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SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL 
NO BRASIL E NA ARGENTINA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

Maria da Gloria Bonelli  
Martha Diaz Villegas de Landa 
(Orgs.) 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

SOCIOLOGIA E MUDANÇA SOCIAL 
NO BRASIL E NA ARGENTINA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 


Copyright © dos autores 
 
Todos  os  direitos  garantidos.  Qualquer  parte  desta  obra  pode  ser  reproduzida, 
transmitida ou arquivada desde que levados em conta os direitos dos autores. 
 
 
 
Maria da Gloria Bonelli & Martha Diaz Villegas de Landa [Orgs.) 
 
Sociologia  e  mudança  social  no  Brasil  e  na  Argentina.  São  Carlos: 
Compacta Gráfica e Editora, 2013. 340p. 
 
ISBN 978‐85‐88533‐74‐5 
 
1. Sociologia. 2. Mudança Social. 3. Mudança Social no Brasil. 4. Mudança 
Social na Argentina. I. Título.  
CDD – 300 e 320 
 
Capa: Marcos Antonio Bessa‐Oliveira 
Editor: José Marino  
 
Tradução do espanhol de Beatriz Medeiros de Melo e Deise Mugnaro. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

 
Compacta Gráfica e Editora  
São Carlos – SP 
2013


SUMÁRIO 
 
 
Apresentação   7 
 Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa   
   
Parte I   
   
Raça, identidade e contingência: esboço para uma reflexão das  19 
experiências latino‐americanas   
Maximiliano Gaviglio   
Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas  33 
preliminares sobre a experiência contemporânea brasileira   
Valter Roberto Silvério   
O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil  61 
André Ricardo de Souza, María Candelaria Sgró Ruata e Maximiliano   
Campana   
Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi  89 
María Inés Landa, Jorge Leite Jr. e Andrea Torrano   
   
Parte II   
   
Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes  135 
demandas de reconhecimento no Brasil e na Argentina    
Richard Miskolci e Maximiliano Campana   
A construção de identidades homossexuais na advocacia  161 
paulista: uma abordagem sociológica de profissionalismo e   
diferença   
Dafne Araújo e Maria da Gloria Bonelli   
As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e  185 
Brasil   
Camila de Pieri Benedito e Maria Eugenia Gastiazoro   
Participação popular e legitimidade judicial: sobre o julgamento  215 
por júri   
María Inés Bergoglio   
   


Parte III   
   
Políticas urbanas e habitacionais e seus efeitos sociais.   241 
Um estudo do Programa “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e   
na Argentina   
María Alejandra Ciuffolini e Lúcia Zanin Shimbo   
A tradução contemporânea das demandas populares   271 
(ou do conflito que emerge do universo popular) nos espaços   
públicos: o caso do Córdoba, Argentina   
Gerardo Avalle    
Territórios e populações marginais em tempo de  295 
desenvolvimento: modos de gestão do conflito social no Brasil   
contemporâneo   
Gabriel de Santis Feltran   
Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambiente  315 
Rodrigo Constante Martins 
 
 
 
 
 
 
 
 


 
Apresentação 
 
 
 
Este  livro  resulta  da  cooperação  internacional  promovida  pela 
CAPES  (Coordenação  de  Aperfeiçoamento  de  Pessoal  de  Ensino 
Superior)  e  pela  CONEAU  (Comisión  Nacional  de  Evaluatión  y 
Acreditación  Universitária),  da  Argentina,  denominada  Centros 
Associados para o Fortalecimento da Pós‐Graduação, entre o Programa 
de  Pós‐Graduação  em  Sociologia,  da  Universidade  Federal  de  São 
Carlos  e  a  Maestria  em  Sociología,  da  Universidad  Nacional  de 
Córdoba. Várias missões de trabalho e de estudo foram realizadas entre 
2011‐2014  possibilitando  o  desenvolvimento  de  análises  comparadas  e 
da consolidação de grupos de pesquisa com participação de docentes e 
discentes brasileiros e argentinos. 
Essas interlocuções se materializam nos capítulos deste volume, 
que  abordam  sociologicamente  as  mudanças  sociais  no  Brasil  e  na 
Argentina  contemporâneos.  São  doze  trabalhos  organizados  em  três 
unidades.  A  primeira  delas  “Cultura,  diferença  e  desigualdade”  reúne 
análises sobre as ressignificações do conceito de raça no contexto latino‐
americano;  sobre  a  biopolítica  da  monstruosidade  e  de  corpos  que 
fogem da norma; e sobre o ativismo cristão na Argentina e no Brasil. 
A segunda unidade aglutina estudos que abordam as profissões 
jurídicas,  seja  sobre  o  impacto  dessa  formação  na  atuação  dos 
advogados  e  do  reconhecimento  à  diferença,  seja  sobre  a  participação 
das mulheres e da diversidade sexual nas carreiras jurídicas, seja sobre 
o sistema de jurado na Argentina, que introduz a participação popular 
visando a democratização do funcionamento da justiça.  
A  terceira  parte  focaliza  os  temas  de  políticas  públicas, 
conflitualidade,  desigualdade  social  e  apropriação  mercantilizada  de 
recursos naturais e sociais. A partir das particularidades desta temática, 
os capítulos agrupados nesta parte se caracterizam por compreender a 
problemática  que  a  envolve  enquanto  externalidades  da  lógica 
capitalista,  que  se  revela  nos  diferentes  processos  de  produção  e 
reprodução social que têm lugar tanto na Argentina e no Brasil. Discute‐


se,  desse  modo,  as  políticas  de  habitação  popular  no  Brasil  e  na 
Argentina,  as  narrativas  sobre  a  questão  ambiental  e  os  problemas 
relativos  ao  uso  e  acesso  à  agua,  o  controle  do  espaço  público  e  os 
conflitos  sociais  por  territórios  e  espaços  urbanos  e  como tais  questões 
expressam dinâmicas de inclusão/exclusão, segmentações socioespaciais 
e racionalizações próprias da, e compatíveis com a, lógica do mercado. 
Abrindo  a  primeira  unidade  Maximiliano  Gaviglio  apresenta  a 
discussão sobre o conceito de raça e o uso do termo na Argentina, com o 
intuito  de  destacar  a  complexidade  semântica  que  este  adquire  no 
contexto latino‐americano, enfatizando não só o que há de comum, mas 
principalmente as especificidades das representações locais e regionais. 
Indo  mais  além  das  polêmicas  em  torno  dos  significados  usuais  e 
acadêmicos da palavra raça, e das classificações de corpos e sujeitos que 
ela  produz,  o  autor  soma‐se  às  abordagens  que  criticam  a 
fundamentação  genética  e  essencialista  da  ideia  de  raça.  Ele  entende o 
conceito como “uma construção social historicamente contingente cujo uso 
deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas 
que,  desde  o  terreno  do  imaginário  e  o  simbólico,  aludem  a  processos 
mais amplos de construção de identidades sociais” (p. 24). 
Gaviglio destaca que embora as representações sobre o cadinho 
de  raças,  o  crisol  de  raças,  a  fábula  das  três  raças  nos  contextos 
argentino  e  brasileiro  pareçam  semelhantes,  tais  fenômenos  não  são 
idênticos e precisam ser interpretados à luz de suas diferenças, já que tal 
percepção  resulta  de  discursos  hegemônicos  de  produção  de 
identidades nacionais. 
  No segundo capítulo Valter Roberto Silvério detém‐se no debate 
sobre  racialização  com  o  objetivo  de  vinculá‐lo  às  mudanças  operadas 
na  forma  como  a  sociedade  brasileira  se  auto‐representa.  Da 
representação  hegemônica  que  assimilava  as  raças  pela  democracia 
racial,  a  identificação  no  Brasil  comportaria  agora  a  diferença  étnico‐
racial.  No  argumento  do  autor,  esse  fenômeno  é  “decorrente  do 
processo de luta política pela (res) significação / deslocamento do lugar 
do ser negro no processo de racialização de sua experiência coletiva” (p. 
49).  
Na fundamentação de um conceito que se contraponha ao reino 
biológico, Silvério apóia‐se na construção teórica de Winant (1996) sobre 


a formação racial, enfatizando três determinações sociais no conceito de 
raça:  a  dimensão  política,  a  global  comparativa  e  a  histórico‐temporal. 
Com esta abordagem, mostra como o movimento negro atuou para que 
a  visão  do  Brasil  como  uma  comunidade  imaginada  homogeneamente 
desse  lugar  a  uma  comunidade  que  se  imagina  diversa  culturalmente. 
Assim,  analisa  as  políticas  públicas  de  igualdade  racial,  de  educação 
étnico‐racial, de relações globais sul ‐ sul e da política externa brasileira 
com a diáspora africana. 
No terceiro capítulo, André Ricardo de Souza, María Candelária 
Sgró  Ruata  e  Maximiliano  Campana  contrastam  a  conformação  do 
campo religioso no Brasil e na Argentina, analisando o ativismo político 
cristão.  O  catolicismo  tem  peso  demográfico  e  jurídico  maior  na 
Argentina, com 76,5%, preservando vínculos com o Estado, enquanto o 
protestantismo  fica  na  casa  dos  9%.  No  Brasil,  o  catolicismo  segue 
retraindo  sua  porcentagem  na  população,  com  64,6%  enquanto  os 
evangélicos crescem em ritmo acelerado representando 22,2%.  
Os  autores  observam  que  “em  ambos  os  países  os  segmentos 
católicos  e  evangélicos  se  posicionam  no  espaço  público,  mediante 
manifestações  organizadas  e  militância  político‐partidária  tanto  na 
defesa  de  seus  interesses  como  de  seus  valores  doutrinários”  (p.  64). 
Eles  demonstram  como  as  questões  de  moral  sexual  estão  atualmente 
na  essência  da  mobilização  do  ativismo  cristão,  de  católicos  e 
evangélicos.  
No  quarto  capítulo,  Maria  Inés  Landa,  Jorge  Leite  Jr.  e  Andrea 
Torrano  tratam  da  biopolítica  da  monstruosidade  sobre  os  corpos  que 
se  distanciam  da  normatividade,  como  aqueles  classificados  de 
obesidade  epidêmica,  na  perspectiva  biomédica,  ou  os  zumbis,  na 
ficção.  O  texto  detalha  como  cada  época  engendra  seus  monstros, 
fenômeno que fala sobre as irregularidades imagináveis, expressando as 
transgressões  da  fronteira  do  propriamente  humano.  Os  autores 
querem destacar como a análise do corpo obeso e do zumbi contrastam 
com os discursos tradicionais sobre a monstruosidade, que convertiam 
o monstro em alteridade absoluta do humano. Esse monstro atual é um 
“interior externalizado” do humano, que está en(tre) nós.  
 


“O  obeso  e  o  zumbi  seriam  manifestações  de  corpos  que  perdem  sua 
forma  humana,  no  primeiro  caso,  por  descuido,  no  segundo,  por 
decomposição; o obeso encarna a enfermidade do corpo constituindo‐se 
em um perigo contra os princípios sanitário‐empresariais, enquanto que 
o  zumbi  perde  toda  possibilidade  de  redenção,  seu  corpo  evoca  um 
estigma do corpo corrompido e corruptor” (p. 95).  
 
A  obesidade  epidêmica  indicaria  a  monstruosidade  do  corpo 
humano  e  o  zumbi  representaria  a  humanidade  do  monstro,  corpo 
humano  em  decomposição  borrando  as  fronteiras  entre  o  humano  e  o 
monstruoso. 
O  quinto  capítulo,  que  abre  a  segunda  parte  do  livro,  é  de 
autoria  de  Richard  Miskolci  e  Maximiliano  Campana.  Eles  analisam  o 
impacto  da  formação  tradicional  em  Direito  sobre  os  litígios  voltados 
para  impulsionar  mudanças  sociais,  como  a  agenda  contemporânea 
pelo  reconhecimento  à  diferença.    O  argumento  dos  autores  é  que  as 
práticas que buscam nos tribunais a ampliação de direitos difusos e de 
equidade  para  minorias  encontram  barreiras  nos  próprios  valores 
partilhados  na  socialização  profissional  jurídica,  que  se  inicia  no  curso 
superior.    Assim,  analisam  como  as  motivações  por  um  ideal  social  e 
humanitário  de  justiça  que  impulsionam  algumas  das  escolhas 
estudantis pela formação em Direito vão, ao longo da faculdade, dando 
lugar  a  uma  concepção  formal  e  instrumental  de  justiça,  baseada  no 
ideário da neutralidade que predomina no profissionalismo.  
Neste sentido, destacam a distância entre a atuação e os valores 
da  base  do  grupo  profissional  da  advocacia  com  as  decisões  dos 
tribunais  superiores,  que  têm  impulsionado  alguns  dos  direitos  que 
reconhecem  diferenças,  como  o  do  casamento  homossexual  na 
Argentina  e  o  princípio  constitucional  que  valida  a  ação  afirmativa  na 
modalidade cota no Brasil. 
Apontando  as  possibilidades  de  transformação  da  formação 
acadêmica,  voltando‐se  a  uma  perspectiva  educacional  dialógica  e 
reflexiva,  Miskolci  e  Campana  abordam  como  o  reconhecimento  à 
diferença  amplia  essa  mudança  superando  as  limitações  que 
consideram persistir na concepção da diversidade.   
 

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“Distinguir  entre  diferença  e  diversidade  exige  abandonar  uma 
concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela 
para  uma  concepção  horizontalizada  de  relações  em  que  se  afasta  o 
conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença 
é  algo  incomensurável,  mas  potencialmente  mais  democrático  e 
promissor.  Uma  perspectiva  informada  pelas  diferenças  pode 
questionar  e  até  modificar  hierarquias,  colocar  em  diálogo  os 
subalternizados com o hegemônico de forma, quiçá, a mudar a ordem 
que mantém e reproduz desigualdades” (p. 155‐156). 
 
No  sexto  capítulo,  Dafne  Araújo  e  Maria  da  Gloria  Bonelli 
analisam  as  continuidades  e  as  mudanças  que  vêm  ocorrendo  na 
advocacia  paulista,  no  que  diz  respeito  ao  profissionalismo  e  à 
diferença.  Focalizando  a  diversidade  sexual,  abordam  situações  de 
trabalho  nas  quais  as  intersecções  entre  a  identidade  profissional,  de 
gênero  e  sexual  se  entrecruzam  de  formas  distintas.  Contrastam  as 
experiências  de  atuação  jurídica  no  Grupo  de  Advogados  pela 
Diversidade Sexual com a de advogados gays que exercem a advocacia 
em escritórios e sociedades de advogados. No primeiro caso, observam 
como  a  identidade  homoafetiva  cruza  a  profissionalização,  resultando 
em redirecionamento para prática na especialidade dos direitos LGBT.  
Segundo elas:  
 
“A  força  da  identificação  sexual  configura  o  caminho  profissional, 
mostrando  uma  interseção  na  qual  se  busca  reconhecimento  para  o 
valor de sua expertise, rejeitando a desqualificação de seu saber com a 
reconversão de seu capital jurídico para a atuação na especialidade dos 
direitos homoafetivos” (p. 182). 
 
No  segundo  caso,  registram  como  os  advogados  gays  que  não 
fazem  essa  reconversão,  atuando  nos  escritórios  que  lidam  com  as 
demais  especialidades  jurídicas,  sentem  o  estigma  e  as  pressões  dos 
pares para manterem a sexualidade invisível.   
 
“Os  profissionais  gays,  envolvidos  ou  não  em  lutas  contra  a 
discriminação sexual apagam as marcas dessa diferença ao agirem em 
sintonia com esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida 
profissional  e  a  intimidade,  mantendo  no  armário  sua 

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homossexualidade.  Nestes  casos,  a  intersecção  entre  identidades  fica 
sujeita  ao  predomínio  do  status  profissional  perante  o  estigma  da 
diferença sexual” (p. 182). 
 
No sétimo capítulo, Benedito e Gastiazoro realizam uma análise 
comparada  da  inserção  profissional  de  mulheres  na  magistratura 
brasileira e argentina, e das percepções sobre gênero nessas carreiras do 
Judiciário.  Elas partem de abordagens teóricas distintas, mas chegam a 
conclusões  que  dialogam  entre  si,  com  semelhanças  na  estratificação 
marcada  pelo  gênero.  No  caso  de  Córdoba,  embora  a  segregação 
horizontal tenha diminuído em relação ao passado recente, ainda existe 
alguma diferença nessa distribuição com maior participação de homens 
na  área  penal,  o  que  diminui  na  área  civil  e  comercial.  Nas 
magistraturas  estadual  e  federal  paulistas  não  foram  observadas 
segmentação  de  gênero,  com  juízes  e  juízas  atuando  na  justiça  civil  e 
criminal.  A  justiça  do  trabalho  que  é  mais  feminina,  não  foi  analisada 
nessa pesquisa.  
Quanto  à  segregação  vertical,  observou‐se  forte  estratificação 
por  gênero  no  judiciário  estadual  paulista,  mas  bem  menos  acentuada 
no judiciário federal de São Paulo. A explicação dada por elas é o maior 
insulamento da carreira decorrente da consolidação do profissionalismo 
antes  do  ingresso  feminino  na  magistratura  estadual,  o  que  não  se 
passou  na  justiça  federal.  Assim,  o  fechamento  generificado  teria  sido 
maior no Tribunal de Justiça de São Paulo, do que no Tribunal Regional 
Federal. Na Argentina, a segregação vertical foi observada em todos os 
foros. 
As  autoras  chegam  à  seguinte  conclusão  sobre  a  relação  entre 
profissionalismo e gênero:  
 
“A  implementação  de  sistemas  meritocráticos  pode  ter  efeito  positivo 
para  a redução  das desigualdades  de gênero,  porém  tais  sistemas são 
mais  exigentes  com  as  mulheres,  inseridas  numa  sociedade  na  qual 
persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz com que as diferenças 
de  gênero  se  estanquem  no  interior  de  uma  profissão  na  qual  a 
proporção de graduadas é cada vez maior” (p. 211). 
 

12
 
O oitavo e último capítulo da segunda unidade é um estudo de 
Maria  Inés  Bergoglio  sobre  a  implantação  do  sistema  de  júri  na 
Argentina, com objetivo de ampliar a participação popular na justiça e a 
legitimidade judicial. A pergunta que a autora se coloca é se o objetivo 
de aumentar o reconhecimento popular de um judiciário marcado pela 
baixa  confiança  da  população  na  justiça,  foi  alcançado  com  os 
‘Julgamentos por júri’. Para tanto, ela pesquisa a participação leiga em 
tribunais  mistos,  que  foram  criados  em  Córdoba,  a  partir  de  2005,  na 
esfera  penal,  combinando  a  atuação  profissional  com  a  dos  jurados.  
Para  tanto,  ela  compara  pesquisas  de  opinião  pública  realizadas  entre 
1993 e 2011, analisando as mudanças de atitude em relação aos juízes e 
aos jurados.  
Em síntese, Bergoglio conclui que: 
 
“Embora  já  exista  evidência  de  que  aqueles  que  têm  atuado  como 
jurados  melhoram  sua  opinião  sobre  o  funcionamento  da  justiça,  por 
enquanto o caráter limitado da experiência cordobesa sugere que seus 
efeitos  sobre  a  legitimidade  judicial  na  cidadania  geral  podem  ser 
muito fracos ainda.” (p. 215). 
 
A  terceira  parte  do  livro  começa  com  uma  análise  comparativa 
das políticas de habitação social implementadas na cidade de Córdoba‐
Argentina  e  várias  áreas  urbanas  do  Brasil,  no  âmbito  do  programa 
ʺMinha  Casa,  Minha  Vidaʺ,  de  caráter  estadual  no  primeiro  caso,  e  de 
âmbito  nacional  no  segundo.  As  autoras  Maria  Alejandra  Ciuffolini  e 
Lúcia Zanin Shimbo esclarecem que, embora os respectivos programas 
tenham a mesma denominação em ambos os países, eles diferem no que 
respeita  aos  beneficiários  aos  quais  os  programas  se  dirigem,  aos 
mecanismos  de  implementação  e  à  extensão  territorial  de  aplicação.  O 
Programa  “Minha  Casa,  Minha  Vida”  foi  lançado  em  2009  no  Brasil, 
quase  uma  década  depois  do  programa  homônimo  implementado  em 
Córdoba.  O  propósito  das  duas  autoras  é  caracterizar  tais  programas, 
destacando  semelhanças  e  diferenças  e,  sobretudo,  reconhecer  o 
impacto dessas políticas nas relações sociais e processos de subjetivação 
a que dão lugar. Este dado, já observado no caso argentino, por tratar‐se 
de um programa mais antigo, poderá replicar em um futuro próximo no 
Brasil – em função da própria lógica do programa brasileiro. 

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O  texto  do  capítulo  nono  está  dividido  em  duas  seções:  a 
primeira sobre o caso de Córdoba‐Argentina, e, a segunda, sobre o caso 
brasileiro. Ambas as seções dedicam sua primeira parte à descrição das 
políticas  habitacionais  que  incorporam  os  programas  estudados, 
enquanto que a segunda parte se ocupa da análise crítica do produto de 
tais políticas e de seu impacto urbano e social. 
A conclusão mais geral que as autoras destacam para cada caso 
se resume nos seguintes parágrafos: 
 
(Programa  Córdoba‐Argentina)  “...  favorece  um  tratamento  ágil  e 
focalizado  dos  problemas,  em  detrimento  de  uma  ação  integral  que 
ofereça soluções ao complexo fenômeno da pobreza. Assim, o PMCMV 
atende prontamente a questão da falta de moradia, mas reproduz, em 
seu  desenho,  as  formas  de  exclusão  a  ela  associadas.  Nesse  sentido, 
vale  destacar  a  intensificação  da  segregação  espacial.  Isso  ocorre 
porque  o  programa  opera  um  deslocamento  geográfico  dos  pobres 
para  as  margens  da  cidade,  agravando  outras  situações  de  exclusão, 
como  as  de  emprego,  de  acesso  a  serviços  básicos,  como  saúde  e/ou 
transporte,  etc.  Consequentemente,  criam‐se  novos  ou  reforçam‐se 
velhos padrões de desigualdade e de acesso e uso da cidade (p. 249). 
 
(Programa‐Brasil)  “...  não  procura  constituir  propriamente  uma 
política  de  habitação,  que  estaria  centrada  numa  lógica  universal  dos 
direitos e que pautariam o conteúdo normativo da política pública (...). 
Trata‐se,  genericamente,  de  “um  programa  de  crédito  tanto  ao 
consumidor  quanto  ao  produtor”,  (...).  Portanto,  os  parâmetros 
financeiros e a solvabilidade do sistema importam muito mais do que o 
conteúdo universalizante da política e a articulação com a produção da 
cidade  ‐  que  requisitaria  uma  abordagem  integrada  entre  política 
habitacional,  política  urbana,  política  fundiária  e  política  social.”  (p. 
261‐262). 
 
Gerardo  Avalle  introduz  o  décimo  capítulo  “A  tradução 
contemporânea das demandas populares (ou do conflito que emerge do 
universo popular) nos espaços públicos: o caso do Córdoba, Argentina”, 
sugerindo  que  essas  expressões  denunciam  o  pano  de  fundo  de 
inclusão/exclusão  que  se  manifesta  em  cada  sociedade,  bem  como 

14
 
evidenciam  as  tensões  que  se  escondem  nas  formas  em  que  as 
demandas são processadas pelos dispositivos governamentais. 
Através  do  percurso  histórico‐político  dos  últimos  20  anos,  de 
processos de demandas populares por emprego, alimentação e moradia 
na  Argentina  e  particularmente  em  Córdoba,  recuperado  a  partir  do 
relato  de  atores  dos  setores  populares,  Avalle  pretende  testemunhar  a 
afirmação de que ʺA gramática popular adverte sobre o avesso de uma 
política  de  (des)igualdade  (p.  272)ʺ.  Em  outros  termos,  e  utilizando 
novamente  as  palavras  do  autor,  ʺa  inscrição  dos  sujeitos  nos  espaços 
públicos  e  as  demandas  por  maior  igualdade  enfrentam‐se  com  um 
risco  permanente  de  desativação  política  e  inclusão  degradada  na 
linguagem da cidadaniaʺ. (p. 272) 
O capítulo está organizado em três seções. A primeira reconstrói, 
a  partir  da  percepção  dos  setores  populares,  a  dinâmica  política 
argentina  que,  impulsionada  pelo  projeto  neoliberal,  atravessa  os  anos 
90  para  desembocar  na  crise  de  2001.  E  se  debruça,  particularmente, 
sobre  o  projeto  político  emergente  a  partir  de  2003.  A  segunda  seção 
aponta para o surgimento de novos atores coletivos como consequência 
da  crise  de  2001.  Por  fim,  analisa  a  ação  do  Estado  e  das  organizações 
populares, focalizando seus desdobramentos na província de Córdoba. 
O  autor  conclui,  fundamentalmente,  que,  tomadas  as  políticas 
públicas a partir da perspectiva dos setores populares, uma dentre suas 
consequências,  independentemente  do  objetivo  que  tais  políticas 
perseguem, é a desativação da mobilização e iniciativa popular, já que 
estas  representam  um  risco,  uma  ameaça  ao  controle  que  o  governo 
busca exercer sobre essas populações. Empreende‐se, a partir do Estado, 
uma nova técnica de gestão, mais estável, mas que não necessariamente 
oferece maiores garantias de direitos. 
 
“O  cenário  que  se  apresenta,  então,  é  de  uma  dupla  aprendizagem, 
onde o Estado toma as lutas e a organização popular como doutrinas, e 
aquelas fazem de sua prática e da relação com o Estado uma caixa de 
ferramentas  e  um  estado  de  coisas  que  estabelece  permanentemente 
novos  pontos  de  partida  e  instâncias  de  demandas  (...)  que  permitem 
(...), escapar à desativação (...) ʺ(p. 291). 
 

15
 
O  décimo  primeiro  capítulo,  de  autoria  de  Gabriel  de  Santis 
Feltran,  discute  a  relação  paradoxal  entre  conflitividade  social  e  as 
transformações  sociais  e  econômicas  induzidas  pelo  significativo 
desenvolvimento econômico ocorrido nas últimas décadas no Brasil. O 
objetivo  deste  ensaio  é  revelar  questões  analíticas,  teóricas, 
metodológicas  e  políticas  implicadas  na  gestão  e  compreensão 
contemporânea  da  existência  e  das  práticas  das  populações  marginais 
no Brasil urbano. O autor realiza tal discussão partindo de observações 
etnográficas de grupos  urbanos composto por: i) adolescentes e jovens 
inscritos em atividades criminosas, moradores de bairros das periferias 
urbanas; ii) moradores de rua; iii) prostitutas localizadas nas cidades de 
São Paulo e Rio de Janeiro. 
As constatações tomadas de investigações já concluídas, que são 
a  base  do  ensaio  “Territórios  e  populações  “marginais”  em  tempos  de 
desenvolvimento”, e a revisão bibliográfica que as informam, orientam 
a  revisão  crítica  dos  três  eixos  tomados  pelo  estudo,  bem  como  a 
observação  e  a  formulação  de  políticas  públicas  relacionadas  à 
marginalidade. 
Um  primeiro  eixo,  de  caráter  teórico‐metodológico,  gira  em 
torno do sentido atribuído às noções de marginalidade, e sua associação 
com  termos  tais  como  a  pobreza,  desordem,  incivilidade,  imoralidade, 
violência, marginalidade, criminalidade. 
Uma  segunda  questão  “...  é  aquela  que  percebe  as  dinâmicas 
sociais  e  políticas  dos  setores  populares  a  partir  da  mudança,  da 
transformação, registrada empiricamente pelos mais variados métodos – 
das pesquisas por questionário ao georreferenciamento, das buscas por 
trajetórias  individuais  às  que  procuram  captar  transformações 
estruturais no Estado ou na economia” (p. 305‐306).  
Por fim, o ensaio problematiza a contradição que gera a própria 
presença  do  Estado  nos  territórios  marginais,  a  qual  contribui  para  a 
construção  de  uma  série  de  bipolaridades  sociais  a  partir  das  quais  se 
reforçam a exclusão, o mascaramento e a reconfiguração da pluralidade 
que se expressa nos territórios marginais. 
Encerra  o  conteúdo  da  terceira  parte  o  trabalho  “Por  uma 
sociologia das narrativas sobre o meio ambienteʺ, de Rodrigo Constante 
Martins.  O  capítulo  analisa  as  narrativas  hegemônicas  acerca  do  uso  e 

16
 
acesso  aos  recursos  hídricos,  num  contexto  de  narrativas  em  disputa 
sobre  a  explicação  e  as  consequências  da  atual  crise  ambiental.  O 
crescente interesse pela difusão e aplicação de instrumentos econômicos 
de  gestão  ambiental  é  uma  preocupação  emergente,  nacional  e 
internacional,  por  implementar  estratégias  eficazes  para  regular  o 
consumo social da água. 
O  propósito  do  capítulo  é  interpretar  criticamente  a  narrativa 
que subjaz e sustenta a confiança nas regulações e disposições contidas 
nos  instrumentos  econômicos  de  gestão  ambiental.  Na  primeira  parte 
do  texto  são  descritas  experiências  nacionais  de  gestão  da  água,  em 
particular a brasileira. Na segunda, se discute os pressupostos teóricos 
que justificam as narrativas produzidas pelos especialistas da economia 
da água. Aprofundando os aspectos críticos da narrativa hegemônica de 
regulação  do  uso  e  do  acesso  à  água,  baseada  nos  princípios  de  uma 
economia  política  fundada  no  neoclassicismo  marginalista,  o  autor 
atenta, nas últimas duas partes do capítulo, para as noções de ʺofertaʺ, 
ʺescassezʺ e ʺgestãoʺ do recurso. 
Martins  conclui  sua  análise  destacando  que  um  dos  pontos 
cruciais  no  tocante  às  orientações  que  adotam  atualmente  a  gestão  da 
água é que “... há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada 
no código de recursos socialmente desejáveis” (p. 335)., e o fato de que a 
água, como recurso natural, é também um recurso simbólico no qual se 
condensam  diversos  sentidos  –  extrapolando  sua  redução  excludente 
enquanto  bem  econômico  –  que  variam  de  acordo  com  diferentes 
grupos e sociedades. 
Os  doze  trabalhos  que  compõem  este  livro  mostram  como  os 
diálogos entre o Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da UFSCar 
e  a  Maestria  en  Sociología  da  Universidad  Nacional  de  Córdoba 
caminham na trilha do mútuo reconhecimento, para a consolidação da 
produção acadêmica latino‐americana e das relações institucionais sul – 
sul,  o  que  no  caso  da  Sociologia  representa  a  pluralização  do  modelo 
hegemônico da internacionalização norte‐sul.  
Outros  colegas  em  São  Carlos  e  em  Córdoba  participam  do 
programa  “Centros  Associados  para  o  Fortalecimento  da  Pós‐
Graduação”,  colaborando  para  o  avanço  do  conhecimento  sociológico 
comparado  sobre  a  mudança  social  no  Brasil  e  na  Argentina,  mas  não 

17
 
puderam  participar  deste  volume.  Agradecemos  a  eles  e  a  elas  as 
oportunidades  de  interlocução  em  outras  atividades,  como  as  missões 
de  trabalho  e  estudo  que  resultaram  em  uma  compreensão  mais 
aprofundada das semelhanças e das especificidades regionais e locais.   
Registramos  nossos  agradecimentos  ao  acolhimento  das 
coordenadoras  do  PPGS  e  da  Maestria  en  Sociología,  bem  como  ao 
apoio  das  secretarias  dessas  unidades  para  que  as  missões  se 
viabilizassem.  Institucionalmente,  a  cooperação  da  Universidade 
Federal de São Carlos e da Universidad Nacional de Córdoba tornaram 
viável a realização do projeto, que só pode ser executado devido a essa 
recepção positiva. Contamos também com a pronta atenção dos técnicos 
da  CAPES  e  da  CONEAU  no  atendimento  das  várias  solicitações, 
inclusive  aquelas  que  viabilizaram  a  organização  deste  livro. 
Finalmente,  agradecemos  aos  colegas  que  contribuíram  com  suas 
pesquisas e análises para dar vida a este volume, e aos profissionais que 
nos ajudaram com os trabalhos de tradução, revisão, e edição.    
 
 
  Maria da Gloria Bonelli e Martha Diaz Villegas de Landa 
  Coordenadoras do CAFP e organizadoras do livro 
 
 
 
           

18
 
PARTE I 
 
 
Raça, identidade e contingência:  
esboço para uma reflexão das experiências latino‐americanas 
 
Maximiliano Gaviglio1 
 
 
ʺos  animais  são  divididos  em  a]  pertencentes  ao 
imperador,  b]  embalsamados,  c]  treinados,  d]  leitões,  e] 
sereias,  f]  fabulosos  g]  cães  vadios,  h]  incluídos  nesta 
classificação, i] que se agitam como loucos, j] inumeráveis, 
k]  desenhados  com  um  pincel  muito  fino  de  pêlo  de 
camelo, l] etcétera ʺ, m] que acabaram de quebrar o jarro, 
n]  que  de  longe  se  parecem  com  moscas”.  Jorge  Luis 
Borges.  ʺEl  idioma  analítico  de  John  Wilkinsʺ,  Otras 
inquisiciones, 1960. 
 
No prefácio de ʺAs palavras e as coisasʺ Michel Foucault (1995) 
admite que foi essa inverossímil e inquietante taxonomia que o inspirou 
a  refletir  sobre  as  possibilidades  do  conhecimento  humano.  Para  além 
da simpatia que provoca o absurdo (e sem pretender cair nos excessos 
de  um  esteta),  esta  referência  nos  resulta  verdadeiramente  útil  para 
iniciar uma reflexão sobre o tema que nos ocupamos: a categoria ʺraçaʺ 
como  uma  forma  de  classificação  (de  corpos  e  sujeitos)  e  suas 
representações na América Latina. 
 
1. Introdução 
 
Se  tivéssemos  que  começar  com  uma  pergunta,  o  mais  sensato 
seria  questionar‐nos  a  respeito  do  que  falamos  quando  falamos  de 
                                                            
1  Licenciado em Comunicação Social (Escola de Ciências da Informação – Universidade 
Nacional  de  Córdoba);  colaborador  vinculado  às  cadeiras  de  ʺComunicação  em 
Publicidade  e  Propagandaʺ  e  ʺWorkshop  de  Imagem  Institucionalʺ  do  curso  de 
Comunicação  Social  (ECI‐UNC).  Atualmente  está  finalizando  um  mestrado  em 
Sociologia no Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdoba.   

19
 
ʺraçaʺ?  E  estou  seguro  que,  se  a  pergunta  fosse  realizada  em  um 
auditório,  surgiria  um  sem‐número  de  acordos  e  desacordos  parciais 
(ou,  talvez,  totais).  Por  evocar  um  universo  de  significação  amplo,  o 
termo ʺraçaʺ nos surge como um termo problemático que pode suscitar 
um  sem‐número  de  leituras  possíveis  em  relação  direta  com  os 
contextos  em  que  ele  tem  lugar:  se  trata  de  uma  categoria  contingente 
que,  longe  de  ser  concebida  em  termos  essencialistas,  manifesta‐se  de 
modo distinto em discursos historicamente situados. 
Para  facilitar  o  desenvolvimento  de  meu  argumento,  abordarei 
alguns  dos  usos  do  termo,  a  fim  de  apresentar  de  maneira  breve  uma 
série de critérios e definições teóricas que nos permitem definir pautas 
(ou  nós  problemáticos)  a  partir  dos  quais  seja  possível  analisar  a 
complexidade semântica da ideia em questão em relação à experiência 
latino‐americana.  
Para começar, podemos tomar uma série de definições formalizadas, 
tais como as estabelecidas pela Real Academia Espanhola: 
Raça (“raza”): (Do lat. *radĭa, de radĭus). 
1. f. Casta ou qualidade de origem ou linhagem. 
2. f. Cada um dos grupos nos quais se subdividem algumas espécies 
biológicas  e  cujas  características  diferenciais  são  perpetuadas  por 
herança. 
3. f. Fenda, rachadura. 
4. f. Raio de luz que penetra por uma abertura. 
5. f. Rachadura que às vezes se forma na parte superior do capacete 
das cavalarias. 
6. f. Lista, em pano ou outra tela, em que o tecido está mais claro do 
que no resto. 
7. f. Qualidade de algumas coisas, em relação a certas características 
que as definem2. 
Um  dos  usos  ou  acepções  mais  comum  ou  ao  menos  mais 
reconhecida  ‐  a  definição  número  2  ‐  é  aquela  que  é  utilizada  pela 
biologia  para  designar  grupos  nos  quais  se  subdividem  algumas 
espécies  biológicas  a  partir  de  uma  série  de  características  que  são 
transmitidas  por  herança  genética.  Esta  maneira  de  conceber  a  “raça” 

                                                            
2  Real Academia Española, http://buscon.rae.es/draeI/. Acessado em: 17/02/13. 

20
 
teve, na esteira das discussões da antropologia física (que tentou definir 
os  critérios  de  conhecimento  do  social  a  partir  do  paradigma  das 
ciências  naturais),  uma  influência  notável  no  pensamento  social  do 
século XIX, dando lugar a um sistema de classificação por meio do qual 
se pretendeu ordenar e interpretar as diferenças visíveis ‐ fenotípicas e 
socioculturais ‐ da espécie humana. Como conceito analítico, essa ideia de 
ʺraçaʺ  passou  a  obscurecer  a  diversidade  cultural  (que  era  diluída, 
reduzida  ou,  diretamente,  ignorada)  em  detrimento  das  características 
biológicas  ‐  e  sobretudo  as  fenotípicas  ‐,  naturalizando  a  divisão  de 
grupos  sociais  diferenciados  sobre  a  base  de  critérios  frequentemente 
estigmatizantes  que  se  presumiam  como  condições  invariáveis  (como 
uma forma de sentença genética). 
Se  retomamos  a  ideia  de  contingência  histórica  e  identificamos  a 
ciência  como  uma  leitura  que  emerge  no  e  para  o  Ocidente,  podemos 
dizer  que  a  gênese  do  conceito  de  ʺraçaʺ,  enquanto  categoria 
socioanalítica,  foi  determinada  pelo  choque  (encontro/desencontro)  e 
relação  entre  o  ocidental  e  o  não‐ocidental  (como  transformação  ou 
cristalização da tensão que, durante os diferentes períodos de conquista, 
se  estabeleceu  entre  o  europeu  e  o  não‐europeu).  Neste  sentido, 
podemos definir uma interrogação ‐ Por que eles não são como nós? ‐ como 
forma  de  problematizar  a  diversidade  humana  enquanto  conflito  ou 
tensão entre a cultura ocidental e as culturas orientais, médio‐orientais, 
africanas e americanas (em toda a sua amplitude)3. 
Mas  o  termo  não  foi  gestado  exclusivamente  a  partir  do  campo 
científico,  a  problematização  da  diferença  e  da  diversidade  constitui 
uma  preocupação  que  vem  se  erguendo  durante  séculos.  No  Antigo 
Testamento  –  e  em  particular  no  livro  do  Gênesis  ‐,  por  exemplo,  é 
                                                            
3   Em  princípio,  esta  preocupação  teve  seu  desenvolvimento  acadêmico  mais  acabado 
nos denominados países ʺcentraisʺ da Europa (estendendo‐se, posteriormente, para os 
Estados Unidos). Ou seja, naqueles países onde a ciência social como tal se gestou e se 
consolidou,  originaram‐se  diferentes  tradições  teóricas  que,  à  luz  de  seus  próprios 
paradigmas, se posicionavam como lugar central ‐ isto é, como espaço preferencial e 
legítimo do debate acadêmico científico. Não obstante, à luz de situações posteriores ‐ 
como os processos de descolonização na África e Ásia, que tiveram lugar em meados 
do  século  XX  ‐,  a  inadequação  dos  esquemas  tradicionais  possibilitou  que  os 
progressos  acadêmicos  sofressem  um  descentramento  que  permitiu  o  posicionamento 
de estudos e investigações antes considerados periféricos (Slenes, 2010). 

