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MACHADO DE ASSIS

O ESPELHO
ESBOÇO DE UMA NOVA THEORIA DA ALMA HUMANA

PAPEIS AVULSOS
O ALIENISTA — THEORIA DO MEDALHÃO
A CHINELA TURCA
NA ARCA — D. BENEDICTA — O SEGREDO DO BONZO
O ANNEL DE POLYCBATES Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite,
O EMPRÉSTIMO — A SERENÍSSIMA REPUBLICA varias questões de alta transcendência, sem que a
O ESPELHO
UMA VISITA DE ALCIBIADES — VERBA TESTAMENTARIA disparidade dos votos trouxesse a menor alteração
aos espiritos. A casa ficava no morro de Santa The-
reza, a sala era pequena, alumiada a velas, cuja luz
fundia-se mysteriosamente com o luar que vinha de
fora. Entre a cidade, com as sua"s agitações e aven-
turas, e o céu, em que as estrellas pestanejavam,
atravez de uma atmosphera límpida e socegada,
RIO DE JANEIRO estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de
' Typographla e Lithographia a vapor, Encadernação e Livraria
cousas metaphysicas, resolvendo amigavelmente os
LOMBAERTS & C.
mais árduos problemas do universo.
7 — Rua dos Ourives — 7
Porque quatro ou cinco ? Rigorosamente eram
1882
quatro os que fallavam; mas, além d'elles, havia na
sala um quinto personagem, calado, pensando, co-
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chilando, cuja esportula no debate não passava de


um o outro resmungo de approvação. Esse homem tronco principal, e um pouco, talvez, pela inconsis-
tinha a mesma edade dos companheiros, entre qua- tência dos pareceres. Um dos argumentadores pediu
renta e cincoenta annos, era provinciano, capitalista,, ao Jacobina alguma opinião, — uma conjectura, ao
intelligente, não sem instrucção, e, ao que parece, menos.
astuto e cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se — Nem conjectura, nem opinião, redarguiu elle ;
da abstenção com um paradoxo, dizendo que a dis- uma ou outra pôde dar logar a dissentimento, e, como
cussão era a fôrma polida do instincto batalhador, sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me
que jaz no homem, como uma herança bestial; e calados, posso contar-lhes um caso de minha vida,
accrescentava que os seraphins e os cherubins não em que resalta a mais clara demonstração acerca da
controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição matéria de que se trata. Em primeiro logar, não ha
espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta uma só alma, ha duas...
n'aquella noite, contestou-lhya um dos presentes, e — Duas?
desafiou-o a demonstrar o que dizia, se era capaz.. — Nada menos de duas almas. Cada creatura
Jacobina (assim se chamava elle) reflectiu um in- humana traz duas almas comsigo: uma que olha
stante, e respondeu: de dentro para fora, outra que olha de fora para
— Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. dentro... Espantem-se á vontade; podem ficar de
Vai senão quando, no meio da noite, succedeu bocca aberta, dar de hombros, tudo; não admitto
que este casmurro usou da palavra, e não dous ou replica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou
tres minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, dormir. A alma exterior pôde ser um espirito, um
em seus meandros, veiu a cair na natureza da alma,, fluido, um homem, muitos homens, um objecto, uma
ponto que dividiu radicalmente os quatro amigos. operação. Ha casos, por exemplo, em que um sim-
Cada cabeça, cada sentença; não só o accordo, mas a ples botão de camisa é a alma exterior de uma pes-
mesma discussão, tornou-se difficil, senão impossivel, soa ; — e assim também a polka, o voltarete, um
pela multiplicidade de questões que se deduziram do livro, uma machina, um par de botas, uma cavatina,
um tambor, etc. Está claro que o officio dessa segunda
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alma é transmittir a vida, como a primeira ; as duas cinco, seis vezes por anno. Durante a estação lyrica é
completam o homem, que é, metaphysicaraente fal- a opera ; cessando a estação, a alma exterior substi-
lando, uma laranja. Quem perde uma das metades, tue-se por outra: um concerto, um baile do Cassino,
perde naturalmente metade da existência ; e r.asos a rua do Ouvidor, Petropolis...
