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Eu não sou o protagonista dessa história.

Tudo que se sucedeu a partir desse ponto não aconteceu por minha causa. Por mais
vezes do que gostaria, agi como apenas um NPC, um personagem reativo, alguém sem
vontade ou impulsos próprios até que terceiros provoquem uma resposta.
A protagonista é ela: Serena. De temperamento contrário ao próprio nome, de
cabelos descoloridos e esvoaçantes. Ansiosa, fechada e completamente aterrorizada pelos
próprios sentimentos. Amorosa, empática e bondosa; Serena.
Serena me arrancou da monotonia desde a primeira conversa. Eu já sabia quem ela
era, estávamos no mesmo grupo no Facebook. Entretanto, nunca havíamos conversado até o
dia que entramos no mesmo grupo no Whatsapp e ela pediu ajuda para estudar. Cheguei
depois dela no grupo; nenhuma surpresa. Tão ativa quanto era na rede social azul, era
previsível que também fosse dedicada ao chat.
Pelo que vi, seus pedidos de ajuda eram comuns. Meu primeiro erro: me ofereci para
ajudar com suas redações. Ela mandou a primeira mensagem, e ali estava marcado o início da
nossa história. Ironicamente, foi tão chato quanto o resto da minha rotina. Li o texto, disse o
que achava que podia melhorar. Achei que acabaria ali, mas ela estava confusa. Não sabia
refletir sobre os temas. Não sabia como escrever. Sei que soo louco por isso, mas suas
mensagens tinham entonação: desespero. A prova se aproximava.
Quando o texto não foi mais suficiente para expressar isso, quando sua mente parecia
embaralhada demais para organizar frases escritas, mandou o primeiro áudio. Eu estava certo;
havia exaspero em sua voz. Parei o que estava fazendo e ajudei: fiz perguntas, descobri o que
ela já sabia e tentei guiá-la até uma linha de raciocínio possível para uma redação.
Ela voltou. De novo, e de novo, e uma terceira, quarta e décima vezes. Sempre
pedindo ajuda. Só que a cada vez que nos falávamos com essa premissa, conversávamos mais
sobre outros assuntos. Serena, que nunca era nada menos que agitada, se abriu não aos
poucos, mas de uma vez só. Para mim, um completo estranho, ela contou todos os detalhes
íntimos e sujos de aspectos complicados em sua vida. Relação complicada com os pais.
Namoro difícil e tóxico. Depressão, ansiedade e infância traumatizante. Eu achei estranho,
mas não tanto, como ela não se importava em se expor dessa forma; afinal, o que mais esperar
de uma estranha da internet que conta intimidades sobre como transava, por exemplo, num
grupo com mil pessoas?
Conversamos até que a prova dela chegou, e eu voltei para o Rio de Janeiro, na
mesma época. Meu aniversário foi no mesmo dia que ela saía da última avaliação, e eu a
chamei para minha casa, com meus amigos. Ela foi! Não pensei que ela levaria meu convite a
sério, apesar de ser bem vida.
Era tímida. A desesperada, engraçada e sarcástica Serena era tímida, algo que nunca
foi por mensagem. Bebeu um pouco, se soltou um pouco. Mas senti que ela estava contida
ainda.
— Antônio, tenho que te admitir uma coisa. — Estávamos sentados no chão da
cozinha, eu e ela, enquanto meus dois amigos se beijavam na varanda. Deitei a cabeça em seu
colo e olhei para cima. — Eu não ia vir hoje, não. — Desviou o olhar. — Acho que a gente é
próximo o suficiente, mas seus amigos... Bom, eu tenho vergonha. Te contei que sou tímida.
— Obrigada então por vir, Serena.
O olhar dela abaixou e encontrou o meu. Seus lábios tremeram, os meus pinicaram e
de repente, meu cérebro bêbado só pensava em como queria beijá-la.
— Não perde tempo, né, Antônio?
Nunca odiei tanto Gustavo quanto naquele momento. Tão rápido quanto foi
construído, o momento com Serena se desvaneceu. Ela olhava novamente para a parede, e
percebi suas bochechas ficarem vermelhas. Passeava os dedos sobre a grossa aliança que
simbolizava seu namoro. Eu não podia deixar daquele jeito, não queria uma amiga querida
desconfortável. E se ela não quisesse mais me ver?
