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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE

PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA EM CIÊNCIAS
SOCIAIS
MESTRADO EM SOCIOLOGIA

JUSTIÇA E DISCIPLINA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE


CONTROLE INSTITUCIONAL NA POLÍCIA MILITAR DO
ESTADO DE SERGIPE (2001-2009)

ELVOCLEBIO DE ARAÚJO LIMA

São Cristóvão – SE
2010
2

ELVOCLEBIO DE ARAÚJO

JUSTIÇA E DISCIPLINA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE


CONTROLE INSTITUCIONAL NA POLÍCIA MILITAR DO
ESTADO DE SERGIPE (2001-2009)

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Sociologia, em nível de Mestrado, da
Universidade Federal de Sergipe, como requisito
parcial à obtenção do título de mestre em Sociologia.

Orientador: Prof. Dr. Paulo Sérgio da Costa


Neves

São Cristóvão – SE
2010
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ELVOCLEBIO DE ARAÚJO

JUSTIÇA E DISCIPLINA: ANÁLISE DAS PRÁTICAS DE


CONTROLE INSTITUCIONAL NA POLÍCIA MILITAR DO
ESTADO DE SERGIPE (2001-2009)

BANCA EXAMINADORA

PROF. DR. PAULO SÉRGIO DA COSTA NEVES


Universidade Federal de Sergipe – UFS

PROF. DR. JOSÉ LUIZ RATTON


Universidade Federal de Pernambuco – UFPE

PROF. DR. WILSON JOSÉ FERREIRA DE OLIVEIRA


Universidade Federal de Sergipe – UFS

São Cristóvão – SE
2010
4

Aos meus três grandes amores: Maria


Valdiza, minha mãe e rainha, Sueny,
minha princesa, e Arthur, meu príncipe.
5

AGRADECIMENTO

Agradeço em primeiro lugar a Deus, cuja graça se fez presente ao longo da minha vida
suprindo as minhas deficiências.
Agradeço à minha família, particularmente, a minha mãe Maria Valdiza de Araújo Lima e a
meu pai Edson Ferreira de Lima que são os responsáveis diretos por minha formação moral e
afetiva.
Agradeço à minha esposa Sueny Silva Lima e a meu filho Arthur Nicolas Silva Lima que
sempre estiveram ao meu lado me acompanhando no cotidiano de pesquisas e leituras,
sentindo muitas vezes a minha ausência em virtude das exigências das atividades de estudo,
todo meu amor e dedicação, vocês são parte importante de minha história e indispensáveis à
minha vida.
Agradeço aos meus irmãos José Paulo, João Paulo, Edson Filho, Elvomarton e Elvoberlândio
e também às minhas irmãs Ana Paula e Angélica por fazerem parte de minha história.
Agradeço a Edson Paulo, a Djalma, grande amigo e irmão, aos amigos de seminário Edney
Nogueira, João Cláudio, Fernando e José Carlos que compartilharam comigo as esperanças e
angústias da vida acadêmica, servindo de apoio nos momentos de tensão e tédio.
Agradeço aos professores do Mestrado em Sociologia, em especial ao prof° doutor Paulo
Neves pelo acompanhamento e paciência, a profª doutora Cristine Jacque pelas brilhantes e
importantes observações nas aulas de metodologia e ao prof° doutor Franz Bruseke pelos
momentos de reflexão nas aulas de Teoria Social.
Agradeço aos meus colegas de mestrado os quais experienciaram junto comigo as
expectativas dessa etapa na formação intelectual, meu muito obrigado e desejo de felicidade e
realização para todos.
Enfim, agradeço a todos os que de alguma maneira contribuíram direta e indiretamente para
que o percurso do processo de pesquisa fosse trilhado.
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RESUMO
O presente estudo intitulado “Justiça e Disciplina: Análise das Práticas de Controle
Institucional na Polícia Militar do Estado de Sergipe (2001-2009)” tem por objetivo analisar
as práticas de controle institucional e as conseqüentes reformulações no poder disciplinar
ocorridas no período entre 2001 a 2009, considerando que estas reformulações refletem a
busca por elementos de reafirmação do exercício efetivo de poder praticado no interior das
relações hierárquico-disciplinares. A reafirmação do domínio da autoridade militar, num dado
momento, assumiu a faceta de um discurso orientado para a fundamentação legal do ato de
punir. A emergência de “novos” procedimentos de responsabilização e de culpabilização do
transgressor caracterizou a preocupação da autoridade militar quanto à manutenção do
conteúdo disciplinar das relações hierárquicas. Utilizando da pesquisa documental, baseada
nas publicações feitas em boletim geral, a análise direcionada às práticas de exercício de
poder recorreu, também, à fala dos sujeitos, tentando, por meio do discurso dos agentes, fazer
um apanhado das representações e das concepções relativas à disciplina e à justiça. No
cenário institucional apresentado pela PMSE, no período em questão, a transgressão aparece
como uma das categorias do fenômeno de desvio de conduta, pensada, freqüentemente, a
partir de dois ângulos: o das relações disciplinares, nesse caso a transgressão era tida como
resultado da desobediência, sendo a penalização aplicada sob a modalidade de intervenção
pedagógica; o segundo plano toma o desvio de conduta em grau mais elevado, considerando-o
como grave desvio do comportamento, distanciado da ética profissional militar e responsável
por originar problemas como, por exemplo, o da violência policial. No período selecionado
tentamos visualizar qual a concepção de transgressão existente na instituição e como esta
fundamenta a noção de “disciplinarização” e de responsabilização criminal e administrativa
do policial praticada pela autoridade militar. Em meio aos dados relativos às punições e
processos disciplinares e judiciais percebemos problemas quanto à transparência dos
procedimentos, inviabilizando, muitas vezes, a observação externa das práticas de apuração
das transgressões e denúncias de crime. Verificou-se, também, uma maior eficácia do
aparelho coercitivo disciplinar quanto à aplicação de punições relacionadas à disciplina da
tropa, entretanto, essa eficácia contrasta com os resultados de procedimentos instaurados para
verificação das denúncias de abuso de poder cometidos por policiais militares. Um dos fatores
condicionantes da pouca visibilidade do percurso feito pelo procedimento é, justamente, o
desenho institucional conferido pelo militarismo que trata o desvio de conduta como algo que
diz respeito ao universo militar, prejudicando uma compreensão mais ampla dos efeitos da
violência e da transgressão cometidas por policiais.

Palavras-chave: polícia militar; transgressão, desvio de conduta, disciplina, hierarquia, poder


disciplinar.
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ABSTRACT

This study entitled "Justice and Discipline: Analysis of Institutional Control Practices in the
Military Police of the State of Sergipe (2001-2009)" aims to examine the practices of
institutional control and consequent restatements in disciplinary power in the period between
2001 to 2009, whereas these restatements reflect the search for elements reaffirmation of the
effective exercise of power practiced within the hierarchical relationships-disciplinary. The
reaffirmation of the domain of military authority, at any given time, assumed the aspect of a
discourse oriented legal grounds to punish the act. The emergence of "new" procedures of
accountability and culpability of the offender characterized the concern of military authority
regarding maintenance of disciplinary content of hierarchical relationships. Using the
documentary research, based on publications made in bulletin Overall, the analysis focused
practices of empowerment appealed also to speak of the subject, trying, through discourse
agents, make an overview of the concepts and representations concerning discipline and
justice. In the scenario presented by institutional PMSE during the period in question, the
transgression appears as one of the categories of the phenomenon of misconduct, thoughtful,
often from two angles: the relations disciplinary transgression in this case was taken as a
result of disobedience, the penalty being applied in the form of educational intervention, the
background takes misconduct in higher degree, considering it as a serious deviation from the
behavior, distanced professional ethics and responsible for military cause problems, eg, the
police violence. During selected view which tried to design transgression existing in the
institution and how it justifies the notion of "disciplining" and criminal liability and
administrative officer practiced by the military authority. Amid the data relating to
punishments and disciplinary procedures and judicial perceive problems as the transparency
of procedures, preventing often the external observation of practice and investigation of
allegations of criminal offenses. There was also a more effective coercive apparatus for the
application of disciplinary punishments related to the discipline of the troops, however, this
efficacy contrasts with the results of established procedures for verification of complaints of
abuse of power committed by military police. One of the factors affecting the poor visibility
of the route taken by the procedure is precisely the institutional design given by the militarism
that treats the misconduct as something that concerns the military world, undermining a
broader understanding of the effects of violence and transgression committed by police.

Keywords: military police; wrongdoing, misconduct, discipline, hierarchy, disciplinary


power.
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LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS

BGO – Boletim Geral Ostensivo


BIR – Boletim Interno Reservado
BPCom. – Batalhão de Polícia Comunitária
BPM - Batalhão de Polícia Militar
CAO – Curso de Aperfeiçoamento de Oficiais
Cap.- Capitão
Cb. - Cabo
Cel. - Coronel
CFO – Curso de Formação de Oficiais CFSd
– Curso de Formação de Soldados CTSP –
Curso Técnico em Segurança Pública Cia. –
Companhia
Cmdo. – Comando
Cmt. – Comandante
CPMI – Comando do Policiamento do Interior (atualmente, é o Comando do Policiamento Militar do Interior –
CPMI)
CPMC – Comando do Policiamento Militar da Capital
CPO – Comissão de Promoções de Oficiais
CPP – Código de Processo Penal
CPPM – Código de Processo Penal Militar
CPRv. – Companhia de Polícia Rodoviária
CPTran - Companhia de Polícia de Trânsito
CSM – Circunscrição do Serviço Militar
DETRAN – Departamento Estadual de Trânsito
EMG – Estado Maior Geral
“ex officio” – em razão do ofício, ou seja ato administrativo que se adota sem provocação, em decorrência de
previsão legal
HPM – Hospital da Polícia Militar
IPM – Inquérito Policial Militar
JM – Junta Médica
LOB – Lei de Organização Básica
OM – Organização Militar
OPM – Organização Policial Militar
PAAE – Procedimento Administrativo de Apuração Especial
PAL – Processo Administrativo de Licenciamento
PCSv – Pelotão de Comando e Serviços
Pel. - Pelotão
PM – Polícia Militar/Policial Militar
PMSE – Polícia Militar do Estado de Sergipe
PM/1 - 1ª Seção do Estado Maior Geral
PM/2 – 2ª Seção do Estado Maior Geral
QCG – Quartel do Comando Geral
QOA – Quadro de Oficiais de Administração
QOCPM – Quadro de Oficiais Capelães Policiais Militares
QOE – Quadro de Oficiais Especialistas
QOPM – Quadro de Oficiais Policiais Militares
QOSPM – Quadro de Oficiais de Saúde Policiais Militares
QOCPM – Quadro de Oficiais Complementares da Polícia Militar ou, então, denominados vulgarmente “R-
2” R/R – Reserva Remunerada
R-1 – Regulamento Interno e dos Serviços Gerais (RISG)
R-2 - Regulamento de Continências, Honras, Sinais de Respeito e Cerimonial Militar das Forças Armad as (R.
Cont.), aprovado Decreto nº 2.243, de 03 de junho de 1997
R-3 – Regulamento de Administração do Exército (RAE), aprovado pelo Decreto nº 98.820, de 12 de janeir o de
1990
R-4 - Regulamento Disciplinar do Exército, aprovado pelo Decreto nº 4.346, de 26 de agosto de 2002
R-200 – Regulamento para as Polícias Militares e Corpos de Bombeiros Militares
9

Sd. - Soldado
SE – Estado de Sergipe
Sgt. - Sargento
Sind. - Sindicância
SSP – Secretaria de Segurança Pública
Subten. - Subtenente
Ten. – Tenente
Ten-Cel. – Tenente-Coronel
UM – Unidade Militar
1

LISTA DAS TABELAS


Tabela 01: Processos de Deserção 1998-2008.................................................................100
Tabela 02: Ocorrências anuais de Transgressões Disciplinares (2001-2008)..................111
Tabela 03: Transgressões Disciplinares distribuição Área Operacional (AO) do CPMC e do
CPMI..................................................................................................................................112
Tabela 04: OPM’s integrantes do CPMC e Especializadas..............................................113
Tabela 05: Relação de Efetivo da PMSE por posto/graduação........................................116
Tabela 06: Transgressões Disciplinares por Graduação...................................................117
Tabela 07: Distribuição de Transgressões Disciplinares por Gênero..............................118
Tabela 08: Lista de Transgressões Disciplinares e demonstrativo de freqüência.............121
Tabela 09: “Sazonalidade” de Transgressões Disciplinares 2001-2008...........................124
Tabela 10: Punições disciplinares em 2010 (detenção e prisão).......................................133
Tabela 11: Entrada de militares para cumprimento de punição no QCG.........................134
1

LISTA DAS FIGURAS


Figura 01: Modelo do Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar........................92
Figura 02: Mapa de Policiamento em Sergipe.......................................................................114
Figura 03: Hierarquização e “Círculos de Vivência” da PMSE............................................172
1

LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Foto 01 – foto da “cadeia” do QCG......................................................................................135
Foto 02 – foto da “cadeia” do QCG......................................................................................136
Foto 03 – foto das antigas instalações para detidos disciplinares do QCG (Cela 01)...........137
Foto 04 – foto das antigas instalações para detidos disciplinares do QCG (Cela 02)...........137
13

LISTA DOS GRÁFICOS


Gráfico 01: Detentos do Presmil - posto/graduação..............................................................145
Gráfico 02-Por quais meios é recebida a assistência de advogado........................................146
Gráfico 03: Militares com registro de punição disciplinar até antes do ingresso no
PRESMIL................................................................................................................................147
Gráfico 04: Tipo de transgressão Disciplinar.........................................................................148
Gráfico 05: Fatores apontados pelo militares como determinantes para que processos
judiciais e administrativos não fossem abertos.......................................................................149
Gráfico 06: Antes do presente processo judicial e administrativo, o Senhor já sofreu alguma
ação judicial na esfera militar e no âmbito da justiça civil?...................................................150
Gráfico 07: Você vê algum tipo de desgaste nas relações profissionais decorrentes da série de
cobranças impostas pelo regulamento e elas interferem na conduta do
policial?...................................................................................................................................151
Gráfico 08: Fatores extra-judiciais e institucionais que interferem na objetividade e
transparência do processo judicial..........................................................................................154
Gráfico 09: Para você quais aspectos negativos do trabalho da Justiça Militar....................155
Gráfico 10: Quais fatores foram predominantes para a prática de seu delito........................158
Gráfico 11: Procedimentos de apuração de crimes ou transgressões disciplinares..............168
Gráfico 12: Culpados e inocentes no IPM e Sindicância......................................................170
Gráfico 13: Distribuição de culpados em procedimentos administrativos por grau hierárquico
................................................................................................................................................175
Gráfico 14: IPM's e Sindicâncias arquivadas........................................................................176
Gráfico 15: Punições disciplinares e punições decorrentes de transgressões ou crimes
praticados contra civil ou militar (2001-2009........................................................................178
Gráfico 16: Resultados de pedidos de reconsideração de ato punitivo da autoridade militar
(2001-2009)...........................................................................................................................180
Gráfico 17: Exclusões a bem da disciplina (2001-2009)......................................................184
Gráfico 18: Entrada e saída de militares nas fileiras da Corporação (2001-2009)...............185
14

SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO...................................................................................................................15

2. QUADRO DE REFERÊNCIA TEÓRICA: MILITARISMO, HIERARQUIA E


DISCIPLINA...........................................................................................................................24
2.1 Observações preliminares...................................................................................................24
2.2 Poder hierárquico e o domínio sobre o “outro”..................................................................26
2.3 Funções “totais” e “flexibilização” das relações hierárquicas............................................37

3. FORMAS DE CONTROLE E PRÁTICAS DE VIGILÂNCIA INSTITUCIONAL....60


3.1. Instrução Militar e formação da “carreira moral” do soldado............................................60
3.2. Instrução Militar: práticas e (re)direcionamentos no processo formativo.........................63
3.3. A (re)invenção de mecanismos de responsabilização legal e poder disciplinar................76

4. TRANSGRESSÃO, JUSTIÇA E DISCIPLINA.............................................................107


4.1. A Transgressão disciplinar e as intervenções da autoridade militar: “o poder punidor” na
4ª Seção...................................................................................................................................107
4.2 PRESMIL: a perda da liberdade e a redefinição da função do “lugar da cadeia”............127
4.2.1 Representações sobre disciplina e a “ética policial militar”..........................................142
4.2.1.1 Das condições de pesquisa e coleta de dados no PRESMIL.......................................142
4.2.1.2 Percursos de transgressão e indisciplina: a concepção de hierarquia, disciplina e justiça
na ótica do interno do PRESMIL............................................................................................144
4.3 O poder punidor: as configurações no plano das relações hierárquico-disciplinares e as
intervenções da autoridade militar sobre “disciplina da tropa”..............................................167

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................................189
REFERÊNCIAS....................................................................................................................197
APÊNDICES
1

1. INTRODUÇÃO

A militarização das forças de defesa nacional, desempenhada primordialmente

pelas Forças Armadas, e de significativa parte da área de Segurança Pública, confirma a


1
existência (ZAVERUCHA, 2001, p. 01) e preservação de uma herança histórica deixada pela

presença dos militares na vida política brasileira. A desmilitarização da política brasileira é

um dos temas integrantes da corrente sociológica que analisa as relações entre militares,

sociedade civil e Estado, colocando em questão as “intersecções” mantidas nestas três

instâncias da vida societária. Diversas são as questões que analisam o militarismo em sua

dimensão sócio-histórica, reafirmando a pertinência de se estudar os militares enquanto

“categoria social” atuante no cenário político brasileiro.

O papel desempenhado pelas instituições militares está, em sua fase histórica


contemporânea, dividida entre a manutenção do aparato bélico e organizacional de dimensão
nacional cujo propósito está relacionado à própria inserção das Forças Armadas dentro da
lógica de “defesa do território nacional”, fazendo parte da estrutura “burocrática” do estado
democrático, e a preservação hodierna na manutenção da “ordem social” (exercido pelas
“forças auxiliares”) implicando nisto na disposição de condições materiais e organizacionais a
serem empregadas no campo da segurança pública em níveis locais e regionais. No primeiro
encontramos o militarismo situado no contexto institucional das Forças Armadas (Exército,
Marinha e Aeronáutica). O segundo plano “situacional” dos militares se refere à presença
destes na estrutura estatal de “gestão” da atividade pública responsável pela promoção das
condições de segurança e combate à criminalidade, atuando cotidianamente a partir de ações
de policiamento urbano promovida pelas polícias militares.

O tipo de militarismo identificado na polícia militar reúne elementos híbridos em


sua composição, oscilando entre a identidade militarista, advinda da herança histórica e
institucional das Forças Armadas, e nas finalidades constitucionais estabelecidas para aquela

1
ZAVERUCHA, Jorge. Poder Militar: entre o autoritarismo e a democracia. Revista São Paulo em Perspectiva,
vol. 15, n° 4, São Paulo, Out./Dez., 2001. Disponível em: <www.scielo.com/ scielo.php>. Acesso em: 15 mai
2009.
1

“força de segurança”, cujos propósitos mais imediatos se resumem na mobilização de ações


de combate ao fenômeno da violência urbana localizada no interior da sociedade civil.

Detendo-se à dimensão militar, integrante da Segurança Pública, o presente estudo


intitulado “Justiça e disciplina: análise das práticas de controle institucional na Polícia Militar
do Estado de Sergipe (2001-2009)”, tem a finalidade de estudar as relações institucionais
existentes na polícia militar, tendo em vista analisar como os mecanismos de controle interno
estão atrelado à uma visão “regulamentar” do fenômeno do “desvio de conduta”. De que
forma a instituição exerce seu poder de controle sobre seus membros e como esse controle
está condicionado a uma determinada concepção de transgressão e de delito.

Nesse sentido, o estudo da violência policial tem integrado o que poderíamos


denominar de “agenda do dia” das discussões sociológicas e representa, dessa forma, a
pertinência do “olhar crítico” lançado pelas Ciências Sociais sobre a função das instituições
policiais em matéria de profilaxia criminal.

Todavia, a proposta aqui apresentada, tendo por ambiente de pesquisa a Polícia


Militar de Sergipe, é a de direcionar esse olhar crítico para o interior da instituição tentando
visualizar os “micro mecanismos de poder” e os seus respectivos efeitos produzidos e
direcionados aos sujeitos que integram as “fileiras da corporação”. Sendo assim, convém
indagarmos como esses mecanismos permitem vislumbrar aspectos indicativos de processos
de “redefinição” da autoridade militar e da função social exercida pelo aparelho repressivo da
instituição (FOUCAULT, 2005).

A tarefa de “mergulhar” no interior da instituição policial militar, no período entre

2001 e 2009, para entender o espírito de um determinado momento histórico implicou num
duplo aspecto a ser considerado em termos metodológicos: primeiro, selecionar os
“mecanismos” de poder que “traduzem” uma série de rearranjos institucionais que se faz
refletir na sistemática de atividades de controle jurídico e administrativo. Em segundo, temos
o desafio de tentar entender como as “redes de poder” – que antes expressavam em grande
medida a capacidade de intervenção da instituição sobre a vida do sujeito (FOUCAULT,

2005, GOFFMAN, 1974) feita predominantemente pela aplicação dos códigos de conduta
militar – estão tendo que ceder às pressões vindas de fora, ou seja, o poder disciplinar
1

exercido pela autoridade militar teve que reconhecer e, de certo modo, ser redefinido pelas
constantes intervenções advindas de outras instâncias da vida social como, por exemplo, o
Poder Judiciário.

Nesse sentido, podemos ainda nos questionar em que medida a autoridade militar,
figurada na categoria dirigente – para retomar a idéia de autoridade institucional presente em
Goffman – teve que empreender alterações em sua sistemática de controle jurídico-
administrativo em função da emergência de variáveis que se tornaram fatores de “limitação”
do exercício do poder.

Método e técnicas de coleta de dados

A presente pesquisa se utilizou de diversas ferramentas de coleta de dados e de


direcionamento metodológico de seus procedimentos. Em primeiro enfatizamos a dimensão
documental da pesquisa que se valeu fartamente do material documental disponível nos
arquivos e ambientes de armazenamento de dados pertinentes à instituição. Privilegiamos os
documentos denominados Boletins Gerais Ostensivos (BGO’s) que trazem os atos e as
decisões do comando geral da polícia militar de Sergipe; num primeiro momento havíamos
decidido pesquisar a 4ª Seção, onde se encontram os resultados dos procedimentos de
penalização administrativa dos militares acusados de terem “ferido” o pundonor militar; mas a
leitura dos BGO’s havia revelado que nas demais sessões do boletim traziam importantes
informações sobre as relações de controle mantidas entre a instituição e o policial.

Na fase preliminar da pesquisa nos deparamos com alguns exemplares do Boletim


Reservado, destinado apenas à leitura dos oficiais, sendo, portanto, vedado o acesso aos
demais segmentos hierárquicos. Tal impedimento se transformou em sério obstáculo às
intenções iniciais de pesquisa, tendo-me que me contentar com os escassos exemplares em
“ocasionalmente” tinha acesso.
1

As dificuldades no acesso de documentos relativos ao oficialato não se aplicou


apenas à pesquisa de boletins reservados, mas se estendeu também a todo e qualquer
documento de conteúdo disciplinar ou criminal que se referia a oficiais, indicando a
existências de práticas de controle e preservação de informações, permitindo, assim, a
manutenção de uma imagem pública “condizente” com o que se espera da ética e do pundonor
do oficialato. A indisciplina, portanto, estava relacionada aos segmentos hierárquico dos
praças, visualizada na 4ª Seção do BGO que registrava as transgressões cometidas e o
resultado das punições aplicadas pelo comando geral.

No Arquivo da PMSE os processos disciplinares foram sendo consultados, muito


embora a disposição de tais documentos fosse outro obstáculo à pesquisa, visto que no
arquivo havia evidente acumulo desorganizado de materiais documentais, amontoados na
sala, ocupando até mesmo o chão do corredor do quartel como se verifica em fotos retiradas
do local (ver apêndice).

Além do recurso aos documentos, a pesquisa se valeu de anotações sobre práticas


cotidianas, recorrendo a elementos de observação direta. Esta foi possível devido a minha
presença diária no quartel central, onde ocorriam as interações com os entrevistados.
Adotaram-se como instrumentos de coleta de dados a entrevista e o questionário, ambos
aplicados de acordo com as necessidades da pesquisa que exigia a diversidade de meio de
coleta de informações. Por meio das entrevistas se buscava reunir informações sobre cotidiano
profissional, acerca das relações hierárquico-disciplinares e, também, sobre alguns eventos
que ocorreram no período estudado.

Por meio de visita ao percurso biográfico do sujeito e suas representações sobre a


“vida militar” procuramos entender como a compreensão do policial acerca de sua “condição”
na instituição permite entender determinados aspectos da relação entre indivíduo e instituição.
Para visualizar ainda mais o conteúdo dessa relação dividimos a população de entrevistados
em dois grupos, sendo aplicados roteiros de entrevista diferenciados: a primeira categoria de
indivíduos entrevistados se refere aos sujeitos que exercem suas atividades cotidianas no
QCG, desempenhando alguma função relacionada à estrutura disciplinar. Oficiais, praças
especiais e praças foram entrevistados no próprio local de trabalho; em suas respectivas
1

seções ou na capela do QCG. A interação entre pesquisador e entrevistado se deu sem maiores
complicações, favorecendo o ambiente de diálogo necessário à pesquisa; evidentemente
algumas questões não foram plenamente respondidas haja vista se referirem a aspectos
intrigantes do contexto institucional.

O segundo grupo de entrevistados é constituído pelos internos do PRESMIL.


Nesse grupo se observou maior dificuldade de acesso, pois o presídio militar tem passado,
desde o segundo semestre de 2008 devido às fugas de internos, por contínuas reformulações
na segurança do prédio, implicando em maior rigorosidade nas visitas. Nesse caso, a minha
condição de ex-membro do serviço de atendimento religioso favoreceu a entrada no
estabelecimento que se dava semanalmente através dos eventos religiosos, permitindo o
contato com os internos para fins de pesquisa. Infelizmente fotos internas não foram possíveis
serem tiradas, pois o detector de metais reconhecia o dispositivo, sendo vedada a entrada de
máquina fotográfica.

O questionário foi adotado por sua economia de tempo, visto que as atividades
pastorais ocorriam num período máximo de 1 hora e 20 minutos. Muitos dos entrevistados
somente eram consultados após os eventos religiosos, exigindo uma dinâmica mais intensa
por parte do pesquisador. A partir dos primeiros contatos, a sistemática foi modificada, pois
se passou a consultar o interno que não participava dos “cultos”, havendo, portanto, maior
espaço de tempo para as entrevistas; mesmo assim estas exigiram mais de uma sessão.
Participaram da pesquisa os 25 policiais militares internos, desprezando-se os presos que não
pertenciam à PM, sendo que desse universo 6 policiais participaram das entrevistas.

Por meio das entrevistas e do questionário é possível ao pesquisador, por meio da


fala dos sujeitos, acessar a uma série de informações que compõem a “percepção” da
realidade “em movimento”. A partir do diálogo com os sujeitos se pretende estabelecer as
condições de confronto entre o processo de conhecimento e a realidade social (DEMO, 1995,
p. 29), sendo o diálogo um importante mediador entre a prática de pesquisa e o fenômeno

estudado.
Em suma, as ferramentas metodológicas de coleta e processamento de dados
objetivaram a elaboração da análise fundada na apreensão crítica da dinâmica de poder
2

identificada na PMSE num determinado período histórico. Sabemos que essa dinâmica se
manifesta em dois níveis de observação: surge enquanto “manifestação” de poder, instituído
por atos formais, públicos e legais da autoridade como exercício efetivo de suas funções
estruturais no interior da corporação; outro nível se refere ao patamar daquilo que é “vivido”,
experimentado pelos sujeitos numa dinâmica básica das sociabilidades cotidianas; nestas
encontramos valiosa fonte para entendermos a relação entre direito, poder e verdade, tríplice
aspectos integradores do fenômeno considerado no presente estudo. (FOUCAULT, 1999)

Estrutura do trabalho

No primeiro momento de debate faremos uma reflexão conceitual acerca das


categorias “militarismo, hierarquia e disciplina”, tal análise partirá da perspectiva teórica
apresentada nos estudos de Erving Goffman e Michel Foucault, enfocando as dinâmicas
intrainstitucionais que marcam a natureza “agressiva” e coercitiva das relações mantidas entre
indivíduo e instituição. As contínuas intervenções empreendidas pela instituição, como
resultado da imersão do indivíduo no contexto organizacional, condicionam a configuração
das formas de controle que recaem sobre os indivíduos como resultados dos pressupostos de
exercício de poder efetivado pela figura da autoridade.

A noção de poder hierárquico surge no cenário institucional como elemento


fundamental da dinâmica das relações interpessoais mantidas entre os segmentos hierárquicos,
sendo a disciplina um meio pelo qual transitam as relações de poder. Nestas relações aparece
em estado “puro”, como previsão do regulamento, uma concepção totalizadora da capacidade
de controle institucional caracterizado pela excessiva imposição de exigências
regulamentares, direcionadas ao comportamento dos indivíduos. Para Goffman (2008) a vida
em instituições militares, por exemplo, é marcada pela intensa cobrança das categorias
dirigentes que tentam cotidianamente imporem limites à conduta dos sujeitos. Essa tensão
deriva, em parte, dos propósitos da autoridade em definir os parâmetros de conduta e de
2

realização de atividades profissionais; no caso da polícia militar o oficialato surge como


operador do regulamento, estabelecendo níveis de obrigação que se refletem nas práticas de
controle do cotidiano profissional. Nessa relação os níveis de sujeição são diferenciados
obedecendo à lógica de estruturação hierárquica; tal sujeição, no entanto, aparece questionada
pelos indivíduos que percebem como antagônica a pretensão da autoridade em manter um
domínio fielmente condicionado pelo regulamento disciplinar. A capacidade de contestação
surgida no interior da hierarquia e as pressões vindas de “fora” , como se verá mais adiante,
são fatores atuantes na flexibilização das relações hierárquicas. Deve-se pensar, portanto, nos
propósitos da autoridade militar em manter os níveis de controle sobre a conduta dos sujeitos
2
e, igualmente, de repensar o “sentido” de tal controle , no modo que ele se realiza e se

“choca” com os seus “alvos”, seus “objetos”. Sendo assim, não se está preocupado em saber
qual a figura mais ilustrativa, a que deteve mais poder, mas sim, entender como determinadas
decisões e procedimentos circunscritos na esfera institucional criminal, administrativa e
interpessoal da PMSE representam um “momento” histórico de “redefinições” nos esquemas
de distribuição do poder.

No momento, analisaremos aspectos significativos algumas alterações no percurso


institucional da PMSE verificando a presença de idéias e valores que sofreram determinadas
influências do entrecruzamento de contextos sociais. A entrada de recrutas nas fileiras da
corporação e a presença de valores vindos do “mundo de fora” permitiram a redefinição de
certos aspectos da relação disciplinar mantida no interior da instituição. Deteremos-nos nas
relações disciplinares, visualizando nestas as implicações das intervenções feitas pelo
comando geral no sentido de assegurar níveis de controle e de responsabilização da conduta
dos sujeitos. Nesse momento perceberemos como a emergência de um discurso voltado para a
legalidade, expressa no rigor do procedimento disciplinar e na “redefinição” dos mecanismos
de punição, expressa uma preocupação da autoridade quanto os limites de seu efetivo

exercício de poder.

2
Os “discursos de verdade” tratados por Foucault exemplificam uma das dimensões da dinâmica do poder: a
produção de discursos carregados de sentido determinante, ou seja, o discurso é expressão de uma “vontade”,
cujo propósito mais imediato é gerar as condições de “legitimidade da dominação”. (Foucault, 2005, p. 31)
2

No terceiro momento, faremos uma apresentação dos dados relativos ao fenômeno


do desvio de conduta, visto sob dois ângulos: enquanto “desrespeito” ao que preceitua o
regulamento, constituindo um delito que fere o conteúdo das relações disciplinares; e
enquanto fenômeno que origina problemas mais graves como, por exemplo, a violência
policial. Veremos nesse capítulo como a instituição “soluciona” as questões de indisciplina e
como o desenho institucional encontrado na PMSE impede muitas vezes o devido
acompanhamento dos resultados de processos de investigação. Outro aspecto a ser analisado
se refere às relações entre mecanismos internos e externos de controle; o primeiro, gerido a
nível administrativo, responsável por classificar problemas de desvio de conduta (em diversos
níveis de gravidade) como “problemas de indisciplina”; o segundo relacionado às constantes
intervenções do Poder Judiciário sobre o resultado de operações e de ações praticadas por
policiais militares no exercício profissional.

Os mecanismos internos de controle e de responsabilização disciplinar e criminal


refletem determinados aspectos da ordem militarista. Nessa ordem encontramos uma lógica
que é compatível com os princípios de distinção hierárquica, induzindo, inclusive, os
resultados de procedimentos de responsabilização criminal e administrativa a “mostrarem” ou
“ocultarem” o desfecho final dos processos. Em meio a essa ordem de coisas a preocupação
se direciona ao “controle” daqueles que “estão controlando”, ou seja, a ausências ou a
precariedade de mecanismos externos de controle sobre o rumo dos procedimentos permite
que arbitrariedades sejam cometidas. A questão não está em “o que está se punindo?”, mas
como e quem está sendo punido? Podemos associar a estas questões outra que se relaciona à
própria vigilância que deve recair sobre os dirigentes dos mecanismos punitivos. A falta de
visibilidade de quem está de fora é preocupante, pois os registros de punição e de
procedimentos disciplinares e judiciais apontam predominantemente para segmentos
hierárquicos inferiores, deixando de fora o problema de desvio de conduta que atinge ao
oficialato. Talvez pelas dificuldades de pesquisa essa última questão não tenha sido
respondida, mas se torna um importante indício para pensarmos um estudo que contemplo o
fenômeno do desvio de conduta de maneira mais abrangente.
2

2. QUADRO DE REFERÊNCIA TEÓRICA: MILITARISMO,


HIERARQUIA E DISCIPLINA

2.1 Observações preliminares

3
Um dos pilares da instituição militar é a hierarquia concebida aqui, para efeito do
presente estudo, em dois momentos: o primeiro enquanto diretriz categórica cuja finalidade se
expressa em termos de teoria “sistêmica” gerando níveis de estruturação funcional e
4
burocrática, condicionando os papéis exercidos pelos sujeitos no interior da instituição.
Temos nesse primeiro aspecto uma das bases de elaboração e manutenção da autoridade
militar; podendo-se reconhecer nesta a importância da hierarquia enquanto fator de
5
normatização e de “racionalização” das atividades que compõem o “ofício” do militar.

A segunda, digamos assim, propriedade da hierarquia está relacionada à dimensão


“moral” decorrente dela, isto é, ela cria as condições “morais” e “mentais” necessárias à
6
consolidação do “sentimento de corpo” , atuando pois como fator de coesão, corroborando
para a manutenção da unidade de conjunto, em outras palavras, mantendo “firmes” os “elos”
de ligação que unem os diversos segmentos a um princípio diretriz de unidade ou
homogeneização institucional. Esse aspecto de homogeneização – entendido aqui como
resultado de processo histórico que conferiu ao militarismo um “lugar” bastante específico no
3
4
A postura e o comportamento do “soldado” são tratados no Regulamento Disciplinar por meio de noções como
a de pundonor militar, garbo, conduta ilibada, civilidade, camaradagem etc. Sobre esses “quesitos”
comportamentais ver, por exemplo, os artigos 3°, 4° e 6° do R-4.
5
O termo ofício designa “prática profissional”.
6
Esse “espírito de corpo” é uma referência aos requisitos de “camaradagem e companheirismo” presentes tanto
nos regulamento quanto em outros setores da vida profissional do policial militar; a título de demonstração e
para enfatizar o nível representativo do sentimento de camaradagem observemos, por exemplo, que a Canção da
Polícia Militar de Sergipe (hino este que é entoado obrigatoriamente nas formaturas militares no pátio do CFAP)
apresenta em seu refrão a seguinte expressão: “Unidos ombro a ombro”. Esse trecho que inicia a referida
canção apresenta uma afirmação da “igualdade” entre os pares, igualdade esta partilhada na dedicação ao dever
a ser cumprido de maneira indistinta, sendo um requisito de profissionalismo e de ética policial militar.
2

quadro geral das instituições sociais, justificando sua inserção na estrutura de poder político –
não impediu a construção de relações de “interação”, “cooperação” e de “negociação” com
7
segmentos da sociedade civil (MERCADANTE, 1994) . As estratégias de “adaptação” do
militarismo às circunstâncias históricas adversas foram responsáveis pela própria
“redefinição” dos papéis desempenhados pela instituição militar; um dos exemplos dessas
estratégias de “adaptação” e de arranjos das funções sociais das Forças Armadas, mais
particularmente do Exército, é-nos fornecida pelo estudo de Ernesto Seidl (1999, p. 28) cuja
problemática permitiu tratar da
(...) tendência de "modernização" experimentada pelos exércitos europeus -
burocratização, adoção de critérios rígidos de ascensão interna,
escolarização e tecnificação -, eram criadas medidas objetivamente
destinadas a romper com os mecanismos até então "frouxos" e pouco
objetivos de regulação hierárquica.

A “tendência de modernização” foi uma experiência identificada nos exércitos

europeus, como bem destaca o autor, revelando o caráter de um processo de “racionalização”

da instituição militar que apontava para um “movimento” de revisão das funções sociais

daquela instituição. No Brasil, em face da condição periférica que conferiram certas

peculiaridades à instituição militar (SEIDL, 1999, p. 31), o dito fenômeno de modernização

não se deu integralmente, como ocorrera no caso europeu, porém, a modernização do exército

brasileiro foi mais lento e repleto de especificidades; um dos aspectos marcantes na

reformulação da instituição militar esteve relacionado à profissionalização. Isto porque, a

reformulações dos fundamentos institucionais da profissionalização militar marcavam

representavam algumas tarefas a serem enfrentadas pela instituição. De certo modo, estava se

consolidando a concepção de que a atividade militar em sua vertente profissional (o dever

militar e suas possibilidades de efetivação na rede de relações sociais), contribuía para o

desempenho e a manutenção dos papéis profissionais dos sujeitos tanto na esfera militar

quanto na sociedade civil. Mas a dita modernização experienciada pelo exército só foi

possível devido à superação de práticas personalísticas e a emergência da noção de mérito.

Esta surgia na paisagem institucional militar como resultado do processo de reformulações no

7
MERCADANTE. Militares e civis. Anotar referência!!!!!
2

sistema educacional que via na titulação e na formação técnico-profissional o estabelecimento


de critérios formais e objetivos reguladores da ascensão na hierarquia militar. (SEIDL, 1999,
8
CASTRO, 2004)

Se num dado momento histórico das Forças Armadas, respeitando as


especificidades de cada “força”, a modernização se apresentou como um fator de redefinição
de funções e das relações no interior da instituição militar, entendemos, e essa é uma das
hipóteses apresentadas, que a hierarquia – expressão da autoridade militar – teve que ser
repensada no cotidiano das práticas de poder. Isto significa dizer que a Polícia Militar de
Sergipe teve de enfrentar a tarefa histórica imposta pela própria conjuntura do estado
democrático de direito, cuja diretriz conceitual e política, projetada e paulatinamente
consolidada a partir da Constituição Federal de 1988, colocou “limites” no exercício do poder
institucional conforme os moldes das práticas de vigilância e controle castrense.

2.2 Poder hierárquico e o domínio sobre o “outro”

A Polícia Militar de Sergipe, sendo força auxiliar do exército, segue a ideologia

militarista em suas duas vertentes conservando como “eixos” de estruturação da “carreira

moral” (GOFFMAN, 1974) dos sujeitos a Hierarquia e a Disciplina. Nestes termos, a


9
aplicação do poder disciplina se funda em duas dimensões que se revezam e guardam entre si

profunda relação “simbiótica”; desta simbiose de valores e “formas teoréticas” de disposição

e controle da vida militar surge a autoridade militar. Esta autoridade reúne em si elementos

8
Ernesto Seidl (1999) demonstra, em seu estudo, por exemplo, como a carreira militar é produto de
“reformulações” no processo educacional, gerando as condições institucionais e formativas necessárias ao
preparo de “grupos” no interior do exército brasileiro que se caracterizam pelo domínio de saberes técnico-
profissionais. As “elites” profissionais reconhecidas e analisadas pelo citado autor comprovam a relação entre
saber, mecanismos de exercício de poder e reformulação dos elementos reguladores da vida institucional.
9
Categoria empregada por Michel Foucault para descrever e conceituar as relações de poder no interior
das instituições e reconhecer nas práticas institucionais as
2

que se situam na esfera normativa e jurídica, configurando a existência e manutenção de


10
funções burocráticas estatuídas pela “racionalidade burocrática” aplicada à atividade
policial na qualidade de serviço público. Mas à margem dos mecanismos de controle se
encontram o cotidiano das experiências interpessoais, formando o âmbito das práticas e das
representações tão fundamentais para entendermos o modus vivendi da instituição militar.

Entretanto, é preciso partir da seguinte suposição: a “ética militarista” identificada


nos membros da polícia militar de Sergipe não coincide com a mentalidade convencional das
instituições que compõem as Forças Armadas; evidentemente entendemos que entre o
“vivido” (aquilo que marca a experiência humana como experiência empírica e representada
nas práticas correlatas) e o “pensado” (pertinente ao pensamento oficial, ao que é apresentado
11
em termos de regra positivada e do que é publicamente “anunciado”) existe, por vezes, um

hiato obstaculizando comparações simplistas e afirmações genéricas. Essa lacuna que se


refere às diferenciações entre o militarismo das Forças Armadas e o da força policial,
entretanto, pode ser presumida de dois fatores relacionados ao histórico de formação desta
última: o primeiro consiste na própria condição “legal”, prevista no texto Constitucional de

1988, segundo o qual ao militarismo é reservada uma posição de destaque na área de


12
segurança pública , competindo às polícias militares a salvaguarda da ordem pública
(compondo assim a estrutura coercitiva do Estado); o segundo, pelo menos no caso particular
da PMSE, refere-se à memória da força pública provinciana (e na continuação desta estão as

volantes como instituição recente cuja importância social se tornou relevante no “projeto”

10
Esta categoria representa para o pensamento weberiano uma e definitiva etapa do processo histórico de
organização da atividade pública e administrativa, isto porque as práticas de gerenciamento da vida pública antes
delimitadas a campos interdependentes das esferas da vida íntima e da vida pública são transformadas pela
inserção de determinadas diretrizes “conceituais e institucionais” responsáveis pela “remodelação” das formas
de dominação política. Neste sentido, vejamos então o que Max Weber destaca em termos de Estado
Moderno: “Em um Estado moderno, o domínio efetivo, que não se manifesta nos discursos
palamentares nem em declarações de monarcas, mas sim no cotidiano da administração, encontra-
se, necessariamente e inevitavelmente, nas mãos do funcionalismo, tanto militar quanto civil, pois também o
oficial superior moderno dirige as batalhas a partir do ‘escritório’”. (WEBER, 2004, p. 529)
11
Celso Castro (2002), em seu estudo de perfil “antropológico”, destaca a função da ritualística das cerimônias
militares (tidas como “campos” de difusão de uma imagem pronta e acabada da instituição, necessária à retórica
de reforço dos valores e da “tradição” castrense), integrando aquelas as estratégias de afirmação identitária. Os
processos identitários definem os limites de experiência do “autêntico” ou “convencional” militarismo,
prefigurando ou reconfigurando, espaços sociais delimitados e “homogêneos”.
12
Sobre o fenômeno de militarização da Segurança Pública, ver estudo de Jorge Zaverucha em sua obra:
“Frágil
Democracia: Collor, Itamar, FHC e os militares”. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
2

político de combate ao banditismo regional ou mais especificamente ao fenômeno do


13
cangaceirismo) apresentada, sob uma perspectiva histórica defendida por oficiais , como
“instituição original” sobre a qual se celebra o passado e se reafirma, perante a sociedade
14
civil, a continuação da “missão social” da corporação em matéria de segurança pública.

A título do que fora acima demonstrado podemos reconhecer duas vertentes


ideológicas coexistindo e contribuindo para a formação de um militarismo de tipo híbrido. O
militarismo nas Forças Armadas e o presente na PMSE se baseia num conjunto de
regulamentos semelhantes; para fins de delimitação tomemos, por exemplo, as normas
disciplinares e de organização de serviços: Regulamento Disciplinar do Exército (R-4),
Regulamento Interno e dos Serviços Gerais (RISG ou R-1), Regulamento de Continências,
Honras, Sinais de Respeito e Cerimonial Militar das Forças Armadas (R. Cont. ou R-2);
Regulamento de Administração do Exército (ERA ou R-3). A aplicação do poder disciplinar
na PMSE segue, em grande parte, os postulados inscritos nos regulamentos supracitados,
alinhando, assim, a ideologia militarista à consolidação da dinâmica cotidiana de controle e
“policiamento” da conduta dos sujeitos na esfera institucional correspondente.

A presença da ideologia militarista no interior da PMSE não se dá tão somente em


termos de aplicação de normas e regulamentos, mas se expressa no próprio histórico do
15
comando da instituição. Conforme registros disponíveis entre o período de 1909 a 2009
ocuparam o posto máximo na hierarquia funcional da instituição um total de 59 comandantes

gerais; dentre estes cerca de 34 militares pertenciam ao Exército Brasileiro e apenas 25

13
Vejamos trecho referente ao prefácio da “Coletânea de Leis e Normas Internas da Polícia Militar do Estado de
Sergipe” quando encontramos a referência ao passado imemorável e a reafirmação da missão atual da instituição
no tocante à sua função social: “Fugindo um pouco da metodologia, resolvemos prefaciar esta obra,
rememorando a briosa História da PMSE, transcrevendo a Carta de Lei que teve a nobre e auspiciosa missão
de ser genitora de uma Instituição tão importante no seio da sociedade que hoje já é mais que sesquicentenária
no seu ideal de bem-servir Sergipe, o Brasil e o Mundo”. (2001, p. 04)
14
Na estrutura orgânica da PMSE a PM-5 exerce a função de “relações públicas” da Corporação, competindo-
lhe, entre outras atividades, a tarefa de elaboração do marketing da instituição e auxiliar o Comando Geral nos
atos de divulgação dos projetos da PM no tocante à atividade de policiamento ostensivo, bem como fazer as
devidas mediações entre a instituição e a opinião pública (imprensa) e a sociedade civil. A celebração da
“memória da instituição” ocorre mais intensamente - fazendo parte de constantes intervenções da PM-5,
conforme orientação da gestão da PM – nas comemorações natalícias da corporação que tem o “ponto de
origem” na Carta de Lei de 28 de fevereiro de 1835, promulgada no governo de Emanuel Ribeiro da Silva
Lisboa.
15
Ver anexo “Comandantes da PMSE entre 1909 e 2009”.
2

militares advém do oficialato da própria instituição. Cabe registrar que até 1983 a presença de
coronéis do Exército na PM era bastante marcante, possibilitando, assim, a imposição da
mentalidade militarista “convencional” no cotidiano e nas práticas de policiamento ostensivo
e nos relacionamentos interpessoais. Todavia, a partir de 1983, na gerência do Comandante
Geral coronel João Barreto Mota se dá uma mudança no tocante à freqüência de acesso ao
posto de comandante geral por parte dos coronéis do exército; registra-se, então, um período
caracterizado pela presença ativa de oficiais formados nos quadros da PMSE, ou seja, os
16
oficiais pertencentes ao Quadro de Oficiais da Polícia Militar de Sergipe (QOPM) passava a

fornecer à instituição “material humano” apto ao exercício da função de comandante e às


demais funções de chefia inerentes à estrutura organizacional da corporação.

Entre fevereiro de 1983 a julho de 2009 a PMSE conheceu 17 Comandantes

Gerais, dos quais 04 pertenciam ao exército (Coronel Pedro Paulo assumiu o posto em 95/97 e

2001/2002, portanto, duas vezes) e 13 às fileiras da corporação. Esse dado permite afirmar

que a importância dos oficiais QOPM alcançou condição proeminente no interior da

corporação, reforçando a função desta categoria em matéria de gerenciamento burocrático da

vida interna da corporação, bem como demonstra o nível de capacitação técnico-profissional


17
do segmento dos oficiais da PM , fazendo-os prescindir da interferência técnico-

administrativa advinda do exército. Pode-se atribuir a isto o fato de que a instituição tem à sua

disposição os meios formativos e educacionais específicos à qualificação do oficialato,

permitindo a contínua manutenção dos quadros de oficiais atuantes na área administrativa e

operacional da PMSE. A consolidação do oficialato, enquanto categorial profissional e

técnica, é parte de um processo mais amplo de “modernização” da estrutura educacional que

se verificou em alguns setores das Forças Armadas representando, assim, a readequação das

instituições militares aos ditames da moderna sociedade democrática (ZAVERUCHA, 2000;

16
É importante destacar que os oficias QOPM são formados, por meio de convênios entre a PM de Sergipe e de
outros estados (Paraíba, Alagoas, Pernambuco, Minas Gerais, Santa Catarina, Goiás, Bahia, Ceará), em
academias de preparação para cadetes cuja vertente formativa se define em termos das diretrizes de policiamento
das corporações militares estaduais. A PMSE não conta, até o momento, de academia para formação de cadetes,
dispondo apenas do CFAP (formação para as praças).
17
Decorrente de uma formação técnica específica para as polícias militares, embora se preserve nesta o
conteúdo militarista da formação profissional, ou seja, reforço na ideologia hierárquica e disciplinar como eixos
de desenvolvimento das qualidades inerentes ao pundonor profissional militar.
2

SEIDL, 1999). Mas essa “proeminência” do oficialato QOPM no tocante ao gerenciamento da


vida burocrática da PMSE em oposição à cada vez menos freqüente participação do oficialato
do exército sendo um dado histórico deve também ser visto como um fenômeno inserido num
18
universo mais amplo de mudanças e “reconfigurações” ocorridas e gestadas no interior
daquela instituição.

De fato, devemos pensar mais primordialmente num problema de maior interesse


para o presente estudo que se expressa na tarefa social de adequação do poder disciplinar a
um contexto social marcado pela formação de uma consciência democrática caracterizada
pela presença do discurso jurídico permitindo estabelecer os limites da autoridade militar,
obrigando-a a reconhecer a existência de “forças” situadas além dos muros do quartel. Para
entendermos a relação de forças mantidas entre o exercício do poder no interior da instituição
e as possibilidade de revisão/contestação daquele poder através do sistema normativo
Norberto Bobbio (2001, p. 26) irá afirmar que “Todo indivíduo pertence a diversos grupos
sociais (...). Cada uma destas associações se constitui e se desenvolve através de um conjunto
ordenado de regras de conduta”; essa pluralidade de normas define a condição jurídica do
sujeito moderno e indica a permanência deste numa rede de direitos e obrigações. Todavia, ao
demonstrar a dimensão plural do fato jurídico – situando-o dentro da perspectiva histórica do
sistema político democrático moderno – Norberto Bobbio não elimina a análise das
implicações desse fenômeno visto que em sua obra Era dos Direitos o mesmo afirmará que a
democracia moderna (ou o sistema democrático) consolidou um processo crescente de

18
Foram diversas as mudanças estruturais na administração militar ao longo dos últimos 20 anos do século XX.
Para delimitar essas mudanças facilitando a compreensão da observação acima tomemos a Lei n° 2.101 e 2.106
as quais tratam das especificidades de funções, obrigações e prerrogativas inerentes aos oficiais da PMSE,
definindo as condições de acesso do oficial à hierarquia militar. No cotidiano profissional as distinções, em
termos de valorização profissional, estão presentes reforçando as divisões “morais” entre oficiais de quadros
distintos. Desconsiderando o Quadro de Oficiais Operacionais (formados em acadêmicas e titulação superior) e o
Quadro Complementar de Oficiais (composto de oficiais especialistas de formação universitária a exemplo de
médico, odontólogo, veterinário, capelães, etc), podemos destacar o secundarização profissional existente entre
os oficiais QOPM e QOAPM (estes projetados desde segmentos inferiores da corporação); o oficial QOPM pode
chegar ao posto máximo da corporação conforme prescrito no art. 45 da Lei 2.101/77, no tocante aos oficiais
QOAPM a Lei n° 2.066/76, prescreve que o referido quadro somente tem acesso ao posto de major. Os oficiais
QOPM são relegados a funções administrativas, geralmente em condição de subordinado, e demais funções de
menor qualificação ou até mesmo empregados em eventos que não “exigem” maior qualificação. Para ressaltar
mais essa questão basta observarmos os BGO’s datados a partir do final de 2007 quando se verificará o emprego
de oficiais QOAPM em funções de “oficiais de dia” no QCG ou como adjunto do superior de dia, sendo essa
condição exercida por um “praça especial” ou subtenente.
3

19
especialização do direito como forma de atender e localizar (na estrutura do poder político)
as demandas apresentadas pelos diferentes segmentos sociais; essa emergência de demandas
sociais por direitos se traduziu numa preocupação com a aplicabilidade da lei exigindo desta
uma tendência marcada crescentemente pela especialização legislativa; disso abstraímos dois
aspectos fundamentais: a primeira se refere à estruturação de um poder político de base
jurídica mais ampla (reconhecedora da diferença enquanto elemento multicultural apresentado
pela sociedade moderna) e, ao lado deste, o acesso, pelo menos ao nível da teoria jurídica, a
direitos antes não tratados sob uma perspectiva ideológica redutora da condição jurídica do
sujeito, ou seja, o termo cidadão que servia em tempos históricos anteriores para designar o
conceito de pessoa jurídica cede lugar ao conceito de cidadania e às diversas facetas da
condição do cidadão. (BOBBIO, 2001, BECK,1997, AVRITZER, 2002)

20
Mas em se tratando de contextos democráticos o discurso jurídico, delimitado ao
espaço de formação e encaminhamento das demandas sociais por reconhecimento de direitos,
deve nos conduzir a reflexão dos limites do exercício de poder – expressas nas práticas e nos
mecanismos de controle e disciplinarização da conduta social e institucional dos sujeitos –
encontrado em instituições como, por exemplo, a polícia militar. O recorte histórico proposto
neste estudo primou pela observação de um momento peculiar na história da PMSE haja vista
encontrarmos a partir do final da década de 1990 e início do século XXI uma série de
“medidas” internas que figuram o processo de “racionalização” do poder disciplinar. Podemos
considerar nas medidas viabilizadas pelo oficialato da PMSE a tendência ao aprimoramento
dos procedimentos jurídicos e disciplinares cuja finalidade seria o reforço nas funções

regulares e coercitivas do poder disciplinar, ao passo também que representaria a

19
Bobbio diz o seguinte: “Assim, com relação ao abstrato sujeito "homem", que já encontrara uma primeira
especificação no "cidadão" (no sentido de que podiam ser atribuídos ao cidadão novos direitos com relação ao
homem em geral), fez-se valer a exigência de responder com nova especificação à seguinte questão: que homem,
que cidadão? Essa especificação ocorreu com relação seja ao gênero, seja às várias fases da vida, seja à diferença
entre estado normal e estados excepcionais na existência humana.” (BOBBIO, Norberto. Era dos Direitos. 1999
p. 47)
20
Aqui nos apoiamos na literatura sociológica e política – Mercadante, 1978; Zaverucha, 2004; Celso Castro,
2004; Carvalho, 2001; Heloisa Fernandes, 1979 – problematizadora das relações entre militares e civis, a qual
destaca as implicações dessa relação sobre o sistema político e a “revisão” do papel social das instituições
militares.
3

consolidação de práticas objetivas e formais de apuração das transgressões e dos crimes


militares.

21
O domínio sobre o outro é pensado segundo Goffman (1974,p. 149) , no caso da
instituição militar, sob a perspectiva do processo de “aglutinação” do sujeito em contextos
coletivistas que marcam a “inserção” da identidade pessoal numa realidade padronizada e, por
vezes, “anônima”. No tocante ao fenômeno de coletivização do sujeito em contextos
institucionais se deve considerar o conteúdo das práticas coletivistas, pontuado devidamente
as “motivações” e/ou circunstâncias da inserção do sujeito. Porém, a institucionalização (ou
coletivização) do sujeito se torna viável devido a articulação entre os mecanismos fundadores
da autoridade institucional; esta se coloca dominantemente como eixo de estruturação da
representação dos sujeitos acerca de si próprios, dos outros (e suas ações) e do ambiente em
que vivem. As “redes de poder” se mantém no cotidiano das práticas laborativas e recreativas
exigindo continuamente do sujeito o seu “engajamento” nas tarefas propostas pela instituição.

A noção de autoridade (ou poder) institucional desempenha no esquema


coletivizante de Goffman (1974) papel central sem o qual se tornaria inviável a construção de
análises direcionadas ao fenômeno das relações interpessoais. Todavia, deve-se apontar para
algumas das deficiências da abordagem do autor; primeiramente as relações interpessoais são
relações mediadas pela existência do contexto institucional que se impõe ao sujeito através
das normas cujo conteúdo de coercitividade está invariavelmente presente. Nesse sentido, a
autoridade, dinamizada pela divisão dos papéis e das atividades, “movimenta” no espaço das
relações interpessoais, situadas no contexto institucional, a dinâmica de poder que opera pela
força (física e/ou simbólica). As diretrizes e finalidades da conduta do sujeito não dependerá
estritamente de sua vontade autônoma (no sentido da conformação da vontade aos
delineamentos da subjetividade do indivíduo), pois a “introjeção” dos princípios normativos e
morais conferidos pela instituição forma a base comum de progressão da subjetividade dita
“institucionalizada”; temos nisso um problema porque a ação humana e sua capacidade de
subordinação ou insurbordinação está, de antemão, delimitada ao campo de “finalidades” e de

21
GOFFMAN, Erving. Agir e Ser, In: Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
3

expectativas da instituição, ou seja, o “certo” e o “errado” se transformam em signos do


poder “julgador” e normatizador da autoridade. A subordinação e a insubordinação são, nesse
sentido, os produtos autênticos da realidade institucional probabilidades previstas pelos
“organizadores” da vida interna e necessárias ao andamento de funções punitivas regulares.
Jamais é possível se manter nos extremos de subordinação e insubmissão, pois existe nas
relações interpessoais certas “suposições não-contratuais a respeito do caráter dos
participantes” (GOFFMAN, 1974,P. 148); esse acordo tácito funciona como meio pelo qual
os indivíduos representam os limites de suas relações interpessoais e com a autoridade.
Todavia, deve-se ressaltar que as referidas suposições não expressas em normas da
organização e que são implicitamente aceitas pelo indivíduo pode ser um fator de fluidez nas
relações entre o poder institucional e o sujeito, colocando-o numa posição em que sua
capacidade de submissão ao poder seja maior e mais efetiva, dando lastro ao cometimento de
arbitrariedades.

