Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
CARLOS DE ASSIS
mitosem
máscara
PANDEMIA, RECESSÃO
E SAÍDAS PARA
MUDAR O BRASIL
Movimento
Popular
pela
Justiça Social
mitosem
máscara
PANDEMIA, RECESSÃO
E SAÍDAS PARA MUDAR
O BRASIL
Grafite com o rosto de Bolsonaro em muro do Rio de Janeiro, em 12 de julho. Foto: MAURO PIMENTEL
J. CARLOS DE ASSIS
São Paulo
2020
Movimento
Popular
pela
Justiça Social
O MITO SEM MÁSCARA
PANDEMIA, RECESSÃO E SAÍDAS PARA MUDAR O BRASIL
8
SUMÁRIO
PREFÁCIO
Um Brado de Alerta
Roberto Requião p. 11
Legislação Pertinente p. 39
Finanças Funcionais p. 46
Roberto Requião*
E
ste livro é um brado de alerta para o Brasil. Ou o povo toma as
rédeas de nosso destino e reconverte o país no sentido de uma re-
tomada do desenvolvimento e do emprego, ou deixa que perpetue
indefinidamente a maior crise de nossa história em todos os sentidos. O
coronavírus, que em si é uma tragédia secular, aprofundou uma crise eco-
nômica que já vinha de antes. No contexto dessa crise, as elites, em parti-
cular as elites financeiras, comportam-se com ânsia de ampliar lucros, nos
empurrando para uma situação dramática de degradação das instituições
na qual o povo é a maior vítima.
Este livro do economista José Carlos de Assis não traz apenas crí-
ticas. Traz também um fio de esperança para o país nessa hora terrível
de desesperança. Recorrendo a clássicos e modernos da economia, Assis
aponta caminhos, na macroeconomia keynesiana e na teoria das finanças
funcionais (TFF) de Abba Lerner – um autor quase esquecido porque foi
efetivamente esmagado pelos ideólogos da banca –, para indicar as ro-
tas críticas de retomada do nosso desenvolvimento. Essa teoria de lógica
implacável, acolhida que foi por jovens economistas norte-americanos na
teoria monetária moderna, é o caminho de salvação a seguir.
11
Recomendo fortemente a leitura de O mito sem máscara para todos
os nacionalistas e todos os democratas brasileiros. A perspectiva é de que
tenhamos um longo e tortuoso caminho a seguir, mas julgo que, em algum
momento, a cidadania se levantará para forçar as instituições a se move-
rem em busca de uma economia de bem-estar social. Numa democracia, o
projeto maior é a defesa do pleno emprego. Sem emprego decente, como
estamos hoje, fica em risco a defesa da propriedade privada, pois esta só se
justifica quando cada homem e cada mulher podem garantir sua sobrevi-
vência através de um trabalho digno e bem-remunerado.
12
O legado possível da pandemia
e da depressão econômica
Efeitos do coronavírus e da recessão para mudar o Brasil
Medidas microeconômicas
13
A Covid-19 poderá ser combatida com grande eficiência mediante
o isolamento social dos mais pobres e a mobilização de recursos oficiais a
fundo perdido, por simples emissão monetária ou de dívida pública, a um
custo extremamente baixo de colocação dos papéis, nos termos das finan-
ças funcionais. Governo federal, estados e municípios poderão se articular
para o financiamento de programas sociais estruturantes, visando ao reco-
nhecimento do direito à vida de pobres, miseráveis, índios em situação de
risco, mulheres especialmente vulneráveis e de outras minorias. Outros
programas de interesse social, planejados em curto prazo – mencionados
adiante –, possibilitariam uma reforma nas infraestruturas de saneamento,
educação, moradia e segurança do país.
14
se fale nisso. Mas o economista André Lara Resende – até então o mais
importante desse campo – já mudou de lado e assumiu a causa.
Conclusão parcial
Esse conjunto de medidas assegura um legado sólido para as futuras gera-
ções de brasileiros: combate coerente e efetivo à pandemia e recuperação
econômica sustentada já no mais curto prazo, lançando mão dos instru-
mentos clássicos, a serem usados ou reutilizados a partir da expansão da
demanda. Demanda essa que deve ser implementada ainda no tempo da
epidemia, gerando aumento de investimento, de emprego, e novamente do
investimento, e assim por diante, criando um círculo virtuoso de cresci-
mento sustentado ao estilo keynesiano.
15
Essa situação também deixará um legado positivo para a sociedade na for-
ma de uma infraestrutura sanitária mais sólida.
16
do do Supremo Tribunal Federal (STF). No meu entender, se os ministros
forem adequadamente informados sobre a natureza desse crédito, e espe-
cialmente sobre o montante que deverá ser pago pela União, bem como so-
bre a relação entre a expansão financeira e a recessão profunda em que nos
encontramos – a qual, como observado, possibilita gastos públicos até que
a capacidade ociosa se esgote –, eles saberão que não há nessa iniciativa
nenhum risco de inflação ou qualquer outro desequilíbrio, o que justifica o
financiamento monetário imediato da dívida dos estados nos termos acima
descritos. Meu medo é que Paulo Guedes se aproprie desses conceitos e
comece já uma expansão monetária em favor dos ricos, algo que ele já fez
em relação aos bancos privados.
17
ral, que pode criar moeda. Estados e municípios podem fazer uma grande
mobilização política país afora, demandando receber o dinheiro da dívida
ao qual têm direito. Com esses recursos, será possível financiar a renda
mínima durante uns três anos, e, nos anos seguintes, com a recuperação
financeira induzida pelo próprio aumento da renda de base, aliada à expan-
são dos tributos, seria possível dar continuidade ao programa.