ha, não raros, em que a perda da alma exterior — Perdão; essa senhora quem é ?
implica a da existência inteira. Shylock.por exemplo. — Essa senhora é parenta do diabo, e tem o
A alma exterior daquelle judeu eram os seus ducados; mesmo nome: chama-se Legião... E assim outros
perdel-os eqüivalia a morrer. « Nunca mais verei o muitos casos. Eu mesmo tenho experimentado d'essas
meu ouro, diz elle a Tubal; ê um punhal qne me trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me
enterras no coração ». Vejam bem esta phrase; a ao episódio de que lhes fallei. Um episódio dos meus
perda dos ducados, alma exterior, era a morte para vinte e cinco annos...
elle. Agora, é preciso saber que a alma exterior não Os quatro companheiros, anciosos de ouvir o caso
é sempre a mesma... promettido, esqueceram a controvérsia. Santa curio-
sidade ! tu não és só a ama da civilisação. és tam-
— Não?
bém o pomo da concórdia, fructa divina, de outro
— Não, senhor; muda de natureza e de estado.
sabor que não aquelle pomo da mythologia. A sala,
Não alludo a certas almas absorventes,como a pátria,
até ha pouco ruidosa de physica e metaphysica, é
cora a qual disse o Camões que morria, e o poder,
agora um mar morto; todos os olhos estão no Ja-
que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São
cobina, que concerta a ponta do charuto, recolhendo
almas enérgicas e exclusivas; mas ha outras, embora
as memórias. Eis aqui como elle começou a narração:
enérgicas, de natureza mudavel. Ha cavalheiros, por
— Tinha vinte e cinco annos, era pobre, e acabava
exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros annos,
de ser nomeado alferes da guarda nacional. Não
foi um chocalho ou um cavallinho de páu, e mais
imaginam o acontecimento que isto foi em nossa
tarde uma provedoria de irmandade, supponhamos.
casa. Minha mãi ficou tão orgulhosa! tão contente !
Pela minha parte, conheço uma senhora, — na ver-
Chamava-me o seu alferes. Primos e tios, foi tudo
dade, gentilissima, — que muda de alma exterior
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uma alegria sincera e pura. Na villa, note-se bem, feres para cá alferes para lá, alferes a toda a hora.
houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, Eu pedia-lhe que me chamasse Joãosinho, como
como na Escriptura; e o motivo não foi outro senão d'antes; e ella abanava a cabeça, bradando que não,
que o posto tinha muitos candidatos e que estes per- que era o « senhor alferes ». Um cunhado d'ella,
deram. Supponho também que uma parte do des- irmão do finado Peçanha, que alli morava, não me
gosto foi inteiramente gratuita : nasceu dá simples chamava de outra maneira. Era o « senhor alferes »,
distincção. Lembra-me de alguns rapazes, que se não por gracejo, mas a serio, e á vista dos escravos,
davam commigo, e passaram a olhar-me de revez, que naturalmente foram pelo mesmo caminho. Na
durante algum tempo. Em compensação, tive muitas mesa tinha eu o melhor logar, e era o primeiro ser-
pessoas que ficaram satisfeitas com a nomeação; e a vido. Não imaginam. Se lhes disser que o enthu-
prova é que todo o fardamento me foi dado por •siasmo da tia Marcolina chegou ao ponto dd mandar
amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Mar- pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e
colina, viuva do capitão Peçanha, que morava a magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mo-
muitas léguas da villa, n"um sitio escuso e solitário, bilia era modesta e simples... Era um espelho que
desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ella e lhe dera a madrinha, e que esta herdara da mãi,
levasse a farda. Fui, acompanhado de um pagem, que o comprara a uma dasfidalgasvindas em 1808
que d'ahi á dias tornou á villa, porque a tia Mar- com a corte de D. João VI. Não sei o que havia
colina, apenas me pilhou no sitio, escreveu a minha n'isso de verdade; era a tradicção. O espelho estava
mãi dizendo que não me soltava antes de um mez, naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o
pelo menos. E abraçava-me ! Chamava-me também ouro, comido em parte pelo tempo, uns delfins es-
o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como culpidos nos ângulos superiores da moldura, uns
era um tanto patusca, chegou a confessar que tinha enfeites de madreperola e outros caprichos do artista.