21
 
atribuída aos três filhos de Noé ‐ Sem, Cam e Jafé – a descendência das 
raças branca, negra e amarela4. O conceito de raça, assim entendido, está 
vinculado  à  definição  número  1  ‐  ʺcasta  ou  qualidade  da  origem  ou 
linhagemʺ  ‐,  por  meio  da  qual  a  comunidade  dá  forma a  uma  série  de 
discursos  de  origem  que  permitem  afirmar  a  identidade  do  coletivo, 
assumindo  suas  raízes  comuns  e  suas  diferenças  em  relação  a  outras 
comunidades.  Mas  a  relação  quantidade/qualidade  também  se 
manifesta  de  maneira  explícita  na  definição  número  7  ‐  ʺqualidade  de 
algumas coisas, em relação a certas características que as definemʺ. Esta 
forma de identificar os atributos de raça de acordo com os critérios de 
valor  (qualidades  desejáveis  versus  qualidades  indesejáveis),  embora 
possa apelar ou não ao recurso de origem, nos permite definir a lógica 
de  diferenciação  tanto  como  lógica  de  hierarquização  social,  quanto 
como  uma  manifestação  discursiva  do  estado  de  luta  que  caracteriza 
uma  determinada  ordem  social  ‐  definida,  particularmente,  pela 
distribuição  de  agentes  posicionados  ao  redor  de  capitais  e  valores 
disputados e distribuídos de forma desigual. 
Com  base  nesta  discussão,  podemos  inferir  que,  para  além  dos 
significados  acadêmico‐científicos,  ʺraçaʺ  é  uma  ideia  cujo  uso 
generalizado carrega  uma série de  conotações ‐ e efeitos  de sentido  que 
tem  lugar  na  e  pela  experiência  objetiva  –  que  permitem  pensar  numa 
lógica  mais  ampla  através  da  qual,  a  partir  do  ideológico,  certos  grupos 
pensam a si e aos outros, ou seja: outrificam (Segato, 2007). Será, portanto, 
necessário  elucidar  o  significado  desta  categoria  em  relação  a  ordens  de 
representação  determinadas,  que  não  apenas  devem  pôr  em  causa  as 
condições que subjazem e dão suporte aos discursos vernáculos enquanto 
fundados na e para a prática5, mas que também deverão problematizar as 
categorias  socioanalíticas  construídas  no  interior  do  campo  científico, 
posto que nenhum esquema de classificação pode ser esvaziado das lutas 

                                                            
4  “E  tendo  Noé  quinhentos  anos,  gerou  a  Sem,  a  Cam  e  a  Jafet”,  Gênesis  5:32.  A 
denominação “semita” evoca a origem hebraica enquanto descendência de Sem. 
5 Por ʺcategorias da práticaʺ, na direção de Bourdieu, entendemos algo próximo ao que 

outros  têm  chamado  categorias  ʺnativasʺ,  ʺfolclóricasʺ  ou  ʺcorrentesʺ:  categorias  da 
experiência social cotidiana, desenvolvidas pelos agentes sociais, e que se diferenciam 
das categorias da experiência distante, utilizadas pelos analistas sociais (Brubaker & 
Cooper, 2001). 

22
 
materiais e simbólicas que tem lugar entre aqueles que compartilham um 
ou outro modo de classificação6. 
 

 
 
Figura  1.  Classificação  das  raças  utilizadas  no  Censo  dos  EUA  de  2010, 
anexado às ʺNormas para a classificação dos dados federais sobre raça e etniaʺ 
emitidas pela OMB7. 

                                                            
6  A frequente invocação da autoridade científica ‐ que permite construir uma ordem de 
representações  hegemônicas,  na  medida  em  que  tem  a  possibilidade  de  ser 
reconhecida como fonte de legitimidade – transforma em realidade e em razão o recorte 
arbitrário  que  pretende  impor  (Bourdieu,  2006,  p.  172).  O  ato  de  categorizar,  em 
relação  a  seus  efeitos  performativos,  quando  é  reconhecido  enquanto  autoridade 
passa a exercer poder por si mesmo e institui uma realidade: ʺo ato de magia social 
que  consiste  em  produzir  a  existência  da  coisa  nomeada,  em  fazê‐la  existir  no  ato 
mesmo da enunciaçãoʺ. 

23
 
2. Representação, experiência e história 
 
Temos  dito  que  uma  vez  rejeitada  a  ideia  de  ʺraçaʺ  em  sua 
fundamentação  genética  ou  essencialista,  o  conceito  passa  a  ser 
entendido  como  construção  social  historicamente  contingente,  cujo  uso 
deve ser concebido em relação a práticas discursivas e materiais concretas 
que,  a  partir  do  campo  do  imaginário  e  do  simbólico,  aludem  a 
processos  mais  amplos  de  construção  de  identidades  sociais.  Como 
categoria  histórica,  é  resultado  das  lutas  passadas  que  conjugam  no 
presente  trajetórias  e  situações  de  exclusão  prévias  que,  podendo 
atenuar‐se  ou  radicalizar‐se,  atualizam  a  luta  de  classes  em  discursos 
culturalmente enraizados. Nas palavras de Segato (2007, p.23.) 
 
“Raça  não  é  necessariamente  sinal  de  povo  constituído,  de  grupo 
étnico, de comunidade outra, mas um traço, como rastros no corpo da 
marcha  de  uma  história  outrificadora  que  construiu  ‘raça’  para 
construir ‘Europa’ como uma ideia epistêmica, econômica, tecnológica 
e jurídico‐moral, que distribui valor e significado em nosso mundo.” 
 
Por  discurso,  ao  modo  que  a  ele  se  refere  Ernesto  Laclau,  não 
devemos entender algo essencialmente restrito aos âmbitos da fala e da 
escrita, mas sim um complexo de elementos no qual as relações passam a 
assumir um papel constitutivo que, longe de reduzir os significantes ao 
campo da retórica superficial, definem os discursos como manifestação 
de uma racionalidade particular (Laclau, 2010). 
Enquanto  categoria  nativa,  ou  seja,  como  uma  categoria 
utilizada  pelos  sujeitos  e  cujo  significado  será  associado  a  seu  mundo 
prático e efetivo, se trata de um termo disposicional, que designa o que 
Brubaker e Cooper, evocando a idéia de ʺsentido práticoʺ de Bourdieu, 
chamam  de  uma  ʺsubjetividade  situadaʺ,  que  se  assume  como  auto‐
afirmação  ‐  cognitiva  e  emocional  ‐  do  sentido  de  quem  somente  é 
alguém  em  relação  à  própria  localização  social  (Brubaker  &  Cooper, 
                                                                                                                                                
7  Neste quadro pode‐se notar que a definição de raça ʺbrancaʺ não manifesta sinais de 
diversidade,  enquanto  que  as  raças  ʺnão‐brancasʺ  se  desdobram  em  oito  categorias 
diferentes.  Fonte:  [http://www.whitehouse.gov/omb/fedreg/1997standards.html 
ʺRevisions  to  the  Standards  for  the  Classification  of  Federal  Data  on  Race  and 
Ethnicityʺ. 

24
 
2001). Portanto, a noção de raça não apenas passa a ser entendida como 
uma  categoria  que  se  refere  ao  âmbito  do  que  é  dito,  mas  também  ao 
âmbito  do  vivido  como  experiência,  uma  vez  que,  tal  como  evidenciado 
por  Avtar  Brah  (2011),  os  discursos  que  repousam  na  estigmatização 
das  diferenças  são  baseados  em  relações  de  opressão  que  moldam  a 
experiência dos sujeitos, não apenas na relação com o grupo (enquanto 
definições  de  identidades  coletivas  aceitas  intersubjetivamente),  mas 
também  consigo  mesmos  (em  virtude  da  influência  de  esquemas 
subjetivos de apropriação do eu). 
Em  referência  às  condições  objetivas  que  fazem  possível  a 
emergência  destes  significantes,  a  definição  de  classificações  raciais  ‐ 
cuja  dinâmica  pode  ser  pensada  como  um  processo  de  racialização  – 
traduz, no plano ideológico, algumas das tensões econômicas, políticas 
e  culturais  de  dada  sociedade8.  Neste  sentido,  podemos  perceber  uma 
dupla dinâmica, onde as condições objetivas dão lugar a manifestações 
ideológicas que, mediante a afirmação dos princípios objetivos no plano 
simbólico, reproduzem, modelam e cristalizam as oposições estruturais 
no plano discursivo. Além disso, retomando as contribuições de Pierre 
Bourdieu (2006), a investigação dos critérios ʺobjetivosʺ ‐ marcadores de 
diferença  suscetíveis  de  funcionar  como  indicadores  de  identidades 
sociais  (cor,  dialeto,  gênero,  língua,  sotaque,  práticas  étnico‐religiosas, 
etc) ‐ deve levar em consideração que na prática social tais critérios são 
susceptíveis  de  se  manifestar  de  duas  maneiras:  como  objetos  de 
representações mentais, ou seja, de atos de percepção e de apreciação, de 
conhecimento  e  reconhecimento,  onde  os  agentes  investem  seus 
interesses  e  seus  pressupostos;  e  como  representações  objetais,  de  coisas 
(emblemas, bandeiras, imagens, etc.) ou atos, estratégias interessadas de 
manipulação simbólica, que visam determinar a representação (mental) 
que  os  outros  podem  construir  acerca  dessas  propriedades  e  de  seus 
portadores.  Características  percebidas  e  apreciadas  (e  descritas  pelos 

                                                            
8   Se  tomamos  como  exemplo  as  sociedades  escravistas,  a  segregação  racial  sustentada 
por discursos racistas pode ser entendida como reflexo da ideologia hegemônica que, 
por extensão, põe em manifesto as situações de conflito entre as posições diferenciais 
que, no político, no econômico e no cultural, caracterizam as posições dos ʺsenhores 
brancosʺ e dos ʺescravosʺ. 

25
 
analistas)  funcionam  como  sinais,  emblemas  ou  estigmas.  E,  tal  como 
define Segato (2007): a raça passa a ser concebida como signo. 
Do  mesmo  modo  como  pode  se  manifestar  em  discursos 
hegemônicos  (como  é  o  caso  dos  discursos  que,  a  partir  do  Estado, 
foram  orientados  para  definir  a  constituição  de  uma  identidade 
nacional), as situações de desigualdade e marginalidade estrutural têm 
a capacidade de unificar coletivos que, embora heterogêneos em relação à 
raça, cor ou etnia, podem estabelecer laços de solidariedade em torno de 
um estado de necessidade – em suma, uma experiência comum – que os 
une (Brah, 2011; Segato, 2007). Dito isto, a raça pode surgir associada a 
outros  marcadores  de  diferenças,  adquirindo  um  sentido  e  uma 
relevância  particular  em  função  do  contexto  em  que  ocorrem,  o  que 
implica  desafios  e  riscos  tanto  para  a  análise  da  constituição  das 
identidades  sociais  como  para  a  definição  de  estratégias  políticas  que 
tentam ser articuladas pelos grupos envolvidos9. 
 
3. Crisol de representações 
 
A partir do referido anteriormente é possível entrever que uma 
análise das representações de raça na experiência latino‐americana que 
tomasse  em  conta  o  tratamento  adequado  das  complexidades  que  ela 
supõe poderia resultar excessiva para os limites desse artigo. Mas, além 
das  limitações  evidentes  e,  a  fim  de  gerar  possibilidades  interessantes 
de  definição  de  questões  ou  nós  problemáticos,  tentarei  identificar  um 

                                                            
9   A  raça  pode  associar‐se  distintivamente  a  outros  significantes,  sob  diferentes 
gramáticas (Segato, 2007). Entendidos como o cenário dos processos de construção da 
identidade coletiva, um conjunto de significantes tem a capacidade de consolidar um 
imaginário  compartilhado  por  meio  do  qual  é  possível  fortalecer  um  vínculo  de 
equivalência  que  contribui  para  que  se  estabeleça  a  definição  de  uma  comunidade 
imaginada.  Assim,  a  partir  de  uma  dinâmica  de  inclusão/exclusão  baseada  na 
afirmação  e  negação  de  elementos  particulares  que  definem  o  todo,  a  adoção  de 
significantes  em  uma  cadeia  de  equivalências  permite  instituir  o  pertencimento  de 
certos  sujeitos  ao  interior  de  um  grupo,  definindo,  por  consequência,  a  exclusão  de 
outros sujeitos que não compartilham de tal vínculo. A ideia de ponto nodal na teoria 
de  Zizek  permite  pensar  que  estes  significantes  não  designam  algo  positivamente, 
mas possibilitam, em termos performativos, a unidade do campo: a palavra enquanto 
palavra unifica um campo determinado constituindo sua identidade. 

26
 
conjunto  de  condicionamentos  que  podem  ser  considerados  ao  se 
abordar esse crisol de representações. 
Embora  os  países  latino‐americanos  compartilhem  uma  série  de 
experiências  (suas  conformações  e  desenvolvimentos  são  marcados  de 
modo  particular  pela  experiência  colonial  e  pela  relação  de  tensão 
constante  com  os  centros  de  poder  ocidentais),  e  tenham  alcançado 
êxitos  no  que  se  refere  à  integração  regional,  devemos  considerar  de 
todo modo as diferenças que persistem entre eles, levando em conta: 
•  A  trajetória  e  constituição  dos  Estados‐Nação  (que  define  uma 
comunidade nacional em seus limites, em função da mobilização 
de um discurso hegemônico reconhecido como legítimo); 
• As condições geopolíticas e econômicas que  marcaram a relação 
com  as  potências  coloniais  (Espanha,  Brasil  e  Portugal),  com  as 
potências imperialistas do século XIX (Inglaterra, França), as do 
século XX (Rússia e EUA) e as relações (por vezes conflitantes e 
contraditórias) entre os países da região; 
•  A  presença  e  o  impacto  de  povos  originários  ou  indígenas  (de 
composição  e  características  variáveis,  impossíveis  de  serem 
reduzidas a um mesmo perfil analítico); 
•  O  impacto  da  escravidão  (que  constitui  fator  essencial  da 
composição  demográfica  de  países  como  Brasil  e  daqueles  que 
compõe a região do Caribe); 
• O fator imigratório (no passado e no presente), a diversidade dos 
grupos imigrantes em relação aos países de origem e destino, as 
variações  no  desenvolvimento  demográfico  e  as  formas 
dissimiles de assentamento e integração populacionais; 
• As características dos assentamentos rurais, urbanos e das zonas 
de  fronteira  (onde  a  coesão  ou  os  limites  do  nacional  podem 
parecer  difusos,  parcial  ou  totalmente  transformados  e 
resignificados  a  partir  de  uma  experiência  marcada  pelo 
entrecruzamento); 
• O contexto social, econômico e político de cada Estado, etc. 
 
Estas  variáveis  ‐  que  não  se  pretendem  exaustivas,  mas  que 
definem  um  escopo  de  análise  suficientemente  complexo  para  não  ser 
subestimado  –  permitem  pensar  que  um  estudo  das  representações 

27
 
associadas  à  ideia  de  ʺraçaʺ  deveria  partir  de  uma  problematização  local 
ou regional, posto que os agregados nacionais ou supranacionais podem 
colocar problemas no momento de explicar sua diversidade interna. Na 
Argentina,  por  exemplo,  as  associações  entre  raça,  cor  e  classe  podem 
variar de acordo com a região em questão: 
 
• na região metropolitana do corredor Córdoba‐Rosario‐Buenos 
Aires,  onde  a  imigração  européia  (sobretudo  de  italianos  e 
espanhóis)  teve  um  impacto  notável  e  onde  a  hierarquização 
social  se  manifesta  na  delimitação  de  áreas  de  exclusão 
específicas, como é o caso das ʺvilas miseriasʺ (eufemisticamente 
chamadas  de  ʺvilas  de  emergênciaʺ),  o  racial  pode  ceder  ou 
articular‐se com uma leitura de classe que associa a cor ʺnegraʺ 
como estigma ou marcador de diferença visível para o indivíduo 
de classe mais baixa (marcadores que podem associar distinções 
negativas, inclusive, a grupos de imigrantes de países da própria 
região, como é o caso das comunidades peruanas e bolivianas); 
•  em  contraste  com  o  caso  anterior,  no  literal  argentino  a 
articulação  ʺcor  negraʺ  ‐  “classe  baixa”  perde  força  devido  à 
presença de descendentes europeus em situação de pobreza; 
•  nas  regiões  com  presença  de  povos  originários  a  discussão 
sobre  as  identidades  sociais  incorpora  com  mais  força  o 
componente étnico10; 

                                                            
10  De acordo com os relatórios do Instituto Nacional de Assuntos Indígenas (INAI), na 
Argentina  existem  18  povos  indígenas  que  contabilizam  um  número  estimado  de 
600.329 pessoas que se reconhecem pertencentes e/ou descendentes de primeira geração. 
A  maioria  da  população  se  encontra  na  Região  Noroeste  (NOA),  em  13  aldeias 
(Atacama,  Ava  Guarani,  Chorote,  Chulupi,  Diaguita  /  Diaguita  Calchaquí,  Kolla, 
Omaguaca,  Wichí,  Quechua,  Tapieté,  Chané  e  Maimará),  e  concentram‐se  nas 
províncias  de  Salta  e  Jujuy,  seguindo  a  costa  Nordeste  (NEA‐Litoral)  com  6  aldeias 
(Chulupi,  Mbya  Guaraní,  Mocovi,  Pilagá,  Toba  e  Wichí)  e  nas  províncias  de  Chaco, 
Formosa  e  Santa  Fé;  na  região  da  Patagônia,  com  4  aldeias  (Tehuelche,  Ona, 
Rankulche e Mapuche), concentram‐se nas províncias de Chubut, Santa Cruz e Tierra 
del  Fuego;  e  na  Região  Central,  com  5  aldeias  (Guarani,  Comechingón,  Huarpe 
Sanavirón  e  Tupi  Guarani)  concentram‐se  na  Cidade  de  Buenos  Aires  e  na  Grande 
Buenos Aires. 

28
 
•  menção  à  parte  constitui  o  caso  da  herança  africana:  embora 
haja  destaque  para  alguns  grupos  de  afrodescendentes  ‐ 
atualmente entre 12.000 e 15.000 descendentes de imigrantes de 
Cabo  Verde  residem  em  Ensenada,  Dock  Sud,  San  Nicolas  e 
Rosário  ‐,  a  invisibilidade  do  componente  afro  na  cultura 
argentina11 contrasta com a realidade de países vizinhos, como o 
caso do Uruguai ou, particularmente, do Brasil. 
 
Estas  assertivas  evidenciam  contextos  distintos  dentro  de  um 
mesmo  país.  Embora  seja  possível  e  necessário  realizar  análises  que 
tomem  o  Estado  como  unidade  analítica  privilegiada  (especialmente 
quando  se  trata  da  análise  de  políticas  e  instituições  formais),  uma 
observação  regionalizada  pode  possibilitar  contextualizações  mais 
precisas  que  permitam  identificar  as  diferentes  gramáticas 
(dimensionando  elementos  que  não  necessariamente  estejam  em 
conformidade  com  os  parâmetros  de  formalização  estatais).  Estas 
considerações  nos  permitem  argumentar  a  favor  dos  estudos 
comparativos  (seja  entre  regiões  de  um  mesmo  país,  entre  países  ou 
regiões supranacionais, seja entre as experiências de grupos específicos 
em cada um desses contextos), uma vez que a possibilidade de realizar 
uma reflexão abrangente das experiências latino‐americanas dependerá 
necessariamente da articulação de estudos dessa natureza. 
Para  concluir,  nos  interessa  destacar  que  representações 
assumidas  como  semelhantes,  como  é  o  caso  das  ideias  de  ʺcrisol  de 
razasʺ  (Argentina),  ʺmelting  potʺ  (EUA),  ʺcadinho  de  raçasʺ  ou  ʺfábula 
das  três  raçasʺ  (como  se  costuma  fazer  referência  no  Brasil),  longe  de 
querer  representar  fenômenos  idênticos  devem  ser  interpretadas  à  luz 
de suas diferenças, uma vez que, com frequência, essas manifestações – 
enquanto  produções  associadas  a  uma  lógica  discursiva  hegemônica  – 
recorrem  a  recursos  homogeneizadores  que,  colocando  o  foco  na 
integração  das  diversidades  como  componentes  de  uma  identidade 
nacional  única,  permitem,  em  verdade,  sustentar  definições 
                                                            
11   No  século  XIX,  a  presença  afroamericana  era  reconhecida  e  abertamente 
estigmatizada,  ilustração  disso  encontramos  na  obra  de  Martín  Fierro  (livro 
emblemático da literatura argentina): Dos brancos fez Deus /dos mulatos, São Pedro/ 
dos negros fez o diabo/ para brasa do inferno (Capítulo 7). 

29
 
hierarquizadas na medida em que fazem desaparecer as visões opostas 
que muitos coletivos assumem como suas. 
De  todo  modo,  merecem  atenção  aquelas  manifestações 
discursivas  que,  insistentemente,  reproduzem  estereótipos 
estigmatizantes,  como  no  caso  dos  discursos  publicitários  ‐  que, 
fortalecidos por um sistema de produtos e serviços transnacionalizados, 
interpelam  a  um  público  de  consumidores  potenciais  fomentando 
valores de consumo assumidos como globais. Conforme defende Segato 
(2007),  qualquer  análise  deve  procurar  estabelecer  uma  crítica  a  um 
ʺmapa  multicultural  limitado  e  esquemático  que  projeta  uma 
diversidade fixa no tempo, reificada em seus conteúdos e despojada das 
dialéticas que conferem historicidade, mobilidade e enraizamento local, 
regional e nacionalʺ. 
 
4. À guisa de conclusão 
 
A  multiplicidade  de  contextos  de  uso  da  ideia  de  ʺraçaʺ  como 
termo  classificatório  pode  suscitar  confusões  ou  resultar,  em  alguma 
medida,  bastante  indeterminado.  Mas  é  necessário  considerar  que  esta 
indeterminação,  ao  invés  de  simplesmente  aludir  a  uma  forma  de 
pobreza  semântica,  pode  representar  o  resultado  de  uma  lógica  de 
significação  específica  que  deve  ser  analisada  em  relação  a  contextos 
discursivos particulares. 
Retomando  aquela  categorização  impossível  desenvolvida  por 
Borges,  podemos  nos  questionar  (novamente  ao  modo  de  Foucault) 
acerca  das  condições  a  partir  das  quais  era  e  é  possível  demarcar 
identidades  fundadas  na  ʺraçaʺ,  levando  em  consideração  critérios  de 
certeza que permitem assumir tais taxonomias ou gramáticas como algo 
pensável  (susceptível  de  ser  administrado  e  delimitado  em  campos  de 
conhecimento  específicos).  Assumindo  sua  contingência,  o 
questionamento  acerca  de  um  regime  de  representação  exigirá 
determinar  quais  são  as  condições  históricas  que  fizeram  emergir  o 
conceito enquanto definindo uma ordem, já que ele impõe, sob a forma 
de um discurso hegemônico, uma autoridade semântica capaz de tornar 
possível  vislumbrar  a  instituição  de  uma  diferença  social  cristalizada 
em  situações  de  exclusão,  instituição  esta  que  encontra  fundamento 

30
 
numa  rede  de  relações  que  se  estabelecem  em  um  campo  social 
estruturado e hierarquizado. 
A  análise  discursiva  que  se  articula  com  o  estudo  das  práticas, 
problematiza,  a  partir  do  real,  a  representação  do  real  (ou  a  luta  pelas 
representações  que  buscam  definir  o  real),  ou  seja:  as  lutas  pelo 
monopólio de fazer ver e de fazer crer, de fazer conhecer e reconhecer, 
de  impor  a  visão  legítima  das  divisões  do  mundo  social  (Bourdieu, 
2006). 
O  estudo  da  diversidade  de  experiências  pode  enriquecer  a 
integração real de nossos povos. Tal e como se refere Segato: ʺAfirmar a 
diferença  das  culturas  em  um  sentido  profundo  é  afirmar  a 
possibilidade de que outros valores e outros fins orientem a convivência 
humana.ʺ 
 
 
 
Bibliografia 
 
BOURDIEU,  Pierre.  La  identidad  y  la  representación:  elementos  para  una 
reflexión crítica de la idea de región. Ecuador Debate, nº 67 , 165‐184, 2006. 
BRAH,  Avtar.  Cartografías  de  la  diáspora.  Identidades  en  cuestión.  Madrid: 
Traficantes de Sueños, 2011. 
BRUBAKER, Roger, & Cooper, Frederick.. Más allá de la identidad. Apuntes de 
investigación del CECYP, nº7 , 30‐67, 2001. 
FOUCAULT,  Michel.  As  palavras  e  as  coisas.  São  Paulo,  Editora  Martins 
Fontes, 1995. 
LACLAU,  Ernesto.  La  razón  populista.  México  D.F.:  Fondo  de  Cultura 
Económica, 2010. 
SEGATO,  Rita  L.  La  Nación  y  sus  Otros.  Raza,  etnicidad  y  diversidad  religiosa  en 
tiempos de Políticas de la Identidad. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2007. 
SLENES, Robert. A Importância da África para as Ciências Humanas. Historia 
Social, nº19, 2010. 
 
 
 
 
 

31
 
 
 
 
 
 
 

32
 
Multiculturalismo e metamorfose na racialização: notas preliminares 
sobre a experiência contemporânea brasileira 
 
Valter Roberto Silvério1 
 
 
“O  racismo  e  o  colonialismo  deveriam  ser  entendidos 
como modos socialmente gerados de ver o mundo e viver 
nele”. (Frantz Fanon)  
 
 
1. Introdução 
 
O  argumento  desenvolvido  no  presente  texto  é  de  que  o 
deslocamento  na  forma  como  a  sociedade  brasileira  se 
autorrepresentava  é  decorrente  do  processo  de  luta  política  pela 
(res)significação/deslocamento  do  lugar  do  ser  negro  no  processo  de 
racialização  de  sua  experiência  coletiva.  Com  base  nas  conquistas  do 
movimento  negro  é  possível  destacar  alguns  aspectos  que  permitem 
sustentar  essa  linha  de  raciocínio,  a  saber:  1)  o  tratamento  político‐
jurídico  da  temática  da  diversidade  e  da  igualdade  racial  na 
Constituição  de  1988;  2)  a  alteração  da  Lei  de  Diretrizes  e  Bases  da 
educação  brasileira,  e  as  diretrizes  que  a  acompanham,  orienta  para 
uma  mudança  significativa  nos  conteúdos  curriculares  nacionais,  ao 
prescrever  a  obrigatoriedade  de  uma  educação  que  possibilite  a 
construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e 
a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena. E, finalmente, a 
interação  entre  as  mudanças  internas  e  o  papel  que  o  Brasil  passou  a 
representar  transnacionalmente  nos  últimos  anos,  não  exclusivamente, 
mas em especial para os países da comunidade de língua portuguesa do 
continente africano. 
Uma  das  preocupações  centrais  de  Fanon  foi  demonstrar  os 
efeitos  do  colonialismo  sobre  o  colonizado,  buscando  entender  as 

                                                            
1  Professor Associado do Departamento e Programa de Pós‐Graduação em Sociologia da 
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Coordenador em exercício do Núcleo 
de Estudos Afro‐Brasileiros da mesma universidade.  

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implicações para o desenvolvimento nacional depois do sucesso total da 
luta anti‐colonial. Neste sentido, fez um conjunto de comentários acerca 
da  natureza  do  racismo  em  1956.  Três  de  suas  observações  têm  sido 
mais  amplamente  articuladas  recentemente.  Na  primeira,  Fanon 
argumentou  que  racismo  não  é  um  fenômeno  estático,  mas  sim 
constantemente  renovado  e  transformado.  No  segundo  comentário, 
observa  que  o  racismo  primitivo  se  afirmou  no  terreno  da  biologia 
correspondendo  a  uma  fase  do  colonialismo,  pois  estes  argumentos 
tinham  sido  desacreditados  pelas  consequências  do  fascismo  na 
Alemanha. Finalmente, afirmou que racismo foi um aspecto central da 
dominação  colonial,  o  qual,  em  conjunto  com  outros  mecanismos, 
intencionava  transformar  a  população  colonizada  em  objetos  usados 
para os propósitos do colonizador (Fanon, 1970: 41‐54).  
Na  perspectiva  de  Fanon,  o  racismo  primitivo  tem  sido 
substituído por um racismo cultural que tem como seu objeto não o ser 
humano individual, mas uma certa “forma de existência” e que racismo 
é  somente  um  elemento  de  uma  vasta  e  sistematizada  totalidade  de 
opressão  de  um  povo  (1970:  43).  Tal  sugestão  tem  inspirado  um 
conjunto de estudos nas sociedades com passado colonial ou sociedades 
racialmente estruturadas de acordo com Hall (Hall, 1980).  
Esta  substituição  de  um  racismo  primitivo  (biológico)  por  um 
racismo  cultural  foi  retida  e  tem  sido  fundamental  para  a  análise  dos 
desdobramentos  da  formação  racial  nos  Estados  Unidos,  por  exemplo, 
no período pós‐movimento dos direitos civis, na Europa, especialmente 
na Inglaterra, na definição do “New Racism”.  
A palavra racismo deriva da ideia de que raça determina cultura 
e,  como  consequência,  afirma  a  superioridade  racial  de  alguns  povos 
em  relação  a  outros.  Na  atualidade,  este  significado  original  do  termo 
nem  sempre  fica  evidente  pelo  uso  diversificado  da  palavra.  No 
entanto, o conceito de racialização2, que foi utilizado pela primeira vez 

                                                            
2   A  ideia  contemporânea  de  “racialização”  ou  “formação  de  raça”  se  baseia  no 
argumento  de  que  a  raça  é  uma  construção  social  e  categoria  não  universal  ou 
essencial da biologia. Raças não existem fora da representação. Em vez disso, elas são 
formadas na e pela simbolização em um processo de luta pelo poder social e político. 
O  conceito  de  racialização  refere‐se  aos  casos  em  que  as  relações  sociais  entre  as 

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por Frantz Fanon na discussão sobre as dificuldades enfrentadas pelos 
intelectuais  africanos  quando  confrontados  com  os  desafios  da 
construção  de  uma  “nova”  cultura  no  pós‐colonialismo,  pode  nos 
auxiliar  a  compreender  os  novos  sentidos  do  termo  raça  (Fanon,  1967: 
170‐1). Para Banton, racialização está relacionada ao caminho através do 
qual  as  teorias  científicas  construíram  tipologias  raciais  que  foram 
utilizadas  para  categorizar  populações  (Banton,  1977:  18).  Reeves 
distinguiu  entre  racialização  “ideológica”  e  racialização  “prática” 
usando  a  primeira  em  referência  ao  discurso  sobre  a  raça  e  a  última 
para se referir à formação de “grupos raciais” (Reeves, 1983: 173‐6).  
O  conceito  de  racialização,  em  Miles,  focaliza  o  processo  de 
atribuição  de  significados  a  características  somáticas,  isto  é,  um 
processo  dialético  de  significação.  Ao  imputar  uma  real  ou  alegada 
característica  biológica  como  meio  de  definir  o  Outro,  o  Eu  se  define 
pelo mesmo critério (Miles, 1989: 73‐7).  
Para  Webster,  nenhuma  das  concepções  sociológicas  correntes 
de  racialização  identifica  ou  desafia  seu  principal  elemento  que  é  a 
afirmação  de  que  raça  é  uma  realidade  social  ou  política.  Assim,  para 
Webster,  o  aspecto  científico  social  da  racialização  incorpora  uma 
organização  de  estudos  das  relações  sociais  passadas  e  presentes,  em 
torno  das  classificações  raciais  que  são  apresentadas  como  reais  e, 
então,  justificadas  como  um  objeto  de  estudo  em  termos  de  sua 
realidade.  Racialização  é,  por  isso,  classificação  racial  construída  com 
características de autoperpetuação (Webster, 1992: 26).  
Omi  e  Winant  usam  o  conceito  de  racialização  para  realçar  a 
extensão do significado de raça em relações, práticas sociais ou grupais 
não classificadas previamente como raciais. Deste modo, racialização é 
um  processo  lógico‐ideal,  uma  especificidade  histórica  (Omi  e  Winant, 
1986: 64; Winant, 1996: 59). Para Winant, o exemplo deste processo nos 
Estados Unidos foi a consolidação da categoria black para os africanos 
que anteriormente se identificavam ou eram identificados como Mande, 
Akan,  Ovimbundu  ou  Ibo,  paralelamente  à  evolução  do  termo  white 
como  uma  forma  crucial  de  autoidentidade  para  os  europeus  que  se 

                                                                                                                                                
pessoas  foram  estruturadas  pela  significação  de  características  biológicas  humanas, 
de tal modo a definir e construir coletividades sociais diferenciadas. 

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autodenominavam,  inicialmente,  como  cristãos,  ingleses  e  livres 
(Winant, 1996: 59).  
Pouca concordância há nestes vários usos do termo, entretanto, é 
possível identificar ao  menos três sentidos distintos em que o conceito 
de  racialização  pode  ser  apreendido:  em  um  primeiro  uso,  o  conceito 
aparece com referência a um processo representacional através do qual 
o  significado  social  é  atribuído  a  certas  características  biológicas 
humanas  (usualmente  fenotípicas)  que  se  constituem  na  base,  a  partir 
da qual aquelas pessoas que possuem tais características são designadas 
como  uma  coletividade  distinta.  O  segundo  uso  do  conceito  se  refere 
àquelas  práticas  científicas  e  político‐institucionais  que  perpetuam  a 
competição  entre  raças  e  ou  etnias.  Por  último  a  racialização  aparece 
como um processo lógico‐ideal constitutivo da própria modernidade.  
Nos  dois  primeiros  usos  do  conceito,  aparentemente,  a 
racialização  é  uma  característica  erradicável  das  sociedades  humanas, 
mas  em  seu  último  uso  ela  aparece  como  um  processo  que  está  nas 
origens  da  cultura  ocidental  moderna.  As  variações  do  conceito  estão 
associadas ao modo através do qual os autores concebem raça. 
A emergência e utilização da idéia de “raça” é uma fase histórica 
central da racialização, em termos de periodização, embora não seja seu 
solo de origem. De qualquer forma, desde o século XVIII, a população 
mundial  tem  sido  classificada  no  pensamento  europeu  em  “raças”. 
Miles usa o conceito de racialização para se referir ao processo dialético 
pelo qual significado é atribuido a características biológicas particulares 
dos  seres  humanos,  resultando  na  possível  alocação  de  indivíduos  em 
categorias  gerais  de  pessoas  as  quais  reproduzem  a  si  mesmas 
biologicamente. Ela é, portanto, um processo ideológico.  
De outra perspectiva, Webster está preocupado em identificar e 
refutar o que ele chama de “teoria racial geral”. Segundo ele, há mais de 
dois séculos, os estudos sociais e as políticas públicas estão dominadas 
por  esta  teoria  nos  Estados  Unidos.  Focando  menos  os  grupos  ou 
pessoas e seus motivos políticos, a origem racial ou os atributos raciais, 
as  definições  de  termos,  as  premissas  e  as  implicações  lógicas  dos 
argumentos científicos presentes no debate, Webster se propõe a refutar 
a  afirmação  básica  de  que  raça  tem  sido  uma  força  formativa  e 
propulsora da sociedade norte‐americana (Webster, 1992: 2).  

36
 
Winant,  de  uma  outra  perspectiva,  argumenta  que  mais 
importante do que negar o estatuto científico da idéia e do conceito de 
raça  é  focalizar  a  continuidade  de  sua  significância  e  as  mudanças  no 
seu  significado.  Neste  sentido,  este  autor  procura  criticar  quatro 
tendências  presentes  na  discussão  contemporânea  em  torno  do 
significado  da  raça:  a  primeira  tendência  tenta  demonstrar  o  caráter 
ilusório da natureza da raça; a segunda busca a transcendência da raça; 
a terceira assegura a morte do conceito de raça e a última simplesmente 
substitui  a  categoria  raça  por  categorias  supostamente  mais  objetivas, 
como  etnicidade,  nacionalidade  ou  classe.  Para  Winant,  todas  estas 
iniciativas  são  equivocadas  e  intelectualmente  desonestas  por 
considerarem raça uma construção ideológica ou uma condição objetiva 
(Winant, 1996: 14).  
Winant  observa  que  mesmo  os  autores  considerados  do 
mainstream  (corrente  principal)  teorizam  raça  em  termos  de  sua 
exiguidade  e  flexibilidade  e  de  seu  caráter  contingente.  Isto  é,  mesmo 
aqueles pensadores que inquestionavelmente rejeitam a teoria racial em 
seu  formato  biológico,  não  conseguem  escapar  de  certo  tipo  de 
objetivismo.  Daí,  o  surgimento  de  uma  explicação  modal  nos  escritos 
sobre raça:  
 
“…as  circunstâncias  sociopolíticas  mudam  através  do  tempo 
histórico, os grupos racialmente definidos se adaptam ou falham 
em  se  adaptarem  às  mudanças,  adquirem  mobilidade  ou 
permanecem na pobreza. O problema é que nesta lógica não há 
espaço para a (re) conceitualização da identidade grupal a partir 
das constantes alterações de parâmetros através dos quais raça é 
pensada,  interesses  de  grupos  são  subscritos,  status  são 
atribuídos,  agências  são  criadas  e  papéis  sociais  são 
desempenhados” (Winant, 1996: 17).  
 
