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J.

CARLOS DE ASSIS

mitosem
máscara
PANDEMIA, RECESSÃO
E SAÍDAS PARA
MUDAR O BRASIL

Movimento
Popular
pela
Justiça Social
mitosem
máscara
PANDEMIA, RECESSÃO
E SAÍDAS PARA MUDAR
O BRASIL
Grafite com o rosto de Bolsonaro em muro do Rio de Janeiro, em 12 de julho. Foto: MAURO PIMENTEL
J. CARLOS DE ASSIS

O MITO SEM MÁSCARA


PANDEMIA, RECESSÃO
E SAÍDAS PARA MUDAR
O BRASIL

São Paulo
2020

Movimento
Popular
pela
Justiça Social
O MITO SEM MÁSCARA
PANDEMIA, RECESSÃO E SAÍDAS PARA MUDAR O BRASIL

Texto e edição: José Carlos de Assis

Revisão: Maria Lucília Ruy e Pedro Siqueira

Diagramação: Cláudio Gonzalez

Administração: Laercio D’Ângelo

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

A848m Assis, José Carlos de


O mito sem máscara [recurso eletrônico] : pandemia, recessão e
saídas para mudar o Brasil / José Carlos de Assis. - São Paulo, SP :
Anita Garibaldi ; CTB - Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do
Brasil, 2020.
86 p. ; PDF.
ISBN: 978-65-990905-0-9 (Ebook)
1. Economia. 2. Pandemia. 3. Federalismo. 4. Finanças
funcionais. 5. Governo Bolsonaro. 6. Política. I. Título.
CDD 338.0981
2020-2471 CDU 338(81)

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

Índice para catálogo sistemático:


1. Economia : Brasil 338.0981
2. Economia : Brasil 338(81)

EDITORA E LIVRARIA ANITA LTDA.


Endereço: Rua Rego Freitas, 249 - República
São Paulo – SP – CEP 01220-010
Tels.: (11) 3129-3438 e 3129-4586
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www.anitagaribaldi.com.br
Pedimos aos parlamentares, gestores
públicos e lideranças políticas em geral
que incentivem junto aos trabalhadores,
servidores e o povo a leitura e difusão
deste livro, cujo foco central é a política
econômica atual e as perspectivas
sociais e políticas brasileiras no curto e
no longo prazos.

Movimento Popular pela Justiça Social


Sumário

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SUMÁRIO

PREFÁCIO
Um Brado de Alerta
Roberto Requião p. 11

O Legado Possível da Pandemia


e da Depressão Econômica p. 13

Pandemia e Retomada do Emprego


e da Renda p. 19

Bases para um Grande Pacto Político


no Brasil p. 25

O Uso Oportunista da Pandemia para


Estrangular a Federação p. 36

Legislação Pertinente p. 39

Finanças Funcionais p. 46

A Estadualização dos Benefícios da


Pandemia p. 48

A Grande Síntese Pós-Neoliberal p. 50


Prefácio
UM BRADO DE ALERTA

Roberto Requião*

E
ste livro é um brado de alerta para o Brasil. Ou o povo toma as
rédeas de nosso destino e reconverte o país no sentido de uma re-
tomada do desenvolvimento e do emprego, ou deixa que perpetue
indefinidamente a maior crise de nossa história em todos os sentidos. O
coronavírus, que em si é uma tragédia secular, aprofundou uma crise eco-
nômica que já vinha de antes. No contexto dessa crise, as elites, em parti-
cular as elites financeiras, comportam-se com ânsia de ampliar lucros, nos
empurrando para uma situação dramática de degradação das instituições
na qual o povo é a maior vítima.

Este livro do economista José Carlos de Assis não traz apenas crí-
ticas. Traz também um fio de esperança para o país nessa hora terrível
de desesperança. Recorrendo a clássicos e modernos da economia, Assis
aponta caminhos, na macroeconomia keynesiana e na teoria das finanças
funcionais (TFF) de Abba Lerner – um autor quase esquecido porque foi
efetivamente esmagado pelos ideólogos da banca –, para indicar as ro-
tas críticas de retomada do nosso desenvolvimento. Essa teoria de lógica
implacável, acolhida que foi por jovens economistas norte-americanos na
teoria monetária moderna, é o caminho de salvação a seguir.

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Recomendo fortemente a leitura de O mito sem máscara para todos
os nacionalistas e todos os democratas brasileiros. A perspectiva é de que
tenhamos um longo e tortuoso caminho a seguir, mas julgo que, em algum
momento, a cidadania se levantará para forçar as instituições a se move-
rem em busca de uma economia de bem-estar social. Numa democracia, o
projeto maior é a defesa do pleno emprego. Sem emprego decente, como
estamos hoje, fica em risco a defesa da propriedade privada, pois esta só se
justifica quando cada homem e cada mulher podem garantir sua sobrevi-
vência através de um trabalho digno e bem-remunerado.

*Roberto Requião é advogado e político, foi deputado estadual, prefeito


de Curitiba, secretário estadual, governador do Paraná e senador da
República..

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O legado possível da pandemia
e da depressão econômica
Efeitos do coronavírus e da recessão para mudar o Brasil

Medidas microeconômicas

Uma mudança radical na vida política, econômica e social brasileira de-


correrá da luta contra o coronavírus e da recessão. Um aspecto crucial de
tal situação é a reversão da dívida, da ordem de R$ 1,38 trilhão, em crédito
aos estados. Tendo em vista esse montante envolvido, estados e municí-
pios teriam condições de financiar um programa sanitário, econômico e
social, a partir de baixo, numa forma mais eficaz do que a do New Deal
norte-americano dos anos 1930. A reversão da dívida, em si, poderá ser
financiada nos termos da teoria das finanças funcionais, ou teoria monetá-
ria moderna, hoje muito popular entre os economistas progressistas, nos
EUA, sem que conceitualmente venha a “quebrar” a União.

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A Covid-19 poderá ser combatida com grande eficiência mediante
o isolamento social dos mais pobres e a mobilização de recursos oficiais a
fundo perdido, por simples emissão monetária ou de dívida pública, a um
custo extremamente baixo de colocação dos papéis, nos termos das finan-
ças funcionais. Governo federal, estados e municípios poderão se articular
para o financiamento de programas sociais estruturantes, visando ao reco-
nhecimento do direito à vida de pobres, miseráveis, índios em situação de
risco, mulheres especialmente vulneráveis e de outras minorias. Outros
programas de interesse social, planejados em curto prazo – mencionados
adiante –, possibilitariam uma reforma nas infraestruturas de saneamento,
educação, moradia e segurança do país.

À medida que se verifique o controle do coronavírus, seria o mo-


mento de realizar uma forte mobilização, para o New Deal brasileiro, dos
recursos revertidos da dívida pública aos estados e municípios. Junto com
isso – e mesmo em conjunto com o ataque à epidemia –, seria o caso de
aplicar os programas sociais para populações vulneráveis. Assim proce-
dendo, em vez de desgraças, o legado desse tempo de epidemia seria um
novo tempo de prosperidade que, em termos materiais, levaria à supera-
ção desse regime autoritário conspurcado por tragédias políticas que seria
melhor esquecer. Tudo isso depende exclusivamente de uma força: o Con-
gresso Nacional. Só ele tem o poder de desencadear esse processo, pois do
Executivo nada se espera.

Essas medidas de curto prazo, a cargo dos governos estaduais e


municipais, podem e devem ser acompanhadas por um programa de longo
prazo; realizado naturalmente pelo governo federal, detalhado no capítulo
seguinte. É importante assinalar que, do ponto de vista técnico, é possível
realizar uma escalada de investimentos públicos sem inflação, uma vez
que a economia está com alto grau de ociosidade por causa da queda da de-
manda. Portanto, nessas condições, pode-se seguir o princípio das finanças
funcionais, segundo o qual, numa economia em alta recessão, o Estado não
tem restrições inflacionárias para investir. Os ortodoxos não gostam que

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se fale nisso. Mas o economista André Lara Resende – até então o mais
importante desse campo – já mudou de lado e assumiu a causa.

Ressalte-se que a compreensão das finanças funcionais é essencial


para uma virada profunda na maior praga que há décadas persegue a eco-
nomia brasileira: o sistema bancário corrompido que se serve da dívida pú-
blica para ganhar dinheiro à custa de todo o resto da sociedade, inclusive
dos ricos. Adiante detenho-me nessa questão. Entretanto, é um imperativo
de interesse nacional fazer uma reforma no sistema bancário no Brasil.
Sem essa reforma, jamais haverá uma economia sólida e financiada de for-
ma barata, nem tampouco relações justas entre o Banco Central do Brasil
(BC) e os bancos privados, que ganham bilhões apenas apertando teclas
de computador, no conhecido sistema de operações comprometidas – no
fundo, comprometidas apenas em dar dinheiro ao banco, sob proteção do
Banco Central, ao qual os ingênuos, ou vigaristas, do sistema ainda que-
rem independente!

Conclusão parcial
Esse conjunto de medidas assegura um legado sólido para as futuras gera-
ções de brasileiros: combate coerente e efetivo à pandemia e recuperação
econômica sustentada já no mais curto prazo, lançando mão dos instru-
mentos clássicos, a serem usados ou reutilizados a partir da expansão da
demanda. Demanda essa que deve ser implementada ainda no tempo da
epidemia, gerando aumento de investimento, de emprego, e novamente do
investimento, e assim por diante, criando um círculo virtuoso de cresci-
mento sustentado ao estilo keynesiano.

O objetivo prioritário atual, o combate ao coronavírus, será alcan-


çado mediante o isolamento social assegurado. Para tanto, é necessário
conceituá-lo como investimento – e não gasto –, pois, sem a alocação ge-
nerosa de investimentos públicos para financiar o isolamento, sobretudo
dos pobres, não há garantia de que o vírus não migrará livremente de um
lado para outro, acompanhando os que estão na escala social mais baixa.

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Essa situação também deixará um legado positivo para a sociedade na for-
ma de uma infraestrutura sanitária mais sólida.

Há um potencial considerável, pois, a tragédia do coronavírus, com


seus milhares de mortos, pode vir a se tornar uma oportunidade para o Bra-
sil mudar para melhor se, para tanto, forem criadas condições estritamente
políticas, ou seja, ruptura radical com o neoliberalismo, que se encontra
em decadência, e confiança no sistema keynesiano, refinado por outros
grandes economistas, como Abba Lerner; cujo pensamento é abordado no
anexo. O Congresso Nacional terá de dar passos decisivos para salvar a
sociedade da tragédia do vírus e a economia de um desastre recessivo sem
precedentes.

Tai condiçoes não serão alcançadas sem as reformas política e do


Estado. Tenho escrito sobre esses temas, mas só agora vejo que a situação
amadureceu para um debate franco, acima de divergências partidárias e
políticas, como propõe o senador Roberto Requião. A meu ver, o Con-
gresso deveria considerar a urgência do momento e agir. Recentemente
entrevistei um experiente sanitarista carioca, doutor José Romano, que me
deixou literalmente apavorado – na minha condição de leigo no assunto
– com as perspectivas da pandemia. Segundo ele, estamos chegando ao
ponto de não conseguir reverter a expansão do vírus; em outras palavras,
a disseminação do coronavírus, em escala nacional, tende a tornar inócuas
mesmo medidas profiláticas importantes como o isolamento social. Como
exemplo, citou Minas Gerais, com trezentos focos reconhecidos da difu-
são do vírus. Creio que isso deve ser levado em conta pelas autoridades
sanitárias, pelo menos as estaduais e as municipais, para que a situação
não venha a se tornar uma tragédia, cuja solução exigiria dois ou três anos,
com muitos mortos pelo caminho.

Entretanto, para um programa abrangente de combate ao vírus e à


recessão, nos planos municipal e estadual, é fundamental a solução – nos
termos que proponho – do problema da dívida dos estados e dos municí-
pios, que lhes deve ser revertida em crédito. Essa solução depende sobretu-

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do do Supremo Tribunal Federal (STF). No meu entender, se os ministros
forem adequadamente informados sobre a natureza desse crédito, e espe-
cialmente sobre o montante que deverá ser pago pela União, bem como so-
bre a relação entre a expansão financeira e a recessão profunda em que nos
encontramos – a qual, como observado, possibilita gastos públicos até que
a capacidade ociosa se esgote –, eles saberão que não há nessa iniciativa
nenhum risco de inflação ou qualquer outro desequilíbrio, o que justifica o
financiamento monetário imediato da dívida dos estados nos termos acima
descritos. Meu medo é que Paulo Guedes se aproprie desses conceitos e
comece já uma expansão monetária em favor dos ricos, algo que ele já fez
em relação aos bancos privados.

Não se trata de uma hipótese sem fundamento. Os neoconservado-


res norte-americanos, obcecados pela política de garantir recursos para a
Defesa e vinculados aos centros de pensamento político mais retrógrados
do país – que formam os chamados Deep State, ou Estado Profundo –, são
favoráveis, por contraditório que pareça, a políticas sociais para as pes-
soas de baixa renda e, em especial, à renda mínima universal concedida
pelo Estado a todos os pobres. A condição para isso é favorecer o sistema
de Defesa e, com ele, o grande capital financeiro. Para Roberto Requião,
esse regime econômico funciona como uma transferência de alguns par-
cos benefícios para os pobres a fim de acobertar os privilégios dos ricos.
Portanto, que se cuidem os progressistas reais: não é impossível perceber
que a renda mínima universal seja concedida não para favorecer os pobres,
mas para sequestrar seus votos e ganhar seu ingênuo apoio nas eleições!

A prevenção contra mais esse esbulho neoliberal conduzido por


Guedes é fazer com que estados e municípios se adiantem a Jair Bolsonaro
e criem, eles próprios, programas de renda mínima. Aliás, já é sem tempo o
estabelecimento dessa política social. Recorde-se que esta é uma proposta
antiga do ex-senador Eduardo Suplicy. Obviamente, estados e municípios
não têm como financiar esse programa nas condições atuais. Quem pode
financiá-lo, dentro do conceito das finanças funcionais, é o governo fede-

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ral, que pode criar moeda. Estados e municípios podem fazer uma grande
mobilização política país afora, demandando receber o dinheiro da dívida
ao qual têm direito. Com esses recursos, será possível financiar a renda
mínima durante uns três anos, e, nos anos seguintes, com a recuperação
financeira induzida pelo próprio aumento da renda de base, aliada à expan-
são dos tributos, seria possível dar continuidade ao programa.

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Pandemia e retomada do
emprego e da renda
Elementos de um plano nacional de desenvolvimento em
tempo de crise

Medidas macroeconômicas
Enfrentamos uma crise secular em vários níveis. Nada semelhante pro-
vavelmente ocorrerá em tempos futuros, considerando a agressão de um
vírus mortal, junto a uma profunda recessão econômica e a tragédia de
um mau governo, combinados num mesmo movimento. Os dois primeiros
fatores estão ao alcance da política econômica, enquanto o terceiro depen-
de da política em sentido mais amplo. De qualquer modo, o eixo central
para o enfrentamento dessas crises passa por uma verdadeira mudança de
paradigmas, o que supõe transformações nos planos social, econômico e
político, numa escala jamais enfrentada pelo povo brasileiro.

Há décadas perdemos a perspectiva dos planos de desenvolvimen-


to governamentais. Os dois realizados nos anos 1970 e 1980 tiveram efeito
altamente positivo. Entretanto, bombardeados pelos ideólogos neoliberais
contrários à função desenvolvimentista do Estado, eles praticamente desa-
pareceram da formulação do governo. Em parte, isso se deveu também à
ampla rejeição do Estado autoritário por causa da ditadura, da tortura e da
regressão política. Entretanto, se os líderes da abertura econômica tives-
sem sido mais sábios teriam separado a parte política da parte econômica
do Estado, valorizando devidamente esta última.

O fato é que não tivemos plano de desenvolvimento econômico


desde o último governo militar comandado pelo general João Figueiredo.

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Este, e seus sucessores, foram atropelados pela crise da dívida externa. E
em vez de declararem uma moratória soberana, para recuperar sua capaci-
dade de pagamento, esses governos decidiram a todo custo tentar pagar a
dívida para, a partir daí, sustentar os pagamentos externos. A dívida, em si,
foi equacionada só em 1994. Seus efeitos, porém, seriam estendidos até o
governo Lula, quando superávits espetaculares de nossas reservas elimina-
ram circunstancialmente a crise externa.

Agora estamos voltando rapidamente à crise externa pelas mãos


do presidente Bolsonaro e de seu plenipotenciário ministro da economia,
Paulo Guedes. As reservas estão sendo esgotadas em razão de uma política
econômica suicida que estrangula a produção da indústria e dos serviços
domésticos. E essa situação aponta para a necessidade de um plano nacio-
nal de desenvolvimento, pelo menos em nível conceitual. Dada a urgência,
os pontos iniciais prioritários dizem respeito ao combate à pandemia do
coronavírus; à luta contra a recessão; e ao rearranjo da administração que
é necessário articular para enfrentar a pandemia e a recessão.

Para combater a recessão com eficácia é fundamental, como men-


cionado acima, um New Deal brasileiro, entendido como um plano no qual
o Estado investe pesadamente em todas as áreas, promovendo a demanda
agregada e o emprego. Temos o fundamento teórico para que isso seja fei-
to sem inflação: a teoria das finanças funcionais de Abba Lerner, também
conhecida como teoria monetária moderna, hoje popular entre muitos es-
pecialistas norte-americanos. Por outro lado, é fundamental liquidar de vez
a imposição de dívidas, feita pela União, aos estados federados, reconhe-
cendo sua nulidade e promovendo, como meio de retomada, a restituição
do que foi pago indevidamente.

