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Resumo. Biogeografia é a ciência que estuda a distribuição geográfica dos seres vivos no Contato do autor:
espaço através do tempo, com o objetivo de entender os padrões de organização espacial jpg.bio@gmail.com
dos organismos e os processos que resultaram em tais padrões. No presente trabalho são
apresentados os principais fatos históricos e conceitos relacionados à trajetória histórica da Recebido 15dez10
Biogeografia, para que se compreenda que tal disciplina não surgiu de sobressalto, mas passou Aceito 12out11
por um processo muito longo de construção que se deu através do acúmulo de contribuições de Publicado 07nov11
diversos pesquisadores ao longo dos últimos séculos.
Palavras–chave. Dispersalismo, distribuição, evolução, vicariância.
Se pensarmos um pouco acerca da distribuição organismos e os processos que resultaram em
dos organismos, facilmente podemos perceber tais padrões. É uma disciplina complexa e inte-‐‑
que a diversidade de seres vivos não é a mes-‐‑ grativa, que relaciona informações de diversas
ma sobre a superfície da Terra. Pelo contrário, ȱ¹ȱȮȱȱȱȱ ęǰȱ -‐‑
existem áreas que possuem uma diversidade gia, Ecologia, etc – e que passou por um pro-‐‑
de espécies maior que outras, enquanto há es-‐‑ cesso muito longo de desenvolvimento, que se
pécies diferentes ocupando áreas semelhantes. deu através do acúmulo de contribuições de di-‐‑
Além disso, alguns grupos são restritos a uma versos pesquisadores, notadamente nos séculos
determinada área, enquanto outros apresentam ȱȱȱǻȱȱǯǰȱŘŖŖřDzȱȱȱǯǰȱ
ampla distribuição. Foi a partir da tentativa de ŘŖŖŜǼǯȱ
se compreender os padrões gerais de distribui-‐‑ ȱȱȱàȱȱęȱ
ção das espécies, a relação da biota com suas em dois períodos muito distintos: 1) o período
áreas de distribuição e a própria relação entre ·Ȭǰȱȱȱȱȱȱę¡ȱ
ȱ ¤ȱ ·ȱ ȱ ȱ ȱ ęǰȱ £ȱ ȱ das espécies, na constância e estabilidade da
mais ampla, abrangente e multidisciplinar das ǰȱȱȱȱȱȱȱȱ¨Dzȱȱ
ciências biológicas (Nelson e Platnick, 1981). ŘǼȱȱÇȱǰȱȱȱȱȱ
Existem três componentes que devem ser de mudança tanto da biota (evolução) quanto
avaliados em conjunto para o entendimento ȱàȱȱ¥ȱ¡³äȱ¤ęǰȱ
dos padrões de distribuição da biota: espaço resultando no paradigma vicariante que serviu
ǻ¤ȱ¤ęȱȱ¹ȱȱǼǰȱ ȱȱȱȱęȱàǰȱȱ¤ȱ
tempoȱ ǻȱ àȱ ȱ Ěȱ melhor explicada mais adiante (Nelson e Plat-‐‑
os padrões atuais) e forma (os grupos de orga-‐‑ nick, 1981).
Ǽȱ ǻ£ǰȱ ŗşśŘDzȱ
ǰȱ ŘŖŖŖǼǯȱ ȱ Dois processos precisam ser explicados
ǰȱ ȱ ęȱ ·ȱ ȱ ¹ȱ ȱ ȱ ȱ para que se compreenda satisfatoriamente tan-‐‑
³¨ȱ ¤ęȱ ȱ ȱ ȱ ȱ -‐‑ ȱȱàȱȱȱȱ¤ęDZȱdis-‐‑
paço através do tempo, com o objetivo de en-‐‑ persão e vicariância (Figura 1). Estes processos
ȱȱäȱȱ£³¨ȱȱȱ são os principais responsáveis por moldar os
2 Gillung: Biogeografia: a história da vida na Terra
padrões de distribuição dos organismos. No explicações religiosas. Essas ideias iniciais tra-‐‑
caso da dispersão, partimos de uma população £ȱÇȱȱȱȱȱ
ancestral de um dado grupo de organismos que durante muito tempo como única explicação
originalmente ocorria em apenas uma das áre-‐‑ plausível para os padrões observados: a ideia
as hoje ocupadas por tal grupo. Posteriormen-‐‑ de centro de origem e o processo de dispersão,
te, esta população ampliou sua distribuição e em um período conhecido como escola disper-‐‑
se dispersou para outras áreas, ultrapassando salista.
