de maio de 2007
14.020-630 - Jardim Irajá, Ribeirão Preto, SP, Brasil. Aprovação final: 11 de janeiro de 2008
Email: celianeborges@gmail.com

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INTRODUÇÃO participação − vai evidenciando o esgotamento


dos modelos de atenção tradicionalmente dis-
A Saúde Pública Brasileira contemporânea
poníveis e criando necessidades urgentes de
vem se conformando no esforço de construir um
mudanças quanto à organização do serviço e das
Sistema Único de Saúde (SUS) atendendo aos seus
práticas nele desenvolvidas.
princípios e diretrizes estabelecidos e garantidos
pela Constituição de 1988 e posteriormente regu- A fragilidade deste processo de mudança é
lamentados em lei.1 evidente, indicando uma “[...] inconsistência teó-
rico-conceitual presente em nosso cenário [...]”,3:118
Em quase 20 anos de SUS, um impacto visível
que não permite a sustentação destas mudanças.
se deu na ampliação do acesso a serviços de saúde
em todo o País. Segundo dados da Organização A transformação necessária ao processo de
Pan-americana de Saúde,2 mesmo com todas as trabalho trazida pelo investimento na Atenção
dificuldades ainda presentes principalmente nas Primária à Saúde configura-se como um marco
áreas rurais, há uma cobertura quase que completa que transpõe a discussão dos recursos humanos
da atenção básica em todo o País. A disponibilida- na saúde para o primeiro plano. Com isso uma
de de serviços de saúde e de profissionais tem cres- maior visibilidade passa a ser dada para questões
cido, as hospitalizações têm diminuído, o acesso como o cuidado e a interação entre os atores sociais
a medicamentos tem sido facilitado e os sistemas envolvidos neste processo.3
em saúde têm sido informatizados, permitindo No entanto, para a construção dessas novas
maior eficácia epidemiológica e também na or- práticas propostas no Sistema de Saúde em geral,
ganização dos serviços. Dentre as dificuldades, é fundamental uma desconstrução teórica desses
destaca-se principalmente a exclusão social, a falta sentidos marcados pelo tecnicismo capitalista.
de equipamentos tecnológicos e alguns serviços Nesta perspectiva o cuidado pode ser visto como
especializados que não são disponíveis. uma “potencialidade reconciliadora”, um eixo
Porém, uma questão ainda muito pouco restaurador de valorização dessas práticas. No
discutida e avaliada são as pessoas que compõe entanto, nesta perspectiva capitalista, o cuidado em
este sistema, cujas (inter)ações constroem (ou não) saúde é tomado como um conjunto de procedimen-
todos estes princípios e diretrizes do SUS influen- tos técnicos que devem ser utilizados para o bom
ciando ativamente no processo saúde-doença- tratamento de um paciente. Procedimentos estes
cuidado. Trabalhadores de saúde e usuários são que falam muito de tecnologia e pouco de arte, não
pouco mencionados nesses dados. Mesmo que considerando um espectro muito maior da vida,
contemporaneamente esteja se buscando um en- além da simples abordagem biomédica costumei-
tendimento ampliado da atenção à saúde − englo- ramente abordada numa ação em saúde.4
bando, além das questões biológicas, a qualidade O cuidado é um conceito longinquamente
de vida, as questões sociais, históricas, econômicas tratado e que foi reapropriado no capitalismo
e ambientais − sua lógica tem sido difícil mudar. como importante categoria. Entretanto, esta apro-
As discussões que se pretendem ampliadas, tratam priação se deu, dentro deste contexto capitalista
destas questões ainda dentro de um saber tradi- tomando-o como intervenção normativa e regu-
cional, trazendo eminentemente pontos técnicos ladora dos corpos adoecidos para que voltassem
a serem desenvolvidos, dentro de uma interação a produzir na sociedade, ou seja, entendido sob
hierarquizada e numa perspectiva de alguém que uma moralidade higiênica.4
tem o conhecimento (profissional da saúde) infor- Portanto, é necessário um resgate filosófico
mando quem não o tem (comunidade). e uma problematização do conceito para que haja
Com o processo de reestruturação dos mode- um giro paradigmático que liberte o cuidado dos
los assistenciais, valorizando e apostando na lógica saberes e fazeres que compõem a visão capitalista