inveja da moça que houvesse de ser minha mulher. Tudo velho, mas bom...
Jurava que em toda a província não havia outro que
— Espelho grande ?
me puzesse o pé adiante. E sempre alferes; era ai-
— Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza,
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porque o espelho estava na sala ; era a melhor peça sentimentos; os factos são tudo. A melhor definição do
da casa. Mas não houve forças que a demovessem do amor não vale um beijo de moça namorada; e, se
propósito; respondia que não fazia falta, que era só bem me lembro, um philosopho antigo demonstrou
por algumas semanas, e finalmente que o « senhor o movimento andando. Vamos aos factos. Vamos vêr
alferes » merecia muito mais. O certo é que todas como, ao tempo em que a consciência do homem se
essas cousas, carinhos, attenções, obséquios, fizeram obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa.
em mim uma transformação, que o natural senti- As dores humanas, as alegrias humanas se eram só
mento da mocidade ajudou e completou. Imaginam, isso, mal obtinham de mim uma compaixão apathica
creio eu ? ou um sorriso de favor. No fim de tres semanas, era
outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes.
— Não.
Ora, um dia recebeu a tia Marcolina uma noticia
— O alferes eliminou o homem. Durante alguns
grave; uma de suas filhas, casada com um lavrador
dias as duas naturezas equilibraram-se; mas não
residente d'alli a cinco léguas, estava mal e á morte.
tardou que a primitiva cedesse á outra ; ficou-me
Adeus, bobrinho ! adeus, alferes ! Era mãi extremosa,
uma parte minima de humanidade. Aconteceu então
armou logo uma viagem, pediu ao cunhado que fosse
que a alma exterior, que era d'antes o sol, o ar, o
com ella, e a mim que tomasse conta do sitio. Creio
campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e
que, se não fosse a afflicção, disporia o contrario;
passou a ser a cortezia e os rapapés da casa, tudo o
deixaria o cunhado, e iria commigo. Mas o certo é
que me fallava do posto, nada do que me fallava do
que fiquei só, com os poucos escravos da casa. Con-
homem. A única parte do cidadão que ficou com-
fesso-lhes que desde logo senti uma grande oppressão,
migo foi aquella que entendia com o exercício da pa-
alguma cousa semelhante ao efeito de quatro paredes
tente ; a outra dispersou-se no ar e no passado. Cus-
de um cárcere, subitamente levantadas em torno de
ta-lhes acreditar, não ?
mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava
— Custa-me até entender, respondeu um dos agora limitada a alguns espíritos boçaes. O alferes
ouvintes. continuava a dominar em mim, embora a vida fosse
— Vai entender. Os factos explicarão melhor os
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menos intensa, e a consciência mais débil. Os es- levados pelos escravos. Nenhum ente humano. Pa-
cravos punham uma nota de humildade nas suas rece-lhes que isto era melhor do que ter morrido ?