É preciso visualizar nessa relação – hierárquica e interpessoal entre os sujeitos e o


poder institucional – o princípio de aplicação do poder hierárquico, ou seja, de um poder que
atua de “cima para baixo”, mas também de um poder que se “pretende” totalizador, que atua,
a partir da abstração da norma positiva, de maneira a não deixar para o sujeito “brechas” de
contestação e de refutação da ordem jurídica. Embora se reconheça que a teoria de Erving
Goffman não alcance um nível de aplicabilidade analítica ao fenômeno do militarismo e suas
respectivas práticas institucionais – a título da observação feita por Celso Castro (2004) em
sua obra “O Espírito Militar” o qual fala das limitações e perdas na adoção da categoria
22
“instituição total” – sendo incapaz de apreender as relações de poder que transitam ao longo

dos diversos segmentos hierárquicos da PMSE, num dado momento histórico, impedindo,

também, fazer a “conexão” entre a mudanças de mentalidade, a emergência do discurso

22
Embora Celso Castro reconheça a aplicação da teoria das “instituições totais” de Goffman por parte de autores
como José Murilo de Carvalho e Alexandre Barros, irá afirmar o seguinte: “Embora se utilize como referências
básicas as prisões e manicômios, ele inclui as academias militares como exemplos de instituições totais. No
entanto, creio que se perde mais do que se ganha com essa classificação, pois as divergências com o modelo de
Goffman são grandes, apesar de várias semelhanças formais”. (2004,p. 37)
3

23
técnico-profissional e as “redefinições” na autoridade militar . Entretanto, o esquema de
Goffman fornece ao pesquisador um leque de possibilidades teóricas e metodológicas dada a
ampla catalogação de funções “orgânicas” e “empíricas” que são contabilizadas pela teoria da
“instituição total”.

Observar numa dada realidade, como o da PMSE, a “lógica” de operacionalização


do domínio da autoridade militar é o momento imprescindível do processo de apreensão das
relações de poder, pois é a dimensão normativa que expressa a juridicidade, em termos de
formalização de atos, rituais, discursos e papéis sociais integrantes do modus vivendi. Totadia,
há de se ressalvar uma determinada “angústia” que emerge da interpretação (possível) da
leitura de Goffman o qual nos apresenta um sujeito “preso” ao esquema de poder e controle
imposto pelas funções institucionais. O dilema “criado” e vivido entre a subjetivação do
sujeito, enquanto processo de “transmutação” da concepção de eu em auto-concepção e
representação do nós, e a sobrevivência da individualidade em contextos onde se verifique a
convergência de fatores de coletivização pode ser analisado de outro ângulo; neste caso as
ferramentas teóricas fornecidas por Foucault (1990), Deleuze (1990), Hubert Dreyfus (1995),
24
Paul Rabinow (1995), Jacques Derrida (2007) permitem entender que a relação instituição-

indivíduo (autoridade e sujeito) tem como pano de fundo determinados saberes e práticas
sociais incidindo continuamente sobre o sujeito e gerando elementos de representação, mas se
deve pensar e entender que o exercício do poder se confunde e se identifica com a aplicação
da força da qual pode-se “produzir” violência.

Os nexos ideológicos e “efetivos” entre poder, força e violência são suscitados, por
25
exemplo, em trabalhos como o de Jacques Derrida que trata de “desconstruir” as relações
de poder – que são vistas numa literatura sociológica do ponto de vista da dimensão

qualitativa do direito e imprescindível à fundação do ordenamento legal e institucional sobre o

23
A mentalidade militarista da PMSE (militarismo híbrido que conserva os fundamentos da ordem militarista
do
Exército e elementos do pensamento organizacional da Segurança Nacional),
24
Respectivamente: Michel Foucault e Deleuze (Microfísica do Poder), Dreyfus e Rabinow (Michel
Foucault:
uma trajetória filosófica) e Derrida (Força de Lei).
25
DERRIDA, Jacques. Força da Lei. São Paulo: Martrins Fontes, 2007. p. 10: “Gewalt é portanto, ao mesmo
tempo a violência e o poder legítimo, a autoridade justificada. Como distinguir entre força de lei de um poder
legítimo e a violência pretensamente originária que precisou instaurar essa autoridade.”
3

qual se ergue a autoridade e o poder político – a partir da interpretação dos antagonismos e


contradições presentes nas bases de justificação legais do “poder da justiça”, sendo assim, se
a justiça e o direito são as categorias epistêmicas da autoridade e se elas admitem como
requisito primordial a dinâmica de aplicação da força – da “força de lei” – então seria
conveniente apresentarmos, juntos com Derrida (2007, p. 09), a seguinte questão: “Que
diferença existe entre, por um lado, a força que pode ser justa, em todo caso julgada legítima
(não apenas o instrumento a serviço do direito, mas a própria realização, a essência do
direito) e, por outro lado, a violência que julgamos injusta?”

Portanto, convém destacar que dimensão coercitiva sob a qual se estabelecem as


conexões entre normatividade e realidade nos induzem a perceber as estreitas relações entre
poder, força e violência (vistos como elementos constitutivos da autoridade institucional,
jurídica e política). O ordenamento jurídico é fator de regulação “imperativa” da vida social
(justificando, por vezes, a prática de ação social violenta), tornando-se também produto do
26
desenvolvimento da comunidade política ; sendo assim, a ramificação da estrutura do poder

jurídico representa a dinâmica de distribuição do poder no interior de um dado “grupamento”


social. Na sociedade moderna essa distribuição é denominada por Weber (2004, p. 157) como
processo de “estatização das normas jurídicas”.

27
A violência legítima – ou Gewalt – é desqualificada, opondo-se claramente à
noção de uso arbitrário da força em decorrência de sua “justificação legal” e conformidade
aos regulamentos e normas de formalização jurídica instituídas pela comunidade política
(Estado), em outros termos, a violência legítima praticada, enquanto atributo de propriedade
institucional exclusiva, possui “natureza” e finalidade sui generis, pois sua aplicação tende a
produzir as condições de defesa e preservação do interesse coletivo. O estudo weberiano
permite observar a transição histórica da sociedade moderna ocidental sob o viés do fenômeno

de racionalização crescente das normas jurídicas em estrita relação com a disposição

26
Max Weber afirma o seguinte: “São produto de um desenvolvimento somente a monopolização do emprego
legítimo da violência pela associação territorial política e o estabelecimento de uma relação associativa racional
que faz dela um regime com caráter de instituição”. (2004, p. 158)
27
Derrida (2007, p. 81) irá dizer que direito e violência são marcadas por certa homogeneidade visto que: “[...] a
violência como exercício do direito e o direito como exercício da violência. A violência não é exterior ao direito.
Ela ameaça o direito no interior do direito”.
3

organizacional da comunidade política; nesse sentido, a justiça e o direito se desenvolvem


enquanto instituições racionais voltadas para fins inteligíveis, abrindo mão de elementos
personalísticos existentes na concepção “antiga” de justiça em que vingança pessoal e
justificação pública da “ação social violenta” se confundiam e formavam o campo efetivo da
dominação tradicional.

Diante da breve exposição da noção de normatividade em Weber, podemos tomar


28
o conceito de poder hierárquico como a fundação da autoridade racionalmente ancorada na
“legitimidade dos estatutos legais e da competência objetiva”, responsável por criar jurídica
e administrativamente os elementos de distribuição e de exercício do poder. A dita
racionalização das bases da autoridade conduziu à formação das condições materiais e
humanas de organização da atividade administrativa tornando o oficial (que a priori no
imaginário militarista é concebido como soldado de guerra modelar) um sujeito posicionado
na estrutura burocrática (WEBER, 2004).

29
Porém, no pensamento de Michel Foucault (2009, p. 164) encontramos os
materiais para pensarmos as relações advindas do “imperativo” jurídico, percebendo-as não
somente pelo viés da racionalização jurídica – representada como impessoal e continuamente
“razoável” -, mas através da ótica do poder disciplinar. Esta categoria assume, ao mesmo
tempo, a condição de método de análise haja vista permitir direcionar o olhar do pesquisador
para os aspectos simplórios do cotidiano das práticas sociais.

30
De fato, em sistemas sociais fechados ou semi-fechados as relações interpessoais
são construídas e definidas em dois momentos interligados: a obediência à norma prescrita em
código e a interação dos sujeitos mediada pelas “normas” de convivência. Com isso, afirma-se
a ressalva de Focault quanto à dinâmica de poder produzida pelas práticas sociais, isto porque
28
WEBER, Max. A instituição estatal racional e os modernos partidos políticos e parlamentos, In: Economia
e
Sociedade: fundamentos da Sociologia Compreensiva, Vol. II, 2004, p. 526.
29
Vejamos o que diz o trecho seguinte: “O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar
e de retirar, tem como função maior adestrar; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e
melhor.” FOUCAUL, Michel. Os recursos para o bom adestramento. In: Vigiar e Punir, 36ª ed.Petrópolis,
RJ:
Vozes, 2009. 164-186.
30
Adotamos aqui a noção de Erving Goffman acerca de sistema social fechado (ao qual ele denomina
“instituição total”) e sistema social semi-fechado (ou relativamente fechado) como sendo aquela instituição em
que o indivíduo não perdeu completamente o contato com a vida social exterior à instituição. Ver obras:
“Manicômios, prisões e conventos” e “A apresentação do Eu na vida de todos os dias”.
3

o poder não se exaure em sua definição legal ou estatutária, mas na própria dimensão
empírica de intencionalidades, de ações e de discursos que se produzem e se reproduzem no
meio social.

É imprescindível, então, perceber como as “mutações” de um ambiente


institucional – a exemplo das relações entre segmentos hierárquicos na PMSE e a formas
administrativas e penais de controle da conduta profissional do militar – refletem-se na
maneira pela qual o sujeito representa a sua atividade e condição no interior da organização;
nesse caso se torna imperativo analisar as limitações da visão jurídica que tenta conferir ao
poder sua dimensão mais relevante, esquecendo-se, por vezes, as relações construídas e
mantidas no interior e, também, à margem do sistema jurídico. O sujeito – visualiza-se em
particular o policial militar e sua condição na estrutura hierárquica da PMSE – não deve ser
tomado como elemento incapaz de agir e reagir às circunstâncias e desempenhar papel
significativo no contexto institucional; a hipótese dessa capacidade de direcionar
“intencionalmente” sua conduta a fins específicos, produzindo efeitos que adquirem
proporção coletiva e ampla (ou seja, tende a gerar referenciais à conduta de outros sujeitos no
interior da instituição) é um dos fios condutores que permitirá relacionar as mudanças
processadas na sistemática de controle e vigilância exercida pela autoridade policial militar
sobre os sujeitos a ela subordinados.

2.3 Funções “totais” e “flexibilização” das relações hierárquicas

Na “ideologia” militar identificamos o emprego de termos e categorias que


expressam o ideal moral proposto pela instituição e a referência à interiorização de uma
“ordem moral” que constitui o compromisso assumido pelo militar ao entrar nas fileiras da
3

corporação, veja-se a seguir em que consiste o compromisso “abraçado” pelo policial militar
31
retratado no Estatuto dos Policiais Militares do Estado de Sergipe :

Art. 26. São manifestações essenciais do valor policial-militar:


I – o sentimento de servir à comunidade estadual, traduzido pela vontade
inabalável de cumprir o dever policial-militar e pelo integral devotamento à
manutenção da ordem pública, mesmo com o risco da própria vida;
II – o civismo e o culto das tradições históricas;
III – a fé na elevada missão da Polícia Militar;
IV – o espírito de corpo, orgulho do policial-militar pela organização a que
serve;
V – o amor à profissão policial-militar e o entusiasmo com que é exercida; e
VI – o aprimoramento técnico-profissional.

Os termos acima empregado (sentimento, amor, fé, entusiasmo, espírito de corpo e


civismo) que servem para fornecer a dimensão subjetiva e moral da, assim chamada, “missão”
policial militar – ou seja, dever de preservar a ordem pública – são, também, os dados
“objetivos” impostos pelo dever profissional e “aceitos” pelo policial militar. O “estigma” do
policial militar do estado de Sergipe se revela pelos “indícios” de sua adesão ao projeto de
salvaguarda da ordem pública. A dedicação plena e o amor àquilo que diz respeito à atividade
policial militar se tornam critérios de exigência institucional, funcionando, por isso mesmo,
como “itens de avaliação” do perfil profissional.

Na continuidade da noção institucional de “valor policial-militar” – responsável


por conceituar parte do “espírito militar” que deve estar presente na conduta social do sujeito
e em sua consciência individual e coletiva – está a apresentação da “ética policial-militar”
descrita nos seguintes termos: “Art. 27. O sentimento do dever, o pundonor policial-militar e
o decoro de classe impõem, a cada um dos integrantes da Polícia Militar, conduta moral e
profissional irrepreensíveis, com observância dos seguintes preceitos da ética policial-
militar”. A referência às dimensões profissional e moral ampliam os requisito da conduta
militar “ideal”, pois se fundam na noção integral de “dignidade” policial militar. Ou seja,
encontramos na no regulamento estatutário e disciplinar da PMSE a menção à funções
31
Lei n° 2.066 de 23 de dezembro de 1976, dispõe sobre o Estatuto dos Policiais Militares do Estado de
Sergipe.
3

“totais” de controle devido ao caráter de amplitude objetiva e subjetiva imposta pela


Corporação ao sujeito integrado às suas fileiras. As exigências de “caráter ilibado”, “conduta
irrepreensível”, de “decorro de classe” e de “civilidade” compatíveis com a “ética militar”
traduzem a “densa” e estreita relação mantida entre a instituição e o seu membro. Essa estreita
relação se define como tal não somente por “cobrar” do sujeito aspectos mensuráveis –
desempenho, rendimento, produtividade, engajamento, etc. – mas por estabelecer um tipo
determinado de manifestação subjetiva dos valores transmitidos pela instituição e a contínua
“sinalização” de tais valores no cotidiano da vida dentro e fora dos muros do quartel.

Há, portanto, uma tensão permanente entre o direcionamento da conduta


profissional, institucional e social do policial militar e as condições reais de efetivação de tal
direcionamento. Sobre a generalidade das imposições expressas em termos regulamentares
Goffman (1974, p. 44) diz que “[...] a autoridade nas instituições totais se dirige para um
grande número de itens de conduta – roupa, comportamento, maneiras – que ocorrem
constantemente e que constantemente devem ser julgados”. O controle “econômico” das
ações dos sujeitos no interior da instituição militar se dá mais frequentemente pelas
interdições e obrigações regulamentares que cobram do mesmo a permanente observância dos
preceitos estabelecidos no código disciplinar. O grande número de itens de conduta expressos,
por exemplo, no R-1 (Regulamento Interno e dos Serviços Gerais) e no R-4 conferem à
autoridade militar um amplo campo de exercício de poder submetendo o militar à intervenção
da instituição no âmbito profissional (no cotidiano do serviço militar) e, também, na esfera
íntima (da família, da economia privada, das relações afetivas e amorosas).

Numa das fases de pesquisa em que se buscou uma pré-seleção de materiais de


estudo se tornou possível observar em documentos da PMSE, neste caso Boletins Internos do
32
QCG, delimitados ao período entre 1986 a 1988 , a tomada de decisões da administração

32
Os documentos acima referidos abrangem unicamente o Boletim Interno do QCG e o “contato” com eles (e,
por conseguinte a referência aos mesmos) deu-se no período exploratório da pesquisa cuja finalidade era a de
mapear as mudanças na prática punitiva e nas formas de controle jurídico entre 1986 e 1988. Este período que
havia sido “pensado” como recorte temporal foi abandonado devido ao fato de que as características do processo
administrativo e jurídico estavam muito próximas das diretrizes legais castrenses corroboradas com a própria
inserção do fenômeno das práticas punitivas num contexto de dominação política desempenhada pelos militares
(Carvalho, 2002), cujos reflexos se manifestavam no alinhamento entre o discurso institucional oficial e as
práticas exercidas pelo oficialato. Um dado que fornece indícios da aproximação entre a “ideologia” militarista
3

sobre a vida profissional e pessoal do policial militar. As medidas de proibição e interdição


citadas por Goffman (1974) como práticas de indução comportamental a um estado anti-
natural (ou não-natural) podem ser visualizada num dado momento da vida cotidiana da
PMSE; abaixo segue uma demonstração disso:

PERMISSÃO PARA CASAR CIVILMENTE – REQUERIMENTO


DESPACHADO: No requerimento em que o soldado QPMP n° 1616 da CG
João Batista Santos, solicitou a este comando, permissão para casar
civilmente com a srtª Ivanildes de Carvalho, de acordo com o que preceitua
o item IV do Art. 127, da Lei n° 2.066, de 23 de dez 76, em vigor nesta
OPM, foi dado o seguinte despacho: a) DEFERIDO, concedo a permissão
para a realização do matrimônio civil, de acordo com a legislação em vigor
33
(EPME-SE) e informações favoráveis do “SAS”

O “SAS” era a Seção de Ação Social cuja função primordial consistia em realizar

a uma pesquisa do perfil social do indivíduo integrado ou não às fileiras da corporação, a

partir das informações coletadas que atestavam ou não a idoneidade de determinado indivíduo

(nesse caso a candidata ao enlace matrimonial com um soldado) o comando geral

“comunicava” o deferimento ou indeferimento do “pedido” a ele dirigido. A existência do

“SAS”, funcionando como setor de investigação social, explicita parte de práticas de controle

institucional que penetravam na vida íntima do policial militar, delineando suas possibilidades
34
de decisão e de ação tanto na “esfera de suas competências legais” quanto na esfera de sua

vida íntima. Outro dado a ser acrescentado diz respeito à fundamentação jurídica da

“permissão de casamento”; a Lei n° 2.066 (Estatuto dos Policiais Militares do Estado de

Sergipe), informa que somente pedirão permissão ao comando geral o militar que deseja

casar-se com estrangeira (este é um exemplo de “aplicação” da pesquisa social justificada

adotada e praticada pelo oficialato da PMSE no período entre 1986 e 1988 é a presença de oficiais do Exército
Brasileiro dentro da polícia militar sob o comando Geral do Coronel EB Joseluce Ramos Prudente, cuja função
se estendeu entre final de 1987 a 1994, precedido dos seus antecessores Coronéis QOPM João Barreto Mota
(1983-1986) e José Batista dos Santos Filho (1986-1987), ambos de formação profissional nas academias do
Exército Brasileiro.
33
POLÍCIA MILITAR DE SERGIPE, BOLETIM INTERNO n° 92, p. n° 1.198, 21 de maio de 1986,
Aracaju- SE.
34
A expressão é encontrada na publicação de punições disciplinares sendo a referência que a autoridade militar
faz à deontologia do policial militar, reforçando o significado de não conformidade ao que prescreve o código
de conduta castranse.
4

com questões pertinentes à segurança nacional); o parágrafo 1° diz ainda que é “vedado”
contrair matrimônio o aluno-oficial PM e “demais praças enquanto estiverem sujeitos aos
regulamentos dos órgãos de formação de oficiais, de graduados ou de praças, cujos
requisitos para admissão exijam a condição de solteiro, salvo em casos excepcionais, a
critério do comandante geral da Corporação”, o desrespeito ao que prescreve o parágrafo 1°
implica a exclusão “sem direito a qualquer remuneração ou indenização” (art. 128, Estatuto
dos Policiais Militares do Estado de Sergipe). Cabe ressaltar que a parte do texto legal acima
não recebeu nova redação desde a data de sua publicação em dezembro de 1976; o que
deixaria sem justificativa “legal” a atuação de setor responsável pela coleta de informações
sobre a vida íntima e pessoal de civis explicitando, assim, a adoção por parte da autoridade
militar de práticas de vigilância da conduta moral do PM condizente com o período histórico
vivenciada pela política brasileira a qual estava submetida à égide da ditadura castrense,
caracterizando intenso período de interpenetração de valores da “cultura” militar na estrutura
organizacional do estado brasileiro. (CARVALHO, 2005)

Por isso, ao nos deparamos com a linguagem de textos oficiais – a exemplo do


Boletim Interno analisado explanatoriamente entre 1986 a 1988 – pode-se observar o reforço
na adoção de práticas de controle institucional que perpassam a vida profissional e íntima do
policial militar. Em outro trecho do Boletim Interno n° 96, datado de 28 de maio de 1986
encontramos na 4ª parte, Castigo Disciplinar, a “publicação” de punição nos seguinte termos:

35
O soldado QPMP-0 n° , , por ter no dia 05 de maio
de
86, fazendo parte do destacamento da cidade de Itabaianiha-SE, deixado de
cumprir norma regulamentar na esfera de suas atribuições [...], se portado
sem compostura em uma discoteca, localizada naquela cidade, provocando
causa, voluntariamente, de alarma injustificável, vagado pelas ruas após as
22:00 horas sem permissão de quem de direito, usando traje civil, sem
permissão da autoridade competente e ainda ofendido a moral e os bons
36
costumes por atos e palavras [...]

35
Omitimos o nome do militar para preservar sua identidade.
36
Boletim Interno do QCG, n° 96, 28 de maio de 1986, p. 1.244.
4

O comportamento do militar acima punido se dá conforme “enquadramento” no


RDE nos artigos 07 (deixar de cumprir norma regulamentar), 22 (conduta de risco), 43
(portar-se sem compostura em local público), 52 (causar alarme injustificável), 75 (vagar ou
passear o Cabo ou soldado não engajado pelas ruas ou logradouros públicos em horas de
instrução ou após às 22:00 horas sem permissão escrita da autoridade competente), 76
(entrar ou sair da OM, ou ainda permanecer no interior da mesma, o cabo ou soldado
usando traje civil, sem a devida permissão da autoridade competente). É preciso ressaltar que
o artigo 75 estipula uma condição, não observada na nota de publicização da punição
disciplinar: “cabo e soldado não engajado” (ou seja, que não tenha efetivamente 3 anos de
efetivos serviços nas fileiras da Corporação). Na ficha disciplinar do militar punido – a qual
se encontra no Arquivo da PMSE, pois o militar está reformado – foram contabilizados, ao
tempo da punição, precisamente 4 anos e 03 meses; tal evento induz a observação para o fato
de que a aplicação da punição embora estivesse vinculada à qualificação jurídica da
transgressão, conteve vício, pelo menos no tocante ao artigo 75, haja vista o mesmo ser
classificado como soldado engajado.

Outra observação a ser feita se refere à linguagem adotada pelo texto oficial o qual
preserva alguns termos ainda hoje utilizados; por exemplo, no texto oficial é freqüente a
utilização da expressão “deixado de cumprir norma regulamentar na esfera de suas
atribuições” para fazer “aparecer” a relação de causalidade entre a norma, substância e
matéria da prática profissional, e a desobediência (não cumprimento por omissão, imperícia e
imprudência) cometida pelo militar.

O cumprimento da norma se torna o parâmetro de obrigação do policial militar


frente às exigências impostas pela ética e pelo código de conduta. Nestes a exigência se
intensifica à medida em que descemos os degraus da hierarquia militar, ou seja, sobre o
soldado e o cabo recaem as imposições mais intensas de uma estrutura moral que atua
coercitivamente sobre o sujeito. A dita “esfera de suas atribuições” é um domínio composto
pela norma positivada, sendo igualmente o domínio em que se exercem as práticas de controle
e vigilância. Goffman (1974) ressalta que no interior da instituição as interdições são
4

cotidianamente praticadas por sujeitos específicos que atuam enquanto “elo” de ligação entre
os postos hierárquicos mais elevados e os sujeitos submetidos à autoridade institucional. No
contexto da PMSE o controle administrativo exercido pela autoridade militar sobre a
37
“praça” coincide com os princípios jurídicos do código militar que funciona duplamente
como fator de regulação e padronização da atividade profissional militar e, também, como
instrumento de coerção “moral”.

A mecânica de poder, segundo Foucault (2005), a qual é expressão da dinâmica de


funcionamento do poder disciplinar e formas correspondentes de controle institucional,
38
assumiu na PMSE, num dado momento da história , a modalidade categórica da “vigilância
hierárquica” fundada em processos coercitivos que impunham aos sujeitos a obediência e o
cumprimento à norma através do mapeamento das relações interpessoais, isso significa dizer
que o mantenedor do esquema de controle da conduta dos sujeitos era a figura do superior
hierárquico que atuava por meio da fiscalização administrativa do serviço. Uma das
ferramentas dessa personagem é o livro de anotações do “Sargento de Dia” e do “Oficial de

Dia”; nestes livros são registradas as “alterações” no serviço, ou seja, registrava-se todo
eventos que ocorresse ao longo do turno de serviço. A função do superior hierárquico remete
à noção de “cadeia hierárquica” e ao necessário desempenho de sua atividade no sentido de
fazer com que a norma fosse cumprida e as distinções hierárquicas respeitadas pelo
subordinado.

A normatização da prática profissional e a “vivência” da ética militar são lados


complementares da visão do “soldado”, o qual é tomado pela instituição como um ser
completo formado pelos “valores morais, físicos e intelectuais” (CASTRO, 2002); visto
como um “vocacionado” à missão de “bem servir à sociedade” em que está inserido pela
condição de cidadão e agente profissional. Neste sentido, o policial militar – e podemos

37
Termo indicativo do militar que integra os seguintes estratos da hierarquia: soldado, cabo e sargento. A
denominação “praça especial” refere-se à graduação de subtenente; a adoção da palavra “especial” indica a
“situação” desse estrato que está localizado em “zona” intermediária entre as praças e o oficialato.
38
É difícil afirmarmos o momento em que as relações hierárquicas deixam a modalidade de formas de controle
“personalísticas” empreendidas pelos sujeitos da hierarquia militar no cotidiano profissional; interessa-nos,
portanto, partir da análise das condições atuais (definidas no limite temporal do estudo proposto) de exercício do
pode disciplinar na PMSE e as alterações nos padrões de comportamento do militar frente à autoridade
institucional.
4

considerar por similitude jurídica o militar do Exército – é um indivíduo marcado por uma
“essência indelével”, ou seja, por um tipo de “natureza” que lhe caracteriza de maneira
integral a singularidade de seu ser, impondo-lhe infindáveis obrigações de propriedade
jurídico, moral e até mesmo afetiva; isto é notado quando se lê no ordenamento jurídico-
normativo as definições da condição do militar, por exemplo, prescrita respectivamente no
Estatuto da Polícia Militar de Sergipe e no R-4 (de aplicação no âmbito da PMSE e do
Exército): é imperativo que o policial militar seja amante da “verdade” e do respeito à
39
dignidade da pessoa humana (art. 27, inciso I) , eficiente no que faz e cumpridor dos

regulamentos e da lei (idem, inciso II e III), dotado de profundo e equilibrado senso de justiça

(idem, V), preparado moral, intelectual e fisicamente para o serviço policial-militar (idem, VI

e VII), integrado ao corpo institucional, civilizado, discreto e cumpridor dos deveres de

cidadão (idem, incisos VIII, IX, XII), provedor das necessidades do lar e atento ao clamor

social ilustrado em eventos que exigem a sua intervenção preparada e eficaz (idem, incisos

XIII, XV e XIX), enfim, do policial militar se espera – esta é a expectativa da autoridade

militar quanto à conduta profissional, pública e íntima do militar no tocante ao “integral


40
cumprimento” dos preceitos que regem o valor e a ética policial-militar – que a sua conduta
41
espelhe “o seu procedimento civil e militar sob o ponto de vista da disciplina” , entendendo
por conduta a definição ampla em termos comportamentais situado nos diversos contextos

sociais e culturais em que transite o policial militar.

A prontidão do policial militar ao serviço é compromisso assumido publicamente

em ato solene de formatura marcando a sua “aceitação consciente das obrigações e dos
42
deveres policiais-militares” e a firme decisão de bem cumpri-los. O compromisso aceito

pelo neófito é pronunciado por meio da seguinte fórmula:

39
Estatuto da Polícia Militar do Estado de Sergipe, Seção II – Da ética policial-militar, art. 27 e incisos
seguintes.
40
Regulamento Disciplinar do Exército (R-1), Capítulo II, Dos Princípios Gerais da Hierarquia e da Disciplina,
art. 6°: A disciplina militar [exigência permanente de reorientação comportamental e, conseqüente, qualificação
da conduta] é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições,
traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do
organismo militar.
41
Regulamento Disciplinar do Exército (R-1), Título IV, Comportamento Militar, art. 27, parágrafos
seguintes.
42
Estatuto dos Policiais Militares de Sergipe, Seção I, Do compromisso policial-militar, art. 31.
4

Ao ingressar na Polícia Militar do Estado de Sergipe, prometo regular


minha conduta pelos preceitos da moral, cumprir rigorosamente as ordens
das autoridades a que estiver subordinado e dedicar-me inteiramente ao
serviço policial militar, à manutenção da ordem pública e à segurança da
43
comunidade, mesmo com o risco da própria vida.

O alinhamento da conduta profissional segundo as regras da “moral”, o


cumprimento da ordem recebida e a dedicação exclusiva são os componentes centrais da
deontologia do policial militar de Sergipe, mais precisamente a base ética da “postura”
profissional das praças. O compromisso assumido pelo aspirante-a-oficial da PMSE segue
fundamentalmente a fórmula anterior:

Ao ser declarado aspirante-a-oficial da Polícia Militar do Estado de Sergipe,


assume o compromisso de cumprir rigorosamente as ordens das autoridades
a que estiver subordinado e de me dedicar inteiramente ao serviço policial
militar, à manutenção da ordem pública e à segurança da comunidade,
44
mesmo com o risco da própria vida.

Em ambas as fórmulas o cerne do “juramento” está na submissão (compromisso

com o valor da hierarquia) e na dedicação integral ao serviço; tanto a submissão quanto a

dedicação estabelecem a abdicação do policial militar à até mesmo sua própria vida em favor

da finalidade da atividade policial militar: “manutenção da ordem pública e segurança da

comunidade”. A adesão ao compromisso representado na fórmula acima marca o início da

trajetória de integração na instituição simbolizado no ritual de passagem da vida civil para a

vida militar (CARVALHO, 2002, CASTRO, 2002); porém, esta integração se dá pela

cotidianização das relações disciplinares e pela valorização dos princípios da submissão

hierárquica dando suporte à manutenção de práticas de controle que converge para um

resultado: a adequação do militar às contingências do serviço e os rigores da subordinação.

43
Idem, art. 32.
44
Idem, ibidem, art. 32, parágrafo 1°
4

No âmbito da atividade fim – a assim chamada manutenção da ordem pública –


reconhece-se a organização de escalas de serviço, cujo revezamento de horas trabalhadas e
horas descansadas eram de 24 horas por 24 horas, a adoção de tal sistemática de prestação de
serviço foi identificada nos Boletins Gerais situados entre 1986 a 1993, sendo praticada pela
45
CCSv do QCG que designava parte de seu efetivo, excluindo o efetivo empregado na
guarda do Quartel do Comando, no serviço de “pé-firme” distribuído em pontos estratégicos
do centro comercial de Aracaju. Em outras OPM’s as escalas mais freqüentes eram de 24
horas (trabalhadas) por 48 horas (de descanso), podendo o efetivo ser empregado em escalas

especiais ou no cumprimento de expediente administrativo no segundo dia de folga.


Infelizmente a apresentação das escalas de serviço da CCSv do QCG que contava no ano de
46
1996 com cerca de 264 policiais militares entre oficiais e praças; esse número passou em
47
2008 para 365 policiais militares (somente praças) , excluindo-se desse efetivo os militares
que se encontram vinculados à outras OPM’s, mas que prestam serviço no QCG, e os oficiais
48
cujo efetivo se encontra sob o controle da seção da Ajudância Geral .

A dedicação integral, elemento de fórmula do juramento proferido pelo recruta e


aspirante e presente no estatuto da PMSE, era manifestada de fato na disposição de escalas de
serviço com um reduzido tempo para o descanso e entrega aos afazeres da vida hodierna. O
controle institucional era o controle produtivo da atividade de policiamento ostensivo através
da distribuição de escalas ordinárias e especiais implicando, isso, no sacrifício do militar em
prol da manutenção da ordem pública e em atendimento às demandas sociais no campo da
segurança pública. É preciso ressaltar que dentro do ordenamento jurídico disciplinar e
administrativo a definição da escala de serviço não é contemplada enquanto organização das

horas a serem trabalhadas pelo militar. As determinações emanadas da autoridade militar no


45
A organização da escala de serviço é competência do setor administrativo da OPM, cabendo, portanto, à
Companhia de Comando e Serviço (CCSv) ou ao Pelotão de Comando e Serviço (PCSv). A CCSv e o PCSv são
seções de controle de efetivo e dispõem sobre escalas ordinárias e escalas especiais (extras); a diferença na
nomenclatura se dá em decorrência do dimensionamento numérico da OPM. Nos batalhões funciona a CCSv,
enquanto o PCSv tem seu funcionamento nas Companhias.
46
Quadro de Organização da Cia de Comando e Serviços do QCG – QO-22-03, p. A 295. Ver obra: Legislação
Policial Militar da PMSE, organizado por Roberto Aranha, 1997.
47
O mapa do efetivo pertencente à CCSv do QCG encontra-se em mãos do pesquisador para posteriores
pesquisas e a impossibilidade de apresentá-lo como material em anexo se dá pelo fato de conterem nomes,
número de registro geral e cadastro de pessoa física. Os dados foram repassados pela seção acima referida.
48
Seção de assessoria técnica diretamente vinculada ao gabinete do Comando Geral.
4

tocante ao emprego do efetivo são definidas pelo volume das solicitações apresentadas pelo

Estado e pela sociedade civil ao Comando Geral.

Um dos exemplos do interesse da autoridade militar em exercer controle sobre o


tempo de serviço do militar (englobando nessa categoria as horas efetivas de serviço na
unidade mais as horas fora da unidade) pode ser representado na formulação do denominado
“Plano de Chamada dos Oficiais e das OPM’s sediadas na Grande Aracaju”, cujo projeto
fora criado e implantado na gestão do Comandante Geral o coronel EB Antônio Freitas de
Alcântara em 2001 e lançado com o intuito de montar um esquema de convocação
extraordinária do efetivo da Polícia Militar de Sergipe. O “Plano de Chamada” seria um
simulacro de reagrupamento de efetivo e conseqüente deslocamento do mesmo a locais onde
seria necessária a intervenção armada em decorrência de evento de grande risco para a
manutenção da segurança pública.

O esqueleto do projeto do “Plano de Chamada” foi apresentado no Boletim Geral


Ostensivo n° 022, de 31 de janeiro de 2001 e tornava pública a finalidade da referida
estratégia de convocação extraordinária nos seguintes termos:

COMANDO GERAL – PLANO DE CHAMADA – A partir do dia 1º de


fevereiro do corrente ano, a Polícia Militar do Estado de Sergipe passa a
contar com um Plano de Chamada dos Oficiais e das OPM’s sediadas na
Grande Aracaju, o qual deverá ser amplamente divulgado, pelos
comandantes de unidades e subunidades, apenas entre os integrantes da
nossa Instituição, uma vez que se trata de um documento RESERVADO,
posto que encerra o endereço e telefone atualizados de todos os policiais
lotados nas OPM’s da Grande Aracaju. Sendo assim, para que os homens
sejam bem instruídos quanto à importância do referido planejamento, o que
lhes conscientizará sobre a necessidade de proceder objetiva e
eficientemente quando do seu acionamento, divulgo para todo o corpo as
informações que se seguem:
- FINALIDADE DO PLANO
O presente PLANO DE CHAMADA tem a finalidade de regular e
padronizar as ações que possibilitarão ao Comando Geral da Polícia Militar
do Estado de Sergipe o rápido e eficiente acionamento do efetivo policial
lotado nas OPM’s sediadas na Grande Aracaju, total ou particularizado por
subunidade, reunindo-o, em tempo hábil para pronto emprego, no Quartel
do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças (CFAP).
- OBJETIVOS DO PLANO
A. OBJETIVO GERAL
Possibilitar o pronto emprego do efetivo policial militar lotado nas OPM’s
sediadas na Grande Aracaju que, na oportunidade, não estiver sendo
4

diretamente empregado no serviço, em qualquer dia da semana e a qualquer


hora do dia, oferecendo ao Comando Geral instrumentos competentes para
responsabilizar aqueles que se omitirem em bem cumprir as suas
obrigações;
B. OBJETIVO ESPECÍFICO
Reunir, no Quartel do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças
(CFAP), no prazo estendido de 03 (três) horas, 90% (noventa por cento) do
efetivo policial militar lotado nas OPM’s sediadas na Grande Aracaju que,
na oportunidade, não estiver sendo diretamente empregado no serviço,
sendo considerado ideal que nas primeiras 02 (duas) horas após a
deflagração do PLANO DE CHAMADA, 75% (setenta e cinco por cento)
dos integrantes das OPM’s acionadas esteja aquartelado, sob o controle dos
49
seus respectivos comandantes, prontos para o imediato emprego.

Como demonstrado na passagem acima o conteúdo do Plano deveria ser tratado

reservadamente pelos militares, pois se trataria de interesse da Corporação exigindo-se,

portanto, dos policiais a devida cautela quanto à divulgação do conteúdo e das informações de

tal programa. A regularização e padronização do emprego da força policial pelo Comando

Geral ocorreriam pelo desencadeamento do “chamado ao serviço” atingindo diretamente o

efetivo lotado nas OPM’s da Grande Aracaju. A deflagração do Plano se processaria da

seguinte maneira: o chamado ocorreria por meio de transmissão de emissoras de rádio as

quais repassariam uma mensagem de felicitações natalícias aos comandantes das OPM’s:

“Mensagem – O Comandante Geral da Polícia Militar do estado de Sergipe felicita os

comandantes das unidades e subunidades, a seguir divulgadas, pelo transcurso dos seus
50
aniversários, que aconteceram no mês próximo passado” ; a partir da recepção por parte do
51
policial militar da mensagem acima o mesmo deveria deslocar-se para o Centro de

Aperfeiçoamento de Praças (CFAP) para, após se apresentar ao seu respectivo comandante de

unidade, proceder conforme as orientações prescritas pelo Comando Geral e repassadas para

49
Decidimos apresentar um trecho razoavelmente extenso por considerar a necessidade de visualizar
panoramicamente a estrutura do “Plano de Chamada” para somente depois fazermos as devidas pontuações
sobre aspectos intrigantes e controversos da referida “medida administrativa”. O citado trecho encontra-se no
Boletim Geral Ostensivo, n° 022, 31 de janeiro de 2001, p. 152.
50
Idem, p. 153.
51
Ao se falar em transmissão de ordem subentende-se a obrigação moral e profissional do militar corresponder
ao conteúdo da ordem emitida, nessa relação se encontra a preservação do princípio hierárquico segundo o qual
o subordinado tem o dever de responder ao comando de seu superior, o não cumprimento acarretaria em
transgressão ou crime militar; a base jurídica do imperativo da “ordem” no universo militar pode ser ilustrado no
Item 16 do Anexo I do RDE: “Deixar de comunicar ao superior a execução de ordem recebida [grifo nosso],
tão logo seja possível”.
4

os correspondentes comandantes de grupamento; o emprego do efetivo mobilizado pelo Plano


consistiria na realização de rondas policiais pela cidade sob a forma de blitz policial; todavia,
o objetivo gral e específico apresentavam por sua definição problemas quanto ao que se podia
de fato fazer com os militares deslocados para o CFAP. O simulacro de convocação
extraordinária tinha sua justificativa respaldada numa hipótese formulada pelo Comando
Geral: a de que numa situação de “calamidade pública” a força policial deveria ser agrupada e
deslocada eficientemente para as regiões críticas. Se a finalidade era a padronização da
atuação da força policial o objetivo seria, primeiro, torna possível o emprego do efetivo da
Corporação e oferecer “ao Comando Geral instrumentos competentes para responsabilizar
aqueles que se omitirem em bem cumprir as suas obrigações”; as categorias de controle da
atividade e de vigilância hierárquica (FOUCAULT, 2009) são simultaneamente evocadas pelo
Plano para formarem um campo de domínio institucional da conduta do sujeito dentro e fora
da atividade fim; a prontidão do à mensagem transmitida pelo rádio e a incerteza do momento
do chamado (em qualquer dia da semana e a qualquer hora do dia) configuram uma situação,
criada pelo Comandante Geral e a chefia do EMG, em que se exige do militar integral
dedicação e atenção à ordem emanada da autoridade militar. O estado de continuidade da
atividade policial é argumento ora utilizado para cobrar do policial militar o reforço no
cumprimento de seu juramento de “bem servir” de maneira integral e irresoluta à sociedade
promovendo as condições de segurança.

A imprevisão do dia e da hora em que ocorreria a execução do Plano estava


prevista no projeto e era uma de suas finalidades. A partir dessa propriedade – do chamado
imprevisto ao serviço – colocava-se à prova a disciplina militar e sua subordinação ao
princípio hierarquizante da autoridade militar. O militar que não respondesse ao chamado
seria responsabilizado disciplinarmente, pois para o Comando Geral o exercício militar
proposto pelo Plano seria uma das formas de atestar o compromisso ético do militar e sua
capacidade de obediência e subordinação aos valores da hierarquia e da disciplina.

Porém, o que se verifica nos BGO’s seguintes (mais propriamente os de n° 023 e

024) é que a “deflagração” do Plano de Chamada não havia produzido no interior do


4

oficialato um nível de esclarecimento quanto ao que se deveria fazer em termos operacionais.


Nos BGO’s 023 e 024 foi publicada a seguinte nota:

CHEFIA DO EMG – PLANO DE CHAMADA – O plano de chamada dos


oficiais e da OPMs sediadas na grande Aracaju será desencadeada no dia
02.02.2001 (Sexta-feira), no turno da noite, com a finalidade de exercitar os
envolvidos quanto aos procedimentos inerentes ao mesmo. Para que a
finalidade do exercício seja cumprida a contento, os comandantes de
unidades e subunidades deverão adotar todas as medidas necessárias ao
efetivo controle dos homens que se apresentarem ao Quartel do CFAP em
razão do acionamento, bem como de todas as etapas necessárias a eficiente
execução do plano de chamada, ficando em condições de identificar e sanar
as possíveis falhas que ocorrerem.
Obs.: Republicada por ter gerado dúvidas com relação a participação de
graduados e praças. Todos os policiais militares sediados na capital, estarão
envolvidos no referido plano.

As orientações do EMG se destinam ao oficialato por entender que o êxito do


Plano depende em grande medida da “participação” dos oficiais comandantes e
subcomandantes de unidades militares. O oficialato deveria adotar “todas as medidas
necessárias ao efetivo controle dos homens”, controle este que se dá por procedimentos que
garantam a vigilância sobre a conduta do policial militar. A escala de serviço seria um desses
mecanismos de fiscalização e controle; todavia, a preocupação do EMG aponta para o reforço
no discurso de obrigação apoiada na noção de punibilidade; esta noção é elemento típico do
discurso relativo à dedicação ao serviço que impõe ao militar o cumprimento do preceito
segundo o qual diz que “a violação das obrigações ou dos deveres policiais militares
constituirá crime ou transgressão disciplinar” (Capítulo III – Da violação, das obrigações e
dos deveres, Art. 40, do Estatuto das Polícias Militares).

Para que a “mecânica de poder” (FOUCAULT, 2009) produza os efeitos


esperados é necessária a observância a determinados requisitos como, por exemplo, a
definição de alvos a serem atingidos e dos sujeitos responsáveis pela difusão dos imperativos
52
morais, funcionando estes sujeitos como elo entre níveis hierárquico superiores e inferiores .

52
Goffman (1974, p. 78) afirmar que na “instituição total” a existência da “equipe dirigente” é parte do
dispositivo de controle sendo aquela responsável pela manutenção do quadro de referência moral proposta pela
5

Nesse ponto em particular o Plano pode ser pensado como um exercício de treino militar que
para alcançar a condição de treino prescindia de outros treinos, ou seja, o Plano era um
“exercício que necessitava de exercício”. Isto ocorreu porque no interior do próprio oficialato
a apresentação de um programa de exercício militar cuja finalidade, aparentemente, esgotava-
se na execução da tarefa representava uma falha de planejamento das finalidades do
policiamento ostensivo. Outro ponto a destacar é a de que se tratando de um “Plano de
Chamada de Oficiais e das OPM’s” as condições de processamento do programa – “em
qualquer dia da semana e a qualquer hora do dia” – atingissem também o oficialato haja
vista não haver transcrita no projeto do Plano nenhuma referência que diferenciasse o
chamamento entre oficiais e praças. Atualmente o oficialato e praças que exercem cargo de
chefia ou de comando dispõem de telefones móveis permitindo a facilitação na comunicação e
agilidade nas solicitações feitas nas esferas das relações profissionais militares. Ao tempo do
Plano, em 2001, a quantidade de telefones móveis era irrelevante impedindo que o contato
entre oficiais por meio do aparelho telefônico modificasse a diretriz operacional do citado
programa. O contato entre Comando Geral, EMG e oficiais era um dado a ser considerado na
realização do programa o que não impede dizer que determinado nível de comunicação fosse
criado entre eles com o intuito de “sinalizar” acerca da realização da convocação
extraordinária.

O formato do Plano de Chamada apresentava uma série de problemas de logística


e operacionalização das tarefas e tê-lo citado como exemplo de ato da autoridade militar
serviu para demonstrar, em parte, a relação de poder existente entre os diversos segmentos
hierárquicos. As tentativas de se estabelecer ou criar formas difusas de controle institucional
podem desembocar em “invenções” de estratégias de treino (a exemplo do Plano) ou na
formulação e divulgação de atos da autoridade cuja finalidade de alguma maneira aponte para
a manutenção de estreita relação interpessoal fundadas sobre as noções de hierarquia e

disciplina.

organização fornecendo, assim, os recursos técnicos definidores da “distribuição de castigos e privilégios”


necessários ao “enquadramento” do sujeito aos requisitos éticos da instituição.
5

A tônica da discursividade produzida pela difusão no meio interno da Corporação


de um programa do tido do Plano de Chamada expressa uma determinada “intencionalidade”
ou finalidade da instituição em manter o sujeito no estado de “aderência” ao grupo exigindo
daquele a contínua confirmação do compromisso ético assumido em termos de seu
“devotamento” integral aos princípios da hierarquia militar e ao projeto de segurança pública
apresentada nas diversas gestões dos comandos da Polícia Militar de Sergipe.

Dessa forma, não é estranho reconhecer atos e discursos proferidos pela autoridade
que confirmem as exigências institucionais quanto ao disciplinamento do subordinado. Sendo
53
assim, a idéia de que o soldado deve estar “atento ao serviço” não se dá como referência a
uma condição circunstancial geralmente identificada com o momento em que o militar presta
o serviço de “sentinela da sociedade”, mas primordialmente no sentido de que o militar
pertence à sua Corporação e que toda solicitação feita por esta deve ser cumprida com os
rigores observados em lei. A essa relação de vigilância produtiva da conduta do militar por
meio da “economia das horas” Foucault (2009, p. 144) chama de “controle da atividade”

para indicar parte do processo histórico que nos delegou o “rigor do tempo industrial” o qual
conteve em si determinado simbolismo místico reconhecido nas práticas de rotinização das
atividades e organização do tempo bastante freqüente em instituições religiosas. Todavia, a
preocupação constante com o controle do tempo e a relação entre produtividade e precisão
cronométrica das ações do trabalho foi incorporado pela lógica organizacional da produção
capitalista. Mas a organização do tempo recebeu direcionamento específico a partir das
práticas disciplinares. Na PMSE é possível detectar no código disciplinar a relevância do uso
do tempo e seu aproveitamento sob a forma da “disciplina consciente” e da vigilância
53
Espera-se do policial militar um estado de prontidão que significa a disciplina aplicada à atividade policial
servindo de precaução para eventuais ocorrências que possa haver ao longo do serviço. Neste sentido, a
expressão “estar atento ao serviço” é figurada no Anexo I do RDE, no art. 21 nos seguintes termos: “trabalhar
mal intencionalmente, ou por falta de atenção, em qualquer serviço ou instrução”; a partir desse dispositivo se
estabelece uma categoria genérica que permite ao superior hierárquico ampla possibilidade para aplicação da
punição, constituindo, na verdade, a capacidade “avaliativa” (carente de critérios objetivos) do comportamento
da praça. Como se avalia a noção de “mal intencionalmente”? Isto seria uma premeditação da conduta ou ato
culposo? O que classifica objetivamente a falta de atenção ao serviço? Para comprovação dos efeitos da “falta de
atenção” se deveria relacionar objetivamente a causa (ausência de prontidão e atenção) e os efeitos concretos
gerados diretamente por tal relação. É importante registrar que entre 2001 e 2008 (na 4ª parte dos BGO’s
pesquisados) não houve registro de punição disciplinar em que a expressão “mal intencionalmente” fosse
utilizada como item ou causa principal de transgressão disciplinar. Sobre o formato do texto oficial e aspectos
lingüísticos falaremos mais adiante.
5

destinada às ações do militar. Esta última é tratada, em termos programáticos, a partir do


chamado “cartão programa” que é a previsão procedimental do itinerário a ser executado
pelo policial militar ao longo do serviço ordinário. A confecção do “cartão programa” é de
competência da chefia da OPM que define as prioridades e objetivos do policiamento
ostensivo levando em consideração a “natureza” do policiamento (em se tratando de
policiamento ostensivo motorizado ou a pé, ou ainda se o policiamento é em locais onde se
realizam atividades de interesse público como escolas) e as características sociais do local a
54
ser abrangido pela atividade de policiamento. Vejamos um exemplo de “cartão programa”

pertencente a uma das Companhias de policiamento comunitário da Grande Aracaju, mais


precisamente ligada ao 5° BPCOM, sediada na área comercial de Nossa Senhora do Socorro:

Cartão Programa – VTR Abutre 02 – Objetivo: Realizar o policiamento


ostensivo na área do MF I e MF II com circulação constante da vtr em
horários e locais pré estabelecidos.
Horário: 07h30min – passagem de serviço e saída da Cia; 08h00min –
ronda nas proximidades do Colégio Hermínio Caldas; 09h00min – PB no
posto de gasolina 01; 09h45min – ronda no MF I; 10h45min – PB na
entrada do São Braz; 11h15min – deslocamento para a sede do 5° BPM para
coleta de quentinhas (a vtr selecionada será indicada pelo sargento de dia
segundo rodízio de cvtr’s, caso não a vtr não seja escalada para o dia deverá
deslocar-se para o PAC); 11h30min – Pausa para o almoço; 13h30min – PB
no posto de gasolina 02; 14h00min – PB no Colégio MF II; 14h45min –
ronda no MF II; 15h45 – ronda no MF I; 16h45min – PB na praça do MF I;
17h15 – PB na avenida Principal; 18h00min – deslocamento para a CSM,
abastecimento da vtr; 18h30min – deslocamento para a sede da CIA;
55
19h00min – passagem de serviço.

O controle do tempo empreendido pela sistematicidade dos horários e locais

contemplados pela atividade de policiamento ostensivo revela a finalidade de

disciplinarização da guarnição em serviço a qual deverá cumprir integralmente os horários e

“marcar presença” nos pontos definidos de antemão pelo “cartão programa”, nesse caso em

54
Apresentamos um modelo de “cartão programa”, a partir de amostra coletada no Arquivo da PMSE, contendo
o itinerário de uma viatura de rádio patrulha, ou seja, responsável pelo policiamento motorizado de uma área
específica.
55
Alguns dados foram alterados para preservar as pessoas jurídicas presentes no itinerário do cartão programa,
como, por exemplo, o posto de gasolina. O referido foi selecionado dentre os documentos entregues ao
Arquivo Geral da PMSE e é datado em 20 de agosto de 2002.
5

particular a fiscalização cabe ao sargento de dia, que opera o rádio na sede da CIA e de
tempos em tempos repassa ocorrências e faz solicitações, e aos beneficiários diretos pelo
“recebimento” dos policiais, ou seja, os funcionários de escolas, frentistas e gerentes das lojas,
todos estes exercem, também, o papel de fiscalizadores do cumprimento do itinerário feitos
pela guarnição podendo, inclusive, servirem de testemunhas caso o programa tenha ou não
sido cumprido pelos militares responsáveis. Nesse esquema de vigilância e controle as
relações interpessoais é peça fundamental no êxito da programação do tempo; entretanto, cabe
ressaltar igualmente que o atendimento de ocorrências não previstas no programa pode gerar
atrasos, embora justificados, na execução do “cartão programa”, além do fato de que a
guarnição pode, através dos laços de amizade, burlar o cumprimento da atividade
programática “conquistando” a amizade e simpatia daqueles sujeitos que apriori poderiam ser
fiscalizadores do serviço. Nesse esquema onde a prontidão ao serviço assume a modalidade
de “organização programática do tempo” há, portanto, a possibilidade de falha e de
redefinição prática das finalidades previstas. Outro aspecto que não deve ser descartado se
refere à seleção dos pontos abrangidos pelo “cartão programa”; como este é ato emanado da
chefia da OPM os motivos da seleção repousam em critérios objetivos (maior probabilidade
de ocorrência de assalto, a exemplo de pontos comerciais de grande fluxo) e subjetivos
(escolha de pontos comerciais cujos proprietários tenham maior proximidade com oficiais e
demais militares influentes na organização e distribuição do efetivo) que, independentemente
da priorização dos motivos objetivos e subjetivos, estarão travestidos de legalidade e de
legitimidade presumidos na noção de autoridade militar; a “percepção” do enviesamento por
motivos pessoais da atividade de policiamento ostensivo (classificado como atividade de
interesse público) é algo imediatamente captado pelo policial militar à frente do serviço, o
qual freqüentemente se encontra incapacitado de contestar a ordem emitida por haver carência
de variáveis objetivas que permita o confrontamento, em termos de “avaliação moral”, com a
moralidade do ato de seu superior hierárquico ou até mesmo por haver insuficiência nas
condições legais e institucionais capazes de redirecionar e corrigir o ato da autoridade militar.
5

Um exemplo da associação entre organização das atividades de serviço e interesse


particularista está presente, por exemplo, numa das escalas de serviço organizadas pela 1ª Cia
do 5° BPCOM, situada no conjunto Albano Franco (a qual atende pela denominação de
Abutre) e que é responsável pelo policiamento da sede de Nossa Senhora do Socorro, do
complexo Taiçoca e parte de bairros de Aracaju (Porto Dantas, Lamarão e Soledade). A citada
CIA formulou uma escala de policiamento destinada à segurança do centro comercial do
Conjunto João Alves – situado na avenida principal o centro comercial é a porta de entrada
para o Complexo Taiçoca sendo também a ligação entre Aracaju a Nossa Senhora do Socorro
que ocorre pela ponte que interliga os dois municípios – contando com uma relativa
quantidade de pontos comerciais de uma extremidade a outra e repleta de lojas de pequeno
porte, supermercado, bancos, farmácias e um posto de gasolina. Dentre as tarefas
desempenhadas pela guarnição de serviço – dois policiais faziam a ronda a pé no turno da
manhã, enquanto outros dois o faziam no turno da tarde – havia, segundo orientação do
comando do 5° Batalhão, a “recomendação” de se fazer a escolta de valores saído do Banco
do Brasil em direção ao caixa eletrônico localizado no supermercado G. Barbosa; os policiais
fariam a segurança do funcionário do banco que iria abastecer a referida máquina, tal acerto
consistia, também, no repasse aos dois policiais do valor de R$ 10,00 para cada um deles, este
56
pagamento era efetuado freqüentemente às sextas-feiras .

A organização da escala é uma das formas de burocratização do cotidiano

militarista, pois por meio daquela atividade se pretende alinhar a finalidade pública da

instituição (a promoção das condições efetivas de segurança da ordem pública) aos propósitos

do programa de policiamento vinculado pela chefia da OPM junto ao seu público interno.

Nestes termos, o controle do efetivo ilustra a sistemática de operacionalização dos recursos

humanos direcionados ao atendimento à demanda social por policiamento, sendo esta

demanda apresentada sob duas modalidades: 1) a de caráter provisório, – orientada pelas

solicitações dos moradores, de empresários e de personalidades políticas ou outros eventos

com previsão no calendário festivo da localidade onde se insere a OPM, 2) e o serviço

56
A escala da área comercial do João Alves, como era conhecida, foi elaborada em 2003 e perdurou até
fevereiro de 2005, conforme registros da 1ª Cia do 5° BPCOM.
5

ordinário, que como dito anteriormente concentra a maior parte do emprego dos recursos
humanos.