da Atenção Primária à Saúde principalmente, na contemporânea da saúde. Assim sendo, gera-se
Estratégia de Saúde da Família (ESF), as práticas tra- potencialmente uma possibilidade de reconstru-
dicionais não têm se sustentado e passa a ser central ção da atenção à saúde articulando o cuidado às
o debate sobre a necessidade de revisão destas.3 práticas assistenciais à vida.4
A forma de organização do trabalho que a A prática e o cuidado à saúde podem e de-
ESF requer − privilegiando o trabalho em equipe, vem ser uma atividade fim e primordial. Desta
a integralidade, o vínculo com a comunidade, a forma envolve uma variedade de aspectos a se
abordagem familiar, a co-responsabilidade e a considerar: o aspecto da arte que trata da criati-
vidade e da estética na saúde, o aspecto ético que
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envolve respeito e compreensão entre os atores importância da construção de sentidos e a sua va-
sociais envolvidos e o aspecto da ciência que tra- lorização na produção do cotidiano social.6 Nesta
ta do conhecimento e da pesquisa necessários às perspectiva, a linguagem tem um caráter funda-
intervenções em saúde.5 mental, tomada como prática social − linguagem
Nesta perspectiva, cuidado significa a busca em uso, sendo analisada tanto em seu aspecto per-
de assimilação criativa de tudo que possa ocorrer formático como em seu espaço e contexto de uso.
na vida, compromissos e trabalhos, encontros Esta concepção convida a outras maneiras
significativos e crises existenciais, sucessos e de conversar sobre um mesmo assunto, gerando
fracassos, saúde e sofrimentos, que são processos posições alternativas frente a um problema, o que,
permanentes de aprendizado e necessitam de através de outras performances, possibilita a criação
espaços de reflexão e atenção.5 de outros sentidos, de outras realidades sociais.7
Como visto, vários autores têm problematiza- Se a linguagem é ação no mundo, a mudança
do a questão do cuidado na perspectiva da saúde narrativa é uma mudança que ocorre não somente
ampliada. Um aspecto do cuidado que também se nas palavras, mas também nas ações. Nessa pers-
reconfigura e ganha destaque nesse novo contexto pectiva, à medida que se conversa, novos sentidos
é o autocuidado. Ao trazer o foco para o usuário e significados podem ser gerados e, portanto,
deste sistema, empoderando-o dentro do processo juntas, as pessoas têm a possibilidade de criar
transformativo da atenção em saúde, agora a res- novas formas de se relacionar e de estar no mun-
ponsabilidade do paciente de saber de si e de seu do, re-significando antigos discursos e criando
tratamento passa a ser considerada fundamental. novos. Assim, esta perspectiva combate uma visão
Com a ampliação do acesso aos serviços de naturalizada das coisas, enfatizando a construção
saúde e aos trabalhadores de saúde, a culpabi- de sentido nas interações. O cuidado em saúde,
lização pelos fracassos nos cuidados em saúde portanto, é considerado uma prática social, e este
pode mudar de lado. O que antes era culpa do estudo tem o esforço de dar visibilidade a isto,
sistema, pela falta de profissionais e de serviços problematizando a questão do autocuidado.
disponíveis, passa a ser culpa do usuário se, ao O processo conversacional tomado como
ter acesso, não assume o autocuidado seguindo o foco neste trabalho, foi objeto de uma pesquisa
tratamento indicado. de mestrado que teve como objetivo gerar uma
No entanto, também há de se problematizar discussão em grupo com uma comunidade acerca
o autocuidado na mesma perspectiva do cuidado. de sentidos sobre o processo saúde/doença.8 Os
Há que se levar em conta a complexidade da re- grupos foram coordenados pela primeira autora
alidade local e do cotidiano popular que faz das que inseriu ativamente três temas na conversação:
práticas de autocuidado algo mais complexo do o que é estar com saúde, o que é estar doente, o
que a simples adesão a um tratamento prescrito. que é cuidar da saúde. Eles foram realizados em
uma comunidade alvo da ESF que tem uma área
de abrangência de 1300 famílias de um bairro de
OBJETIVO classe média baixa, de uma cidade de grande porte
A proposta deste estudo é problematizar no interior do estado de São Paulo.
