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A comunicação na batalha das ideias

Dênis de Moraes - Abril 2009

A comunicação jamais esteve tão fortemente entranhada na batalha das


ideias pela direção moral, cultural e política da sociedade. Reconhecendo o
caráter estratégico da produção simbólica nas disputas pelo poder, compartilho
da ideia de Jean-Paul Sartre (1994: 23) de que a mídia desempenha os papéis
de “servidores da hegemonia e guardiães da tradição”. Ocupa posição
proeminente no âmbito das relações sociais, visto que fixa os contornos
ideológicos da ordem hegemônica, elevando o mercado a instância máxima de
representação de interesses.

Sob alegação de que exerce uma função social específica (informar a


coletividade), a mídia não quer submeter-se a freios de contenção e se põe
fora do alcance das leis e da regulação estatal. A opinião pública é induzida ao
convencimento de que só tem relevância aquilo que os meios divulgam. Não
somente é uma mistificação, como permite, perigosamente, a absorção de
tarefas, funções e papéis tradicionalmente desempenhados por instâncias
intermediárias e representativas da sociedade (sistema escolar, família,
partidos políticos, organismos da sociedade civil, etc.). Os grupos de
comunicação sentem-se desimpedidos para selecionar as vozes que devem
falar e ser ouvidas — geralmente aquelas que não ameaçam suas
conveniências políticas e metas mercadológicas.

Essa posição hipertrofiada dos meios tem a ver com a sua condição
privilegiada de produtores e distribuidores de conteúdos, tal como fixado por
Karl Marx (1997, v. 1: 67): “Transportam signos; garantem a circulação veloz
das informações; movem as ideias; viajam pelos cenários onde as práticas
sociais se fazem; recolhem, produzem e distribuem conhecimento e ideologia”.

Nos Cadernos do cárcere, Antonio Gramsci (2000:78) situa a imprensa (o


principal meio de comunicação de sua época) como “a parte mais dinâmica” da
superestrutura ideológica das classes dominantes. Caracteriza-a como “a
organização material voltada para manter, defender e desenvolver a ‘frente’
teórica ou ideológica”, ou seja, um suporte ideológico do bloco hegemônico.
Enquanto aparelhos político-ideológicos que elaboram, divulgam e unificam de
concepções de mundo, jornais e revistas cumprem a função de “organizar e
difundir determinados tipos de cultura” (ib., 32), articulados de forma orgânica
com determinado agrupamento social mais ou menos homogêneo, o qual
contribui com orientações gerais para exercer influência na compreensão dos
fatos sociais.

Ao referir-se à imprensa italiana do início do século XX, Gramsci (ib., 218) situa
a ação dos jornais como verdadeiros partidos políticos, na medida em que
influem, com ênfases e enfoques determinados, na formação da opinião
pública e nos modos de assimilação dos acontecimentos: “Jornais italianos
muito mais bem-feitos do que os franceses: eles cumprem duas funções — a
de informação e de direção política geral, e a função de cultura política,
literária, artística, científica, que não tem um seu órgão próprio difundido (a
pequena revista para a média cultura). Na França, aliás, mesmo a função
distinguiu-se em duas séries de cotidianos: os de informação e os de opinião,
os quais, por sua vez, ou dependem diretamente de partidos, ou têm uma
aparência de imparcialidade (Action Française – Temps – Débats). Na Itália,
pela falta de partidos organizados e centralizados, não se pode prescindir dos
jornais: são os jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros
partidos”. Mas ele ressalva que a imprensa não é o único instrumento de
publicização: “Tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública, direta ou
indiretamente, faz parte dessa estrutura. Dela fazem parte: as bibliotecas, as
escolas, os círculos e os clubes de variado tipo, até a arquitetura, a disposição
e o nome das ruas” (ib., 78).