— A gente é só amigo, Gustavo. — Levantei a cabeça do colo dela e ri, tentando
desconversar. — Ela namora, pô. Não viu não?
— Aham, sei.
Você não tava ocupado quase cometendo atendo ao pudor?, quis perguntar, mas
mordi minha língua. Serena já parecia bem, já tinha levantado e continuava a tomar sua
cerveja. Fingi que nada aconteceu, também, para evitar outros desconfortos.
Conversamos mais, como um grupo. Bebemos mais, também. Não sei quanto tempo
se passou até que eu também beijei Bárbara, que antes beijava Gustavo. E depois também
fiquei com Gustavo. Não lembro o que Serena fez no meio tempo. Lembro de ouvir sua voz
esporadicamente falando com alguém, e nos momentos de silêncio imagino que ela mexia no
celular, como estava fazendo desde que pisou na minha casa.
Bebi mais do que deveria. Minhas memórias são incompletas, mas lembro de sentar
numa cadeira, ao lado dela, e tentar beijá-la. Acho que não fui tão sutil quando tentei ser,
porque tenho memórias dela colocando o celular na frente do meu rosto, rindo e me afastando.
Pelo menos ela levou tudo na brincadeira. Sua risada era gostosa; nunca tinha ouvido pelos
áudios.
Ela foi embora, e não nos falamos por alguns meses.

***
Não lembro como voltamos a conversar, mas voltamos. Ela contou mais coisas sobre
a relação familiar difícil que tinha, e eu ia voltar para o Rio de Janeiro em breve. Meu
primeiro impulso e segundo erro nasceram daí: convidei Serena para beber na minha casa,
uma noite. A princípio, não tive maldade, queria ajudar. A depressão dela piorava, a doença
de sua mãe também, assim como as exigências de seu pai. Eu queria ajudar. Queria dar uma
pausa de todo aquele caos para uma pessoa querida.
Ela apareceu, idêntica ao que era em janeiro, quando nos conhecemos pessoalmente.
Exceto, que seu cabelo cresceu. Nos encontraríamos mais algumas vezes ao longo daquele
ano, e em todas elas, a única diferença seria seu cabelo, que crescia assim como nossa relação
mutava.
Compramos juntos as bebidas, passeamos um pouco no shopping. Seguimos para
minha casa. Início da noite, tudo incrível. Série, bebida e a gente sentado na cama, porque o
quarto da minha mãe era o único com televisão no apartamento. Ela tinha ido pronta para
dormir lá, então as horas da noite avançaram com a gente junto. A gente riu bêbado, mandou
mensagens e áudios para amigos em comum. A risada dela era linda. Seu senso de humor era
horrível, do mais baixo nível, e eu adorava como combinava com o meu. Seu cabelo caía
pelos seus olhos, sua boca estava molhada de bebida. Eu percebi que queria beijá-la, de novo.
Aconteceu de forma natural; Serena sentiu frio e se deitou na cama, se cobrindo. Eu
me deitei também, porque eu queria tentar algo. Abracei ela, e puxei para perto. Mas ela não
cedeu. Apenas assistimos filmes, e eventualmente decidimos dormir. Quando acordamos,
abracei ela. Tentei cheirar seu pescoço, tentei começar algo, mas ela disse não. Eu me afastei.
Meus pais chegaram, de qualquer forma, então foi melhor. Tomamos café da manhã
normalmente, nada tinha acontecido. Ela ainda ria para mim, ainda conversava comigo sobre
todas as bobagens que estávamos acostumados a conversar. Ela foi embora de tarde, e
continuamos conversando ao longo do tempo.
Tentei chamá-la para minha casa mais vezes, mas ela sempre estava ocupada. Eu não
a julgo; dentre estudar para vestibular, e cuidar do câncer da mãe, e de um pai irresponsável...
Até que um dia, quase dois meses depois que nos vimos da última vez, Serena me chamou
para casa dela.
[00:52, 12/08/2021] Serena: É só filme e pipoca. Minha mãe tá sempre em casa então vai
querer te agradar kkk Mas não dá pra beber.
[00:55 12/08/2021] Antônio: Eu tenho home office ainda na sexta, meu chefe tá me matando,
Nena. Vc n quer vir aqui em casa?
