Você está na página 1de 6

DIREITO E DEMOCRACIA: entre facticidade e validade (volume I)

PARA RECONSTRUÇÃO DO DIREITO - O SISTEMA DOS DIREITOS:


Autonomia privada e pública, direitos humanos e soberania do povo
JÜRGEN HABERMAS

HABERMAS, Jürgen. DIREITO E DEMOCRACIA: entre facticidade e validade. Vol. I. 2.


Edição. Tradução Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro. Tempo Brasileiro. 2010
(páginas 113 – 139).

Alexandro Rodeguer BAGGIO

Mestre em Filosofia Contemporânea


pela Universidade Estadual de Londrina (2013).
Docente na Faculdade Arthur Thomas.
E.mail: arbaggio77@yahoo.com.br

Jürgen Habermas, no capítulo III, de sua obra – DIREITO E DEMOCRACIA:


entre facticidade e validade (vol. I), busca estabelecer uma relação entre o direito, a
moral e a vontade autônoma do cidadão, denotando um sentido intersubjetivo de
liberdade de ação subjetiva estruturada juridicamente. Estabelece a origem dos
problemas de interligação entre direitos humanos e o princípio da soberania do povo.
Diferencia a dimensão horizontal (ordens legítimas) da dimensão vertical (componentes
do mundo da vida), dirimindo o conflito entre direitos humanos e soberania do povo,
delineando a vontade soberana no conceito de autonomia.
Ao versar sobre a não limitação da teoria crítica, Habermas determina uma
interligação entre norma jurídica e sociedade, rompendo com o olhar somente do
observador. Desta forma, busca dirimir a tensão entre facticidade (coercibilidade) e
validade (legitimidade) da norma jurídica, diante do espírito da autocompreensão do
cidadão face às ordens jurídicas modernas e, a efetiva participação desse cidadão na
legitimidade jurídica doravante a formulação do direito positivo.
Habermas explicita que o direito moderno fornece igual tratamento aos cidadãos,
quando essa igualdade é firmada em leis gerais e abstratas. Cita Böckenförde, que
esclarece – “o direito moderno tira dos indivíduos o fardo das normas morais e as
transfere para as leis que garantem a compatibilidade das liberdades de ação”
(Habermas apud Böckenförde, 1991).
Essa autocompreensão advém do princípio da soberania do povo que, através
do processo legislativo democrático participa da criação de leis gerais e abstratas,
garantindo assim, a autonomia política. A autonomia por meio do processo legislativo
garante de um lado as liberdades de ações subjetivas, ao mesmo tempo em que,
estabelece regras de convivência social quando da formação de leis gerais e abstratas.
A tensão do dispositivo democrático disposto acima, fica adstrito ao campo de
conflito entre direitos humanos e soberania do povo, haja vista, o choque de interesses,
que pode ser assentado pela filosofia da consciência e pela herança metafísica do
direito natural.
Entretanto, a crítica da teoria habermasiana versa sobre a não subordinação do
princípio da democracia ao princípio moral, pois, abalaria a autocompreensão do
cidadão na completude de sua autonomia política, rompendo com a participação do
cidadão no processo legislativo democrático, prejudicando a validade (legitimidade da
norma jurídica) e a facticidade (coercibilidade da norma jurídica), visto que, se
subordinado o princípio da democracia ao princípio moral, indagar-se-ia, qual princípio
moral?
No subtítulo I – autonomia privada e pública, direitos humanos e soberania
do povo, Habermas estabelece uma relação entre direito e moral e, a vontade
autônoma do cidadão, buscando o sentido intersubjetivo de liberdades de ações
subjetivas estruturadas juridicamente.
A liberdade subjetiva do cidadão está ligada a aplicação livre da vontade individual, que
reflete um valor intrínseco ao direito privado, mais diretamente atrelado ao direito civil
alemão. Nestes termos, como esclarece Habermas, a autonomia privada é a proteção
ao direito, quando garante – “o direito de fechar contratos, de adquirir, herdar ou alienar
propriedade” (Habermas, 2010).
O século XIX deu início à quebra de paradigma de que somente a autonomia
moral da pessoa legitimava a autonomia privada do sujeito de direito. Kant, através do
princípio do direito, assenta que o direito por meio do positivismo, tem a força
necessária para determinar decisões e competências. Windscheid, também incorpora a
ideia de que os direitos subjetivos são reflexos de uma ordem jurídica, que garante o
poder de vontade. Ihering, interpreta que o direito subjetivo é garantido pela ordem
jurídica que tem por proveito a satisfação de interesses humanos. E, finalmente, Kelsen