18
Pandemia e retomada do
emprego e da renda
Elementos de um plano nacional de desenvolvimento em
tempo de crise
Medidas macroeconômicas
Enfrentamos uma crise secular em vários níveis. Nada semelhante pro-
vavelmente ocorrerá em tempos futuros, considerando a agressão de um
vírus mortal, junto a uma profunda recessão econômica e a tragédia de
um mau governo, combinados num mesmo movimento. Os dois primeiros
fatores estão ao alcance da política econômica, enquanto o terceiro depen-
de da política em sentido mais amplo. De qualquer modo, o eixo central
para o enfrentamento dessas crises passa por uma verdadeira mudança de
paradigmas, o que supõe transformações nos planos social, econômico e
político, numa escala jamais enfrentada pelo povo brasileiro.
19
Este, e seus sucessores, foram atropelados pela crise da dívida externa. E
em vez de declararem uma moratória soberana, para recuperar sua capaci-
dade de pagamento, esses governos decidiram a todo custo tentar pagar a
dívida para, a partir daí, sustentar os pagamentos externos. A dívida, em si,
foi equacionada só em 1994. Seus efeitos, porém, seriam estendidos até o
governo Lula, quando superávits espetaculares de nossas reservas elimina-
ram circunstancialmente a crise externa.
20
tema federativo: contribuir para o crescimento econômico e a geração de
renda. Infelizmente, os agentes estaduais e municipais nem sempre estão
preparados para exigir seus direitos e, em face da arrogância dos funcio-
nários federais, ficam sem poder enfrentar tecnicamente essas questões.
21
só é desnecessário como é capaz de reverter-se numa recessão ainda mais
profunda.
O fato é que nenhum país que tenha passado por uma recessão
profunda, especialmente antes da onda neoliberal, saiu dessa situação gas-
tando recursos tributários. Essa é a essência da teoria monetária moderna,
que se define por um simples aforismo: “Um Estado que emite sua própria
moeda não tem restrição financeira até o esgotamento de sua capacidade
ociosa provocada pela recessão”. Portanto, o Estado pode investir emitin-
do dinheiro. E, mesmo que uma economia estiver em situação de recessão,
não há, até o esgotamento da capacidade ociosa, risco de inflação, con-
forme presume, de forma equivocada, uma visão neoliberal. Além disso,
se o aumento da capacidade ociosa gerar inflação, pode-se simplesmente
aumentar os impostos.
22
teoria. O Banco Central Europeu, por sinal, já analisa a possibilidade de
adotar o padrão financeiro das finanças funcionais na sua relação com os
Estados europeus.
23
estudar o assunto e tomar uma decisão. Desde já, nos oferecemos para
participar da discussão, com nossa equipe, esperando contar também com
a crítica de outros economistas independentes.
24
Bases para um grande pacto
político no Brasil
Fundamentos
Diante de ameaças concretas de radicalização política e até de fragmenta-
ção territorial que afetam o Brasil enquanto nação, num momento crucial
como este de pandemia e depressão econômica, a sociedade civil brasileira
tem o dever cívico de buscar uma alternativa nacional que, ancorada em
princípios de solidariedade e fraternidade, caminhe no sentido de um gran-
de pacto político. Para isso, não basta reunir as forças políticas a fim de
estabelecer um acordo; é preciso, antes, definir as linhas básicas do acordo,
por meio de personalidades de credibilidade reconhecida, para então sa-
cramentá-lo em um grande pacto consensual. É fundamental que o povo se
una, acima de eventuais divergências políticas e ideológicas e deixando de
lado a emoção provocada por suas opções de voto. E é necessário advertir
ao conjunto do povo – se ainda não se apercebeu disso – que estamos na
iminência de uma convulsão social, em larga escala, determinada pelas
três crises mencionadas no início. Portanto, temos de fazer todo o possível
para evitá-la.
25
A crise política é gigantesca. Tornamo-nos uma caricatura de de-
mocracia, com quase quarenta partidos políticos, e a maioria com repre-
sentação fragmentada no Parlamento. É evidente que essa distorção não
advém de nenhuma força externa ao Congresso: é uma distorção de autoria
coletiva desse poder legislativo, que só pode ser revertida por iniciativa
dos próprios parlamentares. Obviamente, nesta democracia que precisa-
mos reconstruir, é o próprio Parlamento que dita as normas de funciona-
mento da República, em caráter supremo. Justamente por isso temos de
buscar algum mecanismo para salvaguardá-lo de seus próprios erros.
26
mos a interpretação jurídica arbitrária de leis vagas, segundo a qual, por
dedução hermenêutica, é considerado crime aquilo que não está previsto
em lei, o que representa um recuo jurídico aos tempos da Idade Média.
Caixa dois eleitoral deve ser tipificado e criminalizado para que, no futuro,
não haja desculpa jurídica para esse tipo de desvio de conduta.
27
equilibrado da região. Enquanto for possível e necessário, o Brasil deverá
concorrer para superar as crises econômicas que se abatem sobre países da
América do Sul.
28
compreendida no contexto do próprio pacto social (pacto econômico) aqui
proposto, para o qual pedimos a contribuição de todas as forças políticas
do país, inclusive as atuais forças governamentais e notadamente as forças
da sociedade civil, às quais está aberto este documento, fundamentado nos
princípios de solidariedade e fraternidade, contra o ódio e voltado princi-
palmente para o futuro.
Plano econômico
Tendo em vista o caráter emergencial da crise econômica, propomos a
um eventual futuro governo que acolha as sugestões desse pacto como
parâmetro de uma ação imediata. O povo não pode esperar mais pelo equa-
cionamento da crise, principalmente pela solução do problema do desem-
prego, depois de cinco anos de recessão e até de depressão. A contempori-
zação com o alto desemprego é um crime contra a sociedade. Diante disso,
sugerimos, no âmbito do pacto, um conjunto de medidas de curto prazo
para rápida recuperação do emprego com base na experiência histórica in-
ternacional e nacional, e sobretudo nos sólidos fundamentos econômicos.