Como mencionado, o que o governo deverá pagar aos estados (nes-


se caso, pela Lei Kandir) e lhes devolver o que cobrou indevidamente (Lei
nº 9.496) chega a mais de R$ 1 trilhão. Isso asseguraria um fantástico pla-
no nacional de desenvolvimento, um New Deal feito de baixo para cima,
à medida que estados e municípios recuperariam sua função básica no sis-

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tema federativo: contribuir para o crescimento econômico e a geração de
renda. Infelizmente, os agentes estaduais e municipais nem sempre estão
preparados para exigir seus direitos e, em face da arrogância dos funcio-
nários federais, ficam sem poder enfrentar tecnicamente essas questões.

É um imperativo de defesa do sistema federativo reparar a grande


injustiça contra estados, municípios e seus cidadãos. Entretanto, já pas-
saram pela Justiça os processos relativos ao ressarcimento de dívidas por
isenções de tributos estaduais, a chamada Lei Kandir, e nada aconteceu. É
o momento de reparar uma outra injustiça, a da Lei 9.496, esta acumulada
com imposições descabidas dos funcionários federais, aproveitando-se até
mesmo da pandemia. A Lei Kandir se origina no governo Collor para, su-
postamente, estimular as exportações de produtos primários. A Lei 9.496
inventou uma dívida que não existia.

Como a Lei Kandir tratou de eliminação de impostos estaduais,


“perdoados” pelo Governo federal, previa-se que os governos estaduais
seriam ressarcidos. Não foram.O Governo federal simplesmente renegou
a Lei Kandir sem eliminá-la. Com isso, pagou apenas parcelas insignifi-
cantes do ressarcimento (10%, em alguns casos), esmagando uma base de
recursos fundamental para os Estados. Hoje, o acúmulo da dívida da União
por conta da Lei Kandir alcança algo como R$ 638 bilhões, de acordo
com criterioso levantamento da Febrafite-Federação Brasileira de Fiscais
de Tributos Estaduais.

Somando o crédito da Lei Kandir ao ressarcimento pelo que foi


pago nas negociações da dívida imposta, ao amparo da Lei nº 9.496, cons-
tata-se que o crédito líquido e certo dos estados junto à União chega a
mais de R$ 1,380 trilhão. Entretanto, em vez de pagar, a União quer cobrar
mais. E quando concorda relutantemente em dar algum dinheiro para os
estados – como no caso dos recursos que eles estão recebendo para bancar
investimentos no período pós-pandemia –, ela impõe exigências intole-
ráveis, de forma autoritária e oportunista, aproveitando-se da pandemia
para ameaçá-los com um ajuste fiscal que, conforme exposto adiante, não

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só é desnecessário como é capaz de reverter-se numa recessão ainda mais
profunda.

É certo que R$ 1,380 trilhão aparenta ser muito dinheiro. Entre-


tanto, somos 27 estados e um Distrito Federal, com direito a quantias que
representam uma fração do total. Além disso, somos 210 milhões de habi-
tantes, vivendo em estados e municípios, usando a infraestrutura de saúde,
educação, segurança, moradia etc. No entanto, o mais importante é que o
Tesouro não precisa efetivamente gastar o dinheiro resultante dos tributos.
Ele precisa apenas emitir dinheiro, depositado nas contas de credores e de
todos os agentes que compram bens e serviços da União, e que precisam
desse dinheiro para pagar impostos.

O fato é que nenhum país que tenha passado por uma recessão
profunda, especialmente antes da onda neoliberal, saiu dessa situação gas-
tando recursos tributários. Essa é a essência da teoria monetária moderna,
que se define por um simples aforismo: “Um Estado que emite sua própria
moeda não tem restrição financeira até o esgotamento de sua capacidade
ociosa provocada pela recessão”. Portanto, o Estado pode investir emitin-
do dinheiro. E, mesmo que uma economia estiver em situação de recessão,
não há, até o esgotamento da capacidade ociosa, risco de inflação, con-
forme presume, de forma equivocada, uma visão neoliberal. Além disso,
se o aumento da capacidade ociosa gerar inflação, pode-se simplesmente
aumentar os impostos.

Tivemos no Brasil, há pouco tempo, a visita de L. Randall Wray,


uma das maiores autoridades do mundo em teoria monetária moderna.
Ligado ao Levy Economics Institute, da Bard College, de Nova Iorque,
Wray escreveu um livro seminal, que traduzi para o português sob o título
Trabalho e moeda hoje (UFRJ/Contraponto, 2003). Ele se baseia na teoria
das finanças funcionais de Abba Lerner que, por sua vez, tornou-se o novo
fundamento das políticas keynesianas de combate a recessões e depres-
sões. O mundo, inclusive a Europa Ocidental e o Brasil, não precisaria
passar por períodos tão prolongados de recessão se tivesse adotado essa

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teoria. O Banco Central Europeu, por sinal, já analisa a possibilidade de
adotar o padrão financeiro das finanças funcionais na sua relação com os
Estados europeus.

Antes da teoria monetária moderna ter sido formalizada, sua pri-


meira versão foi adotada na prática pelo presidente Franklin Roosevelt,
nos Estados Unidos, para vencer a depressão dos anos 1930, utilizando-se
de gastos públicos sem cobertura tributária, ou seja, déficits orçamentá-
rios. O mesmo aconteceu recentemente com o presidente Barack Obama:
ao longo de 2009 a 2014, ele usou déficits orçamentários, no orçamento
de US$ 7,5 trilhões, para reverter a depressão de 2008. A economia nor-
te-americana aproveitou-se disso até Trump, que, ao assumir o governo,
passou a liquidar esses resultados, inclusive pela resistência a um projeto
dos democratas de injetar na economia US$ 3 trilhões de déficit para re-
verter a recessão.

No Brasil, está bem assentada a possibilidade de retomada da eco-


nomia se o governo federal pagar a dívida, sem inflação, de mais de R$
1,380 trilhão aos estados. O Congresso pode aprovar, juntamente com esse
crédito, um programa equilibrado de gastos estaduais, em tranches, por
exemplo, de R$ 250 bilhões por ano. Além disso, para não haver uma
distribuição de recursos em detrimento dos Estados mais pobres, de forma
proporcional aos direitos, mas injusta, o Congresso, que tem poder para
isso, pode determinar uma elevação proporcional das receitas desses Es-
tados menorres de forma compensatória, abrangendo pelo menos parte do
montante e mantendo o restante proporcional ao que os Estados pagaram
ou não receberam; no caso, pela Lei nº 9.496.

Está provado, com evidências definitivas, que o débito do governo


federal junto aos estados, em vez de desequilibrar o Tesouro, pode ala-
vancar a retomada da economia e a recuperação da receita fiscal depois da
epidemia do coronavírus. Se forem razoáveis, os funcionários do Tesouro
entenderão essas relações e concordarão com seus fundamentos. Caso isso
não aconteça, o Congresso pode convocar uma conferência urgente para

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estudar o assunto e tomar uma decisão. Desde já, nos oferecemos para
participar da discussão, com nossa equipe, esperando contar também com
a crítica de outros economistas independentes.

Paralelamente às questões de curto prazo, o Movimento Popular


pela Justiça Social (MPJS) – que estamos organizando – pretende incor-
porar os conceitos básicos do desenvolvimento sustentável como um dos
eixos de sua atuação junto ao Congresso Nacional. São muito próximos da
abordagem econômica chinesa, mais parecida com o modelo de Vargas e
de Geisel do que com os sistemas liberais que prevaleceram por décadas,
até agora. Assim como no controle do sistema financeiro e no compromis-
so radical com o pleno emprego.

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Bases para um grande pacto
político no Brasil
Fundamentos
Diante de ameaças concretas de radicalização política e até de fragmenta-
ção territorial que afetam o Brasil enquanto nação, num momento crucial
como este de pandemia e depressão econômica, a sociedade civil brasileira
tem o dever cívico de buscar uma alternativa nacional que, ancorada em
princípios de solidariedade e fraternidade, caminhe no sentido de um gran-
de pacto político. Para isso, não basta reunir as forças políticas a fim de
estabelecer um acordo; é preciso, antes, definir as linhas básicas do acordo,
por meio de personalidades de credibilidade reconhecida, para então sa-
cramentá-lo em um grande pacto consensual. É fundamental que o povo se
una, acima de eventuais divergências políticas e ideológicas e deixando de
lado a emoção provocada por suas opções de voto. E é necessário advertir
ao conjunto do povo – se ainda não se apercebeu disso – que estamos na
iminência de uma convulsão social, em larga escala, determinada pelas
três crises mencionadas no início. Portanto, temos de fazer todo o possível
para evitá-la.

Temos de reconhecer que a sociedade brasileira experimenta um dos


processos mais agudos de crise social, econômica e política, com a mencio-
nada radicalização entre forças que tendem a se fragmentar também na luta
eleitoral, beirando a conflitos extremos. As instituições da República estão
virtualmente derretidas. Executivo, Legislativo e Judiciário, com eventual
exceção de algumas personalidades, perderam credibilidade perante os cida-
dãos. Os órgãos do Estado não funcionam e, quando funcionam, carecem de
neutralidade. A economia tornou-se um instrumento a favor exclusivamente
dos ricos e dos poderosos, enquanto o país mergulha na maior e mais prolon-
gada crise de desemprego e subemprego da sua história.

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A crise política é gigantesca. Tornamo-nos uma caricatura de de-
mocracia, com quase quarenta partidos políticos, e a maioria com repre-
sentação fragmentada no Parlamento. É evidente que essa distorção não
advém de nenhuma força externa ao Congresso: é uma distorção de autoria
coletiva desse poder legislativo, que só pode ser revertida por iniciativa
dos próprios parlamentares. Obviamente, nesta democracia que precisa-
mos reconstruir, é o próprio Parlamento que dita as normas de funciona-
mento da República, em caráter supremo. Justamente por isso temos de
buscar algum mecanismo para salvaguardá-lo de seus próprios erros.

O Executivo tornou-se o espelho das distorções do Estado brasilei-


ro. O governo federal tornou-se refém de forças políticas que buscam seus
próprios interesses, e não o interesse público. Ficou evidente que, para
atender às aspirações básicas do povo, precisamos implementar mudanças
institucionais que conciliem Estado e governo na mesma estrutura política,
a fim de assegurar a cada um deles uma plataforma de funcionalidade. Os
recentes acontecimentos relacionados à corrupção no Executivo, em razão
de sua grande repercussão pública, exigem que os organismos de investi-
gação policial sejam reforçados de forma adequada.

O Judiciário tornou-se um repositório de privilégios, embora sua


reputação tenha sido resgatada recentemente pelas ações do STF a favor da
democracia. Mas será impossível avançar na democracia sem uma reforma
profunda das instituições que, hoje, estão distantes do povo. A função de
guardião da Constituição se confundiu com o poder de legislar por conta
própria, à margem das prerrogativas do Congresso Nacional. Ao lado dis-
so, órgãos judiciais como o Ministério Público se tornaram feitores de suas
próprias regras de funcionamento, escapando do controle das instituições
legislativas que tem o mandato popular para estabelecer leis.

Os dirigentes nacionais, de todos os partidos, cometeram erros. O


maior deles, derivado de um inadequado sistema de governo de coalizão,
foi terem confiado em assessores que se revelaram corruptos e inescrupu-
losos. Estes terão de prestar contas à nação e ao povo. Entretanto, rejeita-

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mos a interpretação jurídica arbitrária de leis vagas, segundo a qual, por
dedução hermenêutica, é considerado crime aquilo que não está previsto
em lei, o que representa um recuo jurídico aos tempos da Idade Média.
Caixa dois eleitoral deve ser tipificado e criminalizado para que, no futuro,
não haja desculpa jurídica para esse tipo de desvio de conduta.

Saudamos a Lava Jato como um processo saudável de profilaxia


dos costumes político-empresariais do país e como um combate eficaz à
corrupção. Entretanto, ações precipitadas de jovens procuradores e de juí-
zes de primeira instância resultaram em graves prejuízos para a economia
nacional, na medida em que se confundiu punição de empresário corrupto,
pessoa física, com punição de empresa, pessoa jurídica. Disso resultou na
perda de centenas de milhares de empregos no Brasil, e no exterior; na
desestruturação de redes empresariais; e na ruptura de cadeias de financia-
mento de forma, muitas vezes, irrecuperável.

O fato é que a Lava Jato não compreendeu as implicações geopo-


líticas de suas ações internas. Tal operação deixou-se levar pelo canto da
sereia das articulações internacionais de Washington, arquitetadas com o
único objetivo de assumir o controle de nosso petróleo e liquidar a Petro-
bras que passou a ser uma das empresas-líderes do setor em todo o mundo.
É deplorável que essa política destrutiva tenha continuado no governo tí-
tere de Michel Temer e, logo em seguida, no governo entreguista de Bol-
sonaro, que não escondeu o intuito de subordinar completamente o Brasil
aos desígnios da Casa Branca, num dos maiores exemplos internacionais
de vassalagem vistos no mundo.

O atual governo esvaziou a participação brasileira no bloco do


BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). E esse é um equí-
voco que deve ser revertido. O BRICS, acima de querelas ideológicas, é o
caminho para o país alcançar um maior protagonismo político no mundo e
retomar rapidamente o desenvolvimento econômico. Também será impor-
tante recuperar a agenda de integração latino-americana, sobretudo sul-a-
mericana, que é de importância vital para a promoção do desenvolvimento

27
equilibrado da região. Enquanto for possível e necessário, o Brasil deverá
concorrer para superar as crises econômicas que se abatem sobre países da
América do Sul.

As instituições não mandam na sociedade civil. É a sociedade civil


que deve orientar a ação das instituições e do próprio aparato estatal. A
brutalidade policial deve ser coibida como forma de proteger a sociedade.
Tivemos, em um tempo não muito longínquo, uma situação em que uma
jovem menor foi colocada na cadeia junto com cerca de vinte homens por
decisão de uma juíza. É um acinte à ordem social, mas a juíza foi premiada
funcionalmente, pois, apesar de ter sido afastada de sua função, continuou
a perceber salário. Em outra situação, o reitor de uma universidade federal
foi levado ao suicídio em função da perseguição da Polícia Federal. Os
dois casos configuram-se como atentados contra o povo e abuso de auto-
ridade.

É imperativo estabelecer uma reforma do Estado brasileiro me-


diante um grande pacto político, mencionado anteriormente, que consulte
a base da nação. Isso terá de ser feito segundo uma nova Constituição,
inspirada nos princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A esse respeito, é fundamental que o cidadão – sobretudo o cidadão po-
bre, notadamente o negro e a mulher pobres, as partes mais fragilizadas
da nação – seja protegido contra a discriminação econômica e o abuso de
autoridade. Entretanto, nenhum outro abuso se compara ao desemprego
prolongado, que se manifesta como uma traição do Estado a seu cidadão.
A superação da crise também pressupõe, portanto, um pacto econômico,
em caráter de emergência, para que se reverta, em curtíssimo prazo, o alto
desemprego no Brasil.

Os riscos institucionais em que o país incorre – incluindo as graves


crises políticas não suscetíveis de equacionamento do dia para noite – são
advertências para que o governo atual se abstenha de propostas legislati-
vas controversas, de iniciativa do Executivo, até que a transição para um
governo pactuado esteja completa. Entendemos que tal decisão deva ser

28
compreendida no contexto do próprio pacto social (pacto econômico) aqui
proposto, para o qual pedimos a contribuição de todas as forças políticas
do país, inclusive as atuais forças governamentais e notadamente as forças
da sociedade civil, às quais está aberto este documento, fundamentado nos
princípios de solidariedade e fraternidade, contra o ódio e voltado princi-
palmente para o futuro.

Plano econômico
Tendo em vista o caráter emergencial da crise econômica, propomos a
um eventual futuro governo que acolha as sugestões desse pacto como
parâmetro de uma ação imediata. O povo não pode esperar mais pelo equa-
cionamento da crise, principalmente pela solução do problema do desem-
prego, depois de cinco anos de recessão e até de depressão. A contempori-
zação com o alto desemprego é um crime contra a sociedade. Diante disso,
sugerimos, no âmbito do pacto, um conjunto de medidas de curto prazo
para rápida recuperação do emprego com base na experiência histórica in-
ternacional e nacional, e sobretudo nos sólidos fundamentos econômicos.
Em síntese, as medidas são as seguintes, algumas delas já mencionadas em
outras partes de nossos textos recentes:

1. Programa de emprego garantido/trabalho aplicado pelo qual sejam


asseguradas, a jovens desempregados urbanos, bolsas de trabalho para
participarem de frentes de trabalho nas periferias urbanas por pelo me-
nos três anos. E que essa mão de obra seja aplicada em trabalhos de
urbanização, construção e saneamento, nessas mesmas periferias, ofe-
recendo aos jovens treinamento profissional para facilitar a aquisição
de trabalho permanente à medida que a crise for sendo superada.

2. Reconhecimento da nulidade da dívida pública dos estados junto à


União e restituição do que foi pago indevidamente pelos governos es-
taduais nos últimos anos desde 1997; os recursos restituídos deverão
ser destinados aos programas de combate ao coronavírus e à recessão,

29
à segurança alimentar do povo e ao programa de emprego garantido/
trabalho aplicado.

3. Financiamento, com subsídio federal, de um programa habitacional


para populações de baixa renda.

4. Financiamento, pelo governo federal, de um amplo programa habita-


cional para a classe média dos estados, com juros em parte subsidiados,
em parte financiados pelo Tesouro.

