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Trajetórias política e religiosa de mulheres de terreiro:

saberes ancestrais femininos e a filosofia das religiões de


matriz africana
BEATRIZ RICARTE SANTOS*
ADILBÊNIA FREIRE MACHADO**

Resumo: Este trabalho tem o intuito de dialogar com a filosofia africana contemporânea por
intermédio dos saberes ancestrais femininos, delineados pela trajetória política de mulheres
africanas e afrodescendentes e expressos na religiosidade de matriz africana. Trazemos estes
recortes para explicitar a maneira particular de como se articula a identidade da mulher de terreiro,
assim como o encantamento potencializador de sua maneira de ser e estar no mundo, cuja atuação
estrutura-se a partir de um conjunto de fatores que dialoga diretamente com a espiritualidade
presente na religiosidade de matriz africana, e dela depende para que seja implementada qualquer
ação em quaisquer âmbitos de sua vida.
Palavras-chave: Filosofia Africana; Trajetória Política; Religiosidade de Matriz Africana;
Identidade da Mulher de Terreiro.
Political and religious trajectories of women in terreiro: female ancestral knowledge and
the philosophy of african-based religions
Abstract: This work aims to dialogue with contemporary African philosophy through female
ancestral knowledge, outlined by the political trajectory of African and Afro-descendant women
and expressed in African-based religiosity. We bring these clippings to explain the particular way
in which the identity of the woman of the terreiro is articulated, as well as the enchantment that
enhances her way of being in the world, whose performance and structure isbased on a set of
factors that dialog directly with the spirituality present in religiosity of African origin, and
depends on it for any action to be implemented in any areas of its life.
Key words: African Philosophy; Political Trajectory; African Matrix Religiosity; Identity of the
Terreiro Woman.

*
BEATRIZ RICARTE SANTOS é Mestra em Educação Brasileira (UFC), licenciada em
Pedagogia (UECE).

**
ADILBÊNIA FREIRE MACHADO é Doutora em Educação Brasileira (UFC), Mestra em
Educação (UFBA), Bacharela e Licenciada em Filosofia (UECE).

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Introdução (GONZALEZ, 2008). Esse modelo
societário tem como consequência a
Este texto intenta elaborar um diálogo marginalização, o silenciamento e a
entre a filosofia africana contemporânea segregação racial, social e de gênero.
e a trajetória política e afro-religiosa das
mulheres de terreiro por intermédio de Em se tratando de formas estruturais de
investigações teóricas, bem como de opressão e exploração, torna-se
experiências a respeito dos saberes fundamental que se empreenda diálogo
ancestrais femininos inerentes à com a maneira como se organizam
ambiência das religiões de matriz politicamente as mulheres de terreiro,
africana. Assim posto, trazemos a mulheres negras em sua maioria, que
afrodescendência como principal recorte trazem consigo um histórico que as
identitário na discussão proposta, uma configuraram como o sustentáculo de
vez que a atuação da mulher de terreiro sua família, da comunidade com a qual
na sociedade estrutura-se a partir de um convivem, bem como das mulheres
conjunto de fatores que dialoga brancas, que tiveram mulheres negras
diretamente com a espiritualidade trabalhando em suas casas para que
presente na religiosidade de matriz pudessem sair e integrarem-se ao
africana, e dela depende para que seja mercado de trabalho, e da consolidação
implementada qualquer ação em econômica do país. Torna-se relevante,
quaisquer âmbitos de sua vida. É portanto, apontar que o trabalho das
entrelaçada, portanto, à Filosofia da mulheres negras há muito tem
Ancestralidade, perpassando o modo de significado a emancipação das mulheres
ser/estar no mundo, pois brancas em detrimento da sua e a
a ancestralidade acontece num reprodução das condições de
processo contínuo de desigualdades às quais é submetida a
acontecimentos, renova-se a cada população negra.
instante, ligando e religando passado
e presente, possibilitando um futuro, O trabalho das mulheres negras, nesse
melhor! Conectando o visível e o sentido, tem representado a
invisível, espalhando-se entre os possibilidade, para as mulheres brancas,
africanos e, especialmente, entre os de ascenderem no mercado de trabalho e
filhos das diásporas que, enraizados consolidarem sua identidade feminina
em suas culturas, ultrapassam o como aspecto que não se atrela somente
tempo, reconhecem sua origem e
às atividades relativas ao lar, enquanto às
encantam-se. (MACHADO;
MATOS, 2016, p. 217).
mulheres negras, não é dada essa
oportunidade. As mulheres negras e de
Assim, importa ressaltar que a proposta terreiro, marginalizadas em todos os
de articulação política dessas mulheres âmbitos de sua vida, organizam-se no
não se atrela ao modelo ocidental, uma interior do movimento negro, e não no
vez que é através dele que se constroem movimento de mulheres, a partir da
movimentos sociais que culminam em compreensão de que tal movimento não
espaços de reprodução das contradições contempla as pautas pertinentes à sua
de uma sociedade capitalista, racista e realidade. O movimento de mulheres
misógina, utilizando setores dessa liberal – para que se evidencie que a
instância estruturalmente desigual – crítica aqui não é direcionada aos
mulheres negras e periféricas – como movimentos de mulheres
base política manipulável a fim da revolucionários, que tem empreendido
aprovação de suas propostas crítica ao modelo societário vigente e