No artigo “Os jornais e os operários”, de 1916, Gramsci (2005) insiste que os


operários devem recusar os jornais burgueses, mantidos por capitais privados,
visto que privilegiam as verdades de partidos, políticos e classes dominantes.
Para ele, os operários precisam lembrar sempre que “o jornal burguês
(qualquer que seja sua cor) é um instrumento de luta movido por ideias e
interesses que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é
constantemente influenciado por uma ideia: servir a classe dominante, o que se
traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. [...] E não
falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou
falsifica para enganar, iludir e manter na ignorância o público trabalhador”.

O filósofo italiano reprova o trabalhador que lê regularmente e ajuda a manter


com seu dinheiro os jornais burgueses, “aumentando a sua potência” e
esquecendo-se de que tais veículos “apresentam os fatos, mesmo os mais
simples, de modo a favorecer a classe burguesa e a política burguesa com
prejuízo da política e da classe operária”. Exemplifica com a cobertura
tendenciosa das greves: “Para o jornal burguês os operários nunca têm razão.
Há manifestação? Os manifestantes, apenas porque são operários, são
sempre tumultuosos, facciosos, malfeitores”. Assim, o convencimento sobre o
irremediável conflito de interesses entre a classe trabalhadora e a imprensa da
burguesia justifica a atitude política que Gramsci julga mais consequente:
boicotar os jornais vinculados às elites hegemônicas.

Ao retomar mais tarde, nos Cadernos do cárcere, a análise crítica sobre a


imprensa, Gramsci assinala que o papel dos jornais transcende, muitas vezes,
a esfera ideológica em sentido estrito. Chama a atenção para as
determinações econômico-financeiras das empresas jornalísticas, que as
impelem a agregar o público leitor para assegurar rentabilidade e influência.
Avalia que a imprensa burguesa se move em direção ao que pudesse agradar
o gosto popular (e não ao gosto culto ou refinado), com o propósito de atrair
“uma clientela continuada e permanente”. A seu juízo, “os jornais são
organismos político-financeiros e não se propõem divulgar as belas-letras ‘em
suas colunas’, a não ser que estas belas-letras aumentem a receita” (2002d:
40).

Esses componentes socioeconômicos e ideológicos estão na base do que


Gramsci denomina de “jornalismo integral”, isto é, o jornalismo que não
somente visa satisfazer as necessidades de seu público, “mas pretende
também criar e desenvolver estas necessidades e, consequentemente, em
certo sentido, gerar seu público e ampliar progressivamente sua área” (2000:
197). O jornalismo integral de Gramsci atua como aparelho privado de
hegemonia, na medida em que procura intervir no plano político-cultural para
organizar e difundir informações e ideias que concorrem para a formação do
consenso em torno de determinadas concepções de mundo.

Aos jornais, segundo Gramsci, interessa conquistar “o leitor em toda a sua


concretude e densidade de determinações histórico-políticas e culturais, de
motivações éticas, como indivíduo e como expoente de uma associação
humana, como depositário de recursos intelectuais latentes e como ‘elemento
econômico”, ou seja, precisamente como adquirente de uma mercadoria, de
um produto”. Existem aí nexos e remissões entre as dimensões políticas (a
intervenção na formação da opinião pública) e econômicas (o caráter
empresarial e mercadológico) que incidem na atividade jornalística. Gramsci
atribui ao jornalismo integral o exercício de um pressuposto categórico à
orientação ideológica hegemônica: “É dever da atividade jornalística (em suas
várias manifestações) seguir e controlar todos os novos movimentos e centros
intelectuais que existem e se formam no país. Todos”.

Se pensarmos no contexto contemporâneo, poderemos perceber ecos da


apreciação gramsciana. Os meios de comunicação elaboram e divulgam
equivalentes simbólicos de uma formação social já constituída e possuidora de
significado relativamente autônomo.  Na essência, o discurso midiático se
propõe fixar a interpretação dos fatos por intermédio de signos fixos e
constantes que tentam proteger de contradições aquilo que está dado e
apareça como representação do real e verdade. Tal discurso interfere
preponderantemente na cartografia do mundo coletivo, propondo um conjunto
de linhas argumentativas sobre a realidade, aceitas ou consideradas por
amplos setores da sociedade. Assume, pois, uma função ideológica que
consiste, segundo Chauí (1982: 21), em compor “um imaginário e uma lógica
da identificação social com a função precisa de escamotear o conflito,
dissimular a dominação e ocultar a presença do particular, enquanto particular,
dando-lhe a aparência do universal”.