5. Realização de um programa de mobilidade urbana, em todas as me-


trópoles e grandes cidades, articulado com os estados e financiado pelo
governo federal.

6. Retomada dos grandes investimentos em infraestrutura, em especial


a do setor hidrelétrico, a partir de financiamento do Tesouro através do
Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES);
aumento dos investimentos da Petrobras no pré-sal, recuperando o que
foi entregue indevidamente a empresas estrangeiras, associado a um
incremento do programa de conteúdo nacional nas encomendas da em-
presa; estímulo aos investimentos da Vale vinculados à “golden share”
instituída no governo Fernando Henrique Cardoso.

7. À medida que se esgotar a capacidade de financiamento governa-


mental com déficit (ver abaixo), o governo federal deverá instituir a
Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) para
complementar o financiamento equilibrado dos programas sociais, e uti-
lizar as Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE)
exclusivamente para o financiamento da infraestrutura logística.

Ressalte-se que, com relação a financiamento, a economia sofreu, nos úl-


timos cinco anos, uma contração estimada em 10% do Produto Interno
Bruto (PIB). Isso implica a possibilidade de se aplicar uma margem de
recursos dessa mesma ordem, em investimentos deficitários para retoma-

30
da de financiamento público, sem risco de inflação. Em torno de R$ 700
bilhões – considerando um PIB de R$ 7 trilhões – seriam destinados para
esse financiamento em três anos, sem levar em conta o efeito multiplicador
e o efeito acelerador da economia. Essa aplicação tiraria a economia do
buraco em questão de meses.

Chamamos de expansiva essa política fiscal. A ela se contrapõem


os ajustes fiscais. Vemos, desde 2015, como funcionam esses ajustes fis-
cais. Eles visam exclusivamente a produzir grandes resultados financeiros
para os bancos. Uma adequada política fiscal-monetária possibilita uma
adequada expansão monetária na economia e uma drástica redução da taxa
de juros, que incide sobre a dívida pública, diminuindo o aumento da dívi-
da e depois possibilitando sua redução.

É importante assinalar, por um lado – contra o pensamento neolibe-


ral –, que o aumento do gasto público, mesmo que deficitário e com folga
fiscal, acaba sendo reduzido e eventualmente eliminado com a retomada
do crescimento econômico, tendo em vista que a receita pública também
aumenta. Em outras palavras, o equilíbrio fiscal resulta do crescimento da
economia, e não da recessão e dos ajustes.

Por outro lado, não existe a mais remota possibilidade de retomada


de uma economia que se encontra em recessão sem a ampliação do gasto
público deficitário, exceto quando essa economia realizar altíssimos saldos
comerciais (como é o caso da Alemanha). É um equívoco a alegação de
que o superávit fiscal gera confiança no setor privado, fazendo com que ele
invista; o empresário investe porque tem demanda, nada mais.

Plano social
O principal programa social é o de geração de emprego. Nele devem ser
concentradas todas as energias econômicas do país.

Já os programas sociais de caráter assistencialista, como o Bolsa


Família, devem amparar os beneficiários sem escrúpulos mesquinhos; o

31
que foi conseguido nos últimos anos, com grande aplauso internacional
e nacional, não pode ser revertido. Entretanto, o governo deve ampliar os
valores pagos.

A oferta de vagas do Programa de Financiamento Estudantil (FIES)


deve ser equiparada à das universidades públicas, que, como se espera, sejam
prioritárias. Universidades privadas financiadas pelo FIES deverão oferecer a
seus alunos laboratórios adequados de pesquisa, como as públicas oferecem.

É tempo de a sociedade civil recuperar a confiança dos militares,


e vice-versa; a atual geração de oficiais do Exército, da Marinha e da Ae-
ronáutica não tem nada a ver com o golpe militar de 1964, pois ela sequer
estava viva quando ocorreu; os colégios militares devem usar o mesmo
material didático dos civis, para que a narrativa dos acontecimentos da-
quela época seja formada em uma base comum de compreensão dos fatos,
valorizando a máxima objetividade e a liberdade intelectual.

Pacto político
Deve-se convocar, ao nível da sociedade, uma Assembleia Nacional Cons-
tituinte que leve em conta: o desejo da sociedade de uma carta democrática;
a salvaguarda de princípios democráticos que não sejam atropelados pela
demagogia; a funcionalidade do sistema estatal e governamental, exami-
nando-se a conveniência de separar as funções do Estado das de governo;
e a instituição de um sistema previdenciário e de uma justiça trabalhista
justos e democráticos.

É fundamental para o sucesso do pacto político que ele seja reali-


zado sob a autoridade de um presidente responsável, de confiança da so-
ciedade, e que coloque em prática sugestões sociais que encaminhem o
Brasil para a liberdade e a fraternidade. A atmosfera de desconfiança e
ódio deve ser removida. Devemos atuar com real espírito democrático, e
sobretudo com boa-fé. De qualquer modo, o que pretendemos agora, com
total desprendimento, é ver o povo encontrar um caminho de felicidade

32
e de completa realização de seus desejos, fora das ameaças de convulsão
social e de fragmentação da nação, superando, acima de tudo, a tragédia do
coronavírus e da recessão.

Este Movimento não tem vinculação partidária. Entretanto, preten-


demos influir no processo político, nas eleições e fora delas. Nossa pers-
pectiva é, pois, suprapartidária, no âmbito de uma ação política concreta,
para além da crise conjuntural, cujos princípios estão estabelecidos neste
documento. Assim, nos filiamos a uma ideologia de superação, segundo a
proposta política sintetizada no Movimento Popular pela Justiça Social,
que pretende ser justamente uma superação dialética do socialismo real e
do capitalismo selvagem, ambos prontos para serem superados na teoria e
na prática pelos paradigmas políticos atuais.

Entendemos que o sistema partidário brasileiro requer uma ampla


reforma a fim de recuperar sua credibilidade perante a nação. O Estado não
pode reduzir arbitrariamente o número de partidos, já que estes, enquanto
organizações da sociedade civil, é que constituem o Estado, e não o contrá-
rio. A promoção de uma reforma política, sob influência da sociedade civil
organizada, é um passo na direção da reforma política em si, para que essa
nova organização política possa promover a reforma do próprio Estado.

Entretanto, deve ser considerado que os atuais parâmetros da orga-


nização política do Estado brasileiro estão esgotados. O Movimento Popu-
lar pela Justiça Social propõe um sistema de governo misto, que elimine
as grandes distorções históricas do presidencialismo puro. Na realidade,
o presidencialismo é a experiência de toda a América Latina, e também
da América do Norte, cujo fracasso é atestado, tanto no caso brasileiro
como no de outros países latino-americanos, por sucessivos impeachmen-
ts, assassinatos de presidentes, crises recorrentes de autoridade, ditaduras e
revoluções armadas. É hora, pois, de pensar em outro sistema de governo.

Contudo, é importante – tendo em vista a própria mudança de pa-


radigmas sinalizada pelos tempos contemporâneos – que se examine o

33
conjunto da administração pública por suas funções e não por suas raízes
históricas. A natureza da função da Defesa, na era nuclear, não é a mesma
que a do início da Idade Moderna. A função de proteção do meio ambiente,
no mundo industrializado e avançado, é diferente da do tempo bucólico de
dois séculos atrás. O mesmo pode-se dizer da ciência, especialmente da
genética, com seus clones e suas semente híbridas, sujeitos à manipulação
da vida. Não se pode esquecer de também examinar a função da proteção
do trabalho e da mulher.

Essas funções contemporâneas, entendidas como de responsabili-


dade do Estado, requerem uma perspectiva de médio e longo prazos. São
diferentes de funções tipicamente governamentais, como economia, saú-
de, educação e administração pública de curto e médio prazos – que no
Brasil, nesse caso, é atualmente dividida em administração direta e admi-
nistração indireta, abrigadas nesta última as empresas estratégicas de alto
interesse nacional, como a Petrobras, a Eletrobrás e outras. Na divisão de
atribuições, o presidente se encarregaria das funções do Estado, enquanto
o governo ficaria com as funções de curto prazo, com destaque para o pro-
grama parlamentar votado.

Creio que esse sistema, ao qual chamo de bigovernamental, redu-


ziria significativamente as fraquezas da governança pública, eliminando
certos vícios das democracias que vêm desde Platão, como o caudilhismo
e a demagogia. Além disso, se houver fracasso da parte do governo, o
povo pode novamente escolher seus líderes, ou em intervalos de no má-
ximo quatro anos. Já os dirigentes do Estado deveriam ter mandatos mais
longos, de – digamos – doze anos renováveis, a fim de encarnarem a esta-
bilidade das instituições e dos projetos políticos. O dirigente máximo do
Estado teria direito apenas a conselheiros, como assessores para funções
altamente especializadas.

A sociedade deve ser chamada para opinar sobre a estrutura do


governo. A República, implantada por um pequeno grupo de militares in-
fluenciados pelo Partido Republicano, nasceu com um vício de origem.

34
O plebiscito de 1993, já pré-determinado para o parlamentarismo, foi de-
sequilibrado em favor do presidencialismo. Assim, é falsa a ideia de que
o parlamentarismo – ou até mesmo a monarquia parlamentarista, que se
encaixaria no esquema de governo acima proposto – é um anacronismo.
A Grã-Bretanha, a Espanha e outros países europeus provam o contrário.

35
O uso oportunista da pandemia
para estrangular a federação
O padrão de estrangulamento financeiro dos estados, por parte da União,
não arrefeceu com a crise do coronavírus. Ao contrário, aprofundou-se.
Por exemplo, embora tenha aceitado de forma relutante o aumento para
R$ 60 bilhões da entrega de recursos aos estados pelo governo federal,
supostamente para aliviar os efeitos da pandemia, a lei correspondente não
caracteriza esses recursos como livres, mas como financiamento. No pe-
ríodo de suspensão do pagamento, “os valores não pagos: I- serão apar-
tados e incorporados aos respectivos saldos devedores, (...) devidamente
atualizados pelos encargos financeiros contratuais”, conforme § 1º, inciso
I, do artigo 2º, da Lei Complementar n. 173, de 27-05-2020. Isso é uma
aberração, em matéria de políticas públicas, numa época de recessão pre-
cipitada pela pandemia, como agora.

De fato, a economia em recessão ou depressão precisa sobretu-


do de demanda, e esse tipo de débito condicionado a índices de correção
monetária é estritamente contracionista. Recursos tributários não geram
demanda efetiva líquida, nem investimento ou emprego, porque o que se
coloca na sociedade como gasto público é esterilizado enquanto tributo.
Para se ter ideia de uma operação da mesma natureza, o estado do Rio de
Janeiro, ao aderir ao chamado Regime de Recuperação Fiscal, consolidou
uma dívida de R$ 8 bilhões junto ao governo federal em 2016. Esse valor,
por força de indexadores, elevou-se para nada menos que R$ 9 bilhões em
2017 e inacreditáveis R$ 44 bilhões em 2020.

Paralelamente, os dispositivos dessa determinação (LC n. 173/2020)


estabelecem medidas extremamente restritivas que devem ser seguidas pe-
los governos estaduais, seja para o pessoal ativo, seja para o inativo. Aqui
novamente encontramos uma contradição. Controlar e reduzir gastos com

36
pessoal, independentemente do estrago que isso faria no plano administra-
tivo, também é extremamente contracionista do ponto de vista financeiro.
Isso já seria ruim numa economia normal, mas, neste tempo de depressão
provocado pela pandemia, é um crime contra o crescimento. Quando um
funcionário compra um fogão, ele está transferindo dinheiro para o fabri-
cante, que responde com investimento e criação de emprego. É estupidez,
numa pandemia, ignorar isso.

Diante das relações estabelecidas entre União e estados, é impe-


rativo romper com o pacto federativo atual e reconstruí-lo em bases mais
justas. Isso pode ser feito sem qualquer embaraço para o combate ao co-
ronavírus. Ao contrário, ele será favorecido – a meu ver, a única maneira
que uma política econômica capitalista pode fazer – com a criação de uma
demanda efetiva a partir dos gastos do governo, promovendo, como já dito
acima, o investimento governamental e privado, e sobretudo o emprego.
Senão seremos engolfados por uma onda neoliberal de ignorantes finan-
ceiros que destruirá vidas num ritmo muitíssimo superior ao da pandemia.

O único embaraço a uma política progressista feita de baixo para


cima, ou seja, com ênfase na sociedade, é a subordinação da atual equipe
econômica ao apetite do sistema bancário brasileiro. Este se destaca, no
mundo, dentre os setores que têm maior voracidade por lucro. Por exem-
plo, neste momento, em plena pandemia, estamos assistindo a um proces-
so pelo qual osbancos absorvem trilhões de reais do programa de combate
ao coronavírus em favor de seus próprios interesses, inventando entraves
burocráticos para literalmente impedir empréstimos a pequenas e médias
empresas, enquanto 70% destas últimas não têm acesso a crédito.

Considerando que milhões de microempresários e pequenos empre-


sários ficarão sem trabalhar, sem ter na prática acesso ao crédito bancário,
o fracasso do programa de combate ao coronavírus tem necessariamente
de ser atribuído, em grande parte, aos que teriam de ficar em casa, em iso-
lamento, mas não puderam por extrema necessidade de sair em busca de
meios de sobrevivência. Além disso, cerca de 40% dos micro e pequenos

37
empresários já anunciaram que vão quebrar por falta de assistência social
e de crédito, levando com eles para a virtual indigência outros milhões de
brasileiros e suas pequenas poupanças.

38
Legislação pertinente
O caráter das leis que estão sendo empurradas goela abaixo do Congres-
so, neste período de epidemia, está sendo escondido por tecnicalidades.
É preciso ajuda de especialistas em legislação para apreender todo o seu
significado, embora algumas sejam lineares. Ei-las:
Lei Complementar nº 148/2014 – Altera a Lei Complementar nº 101,
de 4 de maio de 2000, que estabelece normas de finanças públicas vol-
tadas para a responsabilidade na gestão fiscal; dispõe sobre critérios
de indexação dos contratos de refinanciamento da dívida celebrados
entre a União, Estados, o Distrito Federal e Municípios; e dá outras
providências.

Lei Complementar nº 156/2016 – Estabelece o Plano de Auxílio aos


Estados e ao Distrito Federal e medidas de estímulo ao reequilíbrio fis-
cal; e altera a Lei Complementar nº 148, de 25 de novembro de 2014,
a Lei nº 9.496, de 11 de setembro de 1997, a Medida Provisória nº
2.192-70, de 24 de agosto de 2001, a Lei nº 8.727, de 5 de novembro
de 1993, e a Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000.

Lei Complementar nº 159/2017 – Institui o Regime de Recuperação


Fiscal dos Estados e do Distrito Federal e altera as Leis Complemen-
tares nº 101, de 4 de maio de 2000, e nº 156, de 28 de dezembro de
2016.

As pessoas que acreditam que a solução para as finanças dos estados, ou


mesmo para um eficaz enfrentamento do coronavírus, seria a suspensão
das dívidas dos estados e a liberação do auxílio financeiro não prestaram a
devida atenção ao substitutivo do PLP n. 149, do senador Davi Alcolum-
bre. Há certamente a liberação de alguns créditos, mas não a concessão de
recursos a fundo perdido e nem a suspensão de algumas dívidas públicas
dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, como justificam as cir-
cunstâncias.

39
Foram colocadas no projeto vários condicionantes, que representam ver-
dadeiros ataques aos servidores públicos, o que fica ainda pior pelo fato
de os créditos concedidos numa situação de emergência, para salvar vidas
– pelos estados e municípios, sendo a União uma ficção jurídica –, terão
de ser pagos com correção monetária na eventualidade de sua suspensão.
Portanto, esse projeto aprovado é uma verdadeira armadilha financeira
para os servidores públicos, estaduais e municipais, e para o conjunto da
população que depende deles.

O substitutivo do senador Alcolumbre à Lei Complementar nº


149/2019, infelizmente aprovado, tem o mesmo caráter agressivo de ou-
tras iniciativas do governo federal contra estados e municípios, no que
se refere à dívida nula desses últimos junto à União. É o caso do Plano
Mansueto, apresentado orgulhosamente pelo ministro Paulo Guedes junto
com os pseudoplanos de recuperação dos estados, do Distrito Federal e dos
municípios.

Para o enfrentamento à Covid-19, foi estabelecido o Programa Fe-


derativo de Enfrentamento ao Coronavírus, que altera a Lei Complementar
nº 101, de 4 de maio de 2000, e dá outras disposições. Em seu § 1º, incicos
I, II e III, são indicadas as seguintes iniciativas:

I – suspensão de pagamentos de dívidas contratadas entre:

a) de um lado, a União, e, de outro, os Estados e o Distrito Federal


(...);

b) de um lado, a União, e, de outro, os Municípios (...);

II – reestruturação de operações de crédito interno e externo junto ao


sistema financeiro e instituições multilaterais de crédito nos termos
previstos no art. 4º desta Lei Complementar; e

III – entrega de recursos da União, na forma de auxílio financeiro, aos


Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, no exercício de 2020, e
em ações de enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19).

40
As principais armadilhas

1. Valores não pagos serão corrigidos por índices de encargos financeiros.


Assim, numa situação de pandemia, o governo federal não apenas nega
recursos a fundo perdido aos estados e municípios, como ousa impor
correção monetária e juros aos empréstimos interrompidos por alguma
causa.

2. Conforme o § 1º, incico I, do artigo 2º da Lei Complementar nº 173,


de 27 de maio de 2020, citada acima, no período de suspensão do paga-
mento das dívidas públicas, “os valores não pagos serão apartados e in-
corporados aos respectivos saldos devedores”, atualizados pelos encargos
financeiros contratuais.