a questão do autocuidado, complexificando seu Foram realizados cinco grupos comunitá-
entendimento dentro do sistema de saúde e de- rios, cada um deles reunindo moradores de uma
bruçando um olhar mais crítico sobre a tarefa do mesma rua, em cinco ruas diferentes, escolhidas
cuidar de si mesmo. Assim, seu objetivo é des- por critério geográfico dentro da área de abran-
crever sentidos de autocuidado produzidos em gência do serviço. Eles foram de sessão única,
conversações grupais com grupos comunitários, com duração de cerca de uma hora e quinze mi-
realizados num contexto da ESF, explicitando as nutos, com cinco a nove participantes cada um,
múltiplas versões que aí se produziram. totalizando 28 participantes na pesquisa. Apesar
do convite para participação ter sido dirigido às
MÉTODO famílias durante visita da pesquisadora às casas,
os grupos foram compostos apenas por mulheres
Este estudo foi de caráter qualitativo e teve (idade média de 50 anos) e bastante heterogêneos
como base teórico-metodológica o construcionis- com relação às características sócio-demográficas
mo social, no contexto histórico da necessidade de (casadas, separadas e solteiras; desde analfabetas
outros pressupostos e premissas que sustentem a até universitárias; com atividades domésticas e/

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ou autônomas pouco qualificadas e com vínculos Quer dizer, eu não vou tomar esse remédio. Que ela não
empregatícios de longa duração). marcou a receita direito, não examinou nem nada. Como
Assim, a composição dos grupos foi baseada é que eu vou tomar esse remédio? Eu não posso tomar
na disponibilidade das participantes, considerando esse remédio! E eu não vou tomar [Tom de braveza]
o critério geográfico e o convite familiar, após Con- [...] (Lucélia, Grupo 3).
sentimento Livre e Informado,9 conforme aprova- Vivi relata que, nessas ocasiões, não compra
ção pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital os remédios indicados e ainda troca de médico.
das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Sirlei por sua vez, se mostra desgastada com a situ-
Preto da Universidade de São Paulo(Nº 04/05). ação que vivencia no Posto, em que toda consulta
O procedimento de coleta de dados consistiu termina com o mesmo remédio sendo prescrito.
do registro áudio-gravado e da transcrição, na Já Lucélia, revela não poder tomar os remédios
íntegra, das conversas grupais e das anotações de recomendados pela médica já que acha que não
campo realizadas ao longo de um ano de contato foi devidamente examinada, nem houve clareza
com este serviço. A fase de pré-análise consistiu na receita indicada.
de leituras sucessivas das transcrições e das anota- Nesta conversa, as participantes expressam
ções, o que permitiu a elaboração de uma narrativa que muitas vezes arriscam não tomar o remédio ou
sobre cada grupo contendo uma descrição geral não seguir uma conduta médica numa enfermida-
sobre o contexto, os principais temas discutidos, o de. Porém, ao continuarem a conversa, justificam
padrão de interação grupal, a tonalidade afetiva, tal comportamento não como falta de autocuidado
bem como o manejo da coordenadora-pesquisa- ou de responsabilidade mas, ao contrário, como ten-
dora. A análise propriamente dita, baseada no tativa de se proteger diante do que elas entendem
referencial do construcionismo social,6 gerou a como falta de cuidado do profissional de saúde
construção de eixos temáticos, sendo um deles com elas. Nestes casos elas têm como saída, para
relativo ao autocuidado, no contexto das conversas se preservarem, não aderir ao tratamento.
tanto sobre a promoção como sobre a recuperação No segundo recorte, quando o assunto em
da saúde. Os nomes utilizados para identificar as pauta é o Posto de Saúde, as participantes criticam
conversações grupais são fictícios. a forma de atendimento oferecida, o descaso com a
enfermidade dos filhos e o mau acompanhamento
RESULTADOS E DISCUSSÃO dos casos. Com isso, justificam que não aparecem
nos retornos para não terem que passar novamen-
Os três recortes aqui apresentados foram te pela situação de desconsideração, dizendo ser
extraídos de momentos conversacionais do grupo perda de tempo.
em que alguma enfermidade era tema da conversa.