ȱ·Ȭ¡ǯȱȱęǰȱȱȱ-‐‑ Acreditava-‐‑se que todos os organismos
lações isoladas pela barreira se diferenciaram surgiram em uma só área – o centro de origem
ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ęȱ ȱ – e que posteriormente se dispersaram a partir
duas espécies diferentes (Figura 1B). Por outro dali, ocupando toda a superfície da Terra. Uma
lado, nos eventos de vicariância, a população ȱȱȱȱ¤ęȱ·ȱ-‐‑
ancestral ocupava a somatória das áreas atual-‐‑ trada no Livro do Gênesis. De acordo com ela,
mente habitadas por seus descendentes, e esta todos os organismos foram criados no Éden e a
população foi posteriormente subdividida em partir daí se dispersaram para as outras regiões
duas populações pelo surgimento de uma bar-‐‑ do globo. O mesmo raciocínio se aplica à idéia
ȱǻȱŗǼȱǻȱȱǰȱŗşŞŗDzȱ-‐‑ da Arca de Noé e da Torre de Babel: as espécies
ȱȱǯǰȱŘŖŖřǼǯ e povos, respectivamente, surgiram no centro
ȱȱȱ¨ȱȱȱȱȱę-‐‑
caram a partir dele (Papavero et al., 1997).
Entre os integrantes da escola dispersalista
¤ȱ ȱ ȱ ·ȱ ǻȱ Ȯȱ Ǽȱ ǻŗŝŖŝȬ
1778), botânico sueco que formulou a primeira
ȱ¤ęȱȱȱǯȱȱ
acordo com ela, áreas distintas da Terra com a
mesma ecologia, deveriam possuir exatamente
ȱȱĚǯȱȱǰȱȱȱȱ-‐‑
bitam áreas semelhantes, mas em continentes
diferentes, deveriam pertencer à mesma espé-‐‑
cie (Papavero et al., 1997).
Posteriormente, George Louis Leclerc,
ȱ ȱ ěȱ ǻŗŝŖŝȬŗŝŞŞǼȱ ¡ȱ ȱ -‐‑
pécies de mamíferos do Velho Mundo conhe-‐‑
cidas na época e percebeu que elas não eram
encontradas no Novo Mundo. A partir de suas
ȱȱȱȱȱȱěǰȱ-‐‑
gundo a qual diferentes regiões do globo, ape-‐‑
sar de compartilharem as mesmas condições,
são habitadas por diferentes espécies de ani-‐‑
ȱȱǯȱěȱ¨ȱȱȱ³¨ȱ
de centro de origem, mas sugeriu um novo fato:
ȱ·ȱȱęȱǻȱ³¨Ǽȱ
quando expostas a diferentes condições am-‐‑
ǯȱȱȱȱěȱȱȱ
ȱŗǯȱȱ¤ęȱ£ȱȱ¡-‐‑ históricas para os padrões de distribuição, ou
plicar o padrão de distribuição dos organismos. A. seja, ou o grupo de organismos surgiu naquela
¦ǯȱ ǯȱ ¨ǯȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ǯȱ dada área ou veio de outro lugar. No primeiro
ǻŘŖŖřǼǯ ǰȱȱȱȱ·ǰȱȱȱ£ȱȱ
Desde muito cedo na história da humani-‐‑ ȱ³¨ȱȱȱ¤Dzȱȱȱ
dade o ser humano já tinha a curiosidade de ǰȱȱ¨ȱȱȱ£-‐‑
saber por que os organismos estão onde estão. ção. Diversos autores posteriores chegaram às
Diversos povos possuem explicações para a ȱ äȱ ȱ ěȱ ȱ ¥ȱ -‐‑
origem e distribuição tanto da espécie humana buição diferenciada dos organismos, a partir do
quanto das demais, usualmente pautadas em estudo de outros grupos de seres vivos, como
Revista da Biologia (2011) Vol. Esp. Biogeografia 3
¡ȱȱ
ȱǻŗŝŜşȬŗŞśşǼȱȬȱDzȱ teoria, é formada por diversas placas rígidas
ȱȱǻŗŝŜŘȬŗŞřřǼȱȬȱDzȱȱ ȱ que se movem umas em relação às outras, sen-‐‑
ȱǻŗŝŜşȬŗŞřŘǼȱȬȱ·ǯ do carreadas por lentas correntes de convecção
ȱŗŞŘŖǰȱȱ¦ȱ¹ȱȱ¢-‐‑ existentes no interior do planeta. O advento da
mus de Candolle (1778-‐‑1841) publicou um tra-‐‑ tectônica de placas constituiu uma verdadeira
ȱȱȃ ęȱȱȄǰȱȱ ³ȱ ȱ ȱ ȱ ¹ȱ ȱ £ȱ
discutiu a distribuição dos vegetais e sua rela-‐‑ com que os biogeógrafos mudassem o enfoque
³¨ȱȱȱǰȱ£ȱȱȱ de suas explanações. A aceitação da mobilida-‐‑
de endemismo e espécies disjuntas. Segundo de dos continentes para explicar as distribui-‐‑
ele, uma localidade habitada por um organismo ³äȱ¤ęȱȱȱȱȱ
ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȃ³¨Ȅȱ ǻ-‐‑ meio de se testar as hipóteses de vicariância.
