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Brazilian Journal of Development 64029

ISSN: 2525-8761

Notas sobre a presença do conflito na antropologia social britânica a


partir de Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard, Leach e Gluckman

Notes on the presence of conflict in British social anthropology from


Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard, Leach and Gluckman
DOI:10.34117/bjdv7n6-673

Recebimento dos originais: 07/05/2021


Aceitação para publicação: 01/06/2021

Marcos Paulo Magalhães De Figueiredo


Mestrando em Antropologia
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
Programa de Pós-Graduação em Antropologia – UFPI
Campus Universitário Ministro Petrônio Portella – Ininga, Teresina-PI. Cep: 64049-550
E-mail: marcospaulomagalhaes25@gmail.com

Gabriella Costa Rodrigues Neto


Mestranda em Sociologia
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFPI
Campus Universitário Ministro Petrônio Portella – Ininga, Teresina-PI. Cep: 64049-550
E-mail: gabriellacostarneto@gmail.com

Ramon Vinicius Barbosa de Oliveira


Mestrando em Sociologia
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
Programa de Pós-Graduação em Sociologia – UFPI
Campus Universitário Ministro Petrônio Portella – Ininga, Teresina-PI. Cep: 64049-550
E-mail: viniciusramon18@gmail.com

Laiala Nunes Ferreira


Mestranda em Antropologia
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES
Programa de Pós-Graduação em Antropologia – UFPI
Campus Universitário Ministro Petrônio Portella – Ininga, Teresina-PI. Cep: 64049-550
E-mail: laialanunesferreira@gmail.com

RESUMO
Este estudo de caráter bibliográfico tem como objetivo tecer considerações a respeito de
como o conflito em suas diferentes dimensões relacionais são analisados entre
importantes teóricos da corrente teórica “Antropologia Social Britânica” a partir de quatro
dos seus expoentes. A partir de reflexões oriundas de uma leitura crítica de suas obras e
de alguns aspectos de suas biografias estudadas por Adam Kuper (1978) será
demonstrado como o conflito inicialmente foi tido como uma falha a ser consertada e
posteriormente com as mudanças feitas nas chaves teóricas o conflito passa a ser visto
como uma potente fonte de produção de relações e de análise para a compreensão de
fenômenos sociais.

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Palavras-Chave: Antropologia social britânica; Conflito; Teoria Antropológica; Notas

ABSTRACT
This bibliographical study aims to make considerations about how the conflict in its
different relational dimensions are analyzed among important theorists of the theoretical
current “British Social Anthropology” based on four of its exponents. Based on
reflections made from a critical reading of his works and some aspects of his biographies
studied by Adam Kuper (1978) it will be demonstrated how the conflict was initially seen
as a failure to be fixed and later, with the changes wich happens because of the theoretical
basis. Conflict comes to be seen as a powerful source of relationship production and
analysis for the understanding of social phenomena.

Keywords: British social anthropology; Conflict; Anthropological theory; Notes

1 INTRODUÇÃO
O presente ensaio tem como objetivo identificar e discorrer a presença do
“conflito” por autores que compõem a Antropologia Social Britânica, nomeadamente
Radcliffe-Brown (1973) e (1978); Evans-Pritchard (1981;2007); Leach (1996) e
Gluckman (1987). A partir da leitura da bibliografia selecionada para análise e outras de
uso complementar enxertados no decorrer do texto é perceptível a presença do conflito
na antropologia social britânica. A diferença entre os autores analisados reside que o
tronco teórico privilegiado por cada autor que define a intensidade da incorporação dos
conflitos existentes nas análises sociais.

2 DESENVOLVIMENTO
Os escritos de Radcliffe-Brown inicialmente estavam mostrando afinidade teórica
mais próxima de Rivers, que era seu orientador e professor. Tanto que sua monografia
teve como instrumento analítico a teoria difusionista de Rivers durante seu trabalho
etnológico. Contudo, não demorou muito para Radcliffe-Brown aproximar-se da teoria
social de Durkheim (KUPER, 1978).
Tomando empréstimo da sociologia durkheimiana os trabalhos de Radcliffe-
Brown teriam como enfoque os sistemas formais fazendo com que autor fosse um teórico
melhor articulado que Malinowski (2018). Em contrapartida, faltava a Radcliffe-Brown
um “jogo de cintura” em seu trato com os sujeitos de sua pesquisa, algo primordial para
a pesquisa de campo etnográfica e investigação antropológica. A própria biografia de
Radcliffe-Brown indica dificuldades em suas pesquisas de campo, devido a sua postura
aristocrática frente a população nativa e dificuldade de apreensão da língua local. A