[...] É perda de tempo. É perda de tempo (Cira,
Os diálogos foram, então, se desenvolvendo pela
Grupo 4).
discussão do modo como as participantes lidavam
com suas necessidades de saúde. Porque você vai lá é a mesma coisa de sempre.
“Ah, tem que esperar três quatro dias porque a febre é
Neste primeiro recorte, a discussão no grupo
normal. E eu vou lá já sei o que vão me falar. É isso que
iniciou com o relato de uma participante sobre uma
eles falam. − Daqui a quatro ou cinco dias você me traz
situação em que uma conduta médica foi tomada
ele se a febre não passar, porque pode ser uma virose. Aí
sem que, na visão dela, tivesse havido um exame
você leva num médico particular, a garganta está com
acurado sobre a queixa. As participantes conversam
[incompreensível], os ouvidos infeccionados, então é
sobre as atitudes que tomam quanto aos remédios
isso (Soraia, Grupo 4).
prescritos, diante de situações como esta.
[...] Sabe o que eles fazem? Eles falam que tem que
[...] Não compro, não compro!!! [fala brava].
deixar... uns dias pra evoluir... (Cira, Grupo 4).
Volto no outro médico [se referindo a remédios
que o médico receita sem examinar direito] (Vivi, É. Ah, dá licença [...] (Soraia, Grupo 4).
Grupo 3). Soraia se revolta com o que acredita ser um
[...] Eles te olham, você fala o que você tem e eles descaso médico, podendo resultar inclusive em
te dá. Eu já até sei o que eu vou tomar. Voltarem! Esse sérios riscos para a saúde de sua criança. As par-
Voltarem já tomou conta da minha vida. Eu falo: − Não ticipantes dizem que só vão ao Posto de Saúde em
é possível! Eu vou lá no Posto... (Sirlei, Grupo 3). questões de emergência. Elas não dão seqüência ao
tratamento indicado por não sentirem confiança
Você pensa que eu tomei o remédio que a médica
quanto às orientações dadas.
me deu? No Posto? Tá fechadinho, em casa guardado.
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No terceiro e último recorte apresentado, ator social muito pouco ouvido. E nesta aproxima-
Nice conta uma situação pela qual passou no Posto ção e conversa uma outra versão de autocuidado
em que se sentiu menosprezada e desrespeitada. foi produzida. As mulheres demonstraram uma
[...] − Ah, não dá pra medir pressão num bração grande preocupação com a saúde e, justamente por
desse tamanho [profissional de saúde dizendo não ter esse motivo, decidiram não aderir a um tratamento
aparelho de medir pressão que servisse em seu bra- prescrito ou tomar um remédio que fosse orientado
ço]. Quer dizer, agora, numa comunidade como a nossa, por um profissional que não as ouviu da forma que
tem um monte de gente obesa, quer dizer, é o mínimo acreditavam ser imprescindível para uma correta
que o Posto deveria se preocupar era ter alguma coisa na compreensão de suas queixas.
medida, né? [...] Aí ele falou: − O seu problema é pressão O ambiente da consulta, de acordo com as
alta. E, me deu Voltarem. Quer dizer, Voltarem não é pra participantes, não parece contemplar um espaço
pressão alta. Então qual foi minha atitude. Eu arranquei propício ao diálogo e à escuta, limitando-se a um
a agulhinha. Então... e não tomei o Voltarem nenhum. monólogo. A paciente, ao entrar no consultório,
Então, se minha pressão estava alta, ele me desafiando tem a restrita função de dizer seus sintomas para
dessa forma, como médico ele sabe que minha pressão vai o médico dar, em seguida, o veredicto final.