cortezias, que de certa maneira compensava a afeição era peior. Não por medo; juro-lhes que não tinha
dos parentes e a intimidade domestica interrompida. medo; era um pouco atrevidinho, tanto que não
Notei mesmo, n"aquella noite, que elles redobravam senti nada, durante as primeiras horas. Fiquei triste
de respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes de por causa do damno causado á tia Marcolina ; fiquei
minuto a minuto. Nhô alferes é muito bonito; nhô também um pouco perplexo, r-ão sabendo se devia ir
alferes ha de ser coronel; nhô alferes ha de casar ter com ella, para lhe dar a triste noticia, ou ficar
com moça bonita, filha de general; um concerto de tomando conta da casa. Adoptei o segundo alvitre,
louvores e prophecias, que me deixou extatico. Ah ! para não desamparar a casa, e porque, se a minha
pérfidos ! mal podia eu suspeitar a intenção secreta prima enferma estava mal, eu ia somente augmentar
dos malvados. a dôr da mãi, sem remédio nenhum ; finalmente,
— Matal-o ? esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse n'aquelle
— Antes assim fosse. dia ou no outro, visto que tinham sahido havia já
— Cousa peior ? trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem ves-
— Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. tígio d'elle; e á tarde comecei a sentir uma sensação
como de pessoa que houvesse perdido toda a acção
Os velhacos, seduzidos por outros, ou de movimento
nervosa, e não tivesse consciência da acção muscular.
próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e
assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem
entre quatro paredes, diante do terreiro deserto e da no outro, nem em toda aquella semana. Minha
roça abandonada. Nenhum fôlego humano. Corri a solidão tomou proporções enormes. Nunca os dias
foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra
casa toda, a senzala, tudo, nada, ninguém, um mole-
com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam
quinho que fosse. Galks e gallinhas tão somente,
de século a século, no velho relógio da sala, cuja
ura par de mulas, que philosophavam a vida, sacu-
dindo as moscas, e tres bois. Os mesmos cães foram pêndula, tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior,
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como um piparote continuo do eternidade. Quando, o somno, eliminando a necessidade de uma alma
muitos anros depois, li uma poesia americana, creio exterior, deixava actuar a alma interior. Nos sonhos,
que de Longfellow, e topei com este famoso estri- fardava-me, orgulhosamente, no meio da família e
bilho : Xever. for ever ! — For crer, nevcr! confes- dos amigos, que me elogiavam o garbo, que me cha-
so-lhes que tive um calafrio : recordei-me d'aquelles mavam alferes; vinha um amigo de nossa casa, e
dias medonhos. Era justamente assim que fazia o promettia-me o posto de tenente, outro o de capitão
relógio da tia Marcolina : — Nevcr, for ever! — ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando
For ever, never ! Não eram golpes de pêndula, era accordava, dia claro, esvaia-se com o somno, a con-
um dialogo do abysmo, um cochicho do nada. E en- sciência do meu ser novo e único, — porque a alma
interior perdia a acção exclusiva, eficavadependente
tão de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa.
da outra, que teimava em não tornar... Não tornava.
O silencio era o mesmo que de dia. Mas a noite era
Eu sabia fora, a um lado e outro, a ver se descobria
a sombra, era a solidão ainda mais estreita ou mais
algum signal de regresso. Sceur Anne, scear Anne,
larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém nas salas, na va-
nevois-tu rien venirP Nada, cousa nenhuma; tal
randa, nos corredores, no terreiro, ninguém em parte
qual como na lenda franceza. Nada mais do que a
nenhuma... Riem-se?
poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava
— Sim, parece que tinha um pouco de medo.
para casa, nervoso, desesperado, estirava-me no
— Oh! fora bom se eu podesse ter medo ! Vi-
canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. Levantava-me, pas-
veria. Mas o característico d'aquella situação é que
seava, tamborilava nos vidros das janellas, assobiava.
eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo vul-
Em certa oceasião lembrei-me de escrever alguma
garmente entendido. Tinha uma sensação inexpli- cousa, um artigo político, ura romance, uma ode;
cável. Era como um defuncto andando, um som" não escolhi nada definitivamente ; sentei-me e tracei
nambulo, um boneco mecânico. Dormindo, era outra no papel algumas palavras e phrases soltas, para
cousa. O somno dava-me allivio, não pela razão intercalar no estylo. Mas o estylo, como a tia Mar-
commum de ser irmão da morte, mas por outra. colina, deixava-se estar. Sceur Anne, sceur Anne...