A organização da atividade policial vista em sua dimensão hierárquica está


estruturada a partir da existência de dois centros de gerenciamento dos recursos humanos da
PMSE, estamos falando do Comando de Policiamento da Capital (CPMC), a qual abrange a
57
região metropolitana da “Grande Aracaju” e conta atualmente com três batalhões: 1°
58
BPCOM, 5° BPCOM e 8° BPCOM e demais unidades de policiamento especializado ; e do

Comando de Policiamento do Interior (CPMI) o qual é composto pelos seguintes Batalhões:

2° BPM, 3° BPM, 4° BPM e 6° BPM e 7° BPM e seus respectivos Pelotões de Comando


(PCSv) e Serviço e Companhias (CIA’s). Ambos os comandos, sediados no prédio do QCG
na capital aracajuana, estão subordinados ao Comando Geral da PMSE e ao Estado Maior
(EM) desempenhando os respectivos comandos a função de gestores da atividade de
policiamento ostensivo inerente à polícia militar. O CPMC desempenha na estrutura de
organização da atividade fim a competência para a formulação ou reformulação das escalas de
serviço, bem como a competência para expor as diretrizes operacionais condicionadoras do
policiamento nas unidades situadas na área geográfica da “Grande Aracaju”.

A ramificação da estrutura administrativa da PMSE, em diversas OPM’s, unidades


e subunidades, informa que a atividade de segurança pública incumbida à polícia militar
59
assumiu, por meio do seu ordenamento jurídico , as condições objetivas de organização
racional da atividade fim exercendo o papel primordial no tocante à distribuição e difusão do
policial militar em diversos setores sociais (instituições, repartições, eventos de grande

significado para o calendário regional, etc) e em pontos distintos do território sergipano. Mas

57
A área que compõe a “Grande Aracaju” abrange os municípios de Aracaju, Barra dos Coqueiros (Ilha de
Santa Luzia), Nossa Senhora do Socorro e São Cristovão,
58
Os citados batalhões são sediados nas seguintes cidades: 1° e 8° BPCOM sede em Aracaju e 5° BPCOM no
conjunto João Alves, Nossa Senhora do Socorro. Sobre o “Organograma do Comando de Policiamento da
Capital” – 0-22-07 e “Organograma do Comando de Policiamento do Interior” -0-22-08, ver anexos.
59
Ressaltamos aqui que a PMSE trata-se de entidade pública cujo funcionamento, apesar de sua especificidade
militarista, está ancorado no “estatuto legal” e na “legitimidade” conferida por esta à estrutura administrativa.
Enfatizamos ainda a importância da “Lei de Fixação de Efetivo da Polícia Militar de Sergipe”, responsável pela
progressão numérica do efetivo e a minimização dos efeitos da defasagem social da “força policial” no tocante
ao atendimento à demanda social gerada no âmbito da segurança pública. Na referida lei as alterações concorrem
também para a disposição e correspondente distribuição de postos e graus hierárquicos nas fileiras da
Corporação.
5

a visão administrativa da atividade policial é um dos aspectos integrantes das formas de


controle da conduta social e profissional do policial militar; àquela devemos acrescentar –
como perspectiva complementar da análise proposta – a relação entre a disposição do
aparelho de controle (aqui ilustrada nas condições objetivas inerentes ao “organograma”
administrativo) e a “mecânica” de controle exercido pelo superior hierárquico e direcionado
ao inferior hierárquico.

60
Talvez se nos detivéssemos tão somente na “historiografia” jurídica da PMSE,
mais propriamente entre 1998 e 2008, teríamos embotada a visão analítica que, limitada pela
particularidade do fenômeno jurídico, permitiria relacionar e entender como as práticas
sociais do final da década de 1990 e início do século XXI, desenvolvidas no interior e no
“limiar” da Corporação, influenciaram as relações entre a autoridade militar e os membros a
ela subordinados; deve-se ainda compreender que a visão da hierarquia militar, num primeiro
momento, poderia nos conduzir à “percepção” de nulidade das relações interpessoais, pois
daria demasiada relevância ao primado da regra positivada sobre o cotidiano das práticas
interpessoais e profissionais. Substituímos a visão verticalizada (e, portanto, hierarquizada)
das relações entre pessoas (policiais militares) e segmentos (níveis hierárquicos) pela visão
“ascendente do poder” (FOUCAULT, 2005), admitindo a partir desta que as relações
interpessoais mantidas no interior da PMSE são passíveis de ser apreendidas pela “lógica das
relações intercambiais”, assemelhada à um esquema de “luta e cooperação, barganha e
submissão” onde os sujeitos assumem posições “não-definitivas ou passíveis-de-definição”.
De fato, não se trata de ver a hierarquia e a disciplina enquanto “potências” institucionais
capazes de eliminar os elementos comportamentais e “ideológicos” ou representativos
corrosivos à “moral castrense”, pois se assim fosse não teríamos continuamente ativada a
função coercitiva inerente à prática jurídica e judiciária e os desafios do combate à

transgressão e ao crime militar.

60
A análise do fenômeno jurídico ou do “sistema jurídico” é componente integrante da perspectiva de análise
apresentada neste trabalho; para tanto adotamos a premissa de que “o campo judiciário são canais de relações de
dominação e técnicas de sujeição polimorfas”, sendo assim, o “direito deve ser visto como um procedimento de
sujeição, que ele desencadeia, e não como uma legitimidade a ser estabelecida”. (Soberania e Disciplina in:
Microfísica do Poder, FOUCAULT, 1990, P. 182)
5

Trata-se, portanto, de ver o cotidiano profissional – o qual está mergulhado o


policial militar no recorte histórico do período acima mencionado – do ponto de vista das
múltiplas possibilidades de ação do sujeito numa realidade condicionada (e não determinada)
por princípios da “deontologia militar” e por formas de vigilância (jurídica e administrativa)
implantadas e revisadas pela autoridade com o propósito de manter o esquema de
subordinação – entendido aqui como esquema de institucionalização do sujeito e de
ajustamento do mesmo aos imperativos do “valor policial-militar” – analisando naquele
âmbito de experiências pessoais e profissionais a dinâmica dos papéis exercidos pelos
diversos sujeitos e o modo como as práticas se sustentam ora sob a forma de práticas ditadas
pelo “discurso” formal da autoridade, ora como capacidade de elaboração de normas que se
situam à margem do sistema positivado de regras.

A organização burocrática da atividade policial necessita para que determinados


efeitos sejam produzidos da articulação entre a diretriz da autoridade militar e a incorporação
desta na conduta profissional do policial militar, por isso é possível visualizar a estrutura de
61
distribuição das funções hierárquicas como forma de regular e difundir a noção de obrigação
inerente aos princípios da hierarquia e da disciplina. A “vigilância hierárquica” (FOUCAULT,

2009) se situa numa tal disposição do “material humano” como peça chave no esquema de
controle institucional utilizando como técnica a “chamada de serviço” (momento em que se
registra a chegada, saída e passagem de serviço de uma guarnição à outra) e as “ordens de
serviço” (informes transmitidos pelo chefe da OPM e repassados por oficiais ou outro agente
com competência definida de antemão para fiscalizar o andamento da atividade).

No interior das relações interpessoais se encontram o campo de domínio efetivo e


de sujeição do outro (definido como objeto do sistema de direito) tendo por suporte o
imperativo de cumprimento do dever profissional e o recurso do superior hierárquico ao jus
puniendi. Nesse modus operandi da autoridade militar a técnica de controle transita do nível

61
Uma das reformulações reivindicadas pela chamada “Associação Unidas”, representante das diversas
associações de militares estaduais sob a coordenação geral de líderes vinculados à Caixa Beneficente, consiste na
alteração da Lei de Organização Básica da PMSE e na reformulação do Código de ética e Disciplinar que rege as
relações hierárquicas na polícia militar. Dedicaremos particular atenção à preocupação, por exemplo, de tais
reivindicações demonstrando como elas estão ligadas à questões de carreira e demais aspectos da organização
administrativa e militar da instituição.
5

formal, do âmbito de controle “logístico” dos recursos humanos, para formas elementares de
“sujeição do outro”, fundado em práticas de fiscalização caracterizadas pelo
“acompanhamento do andamento do serviço” (uma das ferramentas que ilustra essa técnica
elementar são os livros de registro de ocorrência onde se dá ciência); olhar o que o
subordinado está fazendo, desconfiar de sua postura no serviço é algo comum à sistemática de
fiscalização mobilizada pela autoridade militar.

Considerar a sistemática de controle institucional é visualizar a diretriz de


gerenciamento da função (e da atividade) policial militar (enquanto elemento de formação da
pratica profissional específica), sendo possível, também, entender que na PMSE a
“classificação” social e profissional da atividade militar (realizada no interior da Corporação
como “visão formal” acerca da atividade fim) reúne em si elementos híbridos vindos ao
mesmo tempo da “herança” histórica do militarismo (fonte de retratação da atividade militar)
62
e de aspectos mais recentes de reivindicação por um estatuto de profissionalização técnica

capaz de conferir ao policial militar estadual um status singular, impedindo, assim, que aquele

seja definido em termos genéricos como “militar”. O discurso técnico-profissional, esta é uma

das hipóteses a ser considerada, é um dos elementos de relevante significado sociológico para

entender, por exemplo, como as relações hierárquicas e disciplinares passaram por

redefinições “práticas” que invadiram o cotidiano da vida profissional do militar adquirindo

um valor reivindicatório e de reconhecimento social dos policiais militares de Sergipe.

62
O estatuto técnico profissional aqui mencionado será tratado mais adiante na seção que discorrerá sobre a
“educação militar” o qual analisará a reformulação curricular e as ações de profissionalismo implantadas para
conferir ao PM noções específicas de sua prática.
5

3. FORMAS DE CONTROLE E PRÁTICAS DE VIGILÂNCIA


INSTITUCIONAL

3.1. Instrução Militar e formação da “carreira moral” do soldado

O ingresso em uma instituição como a Polícia Militar de Sergipe requer, depois de


conclusas as etapas de disputa meritocrática pelos critérios intelectuais e físicos, a freqüência
em um curso de formação o qual cumpre a função instrutiva com vistas á transmissão de
saberes próprios do ofício profissional. Neste processo é possível reconhecer um momento
específico da trajetória do sujeito na Corporação, pois é a etapa mais tensa de intervenção
institucional devido à tarefa de mudança na carreira moral do recruta que está ainda tomado
pela presença de valores da vida civil. A série de direcionamentos e intervenções pedagógicas
e profissionais marca um período de notória mortificação do eu, ou seja, a mudança de rotina
e o contato com práticas, idéias e valores antes, por muitos, não vivenciados ressaltam as
dificuldades de se abandonar à hábitos e costumes do mundo externo e o imperativo das atuais
condições de vida.

Todavia, deve-se entender que a todo instante as pressões institucionais são


apresentadas ao neófito como resultado da imersão deste num ambiente estruturado pelo
controle rotineiro do tempo, da atividade e da conduta de modo que a diferenciação entre o
mundo da instituição (ou o “mundo de dentro”) e o mundo externo (ou o “mundo de fora) são
objetiva (paredes, muros, delimitação de fronteira, etc) e subjetivamente (trejeitos, linguajar,
postura corporal, estética corporal, classificação moral, etc) manifestadas, compondo o estado
regular das coisas em seu dia-a-dia.
63
A mortificação do eu seria a categoria de Goffman (2008) que serve para

designar a “natureza” das agressões cometidas pela instituição sobre o sujeito e, igualmente, a

percepção deste em face das mudanças produzidas em suas condições existenciais. O

63
A obra citada trata-se de “Manicômios, prisões e conventos”, editora perspectiva, 8ª edição. Cf. p. 24.
6

abandono da rotina de vida e a sujeição a novos direcionamentos implicam em mudanças na


representação subjetiva que o indivíduo faz acerca de si e dos outros; nesse caso quanto maior
o distanciamento entre o “mundo de fora” e o “mundo de dentro” maior a probabilidade do
sujeito (novato, recruta, neófito) ir reproduzindo, como capacidade psíquica de ver as coisas e
as pessoais, em sua conduta as classificações e discriminações advindas do sistema referencial
valorativo da organização a que está integrado.

O processo de internamento do indivíduo caracteriza-se pela dimensão pedagógica


de sua finalidade, consistindo esta no imperativo de “deformação pessoal” operado pela
elaboração de uma identidade compatível à ética e a moral específica da instituição.
Deformação pessoal significa freqüentes e sistemáticas “mutilações diretas e indiretas” feitas
pelos agentes responsáveis pela “acolhida” e formação do recém-chegado.

Mas a tarefa da instituição em preparar para a vida profissional os novos membros


representa dupla tarefa: primeiro o de condicionar o profissional ao desempenho mais
eficiente possível de acordo com as diretrizes éticas e técnicas da Corporação ajustando o
indivíduo ao contexto organizacional; segundo fornecer ao indivíduo uma imagem atualizada
e, portanto, idealizada da instituição, no caso da Polícia Militar de Sergipe essa representação
“ideal” da Corporação converge para a valorização de sua história social (referência à tradição
e à trajetória de seus valores e práticas) e, também, aponta para aspectos de modernização
incorporados recentemente (nesse item se encontra a tentativa de demonstrar ao recruta um
novo estágio de desenvolvimento da Corporação).

É inegável o papel da instrução para a instituição militar, haja vista a instrução ser
64
o primeiro elo entre o elemento (o militar) e o todo (Corporação, coletividade),

64
Berger e Luckmann chamou “cristalização” o processo de elaboração da subjetividade que ocorre
paralelamente ao processo de interiorização, ambos os processos são dinamizados por mecanismos sociais de
integração do sujeito a partir de dimensões objetivas (a realidade, a sociedade, as práticas sociais) e subjetivas
(linguagem, cognição, etc) tornando possível a definição de papéis e de identidades (1997, p. 179). Na instrução
militar o ideal-meta aponta para a “modelagem” da subjetividade do militar (tendo como ponto de partida o
recruta) fundadora de uma identidade coerente e contínua que seja expressão dos direcionamentos teóricos (ou
formais) da instituição e correspondam à representação prática do cotidiano profissional; queremos dizer com
isso que grande parte dos saberes teórico-práticos da atividade policial não é dada no período profissional, disso
resultam duas observações: primeiro, reconhecemos déficits de saberes curriculares na grade de instrução que
não contemplam uma gama ampla de conhecimentos necessários à formação técnica do policial militar em
níveis satisfatórios (faremos algumas considerações posteriores sobre a grade curricular do CFSd) e, segundo,
os “macetes” do serviço de rua são ressaltados pelos policiais militares como saberes efetivamente “necessários”
de serem aprendidos pelo militar, pois o laboratório do CFAP é tido por um simulacro bastante precário daquilo
que
6

indispensável deveras à manutenção da forma e dos mecanismos de controle que a instituição


exerce sobre o indivíduo. Na mentalidade ordinária dos integrantes “mais velhos” a chegada
de novos membros representa uma oportunidade de corrigir os erros passados, de “mudar a
cara” da instituição, de modernizar-se a partir do elemento humano. Todavia, como afirmou
65
Émile Durkheim o processo educativo se funda na intervenção das gerações adultas sobre as
gerações mais novas desenhando o fenômeno de transferência de saberes como uma relação
hierarquizada; nessa “transferência” o saberes formais são dinamizados, mas nem sempre
possíveis de serem completamente filtrados. Se a moral profissional é uma moral elaborada na

rede das relações cotidianas nela (ou seja, no processo formativo da moral profissional)
também podem ser transferidos determinados vícios combatidos racionalmente pela
organização disciplinar do conhecimento. Estamos falando dos vícios e das morais
profissionais co-existentes à ética profissional. Mas quais seriam estes vícios e em que medida
eles não estão integrados à lógica de formação e condicionamento dos recrutas? Essa é uma
das questões a serem tratadas nos próximos itens; outra questão a ser debatida se refere à
natureza do controle exercido pela instituição no processo de instrução militar nos dois cursos
de formação de soldados ocorridos simultaneamente nos anos de 2002 e 2005. Nestes
verificaremos algumas mudanças operadas no modo de organização do curso, bem como o
tipo de interferência gerada pelos alunos dos cursos de formação sobre os responsáveis

institucionais.

o militar enfrenta em seu dia a dia de serviço. Evidentemente, neste último destacamos o nível de significação
atribuída pelos policiais militares à “natureza” do serviço, havendo, por conseguinte, uma sobrecarga de valores,
preconceitos e “visões de mundo” postos em destaque em prejuízo do que fora ensinado e aprendido no período
de instrução. Talvez devêssemos, para entender melhor a série de consid erações feitas, tratar da noção de tática
em Michel de Certeau e Erving Goffman para visualizarmos ainda melhor as implicações práticas dos esquemas
de ação adotados pelos indivíduos no cotidiano profissional; acerca da categoria mencionada discorreremos
adiante em momento apropriado.
65
Ver obra de Durkheim : Educação e Sociologia. Portugal: Edições 70, 2007.
No BGO n° 023 de 07 de fevereiro de2003 encontra-se a seguinte nota informando a “exclusão” por falecimento
do aluno CFSd John Leno Cunha da Mota,: “...falecido no dia 20 de janeiro de 2003,(...), tendo como causa
morte Choque hemorrágico, ferimento toráxico – abdominal, homicídio, vindo a falecer em via pública – Poço
Verde/SE, como consta o atestado de óbito do Dr. Francisco Máximo de Jesus, do Instituto Médico Legal”. É
importante informamos ainda que o aluno citado cumpria um punição disciplinar consistindo esta na prestação
de serviço de policiamento a ser realizado na cidade de Poço Verde.
6

3.2 Instrução Militar: práticas e (re)direcionamentos no processo formativo

A Ata de Encerramento do Curso de Formação de Soldados – conforme


publicação do BGO n° 042, de 12 de março de 2003 – informava a aprovação de 192 policiais
militares; em maio de 2002 entravam no curso cerca de 224 alunos de soldado. No término do
curso ocorreram 32 desligamentos dentre os quais um fora por motivo de falecimento e dois
em função do gozo do direito de Licença Maternidade, assinava a referida ata o então
comandante do CFAP o tenente-coronel José Carlos Pedroso Assumpção. O Centro de
Formação e Aperfeiçoamento de Praças recebia nova turma de soldados após cinco anos
desde a última turma formada naquele centro no ano de 1998; havia na época uma expectativa
quanto ao tipo de contribuição a ser dada pelos recrutas que entravam na Corporação. As
expectativas decorreram de um curto, porém intenso período de mudanças em curso na
instituição tendo como pontos altos, primeiro, a formação de um grande número de militares
na turma de 1998 (cerca de 1000 policiais que haviam sido chamados gradualmente formando
os pelotões de remanescentes das vagas previstas para o edital de Concurso para Soldado da
PMSE), engrossando as fileiras da Corporação e, segundo, o movimento de mobilização por
reivindicação salarial conhecido como “aquartelamento” liderado pelas representações das
associações de militares (dentre as quais se destacava a Caixa Beneficente de Servidores
Militares do Estado de Sergipe), cuja manifestação alcançou intensa participação no final de

2000 e início de 2001.

Segundo foi demonstrado em momento anterior o CFSd 2002 chegava ao CFAP


cujas as atividades estavam em andamento em decorrência do Curso de Formação de
Sargentos (CFS) composto de 04 pelotões dois quais um gozava do direito de freqüentar o
curso em decorrência do tempo de serviço e disponibilidade de vagas para o quadro de
sargento combatentes; os outros três pelotões estavam no curso devido à ação movido nas
instâncias da justiça comum que reconheceu o direito dos militares freqüentarem o CFS.

As expectativas sobre os militares do CFSd 2002 tornava-se tópico comum no


discurso dos instrutores e do oficialato à frente do comando do CFAP e consistia na “crença”
6

de renovação dos valores morais da Corporação e na capacidade de redirecionamento da


prática profissional tendo por base não a diretriz formativa da instrução militar, mas, como
diria Bourdieu, a noção de capital social dos recrutas, caracterizado pelo nível de
66
escolarização . Nestes termos aparecia ressaltado o fato de grande parte da turma de alunos
de soldados serem composta de “pessoas com cultura”, de origem social diversa (embora isso
não se verifique, pois tomando por referência o CFSd de 1998 os militares deste advém de
diferentes classes sociais) e que poderiam contribuir para “abrilhantar” a história da
Corporação marcando uma nova etapa de desenvolvimento desta.

Tal perspectiva decorre em parte da visão educação inerente à instituição militar


que toma a formação de seus membros como o período chave de intervenção e correção de
erros, bem como de direcionamento de projetos pensados pela Corporação num dado
momento. Para entendermos a função da instrução militar e de suas implicações para a
produção de, digamos assim, uma subjetividade militarista devemos considerar a abordagem
feita pelos teóricos Berger e Luckmann (1985, p. 75) os quais destacaram que a ordem social
apresenta-se para o homem como ordem objetiva e subjetivamente articuladas gerando níveis
de interiorização e exteriorização necessárias à definição da condição humana, sendo o
homem percebido simultaneamente como Homo sapiens e Homo socius.

Em processos regulares de condicionamento comportamental – em que o hábito é


resultado de uma economia de esforço, dentre eles está a instrução ou a qualificação
profissional em diversos níveis de sistematização – a formação de padrões da atividade
humana é a peça chave para o que os autores denominam de “tipificações das ações
habituais”, promovidas no interior das instituições sociais contendo duas dimensões
ressaltadas: a historicidade e o controle. Ambas as dimensões são complementarem e
conferem ao processo de institucionalização do sujeito à dinâmica de objetivação e
subjetivação.

66
O edital de concurso público para o CFSd 2002 exigia à semelhança dos concursos realizados na década de
1990 a escolaridade mínima de ensino médio, demonstrando tal critério uma exigência da PMSE quanto à
qualidade intelectual do aspirante ao cargo de policial militar. Segundo dados da PM-3 e da PM-1 dos 200
soldados freqüentando o CFSd 2002 cerca de 50 militares tinham apenas o ensino médio concluso, 90 militares
estavam freqüentando algum curso universitário, 30 militares tinham nível superior completo e 25 cursavam ao
mesmo tempo curso universitário e algum curso técnico ou de qualificação profissional.
6

Em meio a essa discussão podemos entender que a instrução militar cumpre as


suas finalidade de historicização de práticas profissionais delineando níveis de controle
elaborados à partir de noções teóricas e práticas do dever fazer profissional. Visualizando a
importância da instrução militar Janowtiz afirma que esta “é a experiência mais crucial de
um soldado profissional, e isso deve-se em grande parte a uma transição da vida civil
para a
67
militar” , pois o acúmulo de exigências inerentes ao rigor da educação militar imprimem no

soldado a obrigação de ajustamento à vida castrense, mas, também, à adequação de seu papel

profissional à vida social. Não se pode esquecer com isso que a educação militar realizada,

por exemplo, no curso de formação deve apontar não somente para o nível espacial da

instituição mais igualmente tem de apresentar as razões sociais da função que se exerce no

âmbito amplo da prática profissional localizada no “mundo de fora”. Antes de tudo o policial

militar é um agente de segurança pública e sua condição, na atual configuração do exercício

profissional da PM, torna-o um sujeito que lida com o público. Daí uma das dificuldades
68
fundamentais do enquadramento da PMSE a partir da categoria de “instituição total” ,

devido à “natureza” da função social do policial militar e à sua aproximação com o público-

alvo (a sociedade civil).

Pela e na formação militar o soldado torna-se um agente público competente, pois

tal competência decorre do caráter exclusivista do saber ministrado pela instituição. “Na
69
esfera de suas competências legais” o militar é reconhecido por seu superior hierárquico e

pela própria instituição como sendo sujeito habilitado ao exercício de seu oficio profissional,

mas também, e antes de tudo, é apto a responder disciplinar, administrativa, civil e

penalmente às conseqüências de suas ações partindo-se do pressuposto de que no estágio de

formação profissional “todos” os saberes necessários ao desempenho proficiente da tarefa

foram transmitidos sem qualquer deficiência por parte da Corporação.

67
Janowitz apud Celso Castro (2004, p. 35).
68
Como dito em momento anterior a obra de Erving Goffman nos fornece mais que uma categoria, possibilita-
nos o alcance conceitual e estrutural de um mosaico de funções institucionais que, embora não se encontrem em
sua totalidade na PMSE, permitem o reconhecimento de mecanismos e funções ora latentes ora freqüentemente
dinamizados no interior da organização reforçando as relações de controle sistemático direcionados aos
indivíduos imersos na realidade organizacional.
69
Expressão empregada na 4ª Seção do Boletim Ostensivo ou Interno, geralmente evocada nas ocasiões de
aplicação da pena ás transgressões disciplinares.
6

A educação ou a qualificação profissional é na ordem das coisas (tomando por


indicativo a entrada do sujeito na Corporação) o primeiro mecanismo de controle exercido
70
pela instituição sobre o sujeito, pois como afirmara Durkheim a moral profissional decorre
das relações de sociabilidade da qual participam os sujeitos integrantes de uma dada
organização expressando um tipo de “consciência coletiva” representativa do papel
profissional de determinada categoria.

Nesse sentido, sendo a educação ou a instrução militar o primeiro “contato”


mantido entre sujeito e instituição o processo de transmissão de saberes profissionais implica
no treinamento e preparo devido do alunado (os aspirantes à agente de segurança pública) a
partir de noções técnicas basilares da prática profissional (a disposição curricular expressa a
visão formal e profissional da função policial militar), a formação técnica, então, seria a
maneira de definir um parâmetro de classificação do sujeito a partir do mérito e do grau de
conhecimento adquirido, em que também se faz presente um senso de responsabilização
moral (apresentada em termos jurídicos como definidor dos parâmetros de comprometimento
ético e moral do militar em face de seu dever profissional) elencada nos regulamentos que
regem a vida castrense.

A instrução militar, primeiro mecanismo de controle da instituição por nós


elencado, cumpre a função de aglutinador de individualidades e força motriz de coletivização
do sujeito, enquanto tal o saber técnico e profissional são contemplados, mas tão importante
quanto reconhecermos o valor da qualificação profissional destinada aos policiais militares é
reconhecermos que essa formação se dá no campo mais amplo de vivências e representações
sobre a atividade policial. Os valores, as crenças, os “macetes”, os vícios, as qualidades, os
defeitos, os preconceitos, os juízos apriorísticos são elementos presentes na prática
pedagógica exercida nos Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças, isto porque o
papel do instrutor na sala de aula e à frente de seu pelotão transcende a função de componente
integrante da hierarquia militar, isto porque o instrutor é simultaneamente um educador e um
profissional em exercício, transmitindo o saber técnico, mas juntamente com suas respectivas

visões de mundo decorrentes do “aprendizado no serviço de rua”.


70
Sobre a moral profissional ver Lições de Sociologia, Émile Durkheim, editora Martins fontes, 2004.
6

A abertura do CFSD 2002 se deu em condições favoráveis ao reforço de um


projeto de continuidade administrativa da Polícia de Sergipe que na época estava sob o
comando do Coronel EB Pedro Paulo da Silva e do subcomandante Coronel PM Osvaldo
Santos Bezerra. À frente do CFAP encontrava-se o então tenente-coronel Gilson Vicente do
Nascimento que tinha a responsabilidade de comandar os 04 pelotões do CFSd juntamente
com os demais 04 pelotões do CFS, curso em andamento. Um número bastante elevado de
militares se encontrava em fase de formação e representavam para a segurança pública do
estado grande potencial de emprego imediato nas ruas reforçando, assim, o policiamento
ostensivo.

Entre maio de 2002 a abril de 2003 comandaram o CFAP precisamente 03


coronéis dentre eles: o já mencionado coronel Gilson Vicente do Nascimento, o coronel
71
Carivaldo dos Santos e o coronel José Carlos Pedroso Assumpção . O primeiro comandante
assumiu uma postura caracterizada pela “humanização” do treinamento militar conferido aos
recrutas do CFSd 2002; tal tratamento implicou na manutenção do alunado no centro de
formação afastando temporariamente os mesmos da atividade de policiamento ostensivo, haja
vista existirem pressões externas quando ao emprego mais rápido possível do contingente de
recrutas nas atividades do CPMC e do CPMI. Cabe ressaltar que o comandante geral Cel.

Pedro Paulo mantinha seu apoio ao Cel. Gilson Vicente, todavia, na visão do subcomandante
geral Cel. Bezerra os alunos de soldado deveriam atender ao imperativo da “necessidade de
serviço” visto que este tem uma finalidade pedagógica qualificada como aprendizado prático
e posto na categoria de estágio operacional.

Para demonstrar o andamento do curso e o devido cumprimento das atividades


curriculares e formativas inerentes ao período de instrução militar o Cel. Gilson Vicente
emitiu ao comando geral a Parte s/n informando estatisticamente a evolução do curso,
vejamos parcialmente o conteúdo do relatório:

RELATÓRIO DE CURSO72
1. FINALIDADE
Informar o escalão superior sobre o andamento do CFS e CFSd 2002.
2. CONSIDERAÇÕES GERAIS
71
Este coronel exerce o comando geral da PMSE desde julho de 2009.
72
BGO n° 156 de 06 de setembro de 2002, p. 01458.
6

Este é um relatório simplificado no qual foi dada prioridade na


visualização direta e técnica dos dados; (...)
Devido à escala de serviço diário, a hora aula foi reduzida de 45 para
40 minutos, permanecendo os alunos, no CFAP, das 7:00 às 12:00 h;
Os alunos do CFSd tiveram várias palestras, dentre elas podemos
destacar:
- Palestra com o Prof. Jácome Góes sobe Calores Humanos;
- Palestra com o Dr. Willian sobre Câncer;
- Palestra com o Sgt Abílio sobre Cães;
- Palestra sobre o Meio Ambiente;
- Participaram da abertura do Encontro Nacional dos Comandantes Gerais;

O relatório informa uma distribuição entre o horário das aulas e o horário dedicado

ao serviço nesse caso referindo-se ao CFS cujo emprego no policiamento ostensivo já era fato.

Havia uma expectativa de emprego dos alunos de sargento e de soldado no serviço ostensivo

atendendo a interesses principalmente do subcomandante e de parte do alto escalão de oficiais

integrantes do EMG. Todavia, a apresentação do relatório informava que no tocante ao CFSd

o andamento das disciplinas e da carga horária do curso indicava ser prematura a decisão de

deslocar o efetivo, recém integrado às fileiras e sem o conhecimento perito mínimo necessário

para o exercício da atividade policial, às ruas mesmo em face das pressões fora e dentro da

instituição. O relatório traz, novamente, em termos numéricos a porcentagem conclusa de

parte das disciplinas:


DO CURSO DE FORMAÇÃO DE SOLDADO
a) VISÃO GERAL DAS DISCIPLINAS ;
Disciplinas concluídas
Disciplinas restantes
Disciplinas em andamento

Estariam computadas na carga horária das disciplinas conclusas (20%) indicadas


no primeiro trecho do relatório a série de eventos esporádicos e de disciplinas cujo formato
73
fora denominado “palestra” , demonstrando o caráter polimorfo de saberes com pouca ou
nenhuma aplicabilidade para o serviço policial militar. De fato, a realização das palestras
(computados na grade curricular) tinha o propósito de preencher lacunas no gerenciamento

administrativo e pedagógico. Outra estratégia utilizada para “ocupar” o alunado seria a prática

73
As Palestras com o Prof. Jácome Góes sobe Calores Humanos; com o Dr. Willian sobre Câncer; com o Sgt
Abílio sobre Cães; sobre o Meio Ambiente; palestra da abertura do Encontro Nacional dos Comandantes Gerais
indicam a propositura de saberes genéricos computados na grade fixa de disciplinas previstas para o CFSd 2002.
Ressaltamos o caráter genérico e de justificação questionável para a diretriz pedagógica e instrucional de um
curso de caráter “técnico” voltado para a área de policiamento.
6

diária de exercícios de educação física militar e de ordem unidade. Nestes termos, a educação
física militar tinha uma regularidade prevista para os dias de terça-feira e quinta-feira das

07h30min às 09h00min; já a ordem unidade era até a quarta semana de curso realizada
periodicamente cerca de 2 a 3 horas diariamente para suprir o tempo não preenchido pelas
aulas que não possuíam instrutores nomeados.

O atraso no início das disciplinas e a promoção de palestras para atender à


finalidades pedagógicas traduziam o grau de interesse da instituição em estruturar a formação
da praça que se via, no que concerne à turma de soldados de 2002, prejudicada pela
precarização da grade curricular e desarticulação entre a PM-3 e o comando do CFAP. Em
meio às pressões crescentemente manifestas no interior da instituição quanto ao emprego o
mais rápido possível do efetivo de recrutas o relatório acima indicado pretendia, também
informar o grau de despreparo dos soldados recrutas em decorrência de disciplinas práticas (a
exemplo da disciplina de Tiro Esperial e de Defesa Pessoal) ainda não terem sido ministradas.
O coronel comandante do CFAP tendo à sua frente a tarefa de formar duas gerações de
militares representadas pelo CFS e CFSd 2002 faz as seguintes afirmações do andamento dos
cursos:

O Curso de Formação de Sargentos 2002 vem sendo desenvolvido dentro


do planejamento inicial, mesmo acontecendo o imprevisto que interferiu no
andamento do mesmo
(...)
O Curso de Formação de Soldados está sendo desenvolvido dentro do
planejamento inicial, não havendo ainda nenhum tipo de modificação. O
Comando do CFAP, juntamente com o seu STAFF, está desenvolvendo seu
trabalho dando prioridade às instruções, graças ao apoio do Comando da
Instituição juntamente com o Escalão Superior, acreditando que é no berço
da Corporação que o aluno terá condições de exercer o papel do bom
74
profissional da segurança do cidadão, razão maior de sua existência.

No primeiro trecho a referência ao “imprevisto” indica o problema jurídico

advindo das ações movidas na 6ª e na 9ª Vara Civil por militares contra o comando geral por

entenderem que este não cumpriu o regulamento de promoções impedindo, assim, que parte

dos militares evoluíssem na carreira militar. O emprego dos militares no serviço ostensivo,

74
BGO n° 156 de 06 de setembro de 2002, p. 01458.
6

75
depois de conclusas parte do curso , era imperioso haja vista ser manifesta a compreensão de
que o tempo de formação e preparação era “desnecessário” em decorrência da exigência de
disponibilização de homens na atividade fim. No tocante ao CFSd 2002 havia uma divisão de
opiniões quanto à diretriz pedagógica do comando do CFAP que insistia, como parte da
orientação pessoal manifesta publicamente no interior da Corporação, na manutenção do
alunado no período de dedicação à formação e instrução. Na PMSE o delineamento das ações
de gerenciamento da atividade administrativa e operacional são grandemente definições de
projetos apresentados pelo comando geral, conseqüentemente a troca de comando representa
muitas vezes a imediata mudança nas medidas adotadas pelo antecessor.

A manutenção do alunado no CFAP era possível enquanto a visão da importância


da instrução fosse sustentada pela atitude coerente do comando geral; o coronel Pedro Paulo
assumia manifestadamente a necessidade de corrigir erros em cursos anteriores que tratavam
o curso de soldados com certo demérito. A referência ao apoio do comando no trecho acima
evidencia a relação de concordância entre o comando geral e o comando do CFAP – a
permanência das condições de instrução da turma CFSd 2002 estava na dependência direta da
relação interpessoal estabelecida entre o coronel Gilson Vicente e o coronel Pedro Paulo. Tal
relação foi, em parte explicitada pelo entrevistado que na época ocupada uma das funções de
instrutor:

Havia entre o Corpo de Alunos e o Comando (do CFAP) o acordo sobre o


tipo de instrução que deveria ser dada. O coronel Vicente tinha receio que
os alunos fossem logo pra rua, atrapalhando o curso. O planejamento no
início era pra os alunos concluírem o curso indo pra rua no período certo do
estágio, porque existe um estágio e ele não começa com três meses de curso
como queria alguns oficiais. (entrevistador) E sobre o modo como a
instrução militar deveria ser conduzida? Tinha alguma preocupação com a
violência e a rigorosidade do treinamento? Sim, porque o coronel mandava
que todo exercício tivesse uma justificativa técnica, pra que não fosse
tomado como mal trato, era preciso explicar qual a finalidade do exercício.

75
No demonstrativo do percentual do curso do CFS podemos destacar as distinções entre os pelotões; havia
quarto pelotões, o primeiro a ter o direito reconhecido pelo Comando Geral cursou no momento da emissão do
relatório cerca de 64%, enquanto os demais em decorrência de chegarem ao CFAP por força de decisão judicial
terem cumprido até a data de publicação do relatório apenas 35% a 38% (somando disciplinas concluídas e
disciplinas em andamento).
7

A orientação na formação e no desenvolvimento de atividades exercidas pelo


comandante de pelotão (geralmente um sargento) ou instrutor (responsável por ministrar o
conteúdo da disciplina) se situava no campo mais amplo de orientação do comando do CFAP.
Isto permite fazermos algumas observações: primeira a tentativa de quebra de padrões
formativos militares no tocante principalmente ao acometimento de atos de violência e de
truculência comumente associados aos cursos de treinamento militar e tidos como requisitos
necessários na qualificação do militar partindo-se da premissa de que o policial deve estar
preparado para as adversidades, para situações de intenso estresse emocional; em tal
perspectiva a violência localizada nos exercícios militares é assumida dentro de um processo
de simbolização que a desclassifica (do ponto de vista de ato arbitrário, fugidio à razão, à
civilidade) para reclassificá-la, ou seja, abstrai dela determinado conteúdo para inserir outra
“natureza” capaz de justificar a série de ações e de resultados produzidos, Bourdieu (p. 116,

1997) descreve esse fenômeno paradoxal quando afirma que “a exibição da força (...),
implica de fato uma exibição do domínio da força. Ela é uma denegação da força, uma
afirmação da força, que não deixa de ser uma negação da força, (...), logo convertida em
força legítima, desconhecida e reconhecida, em violência simbólica”.

A violência – de caráter simbólico, físico e moral – praticada pela instituição


militar em período de instrução do recruta (nas diversas modalidades de instrução que
possuem ênfase na dimensão operacional e prática da atividade policial militar) alcança
naquela fase um grau de aproximação bastante estreita entre o campo de representação das
práticas de policiamento e o campo normativo disciplinar do exército (regulador do dever-ser
da prática policial). As intensas exigências regulamentares e disciplinares – apresentadas por
Goffman (2004) como formas de ajustamento do indivíduo aos esquemas de controle e
sujeição da instituição – atuam num patamar de intensa e sistemática aplicação reforçando a
visão pedagógica e instrumental de que “o policial deve estar preparado para o inesperado”.

A orientação quanto à explicitação da dimensão finalista de determinado exercício

– para justificar um fato que poderia ser descrito como arbitrário – não eliminou,
conseqüentemente, a ocorrência de práticas abusivas; num dos relatos do policial entrevistado
encontramos o seguinte registro.
7

Uma vez estávamos em forma quando de repente o sargento deu a ordem de


comando ‘sentado um dois três’, ‘de pé um dois três’; agente não entendia
por que aquilo, fiquei muito chateado na hora. Depois que acabou o
comando o sargento disse que era porque tinham cuspido no chão e que isso
era pra limpar o cuspe, e que isso não se devia fazer porque outros
companheiros estavam ali fazendo exercícios (...)

A idéia de obediência ao comando do superior hierárquico, cuja amostra se segue


no trecho acima, fornece-nos um dos componentes do princípio disciplinar caracterizado pela
natureza “multissegmentar” de um maquinário que faz funcionar e engendrar a dimensão
corpórea representada na disposição dos elementos (soldados) constitutivos da dimensão
orgânica (tropa). Para Foucault (2009, p. 158) o soldado seria um ponto de convergência das
relações de poder, distribuídas na dimensão biológica de sua corporeidade tornando-o peça
destinada à execução de determinadas operações integrantes de um “mecanismo”; as marchas,
os exercícios de ordem unidade, as exigências estéticas e físicas vinculadas ao aprimoramento
das táticas militares são exemplos de atividades que fazem funcionar e demonstram, por
conseguinte, que as práticas disciplinares são práticas de sujeição do indivíduo definidas em
termos de uma “relação de sinalização”; nesta relação “o que importa não é compreender a
injunção, mas perceber o sinal, reagir logo a ele, de acordo com um código mais ou menos
artificial estabelecido previamente”. (idem, p. 161)

O aprendizado dos “códigos de sinais” é a finalidade fundamental da ordem


unidade decorrendo desta uma série de outros propósitos instrucionais que servem, inclusive,
como pano de fundo para os demais exercícios disciplinares no âmbito do treinamento militar.
Pela codificação da ordem se espera obter o máximo possível de obediência à ordem de
comando, desta advém, em grande medida, a noção de subordinação hierárquica como
ausência de análise crítica da relação interpessoal mantida entre superior e subordinado
hierárquico.

No CFSd 2002 revela-se a reconfiguração do treinamento militar numa dimensão


apenas visível aos militares que participavam do processo e a Corporação que assistia aos
desdobramentos do curso. A primeira mudança mais enfática e que indica o direcionamento
conferido por uma mentalidade ainda em consolidação no interior da PMSE se referia à
7

introdução de um instrumento de justificação do ato representado na Razão de Defesa (RD)


no conjunto das práticas de controle pedagógico exercidos no processo de instrução militar.
Até então, o comando do CFAP e respectiva assessoria de ensino não haviam aplicado a RD
aos alunos estendendo á estes o direito de apresentarem as motivações e circunstâncias
configuradoras de determinado ato de transgressão disciplinar. A confecção da RD e a
aplicação da mesma pelo Corpo de Alunos (responsável direto, dentre outras competências,
pela disciplina do corpo discente) seguiam a expressa orientação do comando geral da PMSE
e do comando do CFAP em criar as condições de acessibilidade ao direito de resposta do
militar acusado de determinado ato de transgressão.

No CFSd e em cursos de promoção de praças realizados anteriormente ao ano de

2002 não houve registro que comprovasse no cômputo de suas práticas pedagógicas e de

controle institucional a aplicação da RD; a ausência de instrumentos de justificação era

explicada pela natureza das práticas de controle institucional desenvolvidas nos cursos de

instrução militar. Segundo um dos militares entrevistados matriculado no CFSd de 1998 “as

punições eram aplicadas pelo comandante de pelotão e pelos diversos superiores

hierárquicos, por sargentos e oficiais. (...) não havia razão de defesa; o sargento informava o

aluno que ele tava punido, dava uma ‘canetada’ nele sem muitas vezes muita explicação”; a
76
disciplina militar, enquanto “regime de poder” que faz funcionar e põe em evidência uma

série de operações celulares de controle fundados em mediações regulamentares e diluídas na

intersecção formada pelas relações interpessoais, gerou um tipo de poder institucional

baseado na noção de elevado “devotamento” do indivíduo às obrigações impostas pelo ofício

(funções estas derivadas da relevância do regulamento no interior das esquemas de

disciplinamento da conduta dos sujeitos à partir dos princípios de subordinação funcional e

hierárquica), esta categoria explicita bem a função dos mecanismos de controle tidos

comumente como mecanismos de punição e castigo.

O modo pelo qual a punição era aplicada, segundo o registro do militar

entrevistado, demonstrava a natureza arbitrária da autoridade militar exercida à revelia dos

76
FONSECA, Paloma Siqueira. A Presiganga e as punições da Marinha (1808-31), In: Nova História Militar
Brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004.
7

direitos do alunado; nesse sentido, a desqualificação jurídica do alunado remonta à existência


de um sistema de controle que operava sob a perspectiva tradicionalista das formas de
vigilância produzidas e elaboradas pelo pensamento militarista. Para Fonseca (2004) as
práticas punitivas e seus modelos de punição aplicados pelas Forças Armadas, em particular a
77
Marinha , constituíram, em grande medida, os parâmetros condicionadores das práticas de
controle e vigilância atribuídos às instituições militares.

A disciplinarização assumiu historicamente a forma de uma “estrutura de


repressão” com funções internas (burocráticas e institucionais) orientadas para o ajustamento
do militar “dissidente”; a prática de violência se tornou gradativamente – nas Forças Armadas
e nas Forças Auxiliares do Exército – um tipo de “violência burocrática, institucionalizada e
centralizada” (SMALLMAN, 2004, p. 390), sendo tal “configuração” possível graças devido
ao que Shawn Smallman (2004) denomina de “profissionalização militar”. Essa
reconfiguração do poder exercido no interior da instituição militar adquiria um caráter
burocrático marcado por crescentes preocupações com os procedimentos jurídicos e a
fundamentação legal de suas decisões.

No caso específico do CFSd 2002 e 2005 a punição – que em cursos anteriores


dispensava a formulação de “inquéritos sumaríssimos” sobre determinados atos dos alunos –
passava a integrar o corpo de procedimentos disciplinares e administrativos condicionando a
capacidade de punir à série de etapas que atestarão a veracidade ou não dos fatos. Todavia, é
preciso ressaltar que a incorporação do instrumento de justificação (assegurador do direito
constitucional de garantia à ampla defesa e ao contraditório) vem sendo implantada
sistematicamente no interior da Corporação como resultado de reformulações nas práticas
punitivas e nas formas de organização da atividade profissional dos policiais militares; sobre
esse tópico discorreremos mais adiante.

Mas a preocupação com a justificação do ato de punir por parte da autoridade


militar representa mais que uma mera alteração nas relações de controle, mostra a

77
A autora faz referência a um estudo sobre a press-gang como forma de recrutamento forçado praticados pela
Marinha brasileira entre 1808 a 1831. A presiganga atendia às funções de mecanismos de seleção social
desenhando um sistema punitivo misto onde militares e civis eram punidos por regulamento disciplinar; tal
mecanismo reforça a idéia de poder arbitrário e práticas abusivas cometidas pela instituição militar. Op. Cit.
7

interferência de instâncias da vida civil sobre o cotidiano da vida na caserna. Podemos ver
nisso a “colonização” da esfera da atividade militar por outras forças sociais ativadas no
contexto da experiência democrática; um dos exemplos dessa interferência, digamos assim,
positiva nas relações hierárquicas e disciplinares é a função social e institucional das Varas
Cíveis na formação de espaços de disputa e reivindicação; o policial militar foi desenvolvendo
uma mentalidade “profissional” de sua condição na caserna, rompendo com uma visão
dualista das relações hierárquicas que formava um campo com dois lados opostos: oficiais e
praças. Estava em franco desenvolvimento a compreensão de que o conjunto de normas e
regulamentos na sua maioria compilada do Exército Brasileiro criava condições de exercício
de um poder institucional “incontestável” em seus atos e decisões, amparado num poder
discricionário bastante elevado cujo limiar entre legalidade e arbitrariedade era muito frágil.

Partindo da perspectiva jurídica da autoridade institucional, pois a polícia militar é


órgão integrante do ordenamento jurídico-burocrático do estado, a primazia do interesse
coletivo sobre o interesse individual, segundo afirma Hanhs Kelsen (2004, p. 273), é fonte de
“obrigação” imposta às relações entre o cidadão e o Estado, todavia, a noção de autoridade
está associada estritamente à noção de normatividade. Para Kelsen (2004) o antagonismo
surge da divergência entre a condição real do sujeito – cuja conduta orienta-se, em termos
abstratos, para o cumprimento da norma jurídica – e o exercício do poder normativo enquanto
expressão da dominação do Estado (e, por conseguinte, sua “rede” burocrática de organização
especializada das funções) sobre a vida social.

Nesse sentido, a justificação do ato da autoridade é um dos princípios de


legalização das ações, condicionando-as aos requisitos estipulados pelo direito público
(KELSEN 2004, RAWLS 2004, BOBBIO 2001). A formação de determinadas demandas por
direitos e a “contestação” dos atos da autoridade são, de antemão, a expressão da
possibilidade objetiva de pleitear no campo normativo a revisão, a nulidade ou a correção de
atos do poder públicos classificados como abusivos e “ilegais”. Na instituição militar existe
um elevado grau de comprometimento entre a pretensa objetividade do regulamento e as
práticas de controle institucional dos sujeitos. Isto ocorre porque, segundo Goffman (2008)
nas instituições militares (ou em instituições totais de modo geral) é comum identificar
7

discrepâncias entre o senso de dever e a noção de dignidade da pessoa humana constituindo


essa discrepância um dos elementos típicos do ordenamento moral. As interdições, aspectos
de artificialização da vida no interior da instituição, freqüentemente praticadas nos
treinamentos militares, cuja representação mais adequada tenta demonstrar a “importância
mínina da autonomia do sujeito” em face dos processos de coletivização do eu, são, por vezes,
adotadas na administração da atividade policial nos quartéis dificultando o acesso do policial
militar a determinados “benefícios” ou direitos previstos em lei. O direito é pensado com
ressalva, pois uma maior conscientização deste nas relações hierárquicas pode implicar no
relaxamento dos valores da disciplina militar. Sobre as relações entre poder institucional, jus
puniendi e possibilidade de contestação dos atos da autoridade discorreremos no item a
seguir.

3.3. A (re)invenção de mecanismos de responsabilização legal e poder


disciplinar

Em Boletins Internos do QCG – os boletins do quartel central respondiam por atos


administrativos da CCSv e possuindo simultaneamente a qualidade de informativo geral da
Corporação, datados na segunda metade da década de 1980 – a 4ª Parte – Justiça e Disciplina

– traz registros de “licenciamentos à bem da disciplina” nos fornece elementos de análise dos
procedimentos administrativos e jurídicos, primeiramente nos Boletins Ostensivos Gerais
publicados em tempos atuais a importância dos Boletins Internos perderam gradualmente sua
importância como “peça” informativa do cotidiano profissional das OPM’s, a homologação
dos atos da autoridade da unidade militar que eram praticados a bastante tempo como forma
de legitimar as decisões das chefias locais são praticados ainda hoje.

No BI’s da década de 1980 os desligamentos e a punição aos crimes militares são


tratados na mesma seção em que se informam punições e elogios; a publicação de um texto
que traz algumas das transgressões cometidas pelo militar em sua trajetória na instituição
7

indica a importância da “classificação do comportamento do policial militar” (segundo o R-

4, art. 50, o comportamento militar é definido pela seguinte classificação: excepcional, ótimo,
bom, insuficiente, mau) usado unicamente como “provas” da inadequação do militar “à vida
policial militar”. Num trecho lê-se o seguinte:

Considerando que o soldado QPMP-0 (...) da 1ª Cia do 1° BPM, incluído no


estado efetivo desta Corporação, no dia 19 de julho de 1984, vem
demonstrando não ter se adaptado à vida policial militar. Considerando que
o referido militar ao ser punido disciplinarmente [grifo meu], por faltas
cometidas, ingressou no COMPORTAMENTO MAU. (...) Considerando
que o soldado (...) se tornou nocivo à disciplina Policial Militar, RESOLVO
[grifo do autor], como medida de repressão imediata, para manter a moral e a
disciplina, LICENCIÁ-LO, do estado efetivo desta unidade e subunidade
a que pertence, a BEM DA DISCIPLINA, de acordo com os n° 1 e 2 do §
1° do Art. 30, combinados com os n° 1 e 2 do art. 13, Decreto Federal

90.608, de 04 de dezembro de 1984 (R-4), em vigor nesta OPM. (Boletim
Interno, n° 88, de 15 de maio de 1986)

Interessante observar que no mesmo “BI” foram “licenciados a bem da disciplina”


outros três policiais militares e o texto apresentado seguiu um formato semelhante enfatizando
a incompatibilidade moral dos militares excluídos com a ética policial-militar e a nocividade
que representam aos valores da hierarquia e da disciplina. Outra observação se refere ao
tempo de serviço dos militares licenciados, os quatro têm uma média de 04 anos de efetiva
prestação de serviço nas fileiras da PMSE, sendo os mesmos classificados como “praças sem
estabilidade”. Conforme o regulamento disciplinar e o Estatuto dos Policiais Militares a
“estabilidade” na Corporação se dá tão somente após dez anos ininterruptos de efetiva
prestação de serviço, passando por quatro avaliações médicas feitas pela Junta Média do
Hospital da Polícia Militar a primeira para fins de engajamento ocorre aos dois anos de
efetivo serviço, a segunda ocorre na ocasião do reengajamento quando completos cinco anos
de serviço, a terceira ainda dentro do “estado” de reengajamento ocorre aos sete anos, a quarta
avaliação médica se dá aos dez anos de serviços marcando a entrada da praça na
“estabilidade” do serviço nas fileiras da Corporação, aos dez anos de serviço a praça alcança a

1ª classe. A avaliação médica é pré-requisito de continuação na trajetória do militar no serviço


7

militar sendo necessária também em ocasião de promoção, desligamento e ingresso nos cursos
de qualificação profissional da PMSE.

O histórico de transgressões disciplinares e a reclassificação do comportamento


dos policiais licenciados foram apontados na 4ª Parte como os motivos da exclusão a bem da
disciplina; nesse sentido os militares passaram, seguindo o roteiro de procedimentos da época,
por um sumário rito de exclusão em decorrência da condição de praças sem estabilidade.

Em se tratando de um procedimento sumaríssimo, basicamente composto pela


averiguação do objeto de acusação, destinado à exclusão de praças sem estabilidade o direito
à ampla defesa e ao contraditório era prejudicado, pois o regulamento disciplinar reservava
um conjunto mais rigoroso e completo de procedimentos administrativos quando se tratasse
de exclusão de praça com estabilidade. Ressaltamos que esse déficit nos procedimento de
responsabilização não é conseqüência do período de restrição política e civil mantidos pela
ditadura política; decorre sim dos postulados do regulamento disciplinar e dos estatutos
adotados nas Forças Armadas e Forças Auxiliares.
78
A partir de 1998 surgiram no interior da polícia militar debates focando o

problema da padronização de procedimentos de apuração de transgressões disciplinares e


também o tipo de responsabilização que deveria ser imputado aos militares sem estabilidade.
Em meio a esse debate se procurou atender a duas questões: rever os mecanismos de
responsabilização jurídica existente e manter a eficácia dos procedimentos administrativos,
jurídicos e penais; o segundo problema seria “preencher” as lacunas deixadas pelos
procedimentos administrativos racionalizando as práticas jurídicas fundamentando legalmente
as decisões da autoridade militar.

As “brechas” reconhecidas no dispositivo de controle administrativo-jurídico


militar advinham mais da ausência de procedimentos racionais e sistêmicos de apuração de
crimes e transgressões disciplinares que propriamente da ausência de previsões legais.
Todavia, no tocante aos procedimentos de exclusão havia uma falha notória que serviu de
argumento plausível para que fosse reavaliado o conteúdo e a legalidade dos atos da

78
Podemos ainda dizer que o debate se intensificou e assumiu uma fase “produtiva” entre 2001 e 2006 quando é
possível enumerar uma série de “invenções” no âmbito dos procedimentos disciplinares de responsabilização.
Sobre essa problemática discorreremos mais adiante.
7

administração militar, estamos falando do tratamento que deveria ser aplicado ao policial
militar sem estabilidade. A lei 8.112 que regem a atividade pública e define a condição do
servidor estabelecia um estágio probatório de 03 anos para se obter a estabilidade, no
militarismo a estabilidade é obtida com dez anos de efetivo serviço.

O militar estável recebia tratamento jurídico diferenciados, sendo respeitados os


direitos fundamentais previstos em procedimentos de exclusão. O Estatuto dos Policiais
Militares, Lei n° 2.066 de 23 de dezembro de 1976, faz menção aos níveis de progressão na
carreira e não menciona qual o tipo de tratamento administrativo e jurídico deve ser conferido
à praça sem estabilidade que sofre processo de licenciamento. Conforme demonstração de
“licenciamento” de praça o procedimento sumário inviabiliza a capacidade de contestação do
militar frente à autoridade, haja vista esta deter em suas mãos maior possibilidade de decisão.

A modernização pela qual vem sofrendo o dispositivo jurídico da PMSE tem sido
caracterizado por diversas elaborações de procedimentos e leis que objetivavam a
racionalização e a padronização dos procedimentos garantindo a sistematização das práticas
de controle jurídico. Partimos da hipótese de que essa modernização penal-disciplinar (situada
mais particularmente entre 1998 e 2006 representada por uma série de arranjos institucionais
distribuídos especialmente no sistema administrativo e jurídico da PM de Sergipe) enfrentou,
num momento inicial, problemas de ordem interna, sendo mais significativa a questão
envolvendo as relações entre instituição e indivíduo, em outras palavras o tipo de controle
exercido pela instituição militar teve como campo imediato de “reconfiguração” o âmbito das
relações hierárquico-disciplinares.