subir, né? Porque eu não tive a acolhida necessária pra As conversas das mulheres nos grupos possi-
uma pessoa que está numa crise, né? Então esse tipo de bilitam ampliar um sentido bastante prevalente, o
sensibilidade também, eu acho que devia ser despertado da irresponsabilidade, segundo o qual os pacientes
no profissional de medicina [...] (Nice, Grupo 5). que não cumprem com o tratamento indicado são
A tensão pela qual Nice passou no Posto considerados irresponsáveis com sua saúde. No
de Saúde sentindo-se ofendida pelo profissional, entanto, as dificuldades mencionadas pelas parti-
pode, segundo ela, piorar sua situação de saúde. cipantes dos grupos não estavam referidas a serem
Sua atitude perante o que considerou desrespeito responsáveis ou não ao ato de se cuidar, mas sim
foi não tomar a medicação prescrita. Acredita ain- ao sentimento de insegurança por não se sentirem
da que o acolhimento e a sensibilidade são fatores compreendidas em suas queixas. Nesta ampliação
fundamentais para o trabalho em saúde dar certo de sentidos, somos convidados a pensar a questão
e que deveria haver um maior investimento nos do autocuidado em um contexto mais complexo,
“profissionais da medicina” para essas questões. da relação entre sistema de saúde, profissionais e
Estes recortes explicitam momentos das con- pacientes envolvidos, deixando assim de ser um
versas grupais em que as participantes falavam problema de (falta de) responsabilidade individu-
preocupadas sobre o que consideram uma falta de al, apenas da parte dos pacientes, como vem sendo
cuidado por parte dos profissionais de saúde − uma mais freqüentemente descrito.
não escuta médica, que elas entendem que gera É interessante refletir que, apesar das parti-
exames mal realizados e consequentemente uma cipantes relatarem que não concordavam com a
prescrição mal feita. Encontram como solução pos- conduta médica, elas permaneceram em silêncio,
sível neste momento, como forma de se protegerem, sem questionarem a conduta perante o profissional.
como forma de autocuidado e cuidado com sua A problematização e a dúvida se dão entre elas, em
família não aderir às prescrições do profissional. suas casas, com a família; mas não com o médico,
que por sua vez, acredita que foi bem compreen-
dido/aceito em sua conduta e prescrição. Ele não
Ampliando os sentidos de autocuidado
pode entender a não adesão ao tratamento indi-
As conversas grupais apresentadas desmisti- cado, senão como irresponsabilidade do paciente.
ficam a idéia, muito difundida, de uma população Pelo silenciamento, o profissional é levado a crer
assistida pelo SUS como sendo eminentemente ig- que o problema está no descuido por parte da pa-
norante ou resistente às prescrições e ao tratamen- ciente, faltando a ele assumir seu autocuidado.
to em saúde. Essa população “SUS-dependente”, Mas Nice reage diante do profissional não
como tem sido chamada, que não assume o auto- se deixando medicar. Uma possível compreensão
cuidado − por não seguirem as “ordens médicas” desta reação diferenciada é pensar que ela é uma
− é identificada, muitas vezes, como necessitando usuária com formação universitária, na área da
de mais programas de educação em saúde. saúde. Desta forma, a relação que estabelece com o
A aproximação a essa população, através des- profissional de saúde acaba sendo menos vertical,
sas conversas grupais com a comunidade, a escuta inclusive por ela possuir conhecimento acerca da
às suas histórias de vida, permitiu dar voz a este medicação prescrita.

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Assim, vemos a questão da não-adesão se já que vivemos em um cenário mercadológico da


deslocar de algo que o paciente faz sozinho e, saúde que acaba por torná-lo seletivo e excludente,
portanto é responsável por isto, para algo que o sendo somente uma privilegiada camada popu-
paciente faz em sua relação com o momento inte- lacional contemplada, comprometendo assim os
rativo do encontro trabalhadores de saúde e usu- princípios do SUS e a qualidade da atenção pres-
ários. De acordo com este entendimento, podemos tada.11 Para que uma efetiva mudança ocorra neste
então considerar a possibilidade da construção de cenário é necessário que novas práticas de atenção
intervenções com uma qualidade interativa que e gestão à saúde sejam redimensionadas, numa
possa favorecer práticas de autocuidado. lógica mais democrática e participativa.11
O acesso ao profissional de saúde também
O diálogo e o cuidado com a relação: recursos é questão fundamental, especialmente ao médi-
transformativos das práticas de autocuidado co no momento da consulta, para que se tenha
espaço de escuta e diálogo das queixas, dúvidas
Dentro do processo de reestruturação das e angústias e haja possibilidade de negociação
práticas de saúde e da ampliação do entendimento de qual tratamento é o mais proveitoso para o
do processo saúde-doença, o autocuidado requer paciente, considerando não somente sua situação
mais do que simplesmente a apreensão do conhe- orgânica, mas também o seu contexto cotidiano.
cimento técnico, legal e normativo. Esta compreen- Assim, o diálogo se configura como recurso de
são da dimensão do autocuidado aborda questões acesso importante nesse panorama.
mais complexas e necessita uma construção de
Outra dimensão possível nesta configuração
competências por parte dos profissionais.3
é o acesso como possibilidade de acolhimento.