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pautado a necessidade de uma análise chamada era moderna caracteriza-se pela
social a partir de gênero, de raça e de “expansão da Europa e o
classe – tem falhado em representar os estabelecimento de hegemonia cultural
interesses das mulheres negras e de euro-americana em todo o mundo”. Para
terreiro, uma vez que não tem colocado ela, a produção do conhecimento é onde
em prática uma análise interseccional da essas desigualdades ganham maior
realidade. Ou seja, para as mulheres profundidade, pois trata “sobre
afrodescendentes, comportamento humano, história,
sociedades e culturas”, resultando que
As dimensões política e religiosa do
seus “interesses, preocupações,
espaço dos terreiros, desse modo,
configuram-se na possibilidade de predileções, neuroses, preconceitos,
ritualizar os conflitos societários na instituições sociais, categorias sociais”
medida em que se compreende que a acabem por dominar a escrita de nossa
atuação ativista das adeptas se história. Isto implica em um grande
relaciona diretamente com os problema: a “racialização do
aspectos ritualísticos do Candomblé conhecimento”, através do qual a Europa
e da Umbanda, e dele dependem coloca-se como única fonte do saber
para a consolidação de qualquer científico. Esta racialização do
posicionamento. Faz-se necessária, conhecimento vem, por muito tempo,
nesse sentido, a compreensão de que colocando as mulheres, especialmente as
os processos de resistência
mulheres negras, à margem da produção
protagonizados pelas mulheres de
terreiro caracterizam-se pelo de conhecimento científico, tendo suas
empoderamento individual, mas se pautas e demandas invalidadas e
alicerça a partir da coletividade e reduzidas à discussões identitárias
que essa instância coletiva pertinentes à um segmento social
compreende, não somente os isolado, quando na verdade estão
membros da família-de-santo da integradas à uma sociedade que as
qual faz parte e à qual deve respeito marginaliza e criminaliza.
religioso hierárquico, mas sobretudo
à espiritualidade com a qual se Segundo esse pensamento, disseminado
relacionam diretamente e cujas e consolidado até os dias atuais, os
orientações são respeitadas acima de europeus, cuja atuação traz marcas de
tudo (SANTOS, 2018, p. 74). gênero e raça traduzidas na intervenção
Assim, as experiências no sentido de do homem branco em sociedade e na
superação de tais contradições implicam consolidação de sua condição de
em uma ruptura com esse modelo privilégio, seriam os únicos capazes de
segregacionista, que caracteriza a conhecer, de aprender, de ensinar,
articulação política das mulheres negras colocando o resto do mundo à margem,
e/ou de terreiro como “agressiva” ou negando, inclusive, a capacidade dos
“não-feminista”, dada a insistência de povos africanos conhecer, de
que o racismo e suas consequências deve racionalizar, de filosofar (MACHADO,
ser considerado pauta de discussão nas 2019), negando a própria humanidade de
lutas feministas, uma vez que, tal qual o outros povos, especialmente os
sexismo, constitui formas estruturais de africanos, na tentativa de justificar a
opressão e exploração (GONZALEZ, colonização à qual muitos povos do
2008). referido continente foram submetidos e
de negar a necessidade de políticas
Nesse sentido, a nigeriana Oyèrónké capazes de contemplar as necessidades
Oyěwùmí (2004, p. 01) aponta que a dos povos afrodescendentes. Tal