Acho que posso explicar assim esse phenomeno: —
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Cousa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o
e alvejar o papel. resto do universo; não me estampou a figura nitida
— Mas não comia ? e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, sombra de
— Comia mal, fructas, farinha, conservas, algu- sombra. A realidade das leis physicas não permitte
mas raizes tostadas ao fogo, mas supportaria tudo negar que o espelho reproduziu-me textualmente,
alegremente, se não fora a terrível situação moral com os mesmos contornos e feições; assim devia ter
em que me achava. Recitava versos, discursos, sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive
trechos latinos, lyras de Gonzaga, oitavas de Camões, medo; attribui o phenomeno á excitação nervosa
décimas, uma anthologia em trinta volumes. A's em que andava; receiei ficar mais tempo, e enlou-
vezes fazia gymnastica; outras dava beliscões nas quecer.—Vou-me embora, disse commigo. E levantei
pernas ; mas o efeito era só uma sensação physica o braço com gesto de máu humor, e!ao mesmo tempo
de dôr ou de cançaço, e mais nada. Tudo silencio, de decisão, olhando para o vidro ; o gesto lá estava,
um silencio vasto, enorme, infinito, apenas subli- mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-
nhado pelo eterno tic-tac da pêndula. Tic-tac, tic- me, murmurando commigo, tossindo sem tosse,
tac... sacudindo a roupa com estrepito, affligindo-me a frio
com os botões,para dizer alguma cousa. De quando
— Na verdade, era de enlouquecer.
em quando, olhava furtivamente para o espelho; a
— Vão ouvir cousa peior. Convém dizer-lhes que,,
imagem era a mesma difusão de linhas, a mesma
desde que ficara só, não olhara uma só vez para o
decomposição de contornos... Continuei a vestir-me.
espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha
Subitamente por uma inspiração inexplicável, por
motivo; era um impulso inconsciente, um receio do
um impulso sem calculo, lembrou-me... Se forem
achar-me um e dois, ao mesmo tempo, n'aquella
• capazes de adivinhar qual foi a minha idéa...
casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada
— Diga.
prova melhor a contradicção humana, porque no fim
— Estava a olhar para o vidro, com uma persis-
de oito dias, deu-me na veneta olhar para o espelho
tência de desesperado, contemplando as próprias
com o fim justamente de achar-me dois. Olhei o
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feiçõos derramadas e inacabadas, uma nuvem de horas, despia-me outra vez. Com este regimen
linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... pude atravessar mais seis dias de solidão, sem
Não, não são capazes de adivinhar. os sentir...
— Mas, diga, diga. Quando os outros voltaram a si, o narrador tinha
— Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, descido as escadas.
apromptei-me de todo; e, como estava defronte do
espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; o
vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma
linha de menos, nenhum contorno diverso ; era eu
mesmo, o alferes, que achava, emfim, a alma exte-
rior. Essa alma ausente com a dona do sitio, dis-
persa e fugida com os escravos, eil-a recolhida no
espelho. Imaginai um homem que, pouco a pouco
emerge de um lethargo, abre os olhos sem ver, de- FIM DO ESPELHO.

pois começa a ver, distingue as pessoas dos objectos,


mas não conhece individualmente uns nem outros;
emfim, sabe que este é Fulano, aquelle é Sicrano;
aqui está uma cadeira, alli um sofá. Tudo volta ao
que era antes do somno. Assim foi commigo. Olhava
para o espelho, ia de um lado para outro, recuava,
gesticulava, sorria, e o vidro exprimia tudo. Não
era mais um autômato, era um ente animado. D'ahi
em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora,
vestia-me de alferes, e sentava-me diante do espelho,
lendo, olhando, meditando; no fim de duas, tres 1G

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