Este entendimento sugere que, na questão Acolhimento e acesso podem ser vistos como parte
do cuidado, não basta os profissionais, detentores do mesmo processo, condizentes com um modelo
da informação, oferecê-la ao paciente e sua ade- de assistência que enfatiza o cuidado como algo da
são à saúde ocorrerá (ou não) na dependência do ordem da pessoalidade e da relação, valorizando
compromisso deste com sua saúde. Nossa análise mais as necessidades humanas do que as norma-
sugere que a promoção do cuidado em saúde é da tizações e burocracias de um serviço.12
ordem do relacional.
Traduz-se, assim, pela qualidade do processo
A Enfermagem é uma disciplina que tem relacional entre o trabalhador de saúde e o usuá-
dado especial atenção às questões do cuidado arti- rio, um processo que possibilite a construção do
culado às (inter) relações na saúde. Por adotar um vínculo em direção à co-responsabilização pelos
modelo mais humanístico, a enfermagem já vem cuidados em saúde. O usuário, ao ser recebido por
fazendo esta reflexão na busca de uma abordagem um trabalhador no serviço e ter suas demandas
mais humanista e menos tecnicista do processo acolhidas, podendo daí desencadear diversas
de cuidar. O autocuidado do próprio profissional formas de resolução do problema apresentado,
de saúde tem sido tomado como um fator fun- está sendo contemplado no acesso, recebendo uma
damental na construção dessas competências. O assistência mais humanizada.
cuidar de si como condição para o cuidar do ou-
O acolhimento, nesta perspectiva, passa a ser
tro, conforma uma prática mais integralizadora e
um recurso privilegiado de acesso à saúde, a possi-
de co-participação entre profissionais de saúde e
bilidade de uma nova prática que perpassa todo o
pacientes ao processo do cuidar.10
processo de assistência, desde a recepção do usuário,
Outro aspecto importante a ser considerado seu atendimento clínico – individual ou coletivo –
como possibilidade de pensar o cuidado na sua di- até sua alta ou encaminhamento para outros níveis
mensão relacional é a questão do acesso ao sistema de atenção. Cada momento deste trajeto, no entanto,
de saúde, compreendido em uma configuração ocorre permeado de sinuosidades tensionais, fruto
mais contemporânea. Tomando a saúde como um do jogo de interesses dos atores envolvidos, que ne-
bem público, o acesso tem seu entendimento am- gociam suas demandas, necessidades e ofertas.13
pliado, configurando-se como direito de cidadania.
Nesta lógica do acolhimento, o encontro tra-
Assim, o conceito de acesso se refere não somente
balhador de saúde e usuário deve ser de diálogo
às estruturas físicas de atendimento ao usuário,
permanente, para que os pontos de tensões pos-
mas também acesso a esse bem público.11
sam se tornar férteis resultando num processo de
No entanto, o acesso a partir desta aborda- tomada de decisões coletivas, favorecendo assim
gem é bastante complexo de se fazer implementar, o cuidado e o autocuidado.13
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O acesso à saúde e seus desdobramentos, desprovido de saber, com o intuito de educá-lo


como visto, caracteriza-se por um conjunto de fa- para um melhor comportamento em saúde. Com
tores de variadas dimensões envolvendo aspectos isso não se está negando o discurso científico dos
mais ampliados do que exclusivamente serviços profissionais de saúde do que vem a ser conside-
de saúde ou seus recursos tecnológicos.14 rado saúde e doença. O que está se enfatizando
Pensar a não-adesão como uma forma de au- é a necessidade da interlocução, para que haja
tocuidado, e não como falta de compromisso com viabilidade na proposta de um novo paradigma
a saúde, possibilita reconhecer o usuário como um em Saúde Pública, em que ações conjuntas entre
aliado na luta pela promoção da saúde nas comu- profissionais e população rompam com a tradicio-
nidades. Por outro lado, implica também repensar nal hierarquia rígida nas relações de saber/poder,
a forma como essas pessoas têm sido abordadas legitimando assim, outras descrições de vivências
em suas necessidades de saúde, situações que de saúde/doença.