O estabelecimento de uma concepção dominante consiste, assim, em


“conservar a unidade ideológica de todo o bloco social, que é cimentado e
unificado precisamente por aquela determinada ideologia”
(Gramsci, apud Gruppi, 1978: 69-70). Do ponto de vista das corporações
midiáticas, trata-se de regular a opinião social através de critérios exclusivos de
agendamento dos temas que merecem ênfase, incorporação, esvaziamento ou
extinção. O ponto nodal é disseminar conteúdos que ajudem a organizar e a
unificar a opinião pública em torno de princípios e medidas de valor. Por isso,
formar a opinião pública é uma operação ideológica “estreitamente ligada à
hegemonia política, ou seja, é o ponto de contato entre a ‘sociedade civil’ e a
‘sociedade política’, entre o consenso e a força” (Gramsci, 2002a: 265). O
processo da hegemonia importa, então, disputa pelo monopólio dos órgãos
formadores de consenso, tais como meios de comunicação, partidos políticos,
sindicatos, Parlamento etc., “de modo que uma só força modele a opinião e,
portanto, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa
nuvem de poeira individual e inorgânica”.

Daí a importância crucial de se analisarem as formas de convencimento, de


formação e de pedagogia, de comunicação e de difusão de visões de mundo,
as formas peculiares de sociabilidade, as maneiras de ser coletivas e as
clivagens, assim como as contradições presentes em cada período histórico
(Fontes, 2008: 145). A referência à difusão de ideias, valores e padrões de
comportamento tem a ver com um dos reconhecimentos decisivos no
pensamento crítico atual: é no domínio da comunicação que se esculpem os
contornos ideológicos da ordem hegemônica e se procura reduzir ao mínimo o
espaço de circulação de ideias alternativas e contestadoras — por mais que
estas continuem se manifestando e resistindo. A meta precípua é esvaziar
análises críticas e expressões de dissenso, evitando atritos entre as
interpretações dos fatos e os modos de entendimento por parte de indivíduos,
grupos e classes.

Sem esquecer a constante reverberação do ideário dominante nos canais


midiáticos, devemos reconhecer que fatores mercadológicos, socioculturais e
políticos repercutem de alguma maneira na definição das programações. Um
dos traços distintivos da mídia, enquanto sistema de produção de sentido, é a
sua capacidade de processar certas demandas da audiência. Os meios não
vivem na estratosfera; pelo contrário, estão entranhados no mercado e dele
dependem para suas ambições monopólicas. Do mesmo modo, precisam ter
seus radares permanentemente ativados para captar sinalizações,
insatisfações e carências. E com isso preencher vácuos abertos, antecipar
tendências, criar modismos, atenuar variações e repensar aproximações.
Decisivo não perder de vista que tais deslocamentos devem ocorrer, o máximo
possível, dentro das margens de controle delineadas por estrategistas e
gestores corporativos.

É impossível conceber o campo midiático como um todo harmonioso e


homogêneo, pois está atravessado por sentidos e contrassentidos, imposições
e refugos, aberturas e obstruções. Daí a existência de entrechoques de
concepções que se enfrentam e se justapõem em diferentes circunstâncias
históricas. É um campo atravessado por contradições, oscilações de gostos,
preferências e expectativas. Enquanto mediadora autoassumida dos desejos, a
mídia tenta identificar indicações do cotidiano e eventuais alternâncias de
sentimentos que podem incidir em predisposições consensuais ao consumo.
Para tentar sintonizar-se com essas demandas, os veículos procuram substituir
formas disciplinares clássicas por um marketing mais macio e persuasivo,
capaz de seduzir consumidores de diferentes estratos sociais e somar capitais
publicitários, patrocínios e audiências. Ainda que prescrevam fórmulas e juízos,
não há dúvida de que, em maior ou menor grau, absorvem, essencialmente por
razões de mercado, determinadas inquietações do público. Quando as
incorporam em suas programações, fazem-no de acordo com suas escalas
interpretativas, sem deixar de avaliar intenções concorrenciais. Seria, portanto,
um equívoco ignorar injunções que se alojam nas diretivas dos veículos e em
seus perfis específicos e fisionomias competitivas. 