determina que os direitos subjetivos sejam garantidos pela norma, denotando liberdade
de arbítrio, um “poder-querer”, garantido por uma validade deontológica proposta por
um “dever-ser”, corroborando a vontade do legislador (legitimidade) como vontade do
Estado, possibilitada pela sanção Estatal (coercibilidade).
Após a II Guerra Mundial, verificou-se que a vontade do Estado, chamado então
de Estado total, trazido pelo regime do nacional-socialismo alemão, que soterrou a
moral dos direitos subjetivos, deixando de garantir a autonomia doravante conquistada.
Não obstante, a tentativa de retorno ao nexo entre autonomia privada e moral, com
base no direito natural fracassou, haja vista, a necessidade do mundo ocidental,
reconstruir-se, com base no liberalismo, através da estrutura do direito, inclusive dos
direitos subjetivos.
Ocorre, entretanto uma transição do direito formal burguês (de cunho liberal)
para o Estado de Bem Estar Social e, nestes termos, conforme Habermas – “os direitos
primários são muito fracos para garantir à pessoa a proteção jurídica, quando esta, está
inserida em ordens maiores, supraindividuais” (Habermas, 2010), sendo necessária
uma complementação dos direitos subjetivos, através dos direitos sociais. Assim, os
direitos subjetivos se apoiam no reconhecimento dos direitos sociais que garantem
direitos à coletividade e acabam por consequência, também por garantir os direitos
primários, leiam-se, direitos subjetivos.
No subtítulo II – Habermas trabalha a origem dos problemas de interligação
entre direitos humanos e o princípio da soberania do povo. Comenta o conceito
de liberdade idealista de Savigny, onde – “o direito privado se legitima, a partir de
argumentos da razão, como um sistema de direitos negativos e procedimentais
que garantem a liberdade” (Habermas apud Savigny, 1840).
Esclarece uma crítica de Kant a Hobbes, quando o Estado constitucional burguês
no modelo hobbesiano tenta se justificar garantindo liberdades subjetivas segundo leis
gerais. Não obstante, a tentativa de Hobbes de justificar a sociedade constituída de
modo absolutista, é para Kant, conforme esclarece Habermas, uma ideia de dominação
política constituída juridicamente que forneceria um sistema egoísta, organizado pela
preferência de todos os componentes da sociedade. O que pareceria moralmente
espontâneo por parte dos indivíduos, seriam ações dirigidas por um egoísmo racional,
ou como diria Kant, por um “povo de demônios”.
Habermas segue a crítica kantiana de que Hobbes se agarra a regra de ouro
para justificar um “autointeresse esclarecido de todos os indivíduos”, o que no Estado
absolutista torna-se extremamente complexo, visto que, as tomadas de decisões para
compreensão das liberdades partiria de uma perspectiva da primeira pessoa do singular
e que tomaria corpo para assumir uma perspectiva social consoante a primeira pessoa
do plural. Sendo assim, as decisões de um indivíduo acarretariam liberdades subjetivas
a todos os indivíduos da sociedade. Mas, como, se o indivíduo participa do Estado
constitucional burguês sem democracia, ainda como súdito e não como cidadão.
No que se refere a regra de ouro – “Quod tibi fieri non vis, alteri ne feceris: o que
não queres que te faças? O que temes que te aconteça? Que medo tem de seu
semelhante? O homem cria o Estado, para se precaver de outros homens, com
fundamento de um temor mútuo”. A participação do “autointeresse esclarecido de todos
os indivíduos” no Estado constitucional burguês sem democracia não contempla a
autocompreensão dos cidadãos consoante um processo democrático de liberdades,
não autorizando assim, a pretensão idealista de que o indivíduo “eu” participa da
criação de liberdades que são ou poderiam ser direcionadas a “nós”.
Nos termos anteriores, Habermas traz a compreensão de Kant a respeito do
direito humano, da liberdade do homem como membro da sociedade em sua figuração
positiva, no que tange a autonomia do cidadão que participa da escolha de seus direitos
e das restrições que o Estado poderá lhe impor – “aqui, porém, não é possível
nenhuma outra vontade a não ser a de todo o povo (uma vez que todos determinam
sobre todos e, portanto, cada um determina sobre si mesmo): pois ninguém pode ser
injusto consigo mesmo” (Habermas, 2010). Sendo assim, há a partir desse ponto uma
aproximação de Rousseau quanto a uma legislação pública realizada
democraticamente, onde um direito humano encontra legitimidade do “eu” para o “nós”