Omi  e  Winant,  afirmam  que,  nas  últimas  décadas,  nós  temos 
testemunhado  através  do  espectro  político,  a  tentativa  na  vida 
institucional  de,  por  um  lado,  definir  um  significado  apropriado  para 
raça  e,  por  outro  lado,  estabelecer  identidades  raciais  coerentes 
baseadas  em  tais  significados.  Na  visão  destes  autores,  estes  objetivos 
foram  e  continuam  a  ser  impossíveis,  principalmente,  porque  raça  é 

37
 
preeminentemente uma construção social que está inerentemente sujeita 
à contestação por seu significado intrinsicamente instável.  
Assim,  eles  propõem  que,  no  interior  da  perspectiva  de  uma 
formação  racial,  raça  deve  ser  entendida  como  um  complexo  de 
significados sociais fluídos, instáveis e “descentrados”, constantemente 
transformados pelo conflito político (Omi e Winant, 1986).  
Deste  modo,  a  raça  modela  tanto  a  psique  e  os  relacionamentos 
entre indivíduos de “cores” diferentes quanto fornece um componente 
irredutível  das  identidades  coletivas  e  da  estrutura  social.  Assim,  é 
possível  interpretar  o  significado  de  raça  não  em  termos  de  definição, 
mas  em  termos  de  processos  de  formação  racial.  Entre  os  elementos 
principais destes processos está a construção de identidades raciais e os 
significados que Winant chama de racialização (Winant, 1996: 58‐59).  
O  argumento  básico  é  que  na  sociedade  contemporânea  existe 
uma  amplificação  do  conflito  racial  em  termos  globais.  Sem  assumir  a 
existência de qualquer uniformidade neste rápido aumento de tensão e 
forte consciência em matéria racial, Winant está interessado em focar a 
interação entre estrutura social e significação, levando em consideração 
a  grande  variação  entre  ordens  raciais  locais.  Para  Winant,  a  dinâmica 
da significação racial é sempre relacional. Esta afirmação o diferencia de 
Miles,  para  quem  um  significado  sobre  o  Outro  é,  aprioristicamente 
construído  e,  no  momento  posterior,  incorporado  pelo  próprio  Outro. 
Da  mesma  forma,  o  diferencia  de  Webster  para quem  o  significado  de 
raça é uma construção científica e política.  
As  dimensões  globais  da  formação  racial  podem  ser  mais 
facilmente observadas através de fenômenos tais como o surgimento da 
“diáspora”  negra,  a  criação  de  comunidades  “pan‐étnicas”,  formadas 
por latinos e asiáticos nos países do Reino Unido e nos Estados Unidos, 
os  quais  evidenciam  uma  derrubada  de  fronteiras  tanto  na  Europa 
quanto  na  América  do  Norte.  Tudo  parece  estar  se  hibridizando,  se 
transculturando  e  se  racializando  nos  grupos  previamente  nacionais, 
culturas  e  identidades. Em  razão  destas  transformações,  a  comparação 
das  ordens  política  e  social  local,  baseadas  na  raça,  se  torna 
fundamental. Similarmente, pela primeira vez nós começamos a pensar 
nas variações na identidade racial, não como desviantes de uma norma 
supostamente  modal  (imperialista),  mas  como  parte  flexível  de  um 

38
 
contexto  e  repertório  específico.  Finalmente,  a  dissolução  da 
transparência da identidade racial do grupo formalmente dominante, a 
crescente  racialização  dos  brancos  na  Europa  e  nos  Estados  Unidos 
devem  ser  também  reconhecidas  como  procedentes  da  crescente 
dimensão globalizada da raça (Winant, 1996: 118).  
Desta  forma,  se  raça  não  é  algo  natural  ou  inato  ou  uma  ilusão, 
importa  saber  as  razões  e  condições  nas  quais  o  discurso  sobre  raça  é 
empregado  na  tentativa  de  rotular,  constituir,  excluir  ou  incluir 
subalternamente coletividades sociais. Segundo Winant, na perspectiva da 
formação  racial,  este  percurso  pode  ser  trilhado  a  partir  de  três 
determinações  que  devem  ser  incorporadas  teoricamente  ao  conceito  de 
raça, de modo a tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem 
tangível,  nem  verdadeira,  nem  falsa.  Tais  determinações  indicam:  a 
dimensão  política,  a  global  comparativa  e  a  histórico‐temporal.  Com  a 
introdução dessas determinações, o conceito teórico de raça seria removido 
definitivamente do reino biológico para ser alocado no reino social.  
A  dimensão  política  se  refere  às  novas  relações  que  surgiram, 
principalmente,  onde  alguns  poderes  contra‐hegemônicos  e/ou  pós‐
coloniais estão presentes, propiciando a proliferação dos significados e 
das  articulações  políticas  com  base  na  raça.  Três  aspectos  se  destacam 
nesta dimensão: 1) a insuficiência do simples dualismo contido na ideia 
da  “Europa  e  seus  Outros”,  captada  pelo  debate  da  ampliação  e 
amplificação  da  subjetividade  e  identidade  pós‐colonial,  2)  a 
possibilidade de perpetuar a dominação racial sem qualquer referência 
explícita  à  raça  por  meio  de  significados  raciais  codificados 
subtextualmente  ou  da  simples  negação  de  sua  continuidade  da 
significação,  3)  a  possibilidade  de  resistir  inteiramente,  por  novos 
caminhos,  à  dominação  racial,  particularmente  pela  limitação  do 
alcance e penetração do sistema político na vida cotidiana, pela geração 
de  novas  identidades,  novas  coletividades,  novas  comunidades 
(imaginadas), relativamente menos permeáveis ao sistema hegemônico 
(Winant, 1996: 19).  
A  dimensão  global  comparativa  é  aquela  referente  ao  contexto 
globalizante no qual raça opera. Isto é, a geografia racial se tornou mais 
complexa,  tanto  em  termos  do  seu  alcance  imperial,  colonial  e 
migratório,  quanto  pela  globalização  do  espaço  racial  que  se  torna 

39
 
acessível  a  um  novo  tipo  de  análise  comparativa.  Na  perspectiva  de 
Winant,  chegamos  a  um  ponto  em  que  os  ex‐sujeitos  (neo)coloniais, 
agora  redefinidos  como  “imigrantes”,  desafiam  o  status  dos  grupos 
metropolitanos  majoritários  (os  brancos,  os  europeus,  os  “americanos” 
ou “franceses” etc.). Ao mesmo tempo, surgem fenômenos tais como a 
diáspora  negra,  a  criação  de  uma  comunidade  latina  e  de  uma 
comunidade  asiática  “pan‐étnica”  (no  Reino  Unido  e  nos  Estados 
Unidos).  Paralelamente,  o  fechamento  de  fronteiras  na  Europa  e  na 
América  do  Norte  indica  prévia  racialização  de  políticas  nacionais, 
culturas e identidades. O exemplo mais visível é a cultura popular que 
mundializa  a  consciência  racial  quase  instantaneamente  como  faz  o 
reggae,  rap,  samba  e  vários  outros  estilos  pop  africanos  que  transitam 
velozmente de um continente para outro (Winant, 1996: 19‐20).  
Para este autor, esta conscientização não é mera reação ou simples 
negação  do  domínio  teórico‐cultural  “Ocidental”.  Noções  como 
consciência  diaspórica  ou  epistemologias  racialmente  informadas 
ganham  mais  atenção  como  um  esforço  para  expressar  a  globalização 
contemporânea do espaço racial e apontam para a construção de novas 
identidades  raciais  ou  para  a  dinâmica  da  “panetnicidade”,  agora, 
global.  A  dissolução  da  transparência  da  identidade  racial  do  grupo 
formalmente dominante, isto é, a avançada racialização dos brancos na 
Europa  e  nos  Estados  Unidos  deve  também  ser  reconhecida  como 
conduzindo  a  uma  dimensão  globalizada  crescente  da  raça.  Dito  de 
outra  forma,  a  “brancura”  se  torna  uma  matéria  de  ansiedade  e 
preocupação (Winant, 1996: 20).  
Quanto  à  dimensão  histórico‐temporal,  Winant  observa  que 
muitos dos escritos pós‐estruturalistas, preocupados com as diferenças 
entre os seres humanos, têm feito esforço para explicar o “Ocidente” ou 
o  tempo  colonial  como  um  vasto  projeto  de  demarcação  das 
“diferenças”  humanas  ou  mais  globalmente,  argumentando  sobre  a 
formação  parcial  de  identidades  coletivas,  em  termos  de  “Outros” 
externalizados como lembra Todorov (Todorov, 1985).  

40
 
Ao criticar o polêmico trabalho de Wilson3, Winant observa que a 
análise  ali  contida  demonstra  não  a  existência  de  uma  subclasse  em 
uma  sociedade  em  que  a  significância  da  raça  está  em  declínio,  mas  a 
continuidade  da  significância  do  racismo  institucional  ou  o  chamado 
“metaracismo”, como lembra Kovel (Kovel, 1984).  
A  justificativa  sociopolítica  e  legal  oferecida  para  uma  política 
supostamente  neutra  do  ponto  de  vista  racial  é  uma  reinterpretação 
conservadora  e  individualista  das  medidas  igualitárias  propostas  pelo 
movimento  dos  direitos  civis  dos  anos  60.  Esta  é  a  forma  de  racismo 
apropriada  para  o  atual  momento  histórico,  no  qual  o  estado  não 
organiza  e  força  a  supremacia  branca,  mas  se  esconde  atrás  de  uma 
política  oficial  ‐  ou  de  fachada  –  de  neutralidade  racial.  Racismo,  no 
presente, toma a forma de supremacia branca ou metaracismo que tem 
consequências de classe.  
Brasil, África do Sul e Estados Unidos são países em que a forma 
de  colonização  condicionou  a  estrutura  da  formação  do  Estado  e  da 
sociedade  civil,  bem  como  as  inter‐relações  entre  estas  duas  esferas  da 
vida  social,  especificamente,  no  tratamento  da  questão  racial.  Em  que 
pese  às  diferenças  em  relação  ao  período  no  qual  ocorreram  os 
processos  de  conquista,  colonização  e  independência,  estes  Estados 
foram  marcados  por  formas  de  dominação  racial  e,  atualmente  em 
proporções diferenciadas e variáveis, comportam uma dinâmica em que 
a  estrutura  social  é  racialmente  organizada  o  que,  aparentemente,  tem 
impedido a possibilidade do pleno exercício dos direitos fundamentais 
de cidadania a todos.  
Marx  observa  que,  “nos  três  casos,  a  ordem  racial  certamente 
refletiu  e  acelerou  o  desenvolvimento  econômico,  mas  de  forma 
complexa.  O  apartheid  e  Jim  Crow  diluíram  a  concorrência  entre  os 
brancos  que  ameaçava  a  estabilidade  e  o  crescimento,  embora  o 
crescimento  e  a  concorrência  não  tenham  levado  à  aplicação  de  tais 
políticas no Brasil. O conflito de classe, real ou potencial, nos três casos, 
tinha  de  ser  resolvido  para  assegurar  a  estabilidade,  exigência  mais 

                                                            
3   The  Declining  Significance  of  Race:  Blacks  and  Changing  American  Institutions, 
University of Chicago Press, 1980. 

41
 
fundamental,  tanto  para  o  desenvolvimento  econômico,  como  para  a 
consolidação do estado nação” (Marx, 1996: 18‐19).  
É na reconciliação entre ingleses e africânderes, após a guerra do 
Bôeres, que se encontra os termos para a segregação dos negros, que se 
tornaria  um  fator  central  na  construção  do  Estado  sul‐africano.  Como 
demonstra  Marx,  através  da  fala  de  um  alto  comissário  britânico  sir 
Alfred Milner, em 1897:  
 
“(…) para vencer os holandeses […] basta sacrificar absolutamente ‘os 
negros’  e  o  jogo  fica  fácil  […]  governo  autônomo  […]  e  lealdade 
colonial  […]  [exigiriam]  o  abandono  das  raças  negras”  (Lemay,  1965: 
11‐2; citado em Marx, 1996: 20).  
 
O  caso  norte‐americano  tem  muita  similaridade  com  o  sul‐
africano,  embora  o  conflito,  na  consolidação  do  Estado  Nacional,  não 
tenha sido entre dois fragmentos de grupos europeus, mas entre grupos 
regionais.  A  população  indígena  dos  Estados  Unidos  foi  quase 
totalmente  exterminada,  mas  os  escravos  continuaram  sendo 
numerosos  e,  portanto,  o  núcleo  da  discórdia  regional.  Um  fato 
relevante indicativo da tensão regional foi a decisão denominada Dred 
Scott,  de  1857,  que  considerou  que  as  garantias  formais  do  direito  à 
igualdade e à cidadania eram inaplicáveis aos negros (Foner, 1970: 292‐
3; Marx, 1996: 21).  
Depois  da  Guerra  Civil  americana,  a  nação  adotou  três  emendas 
constitucionais:  a  13ª,  em  1865,  extinguia  a  escravidão;  a  14ª,  em  1868, 
tornava  todos  os  negros  cidadãos  dos  Estados  Unidos  e  proibia  leis 
estaduais  que  negassem  igual  proteção  aos  negros  e  a  15ª,  em  1870, 
proibindo a discriminação racial em votações. No fundamental, a 14ª e a 
15ª  emendas  não  eram  cumpridas  em  todo  país,  mas  apresentavam 
maior visibilidade no sul.  
Esses Estados geraram categorizações raciais distintas. Assim, nos 
Estados  Unidos  e  na  África  do  Sul,  onde  o  preconceito  enfatiza  a 
origem,  a  identidade  do  indivíduo  ou  do  grupo  será  construída  com 
base  na  origem  racial  e  ou  étnica  fundada  no  princípio  de 
hipodescendência.  No  Brasil,  a  ênfase  recai  sobre  marca  ou  na  cor, 
combinando  a  miscigenação  e  a  situação  sociocultural  dos  indivíduos. 

42
 
Essa distinção implicou no desenvolvimento de dois tipos de racismo, o 
diferencialista e o assimilacionista.  
Munanga,  por  exemplo,  observa  que  o  racismo  diferencialista 
engendrou  o  antirracismo  diferencialista  e  o  racismo  universalista 
(assimilacionista)  engendrou  o  antirracismo  universalista.  “O  anti‐
racismo  universalista  busca  a  integração  na  sociedade  nacional, 
baseando‐se  nos  valores  universais  da  natureza  humana,  sem 
discriminação de cor, raça, sexo, cultura, religião, classe social, etc. É o 
chamado integracionismo fundamentado no indivíduo “universal”. De 
modo oposto, “o antirracismo diferencialista busca a construção de uma 
sociedade  igualitária  baseada  no  respeito  das  diferenças  tidas  como 
valores positivos e como riqueza da humanidade. Os quais pressupõem a 
construção  de  sociedades  plurirraciais  e  pluriculturais;  defende  a 
coexistência no mesmo espaço geopolítico no mesmo pé de igualdade de 
direitos, de comunidades e culturas diversas” (Munanga, 1999: 115‐6).  
No Brasil, de acordo com Guimarães, é somente a partir dos anos 
1980 que  o  movimento  negro passou a assumir um  discurso racialista  e 
multicultural.  Assim,  tanto  o  alvo  da  Frente  Negra  Brasileira  (FNB),  na 
década de 30, isto é, a luta contra a segregação e a discriminação racial, 
quanto o alvo do Teatro Experimental do Negro (TEN) nos anos 50, isto 
é,  a  luta  pela  recuperação  da  autoestima  negra,  passam  a  ser 
reinterpretadas  pelo  ideário  multiculturalista  em  que  se  revaloriza  a 
herança  africana,  procurando  desvencilhá‐la  das  adaptações  e  dos 
sincretismos  com  a  cultura  nacional  brasileira.  O  autor  chama  atenção 
para  dois  aspectos  fundamentais:  primeiro,  é  a  neutralidade  da  agenda 
ou programa delineado nesta mobilização negra, permitindo a aceitação 
das mais diferentes tendências ideológicas do movimento negro por meio 
de um discurso que evoca o carisma da raça negra visando à formação de 
uma identidade racial negra.  Os três pontos básicos da agenda são:  
 
“(a) recuperação da autoestima negra através da modificação de valores 
estéticos,  da  reapropriação  de  valores  culturais,  da  recuperação  de  seu 
papel na história nacional, do avivamento do orgulho racial e cultural; (b) 
combate  à  discriminação  racial  através  da  universalização  da  garantia 
dos  direitos  e  das  liberdades  individuais,  incluindo  os  negros,  os 
mestiços  e  os  pobres;  (c)  combate  às  desigualdades  raciais  através  de 

43
 
políticas públicas é o discurso que evoca o carisma da raça negra visando 
à formação de uma identidade racial negra (Guimarães, (1999: 115).  
 
O segundo aspecto observado por Guimarães está relacionado às 
dificuldades encontradas pelos grupos e instituições antirracistas para a 
mobilização coletiva dos negros. Para esse autor, estas dificuldades têm 
recebido  dois  tipos  de  diagnósticos:  ou  se  trata  o  movimento  negro 
como  um  movimento  de  classe  média,  distante  do  povo  negro;  ou  se 
trata  o  movimento  negro  como  presa  ou  vítima  da  ideologia.  Ao 
discordar  desses  diagnósticos,  Guimarães  conclui  que,  diferentemente 
dos Estados Unidos e da África do Sul onde a identidade racial tem um 
efeito cumulativo natural, isto é, não se sobrepõe à família, no Brasil, a 
identidade  racial  continuará  sua  formação  contornando  as 
solidariedades  familiares  ou  comunitárias.  Em  outros  termos,  se  nos 
Estados Unidos e África do Sul, a identidade racial ou étnica serviu para 
a  mobilização  política,  no  Brasil  tem  sido  útil,  primordialmente,  para 
reforçar  a  auto‐estima  negra,  embora  não  encontre  a  necessária 
ressonância no plano da mobilização política (Guimarães, 1999: 111).  
Munanga  observa  que  as  dificuldades  da  mobilização  da 
identidade  racial  negra  no  Brasil  estariam  relacionadas  à  categoria 
mestiço. Assim, se é verdade que a mestiçagem não conseguiu resolver 
os efeitos da hierarquização dos três grupos de origem e os conflitos de 
desigualdades  raciais  resultantes  dessa  hierarquização,  também,  é 
verdade que não constituem uma categoria estanque pelo fato de ser de 
cor e não de origem; portanto, dependendo do grau de mestiçagem e da 
condição  socioeconômica,  eles  podem  atravessar  a  linha  de  cor  e 
reclassificar‐se no grupo branco (Munanga, 1999: 121).  
Para  esse  autor,  a  proposta  dos  movimentos  negros  no  Brasil 
esbarra  na  mestiçagem  cultural,  pois  o  espaço  do  jogo  de  todas  as 
identidades  não  é  nitidamente  delimitado.  Neste  sentido,  Munanga 
reconhece  tanto  os  esforços  dos  movimentos  negros  na  redefinição  e  a 
caminho  de  uma  consciência  política  e  uma  identidade  étnica 
mobilizadoras,  contrariando  a  democracia  racial,  quanto  à  pequena 
efetividade  das  propostas  racialistas  que  nascem  do  antirracismo 
diferencialista  e  sustentam  as  propostas  multiculturalistas  em  um  país 
de ideologia uniculturalista como o nosso (Munanga, 1999: 125‐126).  

44
 
Quanto aos Estados Unidos, o antirracismo (racialista) se depara com 
um discurso semelhante ao discurso sobre a raça existente no Brasil que, 
em  poucas  palavras,  nega  a  persistência  do  racismo.  Ao  fazer  isso,  este 
discurso  sinaliza  para  o  fim  das  políticas  de  ação  afirmativa,  ao  mesmo 
tempo,  que  afirma  que  as  políticas  públicas  para  serem  antirracistas 
precisam  ser  universalista  e  “color  blind”  (Guimarães,  1999:  112).  Em 
outros  termos,  o  antirracismo  racialista  norte‐americano  convive, 
atualmente,  com  o  nascimento  de  um  discurso  universalista  que  tenta 
encobrir  e  ou  esconder  as  desigualdades  que  persistem  entre  brancos  e 
não‐brancos.  Deste  modo,  ao  discutir  uma  agenda  integrada  do 
antirracismo,  Guimarães  acredita  que  o  fato  do  povo  sul‐africano 
(multiétnico e multirracial) ter optado pela construção de um Estado não‐
racialista pode nos ensinar alguma coisa. No momento de reconstrução da 
nação e do Estado, “a África do Sul não pode, por um lado, definir‐se como 
um  prolongamento  da  Europa,  como  o  Brasil  e  Estados  Unidos  fizeram, 
sob  pena  de  alienar  a  grande  maioria  da  população  africana;  mas  não 
poderá  também  definir‐se  segundo  as  tradições  africanas  mais 
provincianas,  ignorando  mais  de  três  séculos  de  contato  cultural” 
(Guimarães, 1999: 114). Assim, “é a África do Sul que poderá nos indicar 
um  modelo  de  nação  multicultural,  multi‐étnica  e  não‐racialista  para  a 
agenda  anti‐racialista  no  Brasil  e  nos  Estados  Unidos”  (Guimarães,  1999: 
114).  
A  agenda  antirracista  deve  ser  pensada  em  três  dimensões:  o 
Estado,  a  nação,  os  indivíduos.  No  plano  do  Estado,  além  de  todas  as 
garantias  democráticas  que  já  constam  nas  cartas  constitucionais  dos 
três  países,  o  princípio  do  não‐racialismo  não  pode  impedir  a 
elaboração e execução de legislações especiais visando combater formas 
duradouras  de  opressão  social.  No  plano  da  nação,  para  Guimarães,  o 
desafio está na reconstrução das nacionalidades em bases pluriculturais 
e  pluriétnicas.  Os  ideais  de  assimilação  e  de  integração  do  Estado‐
Nação  terão  que  ser  substituídos  pela  integração  ao  nível  do  Estado 
(dos direitos) (Guimarães, 1999: 114). Isto, por sua vez, pode conduzir à 
superação  da  equação  “do  século  XIX  (um  Estado=  uma  nação=  uma 
raça=  uma  cultura)”  por  uma  equação  em  que  teremos:  “um  Estado= 
várias  heranças  culturais=  várias  raças=  várias  etnias.  Não  que  não  se 
possa  desenvolver  uma  cultura  cívica  particular,  mas  tal  cultura  não 

45
 
pode  significar  a  negação  das  diversas  heranças  e  tradições  culturais 
que formam a nação” (Guimarães, 1999: 114).  
No  plano  individual  e  das  identidades  grupais,  “o  antirracismo 
deve visar os estigmas raciais (de cor, raça e classe, no Brasil; de raça e cor 
nos Estados Unidos e de etnia, na África do Sul)” (Guimarães, 1999: 114). 
Convém  retomar  Mandani  e  lembrar  que  a  forma  de 
“tribalização”  ocorrida  durante  o  período  colonial  persistiu  após  a 
queda  do  apartheid,  constituindo‐se  em  um  dos  grandes  obstáculos  à 
democratização do país. Isto é, para se tornar multicultural, a África do 
Sul,  aparentemente,  tem  que  “destribalizar”  a  sociedade  civil, 
possibilitando  uma  convivência  democrática  plural  e  criando  a 
possibilidade  de  uma  cidadania  equitativa.  A  distinção  entre 
pluricultural e multicultural pode desvendar melhor o que está por trás 
da oposição não‐racialismo/racialismo. Uma sociedade pluralista (racial 
e etnicamente) universalizante ou uma sociedade com projetos raciais e 
étnicos particularizantes em disputa por posições nas diferentes esferas 
da  vida  social.  A  escolha,  entre  uma  ou  outra  forma  de  sociedade, 
implica  em  caminhos  distintos  rumo  à  consolidação  do  processo 
democrático em qualquer dos países estudados. Mas, o que se pode ter 
certeza é que a racialização do mundo tornou‐se uma realidade global.  
 
2. Desdobramentos contemporâneos na sociedade brasileira 
 
Ao  se  observar  o  preâmbulo  da  Constituição  Federal  de  1988, 
tem‐se  a  impressão  de  que  a  concepção  de  “democracia  racial” 
permanece presente. No entanto, ela contém uma série de desencontros 
e sinonímias decorrentes da pouca precisão na forma de termos como, 
por  exemplo,  “preconceito”,  “prática  de  racismo”,  “diferença  de 
tratamento” e “discriminação” (Santos, 2010).   
 
“Nós,  representantes  do  povo  brasileiro,  reunidos  em  Assembleia 
Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado 
a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a 
segurança,  o  bem‐estar,  o  desenvolvimento,  a  igualdade  e  a  justiça 
como  valores  supremos  de  uma  sociedade  fraterna,  pluralista  e  sem 
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e 
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a 

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proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do 
Brasil.” (Brasil, 1998, Preâmbulo; grifo nosso).  
 
A  tensão  entre  a  visão  de  que  somos  uma  comunidade 
imaginada homogênea, fraterna e harmônica está em contradição com o 
próprio texto constitucional, e pode ser explicada pela erosão paulatina 
do  discurso  da  “democracia  racial”  e  pela  emergência  de  um  “novo” 
discurso,  em  tese  mais  representativo,  das  aspirações  populares  em  se 
ver representada em suas diferenças de origem étnico‐racial, isto é, uma 
comunidade  que  se  imagina  diversa  culturalmente.  Do  ponto  de  vista 
institucional,  a  criação,  no  primeiro  governo  do  Presidente  Lula  da 
SEPPIR4 e da SECAD5, sinalizaram para um avanço na compreensão do 
Estado em relação ao problema racial presente na sociedade brasileira e, 
também,  em  relação  a  possíveis  caminhos  para  equacioná‐lo  em 
resposta à pressão dos setores organizados da população negra. 
Nesse sentido, ao se revisitar o argumento de Anderson (2008) de 
que  a  identidade  nacional  é  uma  “comunidade  imaginada”  em  suas 
consequências,  nem  sempre  analisadas  em  nosso  país,  é  possível  uma 
nova  compreensão  das  mudanças  sociais  em  curso,  em  especial  no  que 
diz respeito à diversidade étnico‐racial brasileira, como segue: a primeira 
é  que  as  culturas  nacionais  são  compostas  não  somente  de  instituições 
culturais, mas de símbolos e representações. Uma cultura nacional é um 
discurso  –  uma  maneira  de  construir  significados  que  influenciam  e 
organizam  tanto  nossas  ações,  quanto  nossas  concepções  sobre  nós 
mesmos; a segunda é que tais culturas nacionais constroem identidades 
ao produzirem significados sobre a  “nação”  com os  quais  podemos nos 

                                                            
4 A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), criada pelo governo 
federal  no  dia  21  de  março  de  2003,  no  Dia  Internacional  pela  Eliminação  da 
Discriminação Racial, objetiva o reconhecimento das lutas históricas do movimento negro 
brasileiro e o estabelecimento de iniciativas contra as desigualdades raciais no país. 
5  A  Secretaria  de  Educação  Continuada,  Alfabetização  e  Diversidade  do  Ministério  da 

Educação  (SECAD/MEC),  oficialmente  criada  em  julho  de  2004,  reúne  temas  como 
alfabetização  e  educação  de  jovens  e  adultos,  educação  do  campo,  educação 
ambiental,  educação  escolar  indígena  e  diversidade  étnico‐racial,  temas  antes 
distribuídos  em  outras  secretarias.  A  criação  da  Secad  marcou  a  valorização  da 
diversidade da população brasileira, por meio da formulação de políticas públicas e 
sociais como instrumento de cidadania. 

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identificar. Estes significados estão contidos nas histórias que são contadas 
sobre ela, nas memórias que conectam seu presente com seu passado, e 
nas imagens que são construídas a propósito delas [nações]. 
De  acordo  com  Bhabha  (2010:  11),  “as  nações,  como  narrativas, 
perdem  suas  origens  nos  mitos  do  tempo  e  somente  percebem 
inteiramente seus horizontes nos olhos da mente”. Daí a importância de 
nos perguntarmos: Como a narrativa da cultura nacional é contada? 
Segundo  Hall,  cinco  aspectos  importantes  se  destacam,  dentre 
muitos, para uma resposta compreensível à questão: 
1) A  narrativa  da  nação,  contada  e  recontada  nas  histórias  e 
literaturas nacionais, na mídia e na cultura popular, oferece um 
conjunto  de  histórias,  imagens,  paisagens,  cenários,  eventos 
históricos,  símbolos  e  rituais  nacionais  que  sustentam,  ou 
representam,  as  experiências,  as  tristezas  compartilhadas,  os 
triunfos e desastres que dão sentido à nação; 
2) Há  ênfase  nas  origens,  na  continuidade,  na  tradição  e  na 
atemporalidade.  A  identidade  nacional  é  representada  como 
primordial. O essencial do caráter nacional permanece imutável 
através de todas as vicissitudes da história; 
3)  “(...)  a  tradição  inventada  [significa]  um  conjunto  de  práticas, 
(...) de uma natureza simbólica ou ritual que procuram inculcar 
certos valores e normas de comportamento através da repetição 
que  automaticamente  implica  a  continuidade  de  um  passado 
histórico adequado” (Hobsbawn & Ranger, 1983: 1); 
4) O mito fundante é uma história que localiza a origem da nação, 
as pessoas e suas características nacionais como tão antigas que 
elas estão perdidas na névoa do tempo, não “real”, mas mítico; 
5) A  identidade  nacional  é  também,  muitas  vezes,  baseada 
simbolicamente na ideia de um povo ou “folk” puro, original. 
Desse  modo,  uma  cultura  nacional  funciona  como  uma  fonte  de 
significados  culturais,  como  um  foco  de  identificação  e  como  um 
sistema de representação. Em seu famoso ensaio sobre o assunto, Renan 
(2010)  nos  diz  que  três  coisas  constituem  o  princípio  da  unidade  da 
nação:  a  posse  comum  de  um  legado  de  memória  (memórias  do 
passado);  o  desejo  de  viver  conjuntamente  (o  desejo  de  vida  em 

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comum);  a  vontade  de  perpetuar  a  herança  que  se  recebeu  em  uma 
forma indivisível (a perpetuação da herança). 
Thimothy Brenan nos lembra que a palavra nação refere‐se “tanto 
ao  Estado  nacional  moderno  quanto  a  algo  mais  antigo  e  nebuloso  –  a 
natio –, uma comunidade local, domicílio, família, condição de pertença” 
(Brennan,  2010:  66).  As  identidades  nacionais  representavam 
precisamente  o  resultado  da  junção  destas  duas  metades  da  equação 
nacional – oferecendo tanto a filiação política ao Estado nacional, quanto 
a  identificação  com  a  cultura  nacional:  “tornar  cultura  e  política 
congruentes”  e  favorecer  “as  culturas  razoavelmente  homogêneas,  cada 
qual com seu próprio teto político” (Gellner, 1983: 43). 
De  acordo  com  Santos,  a  representação  da  mestiçagem6 
encarnou nos brasileiros, por meio do ideal da democracia racial, o não 
reconhecimento  da  existência  e,  consequentemente,  da  relevância  das 
raças  na  formação  e  na  dinâmica  social  brasileira,  estas  entendidas 
como  cordiais  e  assimilacionistas.  Este  não  reconhecimento  das  raças 
resultou na dedução da inexistência do racismo, ou melhor, confiaram 
que  o  antirracialismo  promoveria  o  antirracismo  no  país.  Entretanto, 
sorrateiramente,  as  práticas  racistas  permaneceram  (e  permanecem), 
marginalizando,  simbólica  e  materialmente,  os  negros  (Santos,  2010). 
No entanto, com base na perspectiva de Winant se verifica, a partir da 
agência  do  movimento  social  negro,  a  possibilidade  de  analisar  o  caso 
brasileiro com base na incorporação das três determinações de modo a 
tratar raça como alguma coisa nem fantasmagórica, nem tangível, nem 
                                                            
6   O  conceito  de  mestiçagem  é  uma  construção  que  só  adquire  sentido  quando 
considerada em relação com seu par, a noção de raça. Ele nos conduz a um paradoxo 
básico da ideia de mestiçagem. Um mestiço se forma a partir de duas ou mais raças. 
Assim,  o  paradigma  dominante  das  ciências  biológicas  afirma  veementemente  que 
não existem raças, que só existe uma raça humana. De acordo com esta concepção foi 
se  convencionando  a  noção  de  populações  humanas  como  um  substituto  heurístico 
do conceito obsoleto de raça, de modo que nos permite continuar usando a ideia de 
mestiçagem.  Contudo,  a  palavra  mestiçagem  encontra  sua  maior  difusão  no  sentido 
ideológico  de  caracterizar  alguns  grupos  humanos  que  se  autodefinem 
estrategicamente, frente a outros considerados “puros” ou  homogêneos racialmente, 
como mestiços. Esta ideologia da mestiçagem é especialmente importante na America 
Latina que se vê mestiça em oposição aos Estados Unidos da América e a África do 
Sul  (durante  o  regime  do  Apartheid);  nações  que  se  definem  como  segregadas  e,  em 
consequência, não mestiças (Barañano et al., 2007).  

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verdadeira, nem falsa. Tais determinações indicam: a dimensão política, 
a global comparativa e a histórico‐temporal. 
A  nossa  hipótese  é  de  que  o  deslocamento  na  forma  como  a 
sociedade  brasileira  se  autorrepresentava  é  decorrente  do  processo  de 
luta  política  pela  (res)significação/deslocamento  do  lugar  do  ser  negro 
no processo de racialização de sua experiência coletiva.  
No  plano  político,  o  questionamento  ao  ideário  da  democracia 
racial  e  a  demonstração  empírica  da  desigualdade  de  tratamento  de 
brancos  e  não‐brancos  no  mercado  de  trabalho  têm  provocado  uma 
rediscussão  em  torno  da  forma  e  conteúdo  da  presença  das  culturas 
africanas  na  formação  social  brasileira.  É  possível  destacar  alguns 
aspectos  que  permitem  sustentar  essa  linha  de  raciocínio,  a  saber:  1)  o 
tratamento político‐jurídico da temática da diversidade e da igualdade 
racial na Constituição de 1988; 2) a alteração da Lei de Diretrizes e Bases 
da educação brasileira, e as diretrizes que a acompanham, orienta para 
uma  mudança  significativa  nos  conteúdos  curriculares  nacionais,  ao 
prescrever  a  obrigatoriedade  de  uma  educação  que  possibilite  a 
construção de relações étnico‐raciais saudáveis e que inclua a história e 
a cultura afro‐brasileira e africana e, também, indígena.  
De  acordo  com  Silva  Jr.,  a  Constituição  de  1988  representa, 
também,  um  marco  no  tratamento  político‐jurídico  da  temática  da 
diversidade  e  da  igualdade  racial,  como  um  dos  reflexos  da  atuação 
política  do  movimento  negro.  Para  o  autor,  alguns  aspectos  merecem 
destaque: 
1) A  reconsideração  do  papel  da  África  na  formação  da 
nacionalidade brasileira; 
2) O reconhecimento do caráter pluriétnico da sociedade brasileira 
como fundamento constitucional do currículo escolar; 
3) O  direito  constitucional  à  identidade  étnica  como 
fundamento do currículo escolar; 
4) A cultura negra como base do processo civilizatório nacional 
e como um eixo estruturante do currículo escolar.  
Uma  leitura  possível  das  diretrizes  e  de  seu  plano  nacional  de 
implementação,  verifica  que  estas,  em  suas  questões  introdutórias, 
procuram  oferecer  uma  resposta  na  área  de  educação  à  demanda  da 
população  afrodescendente  por  políticas  de  ação  afirmativa,  entendida 

50
 
tanto na dimensão reparatória quanto na dimensão do reconhecimento e 
valorização de sua história, cultura e identidade. “Trata, ele, [o parecer], 
de  política  curricular,  fundada  em  dimensões  históricas,  sociais, 
antropológicas oriundas da realidade brasileira, com o objetivo explicito 
de combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente 
os  negros”  (Diretrizes,  2004:  6).  Para  tanto,  de  forma  propositiva,  as 
diretrizes  recomendam  a  divulgação  e  produção  de  conhecimentos;  a 
formação  de  atitudes,  posturas  e  valores  que  eduquem  cidadãos 
orgulhosos de seu pertencimento étnico‐racial; a criação de condições, no 
ambiente escolar, para que professores e alunos interajam na construção 
de  uma  nação  democrática;  e  sugerem  a  consolidação/obtenção  de 
direitos  que  garantam  a  valorização  de  sua  identidade.  No  que  diz 
respeito às metas, as diretrizes estabelecem as seguintes:  
1)  o  direito  dos  negros  se  reconhecerem  na  cultura  nacional, 
manifestarem  seus  pensamentos  com  autonomia,  individual  e 
coletiva, e expressarem visões próprias de mundo;  
2)  o  direito  dos  negros  cursarem  cada  um  dos  níveis  de  ensino 
das  diferentes  áreas  de  conhecimento,  com  formação  para  lidar 
com as tensas relações produzidas pelo racismo e discriminações 
sensíveis e capazes de conduzir à reeducação das relações entre 
diferentes grupos étnico‐raciais. 
Em  consonância  com  o  debate  sobre  políticas  de  reparação,  de 
reconhecimento  e  valorização  da  população  negra  e,  também,  com  o 
artigo  205  da  Constituição  Federal  de  1988,  as  diretrizes  acentuam  o 
papel  do  Estado  em  promover  e  incentivar  políticas  de  reparações. 
Quanto  à  educação  das  relações  étnico‐raciais,  elas  sugerem  a 
necessidade  de  reeducá‐las.  Assim,  as  diretrizes  enfatizam  que,  para 
reeducar as relações étnico‐raciais, impõe‐se à educação aprendizagens 
entre  negros  e  brancos,  trocas  de  conhecimento,  quebra  de 
desconfianças,  projetos  conjuntos  para  a  construção  de  uma  sociedade 
justa,  igual,  equânime.  Para  tanto,  impõe‐se  a  necessidade  de  rever  e 
atualizar o papel da escola, onde a formação para um tipo de cidadania 
regulada  tem  se  tensionado  com  a  construção/preservação  da 
identidade particular dos afrodescendentes. 
Em  relação  à  formação  de  professores,  as  diretrizes  orientam  no 
sentido  de  se  desfazer  a  mentalidade  racista  e  discriminadora  secular; 

51
 
para  a  necessidade  de  superar  o  etnocentrismo  europeu;  para  a 
desalienação dos processos pedagógicos; para a construção de projetos 
pedagógicos,  e  pedagogias  que  desvendem  os  mecanismos  racistas  e 
discriminatórios  com  o  objetivo  de  reeducar  as  relações  étnico‐raciais. 
Nesse  sentido,  elas  arrolam  algumas  providências  a  serem  tomadas 
pelos  gestores  dos  sistemas  de  ensino  e  autoridades  responsáveis  pela 
política pública educacional: 
1) Ampliar  o  foco  dos  currículos  escolares  para  a  diversidade 
cultural, racial, social e econômica brasileira;  
2)  A  autonomia  dos  estabelecimentos  de  ensino  para  compor  os 
projetos pedagógicos, no cumprimento ao exigido pelo artigo 26 
da Lei n. 9.394/1996, permite que eles se valham da colaboração 
das  comunidades  a  que  a  escola  serve,  do  apoio  direto  ou 
indireto de estudiosos e do movimento negro; 
3) Caberá aos sistemas de ensino, às mantenedoras, à coordenação 
pedagógica  dos  estabelecimentos  de  ensino  e  aos  professores, 
com base no Parecer, estabelecer conteúdos de ensino, unidades 
de  estudos,  projetos  e  programas,  abrangendo  os  diferentes 
componentes curriculares; 
4) Caberá  aos  administradores  dos  sistemas  de  ensino  e  das 
mantenedoras  prover  as  escolas,  seus  professores  e  alunos  de 
material bibliográfico e de outros materiais didáticos, relativos à 
educação  das  relações  étnico‐raciais  e  do  ensino  de  história  e 
cultura  afro‐brasileira  e  africana,  além  de  acompanhar  os 
trabalhos  desenvolvidos  tanto  na  formação  inicial  como 
continuada de professores.  

52
 
De  acordo  com  as  diretrizes7,  bem  como  o  plano  nacional  de  sua 
implementação,  tais  condições  são  necessárias,  tanto  para  a 
(des)racialização de uma sociedade que se utiliza da desvalorização da 
cultura  de  matriz  africana  e  dos  aspectos  físicos  herdados  pelos 
descendentes  de  africanos,  quanto  para  o  processo  de  construção  da 
identidade negra no Brasil, de forma condizente com o legado histórico 
das culturas africanas no país.  
A História Geral da África (HGA), desde a publicação do primeiro 
dos  oito  volumes,  pela  Unesco  de  Paris,  passou  a  inspirar  jovens 
descendentes  de  africanos  em  diferentes  regiões  do  globo  e, 
especialmente, no Brasil. As denúncias sobre discriminação e racismo e a 
demonstração pública do conteúdo de uma leitura recriada das culturas 
africanas na diáspora, por exemplo, por meio dos blocos afros tais como o 
Olodum  e  o  Ilê  Ayê,  são  aspectos  fundamentais  do  processo  da  luta 
política  para  construção  de  uma  identidade  negra  que  tem  revelado 
menos a erosão e mais a resignificação do mito da democracia racial.  
A  junção  entre  cultura  e  política  é  constitutiva  do  tipo  de  ação 
das  denominadas,  por  seus  próprios  membros,  entidades  ou 
organizações  negras.  Assim,  a  reivindicação  por  educação  surge  em 
consonância  com  o  legado  das  gerações  anteriores  de  militantes  da 
causa negra, mesmo antes do processo de redemocratização do Estado 
brasileiro.  A  questão,  a  saber,  é  a  seguinte:  Há  algo  novo  a  se  dizer 
sobre as relações raciais no Brasil contemporâneo? A resposta é sim. E a 
novidade  é  decorrente  da  centralidade  que  a  política  pública 
educacional  passou  a  adquirir,  para  o  movimento  negro 

                                                            
7   O  Plano  Nacional  de  Implementação  das  Diretrizes  Curriculares  Nacionais  para  a 
Educação  das  Relações  Étnico‐Raciais  e  para  o  Ensino  de  História  e  Cultura  Afro‐
Brasileira  e  Africana  é  o  resultado  das  solicitações  advindas  dos  anseios  regionais, 
consubstanciadas  pelo  documento  Contribuições  para  a  Implementação  da  Lei  n. 
10.639/2003:  Proposta  de  Plano  Nacional  de  Implementação  das  Diretrizes  Curriculares 
Nacionais  da  Educação  das  Relações  Étnico‐Raciais  e  para  o  Ensino  de  História  e  Cultura 
Afro‐Brasileira  e  Africana,  fruto  de  seis  encontros  denominados  Diálogos  Regionais 
sobre  a  Implementação  da  Lei  n.  10.639/03,  do  conjunto  de  ações  que  o  MEC 
desenvolve, principalmente a partir do surgimento da Secad, em 2004, documentos e 
textos  legais  sobre  o  assunto.  Cabe  aqui  registrar  a  participação  estratégica  do  Setor 
de  Educação  da  Unesco  do  Brasil,  do  movimento  negro,  além  de  intelectuais  e 
ativistas da causa antirracista. 