O aparato midiático tem que atualizar programações e ofertas para assegurar


máxima fidelidade possível da audiência, em consonância com suas
conveniências estratégicas. O que não quer dizer que as atualizações resultem
em qualidade editorial ou pluralidade real de pontos de vista. O fulcro de
grande parte dos ajustes é seguir modelando comportamentos e consciências,
bem como influenciando agendas públicas e privadas. Busca-se incorporar
peculiaridades socioculturais a determinados produtos e serviços, de modo a
usufruir vantagens simbólicas associadas ao trabalho de conversão de
identidades à lógica consumista.

Em paralelo, a exploração de brechas dentro das corporações midiáticas não


deve ser descartada como recurso tático na resistência ao pensamento único.
Claro que a grave assimetria comunicacional — uma parte ínfima da sociedade
é proprietária dos veículos, enquanto a coletividade é apenas destinatária —
impõe limitações e obstáculos. Mas não impede que sejam desenvolvidas
algumas ações criativas no interior das organizações, conseguindo-se, às
vezes, veicular materiais informativos que contrastam com o edifício ideológico
construído por seus proprietários.

Existem, simultaneamente, pontos de resistência aos discursos hegemônicos


que abrem horizontes de enfrentamentos de pontos de vista. A começar pelos
meios alternativos de comunicação, impressos, eletrônicos ou virtuais, que se
contrapõem aos modelos e crivos midiáticos. Eles procuram disseminar ideias
que contribuam para a elevação da consciência social, o exercício da crítica e a
intensificação do debate sobre possibilidades de transformação do mundo
vivido. De igual maneira, é essencial a reivindicação de políticas públicas que
possam coibir monopólios e oligopólios e conter a obsessão comercial das
indústrias culturais, ao mesmo tempo estimulando a produção audiovisual
independente, as mídias comunitárias e a organização cooperativa em redes e
coletivos de comunicação, bem como assegurando o controle social
democrático sobre empresas concessionárias de licenças de rádio e televisão.

Em qualquer dos cenários, não podemos alimentar falsas ilusões no


enfrentamento do poderio midiático. Seria grave erro subestimar a
agressividade ideológica, a penetração social e a eficiência mercadológica das
organizações de mídia. Trata-se, isto sim, de conceber estratégias criativas e
consistentes de difusão e pressão, que se traduzam na ocupação de espaços
táticos na sociedade civil por meios alternativos, bem como no interior das
corporações. O objetivo primordial é desenvolver dinâmicas informativas que
reverberem visões de mundo comprometidas com a efetiva liberdade de
expressão, o pluralismo e os direitos da cidadania. Essa ação ideológico-
cultural precisa inserir-se no plano geral de lutas sistemáticas para debilitar as
estruturas da dominação exercida pelas classes dominantes e alcançar,
progressivamente, novas condições concretas de hegemonia que priorizem a
justiça social e a diversidade.

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Dênis de Moraes é professor da UFF. Este texto é parte do ensaio “Imaginário


social, hegemonia cultural e comunicação”, incluído no seu novo livro, A
batalha da mídia. Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2009.

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Referências bibliográficas

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente e outras falas.


São Paulo: Moderna, 1982.

FONTES, Virginia. “Intelectuais e mídia — quem dita a pauta?”. In:


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----------. Cartas do cárcere (v. 2: 1931-1937). Org. de Luiz Sérgio Henriques.


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----------. Escritos políticos. Org. de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro:


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SARTRE, Jean-Paul. Em defesa dos intelectuais. São Paulo: Ática, 1994.

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

Disponível em: https://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1079

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