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estrutura de poder é reproduzida nos compreender as realidades africanas e,
moldes sociais em qualquer demarcação de fato, a condição humana”
temporal, colocando as mulheres negras (OYĚWÙMÍ, 2004, p. 01), ou seja, na
como as mais marginalizadas, compreensão não apenas das realidades
oprimidas, cuja agência sobre as africanas, mas também da sua diáspora e
transformações político-sociais lhes é da América Latina, uma vez que
negada. Desse modo, torna-se pertinente
a identidade coletiva, sempre em
que sejam criadas, entre as próprias
construção e transição, deve ser
mulheres negras e em espaços compreendida por intermédio da
educativos e de movimentação política, diversidade de conflitos existentes
como é o caso dos terreiros – que trazem sob sua aparente unidade, pois é
em sua própria existência um exemplo de através deles que podem ser
resistência dos povos afrodescendentes e identificadas as principais demandas
da atuação feminina nesse contexto – , daqueles que do movimento fazem
oportunidades que tornem possível que parte (SANTOS, 2018, p. 83).
suas pautas, demandas, necessidades,
Torna-se relevante, ainda, mudarmos a
sejam socializadas e contempladas
perspectiva de que apenas os homens
politicamente, para que possam contar
constroem a história, pois “o privilégio
suas próprias histórias e para que os
do gênero masculino como uma parte
conhecimentos que trazem consigo e que
essencial do ethos europeu está
estruturam toda a sua existência possam
consagrado na cultura da modernidade”
ser valorizados como saber ancestral,
(OYĚWÙMÍ, 2004, p. 01),
cultural, mas também político e
marginalizando, invisibilizando e
resistente, potencializando, assim, seu
restringindo a atuação feminina. No
modo de ser e estar no mundo.
entanto, é superficial apontar que tais
processos excludentes estabelecem-se
Chimamanda Adichie já nos diz do
somente através da dicotomia feminino-
perigo constante em contarmos uma
masculino, uma vez que eles também se
única história1. Conhecer outras
estruturam por intermédio de um ideal
histórias, reconhecer a história daqueles
feminino que coloca à margem mulheres
que nos formaram, que marcaram tão
que apresentem pautas diversas. As
fortemente nossa cultura, permite-nos
mulheres de terreiro são um exemplo
sair de uma história que se deseja única,
disso, uma vez que
monocultural, oriunda de uma cultura
que se põe como superior e universal, Tais contradições revelam-se
além de predominantemente masculina. determinantes para a busca, por
Dessa forma, é fundamental, parte das mulheres de Candomblé
cotidianamente, nos empenharmos na e/ou Umbanda inseridas no contexto
mudança de um pensamento que se plural dos movimentos sociais, de
instâncias que acolham suas pautas
pretende colonizador para um que nos
específicas, uma vez que estes
permita a compreensão da relevância e
aspectos irão representar fortes
das contribuições de saberes outros para repercussões, tanto na sua maneira
a nossa maneira de conviver em de atuar politicamente, quanto na
sociedade, onde “este contexto global articulação de discussões que
para a produção de conhecimento deve enfatizem a necessidade de
ser levado em conta em nossa busca para considerar a importância das