[00:55 12/08/2021] Serena: Algo contra eu morar na favela?
[00:55 12/08/2021] Serena: Garoto idiota
Revirei os olhos e dei um sorriso com a última mensagem. Depois que venci a
primeira barreira da timidez dela, comecei a ver outra parte da sua personalidade: sarcástica e
implicante de brincadeira, admito que foi difícil diferenciar as ofensas reais das afetuosas,
inicialmente. Mas... Era bom ver como ela se sentia mais a vontade de falar comigo.
[10:55 13/08/2021] Antônio: Tô com mta coisa ainda pra fazer. Chamei alguns amigos pra
vir aqui sábado, vc quer?
[10:55 13/08/2021] Antônio: São só as pessoas que vc já conhece, e mais um amigo
[11:10 13/08/2021] Serena: Ah, não sei... Vou ficar travada igual da última vez.
[11:11 13/08/2021] Antônio: Ficou nada! Eles gostaram muito de vc
[11:15 13/08/2021] Serena: Tá bom. Vou ver se dá.
Ela apareceu, de novo. Estava só um pouco atrasada, mas ninguém tinha chegado
ainda. Ela pegou sua bebida e sentou-se na cama, afastada de mim. Certo, acho que eu
merecia essa. Eu não deveria ter tentado nada com uma pessoa que namora, então me resignei
a ficar quieto, sem nenhuma tentativa de contato físico a mais no meu canto.
— Antônio, onde estão seus amigos? — Parei no meio do gole da minha cerveja. Eu
percebi que nenhum deles tinha aparecido, e desde que Serena chegou, tentei entrar em
contato com pelo menos três deles por mensagem, mas nada de me responderem. Só não
esperava que ela fosse querer a companhia de estranhos. — Você disse que viriam outras
pessoas.
Aquele tom de voz.
Olhei bem para mulher sentada do meu lado: cabelos descoloridos um pouco maiores
do que a altura das orelhas, estavam em processo de crescimento. Olhos castanhos, boca fina
e úmida de ice. Com suas sobrancelhas grossas levantadas e o tom de voz desconfiado, eu
sabia que, em sua cabeça, se passava o pior; que eu provavelmente menti e não, não convidei
ninguém. Não queria que logo ela pensasse isso de mim, então comecei a ligar. Liguei para
um, dois, três amigos, e todos não queriam ir, tinham compromisso ou estavam doentes. Um
deles teve a cara de pau de dizer que era os três de uma vez.
— Desculpa, Serena. Eu juro que chamei eles. — Seus olhos cerraram, ela deu gole
em sua garrafa e havia um sorriso brincalhão em seus lábios. — Diego disse que ia tentar vir
há uma hora, e agora quando liguei pra ele, disse que desistiu. — Talvez eu estivesse nervoso
demais.
— Tudo bem. Acontece. — Ela bebeu da garrafa, e voltou o olhar para a televisão.
— Quem ia querer resenhar com um palestrinha chato pra caralho também? — O tom de voz
dela mudou. Havia uma pequena risada de fundo, um tom de ironia tão sutil que quem não
percebesse, se ofenderia. — Nem eu sei mais por que tô aqui. — Ela olhou pra mim, sorriso
nos olhos, e esperou uma resposta.
— Você tá aqui porque é uma desocupada. Me chamou pra sua casa em plena sexta.
— Devolvi a provocação. Sabia que Serena não queria me ofender, só implicar. Mas eu não
podia deixar de graça, também.
— Justo. Não tenho como rebater isso.
O resto da noite acordados foi resenha, bebedeira e ver televisão. Foi confortável.
Havia algo diferente nela, entretanto, desde a última vez que nos vimos. Parecia mais contida,
mas não tímida. Olhava bastante no celular, estava fisicamente afastada. Mas não estava
desconfortável, sua linguagem corporal não dizia isso. Parecia... Firme. A hora avançou, o
sono bateu, e pouco a pouco fomos deitando-nos na cama. Ela, antes distante, deixou eu me
aproximar. Não sei se pela bebida, não sei se porque de fato queria. Passei meu braço pelo seu
corpo, senti o cheiro do seu perfume. Eu queria beijá-la, de novo.
— Antônio, não. — E lá estava, a firmeza que eu vi mais cedo. Percebi que meu
abraço era apertado demais, íntimo demais, para alguém que namorava.