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dificuldade com a língua teve um forte reflexo nas suas pesquisas nas ilhas Andaman, e
o método genealógico não foi suficiente para suprir a barreira imposta em seu campo
(KUPER, 1978).
A partir dessa frustração é que o autor se converte a teoria durkheimiana. A
sociologia de Durkheim oferecia os instrumentos analíticos para a construção do sistema
social das populações estudadas. Tendo seu enfoque na observação dos costumes, regras
de rituais e da organização social entre populações tradicionais nas Ilhas Andaman e
Austrália Radcliffe-Brown conseguiu o mérito de uma excelente elaboração teórica a
respeito dos sistemas formais, mas devido a seu pouco traquejo com o campo teve
dificuldades em ver essas regras se processando. Parafraseando Malinowski, seus estudos
continham o esqueleto e a musculatura, mas careciam da alma nativa (KUPER, 1978).
O empréstimo da sociologia durkheimiana efetuado por Radcliffe-Brown teve um
significativo impacto em sua obra. Ao contrário de Mauss, que se aproximou da vertente
teórica durkheimiana com enfoque nas noções cosmológicas, Radcliffe-Brown era mais
afeito da vertente que focava na morfologia social. Essas duas vertentes da teoria
durkheimiana não podem ser consideradas opostas uma a outra, mas sim como
complementares. Adotando esta perspectiva, Radcliffe- Brown passa a privilegiar o
conceito de fato social e da consciência coletiva, estudando a função real das instituições
politicas em um recorte temporal e geográfico e especifico (KUPER, 1978).
Influenciado pelos trabalhos de Durkheim, Radcliffe-Brown também concebia as
sociedades como sistemas, fazendo uma analogia com as ciências naturais1 as sociedades
seriam como um sistema complexo, aonde diferentes partes teriam uma função para a
manutenção da coesão e equilíbrio na organização social. Torna-se presente também a
primazia do coletivo, da totalidade das partes frente as consciências individuais
(RADCLIFFE-BROWN, 1973).
Sendo a conceito de sociedade durkheimiano tomando a sociedade como uma
ordem moral, Radcliffe-Brown tem o enfoque como valores morais coletivos são
impressos nas consciências individuais. Visando institucionalizar a sociologia enquanto
ciência, Durkheim (2012) aponta o fato social enquanto objeto de estudo da sociologia,
sendo este exterior e coercitivo ao indivíduo. Os fatos sociais devem ser analisados
enquanto coisas e de forma neutra.

1
Kuper (1978) cita ao falar sobre a biografia de Radcliffe-Brown que inicialmente o autor prestaria exames
de entrada nas universidades para o campo das ciências naturais.

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A obra de Radcliffe-Brown assim como a de Durkheim debruçava sobre a análise


da estrutura social. A continuação dessa estrutura e sua manutenção dependeria dos laços
de solidariedade existentes entre os indivíduos de determinado grupo. Contudo, esse
sistema não era estático e isso fica mais claro ao conceitualizar disnomia (desordem
social) e eunomia (harmonia social). Ao se aproximar, ou melhor dizendo converter-se a
teoria durkheimiana Radcliffe-Brown passa a enxergar o conflito como algo a ser sanado
e resolvido pelas sociedades, independente do grau de complexidade da divisão do
trabalho. Nas mais numerosas formas de agrupamento social eram constituídas
consciências coletivas e laços de solidariedade eram estabelecidos. As formas de
consciências eram preservadas e reiteradas (RADCLIFFE-BROWN, 1973; KUPER,
1978).
O ponto de cisão da teoria durkheimiana com a obra de Radcliffe-Brown reside
que Durkheim concebe a sociedade e as organizações sociais como algo abstrato, que é
exterior ao individuo enquanto Radcliffe – Brown tinha o enfoque nos processos sociais
e na organização social, percebendo o como a totalidade das relações entre os indivíduos
de determinado grupo. Em seus estudos, Radcliffe-Brown procurava apreender através
do método comparativo as particularidades de cada objeto, extraindo ali generalizações.
Para Kuper (1978): “O objetivo final não estava em duvida, a saber formular
generalizações sobre as características comuns a todas sociedades humanas (...) Essas
generalizações constituíram leis sociais (Kuper, 1978, p 70)”.
Por tomar emprestado a teoria sociológica de Durkheim e por fazer o uso do
método comparativo visando a busca de generalizações comuns a sociedades particulares
através do método comparativo2 o conflito na obra de Radcliffe-Brown sempre aparece
como algo a ser resolvido. Aqui, a presença do conflito é percebido como a própria
disnomia, e que posteriormente deve ser incorporado a própria estrutura e atuando como
um contributo para sua manutenção, caso o conflito altere a estrutura de algum modo
(RADCLIFFE-BROWN, 1973; DURKHEIM, 2012).
Evans-Pritchard (1981; 2007) foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento do
estrutural funcionalismo de Radcliffe-Brown. Seus estudos e trabalhos envolvendo o
povo Nuer no Sudão teve um forte impacto na antropologia social britânica. Tendo como
base tanto a teoria de Radcliffe-Brown (1973) quanto a de Durkheim (2012), Evans-
Pritchard (2007) visa descrever a organização social Nuer, e seus meios de subsistência e