Em síntese, as medidas são as seguintes, algumas delas já mencionadas em
outras partes de nossos textos recentes:
29
à segurança alimentar do povo e ao programa de emprego garantido/
trabalho aplicado.
30
da de financiamento público, sem risco de inflação. Em torno de R$ 700
bilhões – considerando um PIB de R$ 7 trilhões – seriam destinados para
esse financiamento em três anos, sem levar em conta o efeito multiplicador
e o efeito acelerador da economia. Essa aplicação tiraria a economia do
buraco em questão de meses.
Plano social
O principal programa social é o de geração de emprego. Nele devem ser
concentradas todas as energias econômicas do país.
31
que foi conseguido nos últimos anos, com grande aplauso internacional
e nacional, não pode ser revertido. Entretanto, o governo deve ampliar os
valores pagos.
Pacto político
Deve-se convocar, ao nível da sociedade, uma Assembleia Nacional Cons-
tituinte que leve em conta: o desejo da sociedade de uma carta democrática;
a salvaguarda de princípios democráticos que não sejam atropelados pela
demagogia; a funcionalidade do sistema estatal e governamental, exami-
nando-se a conveniência de separar as funções do Estado das de governo;
e a instituição de um sistema previdenciário e de uma justiça trabalhista
justos e democráticos.
32
e de completa realização de seus desejos, fora das ameaças de convulsão
social e de fragmentação da nação, superando, acima de tudo, a tragédia do
coronavírus e da recessão.
33
conjunto da administração pública por suas funções e não por suas raízes
históricas. A natureza da função da Defesa, na era nuclear, não é a mesma
que a do início da Idade Moderna. A função de proteção do meio ambiente,
no mundo industrializado e avançado, é diferente da do tempo bucólico de
dois séculos atrás. O mesmo pode-se dizer da ciência, especialmente da
genética, com seus clones e suas semente híbridas, sujeitos à manipulação
da vida. Não se pode esquecer de também examinar a função da proteção
do trabalho e da mulher.
34
O plebiscito de 1993, já pré-determinado para o parlamentarismo, foi de-
sequilibrado em favor do presidencialismo. Assim, é falsa a ideia de que
o parlamentarismo – ou até mesmo a monarquia parlamentarista, que se
encaixaria no esquema de governo acima proposto – é um anacronismo.
A Grã-Bretanha, a Espanha e outros países europeus provam o contrário.
35
O uso oportunista da pandemia
para estrangular a federação
O padrão de estrangulamento financeiro dos estados, por parte da União,
não arrefeceu com a crise do coronavírus. Ao contrário, aprofundou-se.
Por exemplo, embora tenha aceitado de forma relutante o aumento para
R$ 60 bilhões da entrega de recursos aos estados pelo governo federal,
supostamente para aliviar os efeitos da pandemia, a lei correspondente não
caracteriza esses recursos como livres, mas como financiamento. No pe-
ríodo de suspensão do pagamento, “os valores não pagos: I- serão apar-
tados e incorporados aos respectivos saldos devedores, (...) devidamente
atualizados pelos encargos financeiros contratuais”, conforme § 1º, inciso
I, do artigo 2º, da Lei Complementar n. 173, de 27-05-2020. Isso é uma
aberração, em matéria de políticas públicas, numa época de recessão pre-
cipitada pela pandemia, como agora.
36
pessoal, independentemente do estrago que isso faria no plano administra-
tivo, também é extremamente contracionista do ponto de vista financeiro.
Isso já seria ruim numa economia normal, mas, neste tempo de depressão
provocado pela pandemia, é um crime contra o crescimento. Quando um
funcionário compra um fogão, ele está transferindo dinheiro para o fabri-
cante, que responde com investimento e criação de emprego. É estupidez,
numa pandemia, ignorar isso.
37
empresários já anunciaram que vão quebrar por falta de assistência social
e de crédito, levando com eles para a virtual indigência outros milhões de
brasileiros e suas pequenas poupanças.
38
Legislação pertinente
O caráter das leis que estão sendo empurradas goela abaixo do Congres-
so, neste período de epidemia, está sendo escondido por tecnicalidades.
É preciso ajuda de especialistas em legislação para apreender todo o seu
significado, embora algumas sejam lineares. Ei-las:
Lei Complementar nº 148/2014 – Altera a Lei Complementar nº 101,
de 4 de maio de 2000, que estabelece normas de finanças públicas vol-
tadas para a responsabilidade na gestão fiscal; dispõe sobre critérios
de indexação dos contratos de refinanciamento da dívida celebrados
entre a União, Estados, o Distrito Federal e Municípios; e dá outras
providências.
39
Foram colocadas no projeto vários condicionantes, que representam ver-
dadeiros ataques aos servidores públicos, o que fica ainda pior pelo fato
de os créditos concedidos numa situação de emergência, para salvar vidas
– pelos estados e municípios, sendo a União uma ficção jurídica –, terão
de ser pagos com correção monetária na eventualidade de sua suspensão.
Portanto, esse projeto aprovado é uma verdadeira armadilha financeira
para os servidores públicos, estaduais e municipais, e para o conjunto da
população que depende deles.
40
As principais armadilhas
41
3. Renúncia às ações judiciais em andamento contra a União, relativas à
dívida pública.
42
(…)
43
serviço público pode ser considerada nula, prevendo também outras du-
ras restrições, conforme artigo 7º como:
44
cos e militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivado
de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal
anterior à calamidade;
45
Finanças funcionais
Como o Estado pode fazer grandes investimentos
em tempos de recessão
46
dessa teoria é que não se pode temer a realização de investimentos e gastos
públicos deficitários quando há capacidade ociosa.