Tensões geradas na relação indivíduo-instituição podem ser ilustradas por eventos


que foram capazes de apresentar publicamente a necessidade de reformulação dos
mecanismos de exercício do poder. Uma das causas desse fenômeno foi a mobilização
“sindical militar” organizada por indivíduos ligados à Associação Beneficente dos Policiais e
Bombeiros Militares de Sergipe (ASBMSE) e demais associações ligadas à PMSE por meio
de seus membros. Uma prova de demonstração das tensões formadas no âmbito das relações
hierárquico disciplinares pode ser fornecida pelo Boletim Geral Ostensivo n° 002, datado de
7

03 de janeiro de 2001, o qual traz um registro “inusitado” de punição de oficiais em função da


pública e notória participação política e ideológica em uma estação de radiodifusão:

- PUNIÇÕES IMPOSTAS PELO COMANDANTE GERAL

a. Ao Tem-Cel QOPM (....), por ter no último dia 28 de novembro de


2000, travado forte discussão com um Oficial Superior seu
subordinado, num programa matinal da rádio Atalaia AM, no ar e para
todo público do Estado e além das fronteiras ouvir, ofendendo e sendo
ofendido, pronunciando-se sobre assuntos da Corporação, como
assunção de funções, capacidade de Oficiais, etc, sem a permissão ou
conhecimento do Comandante Geral, se reportando sobre o último
movimento reivindicatório, avivando a mente de policiais sobre
assuntos de reivindicações, jogando-os contra autoridades constituídas
e provocando intervenções de subordinados, além de não ter feito a
devida comunicação da falta do seu subordinado que lhe ofendeu,
transgredindo preceitos disciplinares que regem o RDE em vigor na
Corporação, e quando dado o direito de apresentar razões de defesa
estas não foram suficientes para justificar tais transgressões (nºs 3, 6,
9, 51, 63, 65, 66, 67, 92, 107, Transgressão GRAVE), fica PRESO por
dez (10) dias neste QCG. A referida punição disciplinar será cumprida
pelo Oficial quando o mesmo retornar da Academia da Polícia Militar
do Estado do Ceará, onde freqüentará o Curso Superior de Polícia a
partir do dia 04/01/2001.

b. Ao Major QOPM (...), por ter feito interferência em um programa


de rádio no último dia 28 de novembro de 2000, travando forte
discussão com superior hierárquico, ofendendo-o e sendo ofendido, se
reportando sobre assuntos internos da Corporação, como funções
exercidas, etc., sem que para isso tivesse a devida autorização do
Comandante Geral, afrontando preceitos disciplinares do
Regulamento Disciplinar em vigor, e quando dado o direito de
apresentar razões de defesa estas não foram suficientes para justificar
tais transgressões (nºs 3, 63, 65, 66 e 105, Transgressão GRAVE), fica
PRESO por oito (08) dias neste QCG.

c. Ao Cap QOPM (...), por ter feito interferência em um programa de rádio


no último dia 28 de novembro de 2000, travando forte discussão com seu
superior hierárquico, ofendendo-o e sendo ofendido, se reportando sobre
assuntos internos da Corporação, como funções exercidas, etc., sem que para
isso tivesse a devida autorização do Comandante Geral, afrontando preceitos
disciplinares do Regulamento Disciplinar em vigor, e quando dado o direito
de apresentar razões de defesa estas não foram suficientes para justificar tais
transgressões (nºs 3, 63, 65, 66 e 112, Transgressão GRAVE), fica PRESO
por seis (06) dias neste QCG.
8

Tais fatos e punições foram aplicados na gestão do comandante geral Coronel


Antônio Freitas de Alcântara e do subcomandante coronel Osvaldo Santos Bezerra e servem
como amostra das tensões hierárquicas e disciplinares que foram, aos poucos, servindo de
justificação para se repensarem a eficácia das práticas e dos procedimentos administrativos e
legais. A publicização das punições disciplinares em BGO é duplamente interessante para se
analisar as finalidades do poder disciplinar e de sua dinâmica de controle: primeiramente,
ressaltamos o caráter excepcional da publicação cujos penalizados e transgressores são
oficiais superiores, comumente as punições e demais atos administrativos pertinentes ao
oficialato são “publicizados” em documento específico denominado Boletim Reservado; este
documento tem a funções de restringir o acesso às informações delimitando-as ao interesse de
determinados agentes; em segundo, temos a dimensão simbólica do conflito gerado entre
segmentos superiores da hierarquia militar; nesse conflito ainda temos um elemento adicional
que era a distinção entre a visão militarista do comandante geral, pertencente ao Exército
Brasileiro, e a visão militarista dos oficiais punido, originados das fileiras da PMSE; nesse
sentido, a aplicação da punição em documento “aberto” implicava no reforço da autoridade do
comando geral frente ao momento de instabilidade e de “crise institucional” decorrente da
demanda reivindicatória liderada por diversos policiais militares.

A punição por insubordinação, indisciplina e “manifestação” não consentida de


opinião versando sobre conteúdo de interesse exclusivo da Corporação, feita em meio de
comunicação social, explicitam parte das tensões formadas entre a visão tradicionalista do
militarismo e a compreensão ética e social do policial militar cujas pretensões profissionais
extrapolam as expectativas impostas pela ideologia da hierarquia e da disciplina. As
preocupações com o controle da informação, essenciais na concepção de “equipe”, necessária
à elaboração e à manutenção da “imagem pública” dos sujeitos são para Goffman (1993)
formadores de estratégias de intervenção e atuação dos atores sociais; na estrutura
administrativa da PMSE encontramos a 5ª Seção ou PM-5, cujo papel é o de elo entre a
opinião pública e a “opinião” oficial da instituição sobre determinadas questões-problemas
apresentados pelos meios de comunicação social.
8

As informações são os materiais imprescindíveis no processo de elaboração da


“imagem social” de determinado grupo, pois “enquanto atores somos negociantes de
moralidade” (GOFFMAN, 1993, p. 293); e nessa “negociação moral” devemos considerar o
papel dos atores e a estrutura de ação dos mesmos (sem esquecer noções preliminares como
objetivo, valores, sistema de representação e ideologia). Uma amostra das preocupações da
Corporação quanto à capacidade e à possibilidade de “manifestação” de idéias e de difusão de
informações que “afetam” a imagem da PMSE encontramos no BGO n° 103, datado de 13 de
junho de 2003, determinações apresentadas pela “Diretriz Administrativa 01/03 do Comando
Geral” que dispõe sobre o papel da PM-5, como órgão ouvidor e de encaminhamento
imediato de ações cabíveis, e sobre a conduta do militar frente à mídia:

3) PRECEITOS GERAIS
A comunicação social dentro da Polícia Militar do Estado de Sergipe e sua
relação com os órgãos de imprensa deverão obedecer as seguintes
orientações:
a) Fluxo de Informações Dentro da Corporação:
- Todas as ocorrências de serviço deverão ser encaminhadas
ao Coordenador de Operações, que deverá entrega-las por escrito ao PM/5
até às 6h e 30 min da manhã seguinte, ou aciona-lo pelo telefone funcional
em caso de delito envolvendo policiais militares, ou ocorrência policial de
grande repercussão, tão logo tome conhecimento;

- Caberá à 5ª Seção do EMG, a análise e encaminhamento


de informações à imprensa, se for o caso;
(...);
- Fica proibido a todos os policiais militares procurarem a
imprensa para divulgação de informações, marcação de entrevistas, convites,
ou algo do gênero;
- Todo e qualquer contato, excetuando-se quando a procura
é feita pela imprensa no local e momento da ocorrência, deve ser solicitado à
5ª Seção do EMG, com antecedência mínima de 48 horas;
(BGO, n° 103, 13 de junho de 2003)

As orientações acima apresentadas disciplinam o acesso da imprensa às


informações pertinentes à prática de policiamento e às condutas dos seus membros definindo
o papel exclusivo da PM-5 enquanto agente de “relações públicas”, competindo-lhe a
reprodução do discurso oficial da instituição. A preocupação com a “imagem pública” torna,
conforme as diretrizes do comando, o militar um sujeito responsável pela manutenção dos
valores da instituição; essa “responsabilidade” pelo “zelo da boa imagem da Polícia Militar”
é mais visivelmente percebida nas orientações destinadas aos entrevistados:
8

b) Conduta Relativa à Concessão de Entrevistas:


- As entrevistas previamente marcadas serão concedidas
pelos oficiais da 5ª Seção do EMG, ou por policiais diretamente envolvidos
no fato gerador da notícia, após orientação da PM/5;
- O policial militar que conceder entrevista deverá faze-lo de
forma concisa, atendo-se aos fatos relacionados à matéria, sem emitir
opiniões pessoais (O PM fardado representa a Corporação e não a si
mesmo);
- Nas entrevistas, o entrevistado deve focar sua atenção no
raciocínio e não na emoção, evitando “cair em armadilhas”;
- Nas entrevistas gravadas as respostas devem ser breves,
em parágrafos curtos que encerrem a idéia, evitando-se assim cortes e
montagens, que deturpem o contexto da notícia;
- Nas entrevistas “ao vivo” o entrevistado poderá se estender
um pouco mais, mantendo atenção ao repórter para evitar que se extrapole o
tempo;
- Não se deve mentir para a imprensa (grifo nosso), quando
a pergunta fugir à competência, ou ao conhecimento do entrevistado, esse
deverá dizer que o assunto foge à sua autoridade, ou ao seu conhecimento
(lembrando que no último caso, quem vai conceder entrevista deve estar
preparado e bem informado para tal);
(...)
- Somente o Chefe da 5ª Seção do EMG ou seu Adjunto,
quando autorizado, poderão falar em nome do Comando-Geral.
- O entrevistado é responsável pelos excessos ou omissões
de sua entrevista.
Zelar pela boa imagem da Polícia Militar é dever de todos os
seus integrantes.

Em face das orientações publicadas na gestão da administração do comandante


geral Osvaldo Santos Bezerra percebe-se a tentativa de “homogeneizar” a conduta do policial
militar no que concerne à dimensão pública de suas ações dentro e fora da atividade
profissional (apesar da cobrança enfatizar o militar no efetivo exercício de sua profissão - O
PM fardado representa a Corporação e não a si mesmo); as exigências de prontidão, de zelo
pela “missão” de bem servir a sociedade e pela preservação da imagem da Corporação são
componentes integrantes de práticas de controle da atividade profissional dos sujeitos que
passa por intervenções cotidianas operadas em nível administrativo. Nas orientações sobre
imprensa e conduta profissional do militar (em decorrência de eventuais relações com a
imprensa) podemos identificar alguns aspectos do preconceito existente na instituição e que se
caracteriza pelo “receio” quanto às informações que se prestam à mídia. Nesse caso erros de
postura e equívocos nas informações atestam a fragilidade das relações entre o membro e o
discurso oficial da instituição; a função das diretrizes do comando geral confirma e explicita a
dimensão simbólica do discurso e sua relação com os propósitos do “marketing” que se
pretende fazer da prática policial; segundo Bourdieu (1998, p. 95) “a eficácia simbólica das
palavras se exerce apenas na medida em que a pessoa-alvo reconhece quem a exerce como
8

podendo exercê-la de direito”, a fala do sujeito torna-se fala da instituição sendo seus erros
(de conduta e de palavra) atribuídos genericamente às qualidades da instituição.
Apresentar à sociedade uma “imagem pública” da instituição esmerada nos
valores amplos que imperam naquela é uma das metas de uma instituição como a PM de
Sergipe, pois nesse propósito se encontra a busca por reformulações no conjunto das práticas
e das representações que foram apropriadas pelo senso comum. Por isso, não se pode falar em
“mecanismos de controle” sem lançar um olhar amplo sobre os componentes desse
79
dispositivo; nesse sentido, podemos dizer que o controle da informação também se
apresenta como recurso eficaz na manutenção da imagem pública da instituição e, por
conseguinte, de seus membros. Sobre o valor das ações (e seu significado simbólico e
performático) no processo de construção-manutenção-reformulação da imagem social de
determinado grupo ou corporação Erving Goffman (1993) nos fornece importantes reflexões
inclusive discorrendo sobre a lógica das estratégias de “afirmação” identitária adotadas pelos
grupos ou “equipes” no tocante à apresentação (ou representação) pública (mesmo que se dê
num nível não muito amplo de publicização) de seus valores, de suas ideologias e finalidades.
A “linguagem autorizada”, revestida dos atributos do poder institucional,
proclamada em Boletim Interno e Geral expressa, por meio da ritualização lingüística que se
segue nos termos técnicos, e atualiza a decisão da autoridade e estende seus efeitos no interior
(demarcando limites específicos) e fora da instituição (BOURDIEU, 1998, p. 87). A priori as
ações de reprimenda aos desvios de conduta não são resultado do dimensionamento público
que é dado pela mídia sobre determinadas questões, mas antes é apresentada como ato
legítimo de poder fundado na avaliação institucional responsável por demandar respostas e
soluções cabíveis.
Temos nessa relação entre a linguagem institucional e a audiência um campo
fértil de análise das implicações daquilo que Habermas (1989, p. 199) chamou de assimetria
da “orientação em função dos princípios de justiça e do Discurso em função da
fundamentação das normas” o qual produziu como um de seus efeitos o exercício da crítica
revisionista e moralizante à determinada instância da vida social. Os questionamentos

79
A imprensa tem desempenhado a função de órgão “fiscalizador” das ações dos policiais e também um
instrumento de pressão sobre o delineamento das atividades administrativas do comando geral. Uma amostra da
“interferência” da imprensa na adoção de medidas de controle e coerção adotadas pelo comando em face de
denúncias da imprensa fora as violências cometidas por PM’s nas delegacias de Cristinápolis e de Santa Luzia
do Itanhy: “(...) Magno [então comandante geral da PMSE] informou que os treze militares acusados foram
afastados de suas funções e ficarão detidos no QCG, à disposição do coronel corregedor Agnaldo Edson Ramos
Ferreira, responsável pelo IPM. Foi comunicado ainda que o tenente-coronel Iranildo Campos de Santana, foi
afastado de imediato após os fatos de suas funções de comandante do 6° Batalhão”. Artigo publicado no
Cinform, 15 de novembro de 2008.
8

dirigidos à dada instância social cujas bases parecem não mais concordarem plenamente com
os princípios do mundo da vida, segundo Habermas, tornou viável o entrecruzamento de
espaços sociais não mais vistos sob a perspectiva do fechamento cultural às intervenções
externas. Semelhante fenômeno se aplica também às polícias militares, pois mesmo tendo
sido erguidas sob o modelo organizacional militarista e a ideologia castrense o enrijecimento
de suas relações com a sociedade civil foram sendo repensadas nos últimos 20 anos e suas
práticas apresentadas à “avaliação” e crítica por diversos setores da vida sociedade. Para
80
Jaqueline Muniz (2001) a redefinição do papel social da PM representa a crescente e gradual
superação da mentalidade autoritarista herdada pelo modelo político dominado pela ideologia
das Forças Armadas; o “reemprego” da PM em sua missão constitucional de promoção e
preservação da ordem pública viabilizou simultaneamente a necessidade de se repensar as
práticas e as formas correspondentes de organização da atividade profissional dos policiais
militares.
A proximidade entre PM e sociedade civil colocou no centro do debate o
problema do “descompasso existente entre a destinação das polícias de ‘servir e proteger’ o
cidadão preservando uma ordem pública democrática e contemporânea, e os conhecimentos,
técnicas e hábitos aprendidos pelos PMs, que ainda estariam refletindo as doutrinas e
mentalidades herdadas do nosso passado autoritário” (MUNIZ, 2001, p. 178). O esforço
teórico e político que se tem feito no sentido de se romper definitivamente com as doutrinas
“herdadas do passado autoritário” têm grande barreira representada pela “compilação” do
dispositivo de controle e de organização da atividade policial do exército. O discurso
81
profissional dos agentes de segurança pública pode ser citado como uma das manifestações
do interesse de se desvincular, mesmo que não completamente, dos valores e diretrizes do
modelo profissional militarizado das Forças Armadas.
A revisão das práticas judiciárias e dos fundamentos do ordenamento jurídico e
disciplinar foi se consolidando no interior da PMSE enquanto reflexos da modernização social
e profissional pela qual vem passando a instituição. Podemos ainda dizer que esse fenômeno

80
MUNIZ, Jaqueline. A crise de identidade das Polícias Militares Brasileira: dilemas e paradoxos da
formação educacional. Securyt and Defense Studies Review, 2001.
81
A Associação “Unidas”, representante das diversas associações existentes no estado de Sergipe que tem como
clientela os policiais e bombeiros militares, desenvolveu (e mais que isso aprimorou as estratégias de
sindicalização e organização de manifestações reivindicatórias) no ano de 2009 diversos atos de mobilização dos
militares cujos efeitos se fizeram sentir de variadas maneiras interferindo até mesmo na gestão da atividade
policial. A tônica do discurso enfocava a crítica à política salarial e administrativa empreendida pelo governo
estadual e afirmava a necessidade de delimitar sob dados parâmetros o exercício da atividade policial (no
blogspot da Caixa Beneficente encontramos exigências quanto à definição de carga horária e reformulações
urgentes na Lei de Organização Básica da PMSE ), um dos argumentos apontava para a criação de um “regime
disciplinar” distinto do atual regimento compilado do Exército Brasileiro.
8

de modernização jurídica a qual vem sofrendo parte do dispositivo de controle administrativo-


jurídico da PMSE se situa no contexto amplo do paradigma da modernidade burocrática
descrita pela tradição sociológica weberiana e habermasiana a qual, na visão de Zygmun
Bauman, tem produzido certa “desumanização dos objetos da operação burocrática”,
definindo a “possibilidade de expressá-los em termos puramente técnicos, eticamente
neutros” (BAUMAN, 1998, p. 126). O investimento técnico na formação policial militar –
ilustrada nos Planos Anuais de Ensino da 3ª Seção – e o aprimoramento das técnicas de
inquisitio convergiram para o processo de desumanização das relações disciplinares e
hierárquicas deixando estas de serem relações fundadas em conflitos interpessoais para se
tornarem cada vez mais em “interações/cooperação” mediadas pela noção de autoridade. Não
82
queremos com isso dizer que a autoridade militar agia completamente à revelia da lei, mas
sim queremos afirmar que a autoridade teve de fundamentar juridicamente suas decisões em
fontes jurisprudenciais cada vez mais variadas exigindo para tanto o aperfeiçoamento técnico
do processo de responsabilização criminal e administrativa do policial militar.
Partimos da hipótese de que a relação entre direito e “verdade” (subjetividade),
entre práticas convencionais e imperativos de modernização social podem ser tomadas como
campos de desenvolvimento de determinados princípios de justificação e de legitimação de
esquemas de poder. As formas de controle institucionais – seja pela intervenção constante no
cotidiano das práticas profissionais ou na série de rearranjos no conjunto de leis e de normas
jurídicas ou administrativas – se inserem num contexto amplo de “reconfiguração” do papel
do dispositivo de controle da conduta social e institucional dos sujeitos. Daí a importância de
se considerar a dimensão jurídica e o âmbito das práticas de controle partindo da finalidade de
se buscar a relação entre poder disciplinar e o fenômeno de redefinição das bases
legitimadoras dos mecanismos de exercício do poder.
Talvez se olharmos juntamente com Foucault (2003, p. 11), do campo de visão
histórico e antropológico, para o direcionamento do rumo tomado pelas práticas judiciárias
(tomados aqui como manifestações reais e formais do poder disciplinar) iremos perceber o

82
Encontramos uma dificuldade no processo de pesquisa quanto à identificação de detenções disciplinares
“arbitrárias”, ou seja, aquelas detenções que foram aplicadas, mas sem registro em ficha disciplinar. Todavia,
são abundantes os relatos que afirmam serem bastante comuns as prisões e detenções sem os devidos
procedimentos legais, numa das falas o entrevistado diz: “(...) num certo serviço eu tava de plantão, no P.O., tava
sem o cinto de guarnição, só tava com o revolver, chegou o capitão quando me perguntou onde tava o
cinto, depois que respondi fui mandado pro QCG, chegando lá o Sgt de dia me disse que eu tava detido e que era
pra entrar na cela e esperar a ordem do capitão (...)”. A aplicação da punição obriga, conforme regulamento,
registro em ficha disciplinar, mas, segundo a fala do entrevista, a aplicação do “castigo” não era
acompanhado respectivo procedimento de justificação de ato; a detenção era, então, concebida como
medida disciplinar de efeito imediato.
8

83
processo de formação de um tipo de subjetividade . Nessa “subjetividade” se encontra a
referência conceitual de Foucault à formação de campos de força construídos sob a égide da
consolidação racional das práticas judiciárias e também do delineamento de formas
específicas de conhecimento que alcançaram um sólido desprendimento das pressões da
tradição cultural, estamos falando da “elaboração do que se poderia chamar formas
racionais da prova e da demonstração: como produzir a verdade, em que condições, que
formas observar, que regras aplicar”. (2003, p. 54)
O inquérito (enquête) assumiria a modalidade de prática sistemática de pesquisa e
enquanto tal fundaria um domínio de saber tendendo para uma fundamentação empírico-
positivista; a prova as condições de sua verificabilidade estaria atreladas às finalidades do
procedimento de inquérito. Apropriando-se da perspectiva epistêmica do aprimoramento do
procedimento de inquérito e seus efeitos nas relações de poder, podemos considerar a relação
entre “verdade”, direito e poder no interior da instituição militar.
Uma das observações a serem feitas se refere à “natureza” do exercício de poder
identificado na instituição militar e a suas implicações no interior das relações hierárquico-
disciplinares. Nas PM’s, copiadoras fiéis das formas de organização e da mentalidade
castrense das Forças Armadas, as tensões criadas entre segmentos hierárquicos são parte do
esquema de controle pretendida pela instituição; as tensões intra-institucionais, segundo
Goffman (2008, p. 24), não significam a pretensão de obter uma “vitória cultural”, mas sim a
de criar uma relação conflituosa entre o “mundo doméstico” e o “mundo institucional” como
componente de elaboração de “força estratégias no controle de homens”.
84
Na PM de Sergipe ocorreram redefinições na capacidade de aplicação da força
estratégica cuja finalidade apontaria para o aprimoramento das técnicas judiciárias de
responsabilização; esse fenômeno decorre, em parte, do descompasso entre o exercício do
poder disciplinar – que prescindia, no tocante às transgressões disciplinares, de procedimentos
técnicos asseguradores dos direitos de defesa e de resposta do acusado – e as exigências de
85
veiculação dos atos da autoridade ao ordenamento legal específico e genérico . A

83
De fato, a análise das práticas judiciárias – e nesse caso em particular a PM é um interessante campo de
observação haja vista terem sido formulados procedimentos de “inquisitio” para responsabilização penal e
administrativa de membros da Corporação – serve para Foucault (2003) como objeto de compreensão das
relações entre “formas de saber, o homem e a verdade”.
84
Em determinados momento utilizaremos a sigla PM para designar Polícia Militar. Ressaltamos ainda que
conforme a Constituição de 1988 as Forças Auxiliares designam também as Polícias Militares, órgãos de
preservação da ordem pública.
85
Norberto Bobbio (1995) em sua obra Teoria do Ordenamento Jurídico irá afirmar que na história do
pensamento jurídico se firmou como uma das correntes a do pluralismo jurídico institucional resultante do
paradigma da co-existência entre diversos ordenamentos sociais e normativos que foram responsáveis pela
fundamentação da idéia de “fragmentação universalista do Direito” (p. 163). Nessa corrente o Estado e demais
8

modernização jurídica e burocrática apresentada pelo pensamento político democrático impôs


a revisão de práticas autoritaristas, baseadas no não-reconhecimento de direitos e na limitação
das possibilidades de reivindicação.
Apresentava-se como eixo estruturador da capacidade punitiva do aparato
jurídico-penal da PMSE dois problemas: o primeiro apontava para as “razões” legais de
aplicação de determinada punição, a necessária relação causal entre imperativo moral-
86
normativo e imperativo prático .; em segundo, temos o problema da “criação” de
procedimentos judiciários que dessem “forma” a determinadas práticas de controle; a
inexistência de procedimentos técnicos de “apuração de transgressões e crimes revelava a
fragilidade de um modelo jurídico-penal compilado do Exército; a condição estatutária do
policial militar sugeria a diferenciação de classificação e de tratamento administrativo e
jurídico em relação aos militares das Forças Armadas; dessa “diferenciação” nascia parte dos
argumentos reivindicadores do reconhecimento do estatuto profissional do policial militar
pertencente à PM.
No discurso “oficial” reproduzido em BGO e nas respectivas portarias que
instituem os procedimentos legais há explícita referência à garantia dos direitos
87
fundamentais previstos na Constituição – mais propriamente relacionados ao direito de
defesa em processos de responsabilização penal, civil e administrativa – cuja garantia seria
uma das finalidades contempladas por meio de maior aprimoramento técnico dos
procedimentos judiciários. Pode-se, então, numa superficial análise da “evolução” de
procedimentos disciplinares na PMSE afirmar que as sucessivas implementações seriam
expressão imediata da adequação do aparato repressivo/coercitivo da instituição ilustrada na
apresentação de premissas consagradas na moderna teoria do Direito Público, descritas

ordenamentos não-estatais são detentores de capacidade jurídica e integram uma “pirâmide” de relações de
“coordenação e/ou de subordinação”; a fonte de legitimidade do poder institucional não nasce, conforme a
corrente acima, de um único ponto, mas é difuso e integrado no conjunto de relações necessárias e contingentes
entre ordenamentos.
8686
O imperativo moral-normativo é a expressa referência ao arcabouço legal (o que a lei manda), enquanto o
imperativo prático se refere ao senso prático de disciplinarização como estratégia de “esquematização das
relações de poder” conforme modelo coercitivo onde imperam intencionalidades pedagógicas caracterizadoras
daquilo que Foucault (2009 ,p. 152) nomeia como “treinamento geral da força, da habilidade, da
docilidade”.
87
Balastrieri afirma que a noção de policial cidadão representou para as instituições policiais, no interior das
relações interpessoais, a necessidade de repensar e redefinir muitas de suas práticas de controle, incorporando a
estas as devidas formalizações legais compatíveis com o modelo de organização política democrática. Num certo
trecho de sua obra encontramos a seguinte observação: “O policial é, antes de tudo um cidadão, e na cidadania
deve nutrir sua razão de ser. Irmana-se, assim, a todos os membros da comunidade em direitos e deveres. Sua
condição de cidadania é, portanto, condição primeira, tornando-se bizarra qualquer reflexão fundada sobre
suposta dualidade ou antagonismo entre uma “sociedade civil” e outra “sociedade policial”. (1998, p. 07)
8

inclusive por Max Weber em sua obra Ensaios Sociológicos que tornariam as práticas legais
ações baseadas em critérios de impessoalidade, objetividade, regularidade, forma e eficácia.
Mas para contextualizar a relação entre elaboração jurídica de técnicas de controle
e mudanças qualitativas nas relações hierárquico-disciplinares basta lembrarmos que
88
conforme os dados coletados na 1ª Seção entre 2001 e 2006 por força de decisão judicial e
em virtude de vícios nos processos disciplinares movidos contra policiais militares retornaram
às fileiras da Corporação sete policiais militares; a quantidade de militares reincorporados em
89
decorrência de vícios nos procedimentos entre 1994 e 2000 foram cerca de 15 policiais.
Entre 2001 e 2009 o Comando Geral da PMSE indeferiu o pedido de reincorporação de 22
policiais militares alegando inexistência de “amparo legal” que justificasse o retorno dos ex-
militares à atividade policial.
A experiência adquirida pelo oficialato ao longo da década de 1990 e início do
90
século XXI – dois são os componentes dessa “experiência”: a) os casos de revisão de
decisões da autoridade militar por força de decisões (ou cisões) judiciais e b) a re-

88
Dados defasados em decorrência da ausência efetiva de organização e controle sobre informações de ingresso,
inclusão, exclusão e reinclusão de militares nos quadros da Corporação. Sendo assim, a coleta contou com a
colaboração de um sargento que encarecidamente teve a “boa vontade” de contar junto com o pesquisador a
situação da incorporação ou reincorporação de militares no período de 2001 a 2005, infelizmente os dados do
Sistema de Informação e Cadastro, inoperante ao tempo da pesquisa que ocorreu entre outubro a dezembro de
2009, não são completos, nem atualizados. Entre 2003 e 2006 a pesquisa quanto à reincorporação de militares
nas fileiras da PMSE foi feita mediante consulta em BGO.
89
As mesmas dificuldades apontadas no item anterior se aplicam à coleta de dados feita sobre o retorno de
militares à Corporação.
90
Outro elemento a ser adicionado às experiências de conflito localizado no interior da PMSE se referem às
disputas judiciais por direitos de “progressão na carreira militar”. Em diversos BGO’s, mais precisamente entre
2001 e 2003, encontramos o resultado de disputas entre a autoridade militar e instâncias civis do poder
judiciário; nesta “disputa” se caracterizou o emprego dos instrumentos legais como mecanismos de pressão
externa atuando sobre o encaminhamento dado pela gestão da carreira profissional cuja progressão se viu
prejudicado por ingerências do comando no que concerne às promoções e direito de matrícula de militares em
cursos de formação (pré-requisito para ascensão na hierarquia militar). Os Cursos de Formação de Sargentos
(CFS) de 2001 e as restrições de abertura de edital de seleção para o Curso de Formação de Oficiais (CFO) entre
2002 e 2005 (impossibilitado devido à convocação de candidatos excedentes nas provas realizadas nos anos de
2000, 2001 e 2002) são comprovações da interferência de instâncias do poder judiciário na “política” de carreira
e de estruturação da hierarquia militar demonstrando, igualmente, que práticas de controle administrativo eram
realizadas sem o devido reconhecimento que a legislação militar (juntamente com demais preceitos jurídicos que
regem a atividade pública) exige como requisitos de legitimação dos atos administrativos. A contestação da
legalidade e da legitimidade das decisões tomadas pela autoridade militar por parte de pm’s que recorreram às
esferas externas à vida castrense indica a mudança na qualidade das relações entre Corporação e indivíduo (além
de comprovar a “natureza” não transparente de determinadas práticas de gerenciamento da atividade
burocrática), de modo que a instituição teve que reconhecer – pela via da “peleja” no campo dos direitos
políticos e civis – os direitos do policial, reafirmando a imperiosa necessidade de respeito às formalizações
previstas no arcabouço jurídico. Sobre o efeito das decisões judiciais sobre a configuração do acesso de militares
aos cursos de formação ver os BGO’s n° 10 ao 55 (no ano de 2001), BGO’s n° 13 ao 40 (no ano de 2002) e
BGO’s n° 20 ao 45 (no ano de 2003). Na 12ª Vara Cível encontra-se uma série de processos movidos por
militares e civis cujo objeto da ação seria a inclusão em cursos de formação.
8

91
conceituação da condição do pm na hierarquia militar, sendo esse fenômeno compatível com
o que dissera John Rawls (p. 207) acerca da posição do cidadão numa sociedade democrática
a qual se define, em parte, pela “compreensão da cultura política pública e de suas tradições
de interpretação dos valores constitucionais básicos” – serviu de base para o
desenvolvimento de um tipo de saber jurisprudencial do qual estão integrados os saberes
jurídicos da legislação específica militar e de outras fontes legais do ordenamento jurídico. A
impossibilidade de sustentar na esfera administrativa militar os efeitos de determinadas
decisões era a comprovação factual do entrecruzamento das esferas jurídicas, estando nesse
espaço de intersecção legal a raiz dos questionamentos e de (in)validação dos atos da
autoridade.
O reconhecimento do direito do contraditório e da ampla defesa nas transgressões
disciplinares se deu paulatinamente no interior das instituições militares como resultado da
composição de forças no amplo dimensionamento da vida societária marcadamente definida a
partir dos valores do estado democrático de direito. Mesmo tendo a Carta Magna de 1988
conservado, quase de maneira intocável, os fundamentos da autoridade militar e mantido a
estrutura organizacional e jurídica das Forças Armadas, as conseqüências geradas pelas
mudanças no quadro político comprovou a emergência de uma perspectiva em que se
configurasse a “crise de legitimidade do Estado” e a preponderância do papel desempenhado
pelas “organizações da sociedade civil, nos moldes da democracia associativa” (VIEIRA,
2001, p. 86).
A dinâmica de controle no interior da instituição militar não poderia fugir à
tendência de modernização jurídica que implicava na análise da legitimidade dos atos de
poder e necessária conexão desses atos à fonte legal. Na PMSE podemos reconhecer os
itinerários formados pela estratégia de “reconfiguração” da capacidade punitiva e disciplinar
por meio da análise dos sucessivos reforços que somente foram possíveis através da atividade
jurídica exercida por oficiais que se dedicaram à interpretação jurisprudencial das leis
existentes, mas também que também foram imprescindíveis na tarefa de elaboração de leis e
procedimentos judiciários correspondentes.
Uma das comprovações desse “engajamento” do oficialato no projeto de
reestruturação do aparato normativo disciplinar pode ser fornecida pela publicação no Boletim

91
O que marcaria crescentemente a formação de uma nova subjetividade. Da possibilidade de se inserir num
conjunto das relações hierárquicas como sujeito autônomo, e não mais como autômato dói esquema de poder
prefigurado na conceituação militarista das relações interpessoais e das formas de organização da atividade
profissional. Para Rawls (203, p. 207) “numa sociedade bem ordenada a concepção política tem uma função
educativa”, nesse tipo de sociedade a cultura política é a fonte de onde derivam a concepção de cidadão; sujeito
dotado de direitos e portador de um status de cidadania.
9

Ostensivo n° 028, datado em 17 de fevereiro de 2003, cujo conteúdo reproduz as alterações e


diretrizes expedidas pelo Exército Brasileiro e que diz respeito à “Transcrição, na íntegra, do
Anexo IV, Anexo V e Anexo VI da nova redação do RDE, modificado através do Decreto nº
4.346, de 26 de agosto de 2002”. Conforme observado em trecho anterior as orientações
quanto à aplicação da Razão de Defesa no cotidiano das relações hierárquico-disciplinares
foram efetivadas a partir de 2001, sendo o CFSd o primeiro curso de formação a contemplar
dentre as práticas pedagógicas de controle a adoção da RD, consagrando o direito de resposta
do acusado de transgressão disciplinar entre alunos. Ainda segundo as diretrizes publicadas no
BGO n° 028/2003, os objetivos “padronização do contraditório e da ampla defesa nas
transgressões disciplinares” eram “1) Regular as normas para padronizar a concessão do
contraditório e da ampla defesa nas transgressões disciplinares; e 2) Auxiliar a autoridade
competente na tomada de decisão referente à aplicação de punição disciplinar”; em termos
procedimentais as orientações informam ainda:

a) Recebida e processada a parte, será entregue o Formulário de Apuração


de Transgressão Disciplinar ao militar arrolado como autor
do(s) fato(s) que aporá o seu ciente na 1ª via e permanecerá com a 2ª via,
tendo, a partir de então, três dias úteis, para apresentar, por escrito (de
próprio punho ou impresso) e assinado, suas alegações de defesa, no verso
do formulário;
b) Em caráter excepcional, sem comprometer a eficácia e a oportunidade da
ação disciplinar, o prazo para apresentar as alegações de defesa poderá ser
prorrogado, justificadamente, pelo período que se fizer necessário, a critério
da autoridade competente, podendo ser concedido, ainda, pela mesma
autoridade, prazo para que o interessado possa produzir as provas que julgar
necessárias à sua defesa;
c) Caso não deseje apresentar defesa, o militar deverá manifestar esta
intenção, de próprio punho, no verso do Formulário de Apuração de
Transgressão Disciplinar;
d) Se o militar não apresentar, dentro do prazo, as razões de defesa e não
manifestar a renúncia à apresentação da defesa, nos termos do item "c", a
autoridade que estiver conduzindo a apuração do fato certificará no
Formulário de Apuração de Transgressão Disciplinar, juntamente com
duas testemunhas, que o prazo para apresentação de defesa foi concedido,
mas o militar permaneceu inerte;
e) Cumpridas as etapas anteriores, a autoridade competente para aplicar a
punição emitirá conclusão escrita, quanto à procedência ou não das
acusações e das alegações de defesa, que subsidiará a análise para o
julgamento da transgressão;
f) Finalizando, a autoridade competente para aplicar a punição emitirá a
decisão, encerrando o processo de apuração;

Conforme Foucault (2009) nos quartéis, nas escolas e nas fábricas encontra-se
uma estrutura de racionalização da atividade associada inevitavelmente aos códigos de
9

conduta; nestes a dimensão coercitiva sobressalta às demais dimensões que por ventura
estejam integrando o corpus de saberes especializados. O investimento institucional no
aprimoramento técnico do dispositivo de controle tende a potencializar os efeitos da mecânica
de poder objetivando o desenvolvimento correspondente das formas de sujeição do indivíduo.
De um ponto de vista similar podemos entender que a “institucionalização” do procedimento
inquisidor sob a forma do FATD transformou a série avulsa e fluida de práticas de “pesquisa
da verdade” (enquête) num corpo de saberes práticos que ao homogeneizar as ações movidas
pela mecânica de poder obrigam a autoridade a estabelecer uma relação dialógica, estrita e
conclusiva, pois submete a “avaliação do fato” a um processo de filtragem examinadora, da
análise e do discurso. (FOUCAULT, 2002)
O FATD nada mais é que a RD sendo um documento de “chamamento” formal do
militar acusado perante a autoridade que lhe cobra a devida resposta (esta deve ser fornecida
de maneira respeitosa, objetiva e clara, excluindo manifestações inadequadas de opinião e
92
comentários desonrosos sob pena de ser agravada a punição disciplinar aplicada ao sujeito) .
Na prática ocorre o seguinte: a autoridade hierárquica responsável pela apuração da
transgressão encaminha ao seu respectivo comandante de unidade a parte comunicando a
infração e os elementos de individualização do policial militar, por sua vez este encaminha ao
militar o formulário de justificação ou RD, este por sua vez tem um prazo estipulado para
manifestar as razões de justificação do cometimento ou não da infração (inclusive a não
manifestação de suas razões deve ser “manifestada” à autoridade comunicando a esta que não
deseja apresentar justificativas). Esse procedimento formal de responsabilização do militar
adotado pelo Exército Brasileiro e estendido às PM’s tornou obrigatório o cumprimento de
determinadas normais, ou seja, consolidava-se na mentalidade militarista disciplinar a
compreensão de que não se deveria aplicar a punição de qualquer maneira, expressando a
dimensão arbitrária do poder disciplinar o qual em tempos anteriores prescindia de maiores
explicações e justificações quando se tratava de “disciplinar o insubordinado”. Alguns
elementos de micro sistema de penalização criminal da qual sobrevive as relações
hierárquico-disciplinares pode ser fornecida pela figura abaixo que traz o FATD:

92
No FATD encontram-se as seguintes advertências:
9

Figura 01 - MODELO DO FORMULÁRIO DE APURAÇÃO DE TRANSGRESSÃO


DISCIPLINAR

(BRASÃO) MINISTÉRIO DA
DEFESA EXÉRCITO
BRASILEIRO
------------------------- (escalão superior)
------------------------- (escalão considerado) FORMULÁRIO DE
APURAÇÃO DE TRANSGRESSÃO DISCIPLINAR

o
PROCESSO N : DATA:
IDENTIFICAÇÃO DO MILITAR
Grau Hierárquico : NR / IDENT:
Nome Completo:
Subunidade/OM:
IDENTIFICAÇÃO DO PARTICIPANTE
Grau Hierárquico: NR / IDENT:
Nome Completo:
Subunidade/OM:

(ou citação do documento de relato anexo)


Data
_ _
Nome, posto ou graduação do militar participante
CIENTE DO MILITAR ARROLADO
Declaro que tenho conhecimento de que me está sendo imputada a autoria dos atos acima e me foi
concedido o prazo de três dias úteis, para, querendo, apresentar, por escrito, as minhas justificativas
ou razões de defesa.
Data
_ _
Nome, posto ou graduação do militar arrolado
JUSTIFICATIVAS / RAZÕES DE DEFESA
(justificativas ou razões de defesa, de forma sucinta, objetiva e clara, sem conter comentários ou
opiniões pessoais e com menção de eventuais testemunhas. Se desejar, poderá anexar documentos
que comprovem suas razões de defesa e aporá sua assinatura e seus dados de identificação)
(ou solicitação de prazo para produção de provas)
(ou declaração do acusado, de próprio punho, de que não pretende
apresentar defesa)
(ou certidão da autoridade que estiver conduzindo a apuração do
fato, com as assinaturas de duas testemunhas, de que o militar
arrolado não apresentou as justificativas ou razões de defesa, no
prazo estabelecido, e que foi concedida a oportunidade de defesa e a
mesma não foi exercida)
Data
_ _
Nome, posto ou graduação do militar arrolado
DECISÃO DA AUTORIDADE COMPETENTE PARA APLICAR A PUNIÇÃO DISCIPLINAR
Data
_
Nome
o
e posto da autoridade
PUNIÇÃO PUBLICADA NO BI n , de_ _ de _ de _
9

No FATD encontramos a exposição dos requisitos de culpabilização do militar e


também referências aos direitos de defesa; desejamos chamar a atenção para a seção
pertinente ao “RELATO DO FATO ou citação do documento de relato anexo”, nesta se
encontra o lugar adequado para a explicitação dos fatos que supostamente geraram o delito ou
a transgressão; o uso comum e prático que se fez desse “lugar de descrição da transgressão”
acabou por transformar o relato (fala minuciosa da autoridade) numa idêntica aplicação dos
itens do código disciplinar, ou seja, o relato é a descrição da transgressão tipificada no RDE.
93
Onde se lê “deixar de cumprir ordem recebida” – na seção reservada ao relato – é possível
encontrar igualmente escrita na lista de transgressões (Anexo I, do RDE) a tipificação do fato;
pode-se visualizar na exata correspondência entre relato e tipificação uma falha no conjunto
dos procedimentos, pois ao se imputar um fato se devem esclarecer as circunstâncias que
envolvem a conduta delituosa ajudando, assim, a reconstruir “imaginariamente” a série de
ações dos agentes envolvidos. O prejuízo quanto ao esclarecimento da acusação não ocorre
para todas as transgressões; por exemplo, quando a infração é “falta ao serviço” não são
exigidos maiores esclarecimentos haja vista aquela infração reunir a informação necessária
para explicitação do fato (sendo anexados, portanto, a parte e a escala de serviço como provas
documentais de acusação).
As implicações da adoção de procedimentos regulares como o FATD no cotidiano
profissional dos militares da PMSE apontam para a reformulação dos aspectos simbólicos da
disciplina militar enquanto parâmetro de vivência da intersubjetividade construída na
instituição pelos diversos segmentos hierárquicos; a noção de dever e disciplina são
condicionadas à funcionalidade destas a partir das possibilidades de coerção que o
regulamento estabelece. Entretanto, apesar da aplicação do FATD ser uma medida de reforço
no poder disciplinar garantindo a reconfiguração desse poder nos moldes normativos da
democracia moderna os efeitos gerados por sua inserção nas práticas de controle
administrativo acabou por afetar a natureza das relações entre sujeitos distintos

93
Item 19, do Anexo I do RDE, ispi literis. A referência ao código seria utilizado como subterfúgio para que não
se esclarecesse adequadamente a circunstância originadora do ato de descumprimento eximindo a autoridade de
maiores explicações, a presunção de culpabilidade seria condicionada à presunção de veracidade daquilo que o
superior afirma; portanto, ao apontar o desvio de conduta o acusador profere um veredicto um julgamento
antecipado, pois este de antemão se funda na premissa do valor da disciplina que deve ser respeitada em toda e
qualquer circunstância. A noção de arbitrariedade ou extrapolação dos limites do poder disciplinar não é
visualizada ao longo dos itens do código disciplinar que prevê funções judiciárias adstritas ao nível
administrativo colocando sob a responsabilidade do oficialato a competência para punir e inocentar, além de
rever os atos e manifestações de sua autoridade. Um dos itens do Anexo I do RDE que demonstra o nível de
alcance da capacidade punitiva está no item 15 o qual diz que será punido o militar que “recorrer ao Judiciário
sem antes esgotar todos os recursos administrativos”, explicitando a compreensão da autoridade militar no
tocante ao papel da escala da comando e à “natureza” coercitiva de seu poder.
9

hierarquicamente; a fundamentação dos motivos da punição deveria remeter formalmente à


quebra de nexo entre a conduta e o regulamento, a impessoalização da relação entre superior e
transgressor se apoiaria na dimensão pedagógica da disciplina que embora seja prevista no
94
RDE era negligenciada pela não observância de procedimentos formais de imputação da
culpa.
Porém, mesmo tendo sido consolidada a aplicação da RD (ou FATD) no meio
militar da PMSE a cotidianização dessa ferramenta de justificação sofreu um processo de
“banalização” isto porque ao invés de aproximar a autoridade e o transgressor unindo-os num
processo feito à semelhança de um inquérito, distanciou esses dois agentes pela mediação
feita através do documento, nesse caso as razões são apresentadas em documento com texto
escrito, sem interrogatório ou interpelação dialógica; entregando-se o formulário cujo
resultado deverá ser publicado em BGO ou BI. Incumbe-se ao policial acusado a tarefa de
“escrever” as razões do desvio de conduta e entregá-la à autoridade; essa prática de
justificação reforçou a idéia de que é preciso ter algo concreto que comprove a existência de
motivos reais impossibilitadores de determinadas tarefas; a fala do militar sem amparo em
documentos e testemunhas deprecia o seu conteúdo, pois a autoridade militar goza da
capacidade de punir, fundamentada no regulamento, enquanto o policial militar de antemão se
classifica como desrespeitador das normas de conduta. Ressaltamos que nesse procedimento
imposto pelo RD a relação entre autoridade e acusado não alcançou um nível amplo de
publicidade; esta somente se dará quando for despachada a decisão da autoridade que tornará
pública a insuficiência das razões apresentadas. Podemos dizer que o procedimento
disciplinar representado pela RD é a base da relação coercitiva mantida em termos formais
entre autoridade e militar reforçando tal observação pela própria sistemática de aplicação da
RD que se faz ausente de interrogatórios tipicamente encontrados em outros procedimentos de
investigação de desvios de conduta.
O mesmo não ocorre com o denominado Procedimento Administrativo de
Apuração Disciplinar (PAAD), criado pela Portaria 169 em 24 de agosto de 2004. Esse
procedimento seria responsável pelo reforço na capacidade punitiva da instituição no que se
refere aos mecanismos disciplinares e administrativos dispostos na PMSE. Enquanto na RD a
publicidade somente se dá no desfecho da decisão da autoridade, manifestada na 4ª Parte do
BGO, o PAAD tem o status de um procedimento mais completo no sentido de alcançar
visibilidade pública da relação coercitiva mantida entre autoridade e policial militar, isso quer

94
Art. 21 do RDE: A punição disciplinar objetiva a preservação da disciplina e deve ter em vista o benefício
educativo ao punido e à coletividade que ele pertence.
9

dizer que no BGO é publicada a abertura de procedimento disciplinar para o qual é nomeado
determinado oficial que atuará como acusador (representante formal dainstituição), escrivão e
juiz proferindo uma decisão que será homologada pelo comandante da OPM.
Entre dezembro de 2006 e a agosto de 2009 no âmbito da Companhia de
Comando e Serviços da OPM’s da Capital (1° BPM, 8° BPM e Unidades Especializadas) foi
publicada em Boletim Ostensivo a abertura de 156 procedimentos cujos resultados apontaram
para 145 resultados que comprovam os “indícios de prática de transgressão ou crime militar”
implicando assim na imediata punição dos policiais militares; portanto apenas 11
procedimentos comprovaram a insuficiência dos elementos de acusação haja vista os policiais
terem apresentado motivos plausíveis. Mas o problema que toca a aplicação de procedimentos
judiciários tais como o PAAD se refere às razões da autoridade em abrir um procedimentos
mais complexo (se comparado com a RD), sendo que na totalidade das transgressões a
natureza destas poderiam ser, como demonstra a 4ª Parte, apuradas por meio do FATD, ou
seja, motivos como falta de serviço, atraso e desobediência que constituem transgressões
95
disciplinares antes e ainda apuradas pela RD , por meio de FATD, são objeto da abertura de
portarias que determinam a instauração de procedimentos investigativos quanto à ações e atos
praticados por militares no exercício de suas funções. Portanto, não há tipificado na natureza
da transgressão qualquer elemento diferenciador que justifique a aplicação de práticas
judiciárias específicas, restando observar que a oportunidade é definida pelo interesse da
autoridade em reforçar o dispositivo de controle da conduta do policial militar sujeitando-o à
procedimentos por vezes vexatórios haja vista a clara desproporção entre natureza da
transgressão e os efeitos punitivos gerados mediante aplicação do castigo.
O poder disciplinar – enquanto capacidade de aplicação do dispositivo coercitivo
– é na instituição movido sob uma ampla e indefinida margem de discricionariedade na qual a
autoridade “escolhe” os meios e o momento de aplicação de determinadas normas de controle
(GOFFMAN, 2009). Em instituições militares e demais organizações categorizadas por
Goffman as relações de poder assumidas e manifestadas nas formas de cotidianização das
atividades tendem a criar um ambiente de constante “avaliação dos itens de conduta”; nesse
processo as interdições e as permissões são manipuladas, em grande medida, pelos superiores
hierárquicos (ou equipe dirigente) que podem ou não evocar determinado item regulamentar
como maneira de “lembrar” ao subordinado qual o seu lugar na hierarquia de valores e de
tarefas.

95
A elaboração da Portaria que deu origem à PAAD não anulou a funcionalidade da RD cuja aplicação da FATD
ainda hoje é adotada como procedimento de apuração de transgressão diciplinar.
9

A aplicação integral das normas e preceitos regulamentares que integram a visão


teórica e ideal de disciplina institucional é algo impraticável, embora a possibilidade de
aplicação e a “utilidade” prática de uma norma evocada para resolver um problema surgido no
campo das relações interpessoais constitua um dos elementos discursivos da autoridade. Mas
a problemática que se refere à capacidade de escolha da “oportunidade” de aplicação do
código é um fenômeno situado no âmbito da vida administrativa; nesse momento é importante
ressaltar que a disciplinar militar é vista de dois ângulos complementares e estreitamente
conectados: um se refere à disciplina como princípio de desenvolvimento de habilidades
práticas compatíveis com a vida militar cujos reflexos se estendem sob os diversos aspectos
da vida do militar principalmente entre os seus pares e superiores hierárquico; a outra noção
está relacionada ao substrato da conduta social do militar no desempenho de suas atividades
em espaços sociais de maior contato com pessoas pertencentes à vida civil, estamos falando
da atividade de policiamento urbano tipicamente exercido pela PM; nessa noção incluímos
ainda a conduta nos diferentes âmbitos da vida social na qual o militar transita; a disciplina
vista da perspectiva de princípio basilar da conduta social sendo também fator norteador da
função social desempenhada pelo policial.
Partindo desses dois ângulos conceituais (que como dito anteriormente não são
antagônicos e sim complementares, pois fazem parte da lógica de internalização de valores
propostos pela instituição) a disciplina é vista como campo de intervenção de poder e espaço
96
de formação de relações de força . A complementaridade e contigüidade entre disciplina
administrativa e disciplina profissional – uma voltada para a relação entre os sujeitos da
hierarquia e a outra entre o policial militar e o público alvo de sua missão social – erigiram
diferentes formas de organização do dispositivo de controle estando esse dispositivo norteado
pelas dimensões coercitiva, moral e jurídica. Rearranjar o dispositivo de controle – as
práticas, os discursos, as técnicas de supervisão da atividade, os direitos e os deveres
regulamentares, a ética profissional – conferindo-o estatuto de racionalidade compatível com
os princípios do direito público e da democracia moderna implicava na “reconceituação” das
relações de poder na esfera hierárquica.

96
Michel Foucault (1998 ,p. 136) indica a imperiosa necessidade de se deter em termos analíticos sobre as
relações de poder e afirma ainda que essa tarefa tem sido por diversos intelectuais comumente encarada sob a
perspectiva de dois modelos: “O que me parece certo é que, para analisar as relações de poder, só dispomos de
dois modelos: o que o direito nos propõe (o poder como lei, proibição, instituição) e o modelo guerreiro ou
estratégico em termos de relações de forças”. Por relações de forças podemos entender que se trata de um
espaço social heterogêneo em que coexistem elementos diversos (discursos, práticas, regulamentos, leis,
sujeitos) partilhando de uma rede de significações e buscando metas e finalidades construídas e modificáveis de
acordo com a diferenciação de posições dos sujeitos no esquema de hierarquização das relações de poder.
9

Era preciso conciliar a capacidade punitiva da instituição militar e os imperativos


éticos da democracia – importante fator potencializador da crítica social e contexto de
desenvolvimentos dos movimentos de luta por reconhecimento no campo político, social,
cultural e ideológico – de modo a tornar transparente à sociedade civil e ao público interno
(isto porque o militar não mais se definia como peça da engrenagem militarista que em
moldes históricos impunha requisitos morais e profissionais de sujeição extremada aos
97
valores da instituição militar) os objetivos e fundamentos legais dos procedimentos e
respectivas práticas de penalização dos infratores; nesse sentido, temos poucas, porém
importantes elaborações jurídicas realizadas por uma parcela de intelectuais oficiais
interessados em “pôr às claras” o conteúdo da relação jurídica mantida entre a autoridade e o
militar, tendo, também, tais elaborações a finalidade de “preencher as lacunas” deixadas pelos
códigos de disciplina militar das Forças Armadas, a saber:

PORTARIA Nº 006/98-GCG, DE 04 DE NOVEMBRO DE 1998 – Aprova as Normas


para Elaboração de Sindicância na PMSE, e dá outras providências.
PORTARIA Nº 002/01-GCG, DE 17 DE OUTUBRO DE 2001 – Aprova as Normas
para Elaboração do Termo de Deserção, e dos documentos a ele apensos, na PMSE, e
dá outras providências.
PORTARIA Nº 002/02-GCG, DE 11 DE MARÇO DE 2002 – Regulamenta as normas
para elaboração de Processo Administrativo de Licenciamento de Praça e Praça
Especial sem estabilidade assegurada, e dá outras providências.
PORTARIA Nº 004/02-GCG, DE 30 DE ABRIL DE 2002A – Aprova as normas para
elaboração do auto de prisão em flagrante de crime de natureza militar, na PMSE, e dá
outras providências.

97
O então tenente Magno Antônio da Silva (2002) expressando, em parte, a atmosfera de tensões entre o poder
militar e as mudanças de consciência que afetam a totalidade dos segmentos hierárquicos apresenta no prefácio
de sua obra “Coletânea de Leis e Normas Internas da Polícia Militar do Estado de Sergipe” a seguinte
finalidade: “Foi com esse pensamento que desenvolvemos a presente Coletânea de Leis* e Normas Internas da
PMSE, a qual tem por objetivo auxiliar os integrantes da Corporação, bem como o público externo interessado
no conhecimento da legislação policial militar, de forma a evitar que normas reguladoras da vida castrense
fossem colocadas na vala do esquecimento, o que poderia gerar condutas equivocadas das pessoas nela
envolvidas. Acreditamos que o conhecimento de tais normas é imprescindível para os policiais militares, de uma
forma geral, posto que lhes dará maior respaldo quando da exigência do cumprimento dos seus direitos e/ou da
realização de suas obrigações; e para os Oficiais, em particular, vez que estes têm a difícil e árdua missão de
gerenciar as atividades da Corporação; bem assim para algumas pessoas do público externo, que, em razão do
ofício, labutam na área miliciana e/ou são obrigadas a conhecer o seu organismo”.
9

No prefácio de tais portarias se lê os seguintes dizeres: “objetivando, desta forma,


eliminar prováveis incorreções”, isto se observou mais propriamente nas Portarias n° 006/98,
002/01 e 004/02, todas elas trazendo orientações relacionadas à procedimentos de apuração de
denúncias (portanto, uma elaboração no campo das práticas de “busca da verdade” próprias
dos procedimentos instaurados pelo poder de punir) e formalização das imputações feitas pela
instituição ao militar acusado; em tais portarias encontra-se revelada o interesse da
Corporação em formalizar o conjunto das práticas de controle rompendo definitivamente, pelo
menos no nível formal da abstração jurídica, com as táticas adotadas no interior das relações
hierárquicas e que muitas vezes se demonstravam atos de violência e de arbitrariedade
exercidas pela autoridade militar sem o devido respeito aos direitos de resposta e de defesa
dos pretensos acusados. Num tipo de perspectiva jurídica e penal como esta temos os
elementos referenciais da concepção de “responsabilização absoluta” que segundo Rans
Kelsen (2000) era praticada pelo Direito Primitivo o qual desconsiderava as implicações e os
nexos psicológicos existentes na conduta do sujeito para enfatizar justamente e unicamente a
relação entre ação e efeito, ou seja, o que interessa na perspectiva do Direito Primitivo seria o
resultado da infração ou crime sobre os demais indivíduos e o meio social. No militarismo a
infração constitui o ponto chave de imputação da penalidade pouco importando (a depender
do procedimento como se nota no FATD) as circunstâncias e o estado psicológico do
98
indivíduo no momento da ação , esta observação se refere às representações sobre a conduta
do profissional estando, portanto, presente em tais representações juízos de valore e aspectos
morais depreciativos (expressões como “nozeiro”, “caxias”, “indisciplinado”, “ponderador”
são amostras da presença de elementos de apropriação valorativa da conduta dos sujeitos).
Hendrik Kraay (2004) destacou em um de seus estudos sobre cotidiano e
representação que o rigorismo da disciplina militar é traduzida no conjunto de normas e de
códigos de comportamento que tendem a estabelecer referenciais de distinção entre
segmentos, estando estes referenciais em estrita e direta relação com os valores que
circundam no meio militar e que são condicionadores das noções de obediência e de

98
Foi realizada uma pesquisa exploratória sobre documentos que versam sobre FATD e PAAD no Arquivo da
PMSE; a pasta acessada se referia à antiga Cia Escolar. Entre os documentos (cerca de 52) os procedimentos que
implicaram em punição se referiam à transgressões cujas práticas não foram justificadas com a apresentação de
documentos de comprovação (o mais utilizado foi o atestado médico), confirmando a existência de uma prática
comum que a gíria militar torna evidente: “o militar que se explica não se justifica”; isso significa dizer que é
preciso ter elementos razoáveis (reais e concretos) que justifiquem determinada prática de transgressão para,
somente assim, eximir-se de culpa. Nesse tipo de “micro” sistema de interpretação e de imputação penal não há
transgressão culposa, todas são a priori tratadas como sendo dolosa. Ressaltamos ainda que os referidos
documentos estavam para serem descartados em face da “economia de espaço” que o Arquivo estava praticando
a partir da segunda metade de 2009.
9

pundonor militar; todavia, pode-se visualizar no âmago das relações profissionais e


interpessoais descompassos entre a expectativa de direcionamento normativo da conduta
profissional e social do militar e a dimensão concreta da vivência em sociedade. Para Foucault
(1999) o investimento institucional feito sob a forma de rearranjos no aparato de controle
tende a apontar para finalidades potencializadoras das relações de poder, mantendo em níveis
de atualização constante de modo a permitir que as práticas reais e efetivas sejam a expressão
factível dos propósitos de dominação e de exercício de poder; em face dessa dinâmica de
atualização das relações de poder o desenvolvimento e, conseqüente, reforço do dispositivo de
responsabilização criminal e administrativa – proposta pela série de portarias baixadas pela
PMSE nos primeiros seis anos do século XXI que regulamentam “formalmente”
procedimentos, práticas e “intencionalidades” – modernizam e racionalizam o aparato
coercitivo, deixando de “fora” as suspeitas quanto ao exercício arbitrário e infundado de
práticas de controle. Na visão oficial publicamente anunciada em portarias e boletins o
interesse da instituição está posto no “melhoramento” da capacidade de punir, inviabilizando
o entrecruzamento de instâncias do poder judiciário que não reconheceriam a legitimidade e a
validade das ações e decisões tomadas pelo comando geral da PMSE; há nesse tipo de
problema a inserção de outro alvo dos investimentos institucionais que seria a “busca” por
legitimidade através da via do reforço no estatuto jurídico.
Nas palavras de um dos oficiais entrevistados, cuja participação na formulação
das portarias de “criação” do Termo de Deserção e do PAL a contribuição de tais
procedimentos

“(...) percebemos que o direito de resposta que deveria ser dada ao militar
sem estabilidade que passava por processo de licenciamento não era
respeitado, não havia procedimento porque o militar sofria um processo
sumário de exclusão bastando ao comandante geral despachar a decisão
baseada na avaliação da ficha do militar. A criação do PAL tinha a função de
fornecer ao militar as peças para responder ao procedimento garantindo a
este o direito de defesa previsto na Constituição. Muitos pensavam que a
gente queria apertar mais o praça, punir de forma rigorosa quando na
verdade a nossa intenção foi a de criar um procedimento que permitisse a
regularização do processo de licenciamento e também as condições formais
de defesa e de contraditório (...).”