2
O próprio Radcliffe-Brown por vezes chama a disciplina de sociologia comparada, ao invés de
antropologia social.

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suas instituições políticas. A pergunta a ser respondida nesse trabalho era responder o que
gerava a coesão entre a sociedade nilota Nuer, visto que os mesmos não tinham um estado
centralizado.
Para além de sua contribuição teórica no campo da antropologia social e política,
Evans-Pritchard constrói uma etnografia o mais detalhada possível da cosmologia e do
modo de subsistência nuer. Descrevendo inicialmente sua chegada no campo e a ríspida
receptividade dos nilotas passando pelo momento que o autor se incorpora melhor entre
o povo Nuer conseguindo assim efetuar a etnografia (EVANS-PRITCHARD, 2007).
Inicialmente o autor descreve em detalhes a relação extremamente próxima dos
Nuer com o gado. O interesse pelo gado é tanto, que todo o cotidiano e a vida social Nuer
perpassa pela relação com seu gado. Os Nuer não são povos com uma cultura agrícola
forte, pelo o contrário, o esforço para a horticultura não é valorizado e é realizado somente
para o necessário. O principal artigo cultivado para alimentação é o sorgo, esse na maioria
das vezes ingerido em conjunto com o leite conseguido de suas criações bovinas
(EVANS-PRITCHARD, 2007).
O gado toma boa parte do tempo cotidiano dos Nuer, eles investem neste um
cuidado excessivo no gado visando a produção de leite, que pode ser ingerido puro ou
usado para fabricação de queijo. O consumo da carne bovina também é realizado, mas
somente quando um boi morre de causas naturais ou quando o mesmo é sacrificado em
um ritual. A tristeza da morte do gado é compensada pelo prazer da comensalidade da
carne. O sangue do gado também é utilizado na alimentação Nuer. O esterco do boi é
secado e aproveitado enquanto combustível, seus pelos podem ser utilizados em rituais e
o gado é utilizado enquanto moeda de troca quando matrimônios são efetuados ou
conflitos são solucionados. Objetos podem ser fabricados a partir do gado, como colheres
feitas de seus chifres. Usa-se também a urina, seja nos processos culinários para talhar
e/ou conservar o leite ou para se banharem (EVANS-PRITCHARD, 2007).
Os Nuer detém uma serie de conhecimentos sobre o gado, prestam atenção no
tamanho de suas partes traseiras e nos anéis presentes em seus chifres traços que são
vistos de forma positiva pelo povo nilota. Segundo Evans-Pritchard (2007):

“(...) além de seus muitos usos sociais, os Nuer preocupam-se diretamente com
o gado enquanto produtor de dois artigos para alimentação: leite e carne.
Podemos agora perceber que o valor econômico do gado é mais extenso.
Levando em consideração também o valor social mais generalizado do gado
(...), já podemos notar que existe uma supernefatização de um único objeto,
que domina todos os outros interesses e é coerente com a simplicidade,
sinceridade e conservadorismo, qualidades tão características dos povos
pastoris. (EVANS-PRITCHARD, 2007. P 38)”