“Antônio, não” foi a única coisa que ela me disse aquela noite.
Meu sono não foi linear, assim como não foi da última vez que ela dormiu na cama
comigo. Acordei duas ou três vezes durante a noite, todas elas com Serena reclamando de
calor, de falta de espaço, ou que eu fazia barulhos estranhos dormindo. Não consegui me
incomodar com as reclamações, elas eram íntimas, e ela estava certa em todas elas.
A última vez que acordamos, eu fiz algo que não deveria, mas não me arrependo.
Serena disse, de novo, que eu estava empurrando-a para fora da cama. Ela estava de costas pra
mim. Serena era pequena, pouco mais de um metro e meio, e leve. Passei meus braços pelo
seu corpo, abraçando-a e puxei para perto de mim. Virei meu corpo de barriga para cima e ela
parou em cima de mim. Automaticamente, sua gargalhada preencheu o quarto. Meu coração
se apertou em meu peito e conforme ela voltava a deitar na cama, o mesmo desejo que me
preenchia desde a primeira vez que nos vimos voltou a se manifestar.
— Não, Antônio.
— Mas eu não fiz nada! — Ela levantou a sobrancelha e eu tive que admitir: — Tá,
tudo bem, eu sei, te levantei. Mas fora isso...
Serena suspirou. Parecia meio triste.
— Eu não posso fazer isso com o Yuri. A gente namora há 4 anos. — Senti o sorriso
deixar meu rosto, mas a expressão dela era compreensiva. — Você é um ótimo amigo, não
precisava fazer nada do que faz por mim. — Respirou fundo. — Não precisava cozinhar pra
mim, não precisava pagar meu Uber pra cá... Mas eu não posso. Quero continuar sua amiga,
por isso estou falando contigo isso.
Olhei para o rosto dela por alguns segundos. Estava sendo sincera. Em todas as
partes, e isso que me doía.
— Seu namoro é uma merda. — Ela fez uma cara de concordância. — Yuri não te
valoriza, não sai com você, com seus amigos, não quer fazer nada de diferente. Ontem mesmo
você tava reclamando que nem em senso de humor vocês combinam! — Levantei da cama,
precisava me mexer, estava indignado. — Serena, pelo amor de deus! — Cabelos brancos na
altura do nariz, lábios finos e sobrancelhas expressivas. Ela era linda. — Por que você aguenta
esse cara? Você não sai mais, não faz nada de divertido, você me disse isso.
Sua cabeça abaixou, e acho que ela estava triste. Automaticamente me arrependi de
tudo. Da ajuda nos estudos, do meu aniversário, da visita anterior e, especialmente, dessa. Eu
não queria causar tristeza a ela.
— Tem razão. — Ela falou, baixinho, antes de levantar a cabeça e me olhar. — Mas
não seria certo. — Eu queria abrir a boca para falar mais, mas ela me interrompeu: —
Antônio, a consciência pesada depois é minha. — Estava séria. O tom suave de sua expressão
e voz sumiram. — Eu quero continuar sua amiga, podemos ser? Apenas amigos?
Acenei que sim com a cabeça. É claro que eu preferia tê-la como amiga do que não a
ter. É claro que o sexo era secundário. Eu só... Não conseguia entender como Serena,
irritadiça e ansiosa, bondosa e empática, podia se submeter a um relacionamento tão horrível,
sem paixão, sem amor e repleto de indiferenças. Mas, me resignei. Ela era adulta, e estava
certa, em todas as partes. Eu não tinha compromisso, ela sim. E ela era decente o suficiente
para se arrepender de erros.
Cada um foi para um banheiro e quando saímos, parecia que nada tinha acontecido.
Perguntei o que ela queria tomar de café da manhã, ela fez algum comentário sobre não ter
nada na minha casa e que eu era “inútil e irresponsável”, acompanhado do sorriso irônico.
Comemos, paguei o Uber dela até o metrô e ela foi embora.
***
Faltava uma semana para o seu aniversário quando Serena me procurou de novo.
A gente conversou um pouco entre um dia e outro, mas não foram conversas longas.
Ela reclamou dos pais, principalmente. A doença da mãe piorou. Mas nada fora do normal, até
aquela segunda-feira.

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