As indefinições quanto à forma e ao objeto de determinados procedimentos de


apuração de transgressões e de crimes é, em parte, explicado pelo histórico de práticas de
1

99
violência institucional tendo por alvo os segmentos hierárquicos inferiores ; em geral as
práticas disciplinares, muitas vezes irregulares e sem relação direta com os códigos e leis,
ancoravam-se nos princípios da “obediência cega”, evidenciando uma intersubjetividade
marcadamente atravessada por autoritarismos e arbitrariedade (MENDES, 2004). A transição
histórica das formas de controle, vinculadas ao contexto institucional militarista,
caracterizadas por uma mecânica de poder apoiada em “modos” fundamentais de vigilância (a
noção de hierarquia é tida como exemplificação de um sistema de acompanhamento e de
fiscalização “daquilo que está se fazendo”) para formas racionais de sujeição e subjetivação
por meio do código ilustra uma importante etapa no processo reformulação e reconfiguração
das relações hierárquico-disciplinares; a publicização de portarias de regulamentação de
práticas judiciárias compõe mais amplamente um tipo de discursividade que retrata a
dimensão de legitimidade da dominação imposta pela autoridade militar e que é condizente
com os imperativos da modernidade democrática, além de reforçar simultaneamente a cultura
de valores e normas apresentadas historicamente pela instituição. Mesmo que reconheçamos a
modernização jurídica como fenômeno de consolidação do estatuto de racionalidade a
disciplina militar ainda se orienta por princípios morais e éticos que transcendem à mera
suposição da objetividade das leis enquanto parâmetros de “avaliação” da conduta dos
sujeitos. Torna objetiva e racional a “mecânica” de poder representada pelo dispositivo de
controle é parte das finalidades estabelecidas pela organização para que se elimine os vícios
identificados nos procedimentos disciplinares e administrativos. Para termos uma dimensão
da interferência das limitações de um aparato de controle ainda ancorado na ideologia e nos
códigos militarista podemos, por exemplo, cita os dados sobre abertura de procedimentos de
apuração de crimes de deserção. Logo abaixo visualizamos o número de parte cujo conteúdo
instaura a abertura de procedimentos para verificar a ocorrência de possíveis deserções:

Tabela 01– Processos de Deserção 1998-2008


Ano Quantidade
1998 15
1999 10
2000 13
2001 18

99
Queremos dizer com isso que os rearranjos jurídicos mencionados acima instauraram procedimentos que
afetaram mais diretamente a categoria das praças não implicando igual e proporcionalmente num investimento
disciplinar e coercitivo destinada à categoria dos oficiais. Prova disto está na
1

2002 14
2003 11
2004 08
2005 07
2006 10
2007 16
2008 20
Total 142
Fonte: pesquisado do autor

Os dados mais recentes de 2009 foram excluídos em decorrência de parte dos


procedimentos não contemplarem os resultados da instauração dos processos. Informamos
ainda que do total de 142 procedimentos de apuração do crime de deserção apenas pouco mais
de 17 policiais militares foram desvinculados da instituição em virtude do resultado
confirmatório do processo. Ressaltamos ainda que o reduzido número de excluídos por terem
cometido o crime de deserção se dá pelos recursos movidos por policiais militares que
comprovam os motivos que os levaram a se afastarem temporariamente do serviço. A
formalização do procedimento tem a função regular o tempo e a oportunidade de se instaurar
o processo, preservando as condições de controle da atividade, além de permitir ao policial
pleitear na esfera das competências legais e administrativas a possibilidade de reaver o
conteúdo das decisões da autoridade militar.
O crime de deserção é assunto recorrente na história das instituições militares
sendo os motivos de deserção apontados como resultado de recrutamentos forçados cuja única
saída para muito era simplesmente abandonar o posto “fugindo” das condições de trabalho
impostas pelo Exército ou em atendimento à demandas familiares surgidas no percurso de
suas existências fora da vida militar. Shirley Nogueira (2004) afirma que um dos registros
100
históricos sobre os efeitos e os males da deserção aponta para uma visão “econômica” da
deserção segundo a qual enfatiza as perdas de investimentos feitas no treinamento,
alimentação e preparo profissional do soldado; nesse caso a deserção é tida como verdadeiro
ônus aos cofres públicos. A deserção classificada como crime diante do regulamento
disciplinar é tratada como um mal que atinge a lógica de disciplinarização do militar e sua
100
Shirley Nogueira cita um dos trechos da fala de Frederico II em que expressa sua concepção dos efeitos da
deserção: (...) Mas a falta de um soldado que recebeu dois anos de instrução consecutivos, para lhes dar destreza
necessária, é coisa que repercute longe. (...) Semelhantes perdas reduzem os efetivos dos exércitos, em que o
número sempre significa. Se não podereis refazê-la. (2004, p. 88)
1

missão de servir aos interesses sociais (locais e nacionais); mas numa instituição como é o
caso das polícias militares o nexo entre interesses coletivos, a serem defendidos moral e
profissionalmente, e a possibilidade do sujeito renunciar à sua condição profissional não tão
transparentes. Bem verdade que a aplicação das medidas de responsabilização do militar está
ancorada nos códigos, porém é justamente a partir do código e da “natureza” do serviço
prestado pelo policial militar que indagamos a real necessidade de restringir a possibilidade de
escolha e de decisão em termos do tratamento que é conferido pelo código militar.
O conteúdo da Portaria nº 002/01-GCG, de 17 de outubro de 2001 é direcionado a
dimensão interna das relações hierárquico-disciplinares não possuindo alcance social que seja
considerado fator de normatização e de controle sobre a conduta social e profissional do
sujeito; pode-se dizer que temos no exemplo da portaria supra citada o investimento
institucional nas relações entre autoridade e sujeito processada por meio de intervenções no
sentido da formalização dos procedimentos jurídicos administrativos.
Outro caso que reforça a idéia de que uma série de rearranjos jurídicos operam
sob a diretriz de racionalização das relações hierárquico-disciplinares é a Portaria nº 004/02-
GCG, de 30 de abril de 2002 que trata da regulamentação do procedimento da prisão em
flagrante. Nesta encontramos uma série de orientações que tornam claras e objetivas a
realização de um procedimento que era praticada sem os devidos “cuidados” com os direitos
fundamentais do acusado. É importante lembrar que há tanto no RDE quanto no Código Penal
Militar compreensões bastante próximas entre as noções de transgressão disciplinar e crime
101
militar , tal “aproximação” conceitual dava vazão ao cometimento de práticas arbitrárias que
consistiam em atos de prisão e detenção de militares sem o devido cumprimento formal dos
102
procedimentos previsto no código disciplinar . Os usos da lei e do código se davam, muitas
vezes, como resultado do tipo de monopólio que se desenvolveu sobre o conhecimento
jurídico, ou seja, processos de exclusivização de saberes jurídicos podem ser mencionados

101
Sob o texto da antiga redação do RDE temos um exemplo da estreita ligação conceitual entre transgressão e
crime, cujas interpretações “práticas” aplicadas no cotidiano da vida castrense eram tidas como subterfúgio
argumentativo para o uso do poder disciplinar. Vejamos então o que diz o RDE, Título III, Transgressões
Disciplinares, Capítulo I, Da Conceituação e da Especificação, art. 12: “Transgressão disciplinar é qualquer
violação dos preceitos de ética, dos deveres e das obrigações militares, na sua manifestação elementar e
simples. Distingui-se do crime,militar ou comum, que consiste na ofensa a esses mesmos preceitos, deveres e
obrigações, mas na sua expressão complexa e acentuadamente anormal, definida e prevista em legislação
penal.”
102
Nos art. 9 e 29 há diversas determinações quanto ao procedimento de detenção e prisão de militares antes da
publicação em Boletim Interno, além de informar as autoridades que podem exercer essa capacidade de deter o
militar. Ressaltamos que o código é de 1984 cujas reformulações em alguns itens ocorridas entre 1995 e 2000
pela Ministério da Justiça e pelo Comando das Forças Armadas atualizam e redefinem os limites do exercício do
poder de punir nas instituições militares.
1

como modos de compor o discurso da autoridade hierárquica e garantir o exercício de um


poder prático baseado na presunção de legitimidade e legalidade.
As portarias que regularizam a prisão em flagrante e a abertura de sindicâncias
são medidas internas responsáveis pela definição de rigores metodológicos a serem adotados
pela autoridade militar. Ao mencionar os arranjos institucionais operados no campo jurídico
no âmbito da PMSE estamos enfatizando e enfocando um tipo de concepção de exercício de
poder; portanto, está se falando de tipos de “relações de poder, de uma maneira de exercer
poder” (FOUCAULT, 2009, p. 73), de afastar do conjunto das práticas até então executadas,
cujo “costume comum” tornava o critério de formalização e de impessoalização algo
facultativo ao sujeito que “chefiava” o procedimento; por vezes também a rigorosidade do
procedimento era adotada em casos em que o crime e a transgressão fossem gravíssimos.
A formalização e a homogeneização de procedimentos jurídica e administrativos
se apresentavam como o modo eficaz de eliminar as inconstâncias das práticas judiciárias e
para garantir que certas medidas fossem tomadas pelo oficialato sem que houvesse margem
para erros ou falhas comprometedoras dos processos. Nesse sentido, destacamos a
importância de tais elaborações jurídicas para a elevação da qualidade técnica da atividade
judiciária exercida predominantemente por oficiais; é importante recordar que o oficialato
cumpre funções judiciárias ocupando posições na estrutura da Justiça Militar, além de estarem
localizados em setores que possuem objetivos de fiscalização e de vigilância da atividade
profissional dos policiais dentro e fora da instituição (a PM-2 em associação com o EMG e a
PM-1 desempenham tarefas de controle institucional mobilizando uma série de ações que tem
a finalidade de “chamar o militar” perante o comando geral ou respectivo superior hierárquico
para prestar contas de determinadas informações e denúncias); os deveres inerentes às
atividades de justiça e disciplina (por meio de processos elementares de vigilância, como a
pesquisa social) devem estão diluídos nos parâmetros de regulamentação das práticas de
responsabilização penal e administrativa.
O reforço no modus operandi do procedimento judiciário e administrativo tem,
também, a finalidade de estabelecer fontes legais e técnicas para o exercício do poder de
punir, corrigindo e complementando as carências que existem na formação técnico-jurídica do
oficialato pertencente ao Quadro de Oficiais Administrativos – não excluindo a categoria dos
oficiais QO que passariam igualmente a contar com referencias técnico-jurídicos – cujo
conhecimento na legislação penal e processual penal militar e de áreas afins se deu somente
em tempo de formação no período de instrução militar realizado no CFAP; ou seja, o
conhecimento jurídico de parcela de oficiais da PMSE é reconhecidamente precarizado pelo
1

103
fato de que a instituição não prepara por meio de um currículo educacional adequado o
oficial QOA para o exercício de atividades no campo judiciário. O saber prático é o elemento
predominante do conhecimento jurídico dos oficiais QOA que exercem, dependendo do
procedimento, funções de auxiliares junto à oficiais QO adquirindo grande parte dos saberes
“necessários” ao andamento dos procedimentos. A proliferação de práticas judiciárias e
administrativas acompanha o crescimento do fenômeno da indisciplina e da criminalidade
policial militar, em parte justificada pela “evolução” do efetivo da PMSE. A abertura sempre
mais volumosa de procedimentos faz surgir outros problemas que se referem à
impossibilidade numérica de nomear oficiais QO para exercerem funções judiciárias, tendo a
instituição que nomear oficiais QOA e praças especiais para tarefas judiciárias. Em parte essa
deficiência de qualificação técnica é suprida pela definição de fontes obrigatórias que deverão
reger o desenvolvimento dos procedimentos.
Podemos ainda afirmar que os arranjos institucionais operados no âmbito da
legislação policial militar – tendo por campo imediato de aplicação a dimensão “prática” do
jus puniendi a qual teve que incorporar diretrizes responsáveis por imprimir certa modificação
na mecânica do poder disciplinar cuja tendência apontou para a redefinição dos mecanismos
104
de vigilância – produziu como um dos seus efeitos mais imediatos a “emergência” da
concepção técnica integrante do discurso de uma economia da culpabilização, tornando o
procedimento judiciário uma via privilegiada na qual a autoridade apresenta “oficialmente” as
suas justificações.
O regime de poder disciplinar identificado na PMSE, alicerçado sobre uma rede
de relações interpessoais norteadas pelas noções de autoridade hierárquico-disciplinar, teve
que incorporar no cômputo de suas táticas e estratégias de controle uma preocupação
recorrente com a ampliação quantitativa de práticas judiciárias; estas, por sua vez, são

103
No currículo do CHO (curso de habilitação de oficiais) encontramos as disciplinas LPM (Legislação Policial
Militar), CPM (Código Penal Militar) e CPPM (Código Processual Penal Militar), ambas de carga horária de 20
horas/aula, constituindo aquelas as únicas áreas do conhecimento jurídico específicas do universo militarista,
registrando-se ainda a ausência de estágios que poderiam potencializar o aprendizado técnico. Portanto, parte do
aprendizado se dá quando o oficial QOA e a praça especial (os subtenentes) são convocados a presidirem ou
assistirem ao andamento de procedimentos instaurados pela instituição.
104
Sobre a “evolução” histórica das formas de punição e sua mecânica de poder para formas “econômicas” de
controle fundado em princípios de racionalização jurídica na qual se fazem ausentes modos de aplicação de
penas e castigos disciplinares dirigidos à dimensão corporal do condenado, Michel Foucault (2009, p. 16) diz o
seguinte: “O sofrimento físico, a dor do corpo não são mais os elementos constitutivos de penas. O castigo
passou de uma arte das sensações insuportáveis a uma economia dos direitos suspensos. Se a justiça ainda tiver
que tocar e manipular o corpo dos justiçáveis, tal se fará à distância, propriamente, segundo regras rígidas e
visando a um objetivo bem mais “elevado”.
1

105
exemplos concretos de que ocorreu – nos “micros” universos de operacionalização do
direito – “mudanças” na mecânica de poder que tinha a proposta final de tornar visível não
somente a série de ações sistemáticas de exercício da capacidade de controle institucional,
mas também um tipo de concepção que ressaltava o redirecionamento da natureza das
relações entre instituição e sujeito; conferindo a esta relação um caráter subjetivamente
atravessado por postulados daquilo que se denominaria racionalização jurídica. Podemos
dizer que as mudanças que afetaram o dispositivo de controle e de vigilância institucional são
formas de subjetivação do sujeito a partir da revisão das práticas de sujeição exercidas até o
início da segunda metade da década de 1990, sendo o seu deslocamento percebido quando se
106
nota no discurso oficial, sucessivas referências ao campo mais amplo do direito fundador
107
da qualidade emancipatória do indivíduo no interior do sistema societário. No item seguinte
verificaremos alguns dados sobre punição disciplinar tentando, ao mesmo tempo, visualizar
problemas de operacionalização dos critérios de punição observando a relação entre natureza
da transgressão e aplicação da sanção.

105
Referimos à própria ritualística que é instaurada pelo procedimento; sendo, portanto, fundador de “ritos
institucionais” (GOFFMAN, 2009) onde se dá parte significativa da relação entre instituição e sujeito. O
inquérito e as diversas formas de sua instauração constituem as formas exemplares dos denominados “micros
universos” por expressarem um tipo de dinâmica de poder que põe em campo as peças preenchendo as funções
que lhes concernem (acusado, acusador, superior subordinado, transgressor e inquisidor, etc.).
106
Não é de se estranhar a referência freqüente encontrada na introdução das portarias da PMSE acima
mencionadas que dizem respeito ao reconhecimento dos direitos de ampla defesa e contraditório enquanto
direitos fundamentais que devem ser contemplados em diversos processos de responsabilização civil,
administrativa e criminal
107
Essa qualidade emancipatória ganha mais significado quando nos referimos ao contexto normativo em que se
insere o policial militar visto durante muito tempo como uma sub-categoria de cidadão, com direitos delimitados
aos enunciados normativos da lei específica. A contextualização da instituição militar no âmbito democrático
pode ser visto como contra-peso à desigualdade jurídica que definia a condição do PM, se pensarmos como John
Rawls (2003, p. 24-25) a idéia de uma sociedade bem ordenada somente é admissível se partimos do
pressuposto de que os indivíduos “encontram-se simetricamente situados na posição original”, sendo possível a
estes cooperarem em com a sociedade, pois são “iguais em todos os aspectos relevantes”, portanto, cidadãos
normais.
1

4. TRANSGRESSÃO, JUSTIÇA E DISCIPLINA

4.1. A Transgressão disciplinar e as intervenções da autoridade militar: “o


poder punidor” na 4ª Seção

O soldado QPMP-0 n° 1719da 1ª Cia do 2° BPM, por ter no dia 26 de abril de 1986,
fazendo parte do destacamento de policiamento de Propriá, aproximadamente às
02:00 horas da madrugada, deixado de cumprir norma regulamentar na esfera de
suas atribuições, se portado sem compostura em uma Discoteca, localizada naquela
cidade, freqüentado lugares incompatíveis com o decoro de classe, portado arma
(faca peixeira), sem estar de serviço, chegando ao pondo de desferir um golpe no
abdômen do indivíduo de nome Gilvan Alves Sitineta, também conhecido como
Tuia, irmão um soldado desta COM, o qual foi levado para o Hospital São Vicente
de Paula, da referida cidade, provocando causa, voluntariamente, de alarme
injustificável, vagando pelas ruas após 22:00 horas, sem permissão de quem de
direito, usando traje civil sem permissão da autoridade competente, usando trajes
civil sem permissão da autoridade competente e ainda ofendido a moral e os bons
costumes por atos e palavras, (n° 07,43,45,46,52,75,76 e 110 do Anexo I com a
atenuante do n° I, do art. 17 e as agravestes dos n° 2 e 5, letras c e e do 6, do art. 18,
tudo do R-4, transgressões graves), fica PRESO por 20 dias no xadrez do CFAP,
permanece no comportamento BOM. (BGO n° 82, de 07 de Maio de 1986, Chefe do
EMG Cel. Jair Carvalho Mendes)

O relato extraído da 4ª Parte, que trata dos “Castigos Disciplinares”, é uma


amostra retirada do banco de dados e é, também, parte integrante de uma verdadeira micro
história de violências institucionais cometidas no interior da PM de Sergipe. No trecho acima
encontramos um “texto” que demonstra quais as relações entre fato, conseqüência do ato
(morais, sociais e institucionais) e punição; nesta tríplice relação é possível perceber o
“enquadramento” da perspectiva punitiva ritualizada (na linguagem performática e oficial na
qual fala a autoridade) e manifestada nas condições próprias de legitimação da capacidade
coercitiva da instituição que se valendo das prerrogativas previstas em lei faz uso destas para
definir o resultado da indisciplina e reforçar a dimensão funcional da hierarquia por meio da
“resposta” que é dada (como exemplo) aos membros subordinados e que é vislumbrada pela
sociedade na forma do tratamento conferido pelos superiores hierárquicos ao problema da
indisciplina militar.
1

O exercício de análise que praticaremos no tocante aos dados apresentados pela 4ª


Parte – Justiça e Disciplina – deve nos conduzir à interpretação da lógica de aplicação das
sentenças regulamentares, bem como a identificação das regularidades e de freqüências na
distribuição dos atos punitivos. Os usos do código regulamentar alcançaram elevado grau de
fidelidade no conjunto de sua aplicação se considerarmos retrospectivamente o momento
político e social no qual está inserida a PMSE, em tal retrospecto se encontra igualmente uma
aproximação ideológica (com implicações obviamente práticas) com a mentalidade
militarista. Na estrutura do texto oficial apresentada no BGO é visível o abandono de
determinados termos, favorecendo a confirmação de um lento, porém visível processo de
modernização que se traduz num tipo de economia do discurso. O grau de publicização de
determinados atos somente era possível devido ao reduzido número de policiais, facilitando
processos de controle baseados em técnicas fundamentais de vigilância (nesse caso apoiada
108
em esquemas de interação interpessoal); é preciso lembrar que entre 1986 e 1994 o efetivo

da Corporação quase mais que dobrou saindo de 3575 policiais militares em 1986 para 6264
policiais em 1997. Diante desse número surgiram problemas que apontavam para a
redefinição dos mecanismos de controle da atividade policial assegurando os graus de
interferência e coercitividade que preservariam as condições subjetivas e objetivas de
subordinação do militar aos princípios da hierarquia e da disciplina.

Enquanto instituição moderna a PM desenvolveu formas racionais de controle da


vida dos sujeitos a ela incorporados, assumindo essas formas a modalidade de meios jurídicos
e disciplinares. A teoria weberiana que discorre sobre o fenômeno da racionalidade
burocrática permite entender, em parte, o caráter do direcionamento dos arranjos
institucionais operados no interior da PMSE nas duas últimas décadas, isto porque em tal eixo
de “disposição” da capacidade de controle institucional pode se identificar aquilo que Max
Weber (1982, p.279) afirmaria sobre as relações institucionais mantidas no interior da

organização burocrática: “a burocracia luta em toda parte por um ‘direito ao cargo’, pela

108
A Lei n° 3.511, de 17 de agosto de 1994, que fixa o número do contingente da PMSE é o elemento que atesta
a progressão populacional sofrida pela instituição. A referida lei serve também como parâmetro para se analisar
as distorções existentes no âmbito da progressão da carreira militar e incoerências na distribuição dos postos e
graduações da hierarquia militar.
1

adoção de um processo disciplinar regular e pela eliminação da autoridade totalmente


arbitrária”. Os processos disciplinares existiriam sob uma modalidade racionalista baseada
nas noções de técnica, eficácia e ética; é possível fazer tal afirmação considerando a
“natureza” do funcionamento da “empresa capitalista” fundada sob eixos da lógica
burocrática moderna, porém devemos rever a extensão dos efeitos da teorização da
racionalidade burocrática weberiana sobre a lógica de funcionamento da instituição militar,
haja vista se encontrar nesta demasiada importância à história da tradição militarista carregada
de valores oriundos das noções de honra e de pundonor militar atribuídos a um tipo de homem
forjado nos costumes e princípios morais castrenses. A idéia de disciplina e de hierarquia
reforça e explicita o conteúdo das relações entre valores da tradição e distinções estamentais,
sendo estas responsáveis por permitir as distinções (subjetivas e objetivas) das categorias de
sujeitos integrados ao corpo da instituição.

Um dos aspectos notórios do fenômeno de racionalização (mencionada na teoria


weberiana) dos processos disciplinares (não somente na concepção militarista de controle
sobre as relações interpessoais, mas também e principalmente na concepção de organização e
distribuição de funções e competências) é a redefinição dos conceitos de dominação e de
autoridade; essa redefinição tornou necessária a orientação dos atos do poder estatal para fins
cujos motivos e razões são de natureza impessoal e sua efetivação decorrente da
“regularidade abstrata da execução da autoridade, que por sua vez resulta da procura da

‘igualdade perante a lei’ no sentido pessoal e funcional” (WEBER, 1982, p. 260). Sendo
assim, a noção de poder arbitrário cede lugar à noção de autoridade racional burocrática
lapidada pela crescente exclusão das qualidades de um poder (de tipo tradicional, conforme a
visão weberiana) baseado nas características pessoais e prerrogativas do senhor, sujeito
dominante da relação de poder e mando.

O discurso reconhecido no contexto da racionalidade burocrática – princípio e


parâmetro de desenvolvimento da noção moderna de autoridade para Weber – tende a gerar as
condições de publicização dos motivos dos atos da autoridade mediante a relação direta e
objetiva entre ato e sua fundamentação legal. Há nessa relação entre lei, dever e ato
administrativo a subordinação dos princípios morais (fluidos de acordo com os costumes,
1

valores e tradições do grupo social) aos princípios da técnica e da ética. De fato, a


racionalidade técnico-burocrática presente no histórico de ações e de atividades concernentes
à esfera da atividade pública alcançou o status de primazia sobre interesses particularistas e as
formas correspondentes de demandas “pessoais” fornecendo os limites e a extensão de um
poder que se exerce em termos procedimentais e específicos (HABERMAS, 1997). A revisão
sobre a “linguagem” da autoridade militar na 4ª Parte do BGO pode servir como importante
amostra de como a autoridade teve de “produzir” um perfil discursivo que representasse as
bases racionais do processo administrativo. A economia da linguagem punitiva que teria de
apresentar os elementos do “micro sistema de penalização e criminalização da conduta dos
sujeitos” foi sendo aperfeiçoada; esse aperfeiçoamento se revela na breve comparação entre
documentos da década de 1980 e primeira metade da década 1990 quando os históricos de
transgressões eram verdadeiros textos carregados de avaliação baseada em noções morais
fluidas, não “amarradas” ao texto legal, que transpareciam a interferência de representações
idealizadas do “dever-ser” da conduta do militar sobre os “juízos” de avaliação regulamentar.

Na PMSE a economia da linguagem punitiva passava por constantes modificações


que tinham como pano de fundo o respeito ao direito fundamental de acesso à defesa do
acusado e as tensões decorrentes do uso arbitrário do poder disciplinar. Outro dado a ser
acrescentado para explicar a “evolução” da redação que traz os motivos e os castigos
aplicados se refere à quantidade de punições publicadas e homologadas no Boletim
Ostensivo; a impossibilidade de apresentar no texto oficial um relato mais extenso dos atos
transgressivos se dava também em decorrência da reformulação da função publicizadora do
Boletim Ostensivo que tinha de contemplar os atos de correção disciplinar dos militares
dispersos nas diversas unidades. Podemos visualizar nessa economia do discurso punitivo um
dos elementos do dispositivo de controle que opera a partir da informação, os atos da
autoridade integrantes do texto oficial expressa o resultado do processo administrativo e é o
responsável pela composição da “ficha disciplinar”. As biografias vão sendo elaboradas na
instituição a partir de níveis de difusão ou de “segredo” das informações sobre a postura e
compostura do militar. Entre praças a informação socializada no Boletim Ostensivo é parte
1

das representações que os policiais fazem de si próprios em termos de “identidade social


ideal” e das práticas desses sujeitos no contexto social e institucional (GOFFMAN, 1963).

Entre praças e oficiais a “percepção” sobre o outro é afetada pelos níveis de


difusão de informações e pelo acesso a estas; os primeiros sofrem uma exposição mais ampla
a partir da “avaliação” institucional feita em documento público, o Boletim Ostensivo seria o
meio pelo qual o militar constrói parte de sua “percepção” do outro, as informações da “vida
do companheiro” iria ajudar a compor o repertório de representações que a instituição faz
sobre o seu membro, possuindo, por acréscimo, uma “função pedagógica” mencionada
inclusive por Foucault (2009) e que consiste na imputação de determinada sanção ou a
enunciação de um “elogio” a um membro atuando as noções de “bom exemplo” e de “mau
exemplo” como referenciais da dinâmica de controle que define uma expectativa normativa
em termos da conduta que é esperada dos sujeitos integrados à realidade institucional; um dos
dizeres escritos nos murais do CFAP e traduz a relação pedagógica demonstrada pelo
exemplo é a seguinte: “As palavras comovem, mas os exemplos arrastam”.

Todavia, o oficial usufrui de maiores possibilidades de manter o “segredo” sobre


sua vida (GOFFMAN, 1993), o Boletim Reservado seria o meio exclusivo e especializado de
tratamento de informações que somente dizem respeito a quem é de direito. Em tal prática de
manutenção do segredo o grupo se mantém coeso, além de regularem aspectos significativos
da “imagem pública” eliminando possibilidades de desprestígio da identidade social ideal o
que poderia afetar no exercício da atividade profissional.

Parafraseando Émile Durkheim, em sua obra As Regras do Método Sociológico, o


crime é uma constante na sociedade, não há organização social onde não se identifiquem a
ocorrência de delitos; em tal afirmação entendemos como “normal” o fenômeno do crime e,
por extensão, o da transgressão disciplinar em instituições como a Polícia Militar. Nesse
sentido, percorremos a 4ª Parte com o propósito de quantificar a transgressão disciplinar e de
traçar alguns dos aspectos desse fenômeno no interior da PMSE. Logo abaixo temos a
apresentação da tabela 01 que traz dados sobre o quantitativo de transgressões praticas entre

2001 e 2008:
1

Tabela 02 – Ocorrências anuais de Transgressões Disciplinares (2001-2008)


Mês/Ano 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
Jan 25 08 01 13 25 18 22 21
Fev 32 12 08 37 39 30 37 28
Mar 24 09 01 15 46 56 33 42
Abr 19 10 05 18 42 49 27 24
Mai 14 11 03 17 40 40 28 25
Jun 28 15 15 25 54 39 42 44
Jul 23 06 03 35 60 57 48 41
Ago 18 07 03 17 46 45 27 18
Set 21 12 02 20 35 32 32 25
Out 19 11 01 25 34 47 27 30
Nov 14 12 01 20 28 30 30 22
Dez 26 07 00 19 25 34 25 19
Total 253 120 43 261 474 477 366 339
Fonte: Dados de Pesquisa

Em termos numéricos a publicização das punições disciplinares alcança


importância predominante quando se articula a visibilidade da transgressão ao princípio da
dinâmica disciplinar militar, isto porque é no exercício do poder disciplinar que se manifesta
parte da natureza do poder de controle atuante nas relações profissionais cotidianas como
fator de coesão grupal e de reforço na dimensão hierárquica. As relações interpessoais
existentes na PMSE e no militarismo de modo geral possuem o duplo dimensionamento visto
que são relações baseadas nas noções cardinais da hierarquia e da disciplina. O lapso de
ruptura entre o dever-ser, derivado da expectativa normativa da instituição, e a conduta do
sujeito são a justificativa original de imputação da punição exigindo a restauração celular da
integridade das relações entre indivíduo e instituição e superior-subordinado.

Como podemos observar na tabela acima há uma queda quantitativa de


transgressões no ano de 2003, mais precisamente sob o comando do coronel Osvaldo Santos
Bezerra, essa “queda” se explica pelo fato de que o Boletim Ostensivo, sendo o órgão de
divulgação (GOFFMAN, 2008) de maior relevância na PMSE, teria que se deter sobre temas
de interesse geral para a corporação, embora algumas poucas punições fossem homologadas
para servirem tais publicações como uma amostra da dinâmica de controle exercido pela
instituição, restando às demais unidades militares a responsabilidade de reforçarem a função
de controle pertencente aos Boletins Internos. Segundo Goffman (2008) os boletins internos e
1

informativos fazem parte do cotidiano das relações interpessoais no interior da instituição


tendo a finalidade de produzirem de níveis de discursividade e de difusão da informação
servindo também como “motivo” formal para as interações, engajamentos nas atividades e
formas de representação do “outro”.

A leitura da tabela 02 permite entender a transgressão como um fenômeno de


“evolução” constante, ressaltando-se nesse caso os diferenciais numéricos para baixo nos
primeiros anos de coleta de dados (2001, 2002, 2003 e 2004), somente a partir de 2005 é que
temos uma elevação visível no quantitativo de transgressões. É importante ressaltar que parte
desse acréscimo de transgressões se justifica pelo aumento do efetivo e ingresso de recrutas
nas fileiras da corporação fato este que se principiou no ano de 2002 e continuo com as
turmas de 2005 e 2006. Numa análise dos dados sobre a “distribuição das transgressões nas
áreas operacionais” podemos perceber as distinções entre CPMC e CPMI conforme é
demonstrado na tabela 03 abaixo:

Tabela 03 – Transgressões Disciplinares distribuição Área Operacional (AO) do CPMC


e do CPMI

A.O./Ano 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008


CPMC 214 98 40 205 394 385 316 278

CPMI 39 22 03 56 80 92 50 61

Total 253 120 43 261 474 477 366 339


Fonte: Dados de Pesquisa

A enfática diferenciação numérica entre as transgressões cometidas por militares


subordinados ao CPMI e ao CPMC revela a centralização do fenômeno dos desvios de
conduta na área de atuação do Comando da Capital que abrange os três batalhões situados em
Aracaju juntamente com as unidades especializadas. Ressaltamos ainda que uma das
hipóteses a utilizarmos para explicar os diferenciais numéricos se refere às dificuldades de
controle do aparato disciplinar das unidades do interior; nestas a variável espacial e o
reduzido número de oficiais “fiscalizadores” são fatores que dificultam a realizam da
dinâmica de controle da atividade policial ao longo das cidades e povoados onde se localizam
1

companhias e postos policiais. Na região do CPMI encontramos cerca de cinco batalhões


dispersos de maneira desproporcional pelo território sergipano, enquanto que na região do
CPMC uma área composta por cinco municípios é policiada por três batalhões, além das
unidades que realizam tarefas cotidianas de patrulhamento urbano. Disso deduzimos que a
concentração administrativa e humana num reduzido espaço permite a maior eficácia nos
processos de controle hierárquico-disciplinar resultando na exposição e devida visibilidade,
por meio de BGO, das transgressões cometidas por militares.

Ao se considerar em termos numéricos a distribuição do fenômeno da


transgressão disciplinar nas unidades do CPMC podemos então encontrar elementos que
possibilitem localizar e reconhecer a freqüência de transgressões disciplinas nas diversas
unidades da capital, bem como indicar os maiores pontos de reincidência do fenômeno,
vejamos então a tabela 04 e as informações sobre unidades militares da capital:

Tabela 04 – OPM’s integrantes do CPMC e Especializadas


OPM/Ano 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
1° BPM 110 65 25 112 178 145 125 102
5° BPM 86 28 10 87 166 178 154 132
8° BPM * * * * * 38 25 28
BPCHoque 07 01 01 02 06 04 03 03
COE 03 01 00 01 04 02 01 02
CPRv 05 01 02 00 12 09 04 07
CPTran 03 02 02 01 13 05 02 01
PPAmb. 00 00 00 02 07 02 01 02
Cia Faz. 00 00 00 00 08 02 01 01
Total 214 98 40 205 394 385 316 278
Fonte: Dados de Pesquisa
*Informação inexistente devido o 8° BPM ainda não ter sido criado.
Obs.: Os dados referentes à transgressões disciplinares que ocorreram sob a decorrência da
recente “criação” da OPM. Criado em março de 2007 o 8° BPM se derivou do 1° BPM
repartindo com este o efetivo de policiais e a área de policiamento.

A maior concentração dos registros sobre transgressão disciplinar deriva dos três
batalhões de policiamento comunitário situados no perímetro urbano da Grande Aracaju,
sendo que o 1° BPM e o 8° BPM têm sede administrativa na cidade de Aracaju contando as
duas OMP’s com mais de 1350 militares dos diversos escalonamentos hierárquicos, enquanto
que o 5° BPM possui um efetivo de aproximadamente 750 militares. A forma de organização
1

da atividade policial tende a imprimir uma sistemática de distribuição dos mecanismos de


controle e de fiscalização, nesse sentido as Companhias servem como ramificações da
estrutura central de organização da atividade policial tendo, por sua vez, a responsabilidade de
reforçar nas relações entre segmentos hierárquicos as funções de fiscalização e
disciplinarização. Sendo o controle da atividade baseado em formas burocráticas em
associação com práticas vinculadas à função simbólica da posição do militar na hierarquia o
uso do regulamento é um fator de coerção que atua permanentemente no processo de
fiscalização dos resultados e das condutas de policiais no exercício de suas tarefas
profissionais.

109
Figura 02: Mapa de Policiamento em Sergipe

A dispersão espacial dos batalhões na forma de redes de distribuição da atividade

policial pode ser apontada como um dos fatores que facilitam o cometimento de transgressões

disciplinares, pois nesses casos se exige da hierarquia uma articulação entre a racionalização

109
Fonte dos dados: http://www.pm.se.gov.br/pm.php?var=1091709801. Pagina consultada em 08-09-2009.
1

burocrática da atividade e a rotinização das práticas de fiscalização baseadas em mecanismos


“simplórios” de fiscalização da atividade policial (ou seja, o ato de ver o que o outro está
fazendo, como elemento fundamental de um esquema de controle da atividade). O elevado
índice de transgressões nos batalhões não explicita necessariamente o funcionamento das
110
práticas de controle da atividade policial no sentido de dizer que elas estão funcionando ,
mas também o crescente lapso “moral” e ético entre o dever profissional e os princípios
finalísticos dos valores da disciplina e da hierarquia que deveriam ser incorporados na
“mentalidade” do militar e demonstrados sob a modalidade de uma rotina marcada pela

ausência de problemas que afetam o andamento regular e eficaz do policiamento.

Nas demais OPM’s o dimensionamento físico mais reduzido e um efetivo


concentrado sedimenta um tipo de relação em que se configura acentuado grau de interação e
de engajamento. O objeto particular que constitui a finalidade do policiamento exercido nas
companhias “especialistas” é a base de diferenciação identitária e de simbolização da prática
profissional que torna possível a elaboração de um campo de representação onde se situa a
cadeia de valores éticos e morais que classificam determinada prática policial em oposição às
demais práticas policiais. Dessa forma, a transgressão disciplinar enquanto fenômeno
comportamental incorpora aspectos que remetem à “natureza” das relações profissionais e
humanas localizadas nos contextos particulares das realidades organizacionais onde estão
inseridos os policiais militares.

De fato, comparativamente temos uma distância bastante significativa entre o


volume de ocorrências de transgressões nos Batalhões e nas unidades de policiamento
111
especializado. A progressão numérica do efetivo da OPM e a “impessoalização” dos
mecanismos de vigilância hierárquica atuam como fatores condicionadores do maior número
de ocorrências de transgressões em unidades militares de grande dimensionamento físico onde
o efetivo de policiais se encontram dispersos numa extensa área cuja fiscalização é

110
Funcionando em termos da expectativa normativas estabelecidas pela instituição, visto que a disciplina
se situa como categoria que explica uma dinâmica de constante policiamento das condutas alheias, sendo a
hierarquia um valor a se ressaltado, um parâmetro de definição de uma subjetividade singular.
111
Demonstrado sob a forma de investimentos da autoridade em medidas de controle administrativo como, por
exemplo, escalas, chamadas via rádio e cartões programa. Nestes exemplos a guarnição de serviço cumpre
atividades de auto-fiscalização que podem ser burladas por táticas de falsificação de informações e/ou acordos
informais entre superiores e subordinados.
1

prejudicada pela incapacidade de manter níveis satisfatórios de controle sobre as atividades


policiais. Daí aparece a importância da autoridade como categoria analítica para se entenderas
implicações, no contexto das relações hierárquico-disciplinares, de formas de controle
institucional e social; temos, então, no pensamento de Durkheim (1983, p. 44) o conceito de
poder diretor, que serviria para explicitar parte das relações de direcionamento da atividade
profissional e de conformação da conduta dos indivíduos às diretrizes morais pré-existentes às
tarefas profissionais. (GIDDENS, 1998)

Em Goffman (2008) as relações mantidas entre equipe dirigente e grupo de


internos agregam parte das tensões entre as exigências da vida interna e a concepção de eu,
ambas as dimensões se interpenetram muitas vezes manifestando os dilemas e as
incompatibilidades entre a vida na instituição e fora desta; uma das formas de reduzir essa
tensão é incentivar a cooperação entre os dois grupos. Nas unidades especializadas é comum
encontramos uma redução na hierarquia funcional permitindo a aproximação entre os
extremos opostos dessa hierarquia. Essa aproximação facilita a prática de formas de controle,
ou seja, ver e conferir o que o outro está fazendo funciona simultaneamente como meio eficaz
de incentivar o engajamento (desencorajando o erro e reforçando a disciplina) e o alinhamento
moral do comportamento do militar às exigências do regulamento.

Mas se a distribuição da transgressão e sua visualização nas variadas unidades


militares permite inferir que a freqüência de transgressões é afetada pelo vínculo do militar às
diretrizes da autoridade ou do poder diretor (GOFFMAN, 2008)¸ é possível também
confirmar o caráter desse vínculo associando-o à noção de disposição funcional
desempenhado pela hierarquia. Vejamos então como a transgressão disciplinar é demonstrada
em relação direta com os diversos postos da hierarquia militar:

Tabela 05 – Relação de Efetivo da PMSE por posto/graduação


Círculos de Posto/Graduação Quantidade Porcentagem
Convivência
Coronel 30 0,45%
Oficiais superiores, Tenente-coronel 38 0,58%
intermediários e Major 41 0,62%
subalternos Capitão 99 1,51%
Tenente 192 2,94%
Subtenente 146 2,23%
Sargento 987 15,12%
1

Cabo 1.530 23,44%


Praças Soldados 3.462 53,05%
Total 6.525 100%

Tabela 06 – Transgressões Disciplinares por Graduação*


Grad./Ano 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
Subtenente 00 00 00 02 04 03 02 03
Sargento 04 11 02 21 25 19 22 26
Cabo 38 18 12 54 83 65 73 78
Soldado 206 82 29 184 362 390 269 232
Total 248 111 43 261 474 477 366 339
Fonte: Dados de Pesquisa
*Retiramos dessa tabela as informações de punição publicadas em BGO e dirigidas a oficiais
da PMSE.

A posição do sujeito ao longo da hierarquia remonta a níveis de comprometimento


a priori condicionados pela previsão do regulamento e dos deveres impostos pela competência
profissional. Nestes termos a maior ou menor adesão dos sujeitos aos valores da instituição
pode ser bem demonstrado pela natureza de sua ocupação em determinado ambiente de
produção e de trabalho. Erving Goffman (1963) chegou a afirmar que a identidade social vai
sendo tecida pelo sujeito em cooperação afetiva, social e cognitiva com os demais sujeitos de
uma relação social; nessa interação se formam ou se condicionam duas vias de produção e de
reprodução da representação do “eu”, a primeira seria classificada como virtual e a segunda
real. Podemos dizer também em acordo com a visão de Goffman sobre identidade social
virtual e real que na PMSE a noção de transgressão disciplinar e de mérito de conduta sãos as
peças chaves para compor um esquema geral de classificação do sujeito que tende a estender
seus efeitos depreciativos ou apreciativos partindo dos informativos gerais e internos
atingindo e formando parte do campo de “percepção” ou de representação do outro.

Conforme pode ser observado na tabela 06 o maior número de ocorrências de


transgressões disciplinares atinge grande parte dos segmentos hierárquicos inferiores sendo
composto de cabos e soldados. Talvez fosse interessante se fosse relacionado a média de
tempo de serviço dos militares e o número transgressões para se verificar a relação entre
desgaste da atividade e relaxamento dos valores disciplinares, entretanto tais dados não foram
1

pesquisados por dificuldades de acesso às fichas disciplinares. O menor índice de ocorrências


que tem como autores os subtenentes e o também reduzido número de transgressões
cometidas por sargentos reforça a hipótese de que a adesão aos princípios da instituição e a
manutenção positiva da identidade social virtual pode ser considerado como fator de
explicação das diferenças entre os segmentos hierárquico inferiores. Ressaltamos também que
o grau de exigência imposta pelo regulamento é potencializado pelo fato de que sobre o cabo
e o soldado – bases da hierarquia militar – a vigilância permanente e difusa que é exercida
pelos demais segmentos hierárquico.

Se observarmos o fenômeno da transgressão disciplinar sob o prisma da questão


de gênero chegaremos à conclusão cujos dados nos são fornecidos pela tabela 05 que faz uma
demonstração numérica das ocorrências da falta disciplinar a partir do gênero do faltoso. Cabe
destacar que conforme o Estatuto da Polícia Militar de Sergipe os processos seletivos de
ingresso na corporação devem reservar um percentual de vagas a candidatos do sexo feminino
que varia de 20% a 30%, logo teremos o efetivo de mulheres bastante reduzido se comparado
ao efetivo de homens policiais militares. Atualmente a PMSE conta com cerca de 15% de
mulheres integradas nas fileiras e dispersas nos diversos segmentos hierárquicos; destacamos
ainda que a entrada gradual e regular de mulheres na PMSE se deu a parti da segunda metade
da década de 1980. Vejamos então os dados da tabela 07 a seguir:

Tabela 07 – Distribuição de Transgressões Disciplinares por Gênero


Gên./Ano 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008
PM masc. 253 120 43 261 474 473 361 336
PM fem. 00 00 00 00 00 04 05 03
Total 253 120 43 261 474 477 366 339
Fonte: Dados de Pesquisa

Os militares que cometem, portanto, o maior número de transgressões é do gênero


masculino restando às mulheres uma inexpressiva parcela de ocorrências, sendo, inclusive,
bastante enfático nesse aspecto o fato de que entre 2001 e 2005 não houve registro na 4ª Parte
do BGO de punições aplicadas às policiais femininos. Todavia, precisamos entender que a
maior parte das transgressões disciplinares se refere às ausências de serviço, atrasos e má
1

conduta no trato com o superior hierárquico e que tais “faltas” geralmente ocorrem em
situações de serviço de rua ou em escalas extras, serviços estes em que a presença de
mulheres é ainda mais reduzida devido ao fato das mesmas desempenharem atividades
burocráticas e, portanto, fazerem-se ausentes em serviços de menor importância estratégica do
plano de policiamento da unidade. Porém, cabe ressaltar aqui que a crescente presença de
mulheres em serviços extras e demais serviços de policiamento ostensivo tem sido uma
característica em processo de consolidação. Para se ter uma idéia no mapa de efetivo da CCSv
do QCG identificamos na composição do efetivo a presença de 48 militares inseridas nas
diversas seções do QCG, desprezando-se as militares que desempenham funções no quartel,
mas que estão formalmente lotadas em outras companhias.

A mulher policial tem assumido um papel crescentemente ativo à frente do


serviço de policiamento ostensivo; não obstante a inserção da mulher no meio militar
estivesse inicialmente condicionado à concepção de policiamento marcada por uma relação
112
ideológica entre gênero e atividade fim a exemplo do Pelotão de Policiamento Feminino
criado em 1997, no comando do coronel Hélio Silva, cuja finalidade era a de concentrar a
mulher policial num reduto de policiamento responsável pela execução de um “tipo
diferenciado” de policiamento. Em termos gerais a conduta da mulher espelha uma aderência
aos valores e aos objetivos propostos pela instituição sendo em parte também explicada tal

disciplina por sua aproximação com a vida administrativa o que impõe uma disciplina
cotidiana voltada para tarefas pontuais da atividade meio. Porém, concordamos com as
autoras Mary Castro e Lena Lavinas (1992, p. 243) quando as mesmas afirmam que mais
importante que “localizar” a mulher num determinado esquema de relações de trabalho
devemos direcionar a análise para a “alquimia das relações sociais que também são

112
O Pelotão Feminino criado em 1997 e extinto em 1999 tinha à sua disponibilidade um efetivo composto de 18
militares empregadas em atividades administrativas e 199 empregadas nos serviços de policiamento ostensivo e
demais serviços de reforço policial em eventos e na guarda de prédios do funcionalismo público. Podemos ainda
afirmar que a criação de um pelotão feminino representava uma concepção de segmentação e de
“especialização” da atividade policial que não se restringe ao âmbito da questão de gênero, mas serve para
demonstrar parte da visão institucional pertinente à concepção de atividade policial especializada; quis-se
claramente promover a consolidação de uma atividade de características particulares atribuindo à condição
feminino um critério “privilegiado” de definição do status do serviço a ser promovido por aquele pelotão.
Evidentemente o Pelotão Feminino foi criação de um comandante e obra de sua visão controversa de “fazer
polícia”, muito embora a concepção de atividade policial especializada seja uma concepção que impera como
motivo de interferência e modificação na sistemática das relações profissionais.
1

constitutivas das relações de gênero e vice-versa”; nessa “alquimia” das relações


interpessoais construídas no interior da instituição militar a mulher enfrenta um duplo desafio,
o de construir uma identidade num contexto de trabalho historicamente marcado por uma
visão predominantemente masculina, o que explica em parte a interferência dessa visão sobre
a atividade exercida por mulheres muitas vezes “relegadas a tarefas percebidas como

‘femininas’ pois o universo masculino instituiu a ‘virilidade’ e tudo o que lhe está associado
como qualidades profissionais”. (LENOIR, 1997, p. 273) A representatividade das mulheres
no cômputo geral das transgressões disciplinares é bastante reduzida, sendo a grande maioria
dos transgressores pertencentes ao gênero masculino, essa reduzida participação das mulheres
no fenômeno da transgressão disciplinar opõe-se ao crescente ativismo da policial nas
atividades que competem ao policiamento seja na rua, no policiamento urbano, ou nas
diversas seções e gabinetes da administração militar.

Passando, então, para uma “radiografia” parcial dos tipos de transgressões


disciplinares cometidas entre 2001 e 2008 chegamos a formular uma lista relativamente
extensa de 16 itens retirados do RDE como critérios de classificação da “falta” disciplinar,
porém essa lista é composta dos itens que tiveram maior expressividade numérica
excetuando-se o ano de 2003 que pelo reduzido número de “castigos disciplinares” foi
possível lista a totalidade dos itens de transgressão. Ressaltamos ainda que muitas vezes na
redação do texto oficial encontramos a tipificação da conduta a partir da imputação de
diversos itens do regulamento disciplinar indicando, portanto, que numa mesma “falta” é
possível reconhecer agregadas diversas outras transgressões, porém, no RDE a punição deve
considerar a transgressão de maior gravidade sem desprezar as conseqüências das
transgressões assessórias sobre o resultado final do desvio de conduta. Vejamos então a lista
de transgressões disciplinares, consultando quando necessária a relação dos itens logo a baixo
da tabela 08:
1

113
Tabela 08 – Lista de Transgressões Disciplinares e demonstrativo de freqüência
Item
Anexo I 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 Total
RDE*
01 24 30 02 28 32 25 18 19 178
07 40 32 04 24 30 19 17 20 186
17 20 25 04 23 21 15 14 18 140
19 07 10 03 11 13 15 17 16 92
20 02 03 02 04 02 05 03 04 25
21 36 28 02 50 42 53 31 41 283
28 41 62 01 82 213 204 142 166 911
29 04 03 00 05 06 07 08 06 39
30 01 00 00 02 04 03 05 03 18
43 14 07 06 06 08 11 16 09 77
53 01 02 02 02 03 05 08 12 35
54 05 04 00 02 06 07 03 08 35
65 08 06 00 00 00 00 00 00 14
105 25 18 12 35 41 43 39 46 259
106 30 22 10 31 38 40 32 29 232
119 12 09 02 08 07 13 09 15 75
Fonte: Dados de Pesquisa
*Descrição dos itens citados na Tabela 06 cuja tipologia de transgressões disciplinares se encontra no Anexo I do
RDE:
01 – Faltar com a verdade;
07 – Deixar de cumprir ou de fazer cumprir normas regulamentares na esfera de suas atribuições;
17 – retardar, por negligência, a execução de qualquer ordem;
19 – deixar de cumprir ordem recebida;
20 – Simular doença para esquivar-se ao cumprimento de qualquer dever militar;
21 – trabalhar mal, intencionalmente, ou por falta de atenção, em qualquer serviço ou instrução;
28 – faltar ou chegar atrasado a qualquer ato de serviço em que deva tomar parte ou assistir;
29 – permutar serviço sem permissão da autoridade competente;
30 – abandonar serviço para o qual tenha sido designado;
43 – portar-se sem compostura em qualquer lugar público;
53 – Usar de violência desnecessária em qualquer circunstância;
54 – maltratar preso sob sua guarda;
65 – discutir ou provocar discussões, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos, militares
excetuando-se os de natureza exclusivamente técnica, quando devidamente autorizado;
105 – dirigir-se, referir-se ou responder de maneira desatenciosa a superior;
106 – censurar ato de superior ou procurar desconsiderá-lo seja entre militares, seja entre civis;
119 – comparecer a qualquer ato de serviço em estado de embriaguez, ou embriagar-se durante o mesmo,
embora tal estado não tenha sido constatado por médico.

Diversos artigos e itens do texto do RDE cujo conteúdo havia sido publicado pelo
Decreto n° 90.608 de 04 de dezembro de 1984 foram alterados, haja vista serem expressão de

113
As transgressões cuja aplicação das sanções disciplinares se deram nos respectivos BGO’s foram apuradas
por procedimentos sumários de apuração de faltas disciplinares, ou seja, a RD. A partir de 2006 somado aos
resultados da RD encontramos outra “inovação” na apuração de faltas disciplinares que é o PAAD. A decisões
desse procedimento também são publicados na 4ª Parte e tem registros iniciados desde do segundo semestre de
2006. Desprezamos por ora os resultados das Sindicâncias e dos IPM’s disponibilizados na 3ª Parte do BGO ou
em Aditamentos (documento complementar ao boletim ostensivo trazendo informações que por uma economia
de espaço não foram publicadas no BGO)
1

uma visão militarista condizente com os princípios éticos e morais castrenses


reconhecidamente enunciados no período político e social configurado pela dominação
ditatorial das Forças Armadas. A partir da visão do regulamento se pode visualizar a
dimensão “orgânica” de uma instituição total que objetiva pela delimitação da liberdade
individual incutir na cultural organizacional a supremacia dos valores da autoridade em face
das possíveis interferências do “mundo de fora”. As alterações no texto legal do regulamento
disciplinar atestam a impossibilidade da autoridade militar manter intacta a natureza de sua
dominação; os desusos e usos do regulamento implicaram crescente esvaziamento de aspectos
da relação hierárquica e, conseqüentemente, reforço em funções específicas, tais como o não
emprego de artigos e de itens explicitamente contrários aos postulados do direito democrático.

Entretanto, ressaltamos dois aspectos sui generis que conferem ao regulamento


uma posição de indubitável funcionalidade para o campo das relações hierárquicas: a
generalidade dos elementos tipológicos e a possibilidade de a autoridade poder, sem níveis de
questionamento comprometedores da validade de suas ações, evocar determinados itens
“menos” usuais cuja prática profissional e o cotidiano das relações interpessoais tornaram
“banais” ou sem significação transgressiva. Sobre este último aspecto citamos um exemplo
prático; o item 94 que discorre sobre a desobediência às normas de continência e
regulamentares caíram em desuso devido ao contato interpessoal freqüente entre os diversos
segmentos hierárquicos, impondo cotidianamente práticas de interação entre sujeitos que
“dispensaram” a observação rigorosa ao que prescreve o regulamento (as relações
interpessoais vistas idealmente pelo código de conduta seriam extremamente mediadas pela
dimensão formal representada na postura e nos diversos sinais corporais); uma saudação fora
dos padrões regulamentares quando no cruzamento de percurso entre um superior e um
subordinado caracterizado por um aceno de cabeça ou aperto de mão não é visto
freqüentemente como ato de desrespeito; todavia, a possibilidade do superior exigir do
subordinado que se reporte ao que prescreve o regulamento não é um ato extravagante,
embora tal ato possa ser classificado pelos demais como desnecessário. Podemos apontar uma
tendência comum nesse fenômeno de vulgarização de alguns itens do código de conduta
disciplinar, a tendência se refere à colonização – categoria apresentada por Goffman – do
1

“mundo de dentro” pelos valores, costumes e ideologias vindas da vida civil afetando
geralmente os itens que se referem às exigências de conduta social em termos de civilidade e
cortesia.

As relações hierárquico-disciplinares se tomadas no contexto integral dos


imperativos morais propostos pelo regulamento seriam responsáveis pela “produção” de um
contexto de interações interpessoais de extrema formalização. Na vida cotidiana a PMSE
sofreu um processo de colonização decorrente da impossibilidade institucional e social de
manter-se fechada enquanto sistema de organização da atividade profissional sem qualquer
nexo com os demais setores da vida societária. O policial militar passava a assumir uma
condição de agente institucional e de cidadão que inviabilizava qualquer tipo de bloqueio na
capacidade de sociabilidade do militar.

Porém, mesmo considerando um contínuo processo de mudança bastante sutil nas


relações hierárquico-disciplinares o regulamento e a estrutura de organização ainda estão
fundados sobre a diretriz ideológica do militarismo que torna imprescindível o uso dos
mecanismos de coerção disciplinar como esquema geral de subordinação e disposição das
funções da autoridade. O uso do regulamento é fator permanente de regulação das atividades
profissionais, voltando-se mais predominantemente para fins internos, sendo a preservação
dos valores da hierarquia o fim mais imediatamente perseguido pelo superior à frente de seu
cargo de chefia. Afirmamos isto porque o grande número de procedimentos de apuração de
transgressões disciplinares pouco se relaciona com fins orientados para a formação de uma
mentalidade profissional útil ao desempenho das relações entre militares e civis na vida

cotidiana.
Transgressões como Trabalhar mal intencionalmente, ser apanhado em estado de
embriaguez mesmo sem meios científicos de comprovação, dirigir-se desrespeitosamente a
superior são ainda hoje citados como elementos de acusação para configurar uma quebra do
cumprimento da obediência aos princípios da disciplinar militar. A tabela 06 serve de
panorama que facilita visualizar grande parte dos tipos de transgressão disciplinar podendo
nos auxiliar a entender que também um considerável número de transgressões se refere às
relações interpessoais entre os diversos segmentos hierárquicos; a “insubordinação”, o
1

“desrespeito” e a “falta com a verdade” são os critérios ora centrais de imputação da pena ora
elementos acessórios e agravantes de determinada transgressão.

