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<TÍTULO>

Introdução

<título da parte 1>

Howard Becker (2009) aponta como crime tudo aquilo que se rotula como
crime, voltando sua atenção para os atores sociais que fazem com que os mecanismos
que envolvem o par ordem e crime funcionem. A relação entre ordem e crime se dá
através de atores sociais que fazem sua constante manutenção, ajudando a determinar
aquilo que é rotulado como legal ou ilegal. Se a manutenção dessa relação é feita por
atores sociais, só é possível compreender o crime através deles. Dessa forma, ordem e
crime estão conectados aos mesmos atores, tornando o par inseparável e a fronteira
entre eles móvel. Aqui, o pensamento de Becker liga-se diretamente com os trabalhos
de Weber (2004), Elias (1990) e Whyte (2005).

Weber irá além ao dizer que a prática política legal é análoga à prática política
ilegal, em sua análise dos processos históricos que formaram o Estado moderno. Ele
argumenta que a característica definidora desse Estado não é nenhuma de suas funções,
mas sim o método através do qual ele as exerce. Tais funções são cumpridas de forma
violenta e, eis aqui a novidade, através da única instituição legal que pode exercer esta
violência. O Estado moderno suprime qualquer grupo que se utilize de violência,
rotulando-o – para usar um conceito de Becker – como crime e logo em seguida se
propõe a combatê-lo, comumente utilizando táticas ainda mais violentas, mas dessa vez
legais. Outras diversas formas de crime, além das violentas, surgirão através do
desenvolvimento burocrático racional da sociedade que criará uma suposta neutralidade
funcionalista que opera na lógica capitalista do custo-benefício.

Concordando com Weber, Elias mostra como a própria consolidação do Estado


se deu de forma violenta, semelhante ao que o próprio Estado rotularia posteriormente
como crime. Nesse processo, o monopólio privado da violência se converte em
monopólio público da violência e os exércitos, cuja função era a defesa do território, são
agora traduzidos em instituições violentas de policiamento. O Estado aqui aparece como
agressor e protetor de seu povo ao mesmo tempo.
A importância da análise do tema baseada em fatos concretos e não em
abstrações hipotéticas é ressaltada também por Foote Whyte. Dentre as conclusões
obtidas pelo autor está a de que as instituições da lei e do crime se interpenetram,
existindo legalidades e ilegalidades em ambas. A administração interna dos grupos
criminosos analisados se revelou muito mais política do que criminal, assim como os
orçamentos e a manutenção dos cofres da máfia eram simples contabilidade e não atos
de violência. Nesse sentido, dando continuidade ao argumento weberiano, as dinâmicas
políticas e econômicas são tomadas como ilegais quando estão associadas às instituições
criminosas e como legais quando estão associadas às instituições da lei.

Essas dinâmicas referentes ao mundo do crime impactam a cultura local, uma


vez que os códigos legais não são necessariamente iguais às éticas disseminadas
culturalmente e menos ainda à moral individual dos cidadãos. Whyte, assim como
diversos outros autores do campo, defende que as instituições são ao mesmo tempo
estruturadas e estruturantes - e isso engloba as criminosas. A capacidade de estruturação
de uma instituição está diretamente ligada à figura do líder da instituição,
principalmente quando esse líder exerce com frequência a dominação carismática
weberiana. O líder da instituição, seja ela uma facção criminosa ou o próprio Estado,
tem o poder de manipular as atividades de coesão social internas e externas através do
tratamento da própria imagem. Dessa forma, ele mantém seu prestígio dentro e fora do
grupo, se mantém líder e, como consequência do processo, impacta diretamente na
coesão social dos grupos e no próprio tecido cultural local.

Se para Weber a distinção entre legal e ilegal está em quem realiza a ação, Foote
Whyte nos mostra que, para além disso, as práticas atravessam as instituições, fazendo
com que elas se integrem ou interpenetrem, ao invés de se manterem em oposição,
como o senso comum sugere. A tese de que o Estado moderno se apresenta como
protetor e agressor do próprio povo simultaneamente é cada vez mais percebida pelo
senso comum atualmente, tanto na forma de ação propriamente violenta como o
genocídio da população negra e periférica que vem sendo denunciado cada vez mais nas
últimas décadas quanto na forma de necropolítica, nos termos de Mbembe1. É partindo
desse referencial teórico discutido na parte anterior deste texto que buscarei realizar
uma breve análise das medidas tomadas - e não tomadas - pelo governo brasileiro
quanto à recente pandemia de covid-19.