1
Podemos assistir a essa palestra no seguinte http://www.youtube.com/watch?v=EC-
endereço: bh1YARsc

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interseccionalidades de gênero, movimentos sociais que as invisibilizam
etnia, classe, religiosidades e retratam suas urgências como
(SANTOS, 2018, p. 31). estratégias de segregação e
Nesse sentido, a atuação política das enfraquecimento político.
mulheres de terreiros se desenvolverá a É nesse contexto que tratamos da
partir da necessidade de preservação ancestralidade2 expressa na religiosidade
identitária e de articulação de outras de matriz africana, como estrutura de
metodologias de resistências capazes de resistência à descaracterização, como ser
contemplar as pautas e especificidades humano, da população negra, bem como
inerentes às questões de gênero, raça e de preservação de tudo o que lhe
classe pertinentes à realidade das adeptas representava a liberdade. A
(Idem). ancestralidade, essa filosofia africana, é
Os terreiros e uma epistemologia de um modo de ser e viver dos povos
descolonização e resistência africanos trazidos para o Brasil que
Em nosso texto, privilegiamos falar se fazia presente com a integração
desde experiências de mulheres de daquela gente mantenedora e
terreiro como potência de construção de guardiã da religião e da cultura
conhecimento, pertencimento e força africana reconstruída no Brasil. (...)
Vivências do que foi possível
política na busca de um mundo mais
manter graças ao sentido agregador
digno de se viver. Nesse sentido, a do povo negro. (...) As tensões
atuação política das mulheres negras é provocadas por um repertório de
tecida desde a ancestralidade africana, ou valores, crenças, sentimentos entre
seja, pela implicação política, ética, as diversas etnias foi o que propiciou
estética, com o estar no mundo, o surgimento de uma nova
buscando um mundo mais igual, identidade coletiva, com
demarcado pelo bem-viver, pela características próprias e
valorização da diversidade, da estruturante do povo
humanidade. Assim, essa atuação afrodescendente. Uma identidade
política se desenvolverá a partir da ancestrálica que continua sendo
construída até por conta da dinâmica
articulação de outras metodologias de
dos diversos repertórios que ainda se
resistência capazes de contemplar as entrelaçam e se imbricam como uma
pautas e especificidades inerentes às rede que se alarga no espaço sagrado
questões de gênero, raça e classe e revitalizado pelo sentido das
pertinentes à realidade das adeptas de tradições. (MACHADO, 2013, p.
religiões de matriz africana, que são o 46).
foco da discussão aqui pautada. Os
caminhos percorridos nesse processo O candomblé, por exemplo, e isso se
possibilitam o trânsito, entre esferas torna extremamente relevante na
religiosas e políticas, de discussões que compreensão do que aqui apresentamos,
reafirmam a necessidade de [...] se constitui originalmente no
fortalecimento identitário Brasil numa comunidade
afrodescendente, a fim de deslegitimar o eminentemente feminina, embora
discurso de ramificações dos nela o elemento masculino não

2
É importante demarcar que a ancestralidade Ancestralidade é o modo de ser / estar no mundo
ultrapassa os espaços de religião de matriz de povos africanos nascidos em África e
africana, assim, atua em todos os campos, quer especialmente dos povos africanos das diásporas.
sejam epistemológicos ou práticos. (MACHADO, 2014).