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O cuidado com o gado é tamanho, que os Nuer dedicam boa fatia de seu tempo na
construção de estábulos, investem em seu conforto e mudam de aldeias ou acampamentos
quando necessário para o cuidado e manejo do gado. São capazes, inclusive de enfrentar
animais predadores do gado para sua proteção. Evans-Pritchard (2007) resume bem a
relação com o gado na passagem a seguir:

“Ela (a vaca) vive sua vida tranquila, indolente e inativa graças a dedicação
dos Nuer. Na verdade, o relacionamento é simbiótico: gado e homens mantem
sua vida graças aos serviços recíprocos. Nesse intimo relacionamento
simbiótico, homens e animais formam uma única comunidade do tipo mais
íntimo (EVANS-PRITCHARD, 2007, p 45)”

A cosmologia Nuer é constituída a partir da ecologia local e de suas mudanças


físicas, envolvendo é claro o pastoreio do gado. O sistema temporal é concebido a partir
da distância hereditária entre os segmentos Nuer, denotando a importância do parentesco
e linhagem para a constituição de temporalidade entre esses povos. Resumidamente, a
contagem do tempo entre os nuer as mudanças naturais e a escolha do local aonde um
agrupamento Nuer vai estabelecer acampamento depende do impacto das mudanças
ecológicas em suas atividades (EVANS-PRITCHARD, 2007).
O sistema socio espacial Nuer é composto de segmentos que podem se fundir, ou
cindir-se a partir do contexto de inserção do conflito. As divisões são entre seções
primárias agrupando os maiores segmentos tribais. As seções primárias desdobram-se em
seções secundárias que são constituídas dos segmentos de uma tribo primária. As seções
terciarias, por sua vez segmentam-se a partir de seções secundárias (EVANS-
PRITCHARD, 1981; 2007).
A fusão e cisão dos segmentos é dependente dos atores sociais envolvidos no
conflito. Caso haja o conflito entre seções secundárias, estas podem absorver seções
terciarias de que são mais próximas para o confronto, ou seja, as seções terciarias
fusionam em uma secundária. Porém, se um segmento tribal mais amplo constituído por
uma seção primária entrar em guerra com outra tribo (especialmente se for um Dinka) os
segmentos se fundem durante o conflito, vindo a se dividirem posteriormente (EVANS-
PRITCHARD, 2007).
A estrutura politica Nuer embebida na segmentação e na fusão é importante para
a manutenção e da subsistência Nuer. Considerando as dificuldades de cultivo, de criação
de gado e por vezes até de comunicação, a segmentaridade mostra-se essencial para o
manejo da estrutura política Nuer (EVANS-PRITCHARD).

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O conflito torna-se aparente quando o temperamento belicoso dos Nuer é descrito


no trabalho de campo etnográfico. É raridade um Nuer que não tenha nenhuma cicatriz
oriunda de uma briga. A propensão para o combate tão presente entre os Nuer pode ser
nitidamente percebida quando estes se juntam contra os Dinka, um povo ao qual os Nuer
nutrem desprezo. Contudo, isso não impede que um Dinka possa ser assimilado entre os
Nuer. Em situações de guerra em um passado longínquo era comum que os Nuer
matassem os idosos e bebês do povo Dinka conquistado, enquanto os adultos eram
incorporados a tribo3 (EVANS-PRITCHARD, 2007).
Os conflitos locais, entre as mesmas seções eram solucionados através da vendeta.
Caso um homem seja morto durante uma briga, a família em luto pode tentar vingar-se
do parente morto. Contudo, caso o assassino consiga se refugiar na casa do chefe pele de
leopardo e esperar a diminuição das animosidades a família do assassino pode oferecer
uma quantidade de cabeças do gado para atenuar o conflito. A vendeta, surge então como
uma instituição tribal, cuja função é a solução de conflitos. (EVANS-PRITCHARD,
2007).
A família pode negar a compensação em gado inicialmente, mas devido a pressão
e ameaças de maldição do chefe pele de leopardo logo tendem a ceder a oferta. A recusa
inicial é necessária para não desonrar o parente morto. Contudo, a vendeta apenas atenua
a situação e o atrito entre as famílias envolvidas continua a perdurar. A resolução de
conflito entre os nuer dificilmente pende para apenas um lado dos envolvidos, em suma
a função do chefe pele de leopardo é manejar o atrito, visto que na maioria das vezes
ambas as partes tem razão de sustentar a queixa que gerou o conflito. A intensidade da
disputa é proporcional a distância socio espacial dos indivíduos. Sujeitos pertencentes a
um mesmo segmento, dificilmente insistiriam em acirrar os ânimos, visto que o contrário
poderia gerar um ciclo sem fim de acerto de contas. Apesar do papel moderador do chefe
pele de leopardo, não existe uma estratificação de classes entre os Nuer, nem mesmo entre
os membros da aristocracia Nuer (EVANS-PRITCHARD, 2007).
O conflito na obra de Evans-Pritchard (2007). é mais evidente e melhor explorado
do que em Radcliffe-Brown (1973). Na ausência de um Estado centralizador o conflito,
as disputas tribais e as incursões para roubar os gados Dinka constituem o sistema aonde
gera a coerção necessária para a manutenção da ecologia e subsistência Nuer tendo o
chefe pele de leopardo como um agente dos rituais existentes na estrutura social Nuer.