O que significa isso? Um exemplo: O Rio de Janeiro – ao aderir


ao Plano de Auxílio aos estados e ao Distrito Federal, nos termos da Lei
Complementar nº 156/2016 –, os valores do serviço da sua dívida pública,
cerca de R$ 6 bilhões, foram apartados, divididos, por dezoito meses. Na
realidade, foi uma moratória, mas com os montantes corrigidos pelos en-
cargos financeiros contratuais.

Quando o ex-governador Luiz Fernando Pezão assinou a adesão ao


Regime de Recuperação Fiscal, aprovado pela Lei Complementar nº 159,
em setembro de 2017, esse saldo, devidamente atualizado, já estava em R$
9 bilhões.

Esses valores não pagos foram colocados na conta gráfica. Em fe-


vereiro de 2020, esse saldo cresceu para R$ 44 bilhões, e continuará cres-
cendo até agosto de 2026. Esse é o resultado da dívida pública do Regime
de Recuperação Fiscal do Rio de Janeiro, apartada e corrigida pelos encar-
gos financeiros contratuais. É absolutamente impossível que essa dívida
venha a ser paga em qualquer momento no futuro, considerando a base
tributária desse estado.

41
3. Renúncia às ações judiciais em andamento contra a União, relativas à
dívida pública.

Segundo o § 6º, do artigo 2º, da já citada LC nº 173, em relação às


dívidas públicas, os entes federativos poderão incluir os valores não pagos,
anteriores a 1º de março de 2020, desde que renunciem ao direito sobre o
qual se funda a ação judicial. E esses valores serão “devidamente atuali-
zados pelos encargos financeiros contratuais”. Para os estados que tiverem
de recorrer a empréstimos do governo federal, ou por este avalizados, no
âmbito do acordo, as exigências são absurdas. No Rio de Janeiro, criaram
uma armadilha para que a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio
de Janeiro (Cedae), a maior empresa de saneamento do estado e uma das
maiores do país, caísse no caixa do governo federal e daí na privatização
pura e simples, num esquema presumidamente já articulado com investi-
dores privados.

4. OS ENTES FEDERATIVOS DEVERÃO RENUNCIAR ÀS AÇÕES


AJUIZADAS CONTRA A UNIÃO SE QUISEREM SER INCLUÍDOS
NO RECEBIMENTO DO AUXÍLIO FINANCEIRO DESTINADO AO
COMBATE À PANDEMIA.

5. O auxílio financeiro possibilitará a operação de securitização no ente


federativo, conforme inciso II do artigo 6º:

Art. 6º No exercício financeiro de 2020, os contratos de dívida dos Es-


tados, do Distrito Federal e dos Municípios garantidos pela STN [Se-
cretaria do Tesouro Nacional], com data de contratação anterior a 1º de
março de 2020, que se submeterem ao processo de reestruturação de
dívida poderão ser objeto de securitização, conforme regulamentação
da própria STN, se atendidos os seguintes requisitos:

42
(…)

II – securitização no mercado doméstico de créditos denominados e


referenciados em reais;

Note-se que esse projeto de securitização, que há anos tramita no Congres-


so, sob pressão – inclusive do senador José Serra – para passar de qual-
quer forma, contém uma tremenda armadilha financeira contra os entes
federados, que poderão transformar créditos públicos líquidos em créditos
negociados, por meio das chamadas entidades financeiras independentes,
privadas, que levarão a parte do leão, graciosamente, no bolo da dívida
pública previamente negociada pelos próprios governos e prefeituras.

Não apenas nesse caso, mas também no que se refere à política


de saneamento, e mais especificamente de águas, os tucanos se especiali-
zaram em liquidar descaradamente o interesse público. Está nas mãos do
presidente, para sancionar, um projeto de lei que vai regular o sistema de
saneamento nacional, cujo cerne é a privatização da água – isto é, a priva-
tização da fonte da vida, o mais importante recurso ambiental do mundo.

O relator da matéria no Senado Federal, o senador Tasso Jereissati,


de uma família multimilionária do Ceará, fez cálculos mirabolantes para
justificar o projeto, entre os quais o de que haveria centenas de bilhões de
reais para investimentos privados em saneamento no país. Curiosamen-
te, centenas de empresas europeias de saneamento, e de outras partes do
mundo, privatizadas durante a onda de desestatização, estão agora sendo
re-estatizadas, tendo em vista o fracasso da experiência. Será que Jereissati
não sabe disso? Ou é preciso desenhar?

6. Com as alterações na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), serão


possibilitados ataques diretos aos servidores públicos das três esferas do
governo. Assim, qualquer ação que provoque aumento de despesas para o

43
serviço público pode ser considerada nula, prevendo também outras du-
ras restrições, conforme artigo 7º como:

- Vedação à contratação de novos servidores

7. Mais ataques a direitos e benefícios; reestruturação de carreiras, con-


cursos públicos, promoções e progressões.

Art. 8º Na hipótese de que trata o art. 65 da Lei Complementar nº 101,


de 4 de maio de 2000, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Mu-
nicípios afetados pela calamidade pública decorrente da pandemia da
Covid-19 ficam proibidos, até 31 de dezembro de 2021, de:

I – conceder a qualquer título, vantagem, aumento, reajuste ou ade-


quação de remuneração a membros de Poder ou de órgão, servidores e
empregados públicos e militares, exceto quando derivado de sentença
judicial transitada em julgado ou de determinação legal anterior à ca-
lamidade pública;

II – criar cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;

III – alterar estrutura de carreira que implique aumento de despesa;

IV – admitir ou contratar pessoal, a qualquer título, ressalvadas as


reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que
não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de va-
câncias de cargos efetivos ou vitalícios, as contratações temporárias
de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal,
as contratações de temporários para prestação de serviço militar e as
contratações de alunos de órgãos de formação de militares;

V – realizar concurso público, exceto para as reposições de vacâncias


previstas no inciso IV;

VI – criar ou majorar auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de


representação ou benefícios de qualquer natureza, inclusive os de
cunho indenizatório, em favor de membros de Poder, do Ministério
Público ou da Defensoria Pública e de servidores e empregados públi-

44
cos e militares, ou ainda de seus dependentes, exceto quando derivado
de sentença judicial transitada em julgado ou de determinação legal
anterior à calamidade;

VII – criar despesa obrigatória de caráter continuado, ressalvado o


disposto nos §§ 1º e 2º;

VIII – adotar medida que implique reajuste de despesa obrigatória aci-


ma da variação da inflação medida pelo Indíce Nacional de Preços ao
Consumidor Amplo (IPCA), observada a preservação do poder aquisi-
tivo referida no inciso IV do caput do art. 7º da Constituição Federal;

IX – contar esse tempo como de período aquisitivo necessário exclusi-


vamente para a concessão de anuênios, triênios, quinquênios, licenças-
-prêmio e demais mecanismos equivalentes que aumentem a despesa
com pessoal em decorrência da aquisição de determinado tempo de
serviço, sem qualquer prejuízo para o tempo de efetivo exercício, apo-
sentadoria, e quaisquer outros fins.

Segundo minha nota técnica a esse projeto, : o corte de salários e


proventos de servidores públicos representa um dos mais grosseiros equí-
vocos de política econômica neste momento de recessão, e depressão eco-
nômica que estamos vivendo. Salários e proventos são demanda, demanda
é investimento, e investimento é emprego. Em situação de recessão ou
depressão, dificilmente o setor privado vai gerar mais empregos ou aumen-
tar salários. A política de restrições salariais do projeto de Alcolumbre é,
portanto, um instrumento de aprofundamento da depressão.

45
Finanças funcionais
Como o Estado pode fazer grandes investimentos
em tempos de recessão

A relação entre o Tesouro e o Banco Central é o mecanismo-chave para a


estabilidade financeira da economia e o adequado financiamento do desen-
volvimento. Essa relação foi estudada em profundidade pelo economista
Abba Lerner. Ele criou a teoria das finanças funcionais, pela qual as variá-
veis financeiras keynesianas básicas – orçamento público, déficit e supe-
rávit público, taxa de juros, base monetária, expansão monetária etc. – são
entendidas de acordo com suas funções centrais na economia, e não por
suas definições meramente contábeis.

A teoria diz, em essência, que, numa economia em recessão ou depres-


são – como a brasileira atualmente –, o Estado, que emite sua própria moeda,
pode criar moeda ilimitadamente, sem gerar inflação, até o esgotamento de
sua capacidade ociosa. Isso pode parecer uma espécie de licença para emitir
moeda irresponsavelmente, mas não é. O gasto público deve estar limitado
pela capacidade de investimento físico do setor público, isto é, investimento
no funcionalismo. E, se existe ociosidade de funcionários na economia e, por
isso, não pode existir inflação, a demanda estará abaixo da oferta.

Se houver uma situação em que o Estado possa ter ampla liberdade


de investir, mesmo quando a capacidade ociosa da economia se esgota,
basta queemita e venda títulos públicos (quase moeda) na medida certa
para reduzir a sua demanda global. Entretanto, no caso brasileiro, no qual a
memória inflacionária ainda resiste depois de décadas do fim da hiperinfla-
ção, é mais prudente reduzir marginalmente os investimentos públicos em
face de situação de plena capacidade da economia. O que deve ser retido

46
dessa teoria é que não se pode temer a realização de investimentos e gastos
públicos deficitários quando há capacidade ociosa.

Ressalte-se que o Congresso, na falta de uma ação do Executivo,


deve tomar as finanças funcionais como um instrumento efetivo de de-
senvolvimento, inclusive para cobrir gastos razoáveis com pessoal, con-
tratação de novos serviços, realização de concursos e concessão de apo-
sentadorias dignas. Isso, como já foi observado, não tem nenhuma relação
com a inflação, e contribui para que o quadro profissional do setor público
seja disciplinado e motivado. Lembre-se que, na origem da democracia,
na Grécia Antiga, Péricles, o líder de Atenas, introduziu o serviço público
gratuito na cidade pois, do contrario, só o rico seria magistrado público,
tendendo a atender apenas a outros ricos.

47
A estadualização dos benefícios
da pandemia
Se o governo se recusar a federalizar a dívida dos estados e municípios, es-
tes podem articular-se, no Congresso, no sentido de estadualizar as receitas
públicas federais, entre as quais as oriundas da reversão da dívida nos termos
propostos pelo nosso presente estudo. Nesse caso, parte do débito da União
para com os estados e municípios, da ordem de R$ 1.380 trilhão, poderia ser
direcionada para os entes federativos para ser aplicada no financiamento de
benefícios sociais, assim como em gastos específicos na área de saúde, em
investimentos de retomada da economia e no combate à epidemia.

O amparo financeiro aos benefícios sociais é absolutamente essen-


cial para a eficácia do isolamento social, conforme observado em outra
parte desta exposição. Ele deve corresponder ao número total da popula-
ção, já que não é possível conter a pandemia parcialmente. Só não preci-
sam de prevenção, no âmbito dessa tragédia, os sobreviventes da infecção;
mas ou se controla a maioria ou nada será controlado. Por isso a estratégia
financeira de Paulo Guedes é suicida. Ele tenta garantir o isolamento social
com recursos estimados em R$ 64 bilhões, o que corresponde a menos de
um terço da população.

Ainda mais desastroso é que milhões de brasileiros que poderiam


ser qualificados para a deficiente medida sanitária de Guedes não recebem
dinheiro algum, em virtude da também deficiente burocracia. Dessa forma,
essas pessoas ficam sem cobertura. Diante disso, não será surpresa se os
números de mortos e infectados vierem a aumentar novamente, sobretudo
nas metrópoles que relaxaram o isolamento social. Se, além disso, temos
um presidente que estimula a disseminação do vírus, em vez de tentar con-
trolá-lo, faz com que se torne incerto o destino do povo.

48
A proposta a ser feita é adotar uma alternativa ao programa de be-
nefícios do governo, diferente tanto em escala como em qualidade. Primei-
ro, assegurar aos estados os recursos relativos à dívida que lhes foi imposta
pelo governo federal, no valor de R$ 1,38 trilhão. Segundo, fazer com que
os estados transfiram a gerência dos programas de benefícios a prefeitu-
ras e entidades, de competência e honestidade comprovadas, para evitar a
burocracia e a corrupção. Quanto aos direitos financeiros remanescentes
dos estados, seria preciso um programa de retomada do desenvolvimento
imediato, com base na doutrina keynesiana.

49
A grande síntese pós-neoliberal
Tese
O tempo da liberdade individual incondicional está chegando ao ocaso na
civilização ocidental. Na oriental, é provável que nunca tenha existido.
Ela foi o produto da combinação de várias revoluções do início da Idade
Moderna, desde a revolução científica a partir de Galileu Galilei até a re-
volução política de cidadania limitada na fundação dos Estados Unidos e
da república francesa, o que promoveu a liberdade dos servos em face do
feudo e dos artesãos em relação às corporações de ofício, e levou, na esfera
econômica, ao primado do capital no curso da revolução burguesa. Um
longo intervalo de tempo transcorreu entre os momentos iniciais desses
impulsos libertários até sua fixação como paradigmas da ordem civiliza-
tória do Ocidente. E, justamente no momento em que esses paradigmas
parecem cristalizados como padrão universal, eles colapsam, a partir da
economia, no alvorecer de uma nova Idade.

Nas últimas décadas, a influência do neoliberalismo, expressão


mais acabada da liberdade incondicional do capital, não se limitou à eco-
nomia. Assim como aconteceu nos dois séculos anteriores com o velho
liberalismo, até a Grande Depressão, sua influência pervasiva penetrou
fundo na política, na geopolítica e na moral, abarcando as estruturas cen-
trais da civilização. Porém, à medida que entra em colapso na esfera eco-
nômica, é toda a antiga estrutura civilizatória que desaba. No cerne desse
processo, está o princípio da liberdade individual ilimitada, cuja projeção
mais perversa, na ordem econômica e política, é a liberdade econômica
irrestrita de degradar o meio ambiente e de provocar a instabilidade fi-
nanceira global com os movimentos especulativos dos fluxos financeiros,
assim como a liberdade ilimitada dos Estados de fazer guerra para dirimir
seus conflitos de interesses.

50
Entre as duas fases do liberalismo econômico irrestrito, desde a
Grande Depressão dos anos 1930 até a ressurgência liberal – na forma
de neoliberalismo –, prevaleceu o capitalismo regulado, como reação ao
desastre liberal da Grande Depressão e aos horrores da Segunda Guerra
Mundial. Daí resultou a construção, na Europa Ocidental, e parcialmente
nos Estados Unidos, do Estado de bem-estar social. Esse período ficou co-
nhecido como a Era de Ouro do capitalismo, combinando liberdade indi-
vidual (e empresarial) regulada e um progresso social que elevou os países
industrializados, e muitos em desenvolvimento, ao estágio mais alto da
civilização – em parte transbordando também para o bloco socialista. A
recidiva do liberalismo foi o resultado de um contexto político, geopolítico
e moral que – tendo sido em parte um produto da economia liberal – sobre-
viveu à sua primeira derrocada.

A derrocada atual, porém, parece definitiva em termos objetivos.


Toda a ordem moral e política do neoliberalismo colapsou em face da ne-
cessidade de um Estado intervencionista e atuante na ordem econômica.
Além disso, desapareceu a principal razão geopolítica pela qual o neolibe-
ralismo foi manipulado ideologicamente como instrumento de rendição da
antiga União Soviética na Guerra Fria. O conteúdo semântico, em inglês,
do termo liberal – que tem um sentido de democracia nos Estados Unidos,
e de liberdade de mercado na Europa – passou a ter menos espaço para
mascarar, de forma ambígua, programas políticos que, como no projeto
da Constituição europeia, põem em pé de igualdade direitos humanos e
autorregulação dos mercados.

A ambiguidade do conceito liberal, significando ora democracia,


ora mercado, possibilitou à ideologia imperial norte-americana desafiar ao
mesmo tempo os soviéticos e o Estado de bem-estar social europeu. Sua
vitória, mesmo que momentânea, foi inconteste. A União Soviética acabou
e a Europa construiu um projeto de união ancorado firmemente nos valo-
res do mercado livre e da autorregulação, envergonhada de seu Estado de
bem-estar social. O ponto máximo foi a instituição de um banco central

51
independente da política fiscal, pelo qual se criou a primeira moeda sem
Estado em toda a história. A marcha do mercado sobre a democracia não
pararia aí. Mas quando se tentou cristalizá-la numa Constituição comum,
França e Holanda recuaram em nome de longínquos valores socialistas. A
situação jurídica da Europa ficou indefinida, até que, por um truque tec-
nocrático, o Tratado de Lisboa fixou os parâmetros da ordem neoliberal
europeia, subordinando o cidadão ao aplicador financeiro.

Visitemos a história – segundo o orador romano Cícero, a mãe de


todas as ciências. A liberdade individual, embora limitada, era um privilé-
gio das elites dominantes da Grécia e da Roma antigas. Na Grécia, escra-
vos, metecos e estrangeiros eram privados de liberdade política. Os cida-
dãos, por sua vez, tinham sua liberdade condicionada apenas à obrigação
política de servir a cidade e cultuar os deuses. Mesmo assim, tratava-se
de uma restrição à liberdade incondicional, sancionada no plano moral.
Também em Roma, a liberdade política era privilégio dos cidadãos, ou
patrícios, sujeitos igualmente ao código moral de culto aos deuses e de
defesa da cidade, e mais tarde do Império. Portanto, mesmo para as classes
dominantes dessas grandes civilizações ocidentais, não havia o conceito
de liberdade individual irrestrita.