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estivesse totalmente excluído. [...] A afrorreferenciados, bem como de
liderança religiosa dessas mulheres resistência aos processos de
negras representa um fenômeno inferiorização da feminilidade negra e,
inusitado no seio de uma sociedade consequentemente, o embranquecimento
evidentemente patriarcal e
imposto à essas mulheres, uma vez que o
preconceituosa como a brasileira.
(CARNEIRO; CURY, 2008, p.
estabelecimento dos critérios de raça ou
121). etnia3 estão, muitas vezes, diretamente
relacionados às “[...] relações de poder,
É possível considerar, portanto, que as que fazem circular na linguagem
mulheres foram e ainda tem assumido representações étnico-raciais que nos
papel de grande importância na interpelam e nos constituem como
preservação dos símbolos que vieram a sujeitos” (ZUBARAN; SILVA, 2012, p.
compor estes espaços de resistência, 132), ou seja, à maneira como se
embora sua atuação não se dê sem a estrutura a sociedade
influência do patriarcalismo presente em abrangente/capitalista. Tais noções são
nossa estrutura social. Ainda assim, aplicadas como determinantes para a
torna-se importante assinalar que classificação do pertencimento ou não
pertencimento de indivíduos às classes
As religiões de matriz africana, sociais estabelecidas, cuja estrutura toma
como o Candomblé, contaram com a como referência “[...] a Europa branca,
participação efetiva das mulheres,
cristã e masculina [...]” (Ibid, p. 131).
em especial das mulheres negras,
baseando-se em sua ancestralidade, A maneira como se configura a relação
na espiritualidade religiosa, lutando das mulheres com a expressão religiosa
contra o jugo colonial, a escravidão
de matriz africana, portanto, pode
e o racismo por meio de mitos,
símbolos e rituais. Retiraram da
constituir uma conexão com o sagrado
religião estratégias diversas de que possibilita um resgate de sua
insubordinação simbólica ou real, o identidade afroancestral
que lhes oferecia a possibilidade de [...] pelo fato de ser uma produção
criar mecanismos de defesa para afro-brasileira marcada pelas
sobrevivência e conservação de seus diferenças culturais, onde passado e
traços culturais de origem
presente se dialogam
(CANTUÁRIO, 2009, p. 20). constantemente. O passado que não
é saudosista; o passado como forma
As religiões de matriz africana, para
de compreender as ações
além dos aspectos comunitários a elas desconexas do presente voltadas
intrínsecos e que por intermédio delas para as relações étnico-raciais; o
constituem experiências de construção passado visto como causa social
identitária e memória coletivas, estão, capaz de capacitar o olhar dos
ainda, relacionadas aos processos de interessados, redefinido, agora,
preservação de valores como um “entre-lugar”, propício
3
Segundo Nilma Lino Gomes (2005), o termo aspectos fenotípicos dos mesmos. Já o termo
“raça”, quando utilizado pelo Movimento Negro, “etnia”, segundo a mesma autora, é utilizado para
não se refere à inferioridade ou superioridade de estabelecer referência ao pertencimento ancestral
raças, mas à dimensão social e política do e étnico-racial dos negros e outros grupos em
referido termo, uma vez que a discriminação nossa sociedade, ou ainda para se referir à um
racial e o racismo da sociedade brasileira são grupo social cuja identidade seja definida pela
pertinentes não apenas aos aspectos culturais dos comunidade da língua, cultura, monumentos
representantes de diversos grupos étnico-raciais, históricos e território.
mas principalmente à relação entre esses e os