3
Evans-Pritchard (2007) relata como os Dinka são culturalmente semelhantes aos Nuer, o que
facilitaria a assimilação visto que um Nuer nutre respeito por aqueles que partilham seu cotidiano.

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Contudo, possíveis limites na obra do autor podem ser encontrados na questão


formulada pelo autor em ambos os estudos realizados entre os nuer e na descrição de seu
sistema político. Na falta de um estado centralizador responsável por gerar a coesão entre
os indivíduos, o movimento de segmentação e fissão4 seria um dos artífices responsáveis
por gerar a coesão entre os povos nilotas
Meyer Fortes (1981) também herdeiro de Radcliffe-Brown na tradição britânica
da antropologia social vê o parentesco Tallensi como ferramenta cuja função seria regular
e impedir os conflitos. Os sistemas de casamento intertribais entre os Tallensi geravam a
coesão através da ideia de que determinado segmento não poderia simplesmente entrar
em guerra com outro visto a existência de possíveis parentes nesse segmento. O sistema
de parentesco apareceria ali como um substituto da maquina estatal. O conflito novamente
aparece, mas como algo que deve ser sanado, resolvido.
Posteriormente, Leach (1996) realiza uma ruptura com Radcliffe-Brown (1973)
Evans Pritchard (2007). O conflito nos “Sistemas Políticos da Alta Birmânia (1996)” e a
analise das situações sociais e rituais não mais é encarado como um importante
instrumento de integração social, mas também como eventos que constituem uma fonte
de análise dos conflitos de determinada estrutura.
Existe um questionamento das formas de organização social que quando
analisadas são retratadas como sistemas estáveis, integrados e coesos. Por vezes,
antropólogos a partir da etnografia criam modelos formais conceituais da sociedade
abstratos passiveis de ocultar situações sociais desencadeadores de mudanças na estrutura
formal como concebida por alguma população (LEACH, 1996).
A analise da estrutura social não é descartada, altera-se, contudo, a forma de
análise. A antropologia social britânica com forte inspiração durkheimiana teria a
tendência de priorizar sociedades que aparentemente gozavam de uma integração
coerente com aquela que o modelo formal da estrutura social concebida pelo antropólogo.
Aspectos como “integridade social” ou “solidariedade social” tão característicos da
sociologia durkheimiana. Leach (2007) pelo o contrário aproximou-se da sociologia
interpretativa para analises e interpretações de populações especificas em recortes
temporais igualmente específicos (LEACH, 2007).

4
O termo utilizado por Evans-Pritchard (1981; 2007) na realidade é fusão, contudo a palavra evoca o
sentido de uma união cristalizada e permanente que não corrobora com a dinamicidade das relações
evidenciadas pelo autor entre o povo Nuer.

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A analise da estrutura social não é mais o único objeto a ser investigado pelo
antropólogo, privilegia-se também as ações práticas e seus desdobramentos. As ações são
analisadas para além de sua função técnica. A ética e estética são importantes adornos em
certas ações ou rituais que as caracterizam. É justamente esse “adorno” que preenche5 as
relações sociais e exprime aspectos dos grupos sociais a partir de representações
simbólicas (LEACH, 2007).
Para Leach (2007):

“Em suma, portanto, minha opinião aqui é que ação ritual e crença devem ser
entendidas como formas de afirmação simbólica sobre a ordem social. Embora
eu não afirme que os antropólogos estão em condições de interpretar esse
simbolismo, digo, no entanto que a principal tarefa da antropologia social é
tentar tal interpretação (LEACH, 2007, p 77)”.