53
 
contemporâneo, como lugar de disputa da articulação de dois tipos de 
demandas  que  se  tenta  equacionar  em  seu  interior.  A  primeira,  em 
relação  à  qualidade  da  educação  formal  que  é  vista  tanto  como  um 
direito, quanto como a forma por excelência de mobilidade ocupacional 
e social. A segunda é a luta política por mais e melhor educação a qual 
continua  tendo  como  exigência  o  resgate  da  contribuição  das  culturas 
africanas para a formação social brasileira. 
Dessa forma, a obrigatoriedade, em todo o sistema de ensino, de 
conteúdos que proporcionem o conhecimento de história e cultura afro‐
brasileira  e  africana,  em  toda  a  educação  básica,  por  um  lado,  exige 
mudanças no conteúdo curricular de todos os cursos superiores do país 
e, por outro lado, é uma oportunidade de uma ressignificação do país e 
de  sua  história,  levando‐se  em  conta  a  perspectiva  daqueles 
considerados como o “outro”.  
Nesse  aspecto,  a  comparação  com  os  Estados  Unidos  e  com  a 
África do Sul é inevitável quando se considera a globalização do espaço 
racial;  não  é  mais  possível  o  simples  contraste  entre  preconceito  de 
origem  (EUA  e  África  do  Sul)  e  preconceito  de  marca  (Brasil).  Novas 
pesquisas  poderão  desvendar  como  os  movimentos  de  luta  de 
libertação  no  continente  africano,  o  movimento  dos  direitos  civis  nos 
EUA, a derrocada do apartheid na África do Sul, impactaram nas lutas 
dos  afro‐brasileiros  a  partir  da  percepção  de  que  a  diferenciação  dos 
processos  de  colonização  não  impediu  que  o  elemento  africano  fosse 
racializado  nos  diferentes  contextos.  Ao  mesmo,  tais  movimentos 
geraram novas formas de solidariedade e uma consciência renovada em 
termos da dimensão global da discriminação racial e do racismo.   
Quando  se  considera  o  papel  que  o  Brasil  tem  desempenhado 
como  potencial  ator  global,  em  especial,  na  última  década,  no  diálogo 
sul‐sul  e  com  atenção  à  relação  com  o  continente  africano,  as 
expectativas da União Africana em relação à sexta região8 e os sentidos 

                                                            
8   O  Protocolo  de  Emendas  ao  Ato  Constitutivo  da  União  Africana,  adotado  pela  Sessão 
Extraordinária da Primeira Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo em Addis 
Abeba,  Etiópia,  em  Janeiro  de  2003,  e  em  particular  o  artigo  3º  (q),  que  convida  a 
diáspora  africana  a  participar  como  um  importante  componente  na  construção  da 
União  Africana.  O  protocolo  insiste  na  ideia  de  que  os  descendentes  de  africanos,  em 
especial os residentes no continente americano, formariam a sexta região do continente. 

54
 
da ação do movimento negro brasileiro no que diz respeito à diáspora, é 
possível  pensar  a  seguinte  questão:  o  que  o  discurso  sobre  a  diáspora, 
efetivamente, pode articular? 
O  discurso  sobre  a  diáspora  articula,  a  partir  do  simbolismo  e  de 
representações que ele emana, expectativas, ações, resultados práticos e 
dimensões institucionais distintas, a saber:  
1) a  União  Africana  se  caracteriza  como  uma  confederação  de 
Estados nacionais, na qual têm assento 53 chefes de Estado. De 
acordo  com  seu  ato  constitutivo,  foi  inspirada  nos  ideais  que 
nortearam os fundadores da organização continental e gerações 
de  pan‐africanistas  em  sua  determinação  de  promover  a 
unidade, a solidariedade, coesão e cooperação entre os povos da 
África  e  os  Estados  africanos;  posteriormente,  foram 
acrescentados  no  ato  constitutivo  todos  os  afrodescendentes 
dispersos pelo mundo; 
2) a partir da influência das culturas africanas  que  participaram da 
formação  social  brasileira  e  da  presença  de  um  grande 
contingente  de  população  negra,  o  Estado  operacionaliza  um 
discurso  pelo  qual  molda  atitudes,  representações  e  políticas. 
Estas  se  assentam,  sobretudo,  na  crença  da  ausência  de  racismo, 
na  harmonia  social  brasileira  e  nas  virtudes  da  brasilidade.  A 
ideia de diáspora africana, portanto, pode ser pensada como um 
dos sustentáculos da política externa brasileira para construção do 
país  como  ator  global  e  como  o  principal  elo  comercial  e 
econômico  com  os  países  africanos,  além  de  possibilitar  um 
discurso intranacional em resposta a setores do movimento negro; 
3) o  movimento  negro  não  pode  mais  ser  lido  como  unitário,  em 
termos  de  sua  perspectiva  de  ação  a  partir  do  conceito  de 
diáspora;  em  particular,  na  perspectiva  de  Brah  (1996),  que 
propõe  a  distinção  entre  o  conceito  teórico  de  diáspora  e  a 
experiência de diáspora. Com tal distinção, a autora sugere que 
este  conceito  seja  apreendido  como  “genealogias” 
historicamente  contingentes,  no  sentido  de  Foucault,  ou  seja, 
como um  conjunto de tecnologias de pesquisa que constroem a 
história das trajetórias das diferentes diásporas e analisam seus 
relacionamentos  através  dos  campos  sociais,  da  subjetividade  e 

55
 
da identidade. Para a autora, o conceito de diáspora oferece uma 
crítica  aos  discursos  que  fazem  exame  preconcebido  de 
determinadas  origens  imutáveis,  tendo  em  conta  o  desejo  de 
voltar  para  casa,  que  não  é  o  mesmo  que  voltar  à  “pátria”.  A 
distinção  é  importante  porque  nem  todas  as  diásporas  mantêm 
uma  ideologia  de  “retorno”;  mais  ainda,  Brah  (op.  cit.)  afirma 
que  o  subtexto  “lar”,  que  compreende  o  conceito  de  diáspora, 
permite  a  análise  da  problemática  da  posição  do  sujeito 
“autóctone” e sua precária relação com os discursos “nativistas”. 
 
Em  relação  aos  negros  brasileiros,  se  não  encontramos  uma 
ideologia de retorno físico à origem africana, identificamos pelo menos 
dois discursos distintos: um que dilui a origem africana na brasilidade; 
outro,  no  qual  a  origem  africana  é  discursivamente  constitutiva  da 
identidade, daí a utilização recente de expressões como afrodescendente 
e afro‐brasileiro. A impossibilidade de voltar para a casa da mãe África 
em  ambos  os  discursos  permite  observar  lógicas  distintas  no  uso  do 
conceito de diáspora: uma que contigencia e restringe a origem africana 
a uma dinâmica nacional; outra na qual aquela origem é utilizada como 
elemento  de  crítica  da  posição  do  sujeito  negro  na  sua  relação  com  a 
sociedade que, ao racializar sua pertença étnica, o hierarquiza, podendo 
ele,  no  entanto,  ao  recriar  sua  origem  para  além  da  fronteira  nacional 
numa  perspectiva  diaspórica,  denunciar  a  forma  como  a  diferença  é 
transformada  em  desigualdade  social  no  Brasil,  e  em  vários  Estados 
nacionais latino‐americanos. 
Do  ponto  de  vista  de  uma  nova  agenda  de  pesquisa  sobre  o  negro 
no Brasil a dimensão histórico‐temporal, proposta por Winant, pode nos 
reorientar  para  uma  aproximação  teórica  aos  escritos  pós‐
estruturalistas, preocupados com as diferenças entre os seres humanos 
em  especial  aqueles  que  têm  feito  esforços  para  explicar  o  “Ocidente” 
ou  o  tempo  colonial  como  um  vasto  projeto  de  demarcação  das 
“diferenças”  humanas,  ou  mais  globalmente,  argumentando  sobre  a 
formação  parcial  de  identidades  coletivas,  em  termos  de  “Outros” 
externalizados.  
 
 

56
 
 
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4‐ DIRETRIZES  CURRICULARES  NACIONAIS  PARA  A  EDUCAÇÃO 
DAS  RELAÇÕES  ÉTNICO‐RACIAIS  E  PARA  O  ENSINO  DE 
HISTÓRIA  E  CULTURA  AFRO‐BRASILEIRA  E  AFRICANA.  O 
Conselho Pleno aprova por unanimidade o voto da Relatora. Sala das 
Sessões, 10 em março de 2004. 
 
 
 
 
 

60
 
O ativismo político‐cristão na Argentina e no Brasil 
 
André Ricardo de Souza1 
María Candelaria Sgró Ruata2 
Maximiliano Campana3 
 
 
1. Introdução 
 
Este  texto  apresenta  dados  e  reflexões  sobre  alguns  aspectos  do 
cristianismo  no  Brasil  e  na  Argentina4.  Em  ambos  os  países  os 
segmentos  católicos  e  evangélicos  se  posicionam  no  espaço  público, 
mediante  manifestações  organizadas  e  militância  político‐partidária, 
tanto  na  defesa  de  seus  interesses  como  de  seus  valores  doutrinários. 
Tentam  e,  às  vezes,  conseguem  pressionar  os  governos  instituídos, 
sobretudo através de sua representação parlamentária. Alguns ativistas 
cristãos,  bastante  identificados  com  as  igrejas,  chegam  inclusive  a 
ocupar cargos executivos relevantes.  
A  questão  da  moral  sexual  ocupa  lugar  de  destaque  em  termos  de 
mobilização  de  militantes  católicos  e  evangélicos,  exercendo  influência 
também  sobre  os  processos  eleitorais.  O  texto  traça  um  panorama 
religioso desses países, destacando a presença cristã e discutindo como 
suas instituições e lideranças se articulam em questões controversas.  

                                                            
1  Doutor  em  Sociologia  pela  Universidade  de  São  Paulo  e  professor  adjunto  do 
Departamento de Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. 
2  Licenciada  em  Comunicação  Social  pela  Universidade  Nacional  de  Córdoba  (UNC‐

Argentina).  Mestranda  em  Sociologia  e  Doutoranda  em  Estudos  Sociais  da  América 
Latina do Centro de Estudos Avançados (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET‐ CIECS.  
3  Advogado.  Universidade  Nacional  de  Córdoba.  Doutorando  em  Direito  e  Ciências 

Sociais (CEA‐UNC). Bolsista da CONICET – CIJS. 
4  Por  opção  metodológica,  uma  importante  vertente  cristã  foi  deixada  de  lado  neste 

texto:  o  espiritismo  kardecista.  Tal  exclusão,  evidentemente  sociológica,  e  não 


teológica, se deve ao fato de que os espíritas promovem a materialização do princípio 
cristão  da  caridade  em  significativas  obras  de  assistência  social  e  em  função  da 
centralidade  do  culto  a  Jesus  Cristo  em  seus  preceitos  doutrinários.  (Arribas,  2010; 
Souza,  2012).  Ainda  que  seja  a  terceira  maior  religião  no  Brasil  (2%),  sua  expressão 
política e demográfica na Argentina é quase nula.  

61
 
Para  isso  este  trabalho  se  divide  em  duas  grandes  sessões.  Na 
primeira,  são  apresentadas  algumas  dimensões  e  características 
particulares em relação à conformação do campo religioso no Brasil e na 
Argentina. Apesar das diferenças entre ambos os países no registro de 
dados  sobre  variáveis  religiosas  na  população,  se  pretende  configurar 
um  panorama  geral  que  servirá  para  levantar  alguns  elementos 
comparativos.  Na  segunda  sessão,  por  meio  de  exemplos,  são 
levantados  debates  sobre  políticas  de  sexualidade  e  reprodução,  em 
ambos os contextos, a fim de delinear o ativismo dos setores religiosos 
ao redor da busca de definições da moral sexual. 
 
2. O campo religioso 
 
2.1 A demografia religiosa no Brasil 
 
A sociologia da religião no Brasil, assim como em muitos outros 
países,  têm  se  debruçado  principalmente  ao  cristianismo, 
caracterizando‐se  como  uma  “Sociologia  do  catolicismo  em  queda” 
(Pierucci,  2004:19),  fenômeno  que  origina  uma  ainda  modesta 
diversificação  religiosa.  Em  1940,  os  católicos  representavam  96,2%  no 
primeiro censo demográfico em que o Instituto Brasileiro de Geografia 
(IBGE)  considerou  a  questão  religiosa.  Esta  cifra  chegou  em  2010,  ano 
do  último  censo  com  dados  disponíveis,  a  64,6%.  Por  outro  lado,  os 
protestantes,  tanto  os  missionários  ou  históricos  como  os  pentecostais, 
formavam  naquele  primeiro  censo  2,6%,  passando  a  compor  sete 
décadas depois a 22,2% da população total. Mas o contingente que mais 
cresceu foi o dos “sem religião”, que de 0,2% passou a 8,0%5.  
Os  dados  mostram  que  em  1970  os  ‘sem  religião’  dobraram  de 
tamanho  e  na  década  posterior  tiveram  um  notável  crescimento  de 
quase 200%. Já os anos 90 foram marcados por um grande crescimento 
evangélico  (73%),  devido  a  uma  explosão  Pentecostal,  provocada 
principalmente  pela  expansão  da  Igreja  Universal  do  Reino  de  Deus 
(IURD), fundada no Rio de Janeiro em 1977. Como consequência disso e 
                                                            
5   Fernandes  e  Pita  (2006:131)  apontam  um  dado  curioso  sobre  os  sem  religião:  33,2% 
deles  eram  antes  pentecostais,  enquanto  que  23,1%  e  11,8%,  respectivamente,  eram 
católicos e protestantes históricos.  

62
 
do também contínuo crescimento dos sem religião, o segmento católico 
teve  uma  redução  proporcionalmente  maior  que  o  crescimento 
evangélico  (128%).  Conclui‐se  que,  ao  final  do  século  XX,  tornou‐se 
bastante  mais  fácil  não  ser  católico  e  abraçar  o  protestantismo  ou, 
inclusive, nenhum credo religioso.  
 
        Tabela 1. Religiosidade no Brasil – 1940‐2010. 
Outras 
Ano  Católicos  Evangélicos  Sem religião 
religiões 
1940  95,2  2,6  1,9  0,2 
1950  93,7  3,4  2,4  0,3 
1960  93,1  4,3  2,4  0,5 
1970  91,8  5,2  2,3  0,8 
1980  89,0  6,6  2,5  1,6 
1991  83,3  9,0  2,9  4,7 
2000  73,9  15,6  3,5  7,4 
2010  64,6  22,2  5,2  8,0 
Fonte: IBGE ‐ censos demográficos (% da população nacional). 
 
No  universo  católico  existe  certa  diversidade,  sendo  ainda  a 
distinção  básica  aquela  que  se  refere  ao  catolicismo  nominal  e  ao 
internalizado.  Os  católicos  nominais  abrangem  a  versão  tradicional,  tanto 
rural  como  urbana  (Camargo,  1973).  No  âmbito  do  catolicismo 
internalizado,  as  duas  grandes  vertentes  são:  a  Renovação  Carismática 
Católica  e  a  Teologia  da  Libertação/Comunidades  eclesiásticas  de  base 
(CEBs).  
 
           Tabela 2. Diversificação dos católicos em 1994. 
Vertentes  % 
Tradicionais ou Nominais  61,4 
Identificados com a Renovação Carismática  3,8 
Identificados com as Comunidades Eclesiásticas de Base  1,8 
Identificados com outros movimentos  7,9 
Total  74,9 
Fonte: Datafolha (1994) – Pierucci & Prandi (1996). 
 

63
 
A pesquisa realizada por Pierucci e Prandi (1995), com dados do 
Instituto Datafolha sobre as eleições presidenciais de 1994, mostrou que 
havia  61,4%  de  católicos  tradicionais  ou  nominais,  3,8%  de  católicos 
carismáticos, 1,8% de participantes das CEBs e 7,9% vinculados a outros 
movimentos internos da igreja. Havia, portanto, 14% de praticantes do 
catolicismo internalizado.    
Em  termos  de  protestantismo,  a  divisão  básica  ocorre  entre  as 
igrejas protestantes históricas ou missionárias e as pentecostais. Entre as 
históricas  se  encontram:  a  Batista,  a  Presbiteriana,  a  Luterana  e  a 
Metodista. No âmbito do pentecostalismo, temos três categorias básicas 
de igrejas: pentecostais clássicas, instaladas no Brasil no início do século 
XX  (Congregação  Cristã  do  Brasil  e  Assembleia  de  Deus),  pentecostais 
de cura divina, inseridas ou criadas no país entre as décadas de 50 e 60 
(Evangelho  Quadrangular,  Brasil  para  Cristo  e  Deus  é  Amor),  e 
neopentecostais,  formadas  a  partir  da  década  de  1970.  As  principais 
denominações neopentecostais são: Igreja Universal do Reino de Deus, 
Igreja Internacional da Graça de Deus, Sara Nossa Terra, Igreja Mundial 
do  Poder  de  Deus  e  Renascer  em  Cristo  (Souza,  1969;  Freston,  1993, 
Mariano,  1999).  Em  termos  de  tamanho,  o  pentecostalismo  clássico 
aparece  em  primeiro  lugar,  seguido  pelo  neopentecostalismo.  A  IURD 
novamente  se  destaca  em  função  da  relação  entre  seu  tamanho  e  seu 
tempo  de  existência.  Enquanto  as  instituições  que  possuem  mais 
adeptos  que  ela  são,  no  mínimo,  centenárias,  esta  instituição  religiosa 
tem  somente  trinta  e  cinco  anos  de  idade.  Ou  seja,  conta  com  uma 
trajetória de expansão bastante acelerada.  
 
2.2 O campo religioso na Argentina 
 
Na  Argentina6  a  crença  em  Deus  se  encontra  amplamente 
enraizada,  representando  91,1%  da  população.  Entretanto,  esta  média 
varia de acordo com o gênero7, a idade8 e a escolaridade9.  
                                                            
6   Nos  censos  populacionais  realizados  na  Argentina,  somente  se  revelaram  dados 
relacionados à religião nos dos anos 1875, 1947 e 1960 (DGEC, 2010) pelo que se sabe 
de informações atualizadas provenientes do INDEC (Instituto Nacional de Estatística 
e Censos). Para a reconstrução do panorama religioso na Argentina foram usados os 
dados  coletados  pela  “Primeira  pesquisa  sobre  crenças  e  atitudes  religiosas  na 
Argentina” (Mallimaci y Esquivel, 2008). 

64
 
Em  relação  às  filiações  religiosas,  76,5%  das  pessoas  se 
consideram  católicas,  9%  evangélicas10,  1,2%  testemunhas  de  Jeová, 
0,9%  mórmons,  1,2%  professa  outras  religiões  e  11,3%  se  consideram 
indiferentes11.  
No  entanto,  embora  90%  dos  argentinos  creiam  em  Deus,  essa 
proporção  diminui  em  relação  ao  ato  de  frequentar  lugares  de  culto: 
quase  76%  disseram  que  raramente  ou  nunca  frequentam  tais  lugares 
(embora  no  caso  dos  evangélicos,  mais  de  60%  disseram  que 
frequentemente  estão  presentes).  Neste  sentido,  é  interessante  também 
apontar que 86% acham que podem ser bons religiosos sem frequentar a 
igreja  ou  um  templo,  76,3%  acham  que  deveria  ser  permitido  o 
casamento  de  padres  católicos  e  60,3%  que  deveria  ser  permitido  o 
sacerdócio às mulheres. 
Estes  dados,  entretanto,  apresentam  importantes  disparidades 
segundo  a  região  argentina  tratada.  Assim,  o  noroeste  argentino,  mais 
tradicional  e  conservador,  possui  os  índices  mais  altos  de  católicos, 
representando 91,7% do total. A região patagônica, por outro lado, é a 
menos  católica  (61,5%),  e  a  que  possui  os  índices  mais  altos  de 
evangélicos, mórmons e testemunhas de Jeová (25,3%). Buenos Aires e 
sua área metropolitana, em contrapartida, concentra o maior número de 
pessoas indiferentes frente às religiões e crenças religiosas (18%).  

                                                                                                                                                
7  As  mulheres  creem  mais  em  Deus  que  os  homens,  representando  93,6%  e  88,3%, 
respectivamente. 
8 A porcentagem de pessoas acima de 65 anos que se considera crente é de 96,7%, caindo 

progressivamente até a faixa etária que vai dos 18 aos 29 anos, na qual se consideram 
crentes 85,1%. 
9 Em geral, quanto maior a escolaridade, menor a porcentagem de argentinos que creem 

em Deus. Neste sentido, os percentuais se classificam do seguinte modo: pessoas sem 
estudos:  95,7%;  com  nível  elementar  completo:  93%;  com  nível  médio:  88%;  técnico: 
83,1% e superior: 84,5%.  
10 Entre elas se incluem: Pentecostal, Batista, Luterana, Metodista, Adventista e a Igreja 

Universal do Reino de Deus.  
11 Neste caso, se incluem agnósticos, ateus e os que não possuem nenhuma religião. 

65
 
Vale  destacar  que  atualmente  a  Argentina  determina12  em  sua 
constituição  nacional  (artigo  segundo)  que  “O  governo  federal  apoie  o 
culto católico apostólico romano” pondo em destaque, desta maneira, um 
reconhecimento privilegiado da Igreja católica na ordem jurídica, política e 
econômica do país13. Deste modo, o Estado (com suas forças de segurança) 
e  a  Igreja  Católica  são  tomados  como  fundadores  e  garantidores  da 
argentinidade desde as origens da nação. (Mallimaci, 2001).  
E, ademais, Esquivel (2010) lembra que  
 
“[a]s  iconografias  católicas  que  decoram  os  organismos  oficiais  e  a 
convocação  para  a  realização  do  Tedeum  não  estão  prescritas  na 
legislação, mas sua permanência e continuidade denotam com clareza 
o  indiscutido  e  naturalizado  papel  protagonista  que  a  Igreja  Católica 
detém  no  cenário  público  argentino.  Se  a  relação  entre  o  Estado  e  a 
Igreja Católica é regida pelo Acordo de 1966, a Constituição Nacional e 
a miríade de leis (…), o vínculo com os credos restantes se canaliza por 
meio do Registro Nacional de Cultos. Criado nos tempos da ditadura 
militar, em 1978 (Lei N° 21.745), o Registro Nacional de Cultos supõe 
que todas as entidades religiosas que exerçam suas atividades de culto 
na  Argentina,  com  exceção  da  Igreja  Católica,  devem  promover  sua 
inscrição  e  reconhecimento  oficial,  como  condição  prévia  para  sua 
atuação.” 
 
No entanto, a pesar da forte supremacia política e legal da Igreja 
católica recém descrita desde a sanção da constituição nacional em 1853 
e  até  à  atualidade,  o  artigo  14  dispõe  que  “Todos  os  habitantes  da 
Confederação  gozam  dos  seguintes  direitos:  (…)  de  professar 

                                                            
12  Apesar  dos  inúmeros  processos  de  reforma  constitucional,  o  artigo  segundo  de 
reconhecimento  privilegiado  da  Igreja  católica  segue  vigente.  Vale  mencionar  que  a 
constituição  argentina  foi  reformada  nos  anos  1860,  1866,  1898,  1949  (embora  esta 
reforma tenha sido anulada), 1957, 1972 e 1994. 
13  Apesar  de  negar  a  existência  de  um  projeto  de  nação  secular,  impulsionado 

principalmente durante as presidências de Domingo F. Sarmiento e Júlio A. Roca, “[a] 
secularização da sociedade argentina realizada pela burguesia liberal, que importou o 
modelo  econômico  de  Londres  e  o  modelo  cultural  de  Paris,  estava  incompleta.  As 
leis  do  ensino  laico  e  do  registro  civil  de  nascimentos,  matrimônios  e  mortes 
reduziram a influência eclesiástica. Mas, ao contrário de países vizinhos, a dinâmica 
das reformas não foi suficiente para separar o Estado da Igreja.ʺ 

66
 
livremente seu culto.” Esta liberdade de cultos data de 1825, quando se 
celebrou  o  tratado  de  amizade,  comércio  e  navegação  com  a  Coroa 
Britânica,  que  concedia  aos  imigrantes  ingleses  a  possibilidade  de 
celebrar seu culto de forma privada, sendo o pontapé inicial para o que 
logo constituiria o campo evangélico na Argentina.  
  Em  relação  ao  denominado  “campo  religioso  evangélico”, 
Wynarczyk (2003) adverte que devem se distinguir três movimentos no 
tempo:  um  primeiro,  vinculado  àqueles  herdeiros  da  Reforma 
Protestante do século XVI e chegados à Argentina durante os processos 
migratórios impulsionados no fim do século XIX; um segundo formado 
por  aqueles  evangélicos  afiliados  às  ideias  da  denominada  “Reforma 
Radical”  do  século  XVI,  e  que  chegaram  à  Argentina  através  das 
missões  conversionistas;  e  por  último,  um  terceiro  movimento,  com 
características  pentecostais,  que  se  estabeleceu  principalmente  nos 
setores  populares  do  país.  Durante  os  anos  noventa,  os  setores 
evangélicos começaram a ganhar adeptos e, dessa maneira, chegaram a 
se  fortalecer  como  a  primeira  minoria  religiosa  do  país  (Frigerio  e 
Wynarczyk, 2008).  
Atualmente,  na  Argentina  os  evangélicos  formam  a  minoria 
religiosa  mais  importante,  cujo  percentual  varia  de  5  a  10%  da  nação. 
Isso seria equivalente a uma população de 3,5 a 5 milhões de habitantes. 
Neste  sentido,  um  dado  interessante  é  que  há  divergências  associadas 
aos  níveis  socioeconômicos.  Em  geral,  se  estima  que  o  percentual  de 
evangélicos  nos  setores  populares  urbanos  pode  alcançar  ‐  e  inclusive 
superar  ‐  20%  da  população  (principalmente  os  pentecostais).  Os 
percentuais  diminuem  quando  se  trata  de  setores  com  população  de 
renda média e média alta, onde os evangélicos representam entre 3% e 
5%. (Esquivel et al., 2001; Frigerio e Wynarczyk, 2008).   
Além de representar a principal minoria religiosa na Argentina, 
os evangélicos representam cerca de 75% do total de cultos não católicos 
matriculados  nos  registros  da  Secretaria  de  Culto  da  Nação 
(Wynarczyk, 2003), evidenciando que o campo evangélico, longe de ser 
um  todo  homogêneo,  se  apresenta  como  um  campo  complexo  e 
fragmentado,  com  grandes  igrejas  e  templos  que  possuem  uma  certa 
independência e que nem sempre apresentam os mesmos objetivos nem 
são regidos pelos mesmos princípios doutrinários. 

67
 
3. Religião e política 
 
3.1. O cristianismo brasileiro e a política partidária  
 
  Em  termos  de  engajamento  com  o  mundo  político,  os  católicos 
têm  um  envolvimento  histórico  através  de  seus  intelectuais  e 
instituições, tendo exercido uma grande influência sobre os governos da 
República Velha e do presidente Getúlio Vargas. Mais tarde, no período 
mais difícil da ditadura militar, as pastorais sociais e as CEBs católicas 
exerceriam  um  importante  papel  na  resistência,  abrigo  e  apoio  aos 
ativistas de esquerda (Mainwaring, 1989). Nos anos noventa, a Teologia 
da  Libertação  perdeu  forças,  abrindo  um  grande  espaço  à  Renovação 
Carismática  Católica,  por  meio  de  um  processo  de  despolitização 
(Prandi e Souza, 1996). Mais recentemente, os carismáticos católicos têm 
escolhido parlamentares que estejam envolvidos com a defesa de causas 
particulares  do  catolicismo  (Mianda,  1999;  Mariz,  2001;  Senna,  2008; 
Reis, 2011).  
  O  crescimento  demográfico  dos  evangélicos  no  Brasil  se 
traduziu também em uma maior força política desse segmento religioso. 
Durante  a  maior  parte  do  século  XX,  predominava  uma  postura 
evangélica  dupla:  aprovação  dos  governos  e  rejeição  da  política 
partidária. Consequentemente, a participação do segmento religioso no 
Congresso  foi  relativamente  pequena  até  a  primeira  metade  dos  anos 
80,  contando  quase  que  exclusivamente  com  alguns  parlamentares 
adeptos das igrejas protestantes missionárias. 
  Em  1985,  quando  o  país  voltou  a  ter,  com  José  Sarney,  um 
presidente  civil  e  viveu  a  expectativa  das  eleições  de  uma  Assembleia 
Constituinte  para  o  ano  seguinte,  os  evangélicos  pentecostais  se 
lançaram  efetivamente  em  direção  a  uma  política  partidária. 
Preocupados  com  um  possível  aumento  de  privilégios  constitucionais 
para a Igreja Católica, eles passaram a reivindicar a liberdade religiosa, 
e  a  perceber  também,  nas  eleições  de  1986,  uma  oportunidade  para 
aumentar  os  lucros  para  as  suas  igrejas,  principalmente  na  forma  de 
concessões de emissoras de rádio. (Pierucci, 1989; Freston, 1993). 
  Enquanto  que  em  1982  haviam  sido  eleitos  12  deputados 
federais  evangélicos,  sendo  apenas  dois  pentecostais,  nas  eleições 

68
 
seguintes  foram  eleitos  32  parlamentares  desse  segmento,  sendo  18 
deles  pentecostais.  Com  este  significativo  crescimento  de  900%  de 
representação  pentecostal,  a  prevalência  foi  da  Assembleia  de  Deus, 
com 13 deputados eleitos. 
A  representação  evangélica  nas  eleições  seguintes  cresceria 
ainda  mais,  atingindo  o  número  de  30  deputados  em  1994  e  49 
deputados  quatro  anos  depois.  Com  parlamentares  de  diferentes 
partidos,  mas,  principalmente,  do  Partido  Social  Cristão  (PSC),  a 
Assembleia  de  Deus  perdurou  como  a  igreja  com  maior  representação 
parlamentar até 1998. Naquele ano, surgiram a partir dela 12 deputados 
federais, sendo superada pela IURD, que ganhou 14 cadeiras. (Freston, 
2001; Fonseca, 2002:126).  
Os deputados evangélicos têm sido bastante ativos em questões 
relacionadas  à  reprodução  humana  e  à  moral  sexual,  opondo‐se 
firmemente  às  reivindicações  homoafetivas.  Eles  se  destacam  também 
na  apresentação  de  emendas  parlamentares  do  tipo  assistencial,  sendo 
algumas  delas  algo  questionáveis.  Desde  2003,  existe  a  Frente 
Parlamentar  Evangélica  (FPE),  marcada  pela  heterogeneidade 
partidária  e  também  denominacional,  garantindo  certa  coesão  nos 
temas  que  envolvem  a  moralidade  cristã  tradicional  e  nos  interesses 
institucionais das igrejas. 
No Senado, os evangélicos conquistaram duas cadeiras em 1998, 
sendo  uma  delas  de  Íris  Rezende,  do  PMDB  e  da  Comunidade  Cristã 
Evangélica.  A  outra  era  de  uma  adepta  da  Assembleia  de  Deus  e  ex‐
militante  católica  de  CEBs  e,  portanto,  do  PT  (Partido  dos 
Trabalhadores), Marina Silva. O número de senadores vinculados a esse 
segmento  religioso,  incluindo  os  suplentes  que  assumiram  o  cargo, 
chegou a ser de seis, atualmente é de três: Eduardo Lopes (IURD) e os 
batistas  Walter  Pinheiro  e  Magno  Malta.  Destaca‐se  o  evangélico 
Marcelo  Crivella,  atualmente  em  licença  e  que  será  mencionado 
posteriormente neste texto. 
  Embora não seja proporcional ao tamanho de sua população, os 
evangélicos  têm  uma  significativa  presença  também  em  outros 
parlamentos  brasileiros.  Um  levantamento  realizado  no  segundo 
semestre  de  2012,  utilizando  portais  de  internet  do  PFE,  das 
Assembleias  Legislativas  Estaduais,  da  Câmara  do  Distrito  Federal  e 

69
 
das  câmaras  municipais  de  todas  as  capitais  brasileiras  mostrou  que 
nesses  locais  havia  238  parlamentares  reconhecidamente  evangélicos 
(10% do total). 
No  âmbito  do  Poder  Executivo,  os  evangélicos  também  vêm 
exercendo  uma  forte  influência,  chegando  inclusive  a  ocupar  cargos 
importantes. O primeiro a se destacar foi Íris Rezende, eleito prefeito da 
capital de Goiânia, em 1965. Ao bater a disputa no estado de Goiás, em 
1982,  Rezende  tornou‐se  o  primeiro  governador  evangélico.  Em  1986, 
assumiu  o  Ministério  da  Agricultura  durante  o  governo  de  Sarney. 
Também foi ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso durante 
seu primeiro mandato presidencial, entre 1997 e 1998.  
  Outros  governadores  evangélicos  foram  eleitos  no  Rio  de 
Janeiro:  o  casamento  de  Anthony  Garotinho  e  Rosinha  Matheus. 
Garotinho chegou a concorrer à presidência da  República pelo Partido 
Socialista  Brasileiro,  em  2002.  Sem  sucesso  na  disputa  presidencial, 
conseguiu  ao  menos  que  sua  esposa  Rosinha  Matheus  se  tornasse 
governadora do Rio pelo mesmo partido no primeiro turno. 
  Em  1989,  os  evangélicos  tiveram  uma  participação  significativa 
na  primeira  eleição  presidencial  direta  após  a  reabertura  democrática. 
Uma articulação entre pastores, líderes e parlamentares desse segmento 
influenciou  a  disputa  eleitoral.  Os  evangélicos  rejeitavam  o  candidato 
Luiz  Inácio  Lula  da  Silva,  percebendo‐o  como  um  defensor  dos 
interesses  católicos,  dada  a  vinculação  entre  o  Partido  dos 
Trabalhadores (PT) com as CEBs e as pastorais sociais. O candidato do 
PT era visto também como um ʺrepresentante do comunismo ateuʺ, que 
deveria  ser  fortemente  combatido.  Como  resultado  desse  processo,  os 
pentecostais votaram em massa em Fernando Collor no segundo turno 
a fim de impedir a vitória do PT (Pierucci e Mariano, 1992). 
  Na eleição de 1994, os evangélicos continuaram posicionando‐se 
contra  Lula,  apoiando  enfaticamente  o  candidato  do  Partido  da  Social 
Democracia  Brasileira  (PSBD),  Fernando  Henrique  Cardoso  (Pierucci  e 
Prandi,  1996).  Os  parlamentares  evangélicos  também  votaram  a  favor 
da  mudança  constitucional,  viabilizando  assim  a  candidatura  à 
reeleição do presidente do PSBD, chegando a apoiá‐la exitosamente na 
segunda campanha. 

70
 
   Em 2002, os evangélicos tinham diante de si um quadro eleitoral 
mais  complexo.  O  desgaste  da  gestão  de  Cardoso  fez  com  que  parte 
deste  segmento  religioso  não  aderisse  ao  candidato  do  PSBD,  o  ex‐
ministro do Planejamento e Saúde do governo, José Serra, apoiado pela 
Assembleia  de  Deus.  Além  disso,  pela  primeira  vez,  havia  um 
candidato  evangélico  competitivo  na  disputa:  Anthony  Garotinho14.  A 
transmissão  do  programa  de  rádio  do  então  governador  do  Rio  de 
Janeiro para outros estados, bem como a sua propagação para as igrejas 
de  outros  estados,  foram  estratégias  adotadas  para  aumentar  sua 
popularidade e viabilizar sua candidatura presidencial. (Fonseca, 2002: 
207‐214). 
Garotinho  conseguiu  que  51,3%  dos  evangélicos  votassem nele, 
sendo, no entanto, rejeitado pelos católicos que lhe deram apenas 6% de 
seus votos (Bohn, 2004:323). O presbiteriano terminou em terceiro lugar, 
dando um importante apoio no segundo turno ao vencedor ʺLulaʺ, que 
finalmente acabou  entrando  na  disputa  presidencial  com  apoio  parcial 
do  eleitorado  Pentecostal:  a  IURD15.  Naquela  que  foi  a  quarta  disputa 
presidencial seguida de Lula, houve uma aliança inusitada entre o PT e 
o Partido Liberal, fortemente marcada pela influência da IURD. 
No  primeiro  ano  da  presidência  de  Lula,  houve  mais  uma 
mostra da força política evangélica no país: a participação no processo 
de  regulamentação  do  novo  Código  Civil.  Na  versão  de  1916,  as 
organizações  religiosas  tinham  privilégios  no  tratamento  legal,  mas, 
com a legislação aprovada, elas passariam a receber o mesmo controle 
estatal exercido sobre organizações laicas sem fins lucrativos. Mais uma 
vez,  denunciando  uma  suposta  perseguição  ideológica, 
constitucionalmente  proibida,  os  evangélicos  se  articularam  com 
representantes  católicos,  conseguindo  assim  aprovar  mudanças  na 
redação de dois artigos da lei 10.406, que instituiu o novo Código Civil. 
A  sanção  presidencial  para  tal  mudança  foi  destacada  por  Lula  como 
um ʺgrande ato em favor da liberdade religiosaʺ (Mariano, 2006).  

                                                            
14  O  primeiro  presidente  protestante  do  Brasil  foi  o  general  luterano  Ernesto  Geisel, 
governante entre 1974 e 1979, e que teve uma vida religiosa bastante discreta. 
15  Duas  grandes  igrejas  pentecostais  permaneceram  sem  envolver‐se  na  política 

partidária: a Congregação Cristã do Brasil e “Deus é Amor”. 

71
 
A  partir  daquela  penetração  inicial  no  eleitorado  pentecostal, 
Lula  procurou  estreitar  relações,  participando  de  eventos  evangélicos, 
formando  comitês,  pedindo  votos  e  orações  e  prometendo  parcerias 
(Mariano et al., 2006:66). Com esse capital político, ele conseguiu evitar 
a candidatura de Garotinho e enfrentou a reeleição. 
Outra  líder  política  oriunda  do  universo  evangélico  emergia. 
Depois de exercer por cinco anos o cargo de Ministra do Meio Ambiente 
do governo Lula, Marina Silva volta ao Senado e, em seguida, passou a 
atuar  no  Partido  Verde  em  2009  para  se  tornar  então  candidata 
presidencial  no  ano  seguinte.  O  terceiro  lugar  na  disputa  pelo  Palácio 
do Planalto seria mais uma vez para uma pessoa evangélica. Ainda que 
uma missionária da Assembleia de Deus, paradoxalmente, tenha feito a 
campanha  mais  laica  entre  os  principais  candidatos,  uma  vez  que  a 
presença da religião foi realmente muito forte nesta disputa. 
Mais  uma  vez  candidato  pelo  PSBD,  José  Serra  contava  com  o 
forte  apoio  da  Convenção  Nacional  das  Assembleias  de  Deus 
(CONAMAD),  a  maior  agremiação  da  Assembleia  de  Deus.  Teve 
também a adesão de outras igrejas: a Igreja Mundial do Poder de Deus e 
a Igreja Bola de Neve. Na frente evangélica pró‐Serra se destacava Silas 
Malafaia,  líder  da  Associação  Vitória  em  Cristo  (derivação  da 
Assembleia de Deus). Serra capitalizou a indignação evangélica contra a 
terceira  versão  do  Plano  Nacional  de  Direitos  Humanos  (NHDP  III), 
lançado  pelo  Governo  Federal  em  2009.  Parlamentares  evangélicos  e 
católicos  se  mobilizaram  principalmente  contra  a  proposta  de 
descriminalização  do  aborto16.  Os  pentecostais  também  se  opuseram 
firmemente  contra  o  projeto  de  Lei  nº  122  de  2006  (PL  122/2006), 
apresentado pela deputada Iara Bernardi (PT de SP) que tornava crime 
os atos de homofobia no país. As questões da legalização do aborto e a 
criminalização  da  homofobia  acabaram  sendo  usadas  como  armas 
eleitorais pelo candidato do PSDB. 
Por outro lado, já na segunda etapa da disputa, estava a ex‐chefe 
da Casa Civil do governo Lula, Dilma Rousseff, que tinha se declarado 
                                                            
16  Em maio de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) se posicionou 
firmemente  contra  a  III  PNHD  em  um  documento  e  recomendou  aos  fiéis  que 
votassem  em  ʺpessoas  comprometidas  com  o  respeito  incondicional  à  vidaʺ  (Gold  e 
Mariano, 2010:25). 