requerem o entendimento mútuo do que é impor- Dentro da perspectiva construcionista social,
tante e necessário num tratamento e nos cuidados que embasou este estudo, a atenção em saúde é
à saúde, para que possa haver a possibilidade de vista como uma prática social inserida em um
co-responsabilização pelos cuidados. contexto histórico e cultural, e cujos sentidos são
A lógica engessada e autoritária de atenção permanentemente (re)construídos nessas intera-
à saúde contribui para que o usuário seja um ções entre profissionais e comunidade, imersos
mero depositário dos problemas que somente em universos de significação mais amplos já
serão reconhecidos dentro do que é legitimado disponíveis, como por exemplo, o das políticas
no modelo médico. A intervenção na saúde, da gerais de saúde.
forma estruturada e previsível como está organi- Para o construcionismo social, práticas de
zada, não dá espaço para a relação trabalhador de autocuidado são entendidas como construções
saúde-usuário acabando por conservar nas mãos conversacionais produzidas nas relações entre as
dos profissionais a definição do que se enquadra pessoas. Nesta perspectiva, estas práticas podem
como problema de saúde e o que não deve ser se apresentar das mais diversas maneiras, só
considerado como tal.15 podendo, no entanto serem reconhecidas e signi-
“Este quadro tem estado presente cotidiana- ficadas como tal, dentro das relações.
mente na vida das instituições de saúde, no Brasil, A interação, assim compreendida, é uma fer-
e tem se expressado não só na total insegurança da ramenta potencial para contextualização das ações,
clientela no tipo de atendimento do qual muitas possibilitando a compreensão das necessidades e
vezes está sendo vítima, mas também na profun- demandas locais e a co-construção de alternativas
da crise de realização humana e profissional do viáveis para solucioná-las. Alternativas que pos-
conjunto dos trabalhadores do setor saúde”.15:123 sam ser acordadas e que construam um processo
Nesta citação, percebemos que a situação é mais de trabalho em saúde comum entre usuários e
complexa e não se limita a falar de um profissional profissionais.
algoz versus um usuário vítima da situação. A Essas reflexões aqui produzidas não têm o
forma com que as práticas em saúde foram se cons- intuito de negar os avanços que têm ocorrido desde
tituindo e, conseqüentemente, sendo legitimadas a reforma sanitária e principalmente com a regula-
acabou por enrijecer a relação de cuidado na saúde mentação do SUS. O que se quer com elas é pôr em
trazendo insatisfações de todos os lados. relevo a importância que essas questões discutidas
A relação engessada pelas hierarquias não possuem para a efetiva consolidação de um modelo
contribui para a transformação do paradigma da de atenção em saúde comprometido com a vida.
saúde. Para que o encontro profissional de saúde Abrir espaços de produção de diálogo junto
e paciente possibilite a compreensão do para à comunidade, de reflexão, problematização, pos-
quê serve uma conduta específica do médico é sibilita a construção de uma relação de co-respon-
importante ter em conta a posição que o paciente sabilidade favorecendo formas mais humanas e
assume frente a ela. efetivas do processo de trabalho em saúde – tanto
Assim, incorporar a conversa como recurso para os usuários, como para os profissionais –
de cuidado em saúde passa por uma crítica à forma promovendo assim a construção de um fazer em
tradicional de conversar nessa relação – um profis- saúde, não meramente técnico, mas comprometido
sional detentor de saber falando para um usuário com o projeto democrático do SUS.

Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2008 Jan-Mar; 17(1): 64-71.


Sobre a (não) adesão ao tratamento: ampliando sentidos... - 71 -

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Texto Contexto Enferm, Florianópolis, 2008 Jan-Mar; 17(1): 64-71.

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