47
A estadualização dos benefícios
da pandemia
Se o governo se recusar a federalizar a dívida dos estados e municípios, es-
tes podem articular-se, no Congresso, no sentido de estadualizar as receitas
públicas federais, entre as quais as oriundas da reversão da dívida nos termos
propostos pelo nosso presente estudo. Nesse caso, parte do débito da União
para com os estados e municípios, da ordem de R$ 1.380 trilhão, poderia ser
direcionada para os entes federativos para ser aplicada no financiamento de
benefícios sociais, assim como em gastos específicos na área de saúde, em
investimentos de retomada da economia e no combate à epidemia.
48
A proposta a ser feita é adotar uma alternativa ao programa de be-
nefícios do governo, diferente tanto em escala como em qualidade. Primei-
ro, assegurar aos estados os recursos relativos à dívida que lhes foi imposta
pelo governo federal, no valor de R$ 1,38 trilhão. Segundo, fazer com que
os estados transfiram a gerência dos programas de benefícios a prefeitu-
ras e entidades, de competência e honestidade comprovadas, para evitar a
burocracia e a corrupção. Quanto aos direitos financeiros remanescentes
dos estados, seria preciso um programa de retomada do desenvolvimento
imediato, com base na doutrina keynesiana.
49
A grande síntese pós-neoliberal
Tese
O tempo da liberdade individual incondicional está chegando ao ocaso na
civilização ocidental. Na oriental, é provável que nunca tenha existido.
Ela foi o produto da combinação de várias revoluções do início da Idade
Moderna, desde a revolução científica a partir de Galileu Galilei até a re-
volução política de cidadania limitada na fundação dos Estados Unidos e
da república francesa, o que promoveu a liberdade dos servos em face do
feudo e dos artesãos em relação às corporações de ofício, e levou, na esfera
econômica, ao primado do capital no curso da revolução burguesa. Um
longo intervalo de tempo transcorreu entre os momentos iniciais desses
impulsos libertários até sua fixação como paradigmas da ordem civiliza-
tória do Ocidente. E, justamente no momento em que esses paradigmas
parecem cristalizados como padrão universal, eles colapsam, a partir da
economia, no alvorecer de uma nova Idade.
50
Entre as duas fases do liberalismo econômico irrestrito, desde a
Grande Depressão dos anos 1930 até a ressurgência liberal – na forma
de neoliberalismo –, prevaleceu o capitalismo regulado, como reação ao
desastre liberal da Grande Depressão e aos horrores da Segunda Guerra
Mundial. Daí resultou a construção, na Europa Ocidental, e parcialmente
nos Estados Unidos, do Estado de bem-estar social. Esse período ficou co-
nhecido como a Era de Ouro do capitalismo, combinando liberdade indi-
vidual (e empresarial) regulada e um progresso social que elevou os países
industrializados, e muitos em desenvolvimento, ao estágio mais alto da
civilização – em parte transbordando também para o bloco socialista. A
recidiva do liberalismo foi o resultado de um contexto político, geopolítico
e moral que – tendo sido em parte um produto da economia liberal – sobre-
viveu à sua primeira derrocada.
51
independente da política fiscal, pelo qual se criou a primeira moeda sem
Estado em toda a história. A marcha do mercado sobre a democracia não
pararia aí. Mas quando se tentou cristalizá-la numa Constituição comum,
França e Holanda recuaram em nome de longínquos valores socialistas. A
situação jurídica da Europa ficou indefinida, até que, por um truque tec-
nocrático, o Tratado de Lisboa fixou os parâmetros da ordem neoliberal
europeia, subordinando o cidadão ao aplicador financeiro.
52
O Papa era, em tese, o único homem livre, nas duas Idades Médias:
subordinado apenas a Deus, era quem interpretava Sua vontade, tendo-se
atribuído infalibilidade em questões de fé. Os próprios reis eram legitima-
dos pela autoridade papal, embora, na prática, tenha havido papas rivais e
até papas prisioneiros de reis. De qualquer forma, toda a ordem política,
social, religiosa e moral era imposta de cima para baixo, restringindo não
só a liberdade de cidadãos comuns, mas também a de nobres. A religião era
pervasiva, o mais poderoso instrumento de coação social a serviço dos reis
“legítimos” e dos senhores feudais. Nesse sentido, desde a Antiguidade até
a Baixa Idade Média, a civilização ocidental se caracteriza como um lugar
de estrangulamento da liberdade individual.
Antítese
Esse quadro virtualmente congelado durante séculos começou a ser sub-
vertido por Galileu Galilei, no século XVII, e foi finalmente explodido
pela Revolução Francesa no século XVIII. Galileu deu início à retirada
de Deus dos processos físicos. A Revolução Francesa tirou Deus e os reis
ungidos pela Igreja dos processos políticos. Mas não foi uma única revolu-
ção libertária, junto com a Revolução Americana. Foram várias, simulta-
neamente: a dos servos contra a nobreza rural, a da nobreza rural contra o
rei, a dos trabalhadores urbanos contra a burguesia, a da burguesia contra
o feudalismo, e a de todos contra o rei e a Igreja. E foi, sobretudo, a revo-
lução dos intelectuais contra a ordem autoritária política, moral e clerical.
53
tornou-se um deus que agia por meio das leis físicas – criador dessas leis
permanentes, sim, mas que deixava espaço para a iniciativa humana na
organização da vida secular.
54
evangélicos) fizeram da interpretação pessoal da Bíblia a pedra angular
de sua fé. Isso tinha um sentido libertário na dimensão social e política da
época, tanto que foi a base dos grandes movimentos migratórios da Europa
para a América do Norte, que eram tanto uma busca pela liberdade religio-
sa como uma reação à opressão política a ela associada, do que resultou
um impulso poderoso para o capitalismo liberal nascente.