72
 
agnóstica  em  uma  entrevista  concedida  à  revista  Época  em  2007,  mas 
que  durante  a  carreira  eleitoral  participava  de  eventos  religiosos  e 
missas  para  mostrar‐se  católica.  Líderes  e  parlamentares  evangélicos 
determinavam que Dilma se comprometesse em resguardar a liberdade 
religiosa  e  vetar,  caso  fosse  eleita,  qualquer  projeto  ʺcontra  a  vida  e  os 
valores da famíliaʺ, ou seja, projetos que favorecessem o aborto, a união 
civil  e  adoção  de  crianças  por  parte  de  casais  homossexuais,  a 
regulamentação  da  atividade  para  aqueles  trabalhadores  do  sexo  e 
assuntos  relacionados  a  estas  temáticas.  A  campanha  do  PT  se  voltou 
fortemente  em  direção  aos  eleitores  evangélicos,  ressaltando  que  o  III 
NHDP já estava sendo analisado pelo governo, que a candidata estava “a 
favor  da  vida”  e  que,  portanto,  não  tomaria  nenhuma  iniciativa  de 
mudança  na  legislação  a  respeito  do  aborto,  tampouco  de  questões 
relacionadas à família e à liberdade religiosa. (Oro e Mariano, 2010:24‐29). 
A  campanha  do  PSBD,  por  outro  lado,  continuou  com  seu  tom 
religioso  conservador,  utilizando  a  mídia  religiosa  (católicos  e 
protestantes),  as  redes  sociais  e  inclusive  os  cultos  nas  igrejas  para 
ʺdefender a vidaʺ e a moral sexual cristã tradicional. 
Sua  esposa,  Mônica  Serra,  que  chegou  a  acusar  Dilma  de  ser  a 
favor da ʺmatança de criançasʺ, foi questionada por uma nota publicada 
no  jornal  Folha  de  S.  Paulo  de  16  de  outubro  daquele  ano.  O  jornal 
apresentava  o  relato  de  uma  ex‐aluna  da  Sra.  Serra,  da  Universidade 
Estadual de Campinas, a quem ela tinha confessado ter feito um aborto, 
o  que  foi  confirmado  por  outra  ex‐aluna.  Devido  a  esses 
acontecimentos, José Serra acabou ganhando a antipatia da classe média 
e  de  setores  intelectuais  e  liberais  da  população,  perdendo  assim  sua 
segunda eleição presidencial. 
 
3.2 Liderança política e moral sexual 
 
Sobrinho  do  fundador  e  líder  da  IURD,  Edir  Macedo,  o  Bispo 
Marcelo  Crivella  ganhou  popularidade  no  meio  evangélico  com  seus 
sucessos  como  cantor  gospel.  Crivella  conquistou  uma  cadeira  no 
Senado  em  2002,  sendo  reeleito  oito  anos  depois.  Ajudou  Dilma 
Rousseff a enfrentar a polêmica sobre o aborto no mundo evangélico e a 
vencer as eleições presidenciais de 2010. Apesar de novamente se aliar 

73
 
ao  governo  petista  que  estava  sendo  instalado  em  2011,  o  senador  da 
IURD não deixou de tirar proveito de sua posição Pentecostal durante a 
presidência de Dilma, algo que provavelmente iria beneficiá‐lo.  
Os  parlamentares  evangélicos  conseguiram  impedir,  durante  o 
primeiro ano do novo governo, a distribuição de material didático anti‐
homofobia,  rotulado  de  ʺkit  gayʺ,  que  tinha  sido  encomendado  pelo 
Ministério  da  Educação,  com  Fernando  Haddad.  Dilma  Rousseff 
determinou  a  suspensão  da  medida  educativa.  Desde  o  início  do 
governo,  os  representantes  políticos  dos  pentecostais  também 
mostraram enfaticamente sua insatisfação com a nomeação da socióloga 
do  PT  Eleonora  Menicucci  para  a  Secretaria  de  Políticas  para  as 
Mulheres.  A  militante  feminista,  amiga  de  Dilma  desde  os  tempos  da 
guerrilha  contra  o  regime  militar,  é  uma  reconhecida  defensora  da 
descriminalização do aborto, tendo inclusive abortado duas vezes. 
Irritados  com  o  governo  Dilma,  os  parlamentares  evangélicos 
exigiram  e  obtiveram  em  fevereiro  de  2012  uma  retratação  pública  do 
titular  da  Secretaria  Geral  da  Presidência  da  República,  Gilberto 
Carvalho.  Ex‐seminarista  católico  e  interlocutor  do  governo  junto  às 
igrejas  e  movimentos  sociais,  Carvalho  havia  encorajado  os  militantes 
presentes no Fórum Social Mundial de Porto Alegre, no mês anterior, a 
realizarem uma ʺdisputa ideológica pela nova classe médiaʺ, que estaria 
sob  a  hegemonia  evangélica.  Em  resposta  à  indignação  parlamentar 
Pentecostal  com  Carvalho,  Dilma  Rousseff  nomeou  Marcelo  Crivella 
como  Ministro  da  Pesca.  Com  a  medida,  a  presidente  tentou  acalmar 
seus aliados religiosos, inclusive em relação às eleições na cidade de São 
Paulo,  onde  Fernando  Haddad  se  apresentava  como  candidato  a 
prefeito  pelo  PT.  Crivella  assumiu  seu  novo  cargo  ressaltando  que  era 
totalmente leigo naquela área e que a sua nomeação não significaria dar 
uma  trégua  ao  governo  federal  em  relação  a  qualquer  iniciativa 
favorável  ao  aborto  e  à  união  civil  entre  homossexuais.  A  presidente 
teve  de  tolerar  a  imposição  evangélica  e  o  ʺfogo  amigo  do  fiel  aliado 
evangélicoʺ. 
Inclusive antes de ser confirmado como candidato do PT para a 
Prefeitura  de  São  Paulo  em  2012,  Fernando  Haddad  já  contava  com  a 
animosidade  Pentecostal  devido  ao  “kit  gay”.  Teria  de  enfrentar 
também  um  candidato  representante  dos  interesses  da  IURD:  Celso 

74
 
Russomanno.  Ex‐apresentador  de  televisão,  Russomanno  era  o 
candidato do Partido Republicano Brasileiro (PRB), da mesma linha de 
Crivella,  tendo  como  braço  direito  o  Bispo  da  IURD  Marcos  Pereira, 
presidente  nacional  desta  linha  e  ex‐vice‐presidente  da  Rede  Record, 
pertencente a Macedo. 
Do  outro  lado  da  disputa,  novamente,  estava  José  Serra,  que 
também tentaria tirar proveito da fragilidade do PT no meio Pentecostal 
devido  à  questão  da  homofobia.  Serra  continuava  com  o  apoio  da 
Assembleia  de  Deus  CONAMAD  e  contava  também  com  Valdemiro 
Santiago  e  a  sua  crescente  Igreja  Mundial  do  Poder  de  Deus.  Lula  e  o 
candidato do PT escolhido por ele, Fernando Haddad, tinham diante de 
si,  como  principais  obstáculos,  o  tradicional  adversário  do  PSDB  e  o 
inusitado candidato da Igreja Universal do Reino de Deus. 
No segundo turno, a Assembleia de Deus ‐ Ministério Madureira 
no bairro paulistano do Brás em São Paulo, liderada pelo pastor Samuel 
Ferreira,  passou  a  apoiar  José  Serra  devido  ao  famoso  ʺkit  gayʺ.  O 
ataque  a  essa  medida  anti‐homofóbica,  atribuída  ao  ex‐ministro  da 
Educação  e  candidato  do  PT,  Haddad,  teria  ressoado  fortemente  nos 
discursos  de  Silas  Malafaia,  que,  mais  uma  vez,  era  uma  espécie  de 
porta‐voz de Serra dentro do eleitorado Pentecostal17. A tônica ofensiva 
da campanha de Serra contra o adversário do PT se baseou, em grande 
medida, na questão religiosa, mas o efeito eleitoral foi contrário a ele, já 
que foi outra vez derrotado. 
Como se vê, os evangélicos vêm apresentando uma considerável 
participação  na  vida  político‐partidária  do  Brasil  desde  sua 
redemocratização.  Se  a  eleição  constituinte  de  1934  levou  o  primeiro 
pastor protestante a se tornar deputado federal, a de 1986 fez com que 
os  pentecostais  se  mobilizassem  de  maneira  efetiva  para  eleger  seus 
representantes,  impulsionando  o  crescimento  evangélico  no  Congresso 
Nacional  e  nos  demais  parlamentos  brasileiros.  Surgiam  assim,  no 
cenário político, figuras de representantes oficiais de diferentes credos. 
No Senado, os pioneiros evangélicos foram Marina Silva e Íris Rezende, 
tornando‐se  também  ministros  de  estado,  e  este  último  o  primeiro 
                                                            
17  O fato de que o governo paulista de Serra tinha distribuído em 2009 cartilhas contra a 
homofobia em escolas de ensino médio ‐ segundo a edição de 16 de outubro da Folha 
de S. Paulo ‐ foi ignorado ou deixado de lado pelos evangélicos.  

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governador  Pentecostal18. Porém o primeiro chefe de governo estadual 
vinculado  explicitamente  ao  seu  perfil  evangélico  foi  Anthony 
Garotinho,  que  usaria  isso  também  como  uma  estratégia  para  sua 
candidatura à presidência da República.  
A  maior  denominação  evangélica  do  Brasil,  a  Assembleia  de 
Deus,  foi  também  uma  precursora  na  inserção  Pentecostal  na  política 
partidária,  tendo  parlamentares  em  diferentes  partidos,  mas 
principalmente  no  PSC.  Em  segundo  lugar,  em  termos  demográficos, 
está  a  IURD,  cujo  braço  político  é  o  PRB.  O  bispo  licenciado,  e  agora 
ministro  de  Pesca,  Marcelo  Crivella,  personifica  a  força  política  da 
Frente Parlamentar Evangélica junto ao governo federal.  
O  chamado  “kit  gay”  representou  para  as  eleições  de  2012  na 
cidade de São Paulo o que o aborto havia representado para as eleições 
presidenciais do ano anterior. Nas duas situações, o candidato do PSDB 
José  Serra  procurou  tirar  proveito  do  moralismo  evangélico  nas 
questões da reprodução e moral sexual, ainda que sem sucesso. Assim 
como  há  uma  barreira  nas  eleições  majoritárias  para  um  candidato 
fortemente  identificado  com  um  determinado  segmento  religioso, 
também  no  catolicismo  hegemônico  há  um  limite  para  o  uso  de 
bandeiras tingidas com forte apelo religioso. Ainda que os candidatos a 
cargos  executivos  visitem  bispos,  pastores,  missas,  cultos  e  outras 
manifestações, esse apoio parece ser necessário, mas não suficiente para 
ganhar as eleições.  
Os parlamentares evangélicos atuam há muito tempo no cenário 
político  brasileiro,  sendo  que  os  representantes  oficiais  ou 
“despachantes”  das  igrejas  surgiram  somente  com  a  ascensão  política 
Pentecostal  (Campos,  2005).  Em  nome  da  liberdade  religiosa,  os 
interesses  das  igrejas  são  estrategicamente  defendidos  durante  as 
campanhas  eleitorais,  as  legislaturas  e  os  mandatos  do  executivo.  No 
caso  da  IURD,  a  representação  parlamentar  se  combina  com  o  poder 
midiático,  exercido  por  meio  de  sua  rede  de  televisão  de  canal  aberto, 
levando  a  uma  maior  influência  junto  ao  governo  federal.  Os 
evangélicos  podem  não  ter  força  suficiente  para  decidir  eleições  em 

                                                            
18  Sobre a existência anterior de governadores pentecostais, se sabe que Leonel Brizola 
tinha sido metodista em sua juventude.  

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favor  seus  candidatos  religiosos  ou  apoiados  por  suas  igrejas,  mas 
provavelmente  continuem  a  ser  elogiados,  cortejados  e  atendidos  em 
algumas de suas exigências em “nome do Senhor”. 
 
3.3. Argentina: as crenças religiosas no campo legislativo 
 
Diferentemente  do  caso  brasileiro,  o  Congresso  Nacional 
argentino  carece  de  blocos  e/ou  partidos  que  se  relacionem  a  alguma 
instituição  religiosa.  Entretanto,  a  partir  dos  dados  gerados  por  um 
estudo  realizado  por  Esquivel  e  Vaggione  (2011)19  é  possível  explorar 
algumas  das  maneiras  com  que  as  instituições  religiosas  se  conectam 
com  as  decisões  e/ou  posições  dos  legisladores  quando  se  discute 
políticas de sexualidade e reprodução. 
Assim,  este  estudo  nos  permite  reconhecer  que  65%  dos 
parlamentares acessados pela pesquisa declararam crer em Deus. Neste 
sentido,  60%  se  dizem  “católicos”  e  46%  se  consideram  “muito 
religiosos”  enquanto  que,  ao  contrário,  26%  dizem  “não  ter  religião”. 
Além  disso,  um  fato  interessante  é  que  quase  a  totalidade  dos/as 
deputados/as e senadores/as questionados acreditam que as convicções 
religiosas dos parlamentares influenciam o conteúdo dos projetos de lei 
e nas votações do Congresso Nacional. No entanto, esta percepção gera 
opiniões  divergentes:  49%  concordam  com  a  influência  das  crenças 
religiosas  nas  tomadas  de  decisão,  enquanto  que  49%  discordam  (2% 
não opinaram). 
Em  relação  aos  projetos  de  lei  ‐  que  no  momento  da  realização 
da  pesquisa  se  mostravam  controversos  devido  à  manifesta  oposição 
das  confissões  religiosas  majoritárias  (por  estar  vinculados  ao  avanço 
                                                            
19   Nesta  seção  vamos  utilizar  os  dados  gerados  por  Esquivel  e  Vaggione  (2011)  no 
âmbito  do  projeto  PIP  CONICET  359/08  “Disputas  en  el  espacio  público  argentino. 
Dirigencia  política,  instituciones  religiosas  y  organizaciones  sociales  pro‐derechos, 
frente a las políticas estatales en materia educativa y de regulación familiar y sexual”. 
Os dados foram extraídos de uma pesquisa do tipo questionário estruturado, aplicado 
à totalidade dos membros da Câmara dos Deputados e Senadores, com uma margem 
de  erro  de  5%  ‐  para  95%  de  confiança  ‐,  e  o  período  de  levantamento  de  dados  se 
estendeu  de  novembro  de  2009  a  maio  de  2010.  Essa  pesquisa  foi  publicada  pelo 
jornal Página 12. Consulte “A Dios rogando, pero en la gente pensando” (2012, 14 de 
janeiro).  

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dos direitos sexuais e reprodutivos) – os parlamentares se mostraram a 
favor  da  autonomia  de  decisão  e  liberdade  de  consciência.  Assim,  os 
projetos  de  fertilização  assistida  e  identidade  de  gênero20  são  os  que 
registram  maior  grau  de  aprovação  (84  e  75%,  respectivamente).  No 
mesmo  sentido,  uma  parcela  importante  se  manifestou  a  favor  da 
descriminalização  do  aborto  nas  primeiras  doze  semanas  de  gestação 
(64%)21.  Com  menor  peso  ‐  ainda  que  superando  50%  ‐  houve  um 
acordo  em  relação  ao  casamento  entre  pessoas  do  mesmo  sexo22,  à 
autorização  para  a  criopreservação  de  embriões  (56%),  a  eutanásia 
(52%)23 e a adoção de crianças por casais do mesmo sexo (51%).  

                                                            
20A lei de identidade de gênero (Lei 26743) foi aprovada por unanimidade no Senado, e 
por  ampla  maioria  na  Câmara  dos  Deputados,  sendo  promulgada  em  9  de  maio  de 
2012. 
21O  aborto  tem  sido  (e  continua  sendo)  um  tema  bastante  polêmico  na  Argentina,  por 

isso esses dados chamam a atenção. As opiniões pessoais dos parlamentares sobre o 
aborto  indicaram  que  a  maioria  (83%)  acredita  que  ele  deve  ser  permitido.  No 
entanto, 36% dos parlamentares não votariam a favor da descriminalização do aborto 
e apenas 6% acreditam que deve ser “banido para sempre”. Outro fato interessante é 
que  quase  a  metade  deles  atribui  alguma  conduta  moral  reprovável  em  relação  às 
mulheres  que  abortam  espontaneamente.  Atualmente,  o  aborto  é  referido  em  vários 
artigos do Código Penal. Embora seja considerada uma prática criminosa, há exceções 
em que o direito penal não se aplica. Essas exceções estão relacionadas com o risco à 
saúde  ou  à  vida  da  mãe,  em caso  de  estupros  ou,  finalmente,  atentado  ao  pudor  de 
uma  mulher  demente  (art.  86  do  Código  Penal).  No  entanto,  este  artigo  tem  gerado 
fortes  controvérsias  doutrinárias  dentro  do  campo  jurídico  entre  os  que  lutam  por 
uma  aplicação  restritiva  e  os  que  interpretam  que  deveria  ser  mais  ampla.  Por  esta 
razão, a Corte Suprema de Justiça da Nação, no conhecido caso “F.A.L”, emitido no 
final  de  2012,  esclareceu  os  limites  e  alcances  das  exceções.  Apesar  disso,  as 
discussões doutrinárias não têm sido solucionados, e na prática, um posicionamento 
restritivo, que impede a realização do aborto em todos os casos, continua impondo‐se 
no país.  
22Lei n. 26.618, sancionada em 15 de julho de 2010, e que permite não só a celebração do 

casamento civil para pessoas do mesmo sexo, mas também a possibilidade de adoção. 
Lembramos  que  a  pesquisa  referida  foi  realizada  antes  da  aplicação  e  aprovação  de 
tais alterações no Código civil.  
23Lei n. 26.742, denominada “lei da morte digna” ou da eutanásia passiva, que concede 

aos  doentes  terminais  internados  o  direito  a  recusarem  procedimentos  de 


prolongamento da vida quando estes lhes causarem um  sofrimento significativo, foi 
sancionada em 9 de maio (a mesma data em que se sancionou a lei de identidade de 
gênero, mencionada na nota 9). 

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Além  disso,  é  comum  que  os/as  parlamentares  se  reúnam  com 
diferentes líderes religiosos24 na condição de parlamentares. Isto é, mais 
da  metade  declarou  que  se  encontrou  com  um  bispo  e  45%  com  um 
padre católico no último ano.  
Outro  fato  significativo  é  a  opinião  sobre  a  relação  do  Estado 
com  os  credos  religiosos.  Neste  sentido,  a  maioria  declara  que  todos 
devem  ser  tratados  da  mesma  maneira  e  considera  que  o  Estado  não 
deveria apoiar economicamente os cultos25.  
Esta  pesquisa  mostra  que,  embora  as  ideias  religiosas  estejam 
profundamente  enraizadas  nos  senadores  e  deputados  acessados  pela 
pesquisa26, não há um vínculo tão forte entre essas ideias e as decisões 
que tomam durante as votações e deliberações no Senado27, fato que de 
alguma forma contesta os dados obtidos em nível populacional.  
 
3.4 O cristianismo na Argentina e a mobilização social 
 
Em  julho  de  2010,  na  Argentina  é  sancionada  a  alteração  do 
código civil que permite o reconhecimento da instituição matrimonial a 
casais compostos por pessoas do mesmo sexo (Lei 26.618).  
Assim como em outros países em que o casamento entre pessoas 
do  mesmo  sexo  entra  na  agenda  política  (assim  como  outras  políticas 
em torno da demanda de DDSSRR), as mobilizações de rua se colocam 
                                                            
24Um  fato  interessante  que  surgiu  foi  que  embora  haja  um  amplo  apoio  aos  projetos 
relacionados  aos  direitos  civis,  mais  de  90%  dos  parlamentares  entrevistados 
acreditam  que  outros  parlamentares  colocam  em  jogo  suas  convicções  religiosas  ao 
votarem  as  leis.  Neste  sentido,  observa‐se  um  contraste  entre  o  posicionamento 
individual (a favor dos projetos de lei) e a percepção coletiva com forte influência da 
Igreja Católica. 
25No entanto, os recursos estatais dos colégios religiosos recebem uma maior aceitação 

por  parte  dos/as  representantes  nacionais.  Em  relação  à  presença  de  símbolos 
religiosos  nas  escolas  públicas,  apenas  3  de  cada  10  consideram  que  devem  ser 
proibidos. 
26Embora  as  pesquisas  tivessem  sido  enviadas  a  todos/as  os/as  deputados/as  e 

senadores/as nacionais, apenas 102 responderam, representando cerca de um terço do 
total.  
27Durante  o  debate  sobre  o  denominado  “casamento  igualitário”,  muitos/as 

parlamentares  se consideravam católicos/as e se posicionaram contra o  projeto. Veja 


Vaggione, Juan Marco (2011).  

79
 
como uma das práticas comuns por parte dos grupos ou setores sociais 
que  procuram  impedir  as  reformas28.  Na  Argentina,  um  dia  antes  (ou 
seja,  13  de  julho  de  2010)  da  votação  definitiva  do  projeto,  diferentes 
setores  sociais  convocaram  uma  marcha  nacional  na  Praça  do 
Congresso  (na  capital  federal)  para  exigir  dos  senadores29  votos  em 
“defesa do casamento e da família”.  
Os  organizadores  foram  o  Departamento  de  Leigos  da 
Conferência  Episcopal  da  Argentina  (DEPLAI),  a  Aliança  Cristã  das 
Igrejas  Evangélicas  da  Argentina  (ACIERA),  a  Federação 
Confraternidade  Evangélica  Pentecostal  (FECEP)  e  as  Famílias 
Argentinas Autoconvocadas. A partir daí a chamada foi levada adiante 
pela  associação  de  uma  diversidade  de  atores  pertencentes  tanto  a 
organizações civis como eclesiásticas.  
ACIERA  e  FECEP30  são  duas  organizações  que  reúnem  igrejas 
evangélicas  pentecostais  que  integram  o  denominado  “polo 
conservador  bíblico”  (Wynarczyk,  2009)  e  se  posicionam  como  os 

                                                            
28Neste  sentido,  por  exemplo,  uma  história  interessante  é  a  mobilização  realizada  na 
Espanha  durante  as  discussões  sobre  o  casamento  em  2005,  organizada  pelo  Fórum 
Espanhol da Família, a Igreja católica e o partido popular, entidades que formavam a 
frente  de  oposição  no  debate  espanhol  (Etxazarra,  2007).  Vale  mencionar  que 
acontecimentos parecidos ocorreram mais recentemente na França, onde segundo os 
meios de comunicação, mais de 300 mil pessoas se mobilizaram para recusar o projeto 
de  lei  de  casamento  entre  pessoas  do  mesmo  sexo  (La  Nación,  2010,  14  de  janeiro; 
Clarín, 2010, 12 de janeiro).  
29 O projeto tinha conseguido metade da aprovação na Câmara dos Deputados em maio. 

Posteriormente, foi discutido na Comissão de Legislação Geral do Senado, que a 6 de 
julho assinou o parecer para o tratamento em sessão da Câmara dos Senadores em 14 
de julho de 2010.  
30  A  ACIERA  foi  fundada  na  Argentina  na  década  de  oitenta,  no  período  de  transição 

democrática do país; compunha um subsetor evangélico (de igrejas batistas e irmãos 
livres, principalmente) (Jones e Cunial, 2011). A ACIERA se define como uma aliança 
entre  “denominações,  congregações  locais  e  entidades  livremente  associadas  a  fins 
específicos, que reconhece como hierarquia única e absoluta o Pai, o Filho e o Espírito 
Santo e aceita as Sagradas Escrituras como regra de fé e conduta” (Informação obtida 
em  www.aciera.org).  Enquanto  que  a  segunda  se  difunde  quase  uma  década  antes, 
nos  anos  setenta,  e  era  formada  pelas  “Igrejas  locais,  organizações  e  instituições 
pentecostais argentinas, inscritas no Registro Nacional de Cultos” (Informação obtida 
em www.fecep.org.ar) 

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setores  evangélicos  mais  visíveis  na  organização  da  marcha  nacional  e 
na sua militância contra a aprovação da lei.  
Por  sua  vez,  a  DEPLAI  é  um  organismo  que  pertence  à 
Comissão Episcopal de Leigos e da Família e se dedica a articular ações 
de  apoio  à  comissão  para  a  difusão  dos  princípios  doutrinais.  A 
DEPLAI  se  posiciona  como  o  setor  representante  da  igreja  católica  na 
organização  da  mobilização.  Entretanto,  um  considerável  número  de 
bispos  também  participou  na  difusão  da  convocação,  o  que  provocou 
um  grande  impacto  na  sua  mediatização.  Por  exemplo,  o  então 
arcebispo  de  Buenos  Aires,  o  Cardeal  Mario  Bergoglio,  pediu 
publicamente  aos  párocos  das  igrejas  do  país  que  difundissem  a 
convocação para a mobilização nacional:  
 
“(...)  [DEPLAI]  organizou  para  a  terça‐feira,  13  de  julho,  às  18:30  um 
ato em frente ao Congresso Nacional sob o lema “Queremos mãe e pai 
para nossos filhos” (...) A proposta é que seja um ato no qual não haja 
mais  do  que  bandeiras  argentinas  ou  valores  positivos  sobre  o 
casamento  homem‐mulher  (...)  peço  que  se  informem  sobre  isso  e 
facilitem  a  participação  de  teus  fiéis,  assim  como  que  nas  Missas  de 
domingo, 11 de julho, se leia a declaração do Episcopado e nas preces 
haja  intenções  pela  família.  Também  peço  que  concedam  lugares  aos 
leigos  do  DEPLAI  que  recolherão  assinaturas.  (...)  (AICA,  2010,  22  de 
junho).  
 
Aos setores religiosos se unem outros setores da sociedade civil 
que  se  associam  sob  a  denominação  de  “Famílias  Argentinas 
Autoconvocadas”. Neste sentido é interessante mencionar a agremiação 
criada sob o nome de “Argentinos pelas crianças” (AxC)31. Deste modo, 
a  mobilização  nacional  tentou  se  instalar  como  uma  manifestação 
“cidadã”,  ativando  uma  série  de  elementos  neste  sentido,  que 

                                                            
31   Segundo  publicação  da  AICA  (Agência  de  Informação  Católica  Argentina,  18  de 
junho  de  2010)  AxC  é  um  espaço  de  associação  entre  diferentes  classes  sociais  que 
buscam defender os valores da família. Fruto do grupo “Famílias Argentinas”, o AxC 
foi  criado  como  uma  página  no  Facebook,  cujo  objetivo  é  defender  o  casamento 
heterossexual  e  servir  como  instância  de  articulação  para  a  geração  de  ações  neste 
sentido.  

81
 
permitiram uma identificação não necessariamente ligada a uma igreja 
ou dogma religioso em particular. 
Se  por  um  lado  os  organizadores  da  marcha  aglutinam  e  dão 
visibilidade  a  setores  conservadores  católicos  e  evangélicos,  por  outro 
também  procuram  agregar  a  ideia  de  “família”  (em  geral)  como  parte 
da  ação.  Para  isso  foram  criados  diferentes  materiais  que  procuram 
destacar  uma  identificação  desvinculada  de  discursos  confessionais,  e 
afirmar  uma  identificação  política.  Neste  sentido,  um  dos  elementos 
criados para funcionar como identificador da defesa da família foi a cor 
alaranjada  (Sgró,  2011;  Rabbia  e  Iosa,  2010).  Usando  esta  cor  (e 
diferentes  lemas,  que  todavia  são  coincidentes  na  defesa  da  família 
fundada  em  uma  união  heterossexual)  se  produziram  uma 
multiplicidade de produtos gráficos e audiovisuais que circularam e se 
reproduziram  pelas  redes  de  comunicação  digitais.  O  alaranjado 
também  foi  adotado  como  marca  nacional  da  marcha,  e  nas  chamadas 
era solicitado que se levasse essa cor para a manifestação.  
Um  exemplo  significativo  foi  a  adoção  de  um  logo  usado  tanto 
por  organizações  envolvidas  na  difusão  da  convocação  como 
usuárias/os  para  se  identificarem  com  a  recusa  da  reforma  do  código 
civil  (ver  Figura  1).  Nesse  sentido,  a  concentração  na  Praça  do 
Congresso Nacional foi visivelmente marcada por bandeiras argentinas 
e bandeiras alaranjadas com variados slogans, tais como: “casamento = 
homem e mulher”, “O que importa é a família”, “Argentina = Sodoma”, 
“Salvemos a família”, entre outros.  
 
Figura 1:Logo Casamento 

82
 
No ato foi lido o “Manifesto pelo casamento e direito prioritário 
das crianças32” a partir dos quais se apresenta o posicionamento político 
em  relação  às  demandas  dos  setores  reunidos  na  manifestação33.  Os 
setores  conservadores,  ainda  quando  se  mostravam  visivelmente 
alinhados  à  igrejas  católica  e  evangélica,  insistiam  em  declarar  no 
encerramento do ato que a manifestação é produto de uma articulação 
cidadã,  de  uma  maioria  que  “deve”  ser  escutada  e  representada  no 
Congresso Nacional. Essa “maioria silenciosa”34  que “se fez escutar” é a 
que  compõe  a  mobilização  e  reivindica  o  direito  das  crianças.  Deste 
modo  se  explicita  a  condição  de  ativismo  em  defesa  da  vida  e  da 
família,  significantes  centrais  do  posicionamento  das  hierarquias 
religiosas conservadoras quando se discutem políticas de sexualidade e 
reprodução.  
 
4. Considerações Finais 
 
Muito  além  da  questão  do  espiritismo  kardecista,  já 
mencionado, o cristianismo apresenta diferentes características nos dois 
países  tratados  neste  texto.  Na  Argentina,  o  catolicismo  tem  um  peso 
demográfico (76,5%) e jurídico maior, já que ainda mantém seu vínculo 
com  o  Estado,  enquanto  que  o  protestantismo  (9,0%)  é  relativamente 
pequeno.  No  Brasil,  ao  contrário,  o  catolicismo  se  encontra  mais 
reduzido  (64,6%)  face  a  um  acelerado  crescimento  evangélico  (22,2%), 
duas  vezes  maior  em  relação  ao  país  vizinho.  Na  Argentina  há  um 
pouco  mais  de  pessoas  sem  religião  que  no  Brasil,  mas  em 
contrapartida, a diversidade religiosa é menor. 
Em termos de presença no espaço público, em ambos os países o 
catolicismo  exerce  um  papel  significativo,  ainda  que  na  Argentina 
atualmente  haja  certo  enfrentamento  ao  governo.  No  Brasil,  onde  a 
                                                            
32  Consultar  http://www.aicaold.com.ar/docs_blanco.php?id=488  [Último  Acesso:  3  de 
abril de 2013] 
33 O “Manifesto” além de ressaltar as noções de família e casamento defendidas, serviu 

para realizar uma revisão das várias ações levadas adiante pelo ativismo conservador 
e  afirmar  o  apelo  aos  legisladores  que  votariam  no  dia  seguinte  o  casamento 
igualitário.  
34  O  Manifesto  expressa:  “...se  fez  ouvir  a  «maioria  silenciosa».  Esta  voz  deve  ser 

escutada e respeitada por nossos representantes políticos”. 

83
 
Teologia  da  Libertação  foi  muito  mais  expressiva  e  ativa,  a  igreja 
exerceu um importante papel de apoio a militantes políticos e sindicais 
durante  o  enfrentamento  com  a  ditadura  militar.  A  relação  com  o 
regime  é  um  aspecto  bastante  controverso  do  catolicismo  argentino, 
debate  que  tem  sido  retomado  em  função  da  eleição  do  cardeal  de 
Buenos  Aires,  Jorge  Mario  Bergoglio  para  Papa.  Ainda  que  o  Papa 
Francisco seja coerente em termos de vida simples e proximidade com 
os  pobres,  não  foi  assim  quando  era  bispo  e  defensor  da  Teologia  da 
Libertação.  Com  relação  a  isso,  ele  recebe  desde  o  início  de  seu 
pontificado  o  apoio  explícito  e  entusiasmado  do  maior  expoente  dessa 
vertente  católica,  o  teólogo  e  ex‐frade  franciscano  brasileiro:  Leonardo 
Boff. 
Do  lado  evangélico,  a  inserção  na  vida  político‐partidária 
ganhou  importância  no  Brasil  na  década  de  1980,  quando  os 
pentecostais  decidiram  ocupar  seu  espaço  na  Assembleia  Constituinte. 
Ainda  que  na  Argentina  a  reinstauração  da  democracia  ocorreu  em 
1983,  a  inserção  político‐evangélica  somente  começou  a  ocorrer  na 
década seguinte.  
Houve no Brasil uma mobilização de católicos e evangélicos em 
torno  da  preservação  de  privilégios  de  organizações  religiosas  no 
Código Civil sancionado em 2003. Na Argentina, a reforma do Código 
Civil aprovada em 2010 permitiu o casamento entre pessoas do mesmo 
sexo, algo que provocou a reação enfática e organizada de instituições e 
líderes católicos e evangélicos.  
Em  ambos  os  países,  as  questões  de  moral  sexual  estão 
atualmente na essência da mobilização de ativistas cristãos, evangélicos 
e católicos. Uma pesquisa realizada pelo Datafolha e publicada no Brasil 
em  24  de  março  de  2013  no  jornal  Folha  de  S.  Paulo  permite  a 
comparação  com  alguns  dados  da  realidade  argentina.  Enquanto  que 
76,3%  dos  argentinos  se  mostram  favoráveis  à  união  matrimonial  de 
sacerdotes católicos, no Brasil o percentual é de 56%; da mesma forma, 
60,3%  dos  argentinos  se  mostram  a  favor  do  sacerdócio  de  mulheres, 
enquanto que 58% dos brasileiros defendem essa posição. Com relação 
ao  polêmico  tema  do  aborto,  64%  da  população  argentina  tolera  em 
todos  ou  alguns  casos  sua  prática,  enquanto  que  no  Brasil  essa 
porcentagem cai quase pela metade, ou seja, 37%. Esses dados apontam 

84
 
um caráter mais liberal da Argentina em relação ao Brasil. Uma maior 
presença evangélica neste último está diretamente ligada a esse fator. E 
como  consequência,  tendem  a  ocorrer  mais  manifestações  públicas  e 
político‐partidárias de ativistas cristãos, em ambos os países, em torno 
dessas questões.  
 
 
 
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88
 
Gestão da monstruosidade: os corpos do obeso e do zumbi 
 
María Inés Landa1 
Jorge Leite Jr.2 
Andrea Torrano3 
 
 
1. Introdução 
 
Cada  época  engendra  seus  monstros,  os  quais,  a  partir  de 
diferentes  perspectivas,  nos  contam  sobre  as  irregularidades 
imagináveis desta particular encruzilhada histórica. Aqui nos propomos 
abordar  os  monstros  contemporâneos  enquanto  locus  de  significado 
pelos  quais  transita  a  inteligibilidade  do  presente,  expressando  aquilo 
que põe em causa o normal do humano. 
Definir o que e quem é um monstro é uma tarefa que apresenta 
grandes dificuldades. Como assinala Kappler ʺnão existe uma definição 
de  monstro,  mas  algumas  tentativas  de  definir  que  variam  segundo  os 
autores  e,  sobretudo,  segundo  as  épocas.  Num  sentido  mais  geral,  o 
monstro  é  definido  em  relação  à  normaʺ  (Kappler,  1993:  291.  Grifos  e 
tradução do autor). 
O  conceito  “monstro”,  mais  exatamente,  funciona  como  um 
ʺoperador  conceitualʺ  (Gil,  2012:  13),  na  medida  em  que  representa  o 
desenvolvimento  de  todas  as  irregularidades  possíveis,  e  afronta  ‐  ou 
coloca em questão – a norma do humano. Neste sentido, afirma Foucault, 
o monstro é ʺum princípio de inteligibilidadeʺ de todas as anomalias, e, 
ainda  assim,  é  um  ʺprincípio  verdadeiramente  tautológicoʺ,  porque  a 
propriedade  do  monstro  consiste  em  se  afirmar  enquanto  tal,  “explicar 
em si mesmo todos os desvios que podem resultar dele, mas sem que seja 
                                                            
1Investigadora  asistente  do  CONICET,  CIECS‐CONICET/UNC,  Centro  de 
Investigaciones y Estudios sobre la Cultura y la Sociedad (CIECS), Consejo Nacional 
de  Investigaciones  Ciéntificas  y  Técnicas  (CONICET),  Universidad  Nacional  de 
Córdoba (UNC) – Argentina.  
2  Professor  adjunto  do  Departamento  de  Sociologia,  da  Universidade  Federal  de  São 

Carlos (UFSCar), Brasil . 
3Professora assistente da Facultad de Direito e Ciências Sociais, UNC, bolsista doutoral 

IDH‐CONICET, Universidad Nacional de Córdoba – Argentina.  

89
 
em  si  mesmo  inteligívelʺ  (Foucault,  2000:  62‐63)4.  Portanto,  mais  do  que 
tentar  definir  o  monstro  em  sentido  afirmativo,  se  trata  de  mostrar  seu 
sentido em função daquilo a que ele se opõe. 
De  nossa  perspectiva,  o  monstro  deve  confrontar‐se  com  o  que 
considera  normativamente  humano.  Mas  isso  não  significa  que  o 
monstro  represente  a  alteridade  absoluta,  mas  sim,  nos  termos  de 
Agamben, ele é uma exclusão inclusiva, “uma forma extrema de relação 
que inclui qualquer coisa através de sua exclusão” (Agamben, 2003: 31). 
Ou seja, o humano e o monstro se encontram em uma tensão tal que um 
é  o  reverso  e  o  complemento  do  outro.  Neste  sentido,  embora  se 
confronte  com  a  norma  do  humano,  o  monstro  não  é  ʺexterior  e  pura 
alteridade  em  relação  ao  homem,  mas  sim  um  ‘interior  externalizado’ 
do ser humanoʺ (Giorgi, 2009: 325). 
Desse modo, o monstro não apenas se confronta com a norma do 
humano, como se se tratasse exclusivamente de um desafio à ordem da 
vida,  onde  a  monstruosidade  é  posta  em  jogo  no  campo  da 
ʺnormatividade da vidaʺ5. Como expressa Canguilhem: 

                                                            
4No  curso  Os  Anormais  (1974‐1975),  Foucault  se  refere  ao  ʺmonstro  humanoʺ 
distinguindo  dois  momentos:  o  primeiro,  desde  a  Idade  Média  até  o  século  XVIII, 
onde o monstro é considerado um conceito jurídico‐biológico, uma mistura de reinos, 
de  individualidades  e  de  gêneros.  E  um  segundo  momento,  entre  o  final  do  século 
XVIII  e  início  do  século  XIX,  quando  ele  é  identificado  com  as  más  formações,  que 
serão  a  explicação  de  determinadas  condutas  criminosas,  é,  portanto,  um  conceito 
jurídico  moral.  A  primeira  manifestação  do  monstro  jurídico  moral  é  o  ʺmonstro 
políticoʺ,  o  criminoso  político,  aquele  que  está  fora  do  pacto  social.  Esta 
monstruosidade é a do tirano, dos revolucionários e, ainda, do delinquente comum. 
Daí o autor conclui afirmando que, em finais do século XIX, o conceito de monstro é 
abandonado  pelo  de  anormal.  Isso  ocorre  porque  a  monstruosidade  deixa  de  ser 
entendida  como  uma  categoria  jurídico‐política  e  se  converte  em  uma  noção 
fundamental da psiquiatria criminal. 
5  De  acordo  com  Canguilhem,  viver  significa  aceitar  algumas  coisas  e  recusar  outras, 

eliminar  obstáculos,  abandonar  o  que  impede  o  pleno  desenvolvimento,  mas,  ao 


mesmo tempo, aceitar e impulsionar aquilo que reafirma a possibilidade de viver. A 
vida  significa,  portanto,  ʺpolaridade  dinâmicaʺ  traduzida  em  juízos  de  valor,  em 
normas. Apenas o vivente tem a capacidade de produzir padrões biológicos, porque 
ʺao não se submeter ao meio ambiente, mas instituir seu próprio meio ambiente, ele 
mesmo  atribui  valores  não  apenas  ao  meio  ambiente,  mas  também  ao  próprio 
organismoʺ  (Canguilhem,  1976:  175).  Essa  atividade  é  chamada  de  ʺnormatividade 
biológicaʺ, ou seja, a capacidade de cada indivíduo de impor a si mesmo uma norma 

90
 
ʺdevemos,  portanto,  compreender  na  definição  de  monstro  sua 
natureza viva. O monstro é o vivente de valor negativo. (...) o que faz 
dos  viventes  seres  valorizados  em  relação  ao  modo  de  ser  do  seu 
ambiente físico é sua consistência específica (...). Assim, o monstro não 
é apenas um vivente de valor diminuído, ele é um vivente cujo valor é 
repelir  (...)  é  a  monstruosidade,  e  não  a  morte,  o  contravalor  vitalʺ 
(Canguilhem, 1976: 202‐203). 
 