Os escravos e os socialmente excluídos rendiam sua liberdade aos


cidadãos e aos patrícios; cidadãos e patrícios rendiam sua liberdade aos
deuses e à superstição, e eventualmente ao rei ou ao imperador. Na Idade
Média, depois do decreto de Diocleciano, no século III, os camponeses se
tornaram subordinados aos feudos como servos, e os profissionais vincu-
lados às corporações de ofício tornaram-se artesãos subordinados a seu
mestre. Era um sistema similar, porém menos complexo, ao sistema de
castas indiano, também instituído, na sua origem milenar, para especiali-
zação profissional no organismo social. Com isso, ampliou-se o número
dos privados de liberdade, à medida que os feudos se expandiram e absor-
veram terras comunais. Já os senhores feudais ocidentais se legitimavam
mediante submissão à Igreja de Roma e, em menor medida, ao rei.

52
O Papa era, em tese, o único homem livre, nas duas Idades Médias:
subordinado apenas a Deus, era quem interpretava Sua vontade, tendo-se
atribuído infalibilidade em questões de fé. Os próprios reis eram legitima-
dos pela autoridade papal, embora, na prática, tenha havido papas rivais e
até papas prisioneiros de reis. De qualquer forma, toda a ordem política,
social, religiosa e moral era imposta de cima para baixo, restringindo não
só a liberdade de cidadãos comuns, mas também a de nobres. A religião era
pervasiva, o mais poderoso instrumento de coação social a serviço dos reis
“legítimos” e dos senhores feudais. Nesse sentido, desde a Antiguidade até
a Baixa Idade Média, a civilização ocidental se caracteriza como um lugar
de estrangulamento da liberdade individual.

Antítese
Esse quadro virtualmente congelado durante séculos começou a ser sub-
vertido por Galileu Galilei, no século XVII, e foi finalmente explodido
pela Revolução Francesa no século XVIII. Galileu deu início à retirada
de Deus dos processos físicos. A Revolução Francesa tirou Deus e os reis
ungidos pela Igreja dos processos políticos. Mas não foi uma única revolu-
ção libertária, junto com a Revolução Americana. Foram várias, simulta-
neamente: a dos servos contra a nobreza rural, a da nobreza rural contra o
rei, a dos trabalhadores urbanos contra a burguesia, a da burguesia contra
o feudalismo, e a de todos contra o rei e a Igreja. E foi, sobretudo, a revo-
lução dos intelectuais contra a ordem autoritária política, moral e clerical.

A secularização da ciência esteve na gênese dos processos liber-


tários. Se a ordem autoritária provinha da revelação e dos desígnios de
um deus, só com a morte deste deus, como reivindicaria Nietzsche mais
tarde, tornar-se-ia possível alcançar a liberdade nos aspectos essenciais
da existência humana. Seria, porém, uma morte lenta, atenuada por com-
promissos. Os grandes físicos que iniciaram a revolução da astronomia,
Nicolau Copérnico, Galileu, Johannes Kepler e finalmente Isaac Newton,
não renegaram Deus. Eles mudaram, porém, Sua natureza. O antigo Deus

53
tornou-se um deus que agia por meio das leis físicas – criador dessas leis
permanentes, sim, mas que deixava espaço para a iniciativa humana na
organização da vida secular.

A primeira grande contribuição da astronomia, para a libertação da


razão humana, foi a revolução copernicana, que deslocou a Terra de sua po-
sição no centro do universo para o seu lugar original: a órbita do Sol. Galileu
expandiu esse conceito, ao encontrar no Sistema Solar mundos parecidos
com o nosso, com muitas luas, e por isso mais majestosos, os quais, por efei-
to da especulação livre, poderiam abrigar outras formas de vida, talvez até
semelhantes às nossas. Kepler demonstrou que as órbitas dos planetas eram
elípticas, sepultando a crença tradicional de que só órbitas perfeitamente
circulares estariam à altura da criação de um deus todo-poderoso.

Newton, o maior físico da Idade Moderna até Albert Einstein, mos-


trou que as órbitas dos astros podiam ser quase exatamente calculáveis por
meio de fórmulas matemáticas que embutiam o conceito experimental de
gravitação. Seu sistema era tão elegante e racionalmente tão poderoso que
o astrônomo francês Pierre-Simon Laplace, tempos depois, teria resumi-
do para Napoleão Bonaparte o estado de espírito, na ciência avançada da
época, com as seguintes palavras: “Deus é uma hipótese desnecessária”.
Na verdade, porém, ele ainda era. Se as leis físicas governavam o mundo,
continuava havendo lugar para o criador dessas leis. A questão passava a
ser outra: Deus criou o mundo e o deixou evoluir por conta própria, ou
trata-se de um Deus benevolente que acompanha o homem em sua jornada
na Terra e o julga depois da morte, e portanto o limita. O caráter metafísico
da questão implica a virtual impossibilidade de sua solução pela ciência.

Foi a reforma de Martinho Lutero e de João Calvino que criou


espaço para um compromisso entre a visão científica e a visão religiosa
no campo político, não obstante o caráter sectário que o protestantismo
manteria no campo religioso, por sua insistência, até hoje, em uma inter-
pretação literal da Bíblia. Ao contestarem, porém, a hierarquia católica e
sua exegese bíblica, no início da Idade Moderna, os protestantes (hoje,

54
evangélicos) fizeram da interpretação pessoal da Bíblia a pedra angular
de sua fé. Isso tinha um sentido libertário na dimensão social e política da
época, tanto que foi a base dos grandes movimentos migratórios da Europa
para a América do Norte, que eram tanto uma busca pela liberdade religio-
sa como uma reação à opressão política a ela associada, do que resultou
um impulso poderoso para o capitalismo liberal nascente.

A reforma protestante não seria o único exemplo dos complexos


mecanismos de ação e reação – tese, antítese e síntese – que constituem o
motor da marcha civilizatória, pelos conceitos de Hegel e de Karl Marx.
Mas é ilustrativa das consequências históricas que acaba tendo um mo-
vimento numa determinada direção sobre outros de direções insuspeitas.
Se levarmos em conta o que pensava Max Weber, a “ética protestante”
foi fundamental na arquitetura da democracia, do capitalismo liberal e do
progresso material da América do Norte. Desempenhou, pois, um papel
libertário. E isso não pode ser deduzido diretamente de uma leitura literal
da Bíblia, pois ali, dependendo da interpretação, encontra-se um deus legi-
timador das ordens autoritárias do passado. A democracia, nesse contexto,
foi produto sobretudo da repulsa ao velho sistema feudal europeu e da
busca pela liberdade religiosa – e não da busca pela liberdade científica ou
de mudança nas instituições sociais e políticas.

Com o acúmulo de evidências em favor da física, a Igreja Católica


acabou buscando um caminho de composição – diferentemente da maioria
das igrejas evangélicas, dentre as quais muitas acreditam ainda hoje que
o mundo foi criado no ano 4004 antes de Cristo, por dedução regressiva
de eventos bíblicos. Mas este não foi um caminho linear. Com Charles
Darwin, a biologia daria um salto quase tão alto quanto o da física com
Galileu e Newton. Agora que a Terra não estava no centro do Sistema
Solar, o homem é que perdia sua dignidade metafísica como centro da
criação e do universo. O homem era nada mais, nada menos que um elo no
ciclo evolutivo que o situava como primo dos macacos contemporâneos e
descendente de um ancestral comum primevo.

55
Os registros fósseis que punham o homem numa cadeia evolutiva
de milhões de anos requeriam uma Terra suficientemente velha, e um Siste-
ma Solar igualmente antigo. A geologia e a física também admitiram isso,
e no fim do século XIX podia-se afirmar com alguma segurança científica
que a Terra tinha cerca de 4,5 bilhões de anos, e o Sol, aproximadamente
o dobro. Isso era compatível com o surgimento de condições por meio das
quais bactérias primordiais se desenvolveram por volta de 3 bilhões de
anos atrás, conforme atestam os registros fósseis. Assim, embora a maioria
dos cientistas do início do século XX acreditasse num criador, mesmo que
um criador indiferente à sua criação, a ciência parecia satisfazer também
aos que não acreditavam nele – não obstante o enigma fundamental do
aparecimento da vida que, em termos darwinistas, é inexplicável. Para to-
dos os efeitos, porém, mesmo entre os crentes, a ciência – em seu campo
específico – prescindia de Deus; e Deus, ou qualquer outro fator coercitivo,
foi colocado totalmente à margem do progresso científico, que conquistou
um estatuto de total liberdade de investigação.

A política, por sua própria natureza de instrumento de organização


do poder nas sociedades, passou por um processo mais turbulento, desde a
cidadania limitada que emergia da Revolução Americana e da Revolução
Francesa até os dias da cidadania ampliada da segunda metade do século XX.
Os grandes filósofos do Iluminismo, como Jean-Jacques Rousseau e John
Locke, assim como Thomas More no plano literário, imaginaram sociedades
em que o princípio da liberdade individual se relacionava estreitamente com
o respeito ao outro e a construção do interesse coletivo. Esse idealismo foi
confrontado, em sua própria época, principalmente por Thomas Hobbes, se-
gundo o qual o homem, se deixado livre, tende inexoravelmente a se tornar
inimigo do homem e, por isso, a ordem social deve ser garantida por um Es-
tado (monarca) com poder absoluto. É entre essas duas posições antagônicas
que vai desenvolver-se a luta política nos séculos seguintes: a opressão da
liberdade individual já não mais oriunda de um rei com poder divino, mas de
um Estado laico dominado por classes e estamentos sociais.

56
Contudo, a chama libertária das revoluções americana e francesa
não se apagou. Na Europa, ao longo do século XIX, chamado de era das
revoluções por Eric Hobsbawm, essa chama libertária tomaria a forma de
múltiplos movimentos socialistas e anarquistas, tendo por base os ideais
da Revolução Francesa, considerados contraditórios, pois, de um lado, es-
tava a liberdade (irrestrita) e, de outro, a igualdade e a fraternidade. Foi na
convergência dos impulsos libertários com os avanços na área do conhe-
cimento que Marx pretendeu estabelecer o socialismo científico, que aspi-
rava a um futuro comandado pela razão, cujas bases seriam o empirismo
e o determinismo claramente vitoriosos na ciência. Segundo ele, a força
real dos interesses das classes e o conflito inexorável entre elas levariam
a uma forma superior de sociedade, na qual o individualismo exacerbado
sucumbiria a uma forma finalmente justa de organização social e política
igualitária, o comunismo.

Na história real, o socialismo, que deveria levar ao comunismo,


liquidou com as liberdades individuais e políticas, e acabou por reconhe-
cer, no confronto da Guerra Fria, seu próprio fracasso no que diz respeito
à evolução tecnológica e ao bem-estar dos povos aos quais foi imposto,
assim como liquidou o próprio princípio de liberdade individual. O colap-
so melancólico da União Soviética marca o fim de uma ordem autoritária
supostamente estabelecida pela razão política em nome de uma solidarie-
dade forçada; e a reafirmação, a partir dos Estados Unidos da ordem liberal
centrada no individualismo ilimitado, que logo se veria efêmera.

Entretanto, se a razão política autoritária não conduziu o mundo


para o socialismo, ou para outras formas solidárias de convivência social
– estimulando, ao invés disso, seu oposto, o neoliberalismo, na forma de
individualismo exacerbado como ideologia momentaneamente hegemôni-
ca no mundo–, as forças reais que movem a história estão conduzindo o
mundo a uma direção diferente da razão política e num nível superior. É
nesse sentido que a liberdade ilimitada, sob a forma do individualismo
irrestrito – pedra angular da Idade Moderna desde seu alvorecer, e focada

57
especialmente na economia política livre-cambista –, na atual crise finan-
ceira, entrou em colapso junto com seu oposto, o totalitarismo político.
Inaugura-se efetivamente um novo tempo, uma nova era, uma síntese, uma
nova idade: a Idade da Cooperação.

Síntese
A primeira característica da Idade da Cooperação, no campo geopolítico,
é a ausência de uma hegemonia imperial, governando o mundo ou par-
te relevante dele. Trata-se de uma novidade em milênios, que caracteriza
uma situação intrinsecamente instável que até mesmo um Henry Kissin-
ger se recusa a reconhecer como definitiva. Contudo, isso não resultou de
uma ação intencional ou de uma fraqueza de Barack Obama, presidente do
único país que teria condições econômicas, militares e políticas de exer-
cer o papel hegemônico. Se ele tem algum mérito, é justamente o de ter
reconhecido que, no mundo objetivamente globalizado, e na presença de
um grupo de nações com poder nuclear, não há solução para os conflitos
radicalizados entre os países de real importância geopolítica sem que a so-
brevivência de toda a humanidade seja colocada em risco. Claro, continua
havendo espaço para conflitos localizados e para a afirmação de interesse
das potências centrais sobre áreas estratégicas. Contudo, sem as tensões
ideológicas que caracterizaram a Guerra Fria, esses conflitos tenderiam a
ser resolvidos pela diplomacia antes de um confronto catastrófico.

Obama não é o produtor da nova idade. É o seu arauto. Os genes


da Idade da Cooperação podem ser reconhecidos em pelo menos quatro
aspectos da civilização, além da geopolítica, conforme procurei mostrar
em A crise da globalização, antes mesmo da eleição de Obama. Tais as-
pectos estão presentes no imperativo de uma ação coordenada entre os
países na questão ambiental, na questão da pesquisa genética, e sobretudo
na questão da superação da crise econômica. Além disso, há um evidente
interesse coletivo na erradicação das causas do terrorismo e na sustentação

58
da democracia como instrumento básico da organização política dos po-
vos, com o intuito de escapar dos riscos que podem advir de uma ação de
eventuais governos dirigidos por líderes totalitários, com um armamento
“convencional” quase tão destrutivo quanto o atômico, e que não têm de
prestar contas de seus atos a ninguém.

A liberdade irrestrita de fazer guerra e de deixar a economia des-


regulada, em face da especulação financeira desenfreada e da degradação
ambiental, era uma projeção, no Estado, da liberdade individual ilimitada,
que não levava o outro em consideração. E, do mesmo modo, a liberdade
de conduzir as economias nacionais independentemente de suas interações
globais, também uma projeção de tal individualismo. O reconhecimento
da exaustão desses paradigmas mostra as características de uma dialética
histórica inexorável, na medida em que foi a busca da realização dos in-
teresses individuais exacerbados que produziu a globalização objetiva, e
justamente a globalização objetiva, ao estabelecer interconexões entre os
países, é que força a emergência de um paradigma de cooperação, em prol
do bem-estar social e da própria sobrevivência da espécie humana.

A força dinâmica por trás desses processos é a democracia de cida-


dania ampliada – um produto contraditório do pós-guerra e da Guerra Fria
–, que se opõe à democracia de cidadania limitada do passado ou a qualquer
democracia que prevaleceu no mundo socialista real até metade do século
XX. A democracia de cidadania ampliada é uma expansão da democracia
elitista primordial, dotada de um mecanismo inerente de controle: a liberda-
de individual do outro. Por essa característica, é a democracia de cidadania
ampliada que faz da cooperação um instrumento de realização dos interes-
ses concretos das massas, e lhe dá a um caráter objetivo, não idealista. No
campo econômico, por exemplo, não se verá grandes mobilizações sociais
propondo a cooperação, mas sim movimentos de massa exigindo mudanças
na condução da economia, mudanças somente possíveis com a cooperação
entre os países e dentro dos países. No campo geopolítico, a guerra já não
será uma decisão das elites dirigentes, justificada por expedientes de mani-

59
pulação dos povos, mas terá de levar em conta os sentimentos dos povos,
que empurrarão seus dirigentes para soluções negociadas, só realizáveis na
prática mediante um processo de cooperação.

É, pois, o jogo dialético histórico, e não apenas os apelos morais,


que empurra a civilização rumo a um novo paradigma ancorado no princí-
pio da cooperação. Se a liberdade individual irrestrita foi o paradigma ba-
silar da Idade Moderna – e se a liquidação da liberdade em nome da busca
pela igualdade foi seu contraponto dialético ao longo do último século –,
seu esgotamento, por razões concretas e não morais ou idealistas, ocorre
no justo momento em que se erige um novo paradigma. Marx observou
que não poderá ocorrer mudança histórica se o velho não estiver a ponto
de cair sozinho, e se o novo não estiver maduro o suficiente para substituí-
-lo por conta própria. Temos, certamente, pelo menos a primeira das duas
condições preenchida. A crise econômica mundial mostrou que o velho
sistema ancorado no individualismo exacerbado caiu sozinho; e o novo
tempo, a Idade da Cooperação, está em processo de substituí-lo, embora
isso provavelmente não venha a ocorrer de imediato, mas num ritmo dialé-
tico complexo, como se examinará com mais detalhe adiante.

Raras são as gerações que podem reconhecer um processo de trans-


formação histórica fundamental enquanto ele ocorre. Em geral, os contem-
porâneos, prisioneiros dos preconceitos e das redes de relações do passa-
do, tornam-se incapazes de ver o novo e limitam-se a projetar para frente
tendências ultrapassadas, até que estejam diante de uma realidade diferen-
te. Entretanto, com o avanço dos meios de comunicação e a interconexão
quase instantânea dos povos e de seus dirigentes, as ações e reações, em
todos os campos das relações humanas, adquirem uma dinâmica nunca
vista anteriormente, pela qual os processos de mudança ganham uma ace-
leração tão grande que é impossível ignorar o novo, à medida que ele vai
se destacando claramente da velha ordem.