55
Os registros fósseis que punham o homem numa cadeia evolutiva
de milhões de anos requeriam uma Terra suficientemente velha, e um Siste-
ma Solar igualmente antigo. A geologia e a física também admitiram isso,
e no fim do século XIX podia-se afirmar com alguma segurança científica
que a Terra tinha cerca de 4,5 bilhões de anos, e o Sol, aproximadamente
o dobro. Isso era compatível com o surgimento de condições por meio das
quais bactérias primordiais se desenvolveram por volta de 3 bilhões de
anos atrás, conforme atestam os registros fósseis. Assim, embora a maioria
dos cientistas do início do século XX acreditasse num criador, mesmo que
um criador indiferente à sua criação, a ciência parecia satisfazer também
aos que não acreditavam nele – não obstante o enigma fundamental do
aparecimento da vida que, em termos darwinistas, é inexplicável. Para to-
dos os efeitos, porém, mesmo entre os crentes, a ciência – em seu campo
específico – prescindia de Deus; e Deus, ou qualquer outro fator coercitivo,
foi colocado totalmente à margem do progresso científico, que conquistou
um estatuto de total liberdade de investigação.
56
Contudo, a chama libertária das revoluções americana e francesa
não se apagou. Na Europa, ao longo do século XIX, chamado de era das
revoluções por Eric Hobsbawm, essa chama libertária tomaria a forma de
múltiplos movimentos socialistas e anarquistas, tendo por base os ideais
da Revolução Francesa, considerados contraditórios, pois, de um lado, es-
tava a liberdade (irrestrita) e, de outro, a igualdade e a fraternidade. Foi na
convergência dos impulsos libertários com os avanços na área do conhe-
cimento que Marx pretendeu estabelecer o socialismo científico, que aspi-
rava a um futuro comandado pela razão, cujas bases seriam o empirismo
e o determinismo claramente vitoriosos na ciência. Segundo ele, a força
real dos interesses das classes e o conflito inexorável entre elas levariam
a uma forma superior de sociedade, na qual o individualismo exacerbado
sucumbiria a uma forma finalmente justa de organização social e política
igualitária, o comunismo.
57
especialmente na economia política livre-cambista –, na atual crise finan-
ceira, entrou em colapso junto com seu oposto, o totalitarismo político.
Inaugura-se efetivamente um novo tempo, uma nova era, uma síntese, uma
nova idade: a Idade da Cooperação.
Síntese
A primeira característica da Idade da Cooperação, no campo geopolítico,
é a ausência de uma hegemonia imperial, governando o mundo ou par-
te relevante dele. Trata-se de uma novidade em milênios, que caracteriza
uma situação intrinsecamente instável que até mesmo um Henry Kissin-
ger se recusa a reconhecer como definitiva. Contudo, isso não resultou de
uma ação intencional ou de uma fraqueza de Barack Obama, presidente do
único país que teria condições econômicas, militares e políticas de exer-
cer o papel hegemônico. Se ele tem algum mérito, é justamente o de ter
reconhecido que, no mundo objetivamente globalizado, e na presença de
um grupo de nações com poder nuclear, não há solução para os conflitos
radicalizados entre os países de real importância geopolítica sem que a so-
brevivência de toda a humanidade seja colocada em risco. Claro, continua
havendo espaço para conflitos localizados e para a afirmação de interesse
das potências centrais sobre áreas estratégicas. Contudo, sem as tensões
ideológicas que caracterizaram a Guerra Fria, esses conflitos tenderiam a
ser resolvidos pela diplomacia antes de um confronto catastrófico.
58
da democracia como instrumento básico da organização política dos po-
vos, com o intuito de escapar dos riscos que podem advir de uma ação de
eventuais governos dirigidos por líderes totalitários, com um armamento
“convencional” quase tão destrutivo quanto o atômico, e que não têm de
prestar contas de seus atos a ninguém.
59
pulação dos povos, mas terá de levar em conta os sentimentos dos povos,
que empurrarão seus dirigentes para soluções negociadas, só realizáveis na
prática mediante um processo de cooperação.
60
termos de Friedrich Hayek, o liberalismo seria uma filosofia política que pe-
netrou fundo na política, na moral e na economia. Suas raízes mais profun-
das estão no darwinismo social de Herbert Spencer, usado como justificativa
para as desigualdades de renda e de riqueza entre os homens (recompensa
do mais forte), e indiferente a qualquer princípio que garantisse a igualdade
de oportunidades na sociedade. Foi exatamente esse o tipo de liberalismo
(não a liberdade de iniciativa ou a propriedade privada dos meios de produ-
ção ou o capitalismo) que colapsou. Dados os eventos recentes do mundo,
já ninguém ousa falar em Estado mínimo e mercado autorregulado, embora
alguns epígonos neoliberais ousem apelar para a destruição do Estado de
bem-estar social em nome da eficiência econômica. Fala-se, sim, em coo-
peração entre os países, em evitar os apelos protecionistas e em proteger as
economias mais fracas – algo que, mesmo se limitado inicialmente ao cam-
po da retórica, funciona como um farol ideológico para o futuro.