Pelo contrário, a partir do momento que a vida do homem como 
indivíduo biológico está imbricada na do homem como sujeito político, ou, 
nos  termos  de  Foucault,  se  ʺo  homem  moderno  é  um  animal  em  cuja 
política é posta em causa sua vida de ser viventeʺ (Foucault, 2002b: 173), 
a vida e a política entram em uma relação de implicação tal que se pode 
inferir uma biologização da política e uma politização da biologia (Esposito, 
2008‐2009), em suma, uma biopolítica. 
Assim,  é  possível  afirmar  que  o  monstro,  ao  irromper  na  ordem 
da  vida,  irrompe  também  na  ordem  da  política.  Como  expressa 
Lucchese  e  Bove:  ʺse  a  presença  de  monstros  biológicos  questiona  a 
ordem da vida, o monstro também interpela necessariamente a ordem e 
as  hierarquias  no  universo  ético  e  político  da  históriaʺ  (Del  Lucchese, 
Bove,  2008:  21.  Tradução  dos  autores).  Consequentemente,  o  monstro 
impacta a ordem do biopolítico, é um conceito biopolítico. 
Tal como advertia Foucault, os dispositivos de poder não podem 
funcionar  senão  mediante  a  formação  e  circulação  de  um  saber:  ʺo 

                                                                                                                                                
biológica,  diferente  em  relação  ao  ambiente  em  que  vive.  Portanto,  somente  em 
relação ao indivíduo é que se pode estabelecer o normal e o patológico ou, em outros 
termos,  a  saúde  e  a  enfermidade.  Isto  significa  que  a  fronteira  entre  o  normal  e  o 
patológico  apenas  pode  ser  definida  se  se  toma  em  conta  sucessivamente  um  único 
indivíduo. Em condições determinadas, o normal pode converter‐se em patológico se 
estas  condições  mudam  e  o  indivíduo  permanece  o  mesmo.  Mas  esta  delimitação 
entre  o  normal  e  o  patológico  não  pode  ser  determinada  para  a  totalidade  dos 
indivíduos. Neste sentido, normalidade e a patologia seriam dois conceitos de valor 
não  redutíveis  quantitativamente.  No  entanto,  esta  normatividade  biológica  do 
indivíduo  é  convertida  pela  ciência  em  uma  medida  quantitativa.  Assim,  o  normal 
vivente  é  substituído  pelo  normal  científico.  O  homem  de  ciência  encontra,  no 
conceito  de  média  um  equivalente  objetivo  e  cientificamente  válido  do  conceito  de 
normal  ou  de  norma.  E  como  considera  que  a  média  tem  uma  significação  mais 
objetiva, tenta reduzir a norma à média (Canguilhem, 1971: 115‐123). 

91
 
poder  produz  saber  (...);  poder  e  saber  se  implicam  diretamente  um 
sobre o outro; não existe relação de poder sem a constituição correlata 
de um campo de saber, nem de saber que não suponha e não constitua 
ao  mesmo  tempo  relações  de  poderʺ  (Foucault,  2002a:  34).  Em  nossas 
sociedades se produz um saber sobre a população humana, através de 
estatística  e  da  probabilidade,  que  permite  identificar  suas 
regularidades  (nascimento,  mortalidade,  saúde,  expectativa  de  vida, 
etc.) e a partir daí é possível estabelecer a norma do humano. Ou seja, 
toma‐se  os  processos  da  vida  para  administrá‐los,  controlá‐los  e 
modificá‐los,  em  outras  palavras,  se  utilizam  os  dados  da  realidade 
como suporte para influir sobre a realidade (Foucault, 2006). 
Neste sentido, podemos dizer que os monstros não são excluídos, 
já que são parte da realidade que se quer administrar. Assim, eles não se 
encontram fora da distribuição do normal, mas são localizados mais ou 
menos distantes da norma. A monstruosidade pode ser estabelecida em 
termos de graus: o mais ou menos monstruoso é definido em função da 
distância  em  relação  à  norma.  Consequentemente,  a  monstruosidade 
desafia  a  norma  a  partir  de  sua  própria  interioridade,  é  uma  ameaça 
inerente à norma do humano. 
A monstruosidade é algo que convive em(entre) nós e, como parte 
da  realidade  que  habitamos,  é  algo  que  se  deve  administrar,  já  que  é 
parte (ameaçadora) da população. Quando se assume esta concepção de 
monstruosidade  como  um  mal  necessário,  a  gestão  da  população 
considera  que  o  monstro  se  apresenta  como  um  risco  que  se  deve 
controlar,  prognosticar  e  prevenir  (OʹMalley,  2006:  21).  Portanto,  a 
gestão  da  vida  é  exercida,  em  maior  medida,  sobre  os  chamados 
ʺgrupos produtores de riscoʺ, ou seja, sobre sujeitos sociais coletivos (De 
Giorgi,  2005:  39)  que  são  considerados  uma  ameaça  para  a  população 
que se pretende proteger6. 

                                                            
6   A  categoria  ʺgrupoʺ,  como  conjunto  de  indivíduos  que  apresentam  certas 
características comuns e aos quais são atribuídos uma identidade, torna‐se o objeto e 
o objetivo do poder. A gestão não é exercida tanto sobre corpos individuais – o que 
Foucault  denomina  anatomopolítica  ‐  nem  sobre  a  totalidade  da  população  ‐  a 
biopolítica  (Foucault,  2002b: 168‐169),  mas  sim  sobre  os  grupos  caracterizados  como 
perigosos. 

92
 
A  partir  desta  consideração  são  implementadas  estratégias  que 
permitem identificar estes grupos e que possibilitam a intervenção das 
autoridades administrativas sobre eles de forma preventiva. O governo 
sobre a vida dos grupos de risco é realizado através da vigilância e do 
controle que, como adverte Deleuze, nas sociedades de controle (Deleuze, 
1991)  em  que  vivemos  trata‐se  inclusive  de  uma  (auto)vigilância  e 
(auto)controle. 
Deste modo, a monstruosidade explicita como o “poder funciona 
diferentemente, tomando como alvo certas populações, administrando‐
as,  realizando  a  humanidade  de  sujeitos  que  poderiam  constituir  uma 
comunidade  unida  por  leis  comuns  a  todosʺ  (Butler,  2006:  98).  Isto 
significa  que  sobre  o  continuum  da  população  são  produzidos  cortes 
entre a população que se quer defender (os que representam a norma) e 
os  grupos  de  risco  (aqueles  que  se  desviam  da  norma)  que  podem  ser 
caracterizados  como  monstros.  Em  outras  palavras,  sobre  o  plano 
neutro  da  população  o  poder  distingue  a  ʺvida  que  não  merece  ser 
vivida (...) e a vida digna de ser vivida (ou viver)ʺ (Agamben, 2003: 173), 
entre vidas vivíveis com mortes lamentáveis e vidas inumanas que não 
ʺmerecem  ser  choradasʺ  (Butler,  2010b:  13‐56),  entre  ʺcorpos  que 
importamʺ e os corpos descartáveis (Butler, 2010a: 53‐94). 
Assim,  advertimos  que  o  conceito  monstro,  enquanto  ʺoperador 
conceitualʺ,  permite  compreender,  por  um  lado,  ʺa  precariedade  da 
identidade humanaʺ, e, por outro, a representaçãoda antítese da ordem 
social, enquanto um risco sempre ameaçador de romper com esta, e, por 
fim,  como  o  elemento  necessário  para  legitimar  e  justificar  a 
implementação de estratégias de prevenção de riscos e de aumento do 
controle social (Neocleous, 2005: 5). 
É  nesta  dupla  dimensão  da  monstruosidade,  enquanto 
questionamento  de  uma  identidade  humana  normativa  e  como 
caracterização  do  risco  que  apresentam  certos  grupos  populacionais, 
que  encontramos  neste  conceito  a  possibilidade  de  uma  aproximação 
analítica  em  relação  às  estruturas  de  poder  tecno‐somáticas  nas  quais 
repousam as corporalidades do presente. O monstro desafia a norma do 
ʺhumanoʺ  e  sua  aplicação,  se  instala  no  centro  de  uma  política  do 
vivente que deve distribuir os corpos segundo um regime específico de 
poder para sua utilização e descarte.  

93
 
Se,  como  adverte  Haraway,  assistimos  na  atualidade  a  uma 
ficção  política  (ciência  política)  na  qual  a  definição  do  que  é  o  corpo 
humano se torna cada vez mais problemática7, a obesidade epidêmica e os 
zumbis, sobre os quais refletiremos neste artigo, evidenciam, um a partir 
do discurso da ciência (biomédica), e outro, da ficção, manifestações de 
transgressões de fronteira do propriamente humano. 
Do  ponto  de  vista  do  enfoque  biomédico  a  obesidade  se 
configura  tanto  como  fonte  de  enfermidades  e  de  riscos  (incluindo  a 
manifestação  de  disposições  subjetivas  de  marginalização  social), 
quanto  como  ameaça  somático‐política  que  atenta  contra  a  crença 
sanitário‐empresarial  da  (auto)liderança  individual  e  comunitária.  A 
volumosidade,  flacidez  e  carnalidade  amorfa  do  corpo  obeso  se 
constituem  em  marcas  somáticas  que  confessam,  através  do  registro 
visual,  a  transgressão  dos  cidadãos  biológicos,  que  se  apresentam  em 
sua  condição  de  desvio  radical  entre  os  limites  do  humano/não‐
humano. 
O  zumbi,  ou  morto‐vivo,  é  um  corpo  que  se  situa  na  zona  que 
separa  a  vida  da  morte,  sua  presença  não  apenas  manifesta  um  corpo 
decomposto,  mas  também  põe  em  causa  estas  duas  ordens 
diferenciadas. Desse modo, o zumbi representa tanto uma transgressão 
à constituição orgânica do corpo humano, como uma ameaça aos limites 
que  separam  o  mundo  dos  vivos  e  o  mundo  dos  mortos,  em  outras 
palavras,  a  vida  humana  da  vida  não‐humana.  Como  assinala  Cortés‐
Rocca  ʺo  zumbi  define  uma  nova  tipologia  do  monstruoso,  na  medida 
em  que  implica  um  perigo  –  como  todo  monstro  –  que  todavia  não  se 
define  a  partir  da  simples  diferença,  tal  como  ocorre  com  os  monstros 
clássicos como o dragão, o energúmeno ou o fantasma, mas a partir de 
uma deformação do humanoʺ (Cortés‐Rocca, 2009: 341‐342). 

                                                            
7  Haraway se apropria da noção de cyborg, organismo cibernético, enquanto criatura de 
realidade  social  e  também  de  ficção,  para  representar  as  transgressões de  fronteiras, 
as fusões poderosas e as possibilidades de resistência dos corpos em sua composição 
orgânico‐artificial.  Em  sua  perspectiva,  o  cyborg  reúne  três  rupturas  cruciais:  1)  a 
fronteira  entre  o  humano  eo  animal,  2)  a  distinção  entre  os  organismos  (animais, 
humanos) e  máquinas e 3) as fronteiras entre o físico e o não‐físico (Haraway, 1995: 
256‐262). 

94
 
Precisamente  o  que  queremos  evidenciar  através  da  análise  do 
corpo  obeso  e  do  zumbi  é  que,  ao  contrário  dos  discursos  tradicionais 
sobre  a  monstruosidade  que  transformam  o  monstro  na  alteridade 
absoluta  do  humano,  o  monstro  é  um  ʺinterior  externalizadoʺ  do 
humano, está en(tre) nós. 
O obeso e o zumbi seriam manifestações de corpos que perdem 
sua  forma  humana,  no  primeiro  caso,  por  descuido,  e  no  segundo,  por 
decomposição; o obseso encarna a enfermidade do corpo, constituindo‐se 
em  um  perigo  contra  os  princípios  sanitário‐empresariais,  enquanto  o 
zumbi  perde  qualquer  possibilidade  de  redenção,  seu  corpo  evoca  um 
estigma do corpo corrompido e corruptor. 
 
2. O governo do tamanho e do peso corporal: o dispositivo discursivo 
de obesidade (epidêmica) 
 
Um  dos  discursos  mais  influentes  nos  modos  de  perceber  o 
próprio  corpo  e  o  dos  outros  na  atualidade  é  o  da  obesidade  epidêmica 
(Wright,  2009:1).  No  entanto,  sua  força  e  proliferação  não  podem  ser 
compreendidas  se  não  consideramos  também  as  tecnologias  de 
normalização corporal e de otimização de si, que supõe as políticas de 
consolidação  de  uma  ʺcidadania  biológicaʺ8  que  redefine  suas 
prioridades vitais e regimes subjetivos (Rose, 2012:270). 
Um  cenário  comum  em  várias  metrópoles  de  nossa 
contemporaneidade  é  o  da  coexistência  de  um  discurso  que  promove 
um estilo de vida ativo e saudável, que se vincula com uma aparência 

                                                            
8  Para Rose (2012: 270) o conceito de cidadania biológica permite, por um lado, explorar 
a biologização da política a partir da perspectiva da cidadania e, por outro, analisar as 
reterritorializações  da  cidadania,  em  termos  biológicos,  nos  cenários  locais  e 
transnacionais  contemporâneos.  Segundo  este  autor,  na  atualidade  se  estaria 
produzindo  uma  redefinição  do  valor  humano  como  consequência  do  intenso 
desenvolvimento que têm se dado nas últimas décadas na biologia, na biotecnologia e 
na  genômica.  Esta  redefinição  supõe  uma  progressiva  biologização  da  cidadania  e, 
portanto, também da política e da sociedade. Entre outras práticas políticas e sociais, 
tais  como  as  práticas  de  aborto  seletivo  ou  de  diagnóstico  genético,  Rose  oferece  o 
exemplo dos processos de implementação de políticas de saúde pública. As políticas 
preventivas da OMS para minimizar a epidemia da obesidade e a pandemia do vírus 
de gripe A são casos paradigmáticos deste tipo de políticas. 

95
 
harmônica  e  tonificada,  e  a  propagação,  por  diversos  meios,  de 
narrativas  em  tom  catastrófico  sobre  os  perigos  que  representam  a 
obesidade e o sobrepeso à saúde individual, comunitária e mundial. 
Apesar da naturalização desses discursos, é necessário assinalar 
que a forma como percebemos a corpulência, que associamos à idéia de 
obesidade,  é  uma  característica  de  nossa  época.  A  não  mais  de  um 
século  atrás,  a  obesidade,  longe  de  representar  feiura  ou  enfermidade, 
augurava bonança e saúde promissora (Jutel, 2009: 60). Como observam 
Lebesco e Fraziel (2001:2), foi necessário construir uma cultura obcecada 
pelo  peso  e  pela  magreza  para  que  os  significantes  gordura,  sobrepeso, 
obesidade adquirissem o tom inquietante que apresentam na atualidade. 
Nesta  seção  nos  propomos  a  desembaraçar  alguns  dos  fios  que 
enlaçam  as  redes  que  configuram,  na  atualidade,  o  dispositivo 
discursivo  da  obesidade  (epidêmica).  Para  tanto,  em  primeiro  lugar 
analisamos  o  discurso  que  circula  na  e  que  é  difundido  pela 
Organização  Mundial  de  Saúde  (OMS)  a  respeito  do  sobrepeso  e  da 
obesidade  quando  incorpora  a  perspectiva  biomédica  sobre  estes 
estados  corporais  particulares.  Encontramos  na  invenção  e  no  uso  de 
um  instrumento  de  medição,  o  índice  de  massa  corporal  (IMC),  uma 
das condições de possibilidade para a construção, por parte de diversos 
organismos  governamentais  e  sanitários,  de  um  discurso  que  define  a 
obesidade  como  uma  epidemia  do  século  XXI.  Mostramos,  finalmente, 
como  através  da  circulação  de  um  conjunto  de  biopedagogias,  que 
operam  tanto  através  de  um  registro  prescritivo  como  de  um  registro 
escópico,  se  instala  uma  maquinaria  moralizante  que  infunde  na 
população aversão em relação à figura do obeso, de tal forma que ela é 
exibida como uma condição de anomalia e monstruosidade. 
 
2.1. A patologização da obesidade no discurso virtuoso da OMS 
 
Nas  últimas  trinta  décadas  a  obesidade  tem  sido  considerada, 
em escala mundial, como um problema de saúde global que apresenta 
crescimento significativo (Flegal et. Al., 2011). Seu incremento não seria 
objeto  de  preocupação  governamental  e  social  não  fosse  a  quantidade 
de  efeitos  adversos  à  saúde  que  a  ela  estão  associados  (Flegal,  2006). 

96
 
Uma  das  instituições  que  tem  proposto  intervenções  a  respeito  da 
questão, a nível mundial, é a Organização Mundial de Saúde (OMS). 
A  OMS  é  um  dos  organismos  de  referência  em  matéria  de 
concepção  e  implementação  de  políticas  de  saúde  pública  a  nível 
mundial.  A  partir  dessa  entidade  se  têm  dirigido  e  coordenado  ações 
sanitárias  no  sistema  das  Nações  Unidas  (WHO,  2013a).  A  função  que 
esta  cumpre,  no  tocante  à  saúde  pública,  é  a  de  definir  diretrizes  em 
relação  às  questões  sanitárias  mundiais,  configurar  a  agenda  das 
investigações  em  saúde,  fornecer  apoio  técnico  aos  países,  estabelecer 
normas  e  supervisionar  as  tendências  sanitárias  mundiais  (WHO, 
2013b). 
Para  a  OMS,  a  obesidade  e  o  sobrepeso  representam  o  quinto 
principal fator de risco de morte no mundo, e são definidos ʺcomo um 
acúmulo  anormal  ou  excessivo  de  gordura  que  pode  ser  prejudicial  à 
saúdeʺ (WHO, 2012. Grifos do autor). Conforme informações da página 
da instituição ʺmorrem a cada ano, pelo menos, 2,8 milhões de pessoas 
adultas  como  consequência  de  sobrepeso  ou  obesidade.  Ademais,  44% 
dos  casos  de  diabetes,  23%  das  cardiopatias  isquêmicas  e  entre  7%  e 
41%  da  ocorrência  de  alguns  tipos  de  câncer,  podem  ser  atribuídos  ao 
sobrepeso e à obesidadeʺ (WHO, 2012). 
Nesta  definição,  o  componente  ruim  é  atribuído  ao  excesso  de 
gordura.  Este  excesso  é  calculado  por  um  instrumento  de  medição 
denominado  índice  de  massa  corporal  (IMC),  que  é  usado  para  a 
construção  das  categorias  abaixo  do  peso,  peso  normal,  sobrepeso  e 
obesidade,  e  para  a  posterior  identificação  das  mesmas  na  população. 
Consequentemente,  a  conceitualização  desses  estados  para  a  OMS  se 
completa  incorporando  um  limiar  numérico  que  padroniza  as 
categorias e permite sua diferenciação entre um IMC igual ou superior a 
25, enquanto que ao grupo classificado como obeso corresponde um IMC 
igual ou superior a 30. Daí se deduz uma relação linear e de graus entre 
um estado e outro. 
O  IMC  deriva  do  índice  de  Quetelet  desenvolvido  entre  1830  e 
1850 ecriado pelo estatístico Adolphe Quetelet para registrar a variação 
de  peso  e  altura  dos  recrutas  do  serviço  militar  francês  (Oliver,  2006; 
Halse, 2009: 46). Em suas observações, Quetelet percebe a existência de 
uma  distribuição  gaussiana  (normal)  dos  níveis  de  peso  e  altura  na 

97
 
população estudada, a partir do qual cria um índice para realizar uma 
descrição  estatística  do  “homem  tipo”  (Oliver,  2006).  Atualmente,  o 
IMC  é  uma  representação  matemática  que  fornece  uma  estimativa  da 
composição  corporal,  e  é  calculado  dividindo  o  peso  corporal  em 
quilogramas  pelo  quadrado  da  altura  do  corpo  em  metros  (Wilmore  e 
Costill, 2001: 492). 
A  centralidade  que  adquire  este  índice  nas  definições  de  peso 
corporal  cunhadas  pela  OMS  responde  ao  que  essa  entidade  necessita 
para cumprir sua função de proporcionar à comunidade de governos e 
agências  internacionais  de  financiamento  dados  confiáveis  sobre  o 
problema da obesidade, a partir dos quais permite diferenciar os grupos 
normais dos patológicos no interior de uma população específica, e assim 
justificar a implementação de políticas de prevenção. 
Neste sentido, o IMC supõe um índice que requer tão somente a 
aplicação de uma fórmula para realizar o cálculo, e desse modo confere 
aos  estudos  uma  aura  de  objetividade  e  transparência  que  é  sempre 
bem  recebida  pela  comunidade  de  especialistas  que  atuam  nesses 
organismos. Além disso, a padronização de pesos corporais a partir de 
um  mesmo  conceito  e  de  uma  mesma  medida  facilita,  portanto,  a 
realização de estudos estatísticos de tipo comparativo, uma vez que, ao 
homogeneizar  as  categorias  e  reduzir  sua  complexidade,  ignora  as 
diferenças  conceituais  e  neutraliza  as  variações  no  interior  das 
categorias estabelecidas. 
Isso  não  tem  passado  despercebido  por  estudiosos  da  questão 
(Halse,  2009;  Jutel,  2009;  Stuart,  2013).  Entre  outras  questões,  Stuart 
(2013) argumenta que a redução da complexidade inerente às noções de 
obesidade e sobrepeso, o estabelecimento do sobrepeso como um estado 
de  proto‐enfermidade  e,  fundamentalmente,  a  migração  de  descrições 
de  tipo  qualitativas  sobre  a  obesidade  em  direção  a  outras  definidas 
unilateralmente  por  medições  de  tipo  estatísticas,  tem  catalisado  a 
produção  não  apenas  da  obesidade  epidêmica,  mas  também  da 
pandemia. 
Não obstante, e apesar dessas polêmicas e controvérsias, o IMC 
tem  prevalecido  como  discurso  virtuoso  que  classifica  em  normal  e 
anormal,  em  saudável  e  patológico  e  em  seguro  e  arriscado,  os  pesos  e 
tamanhos corporais de populações e indivíduos. 

98
 
Um discurso virtuoso é constituído por um conjunto de valores, 
crenças,  práticas  e  ações  que  estabelecem  regimes  de  verdade 
destinados a moldar os sujeitos através da construção de determinados 
comportamentos  como  valiosos,  desejáveis  e  saudáveis  (Halse,  2009: 
47). O que distingue um discurso virtuoso de outros discursos é que o 
virtuosismo  se  configura  como  um  estado  cuja  dinâmica  de 
comportamento é assintótica. Isso significa que não há limite nas ações 
que  se  pode  empreender  para  alcançar  o  ideal  normativo  imposto  por 
aquilo que o ICM postula como o peso normal. Isso se torna evidente na 
oferta  de  um  sem‐número  de  produtos  e  serviços  que  são  colocados  à 
disposição  dos  consumidores  e  usuários  que  desejam  se  aproximar  do 
dito corpo ideal. 
Se googleamos as palavras peso ideal e IMC o instrumento de busca 
levantará  cerca  de  100.000  páginas  dentre  as  quais  uma  porcentagem 
considerável  corresponde  a  empresas  ou  profissionais  liberais 
(nutricionistas,  personal  trainers,  cirurgiões  estéticos,  entre  outros)  que 
oferecem  programas  de  nutrição  e  de  atividades  físicas,  entre  outros 
produtos,  para  reduzir  o  peso  corporal  e  a  massa  de  gordura. 
Escolhendo  uma  página  ao  acaso  encontramos  um  teste  que  o  próprio 
internauta pode realizar para saber se seu peso está adequado para sua 
altura.  Note‐se  a  menção  à  OMS  enquanto  entidade  que  legitima  a 
informação que é publicada no site. 
 
Peso Ideal ‐ Calcule seu peso ideal de acordo com sua altura 
“O  peso  está  diretamente  relacionado  ao  nosso  bem‐estar.  Por  isso,  a 
Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Espanhola para o 
Estudo  da  Obesidade  (seedo)  recomendam  controlá‐lo  e  mantê‐lo  em 
equilíbrio. [...] 
Com esta ferramenta você poderá saber o seu peso ideal em segundos, 
preenchendo os campos abaixo. No resultado você obterá o seu Índice 
de Massa Corporal (IMC) [...]” 
(Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado 
em “Dietas a tu medida”, 2011). 
 
Apesar de se ter afirmado, em diferentes lugares, que o IMC não 
é  válido  como  ferramenta  para  o  diagnóstico  clínico,  e  muito  menos 

99
 
para  o  auto‐diagnóstico  (Kuczmarski  e  Flegal,  2000)9,  esta  medida  se 
está enraizando no tecido social como parâmetro normativo. 
 
“Se seu resultado é o “normopeso”, você está em uma forma ideal    
[...] 
Por outro lado, quando você tem mais quilos do que é aconselhado em 
função de sua altura e data de nascimento, as opções apresentadas são 
duas: sobrepeso (de grau I ou II), dado que mostra que deve se cuidar 
um  pouco,  mas  sua  saúde  não  se  encontra  em  risco  grave;  ou 
obesidade (de tipo I, tipo II, tipo III ou mórbida, e tipo IV ou extrema). 
[...] 
Se  seu  resultado  é  este,  você  deve  procurar  por  um  nutricionista, 
depois de consultar seu médico generalista, pois sua saúde pode estar 
em perigo...” 
(Cálculo de IMC, peso recomendado e % do peso corporal. Publicado 
em “Dietas a tu medida”, 2011) 
 
O  IMC,  por  ser  um  índice  que  pode  ser  aferido  por  qualquer 
pessoa  que  tenha  conhecimentos  mínimos  de  matemática,  tem  sido 
amplamente  adotado  tanto  pelos  órgãos  de  saúde  pública,  nacionais  e 
internacionais,  como  por  empresas  que  oferecem  produtos  e  serviços 
para  o  emagrecimento.  Portanto,  esta  medida  não  apenas  se  torna  um 
ideal  dificilmente  realizável,  mas  também  se  ajusta  a  uma  norma 

                                                            
9  Os conceitos de obesidade e sobrepeso cunhados pela OMS remetem a um excesso de 
gordura no corpo humano. Uma das críticas centrais que tem sido feito ao ICM é que 
ele  não  é  um  método  adequado  para  medir  massa  magra,  mas  que  o  que  ele 
efetivamente  mede  é  a  massa  corporal.  A  variável  “peso  do  corpo”  medida  em 
quilogramas  compreende  a  massa  magra,  mas  também  se  correlaciona  com  a 
densidade  óssea  do  corpo  e,  especificamente,  a  massa  corporal  (Finer,  2012,  apud 
Stuart 2013). Métodos como medição de dobrascutâneas, pletismografia corporal ou a 
obsorciometria  de  raio‐X  e  de  energia  dupla  (DEXA)  seriam,  em  todos  os  casos,  os 
métodos  apropriados  para  medir  a  massa  magra  do  corpo  em  nível  individual  (e, 
possivelmente, também seriam mais confiáveis do que o ICM em nível populacional). 
Todavia  sua  implementação  supõe  um  custo  mais  elevado  que  o  ICM.  Ademais,  o 
ICM foi criado, nas suas origens (índice de Quetelet), com a finalidade de determinar 
médias  em  uma  população,  e  não  para  ser  aplicado  em  nível  individual,  e  muito 
menos em contextos clínicos. 

100
 
estratégica  no  marco  de  um  discurso  altamente  moralizante  que  opera 
sobre a base de uma noção alargada de saúde10. 
 
“O índice de massa corporal (IMC) é um indicador simples da relação 
entre  o  peso  e  a  altura,  que  é  comumente  usado  para  identificar  o 
sobrepeso e a obesidade em adultos.  
[...] 
O  IMC  fornece  a  medida  mais  útil  do  sobrepeso  e  da  obesidade  na 
população,  uma  vez  que  ela  é  a  mesma  para  ambos  os  sexos,  e  para 
adultos de todas as idades.” (WHO, 2012) 
 
O ICM, ao classificar pesos corporais, também classifica pessoas. 
Por  exemplo,  a  valoração  geral  de  pessoas  em  condição  normal  ou 
patológica  contribui  para  a  geração  de  estereótipos  em  um  sentido 
estigmatizante,  como  acontece  com  a  conhecida  associação  entre  a 
obesidade,  a  gordura  e  termos  como  doença,  preguiça,  passividade, 
gula, lerdeza, falta de autoestima, entre outros. 
O ICM invoca e se baseia em uma lógica binária e normalizadora 
na  qual  aqueles  que  se  aproximam  do  ideal,  do  peso  normal,  estão  a 
salvo  das  enfermidades  e  dos  riscos  associados  aos  estados 
(potencialmente)  patológicos,  que  são  aqueles  que  se  desviam,  por 
excesso ou déficit, dos valores definidos como ʺnormaisʺ. 
 
“Um  IMC  elevado  é  um  importante  fator  de  risco  para  enfermidades 
não  transmissíveis,  como:  diabetes,  transtornos  do  aparato  locomotor 
(especialmente  a  osteoartrite),  doenças  cardiovasculares 
(principalmente cardiopatia e acidente vascular cerebral). [...] 
O  risco  de  contrair  estas  doenças  não  transmissíveis  cresce  com  o 
aumento do IMC.” (WHO, 2012) 

                                                            
10  Saúde, para a OMS, já não significa ausência de doença, mas estende seu significado a 
uma idéia ambivalente, subjetiva, de bem‐estar individual. Esta redefinição do termo 
inagura  uma  nova  episteme  em  saúde,  na  qual  o  processo  de  medicalização  indefinida, 
tão  lucidamente  descrito  por  Foucault  (1996:  75‐80),  move‐se  de  um  paradigma 
centrado  na  doença,  e  em  seu  diagnóstico,  em  direção  a  outro  que  amplifica  o 
mecanismo  da  vigilância,  incorporando  as  funções  orgânicas  em  equilíbrio,  a 
vitalidade  física e a disposição sócio‐mental dos cidadãos: ʺA saúde é um estado de 
completo bem estar físico, mental e social, e não meramente a ausência de doenças ou 
enfermidadesʺ (OMS, 1948). 

101
 
As crônicas do risco ganham peso político‐sanitário por meio de 
uma  narrativa  de  matiz  epidemiológica  que  correlaciona  a  prática  de 
estilos  de  vida  específicos  com  a  probabilidade  de  desenvolver 
determinadas  doenças  degenerativas.  O  sedentarismo  e  uma  dieta 
desequilibrada  (rica  em  gorduras)  aparecem,  nos  marcos  de  tal 
narrativa,  como  os  principais  fatores  de  risco  que  contribuem  para 
elevar  as  taxas  de  morbidade  e  mortalidade  por  doenças  não 
transmissíveis em todo o mundo. 
Este  epidemiologiado  risco  legitima  a  promoção  de  um  estilo  de 
vida ativo, apontando que tipo de condutas são prejudiciais à saúde, ao 
mesmo  tempo  em  que  adverte  a  população  acerca  do  tipo  de 
precauções  que  devem  ser  tomadas  para  se  ter  uma  vida  livre  de  tais 
enfermidades (Lupton , 1999, citado em Fraga, 2005: 81). 
 
“O  sobrepeso  e  a  obesidade,  assim  como  seus  males  associados  não 
transmissíveis,  são  em  grande  parte  preveníveis.  Para  apoiar  as 
pessoas no processo de fazer escolhas, de modo que a opção mais fácil 
seja  a  mais  saudável  em  matéria  de  alimentação  e  atividade  física 
periódica,  e,  em  consequência,  de  prevenção  da  obesidade,  são 
fundamentais as comunidades e os contextos favoráveis.” (WHO, 2012) 
 
Isso  envolve  o  estabelecimento  de  territórios  de  fronteira  onde 
os sujeitos são categorizados em ir/responsáveis, a/normais, e saudáveis ou 
doentes.  Estas  narrativas  colocam  nas  mãos  dos  cidadãos  a 
responsabilidade  por  suas  escolhas  vitais  e  pelas  consequências 
des/favorável que resultam delas. 
 
“No nível individual, as pessoas podem: 
‐  limitar  a  ingestão  energética  procedente  da  quantidade  de  gordura 
total; 
‐  aumentar  o  consumo  de  frutas  e  verduras,  bem  como  legumes, 
cereais integrais e frutas secas; 
‐ limitar a ingestão de açúcares; 
‐ realizar uma atividade física períodica, e 
‐ atingir o equilíbrio energético e um peso saudável.” (WHO, 2012) 

102
 
 

Mapa 1. O quadro global da obesidade. Publicado em Daily Downey Obesity Report em junho del 2012. 
É  traçada,  desta  forma,  uma  cartografia  dos  novos  marginais, 
identificados como ameaças ao bem‐estar nacional e mundial. O obeso e 
a obesa integram esta extensa lista. 
 
“Muitos  países  de  baixa  e  média  renda  atualmente  estão  enfrentando 
uma  ʺdupla  cargaʺ  da  morbidade.  [...]  Enquanto  continuam  lidando 
com  os  problemas  de  doenças  infecciosas  e  desnutrição,  estes  países 
estão  experimentando  um  aumento  brusco  nos  fatores  de  risco  para 
doenças  não  transmissíveis,  como  a  obesidade  eo  sobrepeso, 
especialmente em ambientes urbanos.” (WHO, 2012). 
 
Em  torno  desta  topografia  moral  se  ergue  um  aparato  político‐
pedagógico que organiza e dissemina um conjunto de saberes e técnicas 
de  autogestão  que  o  coletivo  social  deve  interiorizar  e  incorporar  se 
deseja  alcançar  esse  respeitado  estado  saudável.  Tal  como  Hardwood 
(2008:15‐30),  denominaremos  esse  conjunto  de  práticas  de 
ʺbiopedagogiasʺ.  As  biopedagogias  operam  sobre  a  base  de  uma 
concepção neoliberal de ʺindivíduoʺ, capaz de gerir sua própria saúde e 
controlar os riscos que a cercam. É depositada, assim, total confiança em 
sua ação empreendedora e em sua capacidade de (auto)transformação, 
(auto)correção  e  adaptação.  A  implementação  de  dispositivos 
discursivos moralizantes que estimulam as pessoas a adotar práticas de 
(auto)controle  e  (auto)viligância,  alguns  dos  quais  apresentamos  neste 
artigo, são baseados neste paradigma. 
 
“A  responsabilidade  individual  só  terá  eficácia  plena  quando  as 
pessoas  tiverem  acesso  a  um  estilo  de  vida  saudável.  Portanto,  em 
matéria social é importante: 
‐  Apoiar  as  pessoas  no  cumprimento  das  recomendações  acima, 
mediante  um  compromisso  político  sustentado  e  a  colaboração  das 
múltiplas partes interessadas, públicas e privadas, e 
‐  Fazer  com  que  a  atividade  física  regular  e  os  hábitos  alimentares 
saudáveis  sejam  economicamente  acessíveis  e  inteligíveis  por  todos, 
especialmente os mais pobres. (WHO, 2012) 
 

104
 
Aquilo  que  se  tem  chamado  de  obesidade  epidêmica11  tem  dado 
origem  a  novas  modalidades  de  disciplinamento  e  controle,  em  outras 
palavras,  biopedagogias.  Estas  se  organizam  como  práticas  de  governo 
orientadas  para  a  gestão  dos  corpos  com  o  propósito  explícito  de 
reduzir  a  porcentagem  de  população  obesa,  assinalando  os  riscos 
implicados em tal condição. 
 
A  OMS  estabeleceu  o  Plano  de  Acção  2008‐2013  para  a  estratégia 
mundial de prevenção e controle de doenças não transmissíveis, a fim 
de  ajudar  os  milhões  de  pessoas  que  já  estão  afetadas  por  estas  doenças,  que 
passam toda a vida enfrentando e prevenindo suas complicações secundárias. 
O  Plano  de  Acção  se  baseia  na  Convenção‐Quadro  da  OMS  para  o 
Controle  do  Tabaco  e  na  Estratégia  mundial  da  OMS  sobre  dieta 
alimentar,  atividade  física  e  saúde,  e  fornece  um  roteiro  para  a  criação  e 
fortalecimento de iniciativas de vigilância, prevenção e tratamento das doenças 
não transmissíveis. (WHO, 2012) 
 
Neste  deslizamento  do  poder  se  instaura  uma  biopolítica  que, 
em  articulação  com  as  formações  disciplinares,  funciona  como  um 
controle  aberto  e  contínuo,  sancionando,  desta  maneira,  uma  nova 
educação corporal e sanitária (Fraga, 2005: 77; Deleuze, 1991). 
Neste  regime  os  indivíduos  não  estão  apenas  submetidos  a 
condições contínuas de vigilância empreendida por estas biopedagogias, 
mas  também  pressionados  a  realizar  automonitoramentos  constantes 
através  de  saberes  (conhecimentos  científicos)  que  os  orientam  sobre 
como comer de modo saudável e manter‐se ativo, ao mesmo tempo  em 
que informam sobre a obesidade e seus riscos associados. 
O estilo de vida ativo que a OMS promove glorifica a vida ativa e 
demoniza a obesidade e os desvios que a ela são atribuídos (Fraga, 2005; 
Rail et.al., 2010). Este paradigma opera sobre a base de: a) uma ideia de 
perigo  vinculada  à  existência  de  formas  de  vida  classificadas  como 
arriscadas:  sedentarismo,  alcoolismo,  consumo  de  tabaco,  etc.  (Rail  et 

                                                            
11 Vale  destacar  o  terreno  escorregadio  sobre  o  qual  respousa  o  conceito  de  epidemia  da 
obesidade, já que esta não é uma doença contagiosa (não se espalha através do contato 
entre as pessoas) e é difícil pensar que se poderá fazer um antídoto para sua redução 
na população global. 

105
 
al., 2010); b) o mito de que atividade física é saúde12, e que sua prática 
sistemática  pode  impactar  positivamente  na  prevenção  dos  riscos 
relacionados  à  obesidade  (Carvalho  de  1998,  Fraga,  2005);  c)  uma 
perspectiva  sobre o saudável representada por uma forma/composição 
corporal/muscular  mensurável,  que  identifica  no  acúmulo  de  gordura  o 
agente  do  perigo;  d)  uma  noção  neoliberal  de  pessoa  entendida  como 
um  indivíduo  responsável  por  si  e  por  suas  ações,  capaz  de  modificar 
seus  hábitos  e  estilos  de  vida  através  da  incorporação  de  técnicas  de 
(auto)disciplinamento  (Vazquez  Garcia,  2005);  e,  finalmente,  e)  uma 
política de prevenção que valoriza a divulgação como forma de educar 
quanto  aos  benefícios  da  prática  regular  de  atividade  física  para  a 
saúde,  por  um  lado,  e  por  outro  como  meio  de  informar  sobre  as 
novidades,  em  matéria  de  riscos,  que  os  diferentes  estilos  de  vida 
identificados  como  prejudiciais  à  saúde  representam  para  a  vida 
individual e coletiva (Fraga, 2005). 
Em  resumo,  o  estilo  de  vida  ativo,  e  a  consequente 
estigmatização do sedentarismo e da obesidade, operamsobre a base de 

                                                            
12   A  noção  de  mito  é  tomada  da  investigação  realizada  por  Yara  Maria  Carvalho 
intitulada ʺEl ʹMitoʹ de la Actividad Físicaʺ, no qual se correlaciona a noção de mito 
com a crença generalizada de que atividade física é saúde. A autora adverte que, para 
além da validade de certas hipóteses sobre a questão da saúde e da prática sistemática 
de  atividades  físicas,  de  rituais  e  de  relações  repetitivas  que  os  sujeitos 
contemporâneos  estabelecem  em  torno  desta  crença,  em  grande  parte  impulsionada 
pelos  meios  de  comunicação,  naturalizam  os  saberes  científicos  da  medicina  e  da 
fisiologia  do  exercício  como  verdades  últimas.  Neste  sentido,  é  importante  resgatar 
também  o  trabalho  de  Eric  Oliver  Fat  Politics  The  Real  Story  Behind  America’s  Obesity 
Epidemia  no  qual  se  discute  alguns  discursos  extremistas  que  associam  a  obesidade 
com  riscos  de  morbilidade  e  mortalidade  na  população  norteamericana.  Ademais, 
inversamente,  há  uma  infinidade  de  exemplos  que  mostram  que  a  atividade  física 
pode ou não ser saudável, e que isso é condicionado por quem, quando, onde e como 
se praticam as atividades esportivas e a ginástica. Em resumo: o mito é um discurso 
que se converte em uma crença concebida como verdade inquestionável, e em torno 
da qual se organizam rituais e práticas que são naturalizados na esfera do social e do 
religioso. A partir desta perspectiva, a equação atividade física e saúde transforma‐se 
num  mito  na  sociedade  contemporânea,  na  medida  em  que  é  incorporada  na  vida 
familiar  e  comunitária,  naturalizando  (ou  seja,  ritualizando)  a  relação  entre  os 
sujeitos, as tecnologias corporais, a medicina e os corpos, e reproduzindo dispositivos 
de  saber‐poder  e  de  espe(ta)cularização  que  sacralizam  as  associações  entre  beleza, 
saúde e cuidado do corpo como formas universais. 