O liberalismo econômico, no seu rótulo antigo ou no seu rótulo neo-


liberal, não foi apenas um princípio ordenador da esfera econômica. Nos

60
termos de Friedrich Hayek, o liberalismo seria uma filosofia política que pe-
netrou fundo na política, na moral e na economia. Suas raízes mais profun-
das estão no darwinismo social de Herbert Spencer, usado como justificativa
para as desigualdades de renda e de riqueza entre os homens (recompensa
do mais forte), e indiferente a qualquer princípio que garantisse a igualdade
de oportunidades na sociedade. Foi exatamente esse o tipo de liberalismo
(não a liberdade de iniciativa ou a propriedade privada dos meios de produ-
ção ou o capitalismo) que colapsou. Dados os eventos recentes do mundo,
já ninguém ousa falar em Estado mínimo e mercado autorregulado, embora
alguns epígonos neoliberais ousem apelar para a destruição do Estado de
bem-estar social em nome da eficiência econômica. Fala-se, sim, em coo-
peração entre os países, em evitar os apelos protecionistas e em proteger as
economias mais fracas – algo que, mesmo se limitado inicialmente ao cam-
po da retórica, funciona como um farol ideológico para o futuro.

O colapso do neoliberalismo leva junto sua projeção política e mo-


ral. É toda uma ideologia que sucumbe. Décadas atrás, seria necessário
muito tempo para que algo equivalente fosse percebido. Agora, entre a
eclosão da crise global, em setembro de 2008, e a reunião do G20, em
Londres, no início de abril de 2009, transcorreram apenas sete meses para
que o premiê britânico Gordon Brown declarasse morto o Consenso de
Washington, síntese dos enunciados neoliberais. A declaração, em si, não
é surpreendente, pois outros afirmavam a mesma coisa. Surpreendente é
quem a fez. Brown, a chanceler da Alemanha Angela Merkel e o presiden-
te francês Sarcozy, todos próceres do encontro de líderes, foram levados
ao poder cavalgando plataformas políticas inequivocamente neoliberais.
A mudança circunstancial da posição desse trio é o testemunho mais elo-
quente de que não são os líderes que estão mudando o mundo, mas o mun-
do que está mudando os líderes. É isso que tenho chamado de imperativo
de uma nova era, a Idade da Cooperação.

Isso leva imediatamente ao cerne da livre especulação filosófica


sobre os novos tempos: Como será o mundo do futuro, um mundo gover-

61
nado pelo princípio da cooperação? As seguidas reuniões do G20 abriram
algumas frestas importantes em plena crise planetária para iluminar os no-
vos tempos na esfera econômica. Contudo, o formidável impacto inicial da
crise acabou atenuado por sinais de lenta recuperação da economia mun-
dial dentro do paradigma anterior. No início, era possível vislumbrar como
saída um mundo de capitalismo regulado, prevalecendo sobre a fracassada
autorregulação dos mercados; ou um mundo do controle dos paraísos fis-
cais e dos movimentos livres de capitais especulativos; ou um mundo de
disciplinamento comum dos sistemas financeiros nacionais para evitar a
repetição das crises sistêmicas; ou um mundo de apoio e sustentação ao
desenvolvimento dos países mais pobres. De algum modo, tudo isso está
acontecendo, porém de forma fragmentada, com maior ênfase na retórica
do que nos fatos, à margem de um eixo reordenador que caracterize efeti-
vamente um novo paradigma.

Os céticos dirão, com alguma razão, que isso não passa de palavras
escritas nos comunicados finais dos encontros, mas o fato é que não se
pode esperar mais que palavras de reuniões de cúpula desse tipo. A tradu-
ção de palavras em compromissos, e de compromissos em ações concre-
tas, pode não ser imediata, mas sua inevitabilidade não provém de vonta-
des individuais, e sim de um imperativo histórico. Mas o capitalismo vive
sua maior crise em sete décadas, e já não existe um país hegemônico que,
por ato imperial, possa ordenar a recuperação da economia. Os três gran-
des blocos – Estados Unidos, União Europeia e Ásia – e os emergentes
dependem uns dos outros, e nenhum deles pode confiar num desenvolvi-
mento estável próprio sem um estatuto de cooperação recíproca no campo
financeiro, comercial e tecnológico.

Na esfera geopolítica, a eleição de Obama e seus gestos de abertura


para os árabes sinalizaram o reinício de um processo de paz no Oriente
Médio, que deveria isolar radicais de ambos os lados no sentido de en-
contrar como solução dois Estados para dois povos. Uma solução desse
porte teria efeito nas relações entre Estados Unidos e Irã, mediante gestões

62
diplomáticas que provavelmente teriam de envolver a Rússia; o que se
mostrou politicamente inviável. E se tornou mais difícil pela imprudente
decisão norte-americana de levar adiante a construção, na Polônia e na
tchecoslováquia, do escudo de radares, que os russos viram como uma
ameaça. O Iraque está deixando de ser uma nação ocupada. Tudo isso ten-
de a acontecer sem o uso de força e sem sua ameaça. Restará o problema
do Afeganistão, de tremenda complexidade: os Talibãs são uma salvaguar-
da para Osama bin Laden e seu grupo, além de ameaçar a estabilidade do
Paquistão, que é uma potência nuclear. E o consentimento da impunidade
de Bin Laden colocaria em xeque a autoridade de qualquer presidente nor-
te-americano, tendo em vista o trauma do 11 de setembro.

É neste ponto em que a geopolítica norte-americana encontra-se


numa encruzilhada. Num pronunciamento significativo, logo depois de
sua posse, a secretária de Estado Hillary Clinton declarou que a melhor
forma de combater o terrorismo seria erradicar as suas causas: a pobreza e
a falta de oportunidades de desenvolvimento humano. Se isso é a sinaliza-
ção de um novo paradigma, tal qual temos antevisto, resta o fato concreto
de que o terrorismo existe, é uma ameaça objetiva e ganha dimensões in-
dependentemente de suas causas. Diante disso, só uma ação diplomática
coordenada no plano internacional seria capaz de distinguir em que aspec-
to continua necessária uma ação punitiva por meio de força de uma ação
preventiva mediante a promoção do desenvolvimento econômico e social.

Na esfera ambiental, já não são apenas sinais, mas ações concretas


que começam a ser tomadas em nível governamental para enfrentar o risco
das mudanças climáticas. Nos Estados Unidos – país que, na era Bush, foi
decisivo para bloquear qualquer avanço mundial significativo no comba-
te às causas das mudanças climáticas –, a agência de controle ambiental
(EPA) anunciou uma mudança nos critérios de regulação para controlar
e reduzir as emissões de CO2, gás responsável pelo efeito estufa. Além
disso, o governo Obama decidiu assumir a liderança efetiva no terreno
ambiental, o que levou a China e a Índia a tomarem uma posição conver-

63
gente. Portanto, também aqui está em processo um dos aspectos centrais
do mundo da cooperação, não obstante os obstáculos políticos objetivos
que a crise mundial coloca no caminho de uma ação mais rápida no campo
ambiental, sobretudo nos países ricos.

Na esfera científica, e em especial no campo das ciências da saúde


e da biologia, torna-se cada vez mais evidente o imperativo da coopera-
ção, desdobrado em dois aspectos distintos: econômico e moral. O aspec-
to econômico diz respeito à investigação médica e ao patenteamento de
descobertas científicas. O moral está relacionado com os limites a serem
impostos ou não à investigação da genética humana.

Num mundo de avanços científicos compartilhados, a exploração


econômica limitada de patentes de remédios – adquiridas num determina-
do estágio da investigação – constitui uma retribuição financeira despro-
porcional ao esforço realizado. Na realidade, por um lado, toda exploração
econômica de descobertas médicas que represente retribuição, além do
esforço financeiro feito na própria descoberta, fere o sentido de ética que
deve prevalecer nessa esfera. Por outro lado, como a pesquisa tem custo e
deve ser estimulada, um nível justo de retribuição tem de ser encontrado.

A fórmula mais simples é a estatização total das pesquisas médi-


cas e a liberação das patentes correspondentes às descobertas feitas. Isso,
contudo, afastaria o setor privado da pesquisa médica. A alternativa seria
manter o setor privado, indenizá-lo com um valor justo pelas descobertas
feitas e liberar as patentes. Atualmente, nos países industrializados, grande
parte das pesquisas é feita diretamente ou financiada pelo setor público.
Bastaria, pois, estender esse sistema ao setor privado. Entretanto, a produ-
ção de medicamentos com patentes livres pelos laboratórios privados teria
como contrapartida a regularização dos preços desses medicamentos.

A pesquisa genética humana levanta um problema moral: Até onde


é aceita a manipulação de genes humanos, e para quais propósitos? O tema
ganhou popularidade com a clonagem de animais, e já está nos cinemas

64
e na televisão, em que são imaginados clones humanos. Contudo, não é
apenas isso que está em jogo. Embora muita especulação em curso não
passe de fantasia, tendo em vista o estágio atual da genética, nos próximos
dez, vinte, trinta anos, ou mais, a ciência terá condições de desenvolver
experiências com genes humanos que ensejarão discussões sobre eugenia,
anomalias genéticas e o uso militar. Isso seria inevitável?

No início dos anos 1930, um jovem físico húngaro, Leo Szilard, fu-
gindo da ditadura de seu país, percebeu as implicações militares da fissão
do átomo e tentou convencer seus pares europeus a fazerem uma moratória
de informações sobre os avanços na área para evitar aplicações bélicas.
Alguns anos depois, foi ele um dos principais redatores da carta, assinada
por Einstein, que convenceu o presidente Roosevelt a autorizar o projeto
da bomba atômica. Isso ilustra como é difícil parar o desenvolvimento da
ciência, impondo limites morais; e como é fácil acelerá-lo em termos de
livre competição por inventos na busca por poder político ou econômico.

Uma eventual regulação internacional da pesquisa genética só se-


ria possível com um alto grau de cooperação entre os países e uma cola-
boração efetiva do corpo científico internacional. Sem isso, haveria vaza-
mentos de informações. A cooperação formal não só estabeleceria regras
para as atividades dos laboratórios públicos e privados, sem prejudicar a
investigação nos campos livres, como também desestimularia os pesquisa-
dores recalcitrantes porque não teriam onde publicar suas pesquisas. É um
campo controverso. Mas certamente não é o único campo polêmico cuja
regulação competirá à Idade da Cooperação.

Transição caótica
A crise financeira mundial em curso surgiu de uma descolagem entre o
sistema financeiro especulativo e a economia real. Isso sempre existiu em
crises de menor ou maior monta no capitalismo. Mas há um diferencial
entre a crise de 2008 e a atual: sua escala e sua especificidade. Em mea-

65
dos de 2008, quando a crise eclodiu, o montante de ativos financeiros em
circulação no mundo, segundo o Banco de Compensações Internacionais,
elevava-se a US$ 170 trilhões, contra menos de US$ 60 trilhões, do Pro-
duto Mundial Bruto do ano anterior. A cifra relativa ao valor nacional dos
derivativos, base para as apostas na economia fictícia, elevava-se ao nível
astronômico de quase US$ 700 trilhões.

É claro que essa bolha financeira cedo ou tarde explodiria. O proble-


ma é que, com as economias interconectadas pela globalização, a simples
quebra de grandes instituições financeiras pode implicar o colapso global do
capitalismo. Isso foi entendido muito rapidamente quando o governo Bush
deixou quebrar o Lehman Brothers, em setembro de 2008, mesmo sendo
esteapenas o quarto maior banco de investimento do país, bem inferior aos
gigantes comerciais. Não obstante, o estrago do Lehman foi tão grande que
o governo teve de estender um socorro trilionário a todos os vinte maiores
bancos comerciais dos Estados Unidos, a começar pelo Bank of America
e o Citigroup – os maiores do país e do mundo –, a ponto de ambos serem
parcialmente estatizados por algum tempo. A Inglaterra estatizou seus dois
maiores bancos comerciais, o Bank of Scotland e o Barclays, e a Alemanha
teve de socorrer o Commenzbank, o segundo maior banco comercial do país.

Diferentemente da Grande Depressão dos anos 1930, quando mi-


lhares de pequenos e médios bancos norte-americanos quebraram e os
grandes foram poupados, desta vez todos os grandes teriam quebrado pela
força de suas relações sistêmicas, caso o governo não os socorresse. Tam-
bém quebraram virtualmente a maior seguradora (AIG), as duas maiores
empresas de crédito imobiliário (Freddie Mac e Fannie Mae) e as duas
maiores empresas manufatureiras do país, a GM e a Chrysler, todas colo-
cadas sob as asas do governo. Em suma, mesmo que temporária, a solução
para a crise não poderia ficar mais distante do princípio liberal da autorre-
gulação dos mercados e do Estado mínimo.

Para uma solução definitiva, é necessário, em tese, uma reconci-


liação entre a esfera financeira da economia e a esfera real. Em síntese,

66
isso implica perdas trilionárias. E o sistema bancário tem que voltar a
emprestar dinheiro ao sistema produtivo, e não à especulação, desta vez
segundo as regras da teoria das finanças funcionais. E é justamente a isso
que o sistema bancário norte-americano resiste, não por querer conspirar
contra o país, mas para contingenciar as operações financeiras: carregan-
do mais de US$ 3 trilhões em títulos e empréstimos podres, os bancos
não têm outra alternativa para fazer dinheiro rápido e evitar a perda de
capital a não ser aplicando a curto prazo no mercado monetário (US$ 4
trilhões ao dia), no mercado de debêntures, câmbio e títulos de corpora-
ções, e na arbitragem com títulos públicos, já que a renda dos títulos que
os bancos compram do governo é maior que a dos juros dos empréstimos
que tomam dos bancos centrais. Raramente fazem empréstimos produ-
tivos a pequenas e médias empresas, pois isso imobiliza, pelo tempo do
empréstimo, suas disponibilidades financeiras. E como as pequenas e
médias empresas representam 65% do emprego gerado nos Estados Uni-
dos, a falta de crédito as impede de empregar, e a taxa de desemprego
continua elevada!

Esse comportamento dos bancos determina uma mudança qualita-


tiva no sistema em relação ao que acontecia nas recessões anteriores e na
própria Grande Depressão dos anos 1930. Tradicionalmente, bancos co-
merciais convertem depósitos e aplicações de curto prazo em empréstimos
de médio e longo prazos. Com isso, criam a moeda indispensável ao de-
senvolvimento econômico. Na Grande Depressão, como o núcleo duro do
sistema bancário não foi atingido pela crise, essa forma de operar dos ban-
cos continuou a mesma. Mas este paradigma desabou em 2008. Animados
pela ciranda financeira dos anos 1980 para cá, os bancos se acostumaram
a captar e a emprestar a curto prazo, quase exclusivamente para operações
especulativas, anulando qualquer virtualidade produtiva do sistema ban-
cário. Com esse novo paradigma operacional, não há contribuição real do
sistema bancário comercial para o desenvolvimento econômico e a expan-
são do PIB. E é o que acontece ainda hoje.

67
Esta é, talvez, a principal característica distintiva entre os desalen-
tados programas de recuperação em curso nos Estados Unidos, na União
Europeia e no Japão, e os vigorosos programas da China e da Índia (o Bra-
sil recuou na corrida): estes últimos têm sistemas bancários totalmente, ou
em grande parte, públicos, enquanto, nos primeiros, é a banca privada que
domina absolutamente o sistema bancário comercial. Na China e na Índia,
por exemplo, ainda em novembro de 2008, os governos definiram am-
plos programas de estímulo e determinaram aos bancos que ampliassem as
operações bilionárias de crédito. No Brasil, inicialmente expansionista, o
BNDES recebeu do Tesouro R$ 100 bilhões , complementados posterior-
mente com mais R$ 80 bilhões, para sustentar o investimento privado. En-
quanto essas decisões de governo eram transformadas em investimentos
reais nos países emergentes, nos países industrializados avançados a banca
privada – salva do desastre pelo dinheiro público – voltava ao curso nor-
mal das especulações de curto prazo, sem oferecer risco, e sem contribuir,
ao crescimento.

É preciso notar não estarmos diante de uma conspiração de ban-


queiros. O seu comportamento especulativo surge da própria natureza da
crise em que estão mergulhados: carregando trilhões de dólares em títulos
podres, eles têm de se preparar para dar-lhes baixa no momento do venci-
mento. Se efetivamente não forem pagos pelos devedores, então terão de
abater o respectivo valor do seu lucro ou do seu capital. Como os montan-
tes podres são exagerados, isso pode representar uma quebra ou um risco
de estatização. Em consequência, a busca de resultados de curto prazo,
em operações sem risco, torna-se um imperativo. A isso se soma, obvia-
mente, a busca avarenta de resultados para aumentar os bônus da direção.
Em qualquer hipótese, estamos diante de uma contradição na operação do
sistema, dentro dos antigos conceitos e da terminologia muito familiares
ao velho Marx.

Do ponto de vista da economia política, o socorro aos bancos e aos


aplicadores é um mecanismo perverso de acomodação das rendas espe-

68
culativas no período do boom. Se na voragem especulativa houve ganhos
bilionários sem correspondência com o sistema produtivo real, na fase de
desinflação seria de se esperar que houvesse perdas correspondentes. En-
tretanto, os governos dos países industrializados introduziram uma espécie
de cunha no sistema para impedir as perdas dos especuladores. O proces-
so consistiu em realizar imensos déficits públicos financiados por títulos
governamentais e pelo consequente aumento das dívidas públicas, com os
quais, em última instância, foi enxugada a bolha especulativa. O que era
uma especulação privada desenfreada, supostamente arriscada, passou a
ser uma aplicação segura em títulos públicos.