61
nado pelo princípio da cooperação? As seguidas reuniões do G20 abriram
algumas frestas importantes em plena crise planetária para iluminar os no-
vos tempos na esfera econômica. Contudo, o formidável impacto inicial da
crise acabou atenuado por sinais de lenta recuperação da economia mun-
dial dentro do paradigma anterior. No início, era possível vislumbrar como
saída um mundo de capitalismo regulado, prevalecendo sobre a fracassada
autorregulação dos mercados; ou um mundo do controle dos paraísos fis-
cais e dos movimentos livres de capitais especulativos; ou um mundo de
disciplinamento comum dos sistemas financeiros nacionais para evitar a
repetição das crises sistêmicas; ou um mundo de apoio e sustentação ao
desenvolvimento dos países mais pobres. De algum modo, tudo isso está
acontecendo, porém de forma fragmentada, com maior ênfase na retórica
do que nos fatos, à margem de um eixo reordenador que caracterize efeti-
vamente um novo paradigma.
Os céticos dirão, com alguma razão, que isso não passa de palavras
escritas nos comunicados finais dos encontros, mas o fato é que não se
pode esperar mais que palavras de reuniões de cúpula desse tipo. A tradu-
ção de palavras em compromissos, e de compromissos em ações concre-
tas, pode não ser imediata, mas sua inevitabilidade não provém de vonta-
des individuais, e sim de um imperativo histórico. Mas o capitalismo vive
sua maior crise em sete décadas, e já não existe um país hegemônico que,
por ato imperial, possa ordenar a recuperação da economia. Os três gran-
des blocos – Estados Unidos, União Europeia e Ásia – e os emergentes
dependem uns dos outros, e nenhum deles pode confiar num desenvolvi-
mento estável próprio sem um estatuto de cooperação recíproca no campo
financeiro, comercial e tecnológico.
62
diplomáticas que provavelmente teriam de envolver a Rússia; o que se
mostrou politicamente inviável. E se tornou mais difícil pela imprudente
decisão norte-americana de levar adiante a construção, na Polônia e na
tchecoslováquia, do escudo de radares, que os russos viram como uma
ameaça. O Iraque está deixando de ser uma nação ocupada. Tudo isso ten-
de a acontecer sem o uso de força e sem sua ameaça. Restará o problema
do Afeganistão, de tremenda complexidade: os Talibãs são uma salvaguar-
da para Osama bin Laden e seu grupo, além de ameaçar a estabilidade do
Paquistão, que é uma potência nuclear. E o consentimento da impunidade
de Bin Laden colocaria em xeque a autoridade de qualquer presidente nor-
te-americano, tendo em vista o trauma do 11 de setembro.
63
gente. Portanto, também aqui está em processo um dos aspectos centrais
do mundo da cooperação, não obstante os obstáculos políticos objetivos
que a crise mundial coloca no caminho de uma ação mais rápida no campo
ambiental, sobretudo nos países ricos.
64
e na televisão, em que são imaginados clones humanos. Contudo, não é
apenas isso que está em jogo. Embora muita especulação em curso não
passe de fantasia, tendo em vista o estágio atual da genética, nos próximos
dez, vinte, trinta anos, ou mais, a ciência terá condições de desenvolver
experiências com genes humanos que ensejarão discussões sobre eugenia,
anomalias genéticas e o uso militar. Isso seria inevitável?
No início dos anos 1930, um jovem físico húngaro, Leo Szilard, fu-
gindo da ditadura de seu país, percebeu as implicações militares da fissão
do átomo e tentou convencer seus pares europeus a fazerem uma moratória
de informações sobre os avanços na área para evitar aplicações bélicas.
Alguns anos depois, foi ele um dos principais redatores da carta, assinada
por Einstein, que convenceu o presidente Roosevelt a autorizar o projeto
da bomba atômica. Isso ilustra como é difícil parar o desenvolvimento da
ciência, impondo limites morais; e como é fácil acelerá-lo em termos de
livre competição por inventos na busca por poder político ou econômico.
Transição caótica
A crise financeira mundial em curso surgiu de uma descolagem entre o
sistema financeiro especulativo e a economia real. Isso sempre existiu em
crises de menor ou maior monta no capitalismo. Mas há um diferencial
entre a crise de 2008 e a atual: sua escala e sua especificidade. Em mea-
65
dos de 2008, quando a crise eclodiu, o montante de ativos financeiros em
circulação no mundo, segundo o Banco de Compensações Internacionais,
elevava-se a US$ 170 trilhões, contra menos de US$ 60 trilhões, do Pro-
duto Mundial Bruto do ano anterior. A cifra relativa ao valor nacional dos
derivativos, base para as apostas na economia fictícia, elevava-se ao nível
astronômico de quase US$ 700 trilhões.
66
isso implica perdas trilionárias. E o sistema bancário tem que voltar a
emprestar dinheiro ao sistema produtivo, e não à especulação, desta vez
segundo as regras da teoria das finanças funcionais. E é justamente a isso
que o sistema bancário norte-americano resiste, não por querer conspirar
contra o país, mas para contingenciar as operações financeiras: carregan-
do mais de US$ 3 trilhões em títulos e empréstimos podres, os bancos
não têm outra alternativa para fazer dinheiro rápido e evitar a perda de
capital a não ser aplicando a curto prazo no mercado monetário (US$ 4
trilhões ao dia), no mercado de debêntures, câmbio e títulos de corpora-
ções, e na arbitragem com títulos públicos, já que a renda dos títulos que
os bancos compram do governo é maior que a dos juros dos empréstimos
que tomam dos bancos centrais. Raramente fazem empréstimos produ-
tivos a pequenas e médias empresas, pois isso imobiliza, pelo tempo do
empréstimo, suas disponibilidades financeiras. E como as pequenas e
médias empresas representam 65% do emprego gerado nos Estados Uni-
dos, a falta de crédito as impede de empregar, e a taxa de desemprego
continua elevada!