106
 
um  conjunto  de  estratégias  biopedagógicas  que  ensinam/orientam  as 
pessoas  a  respeito  de  como  e  o  que  é  ser  um  bom  biocidadão  (Halse  de 
2009; Harwood, 2009). 
 
2.2. As confissões carnais de obesidade do corpo  
 
Os biopedagogías sobre as quais fizemos menção na seção anterior 
operam na base de dois registros: um prescritivo e outro escópico. 
O  registro  prescritivo  coloca  em  circulação  saberes  e  narrativas 
tendentes a inscrever os corpos no conceito amplo de saúde e bem‐estar. 
Para isso, usa uma retórica que pode transitar entre um tom informativo 
ou  de  conselho,  a  outro  entusiasta  e  amigável.  Pode  ainda  adotar  um 
estilo intimidante que beira o terror. 
O regime escópico ativa uma dinânima de produção de imagens 
que  operam  a  partir  da  criação  de  figuras  dicotômicas  tais  como 
a/normal e in/desejável, associadas à lógica de operação binária do ICM 
e do par ʺmodelo (exemplo)/estigmaʺ (Barthes, 1974: 48, Goffman, 2003). 
É  interessante  observar  como  são  apresentadas,  em  diferentes 
meios de comunicação de massa, a idéia de beleza, cuja imagem está em 
acordo com o estabelecido pelo regime prescritivo e, por sua vez, com a 
perspectiva  hegemonizante  do  discurso  sanitário.  Por  exemplo,  a 
obsessão  paranóica  por  reduzir  os  excedentes  abdominais  até  a 
conquista da pureza muscular parece enraizada no diagnóstico mítico da 
chamada obesidade andróide, ʺo padrão típico de acúmulo de gordura em 
um  homem,  no  qual  a  gordura  se  deposita  principalmente  na  parte 
superior do corpo, especialmente no abdômenʺ (Wilmore e Costill, 2001: 
541). O mesmo ocorre com a obesidade ginóide, tipicamente feminina, cuja 
concentração  de  gordura  e  volume  se  concentrado  na  região  dos 
glúteos,  quadris  e  coxas,  ou  seja,  os  mesmos  locais  do  corpo  que 
constituem  o  foco  da  preocupação  estética  de  diversos  produtos  e 
técnicas de emagrecimento (Wilmore e Costill, 2001: 541). 
Do mesmo modo como um abdômen magro, fibroso, musculoso 
em  um  homem  é  um  sinal  de  sensualidade  e  vitalidade,  uma  barriga 
proeminente  de  cerveja  é  percebida,  pelo  contrário,  não  apenas  como 
um  desagradável  fator  estético,  mas,  principalmente,  como  um  fiel 
indicador de desvios em sua forma corporal. 

107
 
 
 
Figura  2.  Imagen  exibida  no  artigo  “As  gorduras  são  imprescindíveis  para  a 
vida?” Publicado em Revista Muy Interesante (8/1995: 8). 
 
A  gordura  que  se  acumula  na  região  central  do  corpo  é 
anunciada  metabolicamente  como  a  mais  perigosa  para  a  saúde.  Os 
fatores que são reconhecidos como responsáveis por sua produção são, 
em  maioria,  aqueles  associados  a  um  estilo  de  vida  sedentário  e 
degenerado.  Daí  se  conclui  que  sua  redução  ou  aumento  estão 
relacionados  às  práticas  in/sanas  do  indivíduo  afetado  pelo  nocivo 
excedente  corporal.  Se  este  persiste  na  forma  insana,  diz‐se  que  o 
indivíduo é merecedor dos riscos auto‐degenerativos. 
O peso moral que regula o entendimento social é organizado em 
torno do princípio normativo neocapitalista que clama a que cada um se 
responsabilize  por  seu  próprio  bem‐estar.  Seu  des/cumprimento  se 
evidencia por meio da (própria) ʺapresentação pessoalʺ (Goffman, 1989). 
Metafórica  e  conceitualmente,  e  a  partir  de  um  registro  quase 
religioso,  a  obesidade  é  tratada  pelo  dispositivo  da  saúde  e  do  bem‐
estar  como  um  pecado  contra  o  credo  sanitário‐empresarial  da 
(auto)liderança  individual  e,  portanto,  da  (auto)gestão  corporal  e 
pessoal.  O  obeso  e  o  sedentário  representam,  desse  modo,  o  fora  do 

108
 
ideal,  que  regula  a  performatização  dos  corpos  saudáveis,  bonitos  e 
produtivos (Fuss, 1999). É demarcada, assim, uma ordem moral que se 
polariza em uma série de dicotomias, onde o primeiro elemento do par 
converge com o ideal empresarial enquanto o segundo, sustentando seu 
oposto,  condena  o  desvio  de  maior  visibilidade.  O  pecador  é 
representado,  então,  como  o  sujeito  irresponsável,  incapaz  de 
autocontrole,  desorganizado,  passional,  impulsivo,  cuja  compulsão  o 
leva ao caminho da ruína, do vício e da consequente destruição. 
 
Figura  3.  Fotografia  exibida  no  artigo 
“É  verdade  que  se  sou  obeso  terei 
disfunção  erétil?”  (Gómez,  2008) 
publicado  na  Revista  Men’s  Health 
(2/2008: 8). 
 
O  corpo  do  obeso  ingressa 
em  uma  trama  confessando  sua 
transgressão.  Sua  volumosidade, 
flacidez  e  carnalidade  amorfa  não 
fazem  mais  que  narrar  o 
conglomerado  de  faltas  que  este 
mortal  comete  em  seu  dia  a  dia. 
Tal  diagnóstico  clínico  e 
governamental  implica  em  um 
conjunto  de  práticas  visuais:  a 
observação  social,  a  espionagem 
em torno das formas corporais dos 
ʺoutrosʺ  e  até  mesmo  a  confissão  dos  ʺtrangressoresʺ,  são  fruto  de  um 
olhar estigmatizante e inquisitor (Scholz, 2009). 
O obeso é situado neste imaginário nos limites do humano/ não‐
humano e do bárbaro/ civilizado, a partir de um repertório de figurações 
que vão desde o grotesco e o monstruoso até o alienígena, assexuado e 
infantil.  Os  obesos,  pecadores  por  terem  se  distanciado  das  normas  de 
sua sociedade, tornam‐se espetáculo cujo castigo é posto no duplo efeito 
de  sua  aparência:  da  perspectiva  estética,  seus  excessos  comunicam 
monstruosidade  física,  enquanto  que  a  partir  da  abordagem  santitária, 

109
 
os  mesmos  são  tidos  como  enfermidades,  riscos  e  até  mesmo  tomados 
como fatores subjetivos de marginalização social. 

 
Figura  4.  Empresa:  Del  Mar  ‐  Medical  Spa  Empresa,  especialista  em  programas 
de perda de peso. (Mercado Fitness, 5,6/2010: 82). 
 
Figura 5. Imagen de uma campanha de 
2009  do  Ministério  de  Saúde  de 
Portugal.  Texto:  Os  sedentários  nao 
conseguem  escapar  das  doenças.  Faça 
exercício.  (Mercado  Fitness,  5,  6/2010: 
83) 
 
A  exposição  ridicularizada 
destes  sujeitos  pelos  diversos  meios 
de  comunicação  opera  como  um 
biopedagogia que mostra o que pode 
acontecer  com  quem  se  afasta  da 
regra  compulsória  da  vida  saudável 
e  ativa.  Como  reflete  Prosa  (2010,  s. 
p.): 
 
Os  super‐heróis  da  gula,  de  Gargantúa  até  Diamond  Jim  Brady,  têm 
sido  relegados  a  um  passado  distante,  ignorante  e  atrasado.  Seus 

110
 
herdeiros  –  os  grandes  comilões  de  hoje  –  são  costumeiramente 
considerados seres anormais ou sociopatas ou, ainda mais comumente, 
perdedores  medíocres,  desajustados  ou  espécimes  humanos 
desgraçados.  Ocasionalmente,  pessoas  extremamente  obesas  (nais 
quais  talvez  vejamos  imagens  aterradoras  do  que  pode  nos  acontecer 
se  ignoramos  os  escrúpulos  de  controle  social  e  nossos  próprios 
superegos vacilantes) aparecem no noticiário do jornal da noite ou nos 
programas com testemunhos de violência em horário nobre. 
 
O  bom,  a  massa  magra,  e  o  ruim,  a  massa  gorda,  se  enfrentam, 
como num território de batalha, na própria corporalidade. Assim, corpos 
obesos  convertem‐se  em  textos  nos  quais  se  pode  ler  a  diferença,  a 
enfermidade,  a  dis/funcionalidade,  a  in/docilidade  e  a  monstruosidade 
(Torras,  2007:17).  Esta  textualidade  pode  ser  reescrita,  corrigida, 
adaptada,  ou  ao  menos  simular  normalidade,  em  uma  aparência 
espe(ta)cular e/ou em um organismo que se move, produz, figura, opera 
segundo a norma de uma forma‐função normalizada. 
Portanto,  o  discurso  do  saudável,  cuja  finalidade  é  sustentar  a 
ficção  do  sujeito  empreendedor  e  a  representação  positiva  de  si  mesmo 
(também  fictícia  em  si),  deve  se  estruturar  como  dialeticamente 
polissêmico/a  e  ambivalente  para  que  possa  nomear,  apropriando‐se  e 
suprimindo  todos  os  possíveis  comportamentos  dos  outros,  toda  a 
multiplicidade  subversiva  derivada  de  um  excesso  simbólico  que  pode 
vir  a  afrontar  a  hegemonia  sanitária  da  cultura  ativa  (Figari,  2009:  225; 
Boltanski, 2002: 167). 
 
3. O (des)governo dos zumbis 
 
Através  da  figura  do  morto‐vivo,  este  ser  que  trai  um  dos  tabus 
sociais  mais  antigos  e  firmemente  estabelecidos,  uma  série  de  valores, 
medos  e  conflitos  históricos  socialmente  delimitados  podem  ser 
analisados.  Este  parece  o  caso  dos  zumbis  contemporâneos,  personagens 
da  cultura  do  entretenimento  que,  de  origem  colonial  e  religiosa, 
alcançaram  no  início  do  século  XXI  o  status  midiático  de  uma  das 
principais metáforas do caos social (Drezner, 2011), conforme exemplifica o 

111
 
Centro  de  Controle  e  Prevenção  de  Doenças  do  governo  estadunidense13 
em sua campanha Prontidão zumbi, criada para explicar como a população 
deste país deve agir caso aconteça um ataque destes seres: se você está bem 
equipado  para  lidar  com  um  apocalipse  zumbi,  você  estará  preparado  para  um 
furacão, uma pandemia, um terremoto ou um ataque terrorista14. 
No  mundo  do  entretenimento  contemporâneo,  seja  em  filmes, 
livros,  quadrinhos  ou  videogames  (Russel,  2010),  os  zumbis 
predominam  como  o  principal  exemplo  fantástico  e  ficcional  de  um 
inimigo  instintivamente  agressivo,  numericamente  superior, 
absolutamente  sem  compaixão  (porque  não  possui  nenhum  tipo  de 
emoção),  irracionalmente  eficaz,  devorador  literal  de  vidas  e  cuja 
origem  é  misteriosa  e  confusa.  Este  último  fator  é,  inclusive,  um  dos 
elementos  característicos  deste  morto‐vivo  pós‐moderno:  sua 
procedência  tem  versões  distintas  nas  mais  variadas  narrativas,  indo 
desde  um  efeito  desconhecido  da  radiação  nuclear15  (que  causa  a 
“ressurreição”  dos  cadáveres)  à  manipulação  genética  de  vírus 
desenvolvidos  para  guerras  bacteriológicas  e  que  fogem  ao  controle16 
(causando  a  agressividade,  a  decomposição  dos  corpos  e  a  urgente 
necessidade  de  se  alimentarem  de  carne  humana).  Para  este  artigo,  a 
origem  histórica  deste  monstro  tão  recente  e  ocidental  quanto 
internacionalmente expressivo17 é fundamental. 
 
3.1. Cadáveres famintos 
 
Conforme  Mary  Del  Priore,  em  seu  estudo  sobre  monstros, 
durante o século XVII na região dos Balcãs, na Grécia, na parte oriental 
do  Império  Austro‐Húngaro  e  na  Rússia,  houve  uma  grande 
                                                            
13Center for Disease Control and Prevention – CDC ‐ http://www.cdc.gov/ 
14Zombie  preparedness.  Disponível  em:  http://www.cdc.gov/phpr/zombies.htm.  Acesso 
em: 05/03/2013. Todas as traduções são dos autores. 
15 Como no filme fundador da figura do zumbi contemporâneo, A noite dos mortos vivos 

(Night of the living dead, dir: George Romero, EUA, 1968). 
16 Como no filme Extermínio (28 days later, dir: Danny Boyle, Reino Unido, 2002). 

17  Existem  filmes  de  zumbis  produzidos  em  vários  países  do  mundo,  com  culturas 

políticas e temores sociais tão distintos quanto África do Sul, Bélgica, Brasil, Canadá, 
Coréia do Sul, Cuba, Filipinas, Haiti, Itália, Japão, México, Nigéria, Nova Zelândia e 
Romênia, entre outros (Russel, 2010). 

112
 
propagação  de  ideias  a  respeito  de  mortos‐vivos,  pessoas  que  por 
castigo  divino  ou  ligações  com  demônios,  depois  de  mortas 
“mastigavam” em seus túmulos e podiam sair para sugar o sangue (ou 
carne)  de  outras  pessoas  (Del  Priore,  2000).  Estes  seres  conhecidos  na 
Grécia  como  vrykolakas,  se  tornaram  política  e  popularmente 
importantes  durante  as  epidemias  de  vários  tipos  de  pestes  que 
ocorreram  no  início  do  século  XVIII  em  grandes  regiões  do  leste 
europeu e em parte da Europa ocidental, deixando centenas de doentes 
e cadáveres insepultos pelas vilas e estradas.  
Ainda conforme a autora, um caso de repercussão internacional 
no  período  foi  o  de  Arnaldo  Paole  acusado,  depois  de  sua  morte,  do 
desaparecimento  de  várias  pessoas  da  cidade  de  Medwegya,  na 
Hungria.  Após  as  autoridades  investigarem  o  caso  e  colherem 
depoimentos  de  policiais  e  médicos,  um  relatório  oficial  escrito  em 
alemão foi publicado em 1732 e, no mesmo ano, divulgado em jornais e 
revistas  de  língua  francesa  e  inglesa.  É  graças  a  este  relatório  e  suas 
traduções  que  aparece  escrita  pela  primeira  vez,  com  diferença  nas 
grafias regionais, a palavra “vampiro” (Del Priore, 2000: 108). 
Este  é  um  dado  extremamente  importante:  os  primeiros  relatos 
modernos  ocidentais  sobre  mortos  que  saem  de  suas  tumbas 
procurando devorar pessoas e transformando suas vítimas também em 
mortos‐vivos, vão se desenvolver na personagem do vampiro18 que, até 
a metade da década de 80 do século XX, era o representante do mal, da 
luxúria  e  da  desumanização  antropofágica  na  cultura  de  massas.  A 
partir  desse  período,  a  grande  maioria  das  personagens  vampiros 
tornam‐se  cada  dez  mais  sentimentais,  envolvidas  em  crises  de 
identidade  e  em  profundo  conflito  entre  sua  natureza  assassina  e  o 
amor‐paixão romântico burguês.  

                                                            
18  Na passagem do século XIX para o XX, a figura da múmia também vai contribuir para 
o imaginário sobre mortos que saem de suas tumbas (Loudermilk, 2003). Mas, apesar 
de  intimamente  associado  ao  colonialismo  europeu  e  de  seu  caráter  de  realeza  da 
Antiguidade, este morto‐vivo de inspiração egípcia não se desenvolveu com a mesma 
vitalidade  que  o  vampiro.  Talvez  tenha  contribuído  para  isso  a  sua  falta  de 
sensualidade e o completo distanciamento do universo erótico, tão importante para a 
literatura de horror da época. 

113
 
Em  exata  oposição  aos  tradicionais  defuntos  mastigadores  dos 
relatos  oitocentistas  ou  aos  clássicos  e  sensuais  bebedores  de  sangue 
inspirados em Drácula, na primeira década do século XXI os vampiros 
que  fazem  sucesso  na  literatura  e  no  cinema  são  adolescentes  que 
desejam, mais do que tudo, casar virgens e não lembram em nada um 
cadáver  ambulante19.  Com  o  crepúsculo  dos  aristocráticos  e  erotizados 
mortos‐vivos  vampiros,  vem  o  amanhecer  das  massas  putrefatas  de 
mortos‐vivos zumbis. 
 
3.2. O espírito colonial  
 
Conforme  Kyle  Bishop  (2008),  a  primeira  vez  que  o  termo 
“zombie”  aparece  escrito  é  em  1792,  no  texto  do  francês  Moreau  de 
Saint‐Méry,  definindo‐o  como  “palavra  criola  que  significa  espírito, 
aparição” (apud Bishop, 2008; 143) e, no século XIX, este mesmo termo 
aparece  associado  ao  nome  do  revolucionário  haitiano  Jean‐Jacques 
Dessalines, também conhecido como Jean Zombie (Bishop, 2008). Ele foi 
um dos principais atores da sangrenta revolta de escravos que, em 1794, 
levou  este  país  a  ser  o  primeiro  a  abolir  a  escravidão  e,  expulsando  as 
tropas  dos  colonizadores  franceses  em  1804,  declarar‐se  independente, 
tornando‐se também a primeira república governada por negros.  
Já  para  Jamie  Russel,  o  termo  zumbi  aparece  no  mundo  anglo‐
saxão em 1889 em um artigo no Harper´s Magazine do jornalista Lafcadio 
Hern  sobre  o  Haiti  intitulado  “A  terra  dos  que  voltam”  (Russel,  2010: 
23). Em 1819 a palavra aparece no Oxford English Dictionary, afirmando 
que  foi  escrita  pela  primeira  vez  na  língua  inglesa  em  uma  obra  do 
mesmo ano chamada História do Brasil, de Robert Southey, e ressaltando 
que zumbi era sinônimo de diabo (Russel, 2010: 23).  
Segundo o dicionário brasileiro Aurélio,  
 
“Zumbi.  [Do  quimb.  nzumbi,  ‘duende’.]  S.  m.  1.  Bras.  O  chefe  do 
quilombo  dos  Palmares,  na  sua  fase  final;  zambi.  2.  Bras.  Fantasma 
que,  segundo  a  crença  popular  afro‐brasileira,  vaga  pela  noite  morta; 

                                                            
19  Como na saga literária “Crepúsculo” de autoria da norte‐americana Stephanie Meyer 
e  suas  continuações,  todas  transformadas  em  uma  série  homônima  de  cinema  pela 
Paris Filmes. 

114
 
cazumbi. 3. Bras. Indivíduo que só sai à noite. 4. Bras., Al. Designação 
dada  no  interior,  à  alma  de  certos  animais,  como,  p.  ex.  O  cavalo  e  o 
boi. 5. Bras. Lugar deserto no sertão” (Ferreira, 2004: 2097). 
 
Não podemos nos esquecer que o último e mais famoso líder do 
maior  quilombo  que  o  Brasil  teve,  o  de  Palmares,  no  século  XVII, 
também  era  conhecido  como  Zumbi  ‐  conforme  lembra  o  primeiro 
significado  deste  dicionário20.  Sua  fama  de  guerreiro  chegou  até 
Portugal  e,  como  a  etimologia  de  seu  nome  parece  indicar,  evocava  o 
medo  provocado  por  uma  figura  valente,  inteligente,  espectral  e  que 
lutava  ferozmente  contra  a  ordem  escravocrata  estabelecida.  Sua 
inspiração  libertária  não  se  restringiu  a  seu  período  histórico,  sendo 
resgatada  no  fim  do  século  XX  pelos  movimentos  sociais  negros  e 
transformando  a  data  de  sua  morte,  20  de  novembro,  no  Dia  da 
Consciência Negra no Brasil.  
Se  Jamie  Russel  (2010)  estiver  correto  e  a  primeira  vez  que  o 
termo zumbi aparece em língua inglesa é num livro do século XIX sobre 
a  história  do  Brasil,  podemos  perceber  o  quanto  este  nome  já 
amedrontava  o  poder  colonial  nas  Américas  provavelmente  há  alguns 
séculos,  evocando  em  uma  mesma  palavra  insinuações  de  rebelião 
política  e  forças  sobrenaturais.  Zumbi  dos  Palmares  e  Jean  Zombi 
corporificaram  o  espírito  que  assombrou  o  colonialismo  de  suas 
respectivas  épocas  históricas  e  culturas  locais  nas  quais,  não  por  caso, 
tal  espírito  foi  interpretado  como  força  maligna  e  demoníaca.  Ao 
contrário dos dois líderes negros, o termo zumbi vai se desenvolver não 
como inspirador de coragem e rebeldia contra as injustiças sociais, mas 
como  sinônimo  de  um  escravo  sem  vontade  e  autonomia  –  e  depois 
como  um  monstro  irracional  e  desumano  ‐  mostrando  o  quanto  a 
opressão  colonial  e  o  medo  do  colonizador  ajudou  a  formar  o 
imaginário deste ser. 
Mas  é  apenas  em  1929 que  a  figura  do  zumbi  chegou  à  cultura 
de  massas  norte‐americana,  alcançando  pela  primeira  vez  pessoas  que 
não  viviam  nas  colônias  caribenhas nem  estavam  ligadas  nos  assuntos 
de  administração  colonial  ou  política  internacional.  Depois  de  um 
                                                            
20   Russel  (2010)  e  Bishop  (2008)  mostram  como  existe  uma  controvérsia  entre  vários 
pesquisadores sobre a origem etimológica da palavra zumbi. 

115
 
grande  período  interno  de  instabilidade  política  e  econômica,  em  1915 
os  Estados  Unidos  invadem  o  Haiti  sob  o  pretexto  de  pacificar  os 
conflitos  e  reorganizar  a  economia  local,  controlando  política  e 
militarmente  o  país21  (Russel,  2010).  Neste  contexto,  o  aventureiro  e 
jornalista  William  Seabrook  chegou  a  esta  terra  em  1928  e,  um  ano 
depois, lançou o livro “A ilha da magia” (Seabrook, sem data).  
É este livro que vai divulgar massivamente para um público que 
se  considerava  moderno,  racionalista,  urbano  e  ávido  por  novidades 
exóticas, a religião vodu como algo primitivo e a figura do zumbi como 
sendo um infeliz escravo rural morto‐vivo (Bishop, 2008; Russel, 2010). 
O  texto  tornou‐se  um  sucesso  imediato  em  vários  países  ocidentais  e 
iniciou uma crescente busca no mundo do entretenimento22 por pessoas 
mortas  de  culturas  e  nações  subalternas  que,  através  de  poderes 
mágicos e sobrenaturais, permaneciam vivas e mortas ao mesmo tempo. 
Hoje, essa imagem parece ser uma excelente metáfora para a situação de 
tantos  povos  que  viviam  sob  o  domínio  de  nações  estrangeiras  e  sua 
brutal e desumanizante maneira de lidar com as populações e culturas 
nativas  mas,  na  época,  tal  imagem  foi  compreendida  como  um  sinal 
inequívoco da barbárie, ignorância e depravação sexual em que viviam 
os  negros  quando  deixados  a  seu  autogoverno,  justificando  a  invasão 
militar e a política segregacionista. 
Curiosamente,  o  encontro  deste  aventureiro  com  um  zumbi  é 
apenas  uma  breve  –  e  impactante  ‐  passagem do  livro.  Ao  narrar  suas 
conversas  com  Polynice,  um  fazendeiro  da  região  que  não  acreditava 
nas crenças nativas, o autor se surpreende com a crença nos zumbis por 
parte  deste  poderoso  senhor.  Ressaltando  a  ligação  fundamental 
encontrada na lenda entre o zumbi e o trabalho escravo, Seabrook narra 
seu encontro com esses trabalhadores amaldiçoados e infelizes em uma 
das passagens mais impactantes do livro: 
 
“Minha  primeira  impressão  dos  três  zumbis,  que  continuavam  a 
trabalhar, foi a de que eles tinham realmente alguma coisa de estranho. 

                                                            
21  As tropas norte‐americanas se retiram apenas em 1934. 
22  Inicialmente o entretenimento literário não ficcional, depois o cinematográfico e, daí 
em  diante,  adquirindo  formas  em  todos  os  tipos  de  produções  culturais:  games, 
televisão, quadrinhos, literatura, música etc. 

116
 
Seus gestos eram de autômatos. Não podia ver seus rostos, por estarem 
próximos  ao  chão,  mas  Polynice  segurou  um  deles  pelos  ombros  e 
pediu  que  endireitasse  os  ombros.  Dócil  como  um  animal,  o  homem 
levantou‐se  e  o  que  vi  então  causou‐me  um  choque  desagradável.  O 
mais  horrível  era  o  olhar,  ou  melhor,  a  ausência  de  olhar.  Os  olhos 
estavam mortos, como se fossem cegos, desprovidos de expressão. Não 
eram  olhos  de  um  cego,  mas  de  um  morto.  Todo  o  semblante  era 
inexpressivo, incapaz de expressar‐se” (Seabrook, sem data: 84). 
 
Procurando justificar o que vira através de causas naturais para 
este estado humano, como a letargia23, o autor vai concluir que o zumbi 
é  um  dos  grandes  mistérios  do  Haiti,  terra  onde  a  razão  ocidental 
encontra seu limite operacional.  
Outro trabalho extremamente importante sobre o tema dos zumbis 
haitianos foram os livros do antropólogo e etnobiologista canadense Wade 
Davis, chamados “A serpente o e arco‐íris”, lançado em 198524 e “Passage of 
darkness:  the  ethnobiology  of  the  haitian  zombie”,  de  1988.  Nestes  relatos,  o 
autor narra sua pesquisa no Haiti patrocinada por médicos americanos em 
busca  de  explicações  químicas  e  científicas  para  o  processo  de 
zumbificação. O tema estava novamente na mídia internacional decorrente 
dos conflitos políticos que estavam ocorrendo naquele país, com o auge da 
crise  do  governo  ditatorial  de  Jean  Claude  Duvalier,  o  Baby  doc,  e  que 
culminaria em sua deposição por um golpe militar. 
Além  disso,  o  Haiti  se  tornaria  na  década  de  80  o  país  mais 
pobre  da  América  Latina.  Como  se  não  bastasse,  os  Estados  Unidos 
nesse  período  o  culpam  pela  epidemia  de  AIDS  (através  de  sangue 
contaminado  usado  para  transfusões),  mais  uma  vez  associando  o 
desregramento  sexual  dos  negros  à  catástrofe  e  consequente  ruína  da 
                                                            
23 Este hipótese será pesquisada apenas na década de 80 do século XX, nos estudos de 
Wade Davis. 
24  Fazendo  tanto  sucesso  quanto  a  obra  de  Seabrook,  rapidamente  este  livro  foi 

adaptado para o cinema e lançado em 1988 com o mesmo título. No filme, a aventura 
do pesquisador e o interessante debate conceitual sobre religião e ciência expostos no 
início  da  película  rapidamente  dão  lugar  a  um  terror  simplório  e  incapaz  de 
desenvolver  a  importante  questão  de  fundo  que  a  própria  obra  apresenta:  a  relação 
entre política e a religião vodu no Haiti, especialmente no período Duvalier. No Brasil 
o  filme  foi  lançado  com  o  assombroso  título  “A  maldição  dos  mortos‐vivos”  (The 
serpent and the rainbow, dir: Wes Craven, EUA, 1988). 

117
 
civilização  branca.  Apenas  depois  de  protestos  diplomáticos,  o  Centro 
de  Controle  e  Prevenção  de  Doenças25  reviu  sua  posição 
desresponsabilizando  as  pessoas  negras  haitianas  pelo  avanço  da 
doença  nos  EUA  (Parker  e  Aggleton,  2001).  Mesmo  assim,  ficou 
reforçada  a  íntima  relação  entre  o  Haiti  e  o  perigo  do  contágio  de 
doenças  altamente  mortais,  sendo  este  último  elemento  fundamental 
para o imaginário do zumbi contemporâneo. 
  Em busca do poderoso veneno/ anestésico encontrado no baiacu 
e  que  seria  o  elemento  principal  de  uma  poção  que  transformaria 
pessoas vivas em mortas‐vivas, Davis percebeu o quanto a crença neste 
seres era um dos elementos mais importantes de controle social através 
da  religião.  Nas  muitas  sociedades  secretas  voduistas  que  se 
espalhavam  por  um  Haiti  predominantemente  rural,  ser  transformado 
em  zumbi,  ou  seja,  alguém  cujo  destino  após  o  túmulo  seria  tornar‐se 
um escravo sem vontade ou autonomia, era visto como a mais terrível 
punição  contra os inimigos sociais. Conforme entrevista recente com o 
autor,  
 
“[Na  lenda]  um  zumbi  é  alguém  que  teve  sua  alma  roubada  por  um 
feitiço  e  que  fica  capturado  em  um  estado  de  purgatório  perpétuo  e 
que acaba sendo mandado para trabalhar como escravo em plantações. 
Hoje  sabemos  que  não  há  nenhum  tipo  de  incentivo  para  criar  uma 
força de escravos‐zumbis no Haiti, mas dada a história colonial aliada 
à ideia de perder a sua alma – o que significa perder a possibilidade de 
ter  uma  morte  digna  para  o  vuduista  ‐,  tornar‐se  um  zumbi  é  um 
destino  pior  do  que  a  morte.  É  por  isso  que  no  Haiti  não  se  teme  os 
zumbis, mas se tornar um zumbi” (Assis, 2010). 
   
Outro elemento fundamental dos trabalhos de Davis foi mostrar 
a  morte  como  um  dado  muito  mais  cultural  e  social  do  que  biológico. 
Ao  passar  pelos  rituais  de  velório  e  sepultamento,  o  indivíduo  é 
considerado  morto  pela  comunidade,  independente  de  seu 
funcionamento  biológico.  Desta  forma,  uma  pessoa  que  foi  velada  e 

                                                            
25   O  mesmo  órgão  governamental  que  em  2012,  como  vimos,  vai  lançar  a  “Prontidão 
zumbi”. 

118
 
enterrada, se for reencontrada novamente andando ou trabalhando, não 
será vista como alguém vivo como antes, mas sim como um morto‐vivo.  
Desta forma, podemos perceber o quanto o zumbi “tradicional”, 
ou  “haitiano”  era  associado  a  um  imaginário  colonial  e  religioso.  Sua 
figura evocava o trágico destino de uma morte sem descanso, tornando 
a pessoa zumbificada um eterno trabalhador escravo, sempre à serviço 
de  seu  mestre  e  senhor,  sem  desejos,  esperanças  ou  qualquer  grau  de 
liberdade. O zumbi representava, entre outras coisas, um conflito entre 
a  tradicional  ordem  escravocrata  e  o  moderno  sistema  capitalista,  cuja 
solução  provisória  era  apoiada  e  consagrada  pelo  discurso  religioso. 
Seja política, econômica ou espiritualmente, o zumbi das colônias era o 
grande paradoxo e pesadelo do sonho liberal: a liberdade econômica de 
um capitalismo que escraviza. 
  No  cinema  da  primeira  metade  do  século  XX,  foram  dois  os 
principais  filmes  que  trataram  do  zumbi  haitiano:  White  zombie26,  de 
1931 e I walked with a zombie27, de 1943 (Russel, 2010). Ambos os filmes 
(mas  principalmente  o  primeiro)  espetacularizaram  para  as  grandes 
audiências  cinematográficas  um  monstro  originado  dos  países 
colonizados  do  Novo  Mundo,  insinuando  que  a  “barbárie  nativa”  dos 
povos subalternizados era uma ameaça real e constante. Em seu artigo 
sobre  White  zombie,  Bishop  (2008:  141)  afirma:  em  outras  palavras,  o 
verdadeiro horror nestes filmes está na perspectiva de um ocidental tornando‐se 
dominado, subjugado e efetivamente “colonizado” por um nativo pagão. 
Depois  de  algumas  décadas  de  filmes  com  baixo  orçamento, 
originados  de  vários  países,  apresentando  mortos  quase  vivos 
assombrando vivos quase mortos e misturando magia, extraterrestres e 
terror  psicológico,  é  o  cinema  norteamericano  independente  que  vai 
criar a figura do zumbi contemporâneo e iniciar o contágio deste tema 
em todo o universo do entretenimento.  
 
 
 
 

                                                            
26 White zombie, dir: Victor Halperin, EUA, 1931. 
27 I walked with a zombie, dir: Jacques Tourneur, EUA, 1943 

119
 
3.3. O zumbi contemporâneo 
 
Em  1968,  George  Romero  lança  o  filme  “A  noite  dos  mortos‐
vivos”. Causando um choque na época, este filme de baixo orçamento e 
imagens consideradas extremamente violentas, vai originar a figura do 
zumbi  contemporâneo:  um  morto  que  retorna  à  vida  sem  consciência, 
comumente  atacando  em  grupo  e  cujo  único  objetivo  é  devorar  os 
humanos vivos, transformando aqueles que foram mordidos em novos 
zumbis. 
Neste filme em preto e branco, um grupo de pessoas que não se 
conhecem é encurralado dentro de uma casa abandonada e cercada por 
estas criaturas, cuja origem ninguém compreende – embora as notícias 
da televisão digam que os mortos vivos devem ter alguma ligação com 
a  radiação  atômica.  Liderados  por  um  homem  negro,  o  grupo  tenta 
sobreviver  e  descobrir  o  que  está  acontecendo,  enquanto  os  vários 
conflitos  entre  eles  apenas  pioram  a  situação  e  aceleram  seu  final 
trágico.  “A  noite  dos  mortos  vivos”  foi  considerado  subversivo28  sob 
vários  aspectos:  imagens  explícitas29  de  violência;  a  completa  ausência 
de  confiança  nas  forças  estatais  e  nas  instituições  públicas  (como  a 
polícia e o próprio governo); a descrença na solidariedade e capacidade 
de ajuda mútua entre as pessoas e, principalmente, colocar um homem 
negro  não  como  um  zumbi  (igual  aos  zumbis  do  colonialismo),  mas 
como  a  personagem  principal  e  líder  da  “resistência”,  mostrando‐se  o 
único sensato e altruísta naquele grupo. Conforme Russel (2010: 112): “o 
que  torna  a  visão  apocalíptica  de  Romero  tão  desconcertante  é  o 
niilismo  que  a  anima.  O  levante  dos  mortos  contra  os  vivos  é 
representado  por  um  ataque  repetido  contra  toda  a  verdade,  valor  e 
conforto que a civilização se apega”. 

                                                            
28 Conforme Russel (2010) a quase totalidade da crítica do período viu no filme apenas o 
exemplo  de  um  enredo  fraco  e  solto  que  servia  de desculpa  para  cenas  de  violência 
desmedida e gratuita. 
29  Revivendo  a  tradição  do  Grand‐guinol  europeu  (Hand  e  Wilson,  2002)  e  ajudando  a 

iniciar  o  chamado  cinema  “gore”  ou  “splatter”,  com  imagens  exageradas  e  das  mais 
realistas  até  então  realizadas,  apresentando  cenas  de  sangue,  mortes,  mutilações  e 
violências físicas. 

120
 
Entre  todos  os  autores  pesquisados,  é  unânime  a  ideia  de  que 
esta  película  é  um  marco  do  cinema  de  horror  e  a  obra  que  criou  a 
figura  contemporânea  do  zumbi,  estabelecendo  inclusive  os  principais 
elementos  narrativos  que  formarão  este  gênero  de  filme30.  Podemos 
citar  em  primeiro  lugar  as  imagens  diretas  e  explícitas  de  mutilação  e 
morte,  onde  o  corpo  humano  é  apresentado  em  detalhes  apenas  para 
realçar o efeito causado pelas imagens de sua violenta destruição.  
As  pessoas  sendo  perseguidas  e  encurraladas  como  uma  caça 
também é outra constante destas produções. Seja cercadas em uma casa, 
presas  em  uma  ilha,  isoladas  em  um  bunker  ou  shopping  Center,  a 
sensação  de  clausura  e  muitas  vezes  de  claustrofobia  está  sempre 
presente31.  Outro  elemento  importante,  normalmente  surgido  como 
consequência  do  acossamento  é  o  convívio  forçado  entre  sujeitos 
totalmente  distintos  em  vários  níveis:  social,  econômico,  cultural  e 
moral.  Disto  resultam  conflitos  internos  muitas  vezes  emocionalmente 
tão  violentos  quanto  os  ataques  dos  zumbis.  No  universo  destas 
produções,  o  bom  convívio  humano  é  um  ideal  tão  ilusório  quanto 
destrutivo.  
A  origem  dos  zumbis  e  a  causa  de  sua  necessidade  de 
exterminar  os  vivos  também  nunca  é  clara,  ajudando  a  construir  o 
                                                            
30  Não  queremos  com  isso  dizer  que  todos  os  filmes  de  zumbis  sigam  à  risca  estes 
elementos;  apenas  sugerimos  que  eles  são  os  mais  comuns  e  que  os  filmes  mais 
criativos e originais sobre este tema justamente são os que conseguem subverter estes 
elementos‐chave que caracterizam as narrativas e o “gênero” sobre zumbis. 
31 A ideia de um grupo de humanos cercado por inimigos não humanos representando 

o colapso da vida social e da civilização remete ao final de um dos clássicos da ficção 
científica,  a  peça  “R.U.R.”,  do  tcheco  Karel  Tchápek  (lançada  no  Brasil  como  “A 
fábrica  de  robôs”).  Escrita  em  1920  e  encenada  em  1921,  ela  narra  a  estória  de  uma 
empresa  que  constrói  empregados‐escravos  meio‐mecânicos  meio‐orgânicos  para 
trabalharem  em  fábricas,  que  revoltam‐se  contra  seus  empregadores  humanos.  Foi 
esta  obra  que  criou  o  termo  robô,  originado  do  tcheco,  significando  “servidão, 
trabalho  forçado”.  Cansados  de  serem  explorados,  os  robôs  se  unem  para  destruir 
seus  opressores.  Escrita  como  clara  referência  ao  socialismo  e  sua  crítica  ao 
capitalismo,  o  texto  trabalhava  a  tomada  de  consciência  dos  trabalhadores  robôs 
escravos  e  a  derrocada  capitalista  pela  organização  e  ascensão  desta  nova  classe 
social.  Da  ficção  científica  do  início  do  século  XX  ao  terror  fisiológico  do  fim  deste, 
uma  mudança  parece  clara:  o  capitalismo  atual  não  teme  mais  a  tomada  da 
consciência  de  classe  pelos  organizados  e  politizados  trabalhadores,  mas  a  revolta 
daqueles que já são considerados “mortos” por este modelo. 

121
 
ambiente  de  insegurança  e  desconfiança  presente  nestas  obras.  Da 
mesma forma, a multidão de zumbis é fundamental: eles são inúmeros 
e sua quantidade cresce na mesma proporção em que fazem vítimas. Os 
zumbis  nunca  estão  sozinhos,  mas  sempre  em  grupos.  Mais  que 
inteligência  ou  habilidade  física,  os  zumbis  representam  uma  ameaça 
pela sua incontrolável e crescente quantidade.  
Mas  os  elementos  mais  inovadores  criados  por  Romero  e  que 
definitivamente rompem a continuidade do zumbi contemporâneo com 
seu homônimo haitiano são o canibalismo e o contágio. A partir de “A 
noite  dos  mortos  vivos”,  os  zumbis  se  desenvolveram  como  seres  que 
perseguem  as  pessoas  para  devorá‐las  e  que,  tendo  contato  com  as 
secreções,  mordidas  ou  arranhões  deles,  os  humanos  estão  fatalmente 
condenados à tornarem‐se também um cadáver faminto32.  
Ora, o zumbi haitiano não era canibal. Seabrook inclusive fala das 
lendas a respeito de sua alimentação, que deveria ser completamente sem 
sal,  pois  este  tempero  poderia  trazer  da  volta  sua  consciência 
adormecida.  A  dieta  deste  resignado  monstro  colonial  era  estritamente 
regulada,  enquanto  que  a  do  monstro  contemporâneo  e  globalizado  é 
descontrolada e insaciável, na mesma proporção em que o outro monstro 
analisado neste artigo – o obeso – deve controlar seu apetite. 
Como vimos, o zumbi caribenho era principalmente um escravo, 
indissociável  de  um  senhor  e  de  uma  relação  de  servidão,  encarnando 
uma  punição  contra  aqueles  que  desafiavam  o  poder  estabelecido  e 
assombrando o imaginário colonial. Já o zumbi contemporâneo pertence 
a  um  imaginário  global  e  apocalíptico,  onde  imperam  o  caos  e  a 
desordem.  O  primeiro  inspirava  medo  por  sua  evocação  à  manutenção 
aterrorizantemente  imposta  da  ordem  social;  o  segundo  provoca  medo 
por sua referência violenta à falta de qualquer ordem social. 
Se  no  Haiti  rural  os  inimigos  sócio‐políticos  eram  as  vítimas 
preferidas  da  zumbificação,  no  imaginário  do  mundo  globalizado 
qualquer  pessoa  pode  vir  a  se  tornar  um  zumbi.  Para  isso,  não  é 
necessário  ser  encarada  como  uma  ameaça  política,  mas  simplesmente 
                                                            
32  Curiosamente, em nenhum momento desta película fundante, a palavra “zumbi(s)” é 
proferida.  O  termo  usado  é  sempre  “mortos  vivos”  ou,  mais  comumente,  apenas 
“mortos”.  Talvez  com  isso  o  diretor  já  quisesse  deixar  claro  a  não  relação  entre  o 
zumbi haitiano e os defuntos ambulantes contemporáneos. 