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para compreender a comunidade que a sociedade patriarcal não assume os
negra que possui identidades conflitos entre os sexos e as anomalias
secularmente contestadas sociais; já as religiões de matriz africana
(OLIVEIRA, 2008, p. 11). os absorve e os ressignifica por
A relação com o passado – um passado intermédio da mitologia que fomenta sua
de luta e de resistência das mulheres estrutura, uma vez que, para as mulheres
negras diante de uma sociedade que lhes negras,
humilha e explora – apresenta-se como A mitologia africana – apontando
aspecto fundamental que caracteriza a insistentemente, por meio da
mulher negra e as especificidades tradição oral, as estratégias mais
inerentes à prática religiosa exercida no diversas de insubordinação,
sagrado espaço do terreiro. Essa simbólicas ou reais – abriu-lhes a
comunidade constituída por terreiros possibilidade de criar mecanismos
é/pode ser também espaço de reprodução de defesa para sobreviver e
das mais variadas formas de opressão, conservar seus traços culturais de
origem, destacando principalmente
uma vez que está inserida em uma
os aspectos que responderiam às
sociedade estruturalmente capitalista, necessidades que a nova realidade
racista, sexista e que, assim como ela, é lhes impunha (p. 122).
perpassada por conflitos das mais
diversas naturezas. Sabemos, portanto, A reflexão acerca do panteão de
que “a prática camuflada da divindades cultuadas nas religiões de
discriminação, ao lado de um discurso matriz africana se faz fundamental para a
democrático racial, insere a mulher negra compreensão da imagem de liderança da
num contexto que denominaríamos aqui mulher de terreiro, que muitas vezes foge
como espaço de falta. Sofrendo uma dos arquétipos sociais e convencionais
tripla discriminação – racial, social e do feminino – amplamente ligados a uma
sexual” (LARKIN NASCIMENTO, concepção de mulher branca, cristã e
2008, p. 50). submissa ao sexo masculino –, pois tem
suas expressões comportamentais
A maneira como se estruturam os determinadas por uma deusa africana
terreiros, as demarcações hierárquicas, ligada ao seu destino através da iniciação
sua relação com o passado e com a e que pode ser tanto mãe, filha, avó,
natureza, dentre outros aspectos, causam quanto vilã ou guerreira (BASTOS,
estranheza por dissociarem-se do 2011).
modelo religioso ocidental e por
convivermos em uma sociedade Assim também foram estruturadas
estruturalmente racista. Todavia, experiências familiares – a família de
enquanto forem, os terreiros, espaços santo4 – referenciadas a partir de um
que se propõem a preservar o que foi e o panteão de divindades femininas e
que tem sido sistematicamente negado à masculinas cujas relações de poder
comunidade negra, serão eles espaços de estabelecem-se de forma igualitária e
resistência e, por isso, políticos. apresentam-se como parâmetros para a
Tratando dessas questões, Sueli Carneiro articulação de todas as relações da vida
e Cristiane Cury (2008) nos explicam de uma/um iniciada/o. Ou seja,
4 Significa uma rede humana que funciona em
Expressão pertinente ao linguajar especifico
dos terreiros de Candomblé, servindo para forma de família com o objetivo de afirmar um
designar “os que crêem e praticam uma das espaço de referência espiritual e social nestas
modalidades das religiões afro-brasileiras. religiões” (CANTUÁRIO, 2009, p. 18).

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apresentando-se como uma estrutura bem-viver são preponderantes. Nela,
sociocultural comunitária recriada por está implicado o nosso existir, oriundo
mulheres, as religiões de matriz africana do reconhecimento e da potencialização
traziam consigo a proposta de da ancestralidade enquanto elemento de
reconstituição do conceito de família resgate do que foi negado às populações
baseada nos valores, fundamentos e afrodescendentes, sendo, desse modo,
ensinamentos dos Orixás (OLIVEIRA, enraizado em uma forma cultural, em um
2008), bem como estratégias de contexto. Assim, partindo de um
resistência ao racismo e valorização da contexto de análise que parte da
figura feminina como fio condutor do cosmopercepção africana,
processo de continuidade e preservação compreendemos que a filosofia africana
identitária. se relaciona diretamente com a atuação
política das mulheres negras e com a sua
É importante assinalar, ainda, que muitas
construção identitária.
destas mulheres de terreiro ainda
enfrentam estes processos contraditórios Assim, pensar desde a filosofia africana
com relação à percepção de si no mundo, é refletir desde um outro lugar, desde um
mesmo inseridas em uma religião de lugar comunitário, é teorizar / criar /
matriz africana que pode auxiliá-las na fazer desde o corpo que se propõe a
ressignificação dessas questões, uma vez descolonizar-se. É criar / teorizar contra
que o racismo tem raízes profundas e que uma hegemonia patriarcal e racista que
se reproduz socialmente através dos mais marginaliza os saberes não-
variados meios, inclusive por intermédio eurocêntricos, os saberes femininos. É,
da maneira como a população também, tecer saberes a fim de
afrodescendente se relaciona consigo proporcionar mudança no paradigma
mesma. Estas questões explicitam-se social vigente, mudança que compreenda
pelo fato de que, “com a Abolição da as demandas de raça, classe e gênero
Escravatura, qualidades negativas são presentes em nosso conviver.
atribuídas aos negros com o objetivo de
Desse modo, reconhecer a força e
manter seu espaço de participação social
liderança das mulheres negras,
nos mesmos limites estreitos da antiga
especialmente de terreiro, em uma
ordem social” (THEODORO, 2008, p.
89). Assim, o processo de sociedade patriarcal e sexista, é
reconhecer a potência do feminino na
desumanização da população negra
passa a ser fortalecido em outras esferas, construção da nossa sociedade, na
preservação e continuidade da cultura
são “livres”, entretanto, continuam a
margem e o Estado continua com africana e de sua influência em nosso
solo, pois por meio de
políticas de exclusão. O que ainda vemos
com muita força na atuação do Estrado sua fé e seu axé, essas mulheres
Brasileiro, especialmente em tempos conseguiram trazer até nossos dias
temerosos, ou seja, tempos em que imagens sacralizadas de seu
vivemos um golpe. passado, que se volta para a
mitologia africana e aponta
Conclusões insistentemente, por meio da
tradição oral, as estratégias mais
A filosofia atrelada à concepção de diversas de insubordinação
ancestralidade aqui pautada consiste na simbólica que lhes possibilitam criar
reflexão a respeito da possibilidade de mecanismos de defesa para a
criar mundos, outros mundos, melhores, sobrevivência e a manutenção de
onde a ampliação de nossa liberdade e do seus traços culturais de origem. A