67
Esta é, talvez, a principal característica distintiva entre os desalen-
tados programas de recuperação em curso nos Estados Unidos, na União
Europeia e no Japão, e os vigorosos programas da China e da Índia (o Bra-
sil recuou na corrida): estes últimos têm sistemas bancários totalmente, ou
em grande parte, públicos, enquanto, nos primeiros, é a banca privada que
domina absolutamente o sistema bancário comercial. Na China e na Índia,
por exemplo, ainda em novembro de 2008, os governos definiram am-
plos programas de estímulo e determinaram aos bancos que ampliassem as
operações bilionárias de crédito. No Brasil, inicialmente expansionista, o
BNDES recebeu do Tesouro R$ 100 bilhões , complementados posterior-
mente com mais R$ 80 bilhões, para sustentar o investimento privado. En-
quanto essas decisões de governo eram transformadas em investimentos
reais nos países emergentes, nos países industrializados avançados a banca
privada – salva do desastre pelo dinheiro público – voltava ao curso nor-
mal das especulações de curto prazo, sem oferecer risco, e sem contribuir,
ao crescimento.
68
culativas no período do boom. Se na voragem especulativa houve ganhos
bilionários sem correspondência com o sistema produtivo real, na fase de
desinflação seria de se esperar que houvesse perdas correspondentes. En-
tretanto, os governos dos países industrializados introduziram uma espécie
de cunha no sistema para impedir as perdas dos especuladores. O proces-
so consistiu em realizar imensos déficits públicos financiados por títulos
governamentais e pelo consequente aumento das dívidas públicas, com os
quais, em última instância, foi enxugada a bolha especulativa. O que era
uma especulação privada desenfreada, supostamente arriscada, passou a
ser uma aplicação segura em títulos públicos.
69
ainda individualmente a maior e mais poderosa nação do mundo, e, na Eu-
ropa, cuja economia e população são coletivamente ainda maiores.
70
cionado para infraestrutura, no montante de US$ 50 bilhões. Com a perda
da maioria na Câmara, porém, Obama teve dificuldades em levar adiante
qualquer novo programa de estímulo fiscal, na medida em que os republi-
canos se opuseram firmemente a novos gastos e, na verdade, prometeram
batalhar por alguma forma de consolidação fiscal que eliminaria toda pos-
sibilidade de políticas keynesianas anticíclicas.
71
dos países emergentes não é suficiente, mesmo que continuem crescendo,
para suportar a necessidade de aumento das exportações dos Estados Uni-
dos e dos demais países industrializados. A China e a Índia, entre outros
países em desenvolvimento, no início, trataram a crise, inicialmente e cor-
retamente,
72
instituiu a moeda única (3% e 60%, respectivamente). Um pacto separado
entre Alemanha e França estabeleceu critérios para sanções automáticas às
outras nações do euro que fugissem a essas regras.
73
políticas econômicas. Contudo, num meio caótico marcado pela transição de
paradigmas, o véu ideológico pode, por longo tempo, embaçar a percepção
do rumo correto das decisões políticas. Acontece que a política também é
um processo de tentativa e erro: na medida em que as escolhas dos gover-
nantes não correspondam às aspirações das massas, cedo ou tarde eles serão
afastados do poder. O recurso que pode acelerar esse processo, na situação
caótica em que vivemos, passa necessariamente pela crítica da economia
política. Mas nem isso é suficiente. É preciso que dirigentes carismáticos
levem às massas uma mensagem social e política renovadora.
74
A tentativa de impor uma valorização rápida da moeda chinesa é,
pois, uma falsa solução para problemas muito mais profundos. Na realida-
de, os chineses não podem aceitá-la, pois sabem que uma desvalorização
acelerada desestabilizará sua economia e repercutirá no equilíbrio de sua
sociedade, composta por 1,3 bilhão de pessoas. Mesmo que aceitassem,
o desequilíbrio comercial com os Estados Unidos não seria resolvido em
razão dos outros fatores acima mencionados. O resultado seria a intro-
dução de um elemento caótico adicional num mundo já caótico. A razão
básica disso é que o diagnóstico vulgar de que os desequilíbrios comerciais
se devem a desnivelamentos monetários é grotescamente equivocado. Os
desnivelamentos monetários são consequência de uma contradição mais
profunda, que diz respeito aos desequilíbrios entre demanda interna e de-
manda externa induzidas pela política macroeconômica como um todo, e
não apenas pela política cambial.
75
mitadas, porque o produto exportado pode corresponder a uma produção
excedente, acima da quantidade necessária para suprir a procura domésti-
ca. Pode ser também que a qualidade dos bens exportados não seja própria
para consumo de massa, como no caso da produção de máquinas, equipa-
mentos e produtos químicos alemães de alta sofisticação. Em termos fi-
nanceiros, a receita da exportação é salário ou lucro. No caso do lucro, ele
pode se tornar poupança ou novo investimento, interno ou no exterior. É
possível que isso promova concentração de renda, mas, de qualquer modo,
produzirá acumulação de reservas, aumento de poupança e crescimento do
emprego e do produto em questão.
76
O esquema de Keynes, com a criação de uma moeda contábil in-
ternacional para balancear os saldos do comércio mundial (o plano Ban-
cor), não foi aceito pelos Estados Unidos, por conta da posição confortá-
vel que ocupavam como emissores da moeda hegemônica, o dólar, numa
época em que eram largamente superavitários no comércio externo. Com
isso, não existe nenhum indutor artificial que balanceie financeiramente
o comércio. Daí a compulsão, no curto prazo, por “guerras cambiais”
competitivas, que dão uma vantagem inicial ilusória, mas acabam sendo
autodestrutivas. Elas próprias são o epifenômeno de uma realidade mais
elementar: como já mencionado, o desequilíbrio permanente no comér-
cio mundial reflete o desequilíbrio nas demandas internas dos países su-
peravitários e deficitários.
77
ta, contudo, ou não foi entendida, ou passou despercebida pela imprensa.