Se fosse possível conferir atributos humanos aos mercados, nada


mais revelador da sua falta de caráter do que a demanda insistente dos
conservadores para que os países, em especial os do sul da Europa, façam
superávites em seus orçamentos para reduzir os déficits e as dívidas pú-
blicas. Todos os países europeus, exceto a Grécia, vinham reduzindo sis-
tematicamente, sob a batuta do neoliberalismo, seus déficits e suas dívidas
públicas antes da crise. Eles só os aumentaram para “salvar” os bancos, e
consequentemente os mercados. A exigência neoliberal é que os governos
cortem gastos públicos de interesse geral para sancionar a renda financeira
e o estoque dos ativos privados, estatizados em função da crise criada jus-
tamente pelos neoliberais. Trata-se de uma contradição entre a economia
e a política, e não há como resolvê-la dentro dos paradigmas econômicos
prevalecentes.

A história não segue um curso linear, mas dialético. E a dialética


histórica está sujeita, ela própria, ao curso das contradições ideológicas e
reais no processo de construção do novo. Não é porque, logicamente, o
mundo caminha para uma ordem cooperativa que a cooperação se imporá
sem resistências. Forças contrárias existem e tentarão por todos os meios
manter a velha ordem. No plano mundial, o principal campo de conflito
é o G20, cujos componentes respondem por 90% da economia planetária;
em termos nacionais, o embate decisivo será travado nos Estados Unidos,

69
ainda individualmente a maior e mais poderosa nação do mundo, e, na Eu-
ropa, cuja economia e população são coletivamente ainda maiores.

Mais do que a crise financeira, uma crise econômica de grandes


proporções mantém estagnadas as economias dos países industrializados
avançados. A essência dessa crise é uma arquitetura financeira fracassada,
que se embebedou de especulação até tornar-se disfuncional. O sistema
bancário, que em outro tempo funcionava como o pulmão do capitalismo
– e tradicionalmente transformava depósitos e poupanças de curto prazo
em empréstimos produtivos de longo prazo –, voltou-se, como já mencio-
nado, para operações especulativas de curto prazo a fim de contrabalançar
trilhões de dólares em empréstimos podres que são mantidos em suas car-
teiras, herdados da fase ultraespeculativa, e os quais deverão ser baixados
ao ritmo de seu vencimento. Nos Estados Unidos, isso significa limitar o
crédito às pequenas e médias empresas, geradoras da maior parte do em-
prego no país. Em consequência, a taxa de desemprego não baixa, e a eco-
nomia oscila entre subida e desaceleração, como num eletrocardiograma.

A alternativa canônica para romper a estagnação seria um novo


programa de estímulo fiscal, ainda mais poderoso que os US$ 7,5 trilhões
adotados pelo governo Obama. Esse programa, se impediu a economia
de continuar caindo, não conseguiu fazê-la crescer de forma sustentada.
Teve um erro de concepção: deu excessiva ênfase (45%) à devolução de
impostos, e menos ênfase a gastos diretos do setor público. Numa situação
em que as famílias estavam muito endividadas, o alívio fiscal ajudou-as a
pagar suas dívidas, e não gastar em compras; além disso, as famílias mais
afluentes, também beneficiadas pelo estímulo fiscal, provavelmente deci-
diram poupar e acumular, e não gastar.

Isso enfraqueceu o efeito multiplicador do estímulo fiscal, também


afetado pela incapacidade do Estado norte-americano de deslanchar, em
curto e mesmo em médio prazo, um programa de gastos públicos em in-
fraestrutura, como era o programado. O governo se apercebeu disso, e em
2010 propôs ao Congresso um novo programa, este exclusivamente dire-

70
cionado para infraestrutura, no montante de US$ 50 bilhões. Com a perda
da maioria na Câmara, porém, Obama teve dificuldades em levar adiante
qualquer novo programa de estímulo fiscal, na medida em que os republi-
canos se opuseram firmemente a novos gastos e, na verdade, prometeram
batalhar por alguma forma de consolidação fiscal que eliminaria toda pos-
sibilidade de políticas keynesianas anticíclicas.

O FED, banco central norte-americano, em novembro de 2010, ali-


nhou-se com a política de estímulos do governo mediante a decisão de
adquirir no mercado secundário, progressivamente, US$ 15 trilhões em
títulos públicos de longa maturação, para ampliar a quantidade de dinheiro
em circulação e favorecer o investimento a baixo custo. Os conservadores,
por razões ideológicas equivocadas, ficaram indignados com a decisão.
Na realidade, a decisão correta teria sido a de adquirir títulos novos do
Tesouro, a fim de que o dinheiro correspondente, nas mãos do governo,
pudesse financiar novos programas do setor público com efeito multiplica-
dor sobre a economia. O mercado privado norte-americano não precisava
de mais dinheiro, ao contrário, as grandes corporações norte-americanas
naquele período acumularam US$ 4 trilhões sem investir. O que lhes fal-
ta, portanto, não é dinheiro, mas mercado. A IBM lançou bônus de três
anos, rendendo 1% ao ano, a Microsoft pagou 7/8 de 1% ao ano por bônus
similares e a Walmart captou 3/4 de 1%. Na verdade, esses títulos, dada
a inflação residual, renderão juros negativos. Essa é a maior evidência de
que não faltava dinheiro para investir. Mais uma vez, o que faltava, e ainda
falta, é mercado. E mercado, numa situação de recessão prolongada, só se
estimula com gastos públicos ou exportações.

O drama norte-americano é que os conservadores impedem o estí-


mulo fiscal, e a situação objetiva do resto do mundo industrializado, nota-
damente a União Europeia e o Japão, encontra-se também em recessão e
não pode absorver um aumento considerável de exportações dos Estados
Unidos. Há, naturalmente, a Ásia, e sobretudo a China, além de emergentes
de menor monta como o Brasil. Contudo, a força importadora combinada

71
dos países emergentes não é suficiente, mesmo que continuem crescendo,
para suportar a necessidade de aumento das exportações dos Estados Uni-
dos e dos demais países industrializados. A China e a Índia, entre outros
países em desenvolvimento, no início, trataram a crise, inicialmente e cor-
retamente,

Tudo isso se refletiu, de forma caótica, na reunião do G20 em Seul.


Os líderes mundiais se revelaram confusos e atordoados. Há uma vontade
de cooperação, mas os conflitos reais, mal resolvidos no plano objetivo,
impedem acordos efetivos. Em termos práticos, seria necessário estabele-
cer um diagnóstico preliminar da natureza da crise, que a rigor não existe.
A China e a Índia, entre outros países em desenvolvimento, trataram a
crise no início, e corretamente, como um problema de demanda efetiva;
os Estados Unidos seguiram a mesma linha no plano ideológico, porém
com menos eficácia no plano prático. De qualquer modo, China e Índia
contornaram a recessão e mantiveram-se em alto crescimento, e os Esta-
dos Unidos conseguiram reverter inicialmente a recessão. Nas reuniões
iniciais do G20, logo após a eclosão da crise, todos os participantes con-
cordaram com a necessidade de implementar conjuntamente programas de
estímulo fiscal. Isso mudou a partir do encontro em Toronto, no início de
2010, quando, contrariando a proposta norte-americana, surgiu uma forte
corrente a favor da retirada dos estímulos e dos ajustes fiscais para cor-
tar as dívidas e os déficits públicos produzidos, sintomaticamente, pelos
próprios programas de socorro financeiro aos bancos promotores da farra
especulativa mundial.

A Alemanha e a França, e posteriormente a Inglaterra, impuseram a


si e ao resto da Europa um programa de ajuste fiscal draconiano, com base
no diagnóstico de que a crise é fundamentalmente de natureza fiscal em
razão dos altos déficits orçamentários dos demais países europeus, sobre-
tudo do sul da Europa. Em vez de ampliar o gasto público, o objetivo, na
zona do euro, é reduzi-lo para trazer progressivamente o déficit e a dívida
pública para os parâmetros do Pacto de Estabilidade e Crescimento, que

72
instituiu a moeda única (3% e 60%, respectivamente). Um pacto separado
entre Alemanha e França estabeleceu critérios para sanções automáticas às
outras nações do euro que fugissem a essas regras.

Em Seul, as contradições afloraram. A sugestão norte-americana de


estabelecer limites quantitativos para déficit e superávit em conta-corren-
te (4% do PIB) foi rejeitada – a meu ver corretamente – ainda na fase da
discussão entre os ministros da Fazenda. A pressão para revalorizar o yuan
ficou limitada a insinuações indiretas, para não irritar os chineses. Estes,
por sua vez, adotaram uma forte linha de crítica aos Estados Unidos por
conta da decisão do FED a respeito da compra de grande quantidade de dó-
lares e títulos públicos, vendo nisto – com vários outros países, inclusive
o Brasil – uma tentativa de desvalorização competitiva do dólar. Falou-se
muito em balancear os déficits e os superávites em conta-corrente entre os
países, mas não foi formulada uma única indicação concreta de como fazê-
lo. Aliás, é realmente impossível fazer isso por qualquer medida artificial,
como foi sugerido pelos norte-americanos. Uma medida segura e eficaz
poderia ter sido proposta, mas ficou nos bastidores: o controle do fluxo de
capitais especulativos entre os países!

Estamos diante de uma situação concreta que corresponde ao que


Marx, em seu tempo e no plano teórico, viu como a “contradição” do ca-
pitalismo. Em termos de teoria do caos – aplicada ao tempo histórico que
vivemos –, trata-se da transição entre dois estados: o estado da Idade Mo-
derna, em colapso, e o estado da Idade da Cooperação, em ascensão. Essas
fases transitórias, em todos os aspectos da natureza, são caóticas: o velho
está caindo de pobre, mas o novo ainda não está suficientemente madu-
ro para assumir seu lugar. Convém especular, portanto, como o processo
dialético gestará progressivamente o amadurecimento do novo.

A chave fundamental para a dinâmica histórica são os processos po-


líticos, e o traço quase universal da política, em tempos contemporâneos, é
a democracia de cidadania limitada. Em última instância, são os cidadãos
filtrados pelo processo político que avalizam o rumo das nações e de suas

73
políticas econômicas. Contudo, num meio caótico marcado pela transição de
paradigmas, o véu ideológico pode, por longo tempo, embaçar a percepção
do rumo correto das decisões políticas. Acontece que a política também é
um processo de tentativa e erro: na medida em que as escolhas dos gover-
nantes não correspondam às aspirações das massas, cedo ou tarde eles serão
afastados do poder. O recurso que pode acelerar esse processo, na situação
caótica em que vivemos, passa necessariamente pela crítica da economia
política. Mas nem isso é suficiente. É preciso que dirigentes carismáticos
levem às massas uma mensagem social e política renovadora.

O primeiro passo, em termos de economia política, é distinguir o


essencial do acessório. A imprensa vulgar tomou como um aspecto fun-
damental da atual crise o fato de que a China, vinculando rigidamente o
yuan ao dólar, mantém sua moeda desvalorizada e assim detém vantagens
competitivas no espaço global – o que determina o grande desequilíbrio
comercial entre ela e os Estados Unidos. Há pelo menos quatro contra-
dições nesse argumento. Primeira: de 2005 até 2007, a China permitiu a
valorização do yuan em cerca de 20%, o que em nada alterou sua compe-
titividade internacional e seu crescente superávit com os Estados Unidos.
Segunda: se o yuan passou a ficar rigidamente atrelado ao dólar a partir
de 2007, a queda do dólar é que determinou vantagens competitivas para
ambas as moedas, e não a queda do yuan que favoreceu exclusivamente
a China. Terceira: o déficit norte-americano não é apenas em relação à
China, mas em relação a outros noventa países, o que indica que o proble-
ma da competitividade norte-americana é fundamentalmente interno, pela
expansão (na direção da própria China) de sua indústria manufatureira do-
tada de alta tecnologia e competitividade. Quarta, e mais óbvia de todas:
a competitividade chinesa não vem da vinculação do yuan ao dólar, mas
dos baixos salários da mão de obra chinesa e do baixo custo relativo da
tecnologia usada, seja a desenvolvida internamente, com amplos subsídios
públicos, seja a adquirida por imposição política às corporações interna-
cionais, sobretudo norte-americanas.

74
A tentativa de impor uma valorização rápida da moeda chinesa é,
pois, uma falsa solução para problemas muito mais profundos. Na realida-
de, os chineses não podem aceitá-la, pois sabem que uma desvalorização
acelerada desestabilizará sua economia e repercutirá no equilíbrio de sua
sociedade, composta por 1,3 bilhão de pessoas. Mesmo que aceitassem,
o desequilíbrio comercial com os Estados Unidos não seria resolvido em
razão dos outros fatores acima mencionados. O resultado seria a intro-
dução de um elemento caótico adicional num mundo já caótico. A razão
básica disso é que o diagnóstico vulgar de que os desequilíbrios comerciais
se devem a desnivelamentos monetários é grotescamente equivocado. Os
desnivelamentos monetários são consequência de uma contradição mais
profunda, que diz respeito aos desequilíbrios entre demanda interna e de-
manda externa induzidas pela política macroeconômica como um todo, e
não apenas pela política cambial.

É uma inconsequência aritmética que todos os países tentem si-


multaneamente fazer superávits em conta-corrente com o resto do mundo:
superávits e déficits são partes de um jogo de soma zero, e na medida em
que alguns países fazem superávits, outros necessariamente fazem défici-
ts. Nos primórdios do capitalismo, o mercantilismo funcionou como ideal
econômico de algumas potências: buscava-se fazer superávit a todo custo,
que seria transformado em ouro e outros metais preciosos, e o resultado
disso, em muitos casos, foram grandes desequilíbrios e guerras. Após a
Segunda Guerra, no auge do capitalismo produtivo, Japão e Alemanha se
desenvolveram seguindo políticas estritamente mercantilistas, um modelo
que, depois, se estendeu a outros países asiáticos, sobretudo à China.

Em si mesmo, o superávit comercial com o resto do mundo é uma


estratégia econômica que promove o emprego interno e a máxima utiliza-
ção da capacidade produtiva. Para empresas e para grande parte dos traba-
lhadores esse cenário é o melhor dos mundos. Em termos físicos, o saldo
de exportação reduz a oferta no mercado interno, mas isso não significa
necessariamente que a oferta ou a inflação sejam proporcionalmente li-

75
mitadas, porque o produto exportado pode corresponder a uma produção
excedente, acima da quantidade necessária para suprir a procura domésti-
ca. Pode ser também que a qualidade dos bens exportados não seja própria
para consumo de massa, como no caso da produção de máquinas, equipa-
mentos e produtos químicos alemães de alta sofisticação. Em termos fi-
nanceiros, a receita da exportação é salário ou lucro. No caso do lucro, ele
pode se tornar poupança ou novo investimento, interno ou no exterior. É
possível que isso promova concentração de renda, mas, de qualquer modo,
produzirá acumulação de reservas, aumento de poupança e crescimento do
emprego e do produto em questão.

Em contrapartida, o déficit comercial destrói empregos internos


mais do que os gera, e o financeiro reduz as reservas internacionais do país
e aumenta seu endividamento externo. Só se justifica quando corresponde
a importações de bens, equipamentos, tecnologia e insumos produtivos
que aumentam a produtividade interna e, portanto, a capacidade ulterior
de pagamento dos juros e do principal do correspondente financiamento.
Em termos ideais, a situação externa de um país – considerando não só o
comércio, mas também os fluxos financeiros – deveria, na média, ser equi-
librada, com exportações de bens e serviços equivalendo a importações.

O problema com o superávit comercial é que outros também quere-


rão fazê-lo. Mesmo porque, em termos financeiros, é o único meio seguro
de acumular reservas monetárias internacionais, sem o risco de entrada de
capital especulativo. Como, para a saúde da economia mundial, o ideal
seria uma situação de relativo equilíbrio entre as contas-correntes dos paí-
ses, o mecanismo óbvio para restaurar esse equilíbrio, já imaginado por
Keynes, seria os países superavitários sofrerem alguma forma de punição
por seus superávits permanentes, e os países deficitários receberem estí-
mulos para melhorar suas contas. O Fundo Monetário Internacional seria
a instância reguladora desse processo, facilitando o acesso a reservas tem-
porárias para os países inicialmente em déficit e mobilizando as reservas
dos superavitários.

76
O esquema de Keynes, com a criação de uma moeda contábil in-
ternacional para balancear os saldos do comércio mundial (o plano Ban-
cor), não foi aceito pelos Estados Unidos, por conta da posição confortá-
vel que ocupavam como emissores da moeda hegemônica, o dólar, numa
época em que eram largamente superavitários no comércio externo. Com
isso, não existe nenhum indutor artificial que balanceie financeiramente
o comércio. Daí a compulsão, no curto prazo, por “guerras cambiais”
competitivas, que dão uma vantagem inicial ilusória, mas acabam sendo
autodestrutivas. Elas próprias são o epifenômeno de uma realidade mais
elementar: como já mencionado, o desequilíbrio permanente no comér-
cio mundial reflete o desequilíbrio nas demandas internas dos países su-
peravitários e deficitários.

Um país superavitário na realidade consome menos do que produz;


um deficitário, ao contrário, consome mais do que produz. Só existe uma
forma de promover o equilíbrio entre os dois: por meio de uma política
econômica de estímulo fiscal, aumentar a demanda interna em ambos, num
ritmo relativamente maior em um que no outro. Observe que se poderia
ficar tentado a dizer, pelo gosto da simetria, que, no caso do país superavi-
tário no comércio externo, deveria ser promovida uma política de estímulo
fiscal para aumentar a demanda efetiva interna; e, no caso do deficitário,
uma política fiscal restritiva para reduzir o consumo doméstico. Nada se-
ria mais contraproducente, numa situação de crise global, pois levaria à
contração adicional da economia no país deficitário, quando, no caso, o
mais necessário seria a promoção do investimento pelo estímulo à deman-
da efetiva e ao investimento produtivo em todos os países que participam
do jogo do comércio mundial, mesmo que em ritmos relativamente dife-
rentes, e independentemente da situação inicial de seus orçamentos.