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mulher negra se estrutura como uma entre os seres humanos vivos, os
pessoa que toma a si a ancestrais, os não-nascidos, a
responsabilidade de manter a natureza e os orixás; entre o mundo
unidade familiar e a coesão grupal e espiritual, o orum, e o mundo
de preservar as tradições culturais e terrestre, o Aiyê. (NASCIMENTO,
religiosas de seu grupo, em função 2008, p. 151).
da nova realidade que a opressão
econômica e a discriminação racial Desse modo, compreendemos que a
pós-Abolição criaram no seio da filosofia africana que origina a
sociedade brasileira. (THEODORO, ancestralidade e tece as filosofias que
2008, p. 92). delineiam o ser mulher negra em solo
nacional, principalmente nas
São estas mulheres que tem carregado, comunidades de terreiro, ou seja, as
através de suas lutas, as propostas para mulheres das religiões de matriz
uma mudança que as coloque como africana, trata, diretamente, do
produtoras de conhecimento e não como reconhecimento de si e potencialização
objetos de estudos de um pensamento do seu pertencimento, ou seja,
colonizador. Ou seja, a maneira de reconhecimento de nossa origem na
ampliar todas as formas de bem viver em ancestralidade africana. Assim, os
comunidade, acolhendo as saberes ancestrais femininos tecidos pela
singularidades e diversidades, lutando ancestralidade africana são perpassados
por todos os direitos, de quem quer que por políticas de resistências.
seja, buscas sem exclusão e eliminação
A partir dessa compreensão, a
do outro. O feminino, com ênfase no
construção de narrativas femininas que
feminino tecido nos espaços do terreiro,
pautem questões tão caras à uma
pensado de modo plural e interseccional,
movimentação política de mulheres de
nesse sentido, tem se proposto a
terreiro torna-se fundamental para que se
ressignificar suas narrativas através de
possa refletir a respeito da possibilidade
uma atuação política pautada na
de conviver em uma sociedade em que
ancestralidade, que implica sua forma de
mulheres negras possam existir sem
estar no mundo e se relacionar com os
medo.
que vieram e construíram antes, para que
fosse possível refletir sobre a “...eu entoava cantos de louvor a
possibilidade de enfrentamento à uma todas nossas ancestrais,
sociedade racista, classista e misógina. E que desde a África vinham arando a
as religiões de matriz africana se terra da vida com as suas próprias
sustentam nisso, mãos, palavras e sangue.
Não, eu não esqueço essas
essa matriz filosófica africana Senhoras, nossas Yabás, donas de
valoriza sensivelmente o feminino e tantas sabedorias.”
se fundamenta nos princípios da Olhos D´água.
harmonia cósmica e do constante Conceição Evaristo, 2016.
fluxo e reposição de energias. De
acordo com a visão de mundo
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