Na tabela 09 temos a representação numérica da transgressão disciplinar conforme


determinados períodos do ano. Antes de tudo devemos compreender que a transgressão é um
fenômeno cuja regularidade de ocorrência mantém a constância ao longo do ano, possuindo
variações pouco ou mais acentuadas se levar em conta a estrutura de programação do
policiamento elaborada pelo EMG e pelo CPMC.

Tabela 09 – “Sazonalidade” de Transgressões Disciplinares 2001-2008*


Ano/Mês Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul Ago Set Out Nov Dez
2001 25 32 24 19 14 28 23 18 21 19 14 26
2002** 08 12 09 10 11 15 06 07 12 11 12 07
2003 01 08 01 05 03 15 03 03 02 01 01 00
2004** 13 37 15 18 17 25 35 17 20 25 20 19
2005 25 39 46 42 40 54 60 46 35 34 28 25
2006** 18 30 56 49 40 39 57 45 32 47 30 34
2007 22 37 33 27 28 42 48 27 32 27 30 25
2008** 21 28 42 24 25 44 41 18 25 30 22 19
Fonte: Dados de Pesquisa
*O calendário anual de Policiamento Ostensivo da PMSE organizado pelo CPMC no exercício de sua
competência administrativa no tocante à definição da distribuição do efetivo em eventos sociais e políticos
promovidos no estado de Sergipe pode ser representado esqueleticamente na seguinte programação: Pré-Caju
(janeiro); Carnaval (fevereiro); Festejos Juninos (Abril, Maio e Junho); Eleição municipal, estadual e federal
(Julho, Agosto, Setembro e Outubro); Festejos Natalinos (Novembro e Dezembro).
**Anos eleitorais: 2002 e 2006 eleição estadual e federal; 2004, 2008 eleições municipais.

Os dados acima chamaram particular atenção para os anos eleitorais (2002, 2004,

2006, 2008) que exigem da PMSE uma disposição integral de efetivo inclusive afetando o
organograma das escalas de serviço nas diversas unidades militares da capital e do interior.
Em associação com os dados da tabela 08 as informações apresentadas na tabela 09 permitem
entender que existe uma regularidade na distribuição das ocorrências de transgressão, por
exemplo, nos grandes eventos do calendário anual de policiamento os meses de janeiro,
fevereiro, junho, outubro e dezembro concentram a atenção e os esforços do comando geral e
do EMG. Nesses períodos o planejamento do policiamento implica não somente na previsão
quantitativa de militares a atender satisfatoriamente as necessidades de serviço, mas também
no redobramento da vigilância sobre as transgressões disciplinares; essa vigilância consiste
mais especificamente em se evitar as “faltas ao serviço”.
1

A preocupação mais rotineira identificada na redação das punições disciplinares


publicadas na 4ª Parte se refere aos níveis de produtividade da atividade policial e também ao
grau de respeito às prerrogativas do superior hierárquico. Na primeira temos como
ocorrências freqüentes as faltas e os atrasos de serviço ocupando grande parte das punições
aplicadas pela autoridade; as punições são em sua totalidade detenções e prisões responsáveis
por confinar o militar à unidade a qual deve cumprir a pena. Entretanto, quando confinado o
militar não participa regularmente da escala, prejudicando, ainda mais a produtividade do
serviço. Essa é uma contradição do regulamento militar que para combater, por exemplo, a
improdutividade, vista de antemão como indisciplina, confina o militar prejudicando ainda
mais a regularidade do serviço de policiamento.

Para Foucault (2009) em instituições como o exército as transgressões são


classificadas genericamente de indisciplinas, ou seja, desvios de conduta que ferem a ética e a
moral do grupo, possuindo um conteúdo que não é passível de associação com aspectos
particulares da ação do sujeito. Nesse sentido, a falta ao serviço é percebida como afronta às
prerrogativas da autoridade, ao valor da obediência e da disciplina, merecendo, para tanto, um
tratamento disciplinar que objetive a partir do exemplo do punido restaurar o mérito da
hierarquia e o valor da disciplina.

No interior das relações hierárquico-disciplinares se encontra um micro sistema de


controle penal e administrativo do qual faz parte o princípio de coercitividade; pela punição se
objetiva restaurar a freqüência da produtividade do policiamento e a submissão do sujeito aos
princípios que regem as distinções de postos e graduações e condicionam o exercício das
atividades. Entretanto, é na intensificação das formas de coerção que encontramos elementos
para se entender as finalidades e disposições do sistema de controle da conduta dos sujeitos,
mas convém indagarmos sobre quais as relações entre controle interno e controle externo da
atividade policial.
1

4.2 PRESMIL: a perda da liberdade e a redefinição da função do “lugar da


cadeia”

No interior do sistema de controle regulamentar das instituições militares se


encontra de maneira dominante a concepção de dever correspondendo a “toda obrigação” uma
sanção segundo a qual define a omissão ou o desvio de conduta como objetos sobre os quais
incidem as práticas de punição e de castigo. No cotidiano do serviço militar até mesmo o
voluntariado é a expressão do cumprimento do dever, ou seja, não há ato ou ação capaz de
fugir ao imperativo da lei que impõe ao militar determinada forma de agir e de proceder
perante seus pares e superiores.

A existência de um sistema de penalização que atua como substrato das decisões


corriqueiras do cotidiano da vida militar atua de maneira a regular as ações e as interações
entre sujeitos. As punições se reproduzem e se fazem notáveis nos diários informativos da
corporação como resultado de um aparelho que funciona, mas em termos disciplinares, ou
seja, tratando em sua maioria de desvios de conduta que afetam diretamente os níveis de
produtividade do trabalho cotidiano. Entretanto, convém ressaltar que o funcionamento do
aparelho coercitivo da instituição reflete o momento vivido pela instituição e faz transparecer
no discurso formal e no texto que anuncia as punições determinadas tensões. Apesar das
nuances sofridas e representadas pelo texto devemos entender e visualizar o papel a ser
cumprido pela “cadeia” e que tipo de implicações tende a produzir sobre a concepção de
violência policial e de crime.

No caso da PMSE o sistema de penalização corresponde a um conjunto de


práticas de responsabilização do sujeito, mas também mantém com a Justiça Militar uma
estreita relação ideológico-institucional. Em outros termos, podemos dizer que as práticas e as
formas de controle institucional são elementos constitutivos de um dispositivo mais amplo de
vigilância e controle do sujeito que não reside apenas na dimensão disciplinar-regulamentar,
mas se distribui sob formas polimorfas em diversos aspectos que tocam a vida militar: o
controle sobre a imagem, o controle a partir da informação, o controle sobre a atividade, o
1

controle sobre a vida pregressa, o controle sobre as ações no âmbito civil. Fazendo uma
observação sobre a teoria de Foucault acerca das técnicas de controle e de vigilância Michel
de Certeau (1998, p. 112) afirma que os “procedimentos disciplinares lentamente aplicados
no exército e na escola vão superando rapidamente o enorme complexo aparelho judiciário
(...). Essas técnicas vão se afinando e estendendo sem precisar recorrer a uma ideologia”; a
aplicação desses procedimentos disciplinares (dinamizados no interior de instituições como o
exército ou um hospital) convergem para “lugares celulares” articulando as práticas à uma
série de arranjos espaciais e conceituais que conferem funcionalidade à um instrumento de
controle capaz de disciplinar pela vigilância.

Chamada por Certeau (1998) de “instrumentalidade menor” o conjunto das


técnicas disciplinares atua na condição de mola mestra que faz mover uma série de estratégias
que se relacionam por meio de um complexo esquema de articulação níveis de controle
celular e de discursividade. De fato, na PMSE o regulamento não perdeu sua função, apesar
de num dado momento ter passado por aspectos reconfiguradores de seus mecanismos; um
fenômeno que explica tal afirmativa se refere à capacidade restritiva da liberdade vinculada
tanto ao regulamento disciplinar quanto ao Código Penal e Processual Penal Militar. Entre

2004 e 2008 os Boletins Ostensivos manifestaram uma mudança no padrão lingüístico e


redacional localizada na 4ª Parte; nessa seção a punição disciplinar prescrevia todos os
elementos de identificação do autor da transgressão e da tipificação do ato, porém, ao
mencionar qual a sanção a ser aplicada deixava de mencionar a data e o local de cumprimento
da punição disciplinar.

É preciso afirmar que essa pequena alteração no texto oficial da 4ª Parte deixava
transparecer um lapso entre o ato de punição e as condições de aplicação e cumprimento do
“castigo”. Até edições recentes de 2001 (apesar de não serem reproduzidas na maioria dos
textos do BGO) havia a indicação do local de cumprimento da punição e a data de início e de
término da punição. A referência ao local e data de punição remontava a uma prática que
tinha como um dos centros gravitacionais as celas e o “xadrez” existentes nas diversas
OPM’s. Até final da década de 1990 as prisões e detenções disciplinares eram praticadas com
maior freqüência e se traduziam no efetivo encarceramento do militar que era subtraído do
1

convívio social e “trancado” na cela. Essa prática implicava no deslocamento de policiais


punidos mediante publicação em BGO ou detidos no “momento da infração” para o “xadrez”
dos quartéis a que pertenciam ou ao QCG. A restrição da liberdade é a propriedade mais
notória e efetiva associada ao estatuto disciplinar do R-4 que faz transparecera relação de
poder, nesta relação a coercitividade decorrente do estatuto de disciplinarização torna
“normal” a interdição sobre o corpo do militar, tornando-o objeto de intervenção institucional.
“Ficar preso ou detido no xadrez do quartel” em virtude de decisão da autoridade

militar (o que não signifique dizer que tenha havido procedimento que justificasse decisão da
autoridade) é uma experiência que faz parte da trajetória individual e coletiva de grande parte
dos integrantes da PMSE. Em Michel Foucault (2009, p. 112) a prática de punição
caracterizada por atos de interdição do corpo do sujeito tornou o indisciplinado e o
transgressor um ponto de convergência das relações de poder, nesse sentido

O correlativo da justiça penal é o próprio infrator, mas o do aparelho


penitenciário é outra pessoa; é o delinqüente, unidade biográfica, núcleo de
"periculosidade", representante de um tipo de anomalia. E se é verdade que à
detenção privativa de liberdade que o direito definira a prisão acrescentou o
"suplemento" do penitenciário, este por sua vez introduziu um personagem a
mais, que se meteu entre aquele que a lei condena e aquela que executa essa
lei. Onde desapareceu o corpo marcado, recortado, queimado, aniquilado do
supliciado, apareceu o corpo do prisioneiro, acompanhado pela
individualidade do "delinquente", pela pequena alma do criminoso, que o
próprio aparelho do castigo fabricou como ponto de aplicação do poder de
punir e como objeto do que ainda hoje se chama a ciência penitenciária.

Encontramos no interior da instituição militar um importante e complementar


“micro sistema de encarceramento” formando um espaço de contigüidade com o sistema
judiciário militar. O papel desempenhado pelo “micro sistema de encarceramento” se dá em
termos disciplinares, ou seja, é útil como dispositivo de articulação entre os mecanismos
coercitivos que atuam “dentro da instituição” e de maneira celular no espaço social das
diferentes formas de sociabilidade mantidas entre os segmentos hierárquicos. O aparato
coercitivo opera no nível prático sob a forma de táticas de controle, de gerenciamento da
atividade; as práticas disciplinares são mais operantes que operacionais, ou seja, tem sua
1

eficácia na “capacidade tecnológica de distribuir, classificar, analisar e individualizar o


objeto abordado” (CERTEAU, 1998, p. 113).

Entre 2003 e 2008 a prisão e a detenção disciplinar deixaram de assumir a forma


de castigo de restrição da liberdade para assumir em algumas OPM’s a modalidade de
114
“registro em ficha disciplinar” ou o que poderíamos denominar “pena alternativa”
(consistindo essa no cumprimento de escalas de serviço extra). Outro dado relacionado à
dinâmica de punições é a capacidade de negociação e de “barganha” dos militares punidos
perante a autoridade aplicadora da punição; a “pena alternativa”, como expressão de parte
dessa capacidade de negociação do punido, decorre da insuficiência estrutural de acomodação
dos militares punidos; em outros termos, podemos dizer que a progressão numérica e a

freqüência de ocorrências de indisciplinar não foram acompanhadas de devida expansão na


arquitetura dos quartéis. Nesta arquitetura a prisão é parte constitutiva de um espaço social
voltado para a coerção disciplinar (FOUCAULT, 2009), mas que tem passado por mudanças
notórias no conjunto das estruturas de diversas OPM’s pertencentes à PMSE. Para termos
uma idéia as antigas celas destinadas exclusivamente à encarceramentos que duravam muitas
vezes cerca de 30 dias (período máximo previsto pelo regulamento em caso de punições
disciplinares) deixaram de ser parte significativa no conjunto estrutural cuja especificidade se
destinava à confirmar o efeito dos mecanismos disciplinares e de “isolar” o elemento anômalo
(o detido, o indisciplinado, o transgressor) do restante “corpo saudável”. Nesse sentido, as
celas de unidades militares como o QCG, o CFAP, o 5° BPM, o 1° BPM dentre outras
deixaram de abrigar os detidos para servirem de lugar para a realização de demais atividades
115
burocráticas .

A prática punitiva que impunha a forma de restrição de liberdade como

mecanismo emblemático do dispositivo disciplinar caiu crescentemente, a partir do

entrecruzamento de espaços sociais (com a conseqüente interferência do discurso democrático

que fazia transparecer a necessidade de se revisar determinadas práticas supostamente

114
No Livro de Sargento de Dia do QCG, disponíveis no Arquivo da PMSE, no período supracitado se faz notar
a ausência de registros acerca de detenções ou prisões disciplinares nas dependências do quartel. Todavia,
consideramos apenas as detenções que se referem aos praças, excetuando-se oficiais e demais “presos especiais”.
115
Por exemplo, no QCG, na CPRP e no CFAP as antigas celas hoje são as salas de armamento.
1

arbitrárias e exigia destas o respeito “aos direitos fundamentais do cidadão”), em desuso,


cedendo a práticas punitivas “não convencionais”. As práticas punitivas então exercidas a
partir de um curto período de tempo (mais precisamente entre meados de 2003 a 2008)
colocavam em segundo plano a necessidade de se “encarcerar” um profissional da segurança
pública como mera reprodução de um esquema de disciplinarização pertencente ao Exército,
mas o que se observa como reconfiguração de uma prática punitiva (o encarceramento, em
particular) não era parte de mudança de mentalidade, sendo resultado de “redefinições do
espaço” e a reticência da autoridade militar em aplicar penalidades disciplinares tão
assemelhadas às condições das penas praticadas pela Justiça Militar. Nestes termos o
encarceramento deveria ser repensado, repensando-se igualmente as condições de sujeição do
transgressor.

Para se ter uma idéia da relação entre sistema punitivo encontrado na PMSE e
demanda por “direitos fundamentais” os registros nos Boletins Ostensivos nos apresentam um
fenômeno que marca a natureza conflituosa entre o direito de locomoção e a legitimidade de
aplicação de penas restritivas de liberdade, sob a modalidade de “prisão ou detenção
disciplinar”, por parte da autoridade militar. Nesse sentido, há registros nos BGO’s entre
116
2001 e 2009 de solicitações de interrupção e de anulação de prisão disciplinar através de

Habeas Corpus movidas por militares no âmbito da 6ª Vara Criminal; nos textos de
indeferimento de Habeas Corpus encontram-se a seguinte observação:

Comunico a Vossa Excelência que foi prolatada sentença no processo nº


200720600773, no qual figura como indiciado o Cabo PM nº ,
julgando improcedente o pedido, para, compreendendo o procedimento
administrativo disciplinar como válido, manter a punição aplicada ao
Paciente, conforme publicação em BGO nº 209 de 07/11/2007, conforme
fotocópia da sentença em anexo. (BGO nº 041, 05 de março de 2008)

A validade do procedimento remonta ao fundamento do estatuto jurídico que o

rege, não se dirigindo o pedido do Habeas Corpus às prováveis arbitrariedades cometidas pela

116
Aproximadamente 35 pedidos de Habeas Corpus foram dirigidos à autoridade militar cujo pronunciamento se
deu na esfera da Justiça Militar, tendo por objeto de solicitação a suspensão dos efeitos de restrição da liberdade
de locomoção decorrentes de aplicação de punição disciplinar.
1

autoridade militar. Entretanto, no BGO nº 046, de 12 de março de 2008, um tenente coronel


conseguiu na Justiça Militar anular o registro de punições a ele aplicadas e também
interromper seu período de reclusão no QCG quando cumpria punição disciplinar. Diante
disso convém indagarmos sobre o fundamento de tal decisão se em ambos os casos a
solicitação de Habeas Corpus tiveram efeitos diferenciados. O resultado do pedido de habeas
corpus esteve, portanto, condicionada à perspectiva hierárquica que privilegiou um oficial,
117
demonstrando uma “exceção em meio à regra” . Ressaltamos que o Habeas Corpus,

segundo a Constituição Federal do Brasil em seu artigo 5º, não produz efeito sobre prisão
administrativa; a prisão disciplinar praticada pelas instituições militares é, nesse sentido,
classificada como prisão administrativa, o que torna inadequada a solicitação pelo direito à
liberdade processual objetivada no instrumento jurídico acima citado.

A capacidade punitiva de restringir a liberdade do militar recebeu desde agosto de

2006 um reforço que operou no nível do procedimento de investigação das transgressões,


consolidando a gradual modernização e fundamentação legal da decisão da autoridade no que
concerne à aplicação dos dispositivos legais de coerção próprios do ordenamento disciplinar
da instituição. Estamos falando do Processo de Apuração de Transgressão Disciplinar e da
dinâmica de adequação do procedimento de averiguação de desvios de conduta no âmbito
disciplinar. A partir de tal procedimento a apuração da transgressão que ocorria de maneira
precária por meio da Razão de Defesa (RD) é substituída por um sumário procedimento de
investigação que tem por “chefe” geralmente um praça especial (subtenente ou aspirante) ou
um oficial subalterno (1° ou 2° tenente) que é responsável pelo interrogatório com o intuito de
verificar a existência ou não de transgressão disciplinar e os motivos que justificam ou não
determinada prática.

Outra alteração na prática punitiva se refere à intensificação do PAAD e abertura


de sucessivas sindicâncias para averiguação de transgressões disciplinares. Isso é possível ser

117
Os boletins gerais trazem registros sobre solicitação de liberdade, por meio de Habeas Corpus, mas tais
pedidos são geralmente aplicados aos casos de militares detidos judicialmente no PRESMIL. Em Boletins
datados do primeiro semestre de 2006 observamos alguns pedidos de habeas corpus feitos por militares presos
disciplinarmente; nesses casos a autoridade militar foi unânime em afirmar a inadequação de tal pedido.
Entretanto, a concessão de habeas corpus a um oficial detidos disciplinarmente demonstra as contradições
presentes na forma de tratamento das questões disciplinares no interior da hierarquia militar na PM de Sergipe.
1

observado a partir de janeiro de 2010 no Boletim Ostensivo de n° 006, quando o Comandante


Geral expressa seu interesse em averiguar os motivos que levaram certo número de policiais a
faltarem à escala de serviço dos festejos de encerramento de ano. Nesse mesmo documento
temos um sutil redirecionamento na prática de averiguação das faltas revelado pela
determinação quanto a abertura de PAAD e de Sindicância. Cerca de dois meses após o
referido BGO, mais propriamente a partir do Boletim 021 observamos o resultado da
apuração dos PAAD’s e das Sindicâncias transcritas na 4ª Seção; nessa seção é notória uma
modificação na redação do texto oficial que denota um esforço de concentração dos presos e
dos “impedidos” disciplinarmente no QCG; essa medida tem duplo aspecto: concentra o
conjunto de transgressores num determinado espaço, homogeneizando-o e configurando-o
como “lugar” de cumprimento da pena, e, por meio da delimitação do espaço de
culpabilização e de cumprimento da pena, reforçar a autoridade punitiva exercida pelo
Comando Geral no exercício da competência regulamentar, responsável por reativar o papel
da “cela” (embora sob outras condições não mais passíveis de serem reconhecidas como
degradantes) e do “xadrez” enquanto elemento da arquitetura de poder encontrada nos
quartéis. Entre os BGO’s n°021 e 051 há apresentação do seguinte texto redacional localizado
na 4ª Seção:

Ao Cb , da CPFaz, por ter faltado ao serviço do dia


22 de janeiro de 2010, no evento denominado Pré-Caju. Após o devido
processo legal e, assegurados os direitos constitucionais à ampla defesa e ao
contraditório, através do Processo Administrativo de Apuração
Disciplinar de Portaria nº 003/2010-CPFaz-BPGd, de 03 de fevereiro de
2010, procedido pelo ST PM Pedro Teixeira de Castro Neto, RG.
777.169-0 e CPF 517.764.645-91, o disciplinado não apresentou motivos
que justificassem a prática da transgressão disciplinar (nº 26 do Anexo I,
com agravantes do inciso III do Art. 20, e as atenuantes dos incisos I e II do
Art. 19, tudo do RDE. Transgressão MÉDIA), fica DETIDO
DISCIPLINARMENTE por 06 (seis) dias, devendo cumprir a punição no
Quartel do Comando Geral, com a apresentação às 08h00min do dia 23 de
março de 2010. Permanece no COMPORTAMENTO BOM.

O lugar de cumprimento da pena aparece no texto acima como referência à


formatação de relações que sofreram interferências capazes de alterar as condições de
aplicabilidade da punição. Desde os BGO’s de janeiro de 2010 o comando geral da PMSE,
1

representado pelo coronel José Carlos Pedroso Assumpção, entendendo a necessidade de


definir o local de cumprimento da punição disciplinar e de resgatar a prática de restrição da
liberdade do militar insere no corpo do texto da 4ª Seção do Boletim Ostensivo as condições
de aplicação da pena; o QCG passa então a ser a unidade militar que abrigaria os militares que
cometerão transgressões. Abaixo temos uma demonstração de dados que revelam o
cumprimento de penas nas “celas” do QCG:

Tabela 10 – Punições disciplinares em 2010 (detenção e prisão)


Mês/ano Punição Quantidade Militares Local
Disciplinar
118
Janeiro/2010 Detenção/prisão 28 policiais detidos QCG, CPTran,
sede do 4° BPM
Fevereiro/2010 Detenção/prisão 32 policiais detidos QCG, Cia
Fazendária
Março/2010 Detenção/prisão 35 policiais detidos QCG
Abril/2010 Detenção/prisão 25 policiais detidos QCG

Os dados acima se referem ao ano de 2010 quando a autoridade militar decide


redirecionar prioritariamente o cumprimento das detenções e prisões ao QCG o que não
impede o cumprimento da pena nas respectivas OMP’s. Como observado na tabela no mês de
janeiro e fevereiro outras unidades militares abrigaram os policiais que sofreram sanções
disciplinares, todavia, o redirecionamento dos punidos para o QCG atingiu não somente os
militares do CPMC, mas também os militares do CPMI:

118
A detenção e a prisão constituem sanções normativas de graus diferenciados: a detenção é menos grave em
termos de avaliação da conduta disciplinar; já a prisão é uma sanção grave que se tornar fator objetivo de
reavaliação do comportamento, afetando inclusive a alteração na classificação do comportamento na ficha
disciplinar. Porém, mesmo sendo distintas, a prisão e a detenção são aplicadas, enquanto sanções disciplinares,
nas mesmas condições, ou seja, atualmente implicam na restrição de liberdade em local definido pela autoridade
punidora.
1

Tabela 11 – Entrada de militares para cumprimento de punição no QCG


Mês/ano Punição Disciplinar Quantidade CPMC CPMI
Militares
119
Janeiro/2010 Detenção/prisão 28 policiais detidos 20 pm’s 08 pm’s
Fevereiro/2010 Detenção/prisão 32 policiais detidos 22 pm’s 10 pm’s
Março/2010 Detenção/prisão 35 policiais detidos 20 pm’s 15 pm’s
Abril/2010 Detenção/prisão 25 policiais detidos 18 pm’s 07 pm’s

A imposição do cumprimento da detenção e da prisão nas celas do QCG,


prioritariamente, e nas celas de outras unidades (geralmente unidades militares especializadas)
marca o retorno da aplicação efetiva das condições de punição. Na memória dos militares
ainda permanecem esclarecedores registros sobre as condições de aplicação dos castigos
disciplinares:

Pergunta: Em sua visão qual a importância do regulamento disciplinar? O


regulamento é parte significativa do profissionalismo do policial militar?
Representa a ética policial-militar?
Resposta:
Eu estou preso aqui e já tenho 15 anos de polícia, mas antes dessa prisão já
cumpri outras, mas não no Presmil, mas nos quartéis
Quais?
No QCG e no CFAP. Lá o militar ficava preso mesmo, num “xadrez”, sem
poder sair, até as visitas eram controladas, é claro que os colegas
“amenizavam” (como assim?) deixava nossas namoradas ou esposa, quem
tinha, conversar com a gente, levar lanche, que era proibido. Mas o rigor era
muito grande, era o militarismo mesmo, não é como hoje em dia, porque a
gente só fica assim preso quando é decisão da justiça.
(Soldado, 38 anos, 15 anos de serviço)

A restrição de liberdade, enquanto resultado de procedimento disciplinar, está em

pronto “estado” de efetivação – conforme é demonstrado nos mais recentes registros de

119
A detenção e a prisão constituem sanções normativas de graus diferenciados: a detenção é menos grave em
termos de avaliação da conduta disciplinar; já a prisão é uma sanção grave que se tornar fator objetivo de
reavaliação do comportamento, afetando inclusive a alteração na classificação do comportamento na ficha
disciplinar. Porém, mesmo sendo distintas, a prisão e a detenção são aplicadas, enquanto sanções disciplinares,
nas mesmas condições, ou seja, atualmente implicam na restrição de liberdade em local definido pela autoridade
punidora.
1

punição apresentados pelos boletins gerais, atribuindo-se tais registros às diretrizes de


disciplinamento impostas pelo comando do coronel José Carlos Assumpção Pedroso,
efetivada, marcando, assim, o respeito ao que diz o regulamento disciplinar, abandonado em
parte devido às adequações feitas pelos comandantes no tocante às condições de cumprimento
do castigo disciplinar.

Mas ressaltamos que a pena de restrição de liberdade no caso de transgressão


disciplinar não se dá ainda completamente nas mesmas circunstâncias que eram praticadas ao
longo da década de 1980 e meados de 1990. Isto porque as antigas cadeias são usadas
atualmente como reserva de armamento e acomodação de materiais, restando apenas uma sala
para acomodar os detidos disciplinares; na foto abaixo vemos a “cadeia” atualmente utilizada
pelos militares:

Foto 01 – foto da “cadeia” do QCG


1

Foto 02 – foto da “cadeia” do QCG

A cadeia que vemos acima era a antiga sala de acomodação dos oficiais e
supervisores do QCG, sendo em tempos anteriores utilizada para acomodar os “presos
especiais” que hoje são deslocados para o PRESMIL. Portanto, o deslocamento dos militares
detidos para o QCG prevê o cumprimento de pena com a obrigatória permanência na unidade,
sendo vedada a saída dos mesmos, porém as acomodações em nada se assemelham às antigas
celas onde eram abrigados os militares punidos.
1

Foto 03 – foto das antigas instalações para detidos disciplinares do QCG (Cela 01)

Foto 04 – foto das antigas instalações para detidos disciplinares do QCG (Cela 02)

A tentativa da autoridade em resgatar as condições anteriores de aplicação das


penas de detenção e de prisão está relacionada à concepção de reformulação do aparato
1

punitivo da PMSE englobando neste as funções de “isolamento social”. O “mundo de fora”,


segundo Goffman (2009), é antagonizado pela “separação” física do sujeito institucionalizado
que no caso das prisões representa tanto um afastamento físico quanto afetivo e psíquico. A
possibilidade de exercício de um poder capaz de restringir as condições de existência afetiva e
social do indivíduo é marca peculiar de instituições militares, pois o poder devido das normas
regulamentares é a base e o limite de extensão da dinâmica de controle disciplinar. Sobre a
“re-atualização” (ou de retorno às condições históricas de aplicação dos castigos
disciplinares) das práticas de restrição de liberdade um primeiro tenente fez a seguinte
explicação:

Mas o que justificaria a aplicação de castigos disciplinares como estes que


acompanhamos nos Boletins? Há algum tipo de crise interna? Nós somos
regidos por um regulamento, o mesmo adotado nas Forças Armadas, a
verdade é que aqui na polícia passamos por um período de indiferença à
importância da disciplina, talvez, uma coisa que eu vi, a explicação dessa
indiferença estivesse numa série de militares brigando na justiça por seus
direitos. Talvez, e eu sentia muito isso, os comandantes estivessem
escaldados e acabaram deixando passar esse momento de questionamento
para a relação entre superior e subordinado. O que a gente vê hoje é o
retorno de uma disciplina mais estreita, mais ligada ao regulamento, o que o
comandante tá fazendo não é nada de mais é a aplicação do regulamento.
Estavam banalizando muito, o militar era punido mas isso pra ele não era
nada, ia pra ficha, o comandante da Cia ou do Batalhão flexibilizava a
punição, isso sim era um erro que se reverteu numa falta de respeito ao
dever.
(primeiro tenente, 07 anos de serviço)

A flexibilização das práticas de punição foi, conforme é citado pelo entrevistado,


um fenômeno formado no seio da cadeia hierárquica, apresenta-se, no discurso acima, como
efeito de causas externas – as ações judiciais – e internas – o consentimento tácito e não
oficial dos comandantes – que resultou na alteração das condições de aplicação do castigo
disciplinar. É perceptível na fala do primeiro tenente a referência à dimensão “pedagógica” da
punição, sendo assim o castigo consiste no modo militar de ensinar ao subordinado ou ao
transgressor o valor da obediência e o “prejuízo” de seus atos para o “pundonor militar” na
qual se inscreve a ética do dever policial militar. A percepção da importância do regulamento
disciplinar para a prática policial tem direta relação com a posição do militar na hierarquia,
1

porém, quando indagados sobre a função da disciplina militar é possível identificar a


existência de que sem o militarismo como diretriz o “serviço” poderia se render a uma série
de desajustes e desacertos entre os sujeitos, prejudicando a “objetividade” e a “harmonia” da
atividade policial:

E sobre o regulamento, ele é realmente importante para a atividade policial


e para as relações interpessoais?
Sim, eu acho que o militarismo precisa da disciplina e da hierarquia, porque
senão fica tudo “avacalhado”, é preciso disciplinar, só que eu acho também
que era preciso rever algumas coisas (Quais?) como o caso do policial não
ter voz pra contestar o seu superior, qualquer coisa é punido. Ainda mais
hoje você tá aí vendo muito PAAD, muita sindicância sobre falha besta, e o
que irrita mais é que não tem prazo para apurar não; você vê as punições de
uma coisa que ocorreu a mais de um mês como pode isso. Cadê o
regulamento pra dizer o que deve ser feito, mas eles fazem o que quer. Eu
mesmo já fui punido umas dez vezes por besteira, é claro teve falta de
serviço, mas é que com o tempo essa coisa de prisão perde o efeito, o
policial relaxa, nem se preocupa muito, agora eu acho que o praça vai se
estressando porque quase nada muda na mentalidade dos oficiais, esses
aspirantes que chegam, a gente pensa que vai mudar, mas que nada!
Qualquer coisa é punir. Eu acho que a polícia deveria mesmo era dar
condições ao policial e não querer dele sempre respeito quando o oficial não
dá respeito. Também acho que o R-4 não tem nada a ver com o
policiamento, é claro que a gente vai pras operações e sabe o nosso lugar,
conversa antes, eu, por exemplo, sou cabo né?, em muitas ocorrências a
gente ia e eu falava pros meninos e acertava tudo, como ia chegar e o que
fazer, é claro que tem que ter respeito pelo comandante da guarnição, tem
que ser profissional, nessa hora, por isso eu lhe digo, onde entra o R-4, em
nada, nessa hora a hierarquia é cada um em sua função e trabalhando junto.
Agora, como muitas vezes aconteceu, quando o comandante da guarnição
era medroso ou agente tinha raiva dele nós não fazia o que dava pra fazer,
muitas coisas deixava de mão, não dava sangue e ia sem pressa pras
ocorrências.
(Soldado, 38 anos, 15 anos de serviço)

A expressão “Qualquer coisa é punir” designa a percepção crítica que sustenta


parte da visão antagônica representada pelas distinções entre o dever e a obrigação, entre
subordinação e comando. A autonomia do sujeito em face de uma relação determinada
hierarquicamente, como pode nos sugerir enganosamente o início da fala do entrevistado, não
é completamente anulada, pois no trecho final da conversa há o relato de que na atividade de
policiamento o militar tem a possibilidade de “negociar” determinados aspectos do serviço e
até mesmo de manifestar, mesmo que tacitamente, a sua divergência sobre a liderança:
1

“quando o comandante da guarnição era medroso ou quando agente tinha raiva dele nós só
fazíamos o que dava pra fazer, muitas coisas deixava de mão, não dava sangue e ia sem
pressa pras ocorrências”.

As relações interpessoais guardam em seu núcleo as tensões próprias da vida


militar, sendo as dimensões da disciplina e da hierarquia fontes constantes de problematização
da intersubjetividade experienciada nos quartéis. Uma das constantes da vida militar é a sua
contínua revisão a partir de atos da cadeia hierárquica; por exemplo, no plano global da
polícia militar de Sergipe o comandante geral responde por um plano que tende a interferir
genericamente nas condições da atividade policial, porém os seus efeitos particulares devem
estar articulados à idéia de que os respectivos comandantes de unidades cumprirão as medidas
e determinações impostas pelo comando geral. Nesse sentido, temos um exemplo
significativo retirado do último comando da polícia militar.

De fato, o comando empossado em fins de 2009 cuja formação fora ministrada


nas fileiras do Exército é aquele mencionado na fala do entrevistado como o “restaurado” da
ética disciplinar, a reconfiguração do ato de punir na verdade consiste na tentativa de torna
efetiva a relação entre dever, punição e responsabilização, ou seja, temos nessas três
categorias a defesa de uma lógica disciplinar que estabelece uma expectativa de subordinação
à lei e ao regulamento segundo a qual a transgressão deve ativar os mecanismos de
responsabilização de fato atingindo o transgressor e submetendo-o ao cumprimento do

castigo.
No QCG os militares detidos são “obrigados” a cumprir a pena nas condições
estabelecidas pelo subcomandante geral que designa local de cumprimento, dia e hora a partir
do qual serão computados os dias a serem cumpridos. O oficial de dia e o sargento adjunto
são os responsáveis pela recepção dos detidos que entregam àqueles a “nota de punição”,
registro de entrada no quartel.
Durante cinco dias de observação direta foi possível estabelecer contato com os
militares detidos e perceber sob quais condições se davam a aplicação da punição. Em
primeiro lugar era bastante perceptível o transtorno causado pelo castigo isto porque o militar
era impedido de visitar sua família, ficando recluso no quartel e submetido à convivência
forçada com outros detidos além do contingente de militares que exercem suas atividades no
1

QCG, outro aspecto mencionado é a crítica feita à função do castigo disciplinar para um
“militar profissional”, pertencente à uma realidade profissional bastante diferenciada em
relação aos militares das Forças Armadas.
Porém, convém destacarmos que mesmo diante das críticas à função “pedagógica”
da punição uma observação a ser feita se destina diretamente à relação entre os militares à
frente do serviço e as normas impostas pelo comando, notou-se nessa relação uma não
completa subordinação às diretrizes do subcomando no tocante à obediência ao cronograma
de atividades a serem feitas pelos detidos; constatamos que os detidos são esquecidos por
quem está à frente do serviço ficando mais à cargo do sentinela do portão do quartel o registro
de saídas e o impedimento para que estas não ocorram, outra constatação se refere ao não
cumprimento da chamada do pernoite que consistiria numa maneira de contar os presos e
registrar diariamente as presenças ou ausências.
Com isso, concluímos que a imposição da detenção e da prisão se limitou apenas
à reclusão do militar no quartel sobrecarregando, inclusive, as atividades de policiamento
patrimonial exercidas pelo efetivo da guarda que além de manter a segurança do prédio tem a
função de vigiar os detidos, muito embora a pretensa vigilância se limite ao convívio entre
militares detidos e militares de serviço. Portanto, o que se poderia denominar “retorno da
cadeia” na verdade pode ser concebido como uma estratégia tópica de reformulação das
relações hierárquicas a partir de sua base, ou seja, a partir da dimensão coercitiva que subjaz a
relação hierárquica.

4.2.1 Representações sobre disciplina e a “ética policial militar”

4.2.1.1 Das condições de pesquisa e coleta de dados no PRESMIL

120
Ao tempo da pesquisa o PRESMIL abrigava 29 internos composto de 04
policiais civis e 25 policiais militares, conforme leitura da 3ª Seção – Assuntos Gerais – do
Boletim Ostensivo da PMSE esse número varia de acordo com o andamento dos processos

120
O termo “interno” aparece nos textos oficiais e é substitutivo de detento. Termo este não encontrado em
nenhum dos documentos pesquisados, cabe ressaltar ainda que o presídio militar é destinado à guarda de agentes
de segurança pública que cumprem ordens judiciais ou aguardam em cárcere o desfecho de processo judicial.
1

judiciais e o conseqüente ingresso de policiais civis e militares por força de decisões da


Justiça Militar ou de demais instâncias do Judiciário em Sergipe.
As condições nas quais se realizaram as atividades de pesquisa foram marcadas
por uma série de dificuldades, parte destas se originou da estreita relação de controle dos
internos pela direção do PRESMIL motivada pelos últimos eventos em que ficou notória a
121
fragilidade do estabelecimento em face à fuga de militares . O reforço na estrutura de
segurança do presídio militar não se refletiu apenas em investimentos estruturais, mas se
destinaram também à regularização do acesso aos internos.
O contato entre entrevistador e interno do presídio se deu somente por meio das
visitas promovidas pela Capelania Católica da polícia militar, em conformidade com as
prescrições apresentadas no BGO nº 043, como resultado da Portaria 181/2009 emitida pelo
secretário de Segurança Pública o qual reconheceu o direito de assistência religiosa aos
internos do presídio militar devendo este estabelecimento adequar-se aos padrões e
orientações da portaria que prescrevia no âmbito administrativo militar a regularização das
visitações ordinárias e voluntárias encabeçadas pelos representantes religiosos de diversas
crenças.
Entretanto, as dificuldades de acesso foram as únicas a serem registradas no
período de coleta de dados, isto porque a aproximação com o interno para estabelecer o
diálogo necessário à coleta de informações não teve maior problemas, nesse caso em
particular a minha condição de militar permitiu um ambiente de maior abertura à conversação.
122
A grande parte dos entrevistados – nas entrevistas participaram seis policiais
militares dentre eles soldados, cabos e sargentos – o estado de fragilização emocional e
afetiva era notória, sendo enfatizada por muitos entrevistados; diante dessa fragilização o
desafio apresentado era para que os mesmos não desviassem a reflexão sobre elementos de
suas trajetórias enfocando tão somente a dimensão emocional e o grau de estresse gerado pelo
cotidiano no presídio. À medida que o diálogo era mantido se formava um denso “clima”
marcado pela difícil tarefa de ter que revisitar aspectos e momentos da biografia do
entrevistado. No item seguinte discorreremos sobre essas representações sobre a “trajetória
profissional” e a concepção de hierarquia, disciplina e justiça subjacente na fala dos
entrevistados.

121
A mais notória das fugas foi feita pelo ex-policial militar “Giuseppe” acusado pela Justiça em Alagoas de ser
o autor de diversos homicídios.
122
Na entrevista participaram seis policiais militares: três cabos, dois soldados e um sargento. O questionário foi
aplicado aos 25 policiais militares internos do presídio, inclusive os entrevistados. Optamos por aplicar
primeiramente o questionário devido à possibilidade de maior fluidez na coleta de informações e para orientar
em questões que poderiam ser tratadas na entrevista.
1

4.2.1.2 Percursos de transgressão e indisciplina: a concepção de hierarquia,


disciplina e justiça na ótica do interno do PRESMIL

A entrada numa instituição como o Presídio Militar da polícia de Sergipe é uma


experiência bastante significativa, pois permite entrar em contato com uma realidade no
mínimo inusitada, visto que o estabelecimento prisional contém indivíduos que pela
imposição da ética profissional seriam aqueles que resguardariam e promoveriam a ordem
pública, estando, portanto, submetidos temporariamente à avaliação simultaneamente da
sociedade, do poder judiciário e da própria instituição.
Em início de fevereiro, as atividades de pesquisa se iniciaram com a aproximação
junto aos internos; nesse processo são percebidas as primeiras impressões de ansiedade, de
expectativa e de frustração percebidas claramente no semblante do detento. As tensões, nesse
caso, não resultam apenas da condição individual do detento, mas sobre influência de fatores
externos decorrentes das mais recentes redefinições na forma e disposição do serviço prestado
pelo efetivo de policiais do presídio.
A recepção de cerca de sete policiais militares amontoados na entrada do presídio
exprimidos entre a porta de detecção de metais e a mesa do sargento de dia revela logo na
chegada o interesse da instituição em demonstrar uma imagem de reforço no policiamento e
na guarda de militares. Tal retrato, no entanto, é recente, pois a instalação do detector de
metais e o aumento de efetivo se deram apenas nos três últimos meses do ano de 2009,
quando a série de fugas e denúncias contra as precárias condições de segurança do prédio
foram expostas publicamente.
O fato de estar vinculado ao serviço religioso permitiu maior facilidade de acesso
ao interior do presídio, aproveitando, assim, da ocasião de aproximação por meio das visitas
pastorais realizadas pelo setor de assistência espiritual da polícia militar. A conversação com
os detentos seguiu metodologicamente a instrumentalização de duas ferramentas de pesquisa
que serviriam para o trabalho de coleta de dados; diante da pouca disponibilidade de tempo e
do curto período de permanência no estabelecimento as ferramentas de pesquisa foram a
entrevista semi estruturada e o questionário de questões fechadas (as quais se encontram nos
anexos); o roteiro de entrevista foi utilizado para o aproveitamento maior das questões
abordadas, enquanto que o questionário por ter maior facilidade de aplicação e alcance
1

numérico cumpriria a função de elemento de capitação de dados genérico sobre questões


pertinentes à disciplina, à hierarquia, ao tratamento institucional e à trajetória biográfica do
sujeito no interior da instituição.
Percebeu-se que parte dos detentos, manifestamente, falavam a partir de
sentimentos de revolta e de decepção consigo próprios e com a instituição. Nesse caso, uma
das dificuldades era fazê-los falar sem dar completamente vazão à erupção de sentimentos
contidos, encontrando nesses relatos algumas peças que nos conduziriam à compreensão de
aspectos subjetivos integrantes da atmosfera relacionam em que se encontra o militar. O
presidiário militar ou o interno do PRESMIL é, por esta pesquisa, visto como personagem
central na análise das relações de poder, tal importância se origina do fato de que sendo
militar o detento é, também, um elemento “marginal” no sistema de disciplinamento e
controle da instituição, pensado por esta como uma parte “desencaixada” do todo, um
elemento que perdeu sua função para o conjunto.
Mesmo diante de dificuldades de acesso as circunstancias de realização da
entrevista não impediu que as finalidades fossem traídas, seguindo, portanto, o roteiro
esperado, beneficiado, sem dúvida, com a participação ativa dos entrevistados.
Mas por que voltar-se para o PRESMIL? Nossa intenção era responder às
seguintes questões: quem é o detento do presídio militar? O que fez? Que tipo de trajetória ele
percorreu no interior da instituição até aquele momento? Quais as causas e as circunstâncias
de sua prisão? De que maneira sua forma de conceber a atividade policial está relacionada
com as causas de sua prisão? A partir de tais questões fomos a busca de respostas que
permitissem relacionar as práticas institucionais de controle (representadas na relação entre
disciplina e exercício prático da profissão) às próprias causas que deram origem aos desvios
de conduta do policial militar.
As informações apresentadas, por exemplo, pelo questionário permitiu traçar
algumas características do perfil do pm detido no presídio, o primeiro traço desse perfil se
refere ao grau hierárquico e ao tempo de serviço; ao contrário do que ocorre nas transgressões
disciplinares onde a grande maioria dos punidos pertence ao segmento mais inferior da
hierarquia militar, o de soldados, no caso dos detentos há certa distribuição ao longo dos
diversos segmentos dos praças, para termos uma idéia vejamos o gráfico abaixo:
1

Gráfico 0 1-Detentos do Presmil - por o


posto/graduaçã

4%
12% Subtenen
32%
52%
te
Sargento
Cabos
Soldados

Fonte: dados da pesquisa

A maior porcentagem, portanto, é de cabos com a média de 12 anos de serviços


prestados na instituição, sendo seguida pela graduação de sargentos, com média de 15 anos de
efetivos serviços prestados à instituição. É importante ressaltarmos, ainda, que ao tempo da
pesquisa havia no presídio 25 militares, esse número é freqüentemente alterado em
decorrência de posteriores entradas por flagrantes delitos e/ou por mandados judiciais. Como
dito, a distribuição dos internos por graduação contrariou a regra geral observada nas
transgressões disciplinares, quando se percebe claramente que os soldados e os cabos são os
que mais transgridem as normas disciplinares. No exemplo do gráfico os soldados juntamente
com os subtenentes são os militares de menor número perfazendo juntos 16% da população
interna.
Formado, na totalidade, de militares com tempo de serviço superior a 10 anos,
estáveis nas fileiras da corporação, os detentos possuem vínculo na Associação Beneficente
de Servidores Militares do Estado de Sergipe tendo, enquanto membros da associação, direito
à assistência jurídica. Apesar de possuem essa possibilidade de requisitarem na associação a
assistência jurídica, os entrevistados demonstraram os seguintes dados:
1

Gráfico 02-P or quais meios é recebida a assistência de gado


advo

de convênio com
1
Por meio o de Assistência e
2% Associaçã cia da Corporação
28%
Beneficên
os financeiros
Por
60% recurs
próprios
recursos
s de parentes e
Através
de
financeir
o
Fonte: dados da pesquisa

Durante as conversações os detentos informaram um dos mais significativos


motivos que explica o fato de que 60% dos entrevistados financiam com recursos próprios e
12% com recursos de familiares os serviços de assistência jurídica; o referido motivo se refere
à precarização da assistência jurídica fornecida pela Associação, pois apenas um advogado é
incumbido dessa tarefa cuja realização é ainda dificultada pelo volume da demanda por esse
serviço. Diante disso, apenas 28% dos entrevistados informaram que recebem assistência
jurídica de advogado designado pela Associação Beneficente.
O problema da transgressão e do desvio de conduta na instituição militar é algo
corriqueiro na trajetória do policial; as exigências do código de conduta e das normas
disciplinares fornecem os parâmetros de um sistema de vigilância que está sempre ao alcance
da disciplina militar e dos agentes responsáveis pela manutenção dos níveis de obediência.
Muitas vezes o enrijecimento da disciplina se apresenta como estratégia de “domesticação”,
como forma de “endireitar” o serviço e corrigir erros firmados no trato diário das atividades.
Quando foram indagados se já haviam recebido alguma punição disciplinar os detentos
apresentaram as seguintes informações:
1

Gráfico 03-Militares com registro de punição disciplinar até antes


do ingresso no PRESMIL

8%

Tem registro de punição


Sem registro de punição

92%

Fonte: dados da pesquisa

Apenas 8% dos entrevistados afirmaram não terem sofrido qualquer tipo de


punição disciplinar, possuindo “ficha disciplinar limpa”, contendo nesta apenas elogios e
referências ao seu bom comportamento. Os 92% dos entrevistados que possuem algum tipo de
registro de punição disciplinar confirmam a observação feita por Goffman (2009) sobre as
imposições da vida no interior da instituição; estas imposições são comparadas a uma rede de
relações de poder que define, em grande medida, as condições de existência e de inserção do
sujeito no contexto institucional. Não podemos esquecer que na 3ª Seção – Assuntos Gerais –
do BGO a Justiça Militar solicita do Comando Geral e da Ajudância Geral o envio das fichas
disciplinares, tidas, então, como elementos informativos que permitirão descrever de maneira
mais detalhada o perfil institucional e profissional do militar submetido a juízo. Dando
continuidade às informações sobre registros de punição, indagamos aos detentos acerca da
natureza das transgressões obtendo, assim, as seguintes referências:
1

áfico 04-Tipo de transgressão Disciplinar


Gr
Falta ao serv iço Desrespeito a superior Atraso ao viço
Embriagues ser no serviço Violência contra civil

Violência contra civi 7,14%


l

Embriagues no serviç o 9,52%

Atraso ao serviç 11,90


%
Desrespeito a superio o
Falta ao serviç 23,80% 47,69%

Fonte: dados da pesquisa


r

Seguindo a observação dos registros de punições disciplinares na 4ª Seção, as


informações dos detentos confirmam a freqüência de transgressões relativas às faltas de
serviço, representando no gráfico acima 47,69%, seguida da transgressão relacionada a
desrespeito ao superior hierárquico; essa é também uma transgressão cuja freqüência é
bastante considerável no conjunto geral dos registros de punição publicados em boletim geral.
Apesar de menos freqüentes as transgressões relacionadas à agressão contra civis merecem
uma atenção particular da autoridade militar, pois está comprovado nos dados sobre punição
disciplinar que há uma tendência que confirma maior investimento da autoridade militar em
transgressões e delitos que ferem diretamente as relações entre sujeitos dos diversos
segmentos hierárquicos, colocando em segundo plano o tratamento de delitos relacionados a
abuso de poder ou violência policial.
Como dito em momento anterior, a classificação dos delitos a partir do código
regulamentar faz perder de vista a natureza das conseqüências sociais geradas pela violência
policial; dois são as causas da minimização dos efeitos da violência policial: a pouca
visibilidade da vítima em relação ao andamento do procedimento e o rebaixamento
classificatório de crime para transgressão disciplinar, nesse caso a punição ou o
encaminhamento dado pela autoridade é de reduzido impacto se comparado ao significado da
violência pratica pelo policial militar.
Sobre os efeitos do “espírito de corpo” e da pouca visibilidade conferida pela
instituição ao conjunto dos procedimentos de investigação acerca de problemas disciplinares,
os detentos foram indagados sobre outros delitos praticados por eles e desconhecidos
1

“oficialmente” pela instituição cujo resultado foi a não abertura de procedimentos judiciais e
administrativos para averiguação dos fatos, as suas respostas encontram-se abaixo ilustradas:

Gráfico 05-Fatores apontados pelo militares como determinantes


para que processos judiciais e administrativos não fossem
abertos

8%
Corporativismo
12%

Anonimato do autor do delito


ou transgressão

20% Temor da vítima em buscar a


60% autoridade

Falta de provas suficientes para


a vítima promover ação

Fonte: dados da pesquisa

A categoria “corporativismo” abrange uma infinidade de exemplos concretos, mas


aqui é tomada como referência ao tipo de invisibilidade produzida pelo desenho institucional
e pelas trocas de influências no interior dos segmentos hierárquicos. Como percebemos no
gráfico 60% dos entrevistados responderam que o corporativismo foi o fator que permitiu a
não instauração de procedimentos relativos a apuração de transgressões disciplinares ou de
crimes militares. A aproximação com superior hierárquico e o prestígio junto ao comandante
foram os exemplos mais freqüentes de corporativismo praticado pelo militares para não
sofrerem acusações apresentadas por civis. Logo em seguida, com 20%, outro fator
mencionado foi o anonimato do autor do delito, nesse caso em particular o anonimato é
empregado como “tática de confusão” praticada por policiais “operacionais” que no combate
diário procuram ocultar elementos de sua identificação individual ou até mesmo fazem algum
tipo de descaracterização das viaturas, ou muitas vezes praticam delitos em horários de folga.
A prática de infrações ou delitos não apurados pela instituição militar nos induz a pensar na
capacidade efetiva dos processos de controle, impondo a estes a necessidade de se
estabelecerem formas cada vez mais racionais e eficazes de vigilância da atividade policial.
Um dado que demonstra a fragilidade das formas de controle da conduta social e profissional
do pm pode ser exemplificada nas informações seguintes:
1

Gráfico 06- Antes do presente processo judicial e ativo, o


Senhor já sofr administr eu alguma ação judicial na esfera mbito da
militar e no â
justiça civil?
8 ões no âmbito da
ar
% Sim, sofri

20% justiça milit ões no âmbito da
32%
Sim, sofri
aç justiça ões tanto na esfera
civil ilitar quanto na

Sim, sofri a primeira ação da


aç da jeto
justiça m
40% justiça civil
Fonte: dados da pesquisa

Apenas 8% possuem a “ficha disciplinar limpas” e também não sofreram qualquer


tipo de ação em âmbito civil ou militar, sendo o primeiro processo que estão sendo
submetidos. Já os demais 92% passaram (ou estão passando) por processos judiciais ou
disciplinares, sendo que desse percentual de 32% sofreram cumulativamente ações na esfera
civil e militar. A trajetória dos sujeitos entrevistados dentro e fora da instituição tem muito a
dizer sobre o tipo de experiência adquirida na vida castrense e na sociedade civil.
Para se ter uma idéia os militares entrevistados reconhecem que a disciplina como
vem sendo exercida, apesar de não ser praticada em sua fidelidade castrense (ao modo dos
militares das Forças Armadas), é um fator de constante atrito, representando um elemento
potencial no desgaste das relações interpessoais. Sobre esse desgaste produzido e localizado
na estrutura hierárquica os detentos disseram o seguinte:
1

Gráfico 07-Você vê algum tipo de desgaste nas relações


profissionais decorrentes da série de cobranças impostas pelo
regulamento e elas interferem na conduta do policial?

Sim, há sobrecarga de cobranças


4%
8% advindas do regulamento

Não há qualquer sobrecarga

Há sobrecarga de cobranças, mas


88% elas não interferem no resultado das
ações dos sujeitos e na prática
policial

Fonte: dados da pesquisa

Para parte dos entrevistados, os 88% dos detentos, as implicações geradas pelo
excesso de cobranças e de imposições apresentada pela disciplina militar se revelam no
volume das transgressões, explicando tal fenômeno através da relação direta entre disciplina-
indisciplina. Para 8% dos entrevistados essa sobrecarga não existe e o profissionalismo militar
existe sob as condições colocadas pelas diretrizes disciplinares. Para 4% não há relação entre
transgressão, desvio de conduta e sobrecarga de pressões sofridas pelo militar.
Desde a posse do comandante geral QOCPM Carlos Pedroso Assumpção a
disciplina foi colocada em foco nos discursos que antecediam até mesmo a sua posse, o
reforço dessa ótica institucional se revelara efetiva na relação entre política e gestão da
segurança pública em Sergipe. Isso fica, em parte, evidente na notícia do Cinforme, datado de
junho de 2009, quando o governo em reunião com o comandante empossado enfatiza a sua
função de representante máximo da polícia militar de Sergipe em matéria de negociações
salariais e, também, como responsável pela disciplina da tropa. Para os policiais entrevistados
era possível reconhecer relatos de uma “crise de disciplina” caracterizada pelo esvaziamento
das relações hierárquico-disciplinares e representadas na não aplicação de diversos itens do
código de conduta; elementos de referência à “crise disciplinar” pode ser apreendida na fala
de um dos entrevistados:

Ouço alguns policiais militares falarem em crise de disciplina, no


afrouxamento das relações disciplinares, desejaria que o senhor falasse um
pouco sobre isso e qual seria a importância do oficialato no quadro geral do
serviço de policiamento?
1

A disciplina é a mola mestra de uma engrenagem que só funciona quando


existem pessoas para fazer a máquina se mover. Essas pessoas são os
oficiais, mas também todo policial que incorpora o verdadeiro sentido da
“disciplina consciente”, se o policial sabe disso ele não transgride, ele
cumpre as normas; os policiais que falaram sobre crise institucional não
estão completamente errados hoje até pouco tempo as pessoas falavam sobre
o direito de ter seus direitos respeitados, tivemos muitos processos. No
tempo do coronel Hélio Silva e de Bezerra eu percebi muito a interferência
da justiça na disciplina, isso é bom porque nós temos que ver no policial um
cidadão, mas também prejudica o significado da disciplina porque o policial
estava achando que o comandante não tinha mais o direito de punir; só
bastava dizer que receberia uma comunicação e o praça já ia dizendo que iria
acionar a justiça. Na minha opinião se a disciplina não puder ser exercida
nós teríamos o caos na polícia militar e é isso que diferencia a gente dos
policiais civis, aqui dentro sabemos quem manda e isso é necessário para o
andamento do serviço.
(primeiro tenente, 6 anos de serviço)

A disciplina é concebida, na visão do entrevistado, como uma “força motriz”,


capaz de produzir determinados efeitos e de direcionar o subordinado ao destino correto;
nesse tipo de visão podemos dizer que a “sobrecarga de exigências” indicadas no gráfico
acima e apontadas como responsáveis pelos desgastes gerados nas relações interpessoais são
necessárias devido à potencial indisciplina do subordinado. Nestes termos, podemos ainda
dizer que a disciplina militar se torna, também, a peça chave num esquema de “desconfiança”
123
sobre o outro, um tipo de autodeterminação da “natureza” do subordinado que deve ceder
aos imperativos da hierarquia e da disciplina, respondendo prontamente aos apelos do
superior. Segundo Goffman (2009, p. 71) a “equipe dirigente” tem uma visão do grupo dos
internados afetada pela natureza de suas funções institucionais e profissionais; isto porque
aquele grupo trabalha com pessoas que são tidas como produtos e objetos dos seus afazeres.
Daí decorre um dos aspectos das relações entre os dois grupos que é a existência de “padrões
tecnicamente desnecessários de tratamento” com os materiais humanos.
O excesso de cobranças no dispositivo de controle disciplinar deriva, portanto, do
excesso de itens de normatização da conduta disciplinar tornando impraticável o integral
cumprimento de suas diretrizes. Nessas diretrizes há uma idealização do comportamento do
militar, um tipo perfeitamente esmerado nas normas; entretanto; talvez uma categoria que
exemplificasse bem essa idealização da disciplina seria a “disciplina consciente” como
referência à conduta espelhada na absorção dos valores e normas da vida militar.