1
Conceito elaborado por Achille Mbembe em Crítica da Razão Negra (2018).
<título da parte 2>

Em março de 2020, por pressão dos governos estaduais, entra em vigor o


isolamento horizontal nas principais cidades brasileiras, logo em seguida sendo
generalizado para o Brasil como um todo. A quarentena foi apontada como causa para
diversas demissões em massa, para a intensificação da instabilidade econômica e
política que o país já vivia e para diversas mudanças no tecido cultural e social. Em
seguida, o Brasil teve a oportunidade de se tornar “vitrine de vacinação”, termo que
significa que fabricantes de vacinas tinham interesse em demonstrar a efetividade de
suas fórmulas, nos dando a vantagem de sermos vacinados antes por preços mais baixos
aos cofres públicos. Hoje, em meados do ano seguinte, existem evidências de que essas
ofertas foram arbitrariamente negadas pelo governo federal.

As medidas do governo federal no que diz respeito à vacinação foram


inexistentes e, se para Foote Whyte o líder de uma instituição tem poder de dominação
cultural, aqui esse poder foi exercido. A compra e aplicação das vacinas, a prática do
isolamento horizontal e até medidas de auxílio econômico foram desencorajadas
publicamente por diversas vezes através de declarações do próprio presidente da
república e do governo federal como um todo. Os insumos necessários para a produção
da vacina chinesa no Brasil - a primeira a ter efetividade comprovada - pela Fiocruz
deixaram de ser comprados, dando lugar às fórmulas estadunidense e britânica,
deixando um vácuo de não vacinação no período de troca entre os fornecedores. Hoje,
os responsáveis pelos programas de vacinação, pela continuidade da quarentena e do
auxílio emergencial2 são os governos estaduais.

A proposta do poder executivo federal e de seus apoiadores foi incentivar o uso


do que nomearam “tratamento precoce”, com a utilização de medicamentos que não
possuem eficácia comprovada contra o vírus Sars-CoV-2 3. Quanto à quarentena, foi
proposto o isolamento vertical, defendendo que apenas os grupos de risco deveriam se
manter em distanciamento dos demais, sob o argumento de que o Brasil não poderia

2
O auxílio emergencial é um programa extraordinário de assistência financeira para pessoas de baixa
renda que dá periodicamente um valor base de pouco mais de meio salário mínimo. O programa recebeu
diversas críticas pela logística de funcionamento, que forçava os beneficiários a se aglomerarem em
agências bancárias num período onde o isolamento social é necessário e pela baixa frequência e baixo
valor das parcelas.
3
Vírus causador da doença covid-19.
parar por conta de uma simples doença. Por último, em relação ao auxílio emergencial,
além de repassar as despesas com o programa para os governos estaduais, o próprio
presidente, em declarações recentes, sugeriu que quem quisesse mais auxílio deveria ir
aos bancos pegar empréstimos4.

Por mais que as propostas defendidas pelo governo federal fossem contra o que
diziam especialistas, o discurso do presidente teve não apenas impacto midiático como
também efeito objetivo. Como apontado por Cabral, Ito e Pongeluppe (2021), os
municípios brasileiros em que o atual presidente teve grande apoio apresentaram quase
seis vezes mais casos de covid-19 e quase sete vezes mais mortes causadas pela doença.

Considerações finais

Referências Bibliográficas
BECKER, Howard. A teoria da rotulação reconsiderada. In: Outsiders: estudos
de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

ELIAS, Norbert. Sobre a sociogênese do Estado. In: O Processo Civilizador


v.2: formação do Estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.

CABRAL, Sandro; ITO, Nobuiuki; PONGELUPPE, Leandro. The Disastrous


Effects of Leaders in Denial: Evidence from the COVID-19 Crisis in Brazil. University
of Toronto. Disponível em: https://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3836147

WEBER, Max. A instituição estatal racional e os modernos partidos políticos e


parlamentos. In: Economia e Sociedade v.2. São Paulo: Imprensa Oficial/Editora UNB,
2004.

WHYTE, William Foote. A estrutura social do gangsterismo. In: Sociedade de


Esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada. Rio de Janeiro:
Zahar, 2005.

4
Episódio ocorrido em 01/06/2021, em fala no Palácio da Alvorada, residência oficial do presidente.

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