por via da participação da autonomia da vontade em um processo democrático de
legislação pública. Permanece a crítica habermasiana quanto ao não esclarecimento
por Kant e Rousseau da relação de concorrência que se estabelece entre direitos
humanos e a soberania do povo.
Nos subtítulos III e IV – Habermas intenciona afirmar a posição conflituosa
entre direitos humanos e soberania do povo. Contemporaneamente, os Estados
democráticos são fundamentados por princípios da soberania do povo e de
direitos humanos; essa autocompreensão de direitos leva aos ideais de
autorrealização e autodeterminação, considerados nessa ordem, como ideais
éticos e morais.
A autodeterminação moral interessa ao indivíduo consoante sua construção
moral, que enlaça a formação de uma identidade coletiva. Essa construção moral
considerada simetricamente ao interesse de todos através de pretensões normativas,
transforma o indivíduo moral em cidadão ético sedimentando uma autorrealização
social.
Nesse contexto quando o direito se desincumbe de fundamentos metafísicos e
religiosos, acaba por ter que suportar muito mais pressão, visto que, passa a assumir
um papel integrador da sociedade, passa, portanto, pela acuidade das fundamentações
pós-tradicionais, devendo-se levar em conta os argumentos necessários à legitimidade
do direito e sua compatibilidade com princípios morais de justiça e de princípios de
solidariedade universal.
Habermas direciona o debate para a concorrência dos direitos humanos e sua
compreensão através da autodeterminação moral tensionada pela soberania do povo
através de sua autorrealização ética. Habermas enfatiza a concorrência entre os dois
princípios e não uma complementaridade entre eles. Para tanto, o debate entre direitos
humanos e soberania do povo são interpretados consoante duas tradições políticas
baseadas no modelo Norte Americano, sendo elas, a tradição liberal e a tradição
republicana.
Para os liberais, deve sempre haver uma precaução quanto à “tirania da
maioria”, e a fundamentação dos direitos humanos está em uma concepção anterior à
própria formação política. Na perspectiva de anterioridade de direitos à própria
formação política, ocorre uma restrição ao legislador político quando da tentativa de
cerceamento de direitos fundamentais, que está sedimentado em um estado natural por
ficção. Nestes termos, as perspectivas morais são entendidas como expressão da
autodeterminação moral, fundamentada pelo princípio de direitos humanos, afirmando a
tradição liberal de interesses do ser humano.
Já, na interpretação republicana, o cidadão tem valor próprio, em termos de
direitos fundamentais, quando conscientemente está imbuído em uma comunidade
naturalmente política, e realiza direitos humanos quando nesta tradição age em prol da
coletividade. Assim, o ideal republicano, remete as perspectivas éticas como expressão
da autorrealização ética, fundamentada pelo princípio da soberania do povo, afirmando
a tradição republicana de interesses da coletividade.
As referidas interpretações contemporâneas trazem à baila a complexidade de
preservação dos direitos humanos na forma de governo republicana, pois essa forma
de governo está fundamentada em sua origem pelo princípio da soberania do povo.
Habermas entende que a tensão estabelecida por esta condição é um dos grandes
desafios das sociedades complexas, e infere uma possibilidade de integração através
de um modelo de autolegislação com base na teoria do discurso.
A autolegislação proposta por Habermas nasceu da desvinculação política ao
sagrado que deixou um vácuo de integração, sendo assumido, por via de consequência
pelo direito. Sendo assim, no ambiente de um Estado Democrático de Direito, através
do processo legislativo, o cidadão é capaz, através de uma autodeterminação moral,
alcançar uma autorrealização ética. Habermas identifica uma relação de
intersubjetividade que garante direitos subjetivos por meio do princípio da
reciprocidade, que somente se desenvolve com a cooperação dos sujeitos de direito.
Essa dependência de reciprocidade e cooperação via processo legislativo no
ambiente do Estado Democrático de Direito garante a legitimidade da soberania do
povo que, por conseguinte, fundamenta direitos subjetivos, fornecendo base para o
reconhecimento dos direitos humanos. A fonte procedimental de legitimidade (processo
legislativo) se torna plena para interligar os princípios: soberania do povo e direitos
humanos.

Você também pode gostar