Çȱ àȱ ȱ Ǽȱ ȱ ȃ³¨Ȅȱ Após a ampla aceitação da teoria da evolu-‐‑
ǻÇȱàȱȱ¤ęǼǯȱȱ-‐‑ ção e da noção da mobilidade dos continentes
tir de seus estudos, de Candolle criou uma das fundamentada pela teoria da tectônica de pla-‐‑
ȱ ȱ ȱ ę³¨ȱ ȱ ȱ ǰȱ ȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ
ȱ äȱ ¤ęǰȱ ȱ ȱ ȱ -‐‑ forma como a entendemos atualmente.
tendidas como grandes áreas de endemismo. Na segunda metade do século XX, o bo-‐‑
O paradigma dispersalista perdurou por ¦ȱ ȱ ȱ £ȱ ǻŗŞşŚȱ Ȯȱ ŗşŞŘǼȱ -‐‑
¤ȱ ·ȱ ȱ Ěȱ ·ȱ ȱ -‐‑ ȱȱȬęǰȱȱȱ
ȱ¤ęȱȱȱȱ ǯȱȱ para inferência de processos de vicariância. A
seus trabalhos, os dois autores tiveram uma noção de vicariância, desenvolvida pelo Croi-‐‑
preocupação especial também com a distribui-‐‑ £ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ ȱ -‐‑
ção dos seres vivos, e baseavam suas explica-‐‑ ³äȱ ¥ȱ ęȱ ȱ ȱ ȱ ³¨ȱ ȱ
ções na dispersão. Ambos discutem o isolamen-‐‑ paradigma dispersalista para o paradigma vi-‐‑
to reprodutivo provocado por essas barreiras e cariante, vigente até os dias de hoje. Como já
seus efeitos sobre a especiação, e sugerem que a mencionado, vicariância é a fragmentação de
distribuição das espécies é resultado de descen-‐‑ uma população ancestral por uma barreira ge-‐‑
dência comum, o processo evolutivo. ¤ęǰȱȱ¥ȱ³¨ȱȱĚ¡ȱ¹ȱ
ȱ ·ȱ ȱ ¤ȱ ȱ ę¡ȱ ȱ -‐‑ e posterior especiação. A proposição da vicari-‐‑
dominantes também nas Geociências, pois du-‐‑ ância para explicar os padrões de distribuição
rante muito tempo se acreditou na imobilidade foi um grande avanço em relação às explicações
dos continentes, panorama vigente até meados dispersalistas em termos de capacidade de ex-‐‑
ȱ ·ȱ ǯȱ ȱ ¨ȱ ȱ ȱ ǰȱ planação e de teste. Isso porque os eventos de
meteorologista e geólogo alemão, propôs a te-‐‑ dispersão são eventos individuais, pontuais,
oria da Deriva Continental, segundo a qual os ȱ£ȱȱȱ·ȱȱȱàȱ-‐‑
continentes já estiveram unidos no passado, ȱ ȱ ȱ ȱ ¨ǯȱ ȱ ȱ £¨ǰȱ
formando um supercontinente chamado Pan-‐‑ explicações dispersalistas não são passíveis de
gea. Com o passar do tempo a Pangea sofreu teste, pois não ocorrem concomitantemente em
fragmentação e os blocos continentais resul-‐‑ dois organismos diferentes devido aos mesmos
tantes foram afastando-‐‑se de modo que as suas processos. Eventos de vicariância, ao contrá-‐‑
ȱȱ³äȱęȬȱ·ȱȱ rio, são eventos que envolvem vários táxons ao
ȱ³¨ȱǯȱȱȱȱ-‐‑ mesmo tempo e por isso são passíveis de teste
oria com base nas semelhanças dos contornos através da comparação com outros grupos que
dos continentes, que sugerem um encaixe entre ocupam a mesma área. Além do conceito de vi-‐‑
si, e também na similaridade entre fósseis tanto ¦ǰȱ£ȱ·ȱȱȱȱȱȱȱ·-‐‑
de animais quanto de plantas encontrados em ȱȱȱęDZȱȃȱȱȱȱȱ
diferentes continentes. Ele não foi o primeiro ȱȄǯȱȱȱȱǰȱȱȱȱȱ
a sugerir que os continentes já estiveram uni-‐‑ área que abriga tal biota apresentam histórias
dos, mas foi o primeiro a apresentar evidências correlacionadas. Desse modo, a história geoló-‐‑
extensas de vários campos de estudo que com-‐‑ gica da Terra pode fornecer subsídios para se
provaram sua teoria. Essas evidências, aliadas compreender a história dos organismos, assim
a um conhecimento mais profundo da geologia como a história dos organismos pode ajudar-‐‑
da Terra, hoje são reunidas na teoria da Tectô-‐‑ -‐‑nos a entender a história do nosso planeta
nica de Placas. A crosta terrestre, segundo esta ǻǰŗşŝŞDzȱ ǰȱŗşŞŚǼǯȱ
4 Gillung: Biogeografia: a história da vida na Terra