Na realidade, por detrás da cortina de fumaça da “guerra cambial” – algo
muito explorado pela mídia talvez porque contenha o conceito emocional
de guerra –, ficou em segundo plano a natureza mesma do conflito, funda-
mental em matéria de política econômica entre Estados Unidos e China,
de um lado, e Alemanha, França, Inglaterra e o resto da Europa, de outro.
78
desvalorização do iene. O lado significativo disso é que a valorização do
yuan chinês, proposta pelos Estados Unidos, mesmo se fosse aceita pela
China, provavelmente não seria eficaz para balancear as duas economias,
pois a competitividade chinesa, como já mencionado, baseia-se em muitos
outros elementos além da desvalorização monetária.
79
so. Isso porque o ajuste – que em resumo se caracteriza pelo corte de gastos,
salários e pensões públicas – destina-se à geração de excedentes exportáveis,
ou seja, só funciona se no mundo houver consumidores dispostos a importar.
Agora, a situação é diferente. Todos os países do mundo querem restringir as
importações e aumentar as exportações. Diante disso, a única solução possí-
vel são programas simultâneos de estímulo à demanda agregada, em todos os
países onde o consumo interno está baixo, para favorecer tanto exportações
como importações. A propósito, deve-se reconhecer – à margem de toda a
estridência crítica em relação ao valor do yuan – que a China está fazendo um
responsável programa de elevação da sua demanda interna, com um índice de
aumento das importações superior ao das exportações!
80
entre o país mais poderoso e o país mais dinâmico: como numa troca de
genes para produzir o novo, elementos do liberalismo ocidental serão ab-
sorvidos pela China e pela sua órbita de influência, enquanto elementos de
planejamento centralizado e estatização limitada certamente terão de ser
absorvidos pelos Estados Unidos, para o próprio bem-estar de seu povo,
que em algum momento deverão ser irradiados para a Europa. Um sinali-
zador sugestivo disso é a intenção dos governos norte-americano e inglês,
bem como da Comissão Europeia, de criarem uma espécie de banco de
desenvolvimento público em seus países. É claro que nada disso se imporá
sem conflitos internos, muitos deles radicalizados. A presença, neste mo-
mento, de um Tea Party nos Estados Unidos indica a ainda considerável
força social das correntes conservadoras no país. Entretanto, as condições
ainda iniciais dos ajustes econômicos não podem dar a ideia completa do
incêndio social que se prepara na Europa, que certamente impulsionará
futuras mudanças progressistas.
81
ceder lugar a alguma forma estável de cooperação, a relação entre empre-
sas de todos os portes preservará, em algum nível, características competi-
tivas. No plano empresarial, a competição é essencial para a inovação e o
crescimento. A tendência, porém, é de que seja uma competição regulada,
como já se observa nas condicionantes ambientais da produção industrial.
82
No caso das grandes corporações mundiais, o elemento competiti-
vo básico continuará sendo a inovação. Essas empresas são grandes demais
para quebrar, tendo em vista a perda de recursos sociais e de empregos que
isso representaria. Portanto, não interessaria a ninguém uma competição
destrutiva entre elas. Isso não entra em contradição com uma ordem pla-
netária de cooperação, uma vez que a regulação do ambiente competitivo
dessas corporações, pelos diferentes órgãos de controle – por exemplo, das
sociedades anônimas abertas –, já acontece e continuará acontecendo por
meio de um processo legislativo caracterizado, por definição, pela coope-
ração imposta pela democracia de cidadania ampliada aos elementos da
sociedade e da economia.
83
os crimes cometidos pela imprensa ficam impunes, caso não haja juiz de
suficiente coragem para se contrapor à mídia. Contudo, qualquer tentativa
de atacar essa insuficiência pela via legal seria contraproducente, e contra-
riaria o princípio básico da liberdade de imprensa. O avanço civilizatório,
no plano ético, é que eliminará essas insuficiências.
J. Carlos de Assis
Em junho/julho 2020
84
José Carlos de Coleção Cidadania
Assis: jornalista, Este livro é o primeiro da série “Coleção Cidadania”,
economista, da MECS, publicado pelo Movimento Popular pela
professor, mestre Justiça Social. Nela serão tratados por vários autores
e doutor em progressistas temas relacionados com Economia
Política, Geopolítica, Finanças Funcionais, Ciências
Engenharia de
Sociais, Federação, entre outros, numa perspectiva
Produção pela independente em confronto direto com
Coppe/UFR, autor as propostas neoliberais.
de artigos de
economia e de mais Neste primeiro volume, são abordadas as questões
relacionadas à degradação do sistema federativo
de 25 livros sobre brasileiro, com o aviltamento dos Estados pelo
Economia Política apetite tributário insaciável da União, o que resultou
brasileira e mundial. em estrangulamento voraz da cidadania em sua
71 anos, aposentado base municipal por dívidas estaduais e municipais
inventadas, e que são de fato créditos deles de mais
pela Universidade
de um trilhão de reais contra a União, conforme
Estadual da Paraíba. demonstrado em “O Mito sem Máscara”.
85
“
Este livro é um brado de alerta para o Brasil. Ou o
povo toma as rédeas de nosso destino e reconverte
o país no sentido de uma retomada do desenvolvi-
mento e do emprego, ou deixa que perpetue indefinida-
mente a maior crise de nossa história em todos os sen-
tidos. O coronavírus, que em si é uma tragédia secular,
aprofundou uma crise econômica que já vinha de antes.
No contexto dessa crise, as elites, em particular as elites
financeiras, comportam-se com ânsia de ampliar lucros,
nos empurrando para uma situação dramática de degra-
dação das instituições na qual o povo é a maior vítima”.
ROBERTO REQUIÃO
ISBN 978-65-990905-0-9