Na reunião de novembro de 2010 em Seul, o presidente Barack


Obama tentou colocar na agenda o comprometimento do G20 com uma po-
lítica de crescimento global, o que passaria necessariamente pelo recurso e
pela continuidade de políticas de estímulo fiscal à demanda. Essa propos-

77
ta, contudo, ou não foi entendida, ou passou despercebida pela imprensa.
Na realidade, por detrás da cortina de fumaça da “guerra cambial” – algo
muito explorado pela mídia talvez porque contenha o conceito emocional
de guerra –, ficou em segundo plano a natureza mesma do conflito, funda-
mental em matéria de política econômica entre Estados Unidos e China,
de um lado, e Alemanha, França, Inglaterra e o resto da Europa, de outro.

O fato é que o presidente norte-americano encontrava-se, ele pró-


prio, enredado numa armadilha política e efetivamente impossibilitado de
dar um curso progressista à sua política econômica. As eleições parciais
de novembro de 2010 nos Estados Unidos colocaram o país na trilha do
conservadorismo radicalizado, em linha com a Europa conservadora, em-
penhada em cortar gastos públicos e suprimir os direitos básicos do Estado
de bem-estar social. Um painel bipartidário para examinar a questão das
contas públicas nomeado pela Casa Branca propôs cortes de US$ 200 bi-
lhões no orçamento dos próximos anos, incluindo saúde, previdência e
defesa, até aqui consideradas sagradas. Em contrapartida, o painel sugeriu
aumentar os impostos, inclusive e principalmente dos ricos. A proposta é
totalmente inviável, social, econômica e politicamente, mas o simples fato
de ter sido feita por um comitê oficial da Casa Branca indica que terá de
ser considerada, e o fato de ser considerada indica o grau de confusão nas
diretivas básicas (des)estruturantes da política econômica norte-america-
na, o que solapa uma influência que deveria ser fundamental para o resto
do mundo.

O mesmo ocorre no plano de outras relações mundiais que têm sido


propostas. Na crise de meados dos anos 1980, os Estados Unidos impuse-
ram ao Japão, por meio do Acordo de Plaza, a revalorização do iene, com
o objetivo de reduzir o forte superávit japonês com os norte-americanos.
Foi inútil. O superávit japonês continuou forte, como continua ainda hoje,
a despeito da valorização da moeda nipônica e da longa recessão japonesa.
É que, nos anos seguintes ao acordo, o Japão mergulhou numa recessão
prolongada da qual ainda não saiu. Recentemente, tem tentado forçar a

78
desvalorização do iene. O lado significativo disso é que a valorização do
yuan chinês, proposta pelos Estados Unidos, mesmo se fosse aceita pela
China, provavelmente não seria eficaz para balancear as duas economias,
pois a competitividade chinesa, como já mencionado, baseia-se em muitos
outros elementos além da desvalorização monetária.

De outra parte, a mais insana estratégia de “recuperação” que vem


sendo seguida no mundo, e também pela Inglaterra – principalmente após
a reunião do G20 em Toronto, no início de 2010 –, é a que a Alemanha e
a França se impuseram, e fixaram ao resto da Europa do euro: os intensos
ajustes fiscais, destinados a reduzir, em curto prazo, a relação déficit/dívi-
da pública/PIB. Conforme já discutido em outro capítulo, deve-se enten-
der, antes de mais nada, ser totalmente arbitrária a relevância dessa relação
para avaliações políticas econômicas. Ela se afirmou a partir do momento
em que os próprios governos e bancos centrais dos países industrializados
avançados atribuíram poderes a agências privadas de avaliação de risco
para avaliarem direta ou indiretamente riscos soberanos.

É notável que o desequilíbrio orçamentário, ocorrido no sul da Eu-


ropa e em outros países desenvolvidos do Ocidente, decorreu dos progra-
mas trilionários de socorro aos bancos no auge da crise, como forma de
evitar o colapso mundial do capitalismo. Em síntese, foi uma avalanche
de dinheiro público jamais vista para salvar a economia privada. Agora,
depois de superada a primeira fase do colapso, as forças conservadoras
exigem que a conta seja paga pela parte mais vulnerável da sociedade,
através da redução de gastos públicos de investimento e de custeio – em
tese direcionados para o benefício geral da população – e da reversão do
Estado de bem-estar social.

Entretanto, não está em jogo o caráter antissocial das políticas de ajus-


te fiscal impostas na Europa. Está em jogo a sua ineficácia econômica. Confor-
me também já mencionado, quando um país entra em crise cambial ou fiscal,
e o resto do mundo vai bem, um programa de ajuste, típico do receituário
do FMI, pode funcionar economicamente, mesmo que socialmente perver-

79
so. Isso porque o ajuste – que em resumo se caracteriza pelo corte de gastos,
salários e pensões públicas – destina-se à geração de excedentes exportáveis,
ou seja, só funciona se no mundo houver consumidores dispostos a importar.
Agora, a situação é diferente. Todos os países do mundo querem restringir as
importações e aumentar as exportações. Diante disso, a única solução possí-
vel são programas simultâneos de estímulo à demanda agregada, em todos os
países onde o consumo interno está baixo, para favorecer tanto exportações
como importações. A propósito, deve-se reconhecer – à margem de toda a
estridência crítica em relação ao valor do yuan – que a China está fazendo um
responsável programa de elevação da sua demanda interna, com um índice de
aumento das importações superior ao das exportações!

A Europa, liderada pela Alemanha, está tomando o caminho opos-


to. A própria Alemanha tem estado numa posição confortável porque sua
economia tem crescido mais que a média da Europa, embora ainda não
tenha se recuperado da queda de 4,2% do ano de 2009. Seu segredo foi
a retomada vigorosa das exportações: com alta produtividade, ela está se
beneficiando dos programas de estímulo à demanda dos Estados Unidos,
da China, da Rússia e da Índia, seus importadores, enquanto impôs a si
mesma, no início de 2010 – contra a posição norte-americana na já men-
cionada reunião do G20 em Toronto –, um programa de corte de impostos
da ordem de € 80 bilhões. É claro que essa situação não pode perdurar.
Todo o resto da Europa está em crise, e ali tradicionalmente se concentram
40% do mercado alemão de exportações. Não surpreende que, em setem-
bro de 2010, tenha caído a produção industrial mensal da Alemanha, e a
economia dado sinais de desaceleração. A Inglaterra fez um programa de
cortes ainda mais draconiano que o da Alemanha, e a conservadora Merkel
uniu-se num pacto com o também conservador Sarcozy, da França, para
impor ao resto da Europa sanções automáticas caso não cumprissem os
compromissos de ajustes fiscais.

Na transição para uma nova ordem mundial, algum nível de con-


vergência terá de ser buscado para pautar as relações nela determinantes

80
entre o país mais poderoso e o país mais dinâmico: como numa troca de
genes para produzir o novo, elementos do liberalismo ocidental serão ab-
sorvidos pela China e pela sua órbita de influência, enquanto elementos de
planejamento centralizado e estatização limitada certamente terão de ser
absorvidos pelos Estados Unidos, para o próprio bem-estar de seu povo,
que em algum momento deverão ser irradiados para a Europa. Um sinali-
zador sugestivo disso é a intenção dos governos norte-americano e inglês,
bem como da Comissão Europeia, de criarem uma espécie de banco de
desenvolvimento público em seus países. É claro que nada disso se imporá
sem conflitos internos, muitos deles radicalizados. A presença, neste mo-
mento, de um Tea Party nos Estados Unidos indica a ainda considerável
força social das correntes conservadoras no país. Entretanto, as condições
ainda iniciais dos ajustes econômicos não podem dar a ideia completa do
incêndio social que se prepara na Europa, que certamente impulsionará
futuras mudanças progressistas.

Tudo isso indica que o mundo está em um estado caótico, em plena


transição de paradigmas, no qual a ordem norte-americana – baseada numa
economia de US$ 14 trilhões e num poder militar global quase ilimitado –
revela-se esgotada. Enquanto a nova ordem representada pela China – uma
economia de US$ 4,5 trilhões –, embora dinamicamente muito mais ativa,
está longe de poder impor-se mundialmente em curto prazo. Num padrão
dialético histórico, anterior à era nuclear, essas duas potências estariam
condenadas a um conflito militar para decidir, em último caso, a quem
pertenceria o poder hegemônico no mundo. Na era nuclear, isso terá de
ser decidido por outros caminhos. Em última instância, pela cooperação –
talvez resultando numa síntese de dois sistemas sociais aparentemente an-
tagônicos, convergindo para a busca de algum nível de eficácia nos planos
econômico, social e político. É claro que, do contrário, toda essa discussão
mantida até aqui seria irrelevante!

Uma ordem cooperativa, como em toda dialética, preservará ele-


mentos da ordem anterior. Assim, embora a competição entre nações deva

81
ceder lugar a alguma forma estável de cooperação, a relação entre empre-
sas de todos os portes preservará, em algum nível, características competi-
tivas. No plano empresarial, a competição é essencial para a inovação e o
crescimento. A tendência, porém, é de que seja uma competição regulada,
como já se observa nas condicionantes ambientais da produção industrial.

É fato que a competição pura ou perfeita jamais existiu, exceto nos


modelos econômicos neoclássicos. Isso não impediu o formidável sucesso
produtivo do capitalismo e seu transbordamento para elevados graus de
bem-estar social em várias sociedades. Portanto, a pura e simples negação
da competição econômica no processo de construção de uma nova ordem
econômica e social levaria à estagnação. De outra parte, uma competição
selvagem entre empresas, sobretudo entre as grandes corporações, pode
levar à destruição de capital produtivo social e de empregos. Para evitá-la,
o modelo já testado com algum êxito é o das agências reguladoras nas
áreas de serviços.

No setor privado, existem mecanismos próprios de regulação da


competição que resultam em maior eficiência. Por exemplo, na contrata-
ção de construtoras para a instalação de grandes plantas industriais pelo
menor preço e a máxima qualidade. É no setor público que surgem proble-
mas: a contratação de grandes obras está sujeita a requisitos de licitação e
controle que geram um alto custo financeiro e burocrático de fiscalização,
ou uma perda qualitativa no projeto, ou ambas as coisas, além do risco de
corrupção. No Brasil, era recorrente a prática, entre grandes construtoras,
de ganharem concorrências com um preço básico para depois forçarem
o governo a atualizá-los com ágio, sob a chantagem de a obra não ser
entregue. Entretanto, em vários países existem mecanismos eficazes de
realização de grandes obras públicas por preços firmes e sem o risco de
mudança de prazos ou preços. É o caso do seguro de performance, no qual
uma seguradora privada se coloca entre o Estado e o construtor para exigir
o cumprimento do contrato (preços e prazos, principalmente), com o poder
legal de trocar de construtora em caso de descumprimento.

82
No caso das grandes corporações mundiais, o elemento competiti-
vo básico continuará sendo a inovação. Essas empresas são grandes demais
para quebrar, tendo em vista a perda de recursos sociais e de empregos que
isso representaria. Portanto, não interessaria a ninguém uma competição
destrutiva entre elas. Isso não entra em contradição com uma ordem pla-
netária de cooperação, uma vez que a regulação do ambiente competitivo
dessas corporações, pelos diferentes órgãos de controle – por exemplo, das
sociedades anônimas abertas –, já acontece e continuará acontecendo por
meio de um processo legislativo caracterizado, por definição, pela coope-
ração imposta pela democracia de cidadania ampliada aos elementos da
sociedade e da economia.

Na transição da Idade de liberdade ilimitada para a Idade da Coo-


peração, um aspecto importante diz respeito ao exercício da liberdade de
imprensa. Talvez nenhuma das liberdades humanas tenha sido objeto de
proteção maior na primeira grande democracia do planeta, os Estados Uni-
dos, que a liberdade de imprensa, com repercussões significativas no resto
do mundo. No entanto, é ela a primeira vítima das ditaduras e dos sistemas
autoritários. Seria, porém, a imprensa, um campo de liberdade ilimitada
que deverá ser preservado na nova ordem? Não, e por uma razão simples:
a imprensa já não é, do ponto de vista legal, totalmente livre em nenhuma
democracia do mundo.

Nas democracias, todo cidadão é protegido nos códigos penais


contra a calúnia, a injúria e a difamação. Automaticamente, ele está pro-
tegido contra notícias falsas que tenham esses propósitos. O que às vezes
não funciona, em alguns países, é o sistema Judiciário, por temor de apli-
car sentenças punitivas contra órgãos da mídia que infringem esses tópicos
do código civil. Nos Estados Unidos, berço da mais ilimitada liberdade de
imprensa, são comuns decisões jurídicas a favor de vítimas caluniadas pela
mídia. Em geral, porém, essas vítimas estão em pé de igualdade, do ponto
de vista da capacidade financeira, com os órgãos de imprensa processa-
dos. Lá, como aqui, para o caso de vítimas sem capacidade financeira,

83
os crimes cometidos pela imprensa ficam impunes, caso não haja juiz de
suficiente coragem para se contrapor à mídia. Contudo, qualquer tentativa
de atacar essa insuficiência pela via legal seria contraproducente, e contra-
riaria o princípio básico da liberdade de imprensa. O avanço civilizatório,
no plano ético, é que eliminará essas insuficiências.

Nenhum pensador, armado apenas do conhecimento das regulari-


dades do passado, será capaz hoje de desvendar o tempo e a configura-
ção do futuro. A característica do caos entre os paradigmas da velha e da
nova ordem é que, nele, todas as regularidades, todas as séries históricas
e grande parte dos valores antigos – que tradicionalmente informavam o
novo – são levados ao colapso. Temos sinais do futuro, embora não o seu
tempo. Sabemos, por exemplo, que nenhum país e nenhuma grande cor-
poração podem ignorar indefinidamente as condicionantes ambientais; sa-
bemos que, provavelmente, não haverá uma guerra para redefinir hegemo-
nias no mundo, porque seria uma guerra nuclear autodestruidora; sabemos
que a economia mundial será normalizada – quando vier a ocorrer – pela
ação cooperativa das principais nações, provavelmente aquelas reunidas
no G20. Entretanto, não sabemos quando isso acontecerá, e se levará um,
cinco, dez ou vinte anos!

No interregno caótico, haverá sofrimento e desesperança, mas tam-


bém promessas de um mundo ordenado pela cooperação. Esse é o atrator
estranho da nova ordem, a força reguladora que surge do caos. Nos fe-
nômenos da natureza, o caos se reorganiza espontaneamente num novo
paradigma e, ao fim de um processo de tempo indefinido, numa ordem ou
paradigma de nível superior. Nós, humanos, somos conscientes das nos-
sas fraquezas, dos nossos limites e das nossas potencialidades. Podemos
contribuir para que, nos estertores da Idade Moderna, do caos econômico,
político e social em que estamos vivendo surja, o mais rapidamente possí-
vel, a Idade da Cooperação.

J. Carlos de Assis
Em junho/julho 2020

84
José Carlos de Coleção Cidadania
Assis: jornalista, Este livro é o primeiro da série “Coleção Cidadania”,
economista, da MECS, publicado pelo Movimento Popular pela
professor, mestre Justiça Social. Nela serão tratados por vários autores
e doutor em progressistas temas relacionados com Economia
Política, Geopolítica, Finanças Funcionais, Ciências
Engenharia de
Sociais, Federação, entre outros, numa perspectiva
Produção pela independente em confronto direto com
Coppe/UFR, autor as propostas neoliberais.
de artigos de
economia e de mais Neste primeiro volume, são abordadas as questões
relacionadas à degradação do sistema federativo
de 25 livros sobre brasileiro, com o aviltamento dos Estados pelo
Economia Política apetite tributário insaciável da União, o que resultou
brasileira e mundial. em estrangulamento voraz da cidadania em sua
71 anos, aposentado base municipal por dívidas estaduais e municipais
inventadas, e que são de fato créditos deles de mais
pela Universidade
de um trilhão de reais contra a União, conforme
Estadual da Paraíba. demonstrado em “O Mito sem Máscara”.

Preço: R$ 5,00 a R$ 10,00, depositados


voluntariamente no Santander, agência 1520, conta
00013000921. CPF 161.422.687-34.

Contato via whatsApp (21.96410 9561) ou e-mail


machadocaetano4@gmail.com att. Roberto Caetano.

O link de acesso ao texto em pdf será acessível no


facebook através da página do Movimento Popular
pela Justiça Social (MPJS) << https://www.facebook.
com/movimentopopularpelajusticasocial >>

85

Este livro é um brado de alerta para o Brasil. Ou o
povo toma as rédeas de nosso destino e reconverte
o país no sentido de uma retomada do desenvolvi-
mento e do emprego, ou deixa que perpetue indefinida-
mente a maior crise de nossa história em todos os sen-
tidos. O coronavírus, que em si é uma tragédia secular,
aprofundou uma crise econômica que já vinha de antes.
No contexto dessa crise, as elites, em particular as elites
financeiras, comportam-se com ânsia de ampliar lucros,
nos empurrando para uma situação dramática de degra-
dação das instituições na qual o povo é a maior vítima”.
ROBERTO REQUIÃO

ISBN 978-65-990905-0-9

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