123
No universo lingüístico militar encontramos uma expressão que dá conta dessa relação de autodeterminação
que recai invariavelmente sobre o subordinando: “Quanto mais o mundo gira, mais o soldado se vira”; nessa
expressão há referência à qualidade de versatilidade do soldado em face às adversidades da missão e às
exigências impostas por seu ofício.
1

Em seu estudo sobre a hierarquia militar e suas implicações sobre a formação da


identidade, das práticas disciplinares e da própria subjetividade do militar, Leirner (1997, p.
52) apresenta a noção de hierarquia como sendo eixo estruturador da vida castrense, nessa
noção reconhecemos, igualmente, as conexões entre a preservação da “divisão funcional” e a
dinâmica de disciplinarização do organismo:

Ela é o princípio primeiro de divisão social de tarefas, papéis e status dentro


do Exército, determinando as condutas e estruturando as relações de
comando-obediência, sistematizando a ação e a elaboração do conhecimento
militar e mapeando o modo como as relações de poder devem estruturar-se.
Além disso, ela determina o modo pelo qual o conhecimento e as
informações são produzidos e circulados no interior da tropa.

A figura do superior, e mais precisamente do oficial, torna emblemática a


formação de relações de poder feitas a partir da noção de precedência hierárquica; essa é uma
noção que se processa concretamente pelo exercício da disciplina. Os papéis no interior da
instituição militar são exercidos de maneira compatível à estruturação das “relações de
comando-obediência”, para Leirner (1997) as relações de poder na hierarquia militar faz
mover uma série de intercâmbios de saberes e informações entre os diversos segmentos, mas
dirigidas e coordenadas pela noção de autoridade.
Transitando agora para o universo de informações coletadas com os internos do
presídio militar podemos vislumbrar os resultados da relação hierárquico-disciplinar
funcionando, nesse caso, no interior dos mecanismos de responsabilização criminal e
administrativa. Na falha de se obter a “disciplina consciente” como atributo da conduta da
tropa entra em ação as constantes intervenções da autoridade – operadas no âmbito da
disciplinarizacão a qual correspondem às respectivas formas de controle sobre a atividade –
cuja finalidade é a de corrigir as distorções e incorreções identificadas no exercício
profissional; a abertura de procedimentos de “investigação” de falhas internas e externas é a
tarefa complementar da autoridade que busca minimizar, através da culpabilização do
transgressor, os efeitos sociais e institucionais do desvio de conduta.
No contato com os códigos de conduta, com entrevistados do oficialato e com a
literatura específica do universo castrense tivemos a impressão de que uma rede de poder
estivesse sendo formada e com ela o sujeito fosse completamente anulado, restando tão
somente a noção de autoridade e de hierarquia; entretanto, nas entrevistas podemos perceber o
grau de percepção e de criticidade expressa pelos militares, tendo por objeto as relações
disciplinares. Aproveitando esse tema se questionou os internos do presídio militar sobre
1

quais seriam os fatores extra-judiciais e institucionais que interfeririam na objetividade e


transparência do procedimento judicial instaurado contra eles, obtivemos, então, as seguintes
respostas:

Gráfico 08-Fat ores extra-judiciais e institucionais que rferem na


objet inte ividade e transparência do l
processo judicia ões dentro da
Persegui
ç cia da imprensa
24% instituiç
ão
0% erícia do militar
8% Interferên el pela investigação
8%
política
Falta de p
20%
40% responsáv
nstitucional
Influência
ou relações de
de com o oficialato)
Prestígi
o i

Fonte: dados da pesquisa


Para o detento do presídio militar três fatores são os responsáveis pela
interferência na objetividade dos procedimentos judiciais e administrativos: a hierarquia, a
mídia e a ausência de saberes técnicos de investigação. A primeira ilustra a presença de
fatores institucionais que podem se revestir de legalidade ou de legitimidade, mas na verdade
consagram uma lógica de favorecimento a partir de vínculos pessoais – Goffman (2009)
denomina de interferências do mundo externo a partir da noção de status – que poderiam estar
camufladas pelo aparente rigor técnico dos procedimentos. Nesse caso os abusos de poder ou
desvio das finalidades do procedimento devem ser constantemente submetidos à audiência de
órgãos públicos (internos ou externos) e da própria sociedade civil para que se evitem
ilegalidades.
O outro fator se refere à imperícia, mais propriamente à atividade de investigação
e de apuração dos fatos cumpridas não pelo judiciário comum, mas pelos oficiais e
encarregados pela coleta de informações sobre os eventos que deram origem ao processo. No
caso da PMSE a Ajudância Geral juntamente com a PM-2 e a PM-4 exercem funções
relacionadas à indicação de policiais (geralmente oficiais, suboficiais e sargentos) que
cumprirão as tarefas de responsáveis pelo andamento das atividades do procedimento;
1

evidentemente esses policiais selecionados para atuarem como “agentes da justiça militar”
(em âmbito administrativo ou judiciário militar) acumularão na prática funções de
investigadores, de escrivães e de “inquiridores” dependendo do tipo de procedimento. Para os
entrevistados esse tipo de papel exercido geralmente pelos oficiais tende a produzir um
resultado esperado: a condenação.
Para parte dos entrevistados o problema do gerenciamento dos procedimentos
disciplinares é que o oficial não dissocia o papel de superior hierárquico do papel de sujeito
responsável pela “busca da verdade”, de alguém que agindo na imparcialidade da lei
produzisse, orientado por esta imparcialidade, um saber circunstancial sobre os fatos baseada
na racionalidade jurídica e normativa; porém, até mesmo essa racionalidade é prejudicada
pela propriedade genérica de alguns itens do código disciplinar e pela ausência de saberes
jurídicos que permitissem a visualização do problema disciplinar de diversos ângulos. A
descrença na objetividade do trabalho de apuração de atos de transgressão se prolongou
também, na forma de julgamento, para o trabalho exercido pelo Judiciário Militar. Sobre essa
questão vejamos o gráfico abaixo:

Gráfico 09-Para você quais aspectos negativos do trabalho da


Justiça Militar A investigação, no âmbito militar, é
realizada por profissionais sem a perí

necessária

4% A investigação, no âmbito
militar, é realizada por
32% 24% profissionais afetados pela visão
antagônica das distinções
hierárquicas
É afetada pelas informações dos
meios de comunicação social

40% O judiciário militar reproduz


uma visão pejorativa da
atividade profissional militar

Fonte: dados da pesquisa

No gráfico 08 os fatores indicados interferem diretamente no âmbito dos


procedimentos disciplinares e administrativos; existe uma semelhança proposital de fatores
entre o gráfico 08 e 09 inseridos no conjunto das questões para tentar apresentar informações
1

relativas às duas esferas que integram o sistema de controle da polícia militar. Para os
entrevistados no âmbito a esfera judicial ocorre, segundo eles, a interferência de fatores sobre
o andamento regular e objetivo dos procedimentos judiciais destacando-se os seguintes: a
presença da mídia e das informações por ela veiculadas (40%); o judiciário militar reproduz
uma visão pejorativa da atividade profissional militar (32%) e a ideologia castrense afetada
pela noção de hierarquia atuando negativamente na “apreciação” dos processos (24%). Para
os entrevistados a Justiça Militar não é completamente imparcial, nem objetiva, atendendo
muitas vezes aos apelos da mídia; sobre essa resposta é curioso afirmar que dentre os
entrevistados 08 internos se encontram por motivo de cumprimento de prisão preventiva,
atribuindo, portanto, às informações da mídia e demais meios de comunicação a
“responsabilidade” pelo modo como ocorrera as prisões.
Na tentativa de reconhecer a relação entre delito e trajetória do indivíduo na
instituição apresentamos a seguinte questão: quais fatores foram predominantes para o
cometimento do delito? O gráfico 10 trazem respostas que permitem analisar a predominância
dos fatores e o seu respectivo peso na configuração de determinado tipo de delito, fornecendo
elementos para análise das implicações das relações hierárquico-disciplinares sobre o desvio
de conduta do policial militar. Por exemplo, sobre essas implicações temos a porcentagem de
indivíduos que atribuíram ao estresse e ao desgaste emocional gerado nas relações
interpessoais e no cotidiano profissional os motivos que explicam o cometimento do delito
(cerca 16% dos participantes da pesquisa). Ao longo da pesquisa esses indivíduos afirmaram
ter passado por algum tipo de tratamento psicológico e/ou psiquiátrico, inclusive com o uso
de medicamentos. Sobre a dimensão “psicossocial” do fenômeno comportamental associado
ao desgaste psicológico e emocional do policial e seus desdobramentos sobre o fenômeno da
transgressão e da violência policial seria interessante visitar os dados apresentados pelo
124
serviço de assistência psicológica e social da polícia militar de Sergipe .
Dentre as causas indicadas, as que são relacionadas a problemas técnico-
operacionais – decorrentes de imperícia e da desproporcionalidade entre objetivos, meios e
resultados – somados contabilizam 16%, indicando, no caso da população de internos que
participaram da pesquisa, menor relevância na configuração do delito se comparado com os
demais fatores. É importante salientar que os ditos fatores técnico-operacionais (imperícia e

124
A “instalação” do Serviço de Assistência Psicológica e Social da PM é bastante recente, funcionando apenas a
dois anos, sendo uma reivindicação já há tempos apresentada por militares de formação profissional nas áreas da
psicologia e da assistência social. O serviço de assistência médico-hospitalar exercido pelo efetivo de oficiais
disponível no HPM não se desenvolveu em articulação com a especialidade das áreas da psicologia e da
assistência, não sendo possível encontrar o encaminhamento de questões relacionadas a problemas psicológicos
que afetam a atividade policial militar.
1

ação enérgica, configuradora de arbítrio) podem ser associados à dimensão da formação


profissional do policial, momento em que são transmitidos saberes técnicos e valores basilares
da instituição. Em seus dois estudos sobre a formação da “subjetividade” do militar e da
“cultura castrense” Castro (2009) enfatizou a dimensão formativa e instrucional atribuindo
grande importância para a “modelação” da índole do “combatente”, do “soldado em
exemplar” idealizado no universo simbólico da academia e do quartel.
No tocante ao preparo emocional inserido no contexto de formação profissional
125
do policial militar há na bibliografia sobre instrução militar estudos relacionados à função
da categoria “estresse emocional” dentro do quadro geral de direcionamento dos exercícios
militares. Uma das justificativas de adoção desse princípio na instrução seria

(...) condicionar o militar ao enfrentamento das situações em que se exige


equilíbrio emocional; por isso as atividades militares usam jargões bastante
pesados pra quem ta de fora, para o civil não há nada mais pesado do que
ouvir o tratamento do instrutor em relação aos alunos, o desgaste físico
associado ao estresse tem a pretensão de fazer com que o policial saiba agir
em situações de intenso perigo. Agora é claro que o adestramento é praticado
também, esse adestramento, a palavra é um pouco pesada, mas serve pra que
o soldado saiba instintivamente o que fazer e como agir, o procedimento a
tomar (...).
(Sargento, ex-instrutor do CFAP, 20 anos de serviço)

Mas quais as conseqüências desse “desgaste emocional” para a atividade policial e


para a vida social do policial militar? Para observar parte dessas implicações podemos
analisar os demais dados relacionados aos motivos determinantes da prática do delito; como
veremos 28% dos entrevistados afirmou que o delito surgiu do conflito interpessoal com a
vítima, possuindo o militar algum grau de parentesco com esta (os delitos praticados foram de
tipo “agressão à pessoa física” com grave ameaça ou utilizando-se de coerção por arma de
fogo). Os motivos econômicos são responsáveis por 40% dos delitos praticados pelos
entrevistados, sendo os mais freqüentes: formação de quadrilha, falsidade ideológica, roubo,
homicídio e extorsão. Vejamos então o gráfico baixo:

125
Sobre instrução militar ver trabalho de Marcos Santana Souza intitulado “A violência da ordem: Polícia
Militar e representações sobre violência em Sergipe”.
1

Gráfico 10- de seu


Quais fatores foram predominantes para a
prática delito
Despreparo téc
nico no momento da ação policial
Desproporcion s técnicas
dessa ação
lidade entre intensidade da ação policial e
Conflito interp a

finalidade ssoal com a vítima


Desgaste emoci necessário à
realização de at
e
Interesse econ onal e estresse que afetaram o equilíbrio
emocional ividades profissionais
mico como condicionante da prática do delito

ô
8%
8
%
40%

28%

16
%
Fonte: dados da pesquisa

O gráfico acima permitiu que visualizássemos as diversas causas que dão origem
ao delito cometido por policiais militares, mas também nos conduz à análise das relações
entre a disciplina e o efetivo direcionamento da conduta do policial militar a partir dos
condicionantes éticas de sua atividade. O investimento da instituição em procedimentos
disciplinares e administrativos intensificados a partir de 2001 e aprimorados em 2006, sob a
forma de padronização da técnica de apuração das causas de transgressão, não se reverteu na
redução de delitos e transgressões cometidos por militares; a demonstração dos dados sobre
transgressão disciplinar revela a constância do problema da indisciplina; mas este fenômeno
apesar de se referir prioritariamente ao conteúdo das relações hierárquicas muito pouco tem a
dizer sobre as relações entre conduta do policial militar e as conseqüências sociais do seu
desvio. O desenho institucional que encontramos na polícia militar de Sergipe não favorece o
acompanhamento mais efetivo de entidades da sociedade civil organizada, ainda mais porque
os procedimentos disciplinares, mesmo aqueles cujo conteúdo se referem à denúncias de
cometimento de delitos ocorrem nas diversas seções da instituição militar, muitas vezes sem o
acompanhamento sistemático da vítima, do advogado e do pretenso autor da infração.
1

As sindicâncias, os IPM’s e os PAAD’s têm suas atividades muitas vezes


realizadas nas seções onde trabalham os oficiais responsáveis pelo procedimento, entregando
a cargo destes a responsabilidade pela convocação do acusado e da vítima; porém, o controle
exercido pela própria instituição se dá apenas no momento final quando o oficial envia o
resultado de sua investigação, deixando a autoridade militar de observar o andamento do
procedimento. Outro aspecto a ser destacado se refere às formalidades legais, apesar de haver
uma expressa referência à possibilidade do acusado acionar defensor e testemunhas esse tipo
de exigência é facultativa não prejudicando o andamento do processo disciplinar. O formato
de realização do procedimento apesar de respeitar os direitos fundamentais de defesa, não
torna tais direitos efetivos, deixando-os à critério do acusado a possibilidade de acioná-los,
minimizando a importância das condições de defesa em face da “legitimidade” da pretensão
punitiva.
Para parte dos entrevistados a prática punitiva exercida pelo oficialato, mesmo
que baseado em procedimentos padrões e em leis específicas contempla valores e pré-noções
que comprometem a objetividade do resultado obtido e que não são compatíveis com a
realidade profissional em que se encontra o policial militar:

Pergunta: O que você tem a me dizer sobre punição disciplinar? O ato de


punir traduz um tipo de tensão e de conflito entre os militares? O ato de
punir é a melhor representação do poder disciplinador da autoridade?
Resposta:
Eu estou cumprindo parte de uma pena no qual me sinto acusado antes
mesmo da sentença. Vim pra cá por ter agredido fisicamente um paisano
quando estava de folga e me encontrava no “bico” de segurança de uma loja.
O paisano folgado já tinha aprontado uma semana antes quando tinha
participado indiretamente de um assalto. Eu fiquei sabendo que ele tinha
dado informações para os assaltantes, só que eu fiquei sabendo e acionei a
vtr da área, chamei os colegas pra pegar esse cidadão e dar uma lição. O
resultado foi a denúncia que ele fez na Ouvidoria e na delegacia, o ocorrido
foi a uns três anos e só agora é que tou aqui.
Pra mim a polícia perdeu a moral, não impõe mais medo nas pessoas, todos
acham que a polícia deve andar na linha e eles fazem o que quer. Pra paisano
não tem RDE, mas pra gente tem disciplina e agora a Justiça Militar pegando
cada vez mais no pé. O praça tem que fazer bem feito, senão a gente acaba
aqui ou diante do homem de capa preta. Pra mim a punição só vem pra
estressar mais ainda a gente, ainda mais hoje quando tudo é ter que
responder, tem RDE, PAAD, IPM, sindicância, inquérito técnico, rapaz é
muita coisa. Eu lhe pergunto o que a detenção e a punição acrescente pra
nossa profissão, vai ajudar em quê?
O praça é cobrado de tudo que é lado, mas só quem ta na rua sabe como é, se
não tiver os macetes acaba sofrendo e pode perder a vida, por isso um dia a
gente é pego, não tem pra onde correr, desrespeitar uma norma ou deixar de
cumprir uma ordem e fazer do nosso jeito é muitas vezes a maneira certa de
agir enquanto policial. Pra mim a punição disciplinar como é feita tinha é
que acabar, só se deveria punir a partir do código penal, deixar de lado esse
1

RDE porque o praça da polícia já tem muita obrigação e não precisa ter que
ta se batendo com superior pra depois ta respondendo.
Pergunta: Mas a disciplina e a hierarquia deveria deixar de existir em sua
opinião?
Disciplina pra mim é algo muito sério, é o policial bem treinado e sabendo
operar suas ferramentas de trabalho, a hierarquia também não deveria ser
assim, tem muita gente mandando e pouca gente fazendo mesmo. O soldado
e o cabo tão lá na ponta da agulha, mas em cima deles tem muita gente
cobrando. Eu penso que a polícia tinha que mudar sua disciplina e
hierarquia, que fosse algo diferente que invés de cobrar respeito ao
regulamento visse que o profissional não é aquele que diz ‘sim senhor, não
senhor’. Quando a gente erra tudo bem tem que pagar, mas crucificar o
policial que errou como se fosse o maior marginal do mundo isso não dá. Pra
meus colegas é como se eu fosse ninguém aqui dentro, o processo ainda tá aí
rolando, mas já me sinto culpado, pior que já sou tratado como culpado.
(Cabo, 35 anos, 11 anos de serviço)

A disciplina militar é pensada, na fala do entrevistado, como algo “fora de


lugar”, ou seja, tendo sua aplicação nas relações entre segmentos hierárquicos, mas perdendo
seu significado quando contextualizada na “natureza” do serviço prestado pela polícia. A
expressão “a polícia perdeu a moral” indica a existência de uma visão antagônica sobre a
prática policial: a primeira dimensão dessa percepção dualista da disciplina diz que esta não é
compatível com a realidade do serviço de rua, que o militarismo está cada vez mais
“defasado”; a disciplina nesse caso seria um meio de vigiar e corrigir o comportamento do
policial, um tipo de “serviço de fiscalização” que tem o propósito (na concepção dos
entrevistados) prejudicá-lo, de manter o policial sob “rédeas curtas”; a segunda dimensão se
refere ao significado de reconhecimento que pode condicionar uma determinada concepção de
disciplina (“Eu penso que a polícia tinha que mudar sua disciplina e hierarquia, que fosse
algo diferente que invés de cobrar respeito ao regulamento visse que o profissional não é
aquele que diz ‘sim senhor, não senhor. Quando a gente erra tudo bem tem que pagar, mas
crucificar o policial que errou como se fosse o maior marginal do mundo isso não dá”)
fundamentando um tipo de intersubjetividade que não esteja sintetizada em polarizações
segmentadas na hierarquia; espera-se com tal disciplina que as relações interpessoais se
desenvolvam sob parâmetros de maior autonomia do sujeito. Nessa última dimensão da visão
dualista da disciplina encontramos um “desejo de mudança” traduzido no redirecionamento da
disciplina tal qual é praticada pela instituição.
Mesmo que ao longo das atividades de pesquisa não seja possível afirmar a
existência de uma visão antagônica das relações entre os dois grupos hierárquicos – oficialato
e praças – capaz de obstruir completamente o “andamento” dos trabalhos, esses dois estratos
1

mantêm um estado de cooperação que não está absolutamente protegida de sofre os efeitos da
percepção crítica dos agentes acerca das funções por eles exercidas no interior da hierarquia.
O “papel do outro”, mais propriamente do superior hierárquico é submetido à crítica realizada
pelo subordinado, bem como este é igualmente avaliado pelo superior, mas de modo muito
mais efetivo, em decorrência das possibilidades de “mando” impostas pelo regulamento
126
empregado pela autoridade (figurada e “teatralizada” no superior hierárquico). Podemos
afirmar que a percepção crítica e conflituosa das relações hierárquicas é parte integrante do
universo simbólico e “psíquico” em que estão mergulhados os sujeitos.
Para o entrevistado a punição não é um ato objetivo e imparcial, produzido com a
finalidade de disciplinar o militar e direcioná-lo ao “caminho certo”; a punição concebida
desse modo não está num plano superior onde as diferenças e conflitos estão ausentes, ao
contrário o ato de punir chega a alcançar um status de “vingança pessoal”, de desfecho de um
conflito intersubjetivo gerado entre subordinado e superior. A disciplina percebida como a
capacidade de adestramento do subordinado a partir do comando do superior é vista
genericamente como uma relação que ultrapassa a mera transmissão de saberes práticos para
se tornar numa concepção permanente de classificação das possibilidades de relacionamento
interpessoal.
No entender do entrevistado a “autêntica” disciplina está ligada à formação
técnica e ética do policial, não sendo compatível com o perfil do policial militar, nem com as
finalidades sociais do policiamento exercido pela polícia.
Os choques ou atritos experienciados no plano das relações hierárquicas podem
gerar um tipo de violência que segundo o código penal militar seria a “transgressão ou o
crime propriamente militar”, ou seja, o delito praticado pelo militar em desfavor de outro.
Esse tipo de violência não é visível o bastante para podermos fazer as observações
127
necessárias , porém os poucos casos podem nos oferecer elementos para refletirmos sobre o
conteúdo das relações hierárquico-disciplinares. Talvez um caso emblemático de conflito
gerado no interior da hierarquia e motivado pela pretensão punitiva do superior ocorreu em

126
O conceito de teatralização nos é apresentada por Goffman em sua obra “A apresentação do Eu na vida de
todos os dias” sendo um conceito chave para entendermos as relações de produtividade, cooperação e conflito
mantidas entre grupos sociais. A Audiência como noção de publicidade da imagem se relaciona à capacidade que
o grupo tem de manipular a sua imagem “social” a partir do “controle” sobre a informação, negociando, muitas
vezes, aspectos significativos de sua “apresentação pública”.
127
A transgressão ou crime praticado entre militares geralmente vêm sendo classificados, ao que tudo indica, nos
textos punitivos da 4ª Seção do BGO como “desrespeito ao superior hierárquico”, excetuando-se aqueles casos
em que a própria instituição por meio de sindicância instaurou procedimento para averiguar as circunstâncias do
delito, infelizmente o acesso a tais sindicâncias não foram permitidas restando apenas a nossa consideração
sobre os eventos identificados no BGO.
1

2003, culminando no homicídio de um militar, vejamos no trecho do boletim abaixo um


relatório produzido pelo Conselho de Disciplina:

Do que consta nos autos, extrai-se que no dia 16 de outubro de 2003,


aproximadamente às 12:15 h, o disciplinando, mesmo estando de serviço das
07:00 às 19:00 h, deixou de cumprir determinações verbais expressas do 3º
SGT QPMP-0 nº 0794 Everton Lima dos Santos no sentido de transportar a
alimentação da tropa na parte da tarde, não dando ao seu superior
hierárquico a mínima atenção e em seguida ausentando-se do serviço para
efetuar o almoço em sua residência, deixando de apresentar-se para o turno
vespertino, conforme consta na cópia da Parte s/n-2003 (fl 16), firmada pelo
Sgt Everton, no mesmo dia do fato.
Já no dia 21 do mesmo mês, quando o disciplinando chegou à subunidade
para trabalhar recebeu do Sd nº 3195 José Ivanildo Santos dois Formulários
de Apuração de Transgressão Disciplinar, sendo que um destes tinha por
objeto a transgressão disciplinar informada pelo Sgt Everton. Neste instante
o Sgt Everton adentrou no alojamento e o disciplinando inquiriu o superior,
tratando-o de você e perguntando o que o mesmo ganharia com a
comunicação da transgressão, sendo travado breve dissenso na presença do
3º Sgt Willijordans Dias de Souza (fl 35) e ouvido pelo 2º Sgt Temístocles
Almeida (fl 64).
Em seguida o disciplinando retirou-se da 3ª Companhia e ao retornar,
procurou o 3º Sgt Everton para tirar satisfação sobre o fato, portando nas
mãos uma pistola .40, municiada, e antes mesmo que a vitima pudesse
esboçar uma reação desferiu três tiros que a levou a óbito. Após o delito o
disciplinando, evadiu-se do local, deixando de atender determinação do 1º
Ten Ildomário.
(BGO, n° 100, 08 de junho de 2004)

O texto acima nos fornece importantes elementos para considerarmos a dimensão


conflituosa das relações hierárquico-disciplinares; evidentemente o homicídio de um superior
por um subordinado, tendo como pano de fundo a “pretensão punitiva”, é um exemplo
deveras extremo da referida dimensão; todavia, pode nos conduzir à reflexão sobre qual
representação o militar tem acerca do “ato de punir”. Para um dos entrevistados a punição não
significa apenas a dinâmica de poder que visa disciplinar pela correção, impondo limites à
conduta do sujeito:

Pergunta: Você percebe algum tipo de interferência pessoal na punição, há


uma carga moral que dá significado à punição?
Veja só no militarismo, você sabe, nós aprendemos que a disciplina é uma
pressão que atua sobre nós para nos obrigar a fazer corretamente certos
procedimentos e agir a partir de uma postura e compostura esperada pelo
superior. Essa é uma grande exigência porque o superior são várias pessoas e
cada uma com seu jeito, eu já ouvi e vi diversos colegas meus sofrerem
injustiças de seus superiores porque não tinham uma postura exigida ou não
1

seguiram a determinados procedimentos. Eu vejo o ato de punir associado à


vontade de punir, isso eu digo porque quem acusa é quem ouve e puni,
principalmente em companhias, nisso tem uma coisa interessante, temos o
comandante e o subcomandante, às vezes o comandante é o mais rigoroso e
o sub é o mais flexível, quando não é assim, é o contrário: o comandante é o
flexível e o sub é o mais rigoroso.
Pergunta: O que você quer dizer com a afirmação anterior “o ato de punir é
associado à vontade de puni?”
Tem uma experiência que eu passei que explica essa minha afirmação. Uma
vez numa Cia do 5° BPM, fui punido por ter entregue atrasado um atestado
médico, antes de ser publicado o então subcomandante me chamou em sua
sala e afirmou que o tenente e o sargento responsável pelo PCSv queriam me
pegar, queriam me punir de qualquer forma porque tinha faltado ao serviço e
tinha dito que não tinha sido avisado. Essa minha afirmação causou grande
desconforto pois fiz passarem por mentirosos os meus superiores. Nisso eu
vi uma série de problemas, porque o subcomandante não interferiu se ele viu
claramente um esforço deliberado para me punir, tanto é que a punição não
foi pela falta, mas por não ter avisado em tempo hábil ao superior; essa é
outra contradição porque nós entregamos o atestado só quando chega razão
de defesa, tinham que apurarem a razão pela qual entreguei atrasado, mas me
puniram sem realizarem um procedimento adequado.
Pergunta: Essa foi a única manifestação de abuso sofrida por você?
Rapaz tenho muita história pra contar dessa polícia. Teve uma vez, eu era
recruta, que entrei em desentendimento com o sargento, foi numa ocasião
onde entreguei um atestado ao sargento, quando sai da Cia para a viatura ele
me fez uma pergunta da porta da Cia, a uma certa distância, eu de imediato
atendi à pergunta, porém ele (o sargento) se sentiu ofendido e disse que iria
dar parte de mim. No término do serviço eu vi no livro escrito que eu não
tinha aptidão ao militarismo, que era indisciplinado e respondão. Quando a
parte chegou o resumo da transgressão indicava que eu havia constrangido
na frente de civis e militares o sargento respondendo de maneira
desrespeitosa. Fui a procura do então comandante e expliquei o fato
afirmando que o sargento não foi fiel ao registrar o ocorrido e disse que não
havia desrespeitado o referido sargento. Dessa punição eu escapei mas
devido à compreensão do comandante do que a força de meus argumentos.
Eu mesmo me pergunto em casos como esse e em outros como o militar
pode resistir aos abusos da autoridade do superior. Nós não temos muitas
saídas.
(Cabo, 39 anos, 17 anos de serviço)

O ato de punir possui, no entender do militar entrevistado, um propósito


corrompido pela dimensão conflituosa das relações interpessoais; pois a punição enquanto ato
formal (sendo caracterizado pelo uso do regulamento) confunde-se com o “sentimento de
vingança”. Dentro dos parâmetros da obediência hierárquica o superior é elevado ao status de
ícone representativo da autoridade; nesse sentido, a noção de autoridade é difusa na categoria
de estruturação hierárquica (cadeia e precedência). Os meios de defesa do militar não são os
oficialmente disponíveis, haja vista não haver nem um procedimento que preceda a acusação
feita pelo superior e que tenha a capacidade de anular ou por em questão a legitimidade da
1

acusação. A pretensão punitiva segue seu percurso sem maiores problemas conectando a
“vontade de punir” e suas finalidades ao objeto da punição (o militar e sua conduta
transgressora).
Conforme registro da fala do entrevistado o caminho para que a punição não fosse
aplicada não estava centrada na capacidade de defesa representada no Formulário do RDE,
mas em sua possibilidade de aproximação junto ao comandante, então responsável pelo
desfecho da decisão ou não de punir. O percurso mencionado pelo entrevistado no primeiro
caso (de omissão do comandante em face à “perseguição” feita contra ele) e no segundo caso
(uma acusação injusta que não se reverteu em ato de reavaliação da pretensão punitiva e
conseqüente responsabilização por “falsa acusação”) revela parte da natureza das relações
hierárquicas e a propriedade, por vezes, arbitrária do poder punidor.
A percepção de que no interior da instituição as relações hierárquicas são
construídas a partir de “intencionalidades” que não obedecem plenamente à ética profissional
que deriva do sistema de regras é uma das fontes dos antagonismos que se mantêm como
parte constitutiva do conteúdo das relações interpessoais. Sendo assim, para parte dos
policiais envolvidos na pesquisa as práticas punitivas são produto de um domínio imposto por
um segmento menor, nesse caso os oficiais; evidentemente tal domínio está fundamentado em
leis específicas e gerais conferindo a esse domínio um grau de impessoalidade caracterizada
pela formalização de objetivos. Porém, mesmo diante da consideração dos elementos formais
e legais da autoridade militar, persiste entre os entrevistados do presídio militar uma visão
crítica marcada por certa “desconfiança” sobre a objetividade e a transparência dos processos
disciplinares e criminais:

Pergunta: Ocorrem interferências externas ao processo no âmbito da


Justiça Militar?
Veja só, por estarmos no militarismo somos atingidos sim pela visão
hierárquica, eu mesmo me sinto um pouco constrangido e pressionado por
ser militar. Mas eu reconheço que na Justiça Militar a defesa segue o que a
lei manda, tenho um advogado que me orienta e me defende perante o juiz. É
muito diferente da punição disciplinar, lá as coisas ocorrem muito rápido, a
pressa de punir é o que orienta o procedimento.
(Soldado, 31 anos, 9 anos de serviço)

Na fala do entrevistado a “desconfiança” sobre o processo disciplinar não é


observável completamente em sua percepção sobre a legitimidade do processo judicial.
Podemos dizer que essa percepção “menos crítica” sobre a legitimidade dos processos que
tramitam no âmbito judicial se dá em virtude de uma estrutura de funcionamento do
1

judiciário, de sua autonomia em face aos imperativos da ideologia militarista e suas formas
correspondentes de controle institucional. De fato, a Justiça Militar têm desenvolvido junto
com as demais instâncias do Poder Judiciário um trabalho articulado no sentido de submeter
continuamente, por meio de sucessivas convocações, a atividade policial militar.
Nesse caso a autonomia do Judiciário em questões que se referem à investigação e
à apuração de possíveis transgressões cometidas por militares está gerando maiores
possibilidades de estabelecer, de fora, mecanismos de controle que recaiam sobre a conduta
profissional do policial militar. Para se ter uma idéia nos boletins gerais o Estado Maior da
Polícia Militar juntamente com a Ajudância Geral vêm desenvolvendo um trabalho de
publicização das convocações feitas pelo judiciário, corroborando para a ampliação dos
mecanismos de controle social e jurídico destinados à contínua “averiguação” de
regularidades cometidas por policiais no exercício de suas atividades profissionais. As
implicações dessa “publicização” se faz notar no montante de documentos denominados
128
“Aditamento” , infelizmente o acesso à totalidade dos documentos não foi possível por
problemas de acesso aos arquivos, haja vista estarem restritos ao controle da Ajudância Geral;
porém cabe ressaltar que o conteúdo disponibilizado no Aditamento se refere, em sua maioria,
às audiências especificando dados como dada, tipo de audiência e identificação do militar, não
sendo possível a partir desses dados averiguar os resultados posteriores dos processos
judiciais. Entretanto, a articulação entre comando geral e Poder Judiciário impõe uma estreita
relação de cooperação implicando, inclusive, na responsabilização disciplinar do policial que
não atenda à convocação da autoridade judiciária.
A “vigilância” feita pelas diversas instâncias do Judiciário, mais propriamente da
esfera criminal, em associação com a Justiça Militar tem se revertido em importante
instrumento de “avaliação” dos resultados e das ações relacionadas à atividade policial
militar. Porém, o formato institucional conferido aos demais procedimentos e meios de
controle da atividade policial – gerenciadas pela própria Corporação, envolvendo não somente
as praças, mas também o oficialato – deve passar por reformulações que possibilitem maior
visibilidade sobre o encaminhamento dos procedimentos e dos resultados pertinentes ao
fenômeno da violência policial e demais formas de desvio de conduta. A possibilidade da
sociedade civil em acompanhar o conjunto de ações desenvolvidas pela Corporação no
sentido de responsabilizar o policial militar é ainda um dos pontos problemáticos relacionados

128
Documento complementar ao BGO que traz de maneira complementar informações e decisões da autoridade
militar; uma das aplicações mais usuais do “aditamento” é a convocação de policiais militares para audiências,
versando sobre questões judiciais diversas.
1

ao desenho institucional das polícias militares (ZAVERUCHA, 2008). Convém indagarmos,


então, acerca dos efeitos gerados a partir da reorientação dos meios institucionais e judiciais
de controle da atividade policial sobre o “corpo da tropa” considerando, nesse caso, as
informações relacionadas ao “tratamento institucional” conferido ao problema da indisciplina
e do desvio de conduta.

4.3 O poder punidor: as configurações no plano das relações hierárquico-


disciplinares e as intervenções da autoridade militar sobre “disciplina da
tropa”

Jacqueline Muniz (2001), ao discorrer sobre os paradoxos da identidade da polícia


militar e suas implicações sobre a definição de seu papel no campo da segurança pública,
destaca dois aspectos de extrema relevância para se entender parte do processo histórico de
“desvirtuamento” da polícia militar: 1°) o desenho institucional “herdado” das Forças
Armadas e, portanto, apoiado no valor da disciplina e da hierarquia, abarcando os
fundamentos jurídicos e administrativos da organização da atividade profissional do militar; e

2°) a ideologia castrense representada pela incorporação, na base formativa e curricular do


policial militar, da “Doutrina da Segurança Nacional”, responsável pelo “desvirtuamento das
instituições policiais militares” (Idem, 185).

Para Jorge da Silva (1990) apud Muniz (2001, p. 186) o primeiro campo em que
deve se ressentir a reformulação das práticas de policiamento é o da formação profissional.
Esta deverá se orientar não mais para o modelo tradicional de policiamento, caracterizado
pelo investimento na formação de habilidades de combate e de enfrentamento do “inimigo”,
mas sim voltada para a “qualificação de um meio de força comedida cuja intervenção está
constrangida pelos princípios da legalidade e da legitimidade”.

As categorias da “legalidade” e da “legitimidade” estão presentes e são


fomentadoras do emprego do “método democrático de policiamento”. No interior desse
1

modelo de disposição da “força policial” se encontra a idéia de responsabilização


(acconability). Para Jorge Zaverucha (2008, p. 01) a “responsabilização contempla, também,
o respeito aos direitos humanos para e na Polícia”, servindo como diretriz de avaliação da
própria prática policial e de afirmação do papel da polícia no interior do ordenamento
societário democrático.

Os apontamentos acima feitos por autores que colocarem em questão as


implicações sociais, políticas, ideológicas e legais do militarismo, enquanto modelo de gestão
da atividade policial, na área de segurança pública evidenciam o problema o desenho
institucional o qual é responsável, grandemente, pelo direcionamento dos meios e dos
objetivos da prática policial. As exigências de eficácia e eficiência que recaem sobre a
instituição policial têm uma dupla dimensão; primeiramente apresenta a necessidade de
modernização na estrutura do serviço, abrangendo desde formação até condições materiais,
depois as exigências cobram o condicionamento das formas de policiamento aos imperativos
da lei, representadas sob a categoria “direitos humanos”. Nesse caso, a maior qualificação na
prestação do serviço de policiamento deve ser acompanhada proporcionalmente de maior
respeito aos direitos dos cidadãos.

Mas como o desenho institucional permite que, por exemplo, os abusos sejam
averiguados e as sanções se tornem efetivas para aqueles agentes da lei que desrespeitaram a
ética profissional? Quais os resultados que as formas de controle institucional têm operado no
interior da Corporação definindo inclusive o dimensionamento quantitativo do efetivo?

Nesse sentido, encontramos alguns aspectos interessantes, o primeiro deles é


sobre a relação indivíduo-instituição. Ficou bastante perceptível na leitura dos boletins a
presença de um fenômeno que poderíamos denominar de “dilatação” do tempo de aplicação
da punição. Esse fenômeno demonstra como o estabelecimento de procedimentos de
regulação das práticas de averiguação da transgressão tem gerado maior prazo de aplicação da
punição, em vista dos formalismos impostos pelo procedimento disciplinar. Os formalismos
conferem determinado nível de “respeito aos direitos de resposta”, mas também atuam como
fatores de “legitimação” do processo, resultando na legitimidade do ato de punir.
1

Todavia, a “demora” no processo tem relação com a própria natureza do

procedimento ou com a gravidade do objeto do processo. Enfocamos como objeto de análise


das relações disciplinares, três tipos de procedimentos (IPM, Sindicância e ITPM) cujos

resultados nem sempre eram publicados na 4ª Seção, pois havia orientações às respectivas
chefias acerca das “medidas cabíveis a serem tomadas”; no gráfico abaixo temos a relação de
apuração de crimes ou transgressões disciplinares que ocorreram no período entre 2001 e

2009:

Gráfico 11 - Procedimentos de apuração de crimes


ou transgressões disciplinares
2009

2007

2005

2003

2001

20 0 40 60 80

2003 2001
2004 2005 2006 2002 2008
ITPM 28 2007 2009 34
Sindicância 35 40
40 42 48 39 36
IPM 50 47
56 72
52 62 56 48 57
60 63
Fonte: Dados de pesquisa

O número de IPM é em todo o período o de maior quantidade superando os

demais procedimentos; ressaltamos que muitos desses IPM’s se originaram de solicitações e


instauração de processos assumidos pela ouvidoria e pela Ajudância Geral sob a forma de
encaminhamentos feitos pelos comandantes das diversas unidades militares. Dois percursos
distintos são feitos para a instauração do processo; quando vindo da Ouvidoria a queixa
1

assumida pelo ouvidor-chefe adquire a forma de um procedimento que terá a responsabilidade


de identificar e penalizar o autor da possível transgressão, para isso é designado um oficial
superior ou intermediário, dependendo da gravidade do delito, do posto ou da graduação do
acusado ou, ainda, da disponibilidade de oficiais. O poder do ouvidor-chefe para solicitar
abertura de procedimento é bastante, não havendo negativas do subcomando quanto à
instauração do processo. No caso das solicitações feitas pelos diversos comandos das OPM’s
o percurso é mais longo passando pela chefia imediata a qual está subordinada a unidade, para
somente depois ser remetida à Ajudância Geral; ressaltamos que as solicitações são
geralmente aceitas, havendo apenas ligeiras modificações quanto à natureza do procedimento;
tais modificações decorrem mais da possível e temporária insuficiência de oficiais que
estejam disponíveis para atuarem nos processos. Com o aumento da instauração de processos
disciplinares se tem cobrado bastante do oficialato no sentido de atuarem maciçamente como
agentes do aparelho disciplinar-judiciário.

A intensa movimentação do aparato disciplinar-judiciário da PMSE poderia


indicar uma correspondente alta na obtenção de resultados que comprovassem a efetiva
responsabilização dos militares acusados. Não podemos esquecer que a padronização dos
procedimentos tem se apresentado como uma forma de racionalizar a relação entre indivíduo
e instituição, mas ainda é muito inconsistente quando o assunto é qualidade dos serviços de
129
investigação e averiguação de delitos ; portanto, lançamos sobre a dimensão “investigativa”

disponível na instituição questionamentos que se referem diretamente aos princípios da

objetividade e da eficiência; talvez os dados abaixo permitam nos auxiliar na compreensão

sobre a “efetividade” dos mecanismos de responsabilização dos atos de abuso e de desvio de

conduta de policias militares:

129
O oficialato atua como gerente do processo disciplinar; agindo a partir de precário conhecimento judiciário.
Mesmo que se possa dizer que os oficiais “dominam” o código disciplinar, há conhecimentos jurídicos mais
amplos que requerem maior esclarecimento e domínio, além do que as interferências do coletivismo podem
atuar negativamente no resultado do processo, algo que não é eliminado pelo estabelecimento de procedimentos
padrões, embora tais padrões de prática judiciária sejam fatores auxiliadores no respeito às formalidades da lei.
Para se ter uma idéia na grade curricular dos cadetes das Academias de Alagoas, Bahia, Paraíba e Pernambuco as
disciplinas que versam sobre direito militar abrangem juntas uma carga horária de 60 horas/aulas, sendo as
seguintes disciplinas: Código Penal Militar, Código Processual Penal Militar e Inquérito Policial Militar.
1

Gráfico 12 - Cu lpados e inocentes no IPM e cia


Sindicân
Culpados Inocentes

36%

64%

Fonte: Dados de pesquisa

Os resultados de procedimentos disciplinares, relacionados às “faltas” do militar


em relação ao serviço e ao superior hierárquico (exemplos: desrespeito, ausências e atrasos,
não cumprimento de prazos regulamentares, etc.), são mais explicitamente efetivos no sentido
de que há uma tendência do aparelho disciplinar em penalizar os transgressores de regras de
conduta que afetam o “andamento do serviço” e o convívio entre militares no interior da
hierarquia. Como indício dessa efetividade “penalizadora” os textos da 4ª Parte e os dados
apresentados na tabela 01 – Ocorrências anuais de Transgressões Disciplinares (2001-2008) –
revelam muito bem a constância do fenômeno da indisciplina militar e as constantes
intervenções da autoridade no campo da disciplina.

Em parte o grande número de resultados positivos no processo disciplinar pode


ser explicado pelo fato de que os procedimentos de “apuração de transgressões”, feitas por
meio de formulário e razão de defesa, são realizados de maneira sumária, havendo um tipo de
“pré-julgamento” da conduta do militar feita pelo superior. Nesse tipo de relação o “acusador”

representa uma razão superior, aquela que é mobilizada pela autoridade e cuja finalidade é a
afirmação dos valores da instituição. Na lógica de tais procedimentos podemos visualizar

ainda a predominância de um princípio que orienta a avaliação da culpabilidade do

transgressor: a exigência de documentação comprobatória das razões motivadoras de


1

determinada conduta. Nesse caso, somente é justificável o que é formalmente comprovado, ou


seja, aquilo que é documentado e aceito como “plausível” (expressão bastante utilizada nos
textos punitivos para informar que os motivos apresentados têm fundamentos legítimos) pelo
130
conjunto de orientações da autoridade militar . A possibilidade de “dizer o que aconteceu”,
de relatar o fato explicitando os motivos e circunstâncias originadoras de determinado evento
é minimizada pela necessidade de se “provar e comprovar” empiricamente e
documentalmente os “reais motivos”. Na gíria militar existe uma expressão que ilustra muito
bem essa incapacidade de se justificar perante o superior: “isso explica, mas não justifica”.

Embora o procedimento disciplinar funcione sob a interferência dos princípios


que regem a racionalidade do processo jurídico, estabelecendo tempo de defesa, possibilidade
de constituir defensor e de apresentar testemunhas, devemos considerar que nesse tipo de
procedimento temos a submissão dos conteúdos de defesa, apresentados pelo acusado, ao
oficial responsável. Dessa forma podemos indagar sobre as implicações do acúmulo de papéis
e sua interferência sobre o andamento e o resultado dos procedimentos. Na tabela abaixo

130
Nos boletins gerais encontramos diversos exemplos de intervenções da autoridade militar no sentido de
resolver determinados impasses gerados no interior da vida militar; geralmente esses “impasses” se referem
ao gozo de direitos como demonstra o trecho a seguir:
1 - REPOUSO E DISPENSAS MÉDICAS - ORIENTAÇÃO – Somente os Médicos Militares do Hospital da
Polícia Militar podem emitir ou homologar REPOUSO E DISPENSAS médicas para Policiais Militares: - Em
conseqüência: a) Os repousos e dispensas assinados por médicos civis deverão ser homologados pelos Médicos
Militares do HPM; b) Os Comandantes de Unidades, Subunidades e os Oficiais-de-Dia deverão obedecer na
íntegra esta orientação, sob pena de serem responsabilizados; c) Nos casos de abusos detectados, os Policiais
Militares deverão permanecer repousando na OPM, até a homologação do Médico Militar. (BGO, n° 07, 10 de
janeiro de 2001, 3ª Parte - Assuntos Gerais)
No BGO nº 56, em março de 2010, o Comando Geral estabeleceu novas orientações acerca do direito de
dispensa do serviço, mais especificamente aqueles motivados por incapacitações temporárias de serviço por
motivos de saúde; entre as orientações há imposição de cumprimento de horas pelo militar, ficando determinado
que o policial se apresentasse pronto para o serviço longo após o fim do afastamento por prescrição médica; essa
orientação fere explicitamente o direito de dispensa previsto no Estatuto dos Policiais Militares, mas confirma a
preocupação da autoridade militar em manter os níveis de produtividade do serviço. Tal preocupação é
verificada desde o período de formação quando o Corpo de Aluno tem a competência, dentre outras, para
“controlar o número de dispensas e baixas médicas dos alunos” (Regulamento Interno do CFAP, Cap. VI, item
IX). No comando do cel. Osvaldo Santos Bezerra identificamos semelhante preocupação com a manutenção da
“produtividade” do serviço, novamente responsável pela alteração de um direito previsto também no Estatuto
dos Policiais Militares:
2 – CHEFIA DO EMG – DOAÇÃO DE SANGUE – Devido às constantes faltas aos serviços de escala, onde
policiais militares resolvem doar sangue no dia em que estão de serviço, prejudicando o policiamento e
consequentemente a comunidade, DETERMINO aos doares que o atestado de doação seja entregue na OPM no
mesmo dia, e aos respectivos comandantes que remanejem os doares na escala para o dia imediatamente
posterior à doação, uma vez que o Art. 2º da Lei nº 1.075 de 27/03/1950 prevê a dispensa no dia da coleta do
sangue. (BGO nº 022, 31 de janeiro de 2001)
1

temos breve e sucinta representação da estrutura hierárquica e a previsão genérica das


competências cumpridas pelos diversos estratos:
Figura 03 – Hierarquização e “Círculos de Vivência” da PMSE
Hierarquização na Polícia Militar de Sergipe
(art. 14 do Estatuto dos Policiais Militares)
CÍRCULO Círculo de Oficiais Coronel PM Os oficiais que compõem
os131 círculos superior,
DE OFICIAIS Superiores Tenente-Coronel intermediário e subalterno
POSTOS PM são preparados, ao longo de
Major PM sua carreira, para exercer
funções de comando,
chefia e direção.

Círculo de Oficiais Capitão Na cadeia de comando e


Intermediários controle, os oficiais
intermediários - em
Círculo de Oficiais 1º Tenente PM particular, os capitães
Subalternos 2º Tenente destacam-se como o
principal elo de
comunicação com o círculo
das praças.
Círculo de Subtenente PM Os Subtenentes e Sargentos
auxiliam e complementam
Subtenentes e 1º Sargento PM as atividades dos Oficiais,
Sargentos 2º Sargento PM quer na administração e no
CÍRCULO 3º Sargento PM emprego dos recursos
materiais e humanos, quer
DE PRAÇAS na instrução e no
adestramento das praças.
Devem ainda desempenhar
as atividades de
policiamento ostensivo
peculiares à Polícia Militar.
Círculo de Cabos e GRADUAÇÕES Cabo PM Os cabos e soldados são,
Soldados Soldado PM 1ª essencialmente, os
Classe profissionais que devem
Soldado PM executar as tarefas de
policiamento
Engajado
Soldado PM Não
Engajado
Estatuto dos Policiais Militares do Estado de Sergipe (Decreto n° 2.066, 23 de dezembro de 1976)

O oficialato além das funções de chefia e liderança conferidas pelo regulamento;

não obstante o papel de “comandante”, em ordem de serviço, exercido pelo oficial, este

exerce concomitantemente funções disciplinares e judiciais; atividades estas previstas,

também, no conjunto das leis específicas da instituição militar. A participação do oficialato

em procedimentos administrativos e judiciais abre brecha para indagarmos sobre a necessária


131
As observações foram extraídas do texto de Jacqueline Muniz (2001).
1

dissociação de papéis entre a figura do comandante (dominado pela visão de disciplina e


orientação da tropa) e a do “inquiridor/investigador” (orientado pelos pressupostos técnicos
do procedimento administrativo ou judicial), como requisito indispensável de preservação dos
critérios de racionalidade típicos do procedimento jurídico ou administrativo.

Se há uma contínua exigência – não necessariamente imposta e determinada de


dentro, mas apresentada como resultado de pressões sociais vindas de meios como a imprensa
local, instâncias do judiciário, organizações civis, etc – quanto à transparência, à regularidade
e à objetividade dos procedimentos disciplinares é preciso observar no interior dessas
exigências quais são as implicações da dupla condição do oficial sobre o desenrolar do
processo? Como dissociar o papel de inquiridor e do papel de agente disciplinador? E quanto
ao “julgamento” de questões de indisciplina, não há vício na perspectiva avaliativa da
transgressão decorrente da situação do sujeito na hierarquia?

No gráfico 12 – Culpados e inocentes em IPM’s e sindicâncias – a apresentação


do percentual de inocentes e culpados em IPM’s e sindicâncias indica que mais da metade dos
processos não resultaram em sanções para os acusados de transgressões/crimes, sendo que
apenas 36% dos procedimentos identificaram a culpa de policiais militares. Destacamos ainda
que do montante de procedimentos instaurados (os que foram publicados em boletim chegou
ao número de 1043 procedimentos) 15% foram instaurados pela própria autoridade
hierárquica e versavam sobre “problemas de disciplina militar”, enquanto que os demais 85%
foram instaurados para averiguação de culpabilidade de militares em atos envolvendo abuso
de autoridade ou desvio de conduta, tendo por vítimas cidadãos. Dos 85% de procedimentos
instaurados para averiguação dos abusos cometidos por militares contra civis, apenas
aproximadamente 11% identificaram a autoria e a culpabilização de militares, resultando em
penalizações estabelecidas pelo regulamento disciplinar.

Sobre as penalizações impostas pela autoridade militar aos policiais culpados


identificamos a utilização do regulamento disciplinar como referencial dominante para
avaliação da conduta e seus desvios. Nesse tipo de perspectiva o delito ou o crime são
classificados genericamente como transgressões reclamando sanções meramente disciplinares
ou administrativas; essa forma de tratamento pode se constituir numa maneira de minimizar o
1

significado social e ético do desvio de conduta, pois uma vez que o crime é concebido como
transgressão o caminho percorrido pelo processo de “investigação” se dá no interior da
instituição, sob a gerência de sujeitos pertencentes à própria Corporação; não que isso
constitua um problema, mas o desenho institucional impresso no conjunto de procedimentos
disponíveis na polícia militar pouco ou nada favorece o acompanhamento feito de “fora”, pela
sociedade civil. (ZAVERUCHA, 2004)

Zaverucha (2004, p. 12) em um de seus artigos, “Superior Tribunal Militar: entre


o autoritarismo e a democracia”, faz uma crítica ao judiciário militar apontando neste os
riscos decorrentes da especialização de um ramo do Poder Judiciário estreitamente ligado ao
segmento sócio-político constituído pelos militares. A defesa dos valores institucionais e a
consolidação da ética do grupo, respaldada no acúmulo de experiências políticas e sociais
bastante significativas na história brasileira, são os traços marcantes da atuação do STM.
Outro aspecto apontado pelo autor está relacionado à concepção, fundadora de um tipo de
132
mentalidade, que diz que o militar deve ser julgado por outro militar ; tal defesa decorre da

hipótese de que a natureza particular da função e do agente exige a pré-existência de


conhecimentos formados no cotidiano da vida castrense. A participação de militares, no caso
em questão o oficialato, nos processos judiciais e administrativos se dá de maneira maciça,
seguindo as prescrições dos códigos e regulamentos específicos; todavia, mesmo diante de tal
participação devemos concordar com o autor quando o mesmo aponta as insuficiências da
formação do oficialato no campo dos saberes jurídicos. O manuseio do regulamento e da
legislação específica não garante, de antemão, o devido respeito aos princípios jurídicos do
ordenamento societário em que está inserida a instituição militar.

Sobre a formatação do fenômeno do desvio de conduta de policiais e suas relações


com a estrutura hierárquica passemos a considerar os dados seguintes. Sendo assim, no
gráfico 13 que segue abaixo temos a identificação hierárquica dos militares “culpados em
procedimentos”, evidenciando, como foi observado nos dados sobre a 4ª Parte, que a maior

ocorrência de delitos é praticada por soldados (41%) e cabos (36%); ambos agentes

132
Cita Zaverucha (2004, p. 12): “Obtempera o ministro Moreira Alves que o juiz singular, por mais
competente que seja, não pode conhecer as idiossincrasias da carreira das armas, não estando em condições de
ponderar a influência de determinados ilícitos na hierarquia e disciplina das Forças Armadas”.
1

localizados na linha de frente da atividade policial militar. De fato, a localização do sujeito na


hierarquia pode submetê-lo mais freqüentemente à exposição de situações de risco; soldados,
cabos e sargentos são os segmentos inferiores da estrutura hierárquica e, também, os sujeitos
responsáveis pela execução das atividades de policiamento. Quanto mais distante da linha de
frente, em termos hierárquicos, menor a probabilidade de se envolver numa ocorrência que
represente risco para a segurança individual do militar; todavia, ressaltamos que esse

distanciamento – conforme os dados dos gráficos 12 e 13 – originaram um dos traços


caracterizadores do perfil do militar culpado em processos administrativos, ou seja, os
segmentos hierárquicos representados pelos sargentos e pelos subtenentes são,
comparativamente aos dados referentes aos soldados e aos cabos, de menor expressão

numérica; de modo, que a graduação de subtenente alcançou apenas 1% do universo


pesquisado.

Gráfico 13 - Distribuição de culpados em


ad procedimentos ministrativos por grau
hirarquico

1%
22%

41 Soldado
%
Cabo

36% Sargento
Subtenen
te

Fonte: Dados de pesquisa

“No caso dos militares, se lhes sobra conhecimento da realidade da caserna,

faltam-lhes, por completo, conhecimentos jurídicos, preparo técnico, este sim essencial”
(Zaverucha, 2004, p.12); de fato, o despreparo técnico e a falta de conhecimentos jurídicos
constituem sérios e graves problemas para a solidez da instituição judiciária militar,
1

refletindo-se também sobre as demais práticas de controle exercidas pela própria polícia
militar sobre seus membros. Os efeitos gerados pelos fatores acima citados são ainda mais
potencializados pela ausência de formas de controle que recaiam sobre os mecanismos
institucionais de controle da conduta dos sujeitos. Resta saber se na polícia militar de Sergipe
os mecanismos de controle estão sendo controlados por instâncias que não se encontrem no
horizonte institucional.

Os dados apresentados pelo gráfico 14 – IPM’s e sindicâncias arquivados – coloca


em evidência a necessidade e a conveniência de haver a mobilização de formas de vigilância
organizadas de “fora” e que se destinem a “policiar” as ações de controle e vigilância
executadas pela PM, demonstrando os resultados efetivos do aparelho coercitivo.

Gráfico 14 - IPM's e Sindicâncias arquivados


Sem identificação
da vítima
20% Sem autoria
identificada
12%

Por insuficiência de
provas
68%

Fonte: Dados de pesquisa

Em todos os procedimentos instaurados contra militares, cuja denúncia não


indicava a vítima o resultado apontou para a inocência do policial acusado. A não
identificação da vítima pode ser visto, no caso em questão, como um fator condicionante da
apuração dos fatos, pois a existência de vítima e seu “engajamento” no processo induzem
possivelmente à maior exigência na qualidade das atividades de “investigação”, mantendo as
condições mínimas de controle social exercido de fora, permitindo, dessa forma, que a
1

ocorrência, ao longo do processo, de ilegalidades ou omissões sejam denunciadas. A tutela


militar, mencionada por Oliveira e Soares (2000, p. 100), produzida no interior das relações
políticas entre civis e militares, cuja consolidação se deu mais intensamente no período de
dominação autoritarista dos militares à frente do governo no Brasil, traduz a lógica de
preservação de interesses implicando na reconfiguração de mecanismos de controle interno e
externo.