Os rituais presentes na esfera do simbólico exprimem as regras morais do modelo


ideal inserido na ordem vigente. Contudo, uma análise das práticas sociais realizadas no
dia a dia revela o desprezo nutrido pelos indivíduos frente á algumas normas. O papel do
ritual, é lembrar os indivíduos das estruturas das regras formais estabelecidas, evitando
inclusive uma situação de desordem (LEACH,2007)
Em “Os sistemas Políticos da Alta Birmânia”, o autor visa perceber a existência
de uma estrutura política estável entre os Kachin , ou se essa estrutura é mutável e sujeitas
a instabilidades. As unidades sociais Kachin são passiveis de segmentação e de
reagrupamento com uma certa constância. Tais mudanças sociais criam disparidades na
distribuição e na forma de exercer o poder. Em um espaço geográfico próximo, é possível
ver grupos sociais compartilhando formas de governo. A forma Chan (hierárquico e
feudal) e Gumlao (“anárquica” e igualitária). Apesar da existência de dois modelos
formados a respeito da estrutura social a maioria das comunidades Kachins estão
organizadas de ambas as formas. O sistema politico oscila como um pendulo, aonde Chan
e Gumlao estariam nas extremidades. Entre esses polos opostos encontra-se um sistema
que não poderia ser enquadrado nem como Chan ou Gumlao, mas um hibrido dos dois
denominado Gumsa. O movimento do pendulo tem sua direção para um dos polos a partir
das condições econômicas e políticas (LEACH, 1996).
É provável, que uma comunidade que hoje é Gumlao, pode ter sido Gumsa no
passado e vice e versa. E mesmo com alteração do sistema de governo, os indivíduos não

5
Para Leach (2007), diferente do conceito de cultura da antropologia culturalista norte americana, a cultura
seria o item responsável por dotar de conteúdo as relações sociais.

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necessariamente seguirão a cartilha das normas estruturais a risca. Sendo comum, que
antigos chefes Gumsa resguardem alguns comportamentos quando inseridos no sistema
Gumlao. Em seu próprio texto, Leach (2007) usa como exemplo a transição do regime
monárquico para o republicano, aonde mesmo com a mudança do sistema politico, exige-
se do representante do Estado tenha postura pomposa semelhante de um aristocrático.
A incorporação do conflito em analises de situações sociais realizada por
Gluckman (1987) também executa uma ruptura com Durkheim e toma emprestado as
teorias de Marx para pensar o conflito entre classes opostas e a teoria weberiana.
Determinadas situações sociais podem ser excelentes fragmentos para o estudo da
organização social e de como os atores inseridos nela se organizam a partir da estrutura
social. Assim como Leach (1996) a ênfase da analise é no comportamento concreto e
como os atores se relacionam.
A partir de um evento de inauguração de uma ponte na Africa Do Sul, aonde
estariam presentes os administradores brancos, funcionários coloniais e negros (inclusive
negros da aristocracia local), Gluckman (1987) teve a perspicácia de perceber o conflito
e exploração de classes sociais na Zululandia. Apesar de ser um evento aonde o
operariado e outros sujeitos pertencentes aquele sistema politico estivessem presentes
todos estavam separados, nenhum dos sujeitos misturavam-se. Os brancos ficaram
dispostos á uma margem do rio, enquanto os brancos da outra.6 Diferente da escola
culturalista norte americana, Gluckman (1987) não encarou a assimilação de traços
culturais europeus pelos negros como aculturação, mas sim como um processo permeado
por relações de poder inclusive, exprimindo, de forma simbólica as assimetrias presentes
entre os sujeitos presentes naquela situação social.
Apesar da assimilação de algumas roupas europeias pelos negros e de terem
incorporado para si comportamentos europeus, o sistema social na Zululandia
permaneceu a mesma, inalterada. O ponto de cisão entre Leach (1996) e Gluckman (1987)
esteja justamente que a estrutura para o segundo é passível de alteração frente a certos
conflitos.

6
Havia exceções, Gluckman (1987) indica como os brancos e europeus apesar de minoria na Africa Do Sul
detinham a maioria das terras, e estas não permitiam entrada de africanos negros, exceto aqueles que
trabalhavam naquele local.