Para Oliveira e Soares (2000) mesmo diante da consolidação da democracia no


Brasil os militares ainda preservaram diversos elementos de sua mentalidade de
autopreservação. Nesse ponto, podemos dizer que o militarismo manteve estruturalmente uma
série de práticas responsáveis pela reduzida exposição de ações à opinião pública. Talvez um
dos fatores de maior exposição de problemas que afetam o rendimento das ações
desenvolvidas pelos policiais militares seja a mídia em suas mais diversas modalidades.
Todavia, esse meio de reconfiguração das condições de audiência pertinentes às ações de
diversos agentes de segurança pública ainda esbarra no conjunto de práticas burocráticas de
controle interno que pouco beneficia o acompanhamento de fora. Os oficiais são os mais
beneficiados com o controle das informações e o desenho institucional configurador das
práticas de controle interno que, nesse caso, são geralmente marcadas por excessiva restrição
de acesso às informações. Para se ter uma idéia a pesquisa no Arquivo Geral da PMSE foi
marcada por sérias restrições de acesso aos documentos que apuravam infrações cometidas
por oficiais; essas informações não são publicizadas internamente, diferente dos
procedimentos que se referem à apuração de transgressões ou delitos cometidos por “praças”.
Nesse caso o BGO cumpre a função de meio de difusão de informações, estendendo a
possibilidade de acompanhamento da abertura e do desfecho dos procedimentos. O mesmo
não ocorre com os oficiais cujos atos de delituosos são publicados, não necessariamente, em
133
Boletim Reservado

133
Nos documentos pesquisados pouco se constatou problemas de desvio de conduta que se referisse a oficiais,
porém isso não significa dizer que não há problemas envolvendo oficiais. Muitos dos processos movidos contra
oficiais foram localizados no Arquivo Geral da PMSE, mas não publicados em BGO ou em BGR, dificultando
ainda mais o acompanhamento do processo, estando completamente sob a responsabilidade da autoridade militar
o andamento do processo; caracterizando-se nesse caso a ausência de meios efetivos de acompanhamento feito
por pessoas ou entidades situadas fora da instituição militar. Infelizmente por razões alheias à pesquisa, não foi
possível utilizar as informações coletadas no BGR, por não ter sido concedida permissão de acesso aos
1

Nesse sentido, Zaverucha (2004), Oliveira e Soares (2000)134 reafirmam, por

exemplo, o papel dos mecanismos externos, organizados pela sociedade civil e poder público,
sobre as práticas de responsabilização dos agentes de segurança pública. Esse “controle
externo” de práticas de “controle interno” não somente atua no sentido de indicar possíveis
desvios do poder disciplinador, mas serve, também, como elo que co-relaciona as estratégias
de ação promovidas pela instituição ao teor das práticas de “vigilância” que devem recair
sobre os agentes, cobrando-lhes o devido compromisso às obrigações impostas pela ética
social e profissional. Um dos efeitos produzidos pelo tipo de tratamento conferido pela

instituição ao problema do desvio de conduta e que tem relação com o formato das

ferramentas de controle interno pode ser representado pelo gráfico abaixo que traz uma breve
ilustração sobre o resultado das punições aplicadas à indisciplina e de punições aplicadas
devido a prática de delitos contra civis e/ou militares:

Gráfico 15 - P unições disciplinares e punições decorrentes


transgressões ou de crimes praticados contra civil ou militar
(2001-2

009)
13%

Puniçõe

s disciplinares

Puniçõe
87%
(transgr
pratic s disciplinares
ad essões ou
militar crimes os
) contre civil ou
Fonte: Dados de pesquisa BGO

documentos. No entanto, a leitura dos mesmos se deu pela disposição de poucos documentos no Arquivo Geral
da PMSE.
134
Stepan (1988) apud Eliezzer diz o seguinte sobre o status dos militares e seus reflexos no contexto social e
político brasileiro: “caracteriza essa situação como um elevado nível de prerrogativas militares nos regimes pós-
autoritários e entende-as como referidas “àqueles espaços sobre os quais, existindo ou não contestação, os
militares, como instituição, pressupõem que adquiriram o direito ou privilégio, formal ou informal, de exercer
um controle efetivo. Neste sentido, consideram-se no direito de controlar sua organização interna, de
desempenhar um papel nas áreas extramilitares dentro do aparelho de Estado, ou mesmo de estruturar as
relações entre o Estado e a sociedade política ou civil”. (D’ARAÚJO, Maria Celina, et al. 2000, p. 102)
1

Há, portanto, uma inclinação dos mecanismos de controle em se punir mais os


desvios de conduta que ferem as relações hierárquicas, tratando-os a partir do regulamento e o
constituindo como objeto de interesse prioritário da instituição. Todavia, uma explicação
possível aos dados acima pode ser retirada da própria disposição das relações hierárquicas;
não devemos esquecer que o oficialato atua pela norma disciplinar e a partir desta orienta os
procedimentos, sem se prender completamente à noção de direito e de dever que se encontra
além das normas disciplinares específicas. Com isso queremos dizer, a título do que já se
comentou em momento anterior, que o oficialato mobiliza ferramentas de controle onde a
acusação de indisciplina reduz em muito a possibilidade de defesa do militar, pois não há
controle externo sobre o modo como o procedimento é realizado; inexistindo algum setor ou
órgão que atue na função de limitador da legitimidade e da legalidade do aparelho disciplinar.
Os dados do Gráfico 16 indicam a reduzida possibilidade de contestação e de reavaliação da
punição, sendo comumente representada pela primeira ação de “pedido de reconsideração de
ato”, feita por meio de formulário não padronizado, em que são apresentadas as razões do
pedido de indeferimento da punição. Na “reconsideração de ato” o militar corre o risco de ter
agravada a sua punição, caso o mesmo, em seu esforço de argumentação, consiga produzir
algum tipo de circunstância atentatória aos valores da hierarquia. Ressaltamos que o mesmo
oficial que puniu é, muitas vezes, o mesmo que irá avaliar o conteúdo da solicitação do
policial militar. O controle exercido pelo oficialato, em termos de disciplinarização pelo
regulamento, dá-se sob condições extremamente favoráveis, pois os níveis de contestação por
parte do subordinado em relação à legitimidade do poder punidor é baixíssimo. Vejamos os
dados que se seguem:
1

Gráfico 16 - Resultados de pedidos de reconsideração de ato


punitivo da autoridade militar (2001-2009)

2
5

2
0

1
5

1
0

0
2001-2002 2003-2004 2005-2006 2007-2009
pedidos de reconsideração de
3 8 7
ato aceitos
4

pedidos de reconsideração de
5 23 2
ato negados
20
Fonte: Dados de pesquisa BGO

Os “pedidos de reconsideração de ato” são muito menores se comparados com o


volume de punições aplicadas anualmente aos policiais militares. A reduzida freqüência de
tais pedidos se dá em virtude do caráter afirmativo da punição, visto como ato definitivo e
incontestável. Nos dados acima a freqüência de pedidos aceitos é, em comparação com os
pedidos negados e parcialmente aceitos, bastante reduzida. Tivemos acesso a alguns
formulários de reconsideração de ato e às decisões da autoridade que se encontravam no
Arquivo Geral, sendo que as solicitações selecionadas se referiam a policiais militares
vinculados à CCSV do QCG. Nestes documentos os argumentos versavam geralmente sobre
erros da imputação do fato transgressivo; dos 22 formulários de reconsideração de ato 19
tinham como acusação a falta ao serviço, enquanto que nos 03 restantes o motivo era atraso.
Em todos os documentos os argumentos foram carentes de provas materiais, recorrendo
apenas à nomes de terceiros que atestariam a não veracidade da acusação.

A ausência de documentos comprobatórios da inocência do militar acusado e a


vaga referência a nomes de possíveis testemunhas lançam uma suspeita sobre o modo como a
1

acusação é feita e gerenciada pelo oficialato. As relações de aproximação pessoal entre


acusado e sujeitos influentes no processo podem ser indicadas como elementos de
comprometimento da objetividade do procedimento. Outra suspeita recai sobre a própria
veracidade do elemento de acusação, indicando possíveis arbitrariedades no momento de se
indicar o acusado. A contestação do ato e o resultado positivo de seu pedido feito pelo militar
não produzem efeitos de “desprestígio” ou de crítica ao poder disciplinador, o que, ao menos,
deixaria visível a fragilidade e as incongruências do processo disciplinar.

O único registro nos boletins gerais referentes à possibilidade do poder


disciplinador ser submetido a uma avaliação crítica de seus atos pela própria instituição se deu
na gestão do coronel José Péricles Meneses de Oliveira por meio da criação da
135
“Coordenadoria de Defesa dos Direitos dos Militares da Polícia Militar” (CODEM) . Este
setor funcionaria como meio de controle sobre práticas “abusivas” que seriam responsáveis
por lesionar os direitos dos policiais militares; no trecho seguinte temos a apresentação das
finalidades do CODEM:

Considerando a necessidade urgente da Polícia Militar adotar providências


com vistas à defesa dos direitos dos policiais militares, que muitas vezes são
lesados e sofrem prejuízos no gozo de alguns benefícios;
Considerando que o desrespeito aos direitos dos policiais militares é fator
gerador de desmotivação no seio da tropa, o que pode provocar uma perda
de qualidade no serviço prestado ao cidadão,
Considerando que dentro da política de comando, no tocante aos direitos
humanos, o respeito aos direitos do policial militar deve ser prioritário, posto
que a prática da valorização da dignidade humana deve começar dentro da
corporação. (BGO, nº 015, 26 de janeiro de 2006)

A referência, no trecho acima, aos atos prejudiciais à defesa dos direitos do

policial militar, classificado em momento posterior como um cidadão e, portanto, portador de

uma dignidade reconhecida jurídica e socialmente, torna-se objeto de atuação da

coordenadoria. O papel desempenhado pela CODEM no interior da PMSE apontaria para a

135
Criado pela Portaria nº 008/05-GCG, de 25 de janeiro de 2005, e publicado no BGO nº 015, de 26 de janeiro
de 2005. A estrutura de funcionamento desta coordenadoria contaria com os seguintes membros, conforme prevê
o artigo 1º, parágrafo 1: “I – 01 (um) Oficial Superior, que atuará como presidente da mesma; II – 01 (um)
Oficial intermediário que atuará como Adjunto; III – quantos Praças forem necessários para atuar como
auxiliares”.
1

reformulação das relações hierárquicas e disciplinares, tendo como campo particular de


atuação a forma como a instituição, por meio de seus agentes, exerce o poder disciplinar. A
“reavaliação” dos atos administrativos proposta pela portaria que cria a CODEM é um indício
de que arbitrariedades foram cometidas e possivelmente poderão ocorrer no interior da
instituição, sendo preciso, para tanto, rever as condições de defesa do policial militar e a
própria legitimidade do poder disciplinar.

Entretanto, a criação de um setor como a CODEM se limitou à uma visão


particular de comando do policiamento e das relações hierárquicas. A atuação da CODEM
esteve restrita à permanência do “seu criador” à frente da PMSE, não tendo expressividade,
nem sequer permissão para atuar na gestão dos demais comandantes gerais. Apesar de sua
limitação duração a CODEM serviu como exemplo esporádico de decisão administrativa que
reconhecia a existência de arbitrariedades no interior da Corporação e que assumiu
notoriamente a tarefa de repensar o conteúdo das relações entre indivíduo e instituição,
inserindo nessa um elemento democrático marcado pela participação de outras entidades
136
vinculadas à polícia militar . O respeito aos direitos do policial militar, enquanto resultado

do reconhecimento de sua dignidade de pessoa humana e de cidadão pleno de direitos e de


deveres, é elemento de um discurso que transpareceu na gestão do coronel José Péricles
Menezes de Oliveira e que serviu de base para a formação de uma mentalidade que tentava
romper as amarras de um domínio, por vezes, arbitrário exercido por sucessivas gestões da
polícia militar de Sergipe.

Nesse sentido, pode-se dizer que a discussão sobre legalidade e legitimidade


conduziu o oficialato à reflexão sobre as condições de exercício do poder disciplinar no
interior da instituição e também no contexto da sociedade democrática. Surgia e se
consolidava a preocupação com o fundamento jurídico do ato de punir, colocando em
segundo plano a necessidade maior de se repensar aspectos centrais da prática policial
representados na forma como a instituição prepara o profissional de segurança pública para

atuar na sociedade.

136
No Capítulo I, artigo 1º, parágrafo 2, lê-se o seguinte: “Cada entidade representativa dos policiais militares
poderá indicar um membro para atuar na CODEM”. Esse item insere uma perspectiva participativa reforçando a
dimensão participativa da proposta apresentada pela CODEM.
1

Sendo assim, pensaram-se as práticas de controle interno de um ponto de vista


estritamente jurídico. Desse modo, fundamentar os atos da autoridade seria a forma mais
eficaz de impedir que esses atos fossem invalidados por outras instâncias do poder jurídico ou
do poder público.

A criação e, conseqüente, padronização de práticas de responsabilização


administrativa feita, por meio da Portaria nº 002/02, de 11 de março de 2002, que definiu no
âmbito interno qual o caminho a ser percorrido para que os “direitos de resposta” fossem
respeitados era um dos indícios da necessidade de adequação do poder disciplinar aos
imperativos normativos do regime democrático. A fundamentação jurídica dos atos da
autoridade militar era o objetivo mais diretamente atingido pela referida portaria. As
expulsões não mais seriam atos arbitrários do comando geral, mas resultado de uma
“avaliação” institucional do policial militar quanto ao mérito de sua permanência nas fileiras.

Ressaltamos que o Procedimento de Licenciamento de Praças sem estabilidade, ao


qual se refere à Portaria nº 002, constitui apenas uma faceta do processo administrativo; há
outras fundamentações jurídicas para a decisão de expulsão do militar das fileiras da
Corporação: o Código Penal, o Código Processual Militar, RDE, etc.

Porém, o que se percebeu nos dados sobre exclusão entre 2001 e 2009 é a
contínua intervenção do Poder Judiciário cujo papel tem se caracterizado pela ativa
participação nos processos judiciais envolvendo militares, cobrando, nesse caso, que a
instituição policial produzisse resultados no campo da investigação administrativa e criminal.
Sobre os efeitos da responsabilização de erros e desvios de conduta cometidos por militares,
apresentamos logo abaixo a série de expulsões feitas pelo Comando Geral; expulsões estas
definidas de “a bem da disciplina”, ou seja, resultantes de ato unilateral da autoridade,
fundamentada em decisões tomadas no âmbito institucional ou em articulação com decisões
de instâncias do poder judiciário.
1

Gráfico 17 - Exclusões a bem da disciplina (2001-


2009)

Exclusões a bem da disciplina (2001-2009)

31

26

15
14

9
6 7 6
8

Fonte: Dados de pesquisa PM-1, Arquivo Geral da PMSE

Contribuindo para uma observação brevemente comparativa sobre alterações

numéricas do efetivo da tropa da PMSE, o gráfico 18 traz informações sobre “entrada e


137
saída” de policiais militares nas fileiras da Corporação. O número de casos de expulsões é

bastante reduzido se comparado com as entradas na instituição que ocorreram, segundo o

período estudado, nos anos de 2002 e 2005-2006. Nesse período houve um salto quantitativo

no número de policiais militares por meios de concurso público para soldado. As saídas a

pedido (exoneração) são numericamente muito próximas das saídas por expulsão, chegando

mesmo a superar como ocorre no ano de 2006. Infelizmente informamos ao leitor que a

precisão dos dados não é completa, pois a contagem se deu por meio de boletim geral e de

informativos sobre o efetivo (da tropa), emitidos pela PM-1; possíveis desencontros

decorrem, em parte, da falta de controle sistemático da instituição sobre a tropa.

137
Os dados do gráfico 18 foram apresentados para facilitar a visualização dos “tipos” de saída da instituição e
demonstrar, em contrapartida, o impacto numérico da “entrada” de militares – que no caso em questão se deu,
como prevê a legislação estadual e militar, por meio de concurso público – sobre o efetivo da PMSE. O perfil
socioeconômico dos “recrutas” dos cursos de formação dos anos de 2002, 2005 e 2006 poderia servir como
objeto de análise para o estudo das implicações sobre a identidade do militar, podendo-se incluir nessa pesquisa
as relações entre níveis de formação escolar (ocasionadas na “vida civil”) e o perfil do policial militar pretendido
pela instituição. No entanto, para os fins da presente pesquisa os dados servem como panorama de compreensão
da dinâmica de rotatividade de policiais na instituição, conferindo particular enfoque sobre as saídas ocasionadas
por decisão unilateral da instituição, como resultado do aparato de controle e de responsabilização administrativa
e criminal de militares.
1

Gráfico 18 - Entrada e saída de militares nas fileiras da


Corporação
(2001-
2009)

2007-2009

2005-2006

2003-2004

2001-2002

0 200 400 600 800 1000

2001-2002 2003-2004 2005-2006 2007-


2009 excluído por falecimento 12 9 17
21 exoneração a pedido 23 18 26
19
SaídaDados
Fonte: por exclusão a bemPM-1,
de pesquisa da Arquivo Geral da PMSE

Conforme o gráfico 17, entre 2002 e 2004 é registrado a maior ocorrência de


expulsões “a bem da disciplina”, totalizando 72 casos. O inverso ocorre no período restante
(2001; 2005 a 2009), onde se registrou uma regularidade do número de expulsões. O
fenômeno da violência policial, expressão maior do problema do desvio de conduta, é a causa
central para se explicar as sucessivas expulsões a bem da disciplina. Em boletins datados até
final da década de 80 muitas expulsões se davam como resultado de procedimentos
administrativos, sem a participação de instâncias do judiciário. No processo gerido pelo
comando geral era decretada, em casos de militares com menos de dez anos de serviço, a
expulsão. Em casos envolvendo militares com mais de dez anos de serviço o procedimento
era mais completo, sendo gerido pelo Conselho de Disciplina.

No entanto, o material pesquisado, cuja representação se revela no gráfico acima,


indicou o resultado de expulsões que foram geridas pela Justiça Militar, às vezes, dependendo
da gravidade, em consonância com demais instâncias do Poder Judiciário. No caso das
1

expulsões tratadas no período de estudo, a participação do Conselho de Disciplina se deu


somente em termos de homologação da decisão judicial; apesar de termos verificado a
abertura de comissões para avaliação do mérito de permanência de policiais nas fileiras da
Corporação não foi identificado o resultado algum que confirmasse a expulsão de militar por
motivos estritamente disciplinares. Isso demonstra a existência de um trabalho reticente
desempenhado pelo Conselho de Disciplina que deveria exercer papel mais ativo no interior
das relações disciplinares.

O desempenho dos mecanismos de controle interno – os Conselhos de Disciplina


e de Justificação são os de maior importância dentro da estrutura de controle disciplinar –
contrasta com os resultados obtidos pela Justiça Militar, sendo as expulsões um dado que
confirma as sucessivas intervenções do judiciário no interior da instituição policial.

De fato, a abertura de Conselhos de Disciplina e de Justificação é tida como


medida complementar as ações do judiciário militar surgindo como etapa posterior da
consolidação dos resultados parciais obtidos pelo processo judicial. Dois campos de controle
da atividade policial são visivelmente formados, o primeiro se relaciona ao controle cotidiano
das ações dos sujeitos, constituindo o nível mais fundamental da vigilância. Esta ocorre sob a
forma de práticas disciplinares feitas sobre a base regulamentar da conduta, infiltrando-se na
hierarquia e nas redes de conexão interpessoal que compõem o ambiente profissional
castrense. O segundo campo é o do controle sistemático e racional feito pela instituição
judiciária militar e demais instâncias do poder judiciário que evocam para si a tarefa de
exercerem de maneira fragmentária (ou articulada) o controle social da atividade policial
militar, processada, de maneira preliminar, a partir de audiências que versam sobre
138
procedimentos executados por diversos policiais em suas rotinas de trabalho .

O controle administrativo não deve estar afastado dos objetivos de “avaliação” da

atividade policial propostos pelo Poder Judiciário e pela sociedade civil. Conforme Leirner

(1997) a disciplina militar mantém um significado extremamente condizente com o contexto

onde se formam as relações hierárquicas que também são, em sua forma e significado,

138
Conforme demonstra a listagem publicados nos aditamentos de BGO que fazem o chamamento de policiais
militares para audiências em diversas instancias do judiciário.
1

relações disciplinares; porém, convém questionarmos o tipo de relação que o controle


disciplinar mantém com o controle social da atividade policial. Os objetivos propostos pela
disciplina militar não estão necessariamente subordinados às exigências impostas pela
sociedade democrática que cobra a formação de policiais profissionalmente preparados para
aturarem em conformidade com os imperativos da lei. A disciplina é vista pelos próprios
militares como uma maneira de garantir o “respeito”, a regularidade do serviço e de impor
pela via da coerção, estipulada numa infinidade de itens de conduta e potencializadas pela
elástica possibilidade de interpretação do código, uma sujeição que tem a finalidade de manter
os limites das distinções hierárquicas.

Mesmo diante da freqüência de punições aplicadas aos militares que tem resultado
inclusive na expulsão de diversos policiais das fileiras da Corporação o problema do desvio
de conduta é pensado, na ótica da instituição, como uma questão de indisciplina. Esse tipo de
percepção sobre a transgressão ou o crime praticado por policiais militares pode conduzir a
uma compreensão reducionista das implicações sociais desse fenômeno. Por isso, é de grande
importância que as relações hierárquico-disciplinares alcancem um patamar elevado de
profissionalização capaz de redefinir o desenho institucional e o conteúdo das formas de
controle disciplinar e judicial exercidos no interior da polícia militar.
1

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O fenômeno da indisciplina surge no universo militar caracterizado sob duas


modalidades: da indisciplina que redunda no não cumprimento dos deveres de obediência ao
superior hierárquico e, por conseguinte, à ética que o “pundonor militar” impõe e a
indisciplina relacionada ao cometimento de crimes geralmente praticados no exercício da
atividade policial. Na presente pesquisa tentamos apreender os dois tipos de indisciplina ou
desvios de conduta selecionando, para tanto, parte dos documentos disponibilizados no
Arquivo da PMSE sob a forma de boletins informativos, de inquéritos, de sindicâncias e
processos disciplinares (PAAD); grande parte dos materiais utilizados é constituída de BGO’s
e aditamentos (material anexo ao boletim geral) o que permitiu a formação de um itinerário
institucional feito a partir de atos da própria administração militar.

Entretanto, devemos relatar aqui as infindáveis dificuldades de uma pesquisa que


procurou enfocar a dimensão disciplinar ainda mais num período de intensas mudanças nos
postos de comando, prejudicando a manutenção de um pressuposto inicialmente considerado
acerca da relação entre estratégias de comando e arranjos institucionais no âmbito da
disciplina militar. De fato, esta dimensão da vida militar tem muito a nos informar sobre o
conteúdo das relações hierárquicas, pois para a maioria dos entrevistados o militarismo
praticado na polícia militar de Sergipe ao copiar uma estrutura organizacional e disciplinar
tipicamente associada ao Exército “força” a transplantação de um modelo para uma realidade
não completamente compatível.

Inicialmente tivemos a pretensão de nos direcionarmos à 4ª Seção – Justiça e


Disciplina – como recorte de um estudo sobre a disciplina militar, entretanto, a leitura dos
textos que informam à Corporação o resultado das punições disciplinares nos indicava a
imperiosa necessidade de direcionar o olhar para outras seções do boletim geral. Foi assim
que nos deparamos com a 3ª Seção – Assuntos Gerais – e com os aditamentos que acabaram
por fornecer, ao plano de estudo, maiores informações sobre a disciplina não mais vista sob o
1

estreito ângulo da atividade administrativa, mas em associação a uma concepção de justiça e


de responsabilização jurídica e penal.

Sobre a concepção de justiça identificada nas falas dos detentos do presídio


militar e dos oficiais entrevistados foi possível se deparar com a compreensão de que a
disciplina integra o “espírito” do militarismo, de modo que na disciplina se encontra a
capacidade da autoridade de intervir, corrigir e impedir a disseminação de problemas que
afetariam as relações hierárquicas. Sendo assim, a disciplina e a justiça são vistas
simultaneamente como lados de uma mesma realidade, pois toda disciplinarização se
manifesta pelo viés da coercitividade, da correção da conduta desviada e da obstrução de seus
efeitos morais sobre o “corpo” da tropa.

Em sua obra “Meia volta volver”, Piero di Camargo Leirner (1997, p. 103) afirma
que na visão de um dos oficiais entrevistados “a hierarquia é o meio e a disciplina o fim”, o
mesmo autor questiona tal afirmação buscando nessa lógica superficial elementos para se
chegar ao entendimento das mútuas implicações sobre disciplina e hierarquia. Aproveitando a
observação de Leirner (1997) entendemos, e tal fato se fez notar ao longo das sessões de
entrevista, que a visão de mundo do militar reproduz parte da ética do dever militar, estando
afetada pela posição ocupada pelo sujeito na hierarquia institucional, ou seja, os oficiais
tendem a reproduzir mais fielmente os princípios e valores do militarismo que os militares dos
segmentos dos praças encontrando entre estes maior espaço à crítica e à contestação.

Evidentemente devemos considerar que a percepção crítica da disciplina e da


justiça associada aos entrevistados detidos no presídio militar decorre, em parte, da
experiência de encarceramento e de sujeição ao julgamento institucional. Todavia, não
podemos deixar de afirmar que os oficiais além de exercerem o que Goffman (2009)
denomina de função de “equipe dirigente”, ocupam a posição de “inquisidores” e de “juízes”,
pois no trato de questões disciplinares o procedimento é iniciado muitas vezes com a
139
“canetada” do próprio oficial ou superior hierárquico que, dependendo do

139
Jargão militar para fazer referência ao ato de registro de infração cometida por militar; a partir da “canetada”
temos o início do procedimento de culpabilização do militar.
1

dimensionamento da unidade militar, será muitas vezes o responsável pela “averiguação” dos
fatos imputados na razão de defesa.

É bem verdade que os boletins internos e gerais da polícia militar de Sergipe


registraram a partir da segunda metade de 2006 o aumento na instauração de procedimentos
administrativos e disciplinares; mesmo que esse aumento não tenha constituído um grau
equiparável de número de punições disciplinares e de sentenças impostas pelo judiciário
militar. Esse fenômeno apresenta como uma de suas causas a elaboração de procedimentos
técnicos de investigação e de responsabilização; dentre eles merece maior destaque o PAL e o
PAAD. Outra causa a ser contabilizada se refere ao tipo de direcionamento conferido pelo
Comando Geral e por sua acessória técnica, articulada à atividade exercida pela Ouvidoria
Militar, pela PM-2 e pela própria Justiça Militar.

Para termos uma idéia desse aumento no número de procedimentos foi


identificado que a partir dos três últimos meses de 2009 e os quatro primeiros meses de 2010
foram instauradas 08 comissões de oficiais que iriam compor o Conselho de Disciplina
destinado à apreciação dos motivos de permanência ou exclusão de praças por razões que
tocam a questão disciplinar. Esse aumento fica notório quando comparamos os dados de 2001
a 2008 em que foi registrada a abertura de 16 comissões para apreciação de processos que
versavam sobre a permanência de militares nas fileiras da corporação. Sobre o Conselho de
Disciplina é importante ressaltar que até meados de 2009 as expulsões a bem da disciplina se
deram no âmbito do conselho como efeito de homologação das decisões da Justiça Militar, ou
seja, após a condenação do militar na esfera judiciária se dava a confirmação da decisão
também no âmbito do conselho disciplinar; esse é um resultado lógico e necessário conforme
as prescrições do rito administrativo; todavia, o que se observou no período de 2009-2010 foi
a abertura de conselhos para julgamento da presumível incapacidade de permanência do praça
na instituição, motivada, apenas, por problemas disciplinares relativos à transgressões
cometidas e não por crimes como ocorre nos casos em que a expulsão a bem da disciplina está
associada diretamente à decisões da Justiça Militar. A abertura do conselho para avaliação de
casos fundados apenas na dimensão disciplinar, indica a recomposição de mecanismos de
1

controle previstos no ordenamento jurídico e disciplinar da instituição, reforçando ainda mais


a sistemática de punições.

Mesmo que não seja possível afirmar que houve entre 2001 a 2009 uma
intensificação no conjunto das punições disciplinares impostas pelo Comando Geral e
publicadas na 4ª Seção do BGO, visto que os dados apresentado no início do último capítulo
demonstram uma distribuição regular das punições ao longo do período estudado, podemos
perceber que no conjunto das práticas punitivas a ênfase na dimensão técnica do
procedimento surgiu como resultado da imposição de modelos de padronização dos processos
e também como efeito do controle exercido pela PM-2 e pela Ajudância Geral tendo por
conseqüência uma maior participação do oficialato nas questões que tocam o gerenciamento
dos processos disciplinares.

Outra observação a ser feita acerca do fenômeno das práticas punitivas se refere
aos efeitos diferenciados do investimento institucional orientado para apuração e punição de
transgressões cometidas no âmbito das relações hierárquico-disciplinares. Nesse sentido, se
compararmos os dados das punições aplicadas aos militares se perceberá que as transgressões
disciplinares, aquelas que ocorrem em sua maioria no interior das relações interpessoais,
receberam um tratamento mais intensificado por parte do comando geral, sendo assim se
puniu de maneira regular e numerosa os desvios de conduta cometidos no interior da
instituição.
Já o percentual de procedimentos administrativos (sindicâncias e IPM’s movidos
muitas vezes pela própria Corregedoria), originados fora da instituição, tendo por vítimas
cidadãos, cujos resultados apontaram para a culpabilidade dos militares acusados está muito
abaixo do índice apresentado no caso dos procedimentos que apuraram transgressões
disciplinares. Com isso podemos indagar sobre as condições de investigação e de apuração
das causas que originaram as supostas transgressões e por que as divergências de resultados
são tão sensíveis.

De fato, entre os detentos do presídio militar dos 25 participantes da atividade de


pesquisa cerca de 20% responderam que a falta de perícia interferiu na objetividade do
procedimento administrativo corroborando para formulação de “julgamento tendencioso”; já
1

aproximadamente 22% dos detidos chegaram a afirmar que as relações hierárquicas


interferem no encaminhamento do processo, sendo influenciado pelo tipo de prestígio que o
indivíduo tem no interior da instituição.

A estrutura de disciplinarização existente na polícia militar compila o modelo das


Forças Armadas reproduzindo um sistema de gerenciamento das atividades de
responsabilização e culpabilização chefiado por oficiais. A estes cabem simultaneamente as
funções de intérpretes, aplicadores e legisladores do código de conduta disciplinar tendo como
objeto a conduta dos policiais militares

A função de operadores de um microssistema punitivo de caráter penal-disciplinar


está norteada na ampla possibilidade de interpretação do significado dos códigos, essa
interpretação é potencializada ainda mais pelo caráter genérico dos itens tipificadores da
transgressão.

A ampla possibilidade de interpretação do regulamento induz à formulação de


matérias de acusação que podem representar, muitas vezes, dificuldades na formulação da
defesa. Como exemplo, citamos o item 108 do Anexo I do RDE “ofender, provocar ou
desafiar superior”, nesse tipo de transgressão encontramos um espaço de ampla aplicação de
categorias genéricas (ofender, provocar ou desafiar) que podem dar vazão a uma acusação
baseada mais na sensibilidade do superior que na comprovação objetiva de um dano causado
por determinadas ações do subordinado ou do ofensor; o que é interessante nesse tipo de
relação é que o ato de punir é um ato da autoridade hierárquica, portanto, uma ação de
verticalização disciplinar no sentido de “cima para baixo”; nessa ação a disciplina e o valor da
hierarquia reclamam do transgressor o reparo aos danos causados à ordem moral e ao
pundonor policial militar.

Por meio dos dados sobre transgressão e punição podemos visualizar, em parte, a
efetiva produtividade do aparelho repressor no sentido de punir o transgressor que ofendeu a
ética militar, estando tais “ofensas” situadas no âmbito das vivências cotidianas, portanto, no
interior das próprias relações interpessoais. Não devemos esquecer, também, que os
procedimentos de acusação de indisciplina estão fundados sobre a primazia do princípio da
precedência hierárquica, sendo inquestionável a legitimidade do objeto de acusação e o papel
1

do acusador, pois este representa antes de tudo a autoridade que reclama para si o direito de
punir e de se fazer restaurar ou reparar o dano causado pela transgressão.

Há na relação de força dinamizada no “rito” do procedimento disciplinar a


consagração do valor da hierarquia e a potencialização da capacidade punitiva da instituição.
Pelo direito e no dever de obediência aos postulados da ética policial militar se processam a
intervenção coercitiva da instituição sobre os sujeitos, disciplinando-os e fazendo brotar a
“docilidade” (conformidade às expectativas normativas caracterizadas pela obediência e
disciplina) como resultado das relações de força. (Foucault, 2009)

O caráter inquestionável e legítimo do papel do acusador remonta à lógica de


estruturação do poder disciplinar definido em termos hierárquicos, excluindo-se de tal lógica
qualquer suspeita capaz de comprometer e invalidar a pretensão punitiva e o ato punidor,
obstruindo, assim, a dinâmica de poder. A evidente tendência da instituição em punir
transgressões ocorridas no interior das relações hierárquico-disciplinares tornou possível
perceber dois fenômenos profundamente imbricados: o primeiro consiste no tipo de
tratamento conferido pela Corporação aos delitos cometidos por militares no exercício das
atividades de policiamento urbano e ostensivo onde se observou uma insípida produção de
resultados que revelam a inconsistência de um trabalho efetivo de “vigilância” sobre a
conduta profissional do policial militar; em segundo lugar notamos também a pouca
visibilidade dada ao conjunto dos procedimentos e seus resultados o que representa um fator
problemático na relação entre sociedade civil e polícia militar, pois é imprescindível que a
sociedade civil tenha a possibilidade de acompanhar de perto as formas de tratamento
conferidas pela instituição a problemas como a violência policial e demais distúrbios que
atingem a eficácia e a objetividade do trabalho policial (ZAVERUCHA, 2005); o problema da
falta de visibilidade sobre o andamento dos processos administrativos, disciplinares e judiciais
no interior da instituição militar sofre ainda mais com os efeitos da estruturação hierárquica;
estamos falando dos níveis de publicização e de interdição discursiva que conferem modos
diferenciados de tratamento institucional ao fenômeno da transgressão ou da violência
policial.
1

Se o boletim ostensivo é um dos meios de maior alcance no interior da polícia


militar, pois os atos da administração são submetidos aos critérios exigidos pela
normatividade do Direito Público, inclusive servindo como meio de veiculação de
informações referentes à disciplina da tropa, o mesmo não ocorre com o boletim reservado.
Este trata prioritariamente de assuntos de interesse exclusivo do oficialato, resguardando não
somente a imagem ilibada do segmento hierárquico dos oficiais, mas permitindo que o
trânsito de informações ocorra somente no círculo de convivência dos oficiais.

Infelizmente a pretensão inicial do presente estudo considerou como material de


estudo de grande importância o acesso às informações difundidas no boletim reservado,
porém, os impedimentos foram maiores que as finalidades da pesquisa. Mesmo na condição
de “pesquisador na caserna” o acesso aos boletins reservados não foi possível chegando-me
por acidente apenas um dos exemplares que tratam da relação de oficiais nos diversos quadros
da corporação. Não foi possível acessar o referido documento, nem mesmo no Arquivo da
PMSE. Tal dificuldade nos conduziu à reflexão sobre as implicações sociais e éticas que
atingem diretamente a finalidade social dos meios de controle institucional; isto porque
enquanto o segmento hierárquico dos praças é submetido às formas de controle jurídico e
disciplinar, cujos resultados se fazem notar, em parte, pelo critério de publicização ocorrida
por meio de boletim ostensivo, favorecendo até mesmo a atividade de “vigilância” e de
controle externo exercido pela sociedade civil (ressalvados os problemas que atingem a
relação instituição policial e sociedade) sobre determinados atos da autoridade militar, o
segmento dos oficiais desfruta de uma estrutura de obstrução de informações que funciona
como fator de obscurantismo do fenômeno da violência policial cometida por oficiais. Nesse
sentido, a imprensa desempenha papel primordial na visibilidade da violência e de
transgressões cometidas por oficiais.

O fenômeno da transgressão ou do desvio de conduta e a análise das formas e das


práticas de controle institucional talvez fossem ainda mais bem tratados se fosse possível
mergulhar no universo de informações que tocam os diversos segmentos hierárquicos e não se
restringisse apenas ao segmento dos praças, ou seja, a análise aqui proposta se serviu dos
dados e das informações disponíveis em diversos documentos, porém, a interferência
1

intrainstitucional de valores que partem da dimensão hierárquica, a qual se manifesta na


própria natureza da organização da atividade policial, impediram de realizar um comparativo
entre a violência policial sob o ângulo dos diversos segmentos hierárquico e perceber que a
violência não possui posto ou graduação, mas é um problema que nasce do interior da
instituição – apesar de suas causas não serem exclusivamente intrainstitucionais – e mantêm
estreita relação com a forma, os valores e a ideologia de organização da atividade policial
militar.
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2

Boletins Internos da PMSE:


1986 (Boletim 182 a 202)
2001 (Boletim 001 a 239)
2002 (Boletim 001 a 231)
2003 (Boletim 001 a 230)
2004 (Boletim 001 a 234)
2005 (Boletim 001 a 230)
2006 (Boletim 001 a 233)
2007 (Boletim 001 a 240)
2008 (Boletim 001 a 237)
2009 (Boletim 001 a 230)
2010 (Boletim 001 a 075)
Almanaque da Policia Militar para 1951. Ano Decimo, Imprensa Oficial, Aracaju, 1951.

LEIS INTERNAS DA PMSE E LEGISLAÇÃO ESTADUAL E FEDERAL

SERGIPE (Estado). Lei Nº 2.066, DE 23/12/1976. Estatuto dos Policiais Militares da PMSE.

SERGIPE (Estado). Lei Nº 2.310, de 12 de dezembro de 1980. Dispõe sobre o Conselho de


Disciplina da Polícia Militar do Estado de Sergipe e dá outras providências.

SERGIPE (Estado). Lei Nº 2.395, de 22 de outubro de 1982. Dispõe sobre o Conselho de


Justificação na Polícia Militar do Estado de Sergipe e dá outras providências.

SERGIPE (Estado). Lei Nº 3.669, de 07/11/1995. Dispões sobre a organização básica da


Polícia Militar do Estado de Sergipe.

SERGIPE (Estado). Lei Nº 4.377, DE 29/05/2001. Dispõe sobre Quadro Complementar de


Oficiais Policiais Militares – QCOPM.

SERGIPE (Estado). Lei Nº 4.378, DE 29/05/2001. Dispõe sobre as promoções dos Cabos e
Soldados da PMSE e do CBMSE.

o
SERGIPE (Estado). Decreto N 88.777, DE 30/09/1983. Dispõe sobre o Regulamento para as
PM e CBM - R-200.

SERGIPE (Estado). Portaria Nº 002/02-GCG, DE 11/03/2002. Dispõe sobre Processo


Administrativo de Licenciamento de Praça – PAL.
2

SERGIPE (Estado). Portaria Nº 003/02-GCG, DE 19/04/2002. Dispõe sobre Regimento


Interno do Presídio Militar.

SERGIPE (Estado). Portaria Nº 004/02-GCG, DE 30/04/2002. Dispõe sobre Auto de Prisão


em Flagrante de Crime de Natureza Militar.

SERGIPE (Estado). Portaria Nº 014/02-GCG, de 18 de julho de 2002. Dispõe sobre


Instruções Gerais para Atuação dos Oficiais, da PMSE, nos Conselhos de Justiça Militar.

SERGIPE (Estado). Portaria nº 008/05-GCG, de 25/01/2005. Institui na PMSE a CODEM.


2

APÊNDICES
2

APÊNCIDE A: ROTEIRO DE ENTREVISTA

Dados gerais do entrevistado


Nome:
Idade:
Cor:
Sexo:
Estado Civil:
Numero de filhos:
Função:
Escolaridade:
Religião:
Local de Trabalho:
Ano de ingresso na PMSE:

TEMA I – HISTÓRICO PESSOAL E REPRESENTAÇÃO DO MILITARISMO


1) Gostaria que inicialmente você (o Sr.) falasse sobre a sua história de vida na PMSE, fale
dos motivos de sua entrada e como você descreve a “sensação” de entrar na realidade militar?
2) Você (o Sr.) teve alguma experiência no Exército? Fale um pouco?
3) O que você (o Sr.) “pensava” (julgamento) sobre o militarismo, havia identificação?
4) A formação no CFAP foi em que ano? Quem era seu instrutor?
5) A formação no CFAP foi seguiu nos padrões militares rigorosos? Havia muitas escalas? O
que significa para você (o Sr.) o adágio militar “O militar é superior ao tempo”!
6) Descreva o tratamento conferido no período de formação militar?
7) O treinamento militar teve aplicação na vida cotidiana profissional após o CFAP?
8) Você (o Sr.) classificaria como a utilidade da formação militar para a vida profissional a
partir do “quê” lhe foi ensinado na academia e do “quê” foi vivido e experimentado na vida
“lá fora”?
9) Como você (o Sr.) faz para se manter atualizado na “prática policial militar”? Já fez ou está
fazendo algum curso voltado para a área de segurança pública?
10) A PMSE tem promovido meio para o treinamento militar?
11) Como é o cotidiano de exercício de sua profissão?
12) Você (o Sr.) tem perspectiva de crescimento profissional dentro da PMSE?
13) Você (o Sr.) é um policial informado dos assuntos relativos à área de segurança pública?
2

14) Você (o Sr.) está atualmente estudando (ensino superior, pós graduação, curso técnico,
outros)? Há alguma relação entre os estudos e a polícia, em termos de aproveitamento
profissional?

TEMA II – CONSIDERAÇÕES SOBRE HIERARQUIA NA PMSE

15) Em sua opinião o que é a hierarquia militar e qual a sua importância para a PMSE?
16) As relações entre superior e subordinado desde sua entrada na PMSE tem passado por
mudanças?
17) Você (o Sr.) “acha” que as relações hieráquicas atrapalham no exercício profissional
militar na área de segurança pública?
18) Você (o Sr.) se sente prejudicado pelas relações hierárquicas?
19) Em sua “visão” de polícia a PMSE deveria ser desmilitarizada? Isso seria um evento
positivo ou negativo para essa instituição? Por quê?
20) Fala-se em “integração” entre Polícia Civil e Polícia Militar, isso para você (o Sr.) seria
um “avanço” ou um “retrocesso” para a área de segurança pública?
21) A hierarquia militar da Polícia de Sergipe é moldada conforme os postulados das Forças
Armadas? Concretamente, ou seja, no cotidiano profissional as relações hierárquicas são
bastante inflexíveis, ou seja, o subordinado é um elemento passivo diante das ordens do
superior?
22) Como você (o Sr.) definiria sua condição dentro da hierarquia militar? Você (o Sr.)
usufrui de direitos, pesam somente as exigências ou sua condição envolvem um nível razoável
de respeito aos seus direitos e imposição de obrigações?
23) Você (o Sr.) já entrou em desavença com superior? Quais foram os resultados desse
“embate”?
24) A PMSE seria mais eficazmente gerenciada se o princípio hierárquico militar fosse
retirado dessa instituição?
25) Você (o Sr.) se “vê” como militar ao modo do militarismo tradicional praticado nas
Forças Armadas?

TEMA III – REPRESENTAÇÕES SOBRE DISCIPLINA E COTIDIANO NA PMSE

26) Você (o Sr.) o famoso adágio militar: “Missão dada é missão cumprida!”
2

27) Em sua “visão” de militar o que representa a disciplina para definição de sua condição de
policial?
28) Você (o Sr.) já foi punido por transgressão disciplinar?
29) Como era a prática de punição disciplinar antes da “aplicação efetiva da Razão de
Defesa”?
30) A “chegada” da Razão de Defesa modificou alguma coisa nas relações entre militares?
31) Para você (o Sr.) o que significou a aplicação da Razão de Defesa? Isso em sua opinião
constituiu um fator de mudança na aplicação da disciplina e nas relações hierárquicas?
32) Conforme os regimentos militares o policial mais antigo e qualquer outro policial situado
num grau hierárquico superior poderia “dar canetada” no militar subordinado. Essa prática
existe ainda hoje? Em sua “visão” quais mudanças, se houveram, podem ser destacadas?
33) Você sente a pressão da disciplina em seu cotidiano profissional? Em sua “visão” a
disciplina militar tem alguma função para o exercício da atividade do policial?
34) Em sua opinião a disciplina é um dos fundamentos da instituição PMSE sem a qual não
haveria o profissionalismo militar?
2

APÊNDICE B
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
NUCLEO DE POS-GRADUACAO E PESQUISA EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM SOCIOLOGIA

PROJETO DE PESQUISA

Justiça e disciplina: análise das práticas de controle institucional na Polícia Militar do Estado de
Sergipe (2001-2009)

OBJETIVO DA PESQUISA

Analisar as práticas de controle institucional exercidas pela Polícia Militar do Estado de Sergipe no
período situado entre 2001 e 2009.

PROCEDIMENTOS ADOTADOS NA PESQUISA

Serão realizadas entrevistas individuais com duração média de 01 hora, nas quais os policiais de
diferentes graduações e patentes responderão questões relacionadas a entrada na instituição, relações
hierárquicas e disciplinares.

COORDENADORES DA PESQUISA:

Prof. Dr. Paulo Sergio da Costa Neves (DCS-UFS/Orientador)


Prof. Elvoclébio de Araújo Lima (Mestrando-UFS)

TERMO DE CONSENTIMENTO INFORMADO

Pelo presente documento, declaro ter conhecimento dos objetivos da pesquisa, que me foram
apresentados pelo responsável pela aplicação do questionário, e conduzida pelo mestrando Elvoclébio
de Araújo Lima da Universidade Federal de Sergipe.
Estou informado (a) de que, se houver qualquer duvida a respeito dos procedimentos adotados durante
a condução da pesquisa, terei total liberdade para questionar ou mesmo me recusar a continuar
participando da investigação. Meu consentimento, fundamentado na garantia de que as informações
apresentadas serão respeitadas, assenta-se nas seguintes restrições:
a) O entrevistado (a) não será obrigado (a) a realizar nenhuma atividade para a qual não se sinta
disposto (a) e capaz;
2

b) O entrevistado (a) não participara de qualquer atividade que possa vir a lhe trazer qualquer prejuízo;
c) O nome do entrevistado (a) da pesquisa não será divulgado;
d) Todas as informações individuais terão o caráter estritamente confidencial;
e) Os pesquisadores estão obrigados a fornecer ao entrevistado (a), quando solicitados, as informações
coletadas;
f) O entrevistado pode, a qualquer momento, solicitar aos pesquisadores que os seus dados sejam
excluídos da pesquisa.
g) A pesquisa será suspensa imediatamente caso venha a gerar conflitos ou qualquer mal-estar a
Corporação Policia Militar de Sergipe.
Ao assinar este termo, passo a concordar com a utilização das informações para os fins a que se
destina, salvaguardando as diretrizes das Resoluções 196/96 e 304/2000 do Conselho Nacional de
Saúde, desde que sejam respeitadas as restrições acima enumeradas.
O pesquisador responsável por este projeto de pesquisa é o Professor Elvoclebio de Araújo Lima, que
poderá ser contatado pelo e-mail: elvclebio@yahoo.com.br, telefone: 079 3044-2242.
Endereço: Av. Tancredo Neves, 3790, Condomínio Eucaliptus, Bl G, Apt° 101, Jabotiana, Aracaju-
SE.
Aracaju.........de...........................de 2009.
Nome:
Assinatura:
Assinatura do responsável pela pesquisa:
2

APÊNDICE C UNIVERSIDADE FEDERAL


DE SERGIPE
NÚCLEO DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM SOCIOLOGIA

PRESÍDIO MILITAR DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SERGIPE


PRESMIL

QUESTIONÁRIO

Dados gerais do participante da pesquisa:


Nome:
Idade:
Cor:
Sexo:
Estado Civil:
Numero de filhos:
Função:
Escolaridade:
Religião:
Local de Trabalho:
Tempo de serviço ativo:
Ano de ingresso na PMSE:

1) O Senhor já foi punido disciplinarmente?

1.1 Sim ( )
1.2 Não ( )

Se positivo indique quantas punições e que tipo foram aplicadas?


01 a 02 punições ( )
03 a 05 punições ( )
Mais de 06 punições ( )

Repreensão ( )
Detenção ( )
Prisão ( )

2) Alguma vez recorreu da decisão da autoridade? Se positiva a resposta conseguiu anulação da


punição?

2.1 Não Recorreu ( ) Sim, recorreu ( )


2.2 Houve anulação, as razões foram aceitas ( )
2.3 Não houve anulação, as razões não foram aceitas ( )

3) Ao longo dos anos de serviço sofreu, em virtude de punição disciplinar ou de elogio, alteração
na classificação comportamental da Ficha Disciplinar?

Sim, houve alteração ( ) Não,


não houve alteração ( ) Se
afirmativa responder abaixo:
A alteração de comportamento ocorreu devido:
2

a) Elogios sucessivos na ficha disciplinar ( )


b) Às sanções disciplinares impostas pela autoridade ( )

4) Antes do presente processo judicial e administrativo, o Senhor já sofreu alguma ação judicial
na esfera militar e no âmbito da justiça civil:

Sim, sofrei ações no âmbito da justiça militar ( )


Sim, sofri ações no âmbito da justiça civil ( )
Sim, sofri ações tanto na esfera da justiça militar quanto na justiça civil ( )
Não, essa é a primeira ação da qual sou objeto ( )

5) O Senhor já cometeu alguma infração ou delito que não chegou ao conhecimento da


autoridade militar?

Sim ( )
Não ( )

Se positiva, indique quais os fatores que tenha favorecido o “não conhecimento da autoridade”? Pode
indicar mais de uma alternativa:

Corporativismo ( )
Anonimato ( )
Temor da vítima em buscar a autoridade ( )
Falta de provas suficientes para a vítima promover ação ( )

6) Em sua visão os procedimentos judiciais foram movidos com impessoalidade e objetividade ou


houve fatores que interferiram na apuração do processo?

Os procedimentos foram instaurados com objetividade, sem interferência de fatores externos ( )

Os procedimentos sofreram interferências de fatores externos ( ) Indique-os a seguir:

Perseguição dentro da instituição ( )


Interferência da imprensa ( )
Influência política da vítima ( )
Equívocos técnicos, imperícia de quem estava apurando ( )
Outros fatores:

7) O Senhor considera eficaz e imparcial o trabalho da Justiça Militar juntamente com o


Conselho de Disciplina:

Não ( ) por quê?

Devido a interferência da hierarquia militar ( )


Devido à influência a que é submetida a avaliação da justiça pelo meio social ( )
Devido à imperícia técnica dos oficiais que apuram as denúncias ( )
Outros:

8) O Senhor vê algum tipo de desgaste nas relações profissionais decorrentes da série de


cobranças impostas pelo regulamento?

Sim, vejo certa sobrecarga ( )


Não vejo qualquer sobrecarga ( )
Há sobrecarga de cobranças, mas elas não interferem no resultado das ações dos sujeitos e na prática
policial ( )
2

9) Como foram as condições de defesa das acusações que lhe foram impostas? Pode-se responder
mais de um item:

Foram cumpridas as formalidades legais ( )


Deficiências financeiras tornaram desfavorável as condições de minha defesa ( )
A imperícia dos agentes responsáveis pela investigação tornaram dificultosa a defesa ( )
Os elementos de acusação me foram parcialmente apresentados prejudicando a formulação da defesa (
)

10) Como se deu a sua prisão:

Logo após a denúncia na Justiça Militar ( )


Após alarde público em noticiários locais ( )
Em delito flagrante ( )
Após a instauração de procedimento ( )

11) Qual o tipo de prisão o Senhor está cumprindo?

Prisão temporária ( )
Prisão Provisória ( )
Prisão Disciplinar ( )

12) Quais os fatores foram predominantes para a prática de seu delito (pode marca mais de um
item):

Despreparo técnico no momento da ação policial ( )


Desproporcionalidade entre intensidade da ação policial e finalidades técnicas dessa ação ( )
Interferência de fatores pessoais envolvendo a vítima ( )
Desgaste emocional e estresse que afetaram o equilíbrio emocional necessário à realização de
atividades profissionais ( )
Intenção de causar danos à vítima em decorrência de sua “má conduta” perante a abordagem policial (
)
Problemas pessoais extra atividade policial que resultaram no uso da força decorrente da prerrogativa
de agente da segurança pública ( )

13) Houve algum tipo de abuso de poder em sua prisão:

Sim, houve arbitrariedade ( )


Não houve arbitrariedade ( )

Em caso de resposta afirmativa indicar quais dos itens abaixo:

A prisão se deu de formar imediata ( )

Houve manifestação informal (de superiores e companheiros de farda) da acusação apontando que me
fizesse sentir considerado culpado antes de apresentar defesa ( )

Houve emprego de violência desnecessária por parte dos companheiros de farda ( )

Outros:

14) O Senhor considera “injusta” a Justiça Militar?

Sim ( )
2

Não ( )

Se afirmativa indique as alternativas abaixo:

Porque a investigação, no âmbito militar, é realizada por profissionais sem a perícia necessária ( )
Porque a investigação, no âmbito militar, é realizada por profissionais afetados pela visão antagônica
das distinções hierarquicas ( )
Porque é afetada pelas informações da mídia ( )
Porque o judiciário militar reproduz uma visão pejorativa da atividade profissional militar ( )
Porque deveria assegurar ao militar assistência judiciária ( )

15) Como foi contatada a assistência de um advogado?

Por meio de convênio com Associação de Assistência e Beneficência da Corporação ( )


Por recursos financeiros próprios ( )
Assistência Judiciária do Estado (Defensoria Pública) ( )
Através de recursos financeiros de parentes e familiares ( )
2

APÊNDICE D UNIVERSIDADE FEDERAL


DE SERGIPE
NÚCLEO DE PÓS GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
MESTRADO EM SOCIOLOGIA

PRESÍDIO MILITAR DA POLÍCIA MILITAR DO ESTADO DE SERGIPE


PRESMIL

ROTEIRO DE ENTREVISTA

Dados gerais do participante da pesquisa:


Nome:
Idade:
Cor:
Sexo:
Estado Civil:
Numero de filhos:
Função:
Escolaridade:
Religião:
Local de Trabalho: Tempo
de serviço ativo: Ano de
ingresso na PMSE:

1) O Senhor já foi punido disciplinarmente?


2) Alguma vez recorreu da decisão da autoridade? Se positiva a resposta conseguiu anulação da
punição?
3) Ao longo dos anos de serviço sofreu, em virtude de punição disciplinar ou de elogio, alteração
na classificação comportamental da Ficha Disciplinar?
4) Antes do presente processo judicial e administrativo, o Senhor já sofreu alguma ação judicial
na esfera militar e no âmbito da justiça civil:
5) O Senhor já cometeu alguma infração ou delito que não chegou ao conhecimento da
autoridade militar?
6) Em sua visão os procedimentos judiciais foram movidos com impessoalidade e objetividade ou
houve fatores que interferiram na apuração do processo?
7) O Senhor considera eficaz e imparcial o trabalho da Justiça Militar juntamente com o
Conselho de Disciplina:
8) O Senhor vê algum tipo de desgaste nas relações profissionais decorrentes da série de
cobranças impostas pelo regulamento?
9) Como foram as condições de defesa das acusações que lhe foram impostas? Pode-se responder
mais de um item:
10) Como se deu a sua prisão:
11) Qual o tipo de prisão o Senhor está cumprindo?
12) Quais os fatores foram predominantes para a prática de seu delito (pode marca mais de um
item):
13) Houve algum tipo de abuso de poder em sua prisão:
14) O Senhor considera “injusta” a Justiça Militar?
15) Como foi contatada a assistência de um advogado?
2

APÊNDICE “E”: PERFIL DOS ENTREVISTADOS

Graduação/Posto Idade Sexo Escolaridade Tempo de


serviço
Coronel 49 Masculino Superior 26
Tenente-coronel 42 Masculino Superior 24
Capitão 39 Masculino Superior 18
Primeiro Tenente 28 Masculino Superior 06
Subtenente 55 Masculino Superior 32
Sargento 41 Masculino Ensino Médio 20
Sargento 38 Masculino Ensino Médio 16
Cabo 35 Masculino Ensino Médio 11
Cabo 39 Masculino Ensino Médio 17
Soldado 38 Masculino Ensino Médio 15
Soldado 31 Masculino Ensino Médio 11
2

APÊNDICE F: FOTOS PRESMIL


Foto 01: Parte Frontal PRESMIL Foto 02: Porta de Entrada

Foto 03: Porta Identificador de Metal Foto 04: Arame dos muros Presmil

Fonte dos dados: http://www.pm.se.gov.br/pm.php?var=1091709801. Pagina consultada em


10-10-2009.
2

Foto 05: Caixas do Arquivo Geral, QCG Foto 06: Porta do Arquivo Geral, QCG, QCG

Foto 07:Pátio Principal do QCG Foto 08: Cela do QCG (nº 01, inativa)

Fonte de dados: fotos tiradas pelo pesquisador.


2

Foto 09: Cela do QCG (nº 2, inativa) Foto 10: Cela do QCG (nº 3inativa)

Fonte de dados: fotos tiradas pelo pesquisador.


2

APÊNDICE G: MAPA DE POLICIAMENTO EM SERGIPE

Fonte dos dados: http://www.pm.se.gov.br/pm.php?var=1091709801. Pagina consultada em


08-09-2009.

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