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3 CONCLUSÃO
A antropologia social britânica, inicialmente não considerava, ou por vezes ate
ignorava os conflitos existentes nas ações práticas dos indivíduos em seu cotidiano. A
etnografia entre os Argonautas de Malinowski (2018) reuniu um inventário amplo e
detalhado sobre o cotidiano melanésio. Contudo, o pai da etnografia pode passar a
impressão de que os melanésios são estáticos e congelados no tempo, estando
constantemente em harmonia social.
Radcliffe-Brown (1973) logrou êxito na construção de modelos formais de
estrutura, inclusive aliando isso a função social dos ritos e ações de comunidades distintas.
O germe de boa parte dos estudos posteriores da antropologia social britânica é
encontrada nas formulações teóricas de Radcliffe-Brown. A preferência, ou melhor seria
dizer a escolha do autor pela teoria durkheimiana não foi aleatória. A escola sociológica
francesa estava em voga no período de atividade de Radcliffe-Brown em um período que
Max Weber ainda era pouco explorado no Reino Unido.
Evans-Pritchard (2007) teve um papel importante na expansão e consolidação dos
estudos de antropologia social. Ainda que o conflito apareça entre os Nuer, este ainda é
tido como essencial no funcionamento da estrutura social Nuer. A detalhada descrição
etnográfica supre com êxito “a falta de conteúdo” contida nos estudos que priorizaram a
integração social e as formas de solidariedade social (KUPER, 1978; LEACH, 2007).
A ruptura parcial com a teoria social durkheimiana executada por Leach (1996) e
Gluckman (1987) demonstrou um grande salto qualitativo para a antropologia social
britânica. O enfoque nos conflitos, nas relações sociais e nas práticas cotidianas de
sociedades próximas a nossa, ou aquelas distantes são potentes instrumentos analíticos.
Para além de enxergar as estruturas sociais como algo coeso e integrado, como Gluckman
(1987) mostrou com louvor, as situações de sociais de conflito cotidiano podem ser
extremamente reveladoras da estrutura social vigente, sem deixar de lado o conteúdo que
adorna as relações sociais (GLUCKMAN, 1987, LEACH, 1996).
A antropologia contemporânea consegue explorar melhor as formações e
transformações sociais a partir das ações e relações cotidianas. Marilyn Strathern (2017;
2017b) aponta como a noção de estrutura social de Radcliffe-Brown, aonde a soma das
partes (indivíduos) em conexão formaria a estrutura social a partir de sua inserção na rede
de relações sociais. A autora não poupa críticas a Meyer Fortes, acusando-o de ter um
devaneio imaginando o processo de incorporação na estrutura social pelos indivíduos tal
qual uma criança que se tornasse adulto. Boa parte dessas limitações nos primórdios da

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antropologia social britânica no século XX podem ser atribuídas pela importação de


conceitos ocidentais como o de sociedade para verificar e desnudar dinâmicas sociais
próprias.7
A antropologia brasileira contemporânea soube explorar muito bem as
potencialidades do conflito nas relações sociais em seus diferentes contextos. Em uma
apresentação de suas pesquisas, Marques; Comerford & Chaves (2007) discutem como o
conflito apareceu em seus trabalhos, no momento, fruto de suas teses de doutorado recém
defendidas. Em comum, ambos os trabalhos exploram o conflito como produtor de
relações, podendo inclusive fortalece-las. O enfoque não mais na função desses conflitos,
mas sim, como o conflito (re)produz relações familiares envolvendo disputas internas em
um recorte espacial e temporal especifico.
O conflito, visto inicialmente visto como um defeito, ou melhor dizendo para
parafrasear Durkheim, uma anomia é explorada na sua potencialidade produtora de
relações e não pela função que ali exerce. Tampouco para uma solução restauradoras de
um equilíbrio como é percebido nas obras de Evans- Pritchard (1981;2007). Mas sim
como se dá em sua operacionalização e dinâmica especifica.

7
Para autora o fato de os antropólogos inicialmente importarem o conceito de sociedade para diferentes
sociedades ao invés de perceber como as relações produzem agrupamentos sociais distintos fez com que
uma série de aspectos ficassem encobridos das análises sociais. Ela destaca o parentesco cognático. O
parentesco agnático permitia mapear “o todo” de sociedades holísticas com mais facilidade, permitindo as
comparações de totalidades como proposto por Radcliffe-Brown.

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