122
 
ser vitima de um contágio. O trágico zumbi haitiano era um miserável 
físico  e  um  amaldiçoado  espiritual,  enquanto  o  agressivo  zumbi 
contemporâneo  é  um  contagioso  cadáver  decomposto,  afastado  de 
qualquer referencial transcendente ou sagrado. Ao perder a relação com 
a  magia  e  a  religião  (Filho  e  Suppia,  2011),  o  morto  vivo  atual  se 
biologizou e se medicalizou33. Sua principal característica não é mais a 
alma aprisionada e abatida, mas o corpo putrefato e sempre pronto para 
contaminar e corromper os ideais de saúde física e social.  
A  corporeidade  do  zumbi  contemporâneo  é  um  de  seus  traços 
definidores.  Enquanto  estes  seres  haitianos  possuíam  estrutura  física 
intacta,  machucada  pela  rudeza  da  vida  escrava,  mas  viva  o  suficiente 
para  trabalhar,  os  mortos  vivos  contemporâneos  são  cadáveres 
decompostos. O locus da morte do zumbi caribenho estava na alma e se 
manifestava espiritualmente. O do zumbi contemporâneo está no plano 
biofisiológico,  manifesto  no  apodrecimento  explícito  de  sua  carne  e 
órgãos.  Ora,  a  visão  da  interioridade  do  corpo  humano  é  justamente 
uma das características da cultura visual de nossa época. Seja na ciência, 
com  os  avanços  das  tecnologias  médicas;  na  arte,  com  o  cinema  de 
vísceras  expostas  ou  na  mídia  em  geral  –  que  apresenta  imagens  que 
vão de exames clínicos dos órgãos internos ao cadáver despedaçado de 
uma  vítima  de  violencia  ‐  a  imagem  do  corpo  aberto,  fragmentado, 
desmembrado  e  expondo  seu  interior  é  uma  constante  (Moraes,  2010, 
Ortega, 2013). 
 
“Numa  cultura  na  qual  a  intimidade  deixou  de  ser  valorizada  e 
protegida,  passando  a  ser  exposta  nos  mais  ínfimos  detalhes  em 
realityshows,  programas  de  auditório,  diários  na  Internet  e  outros 
teatros  do  eu  contemporâneos,  a  interioridade  visceral  revelada  pelas 
novas imagens acompanha esse processo de externalização. Apesar de 
essas imagens serem tão pessoais e ‘íntimas’ por pressagiar de maneira 
tão  eficaz  nossa  condição  mortal,  estamos  nos  acostumando  à  sua 
difusão e reprodutibilidade.” (Ortega, 2013: 91). 
 

                                                            
33   Entre  os  filmes  que  pretendem  explicar  a  origem  dos  zumbis,  o  argumento  de  um 
vírus ou de uma experiência laboratorial mal‐sucedida é uma constante. 

123
 
Assim, a figura do zumbi apresenta a maneira como estamos nos 
adaptando a ver o corpo humano: um agrupamento de vísceras, ossos e 
secreções cada vez mais expostas. Nesta nova maneira de apresentar e 
representar o corpo, a pele perde sua função de velar pelo encobrimento 
de  seu  interior,  acabando  com  o  “pudor  orgânico”.  A  função  primeira 
da  carne  nestas  imagens  passa  ser  a  de  demonstrar  sua  fragilidade  e 
declarar que não existem mais segredos fisiológicos escondidos.  
 
3.4 A precariedade da vida zumbificada 
 
Como vimos, este específico morto vivo ameaça não apenas por 
sua fome insaciável de carne humana e do elemento contagioso de sua 
condição,  mas  por  estar  sempre  associado  a  um  colapso  civilizacional. 
Não  por  acaso,  o  termo  “apocalipse  zumbi”  é  constante  em  tais  obras. 
Assim,  podemos  afirmar  que  o  zumbi  contemporâneo  representa 
primeiramente  o  inumano  ou,  melhor  dizendo,  um  ser  humano  que  já 
não é mais humano.  
Este  é  um  elemento  extremamente  importante,  principalmente 
nos filmes: o constante aviso que os zumbis já foram humanos, mas não 
o são mais. Parentes, amigos, vizinhos, amantes ou filhos, todas aquelas 
pessoas  que  antes  possuíam  um  forte  laço  afetivo  e  constituíam  uma 
rede  de  solidariedade,  após  o  “contágio”  passam  a  ser  vistas  como 
inimigas,  ameaças  que  devem  ser  unicamente  exterminadas  sem  o 
menor  traço  de  afeto  ou  compaixão.  Os  zumbis  parecem  legitimar  a 
noção de que ser reconhecido como humano é um privilégio de poucos 
– privilégio esse que pode ser retirado a qualquer momento. 
O  tema  do  reconhecimento  do  Outro  como  humano  e  a 
fragilidade  deste  vínculo  é  um  dos  temas  trabalhados  pela  filósofa 
estadunidense Judith Butler. Em muitos de seus trabalhos (Butler, 2006; 
2010; 2011), esta autora analisa o que chama de “vida precária”, ou seja, 
o  caráter  contingente  e  vulnerável  da  própria  noção  do  que  pode  ser 
considerado  como  “vida  humana”  e,  assim,  conferir  a  determinadas 
pessoas  ou  grupos  o  status  de  humanos,  merecedores  de  afetos, 
cuidados, proteção e inteligibilidade. 
Para a autora, a “vida” não é pensada como um dado natural e 
biológico,  mas  como  uma  relação  de  forças  sociais,  simbólicas  e 

124
 
biopolíticas  que  legitimam  determinadas  “vidas”  a  serem  vistas  como 
importantes  e  merecedoras  de  reconhecimento  enquanto  outras  são 
encaradas como supérfulas, desnecessárias e incovenientes.  
Refletindo  sobre  a  guerra  –  especialmente  a  “guerra  ao  terror” 
estadunidense ‐ e sua lógica de desumanizar o inimigo, em um esforço 
que  envolve  não  apenas  propaganda  e  campanhas  militares  mas 
necessita  da  cumplicidade  e  apoio  da  mídia,  Butler  nos  mostra  como, 
nestas  relações  de  poder,  determinados  grupos  ou  pessoas  não  são 
compreendidos  como  totalmente  humanos.  Sendo  assim,  essas  vidas 
podem  ser  arruinadas,  tornadas  miseráveis  ou  mesmo  destruídas  sem 
que  isso  venha  a  abalar  aqueles  que  as  destroem  ou  mesmo  os  que 
apenas  “se  informam”  sobre  tais  acontecimentos.  Conforme  a  autora 
(2006: 58): “certas vidas estão altamente protegidas e o atentado contra 
sua  santidade  basta  para  mobilizar  as  forças  da  guerra.  Outras  vidas 
não  gozam  de  um  apoio  tão  imediato  e  furioso  e  não  se  qualificam 
inclusive como vidas que ‘valham a pena’”. 
Ora,  como  vimos,  a  figura  do  zumbi  contemporâneo  parece  se 
encaixar perfeita e literalmente neste modelo de vidas que não são mais 
reconhecidas  como  vidas,  tornando  seus  sujeitos  não‐humanos. 
Seguindo a lógica da guerra, as obras sobre zumbis parecem proclamar 
que  existem  pessoas  ou  grupos  que  não  são  humanos  (mesmo  que  já 
tenham sido algum dia) e que seu extermínio é necessário, não devendo 
ser  pensado  como  algo  cruel  ou  “desumano”.  Ainda  conforme  Butler 
(2010, 54), “por isso, quando tais vidas se perdem elas não são objeto de 
dor, pois na retorcida lógica que racionaliza sua morte, a perda de tais 
populações é considerada necessária para proteger a vida dos ‘vivos’”. 
Exatamente o mesmo discurso usado nas obras com zumbis. 
Assim,  visto  como  uma  relação  política  de  legitimação  de 
determinados  grupos,  valores  e  ideias  sobre  outros,  a  figura  do  zumbi 
contemporâneo  com  sua  ameaça  civilizacional  pode  ser  pensada  não 
apenas como metáfora do caos social internacional que se instalaria com 
um ataque destes seres (Drezner, 2011), mas como o incontável números 
de  pessoas  e  vidas  em  todo  o  planeta  que  são  encaradas  como 
perigosas,  repugnantes  e  desimportantes.  Como  os  zumbis,  muitas 
vezes  o  fim  destes  seres  que  não  são  mais  vistos  como  humanos  é  o 

125
 
extermínio,  sem  direito  ao  luto  ou  mesmo  ao  reconhecimento  de  sua 
humanidade. 
Neste  sentido,  o  zumbi  globalizado  contemporâneo  é  igual  ao 
seu  antecessor  caribenho  e  colonizado:  ambos  são  monstros  por  não 
conseguirem  ser  pensados  como  humanos.  Suas  “vidas  mortas” 
representam  nem  tanto  o  questionamento  dos  limites  culturais  entre  a 
vida  e  a  morte,  mas  principalmente  um  jogo  de  poder  político  que 
determina quem deve ser visto como um morto, uma ameaça impura e, 
consequentemente, ser descartado como uma vida que não vale a pena 
ser vivida. 
 
“São  vidas  nas  quais  não  cabe  nenhum  pesar  porque  já  estavam 
perdidas  para  sempre  ou  porque  na  verdade  nunca  o  “foram”,  e 
devem  ser  eliminadas  desde  o  momento  em  que  parecem  viver 
obstinadamente nesse estado moribundo. A violência se renova frente 
ao caráter aparentemente inesgotável de seu objeto. A desrealização do 
ʺOutroʺ  quer  dizer  que  ele  não  está  vivo  nem  morto,  mas  em  uma 
interminável condição de espectro”. (Butler, 2006: 60). 
 
Em  um  mundo  em  que,  apesar  dos  esforços  em  contrário,  o 
racismo, o sexismo, as discriminações por etnias, sexos, gêneros, classe, 
nação,  cultura  ou  traços  físicos,  entre  outras,  não  apenas  continuam 
vivas mas renascem quando acreditava‐se que elas não existissem mais, 
uma  questão  fica  no  ar:  se  ideias  que  já  deveriam  estar  mortas  e 
enterradas continuam saindo de suas tumbas e encontrando abrigo em 
nossas  mentes  e  atitudes,  talvez  os  zumbis  não  sejam  apenas  uma 
personagem de ficção. Talvez zumbis sejamos nós. 
 
4. Reflexões finais 
 
Tal como aponta Foucault, desde o alvorecer do século XVIII, o 
corpo  e  a  vida  foram  convertidos  nos  objetos  e  objetivos  do  poder  (cf. 
Foucault,  2002a,  2002b).  Quando  a  vida  do  homem  biológico  está 
imbricada  na  do  homem  político,  se  assiste  a  uma  reconfiguração  da 
política.  A  política  se  converte  em  vigilância  e  gestão  de  corpos  e  da 
vida. 

126
 
O  corpo  perde  sua  caracterização  naturalista  e  essencialista,  e 
passa  a  ser  compreendido  como  uma  configuração  do  poder.  Como 
expressa Haraway ʺos corpos (...) não nascem, eles são fabricados. Eles 
foram  completamente  desnaturalizados  enquanto  símbolo,  contexto  e 
tempoʺ  (Haraway,  1995:  357).  O  corpo  e  a  vida  não  são  um  fato 
biológico,  mas  um  complexo  campo  de  inscrição  de  códigos 
socioculturais que devem ser decifrados. 
Neste contexto, podemos dizer que tanto o corpo monstruoso do 
obeso  como  a  vida  monstruosa  do  zumbi  –  questões  sobre  as  quais  nos 
detivemos  nesse  artigo  ‐,  são  duas  imagens  da  monstruosidade  que 
devem  ser  decifradas  a  partir  deste  horizonte  biopolítico.  O  monstro é 
um conceito biopolítico, definido na identidade entre vida e política. 
Enquanto  operador  conceitual,  o  monstro  se  opõe  à  norma  do 
humano. O monstro é uma figura transgressora das categorias estéticas, 
epistêmicas,  jurídicas  e  políticas  a  partir  das  quais  se  reconhece  o 
humano. O monstro encarna o limite entre o bonito e o feio, o saudável 
e  o  enfermo,  o  humano  e  o  inumano,  o  vivo  e  o  morto,  o  natural  e  o 
artificial. Representa uma figura específica do poder que ameaça o que é 
definido  como  humano.  Portanto,  o  monstro  tensiona  a  pretensão 
classificatória e normalizadora do biopoder.  
Embora  os  limites  do  humano  e  do  monstruoso  pareçam  estar 
delimitados  e  fixados,  a  presença  de  corpos  monstruosos  e  vidas 
monstruosas  problematiza  tais  demarcações  e  aponta  uma  zona  onde 
esses limites tendem a se confundir. A obesidade epidêmica e os zumbis, do 
ponto  de  vista  do  discurso  da  ciência  (biomédica)  e  da  ficção, 
questionam  as  definições  sobre  o  que  é  um  corpo  e  uma  vida 
propriamente humanos. 
Por  um  lado,  a  obsesidade  epidêmica  aponta  para  a 
monstruosidade  do  corpo  humano,  a  monstruosidade  (a  gordura)  que 
assombra  o  corpo  a  partir  de  seu  interior  até  apoderar‐se  dele.  A 
obesidade é a manifestação, transcrita no corpo, da monstruosidade que 
está  no  humano,  é  um  humano  convertido  em  monstro.  A 
volumosidade,  flacidez  e  carnalidade  amorfa  do  corpo  são  marcas 
somáticas que confessam, em seu corpo, a transgressão dos limites entre 
o humano (saudável e belo) e o não‐humano (enfermo e feio). 

127
 
Por outro lado, o zumbi representa a desumanidade do monstro, é 
um corpo humano em decomposição, um morto‐vivo que perdeu certas 
manifestações  humanas:  rosto,  linguagem,  afetividade.  O  zumbi  é 
também  um  humano  convertido  em  monstro,  portador  de  uma  vida 
menos que vida, de uma vida que conduz à própria morte. 
Ambas as imagens da monstruosidade informam que, apesar de 
sua constituição em oposição à norma do humano, não se trata de uma 
alteridade  radical  com  relação  ao  humano,  mas  de  uma  ʺexclusão 
inclusivaʺ (Agamben, 2005), uma exteriorização do monstro que habita, 
que  está  incluído,  no  humano.  A  monstruosidade  desafia  a  norma  a 
partir  de  sua  própria  interioridade,  é  um  perigo  inerente  à  norma  do 
humano. 
Os critérios normativos sobre os quais se estabelece ʺo humanoʺ 
permitem  uma  gestão  desigual  sobre  a  população  considerada 
ʺhumanaʺ e aquela que se tem desumanizado. O monstro, como perda 
de humanidade, seja por portar um corpo monstruoso – o obeso –, seja 
por  levar  uma  vida  monstruosa  –  o  zumbi  –,  é  objeto  de  uma  gestão 
política que o define como um ser carente de valor. Consequentemente, 
sobre o continuum da população se produzem cortes entre a população 
que  se  quer  defender  (os  que  representem  a  norma)  e  os  monstros  (os 
que  se  desviam  dela),  ou,  em  outros  termos,  entre  os  ʺcorpos  que 
importamʺ  e  ʺas  vidas  dignas  de  serem  vividasʺ,  e  os  ʺcorpos 
descartáveisʺ e as ʺvidas que não merecem ser vividasʺ. 
A  monstruosidade  se  lança  em  uma  economia  política  da  vida, 
na  qual  se  decide  o  que  constitui  e  o  que  não  constitui  uma  forma  de 
vida  humana.  Produz  uma  vida  qualificada  positivamente,  uma  vida 
que  deve  ser  protegida,  e  uma  vida  qualificada  negativamente,  em 
termos de monstruosidade. 
O monstro não é apenas um ser sem valor, mas, como expressa 
Canguilhem,  é  um  vivente  com  valor  negativo  cuja  função  é  repelir. 
Neste sentido, o monstro é portador de um corpo e de uma vida que é 
considerada  como  uma  ameaça,  uma  vida  que  é  excluída  do  que  é 
considerado vida ʺnormalʺ ou ʺvivívelʺ, uma vida com valor negativo. 
Isso  coloca  em  evidência  o  sentido  moralizante  que  se  esconde 
por  detrás  da  identificação  do  monstro.  O  obeso  e  o  zumbi  seriam 
manifestações  de  corpos  que  perderam  sua  forma  humana  em  função 

128
 
do desvio de seu comportamento. O obeso não apenas apresentaria um 
corpo  doente,  mas  também  um  estado  vital  atribuído  ao  abandono,  à 
falta  de  vontade  e  autoestima.  É  um  corpo  que  foi  monstrificado  por 
descuido  e  se  apresenta  como  um  perigo  para  os  princípios  sanitário‐
empresariais.  Por  outro  lado,  o  zumbi  é  um  corpo  em  decomposição, 
que perdeu toda a possibilidade de redenção, que evoca um símbolo do 
corpo corrompido e de uma vida corruptora. 
As  figuras  da  obesidade  epidêmica  e  do  zumbi  permitem 
compreender a instabilidade da norma do humano e, por outro lado, a 
oposição  à  ordem  social  que  a  caracteriza.  Os  monstros  são  uma 
epidemia que ameaça, a partir da interioridade, a ordem normativa do 
humano.  Os  monstros  irrompem  no  campo  da  biopolítica  para  nos 
mostrar a fragilidade do humano, para nos ensinar que a humanidade 
monstrifica, que somos monstros. 
 
 
 
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Outras fontes consultadas 
 
Páginas da internet e artigos digitais 
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WORD  HEALTH  ORGANIZATION.  Función  de  la  OMS  en  la  salud  pública. 
En  la  página  de  Organización  Mundial  de  la  Salud.  2013b.  Disponible  en: 
<http://www.who.int/ about/role/es/index.html> [Consulta: 1 de junio de 2013] 
WORD  HEALTH  ORGANIZATION.  Obesidad  y  sobrepeso.  En  la  página  de 
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133
 
WORD  HEALTH  ORGANIZATION.  1948.  Disponible  en: 
<http://www.who.int/ suggestions/faq/en/> [Consulta: 1 de junio de 2013] 
DAILY  DOWNEY  OBESITY  REPORT.  The  Global  Obesity  Picture.  junio  del 
2012.  Disponible  en:<http://www.downeyobesityreport.com/tag/global‐
obesity‐prevalence/> [Consulta: 1 de junio de 2013] 
 
Imagens em artigos 
Mapa.  Gráfico  exhibido  en  “The  Global  Obesity  Picture”.  Publicado  en  la 
página  Daily  Downey  Obesity  Report  en  junio  del  2012.  Disponible 
en:<http://www.downeyobesityreport.com/tag/global‐obesity‐prevalence/> 
[Consulta: 1 de junio de 2013] 
Figura 2. Imagen exhibida en el artículo “¿Son las grasas imprescindibles para 
vivir?” Publicado en Revista Muy Interesante, agosto, 1995, pág. 5.  
Fig. 3. Gómez, Manuel (2008) Fotografía exhibida en el artículo “¿Es cierto que 
si soy obeso tendré disfunción eréctil?”. Publicado en la Revista Men’s Health, 
febrero, 2008, pág. 2. 
Figura 4. Imagen publicitaria de la empresa “Del Mar ‐ Medical Spa Empresa”, 
expertos  en  programas  de  pérdida  de  peso.  Publicado  en  la  revista  Mercado 
Fitness, en mayo‐junio del 2010, pág. 82. 
Figura 5. Imagen de una campaña del 2009 del Ministerio de Salud de Portugal. 
Texto:  Os  sedentários  nao  conseguem  fugir  das  doenças.  Faça  exercício. 
Publicado en la revista Mercado Fitness, en mayo‐junio del 2010, pág. 83. 
 
 
 
 
 
 
 

134
 
PARTE II 
 
 
Direito e mudança social: a formação jurídica e as recentes demandas 
de reconhecimento no Brasil e na Argentina  
 
Richard Miskolci1 
 Maximiliano Campana2 
 
 
1. Introdução 
 
Martha  Minow,  ao  escrever  sobre  a  relação  entre  direito  e 
mudança social começa expressando o seguinte:  
 
“Penso  que  existem  duas  classes  de  pessoas  quando  se  trata  do  tema 
do  direito  e  mudança  social:  aquelas  que  pensam  que  o  direito  é  um 
importante  instrumento  de  mudança  social  e  aquelas  que  não  creem 
que  seja.  […]  Quando  se  trata  das  relações  entre  direito  e  mudança 
social, não posso dizer quem está errado” (2000, p.1). 
 
  Essa  reflexão  parece‐nos  interessante  como  um  pontapé  inicial 
para  realizar  algumas  considerações  em  torno  da  utilização  do  litígio 
como  instrumento  de  mudança  social  nas  demandas  por 
reconhecimento de direitos. Mas para entender melhor como e para que 
se  mobiliza  o  direito,  é  interessante  primeiro  adentrar  no  processo  de 
formação  e  socialização  profissional  dos/as  estudantes  de  advocacia 
para seu futuro exercício profissional. 

                                                            
1  Richard Miskolci é professor do Departamento e do Programa de Pós‐Graduação em 
Sociologia  da  UFSCar  e  pesquisador  do  CNPq.  Tem  publicações  na  área  de 
sexualidade, gênero e direitos humanos.  
2 Advogado pela Universidade Nacional de Córdoba (UNC). Doutorando em Direito e 

Ciências  Sociais  (UNC),  coordenador  do  Programa  dos  Direitos  Sexuais  e 


Reprodutivos  da  Faculdade  de  Direito  (UNC)  e  coordenador  da  área  de  litígio 
estratégico da Clínica de Interesse Público de Córdoba. 
 

135
 
A maioria das pessoas vê o Direito como a área profissional de 
quem  se  sente  vinculado/a  às  demandas  por  justiça.  Não  é  incomum 
ouvir  jovens  às  vésperas  de  entrar  na  universidade  refletindo  sobre  a 
advocacia como uma possibilidade atraente por causa de seus ideais de 
fazer  valer  a  igualdade  de  todos  perante  a  lei  e  contribuir  para  uma 
sociedade  mais  justa.  No  entanto,  pesquisas  em  vários  contextos 
nacionais  indicam  que  se  o  impulso  inicial  para  a  carreira  pode  ser  a 
busca  por  justiça,  a  estrutura  formativa  no  Direito  tende  a  frustrá‐la  e 
até mesmo substituí‐la por objetivos mais práticos.3 
  Neste  artigo,  buscamos  discutir  como  a  formação  de 
advogados/as  poderia  ser  vinculada  proficuamente  a  um 
comprometimento  com  a  justiça  e  a  igualdade.  O  compromisso 
(commitment)  com  esses  valores  poderia  ter  um  efeito  positivo  de 
democratização  de  sociedades  com  uma  história  marcada  por 
desigualdades,  injustiças  e  autoritarismos.  Em  especial,  nos  casos 
brasileiro  e  argentino,  essas  três  chagas  culturais  demandam  que  a 
atuação da área da justiça se engaje em um processo em andamento de 
gradativa transformação social pelo qual passam nossos países desde o 
fim de suas últimas ditaturas militares. 
 
2. Formação jurídica e socialização dos advogados 
 
Voltemo‐nos  para  a  formação  de  advogados/as.  Para 
compreendê‐la melhor podemos nos basear em Basil Bernstein (1977) e 
seu conceito de “código de conhecimento educativo”, o qual se compõe 
pelo currículo, a pedagogia e a avaliação: 
 
“Ao  aplicar  a  ideia  de  código  à  transmissão  educativa  que  tem  lugar 
nas  escolas,  Bernstein  trata  de  demostrar  que  a  organização,  a 
transmissão  e  a  avaliação  do  conhecimento  (ou  seja,  o  currículo,  a 
pedagogia  e  a  avaliação  respectivamente)  estão  intimamente 

                                                            
3  Dentre essas pesquisas destacamos as de Carlos Lista e sua equipe na Argentina e a de 
Boaventura  de  Souza  Santos  (2012)  em  Portugal.  No  Brasil,  há  várias  investigações 
sobre o tema e também uma vertente que analisa o contraste entre os ideais de justiça 
e neutralidade e a forma como a profissionalização os impede ou frustra. Sobre esse 
último tópico consulte as pesquisas de Bonelli et alli (2008) e Bonelli (2011).  

136
 
relacionadas  com  os  padrões  de  autoridade  e  de  controle  social 
vigentes  na  sociedade.  […]  Enfim,  o  código  educativo  explica  a 
estrutura de poder e os princípios de controle vigentes na instituição” 
(Brígido, 2006a, p.45).  
 
Dessa  maneira,  aquele/as  alunos/as que  tenham  internalizado  o 
“código de conhecimento educativo” da instituição de maneira correta, 
terão  assegurado  o  êxito  na  carreira  educativa  e  universitária.  Desse 
modo,  o  triunfo  e  a  imposição  de  determinados  “códigos”  nas 
faculdades  de  direito  redundará  em  determinadas  concepções  de 
justiça,  equidade,  liberdade  e  direitos,  concepções  que  atualmente  se 
caracterizam  por  serem  conservadoras  e  individualistas.  Essa  questão 
não  deixa  de  ser  relevante  ao  levar  em  conta  que  em  países  como  a 
Argentina,  o  acesso  à  justiça  só  é  possível  pela  mão  de  um/a 
advogado/a, o que implica a conversão de estudantes de advocacia em 
profissionais  que  finalmente  custodiariam  a  liberdade  individual  e  a 
propriedade  privada,  dois  valores  sumamente  importantes  na 
sociedade argentina.4  
Diante  desse  panorama,  quais  são  as  motivações  dos/as 
estudantes  no  momento  de  escolher  a  carreira  de  advocacia  e  quando 
devem inserir‐se no mercado de trabalho? 
Para  responder  essa  pergunta,  Tessio  Conca  (2006)  nos  adverte 
que existe uma importante variação na resposta dos/as estudantes. Em 
geral,  essas  motivações  podem  se  enquadrar  em  quatro  grupos5:  o 
primeiro  deles  se  vincula  com  a  influência  de  um  círculo  próximo, 
constituído  por  familiares  e  amigos/as  advogados/as,  que  influenciam 
na decisão. Um segundo grupo, por sua parte, manifesta ter escolhido a 
profissão  por  sentir  certa  inclinação  por  disciplinas  vinculadas  às 
ciências  sociais  e,  depois  de  ter  considerado  opções  como  ciência 
                                                            
4 A representação de um advogado matriculado é obrigatória para atuar frente às cortes 
de justiça, e a condição de advogado condição necessária para ocupar alguns cargos 
públicos,  em  particular  para  ser  juiz  em  qualquer  instância  do  sistema  de  justiça.  É 
por isso que se deve sublinhar que, na Argentina, os advogados têm o “monopólio” 
do acesso à justiça e as faculdades de direito um grande poder político.  
5 Havia um quinto grupo, que manifestou ter escolhido a carreira “por eliminação”, por 

não  saber  o  que  estudar  ou  não  ter  podido  ingressar  em  outras  carreiras  de  seu 
agrado.   

137
 
política,  serviço  social  ou  sociologia,  escolhem  a  advocacia  por 
considerá‐la uma carreira que abre perspectivas seguras de trabalho, ao 
que  também  incluem  a  posição  de  prestígio  e  poder  que  ela  permite 
alcançar. O terceiro tipo de motivações está vinculado à busca de uma 
carreira  que  abra  as  portas  de  uma  profissão  tradicional,  prestigiosa  e 
economicamente  rentável.  Finalmente,  encontramos  como  principal 
motivação  da  escolha  da  carreira  a  necessidade  de  dar  resposta  a  um 
ideal social e humanitário. 
No  caso  desses  ideais,  os/as  estudantes  manifestam  que  sua 
verdadeira motivação se vincula ao seu interesse pela justiça, a busca de 
una sociedade mais igualitária e a defesa dos direitos dos demais: “[…] 
o que me levou a escolher essa profissão [foi] a sede de justiça, e se me 
perguntam o que é, digo: buscar que se respeitem as instituições, as leis 
e  as  constituições”  (apud  Tessio  Conca,  2006, p.63)  Com  essa  resposta, 
um  estudante  se  associa  claramente  com  esse  último  grupo  de 
alternativas. Com certeza, a autora adverte que:  
 
“Conforme vão avançando no curso, suas motivações iniciais começam 
a  se  ver  contrariadas.  A  própria  estrutura  da  agência  educativa,  os 
conteúdos  que  se  transmitem  e  as  metodologias  de  ensino  vão 
defendendo uma percepção mais ajustada das possibilidades reais que 
têm  o  advogado  para  mudar  situações  de  injustiça”  (Tessio  Conca, 
2006, p.63).  
 
Desse  modo,  os/as  alunos/as  que  alguma  vez  acreditaram  na 
possibilidade  de  satisfazer  seu  desejo  por  uma  sociedade  mais  justa 
como  advogados/as  terminam  convencendo‐se  de  que  o  papel 
verdadeiro  do/advogado/a  se  centra  principalmente  em  “litigar  e 
ganhar”  e  que  aqueles  valores  vinculados  à  proteção  de  direitos  de 
pessoas desprotegidas e a busca de maior justiça e igualdade social são 
ideais dificilmente realizáveis no exercício profissional. 
Isso  se  deve,  principalmente,  ao  modo  em  que  se  estrutura  a 
educação legal em países como o Brasil e a Argentina. Neles, a maioria 
dos advogados e advogadas são formados dentro de disciplinas em que 

138
 
a formação se caracteriza por ser marcadamente teórica,6 e nas quais se 
encontram dois  núcleos  temáticos claros:  um  central  que  se  vincula  ao 
direito positivo (como é o direito civil, penal ou comercial) e outro, mais 
periférico,  formado  por  disciplinas  consideradas  auxiliares  ou 
meramente  informativas  (entre  as  quais  se  encontram  a  história,  a 
economia e a sociologia). Tudo isso implica uma ausência de conteúdos 
e  debates  que  fomentem  nos/as  estudantes  perspectivas  críticas  que 
discutam  com  os  discursos  jurídicos  dominantes.  A  consequência  de 
tudo  isso  é  que  as  carreiras  de  advocacia  acabam  promovendo  uma 
identidade  profissional  pouco  comprometida  socialmente,  carente  de 
crítica  diante  dos  discursos  sócio‐jurídicos  tradicionais  e  altamente 
individualistas,  onde  os  futuros  advogados  e  advogadas  se  limitam  a 
reproduzir a ordem social existente (Brígido, 2006b).  
  Segundo  Lista  (2011),  a  predominância  de  uma  concepção 
formal e instrumental de justiça na formação de estudantes de direito na 
Argentina  faz  com  que  eles/as  não  percebam  ou  reconheçam  a 
existência de relações de poder. É como se a “neutralidade” da justiça a 
impedisse  de  reconhecer  desigualdades  e,  principalmente,  diferenças. 
Denominamos  desigualdade  o  contraste  relacional  entre  sujeitos 
detentores  de  condições  econômicas,  culturais  e  mesmo  de  acesso 
privilegiado  à  justiça  e  aqueles/as  que  não  detém  essas  condições  no 
mesmo  nível.  Diferenças,  por  sua  vez,  referem‐se  à  forma  como  cada 
sociedade  distingue/marca  as  pessoas  com  relação  ao  gênero,  à 
sexualidade, à raça, etnia, geração, entre outras categorias.  
Se  em  relação  às  desigualdades  socioeconômicas  a  esfera 
jurídica  até  busca  fazer  frente  ainda  é  menor  o  reconhecimento  das 
diferenças  como  também  engendrando  desigualdades,  as  quais  não  se 
resumem  à  renda  ou  classe  social,  antes  a  experiências  sociais  de 
discriminação, preconceito e outras formas de violência simbólica.  

                                                            
6   De  qualquer  forma,  nos  últimos  28  anos  de  transição  democrática  argentina 
experimentamos diversas mudanças curriculares que apontam para a inclusão em um 
núcleo  de  formação  prática,  a  associação  do  segundo  núcleo  temático  com  matérias 
interdisciplinares  que  flexibilizariam  o  currículo,  também  a  diminuição  dos  anos  de 
curso e a incentivar uma perspectiva crítica na aproximação pedagógica. Nem todos 
esses  objetivos  foram  alcançados  e  a  implementação  dessas  reformas  ainda  está  em 
execução. 

139
 
  Os contextos brasileiro e argentino são similares na formação de 
advogados/as, em ambos predominam os aspectos ressaltados por Lista 
como  a  predominância  da  transmissão  de  conhecimento  sobre  o 
desenvolvimento  de  habilidades  que  combina  três  aspectos:  “a 
centralidade do direito e da monodisciplinaridade, fragmentação, forte 
classificação  e  hierarquização  do  conhecimento  e  a  reprodução  da 
abordagem  legal  positivista  e  formalista  como  modelo  hegemônico” 
(2011, p.5).  
Nesse  modelo  de  ensino  e  aprendizado,  o  Direito  tende  a  ser 
isolado  de  suas  origens  sociais  e  políticas,  portanto  apagando  sua 
contingência  de  forma  a  reproduzir  violências  simbólicas  típicas  da 
sociedade  em  que  ele  se  estabeleceu.  O  passado  autoritário  e  classista 
em  que  o  acesso  à  justiça  foi  mantido  um  privilégio  das  elites 
dominantes  é  ignorado  de  forma  a  preservar  intocadas  as  estruturas 
legais  e  culturais  que  as  beneficiam  até  hoje.  Assim,  não  é  de  se 
estranhar o contraste, ao menos no caso argentino, entre os ideais com 
os  quais  estudantes  ingressam  nos  cursos  e  o  pragmatismo 
desencantado com que os deixam tornando‐se profissionais às custas da 
adoção  de  um  apoliticismo  alienante.  Afinal,  a  neutralidade  da  justiça 
não  pode  ser  confundida  com  cegueira  com  relação  às  condições  de 
desigualdade  em  que  ela  é  aplicada  ou,  inclusive,  não  é  aplicada, 
mantendo  boa  parte  da  população  apartada  de  seus  direitos  e  do 
reconhecimento de sua cidadania. 
Em  parte,  isso  se  passa  porque  o  sociológico  e  o  histórico 
tendem  a  ser  mantidos  fora  ou  apenas  parcialmente  incorporados  na 
formação  legal,  por  meio,  por  exemplo,  da  filtragem  das  reflexões  de 
cunho  sociológico  e  político  pela  perspectiva  do  direito.  É  clara  a 
tendência  dos  cursos  brasileiros  a  priorizarem  a  contratação  de 
advogados  para  oferecerem  disciplinas  que  permitiriam  maior 
permeabilidade  da  formação  às  discussões  históricas,  sociológicas, 
antropológicas  e  políticas.  Buscando  evitar  esses  contatos  e  trocas,  os 
cursos levam a uma formação que prioriza a manutenção – e até mesmo 
o  reforço  ‐  de  um  hermetismo  do  direito,  o  que  contribui  para  que 
estudantes  passem  a  ver  com  desconfiança  fontes  que  poderiam 
problematizar  conteúdos  apresentados  como  doutrinas  e/ou  verdades 
inquestionáveis. 

140
 
No  Brasil,  como  analisado  por  Lista  na  Argentina,  o  discurso 
pedagógico do direito tem quatro características que clamam por crítica: 
a centralidade e autoridade dos professores, a passividade e indiferença 
dos  estudantes,  o  estilo  ritualístico  e  dogmático  do  ensino  e  a 
arbitrariedade  e  o  antagonismo  nas  discussões  (Cf.  Lista,  2011,  p.8). 
Trata‐se de características não apenas da área do Direito, mas também 
de sociedades latino‐americanas que vivenciaram uma história comum 
marcada pelo autoritarismo e pela manutenção do acesso à justiça como 
privilégio das elites.  
Nossas  sociedades  mudaram  e  se  democratizaram  nas  últimas 
décadas  e  análises  críticas  como  esta  ou  a  de  Lista  são  produtos  dessa 
nova  realidade  político‐institucional,  a  qual,  infelizmente  ainda  não 
interferiu ou modificou a esfera de formação dos aplicadores do direito. 
Segundo Boaventura de Souza Santos:  
 
“O principal desafio que se coloca nesse contexto é que todo o sistema 
de  justiça,  incluindo  o  sistema  de  ensino  e  formação,  não  foi  criado 
para  responder  a  um  novo  tipo  de  sociedade  e  a  um  novo  tipo  de 
funções.  O  sistema  foi  criado,  não  para  um  processo  de  inovação,  de 
ruptura,  mas  para  um  processo  de  continuidade  para  fazer  melhor  o 
que sempre tinha feito” (2012, p.81). 
 
Estudantes  de  Direito  formam  um  contingente  grande  e 
potencialmente  poderoso  de  profissionais  que  poderia  auxiliar  no 
aprofundamento  da  democracia  em  nossos  países.  Infelizmente,  sua 
potencialidade  democrática  mantém‐se  controlada  por  valores 
historicamente  arraigados  e  que  tendem  mais  a  frear  processos  de 
mudança  social  do  que  os  aprofundar.  É  paradoxal  que  as  recentes 
conquistas  no  Supremo  Tribunal  Federal  brasileiro,  como  o 
reconhecimento  das  uniões  entre  pessoas  do  mesmo  sexo  e  a 
constitucionalidade  das  cotas  raciais,7  se  deem  em  um  país  em  que  a 
graduação  em  Direito  mantém  um  perfil  dogmático  e  conservador. 
Qual a origem desse descompasso? 

                                                            
7  A respeito das discussões sobre a constitucionalidade das cotas consulte Silvério (2012) 
e sobre as uniões entre pessoas do mesmo sexo veja Oliveira (2012). 

141
 
Estudos  como  os  de  Bonelli  (2008;  2011)  demonstram  que  as 
carreiras  jurídicas  brasileiras,  marcadas  por  alta  competitividade, 
tendem a inculcar nos jovens profissionais discursos universalistas que 
apagam  as  problemáticas  das  diferenças.  Quem  quer  conseguir  e 
manter um emprego como advogado é induzido a adotar estratégias e 
discursos  em  que  o  profissionalismo  se  confunde  com  neutralidade. 
Bonelli  et  alli  (2008)  mostra  como  isso  se  passa  com  mulheres 
advogadas que, na base da profissão, afirmam não reconhecer nenhuma 
particularidade ou dificuldade extra por serem mulheres em uma área 
de  atuação  majoritariamente  masculina.  Compreensivelmente,  depois 
de  ascender  profissionalmente  o  discurso  ganha  nuances  e  muitas 
mulheres reconhecem e trazem ao discurso as dificuldades enfrentadas 
para  serem  reconhecidas  como  boas  profissionais  em  contextos 
historicamente masculinos.8 
Assim,  o  paradoxo  entre  as  recentes  decisões  do  Supremo 
Tribunal  Federal  brasileiro  e  os  discursos  predominantes  na  base 
profissional  –  em  especial  na  esfera  de  formação  –  se  torna  mais 
compreensível.  A  lógica  de  entrada  na  área  de  trabalho  ainda  é  a  da 
adoção,  o  mais  irrestrita  possível,  das  concepções  mais  tradicionais  e 
arraigadas  do  que  é  o  Direito,  a  profissão  de  advogado/a,  do  que  é 
passível de discussão ou não. O reconhecimento das diferenças sociais, 
das desigualdades ou mesmo do acesso desigual à justiça ainda é quase 
um  privilégio  de  quem  conseguiu  um  emprego  e  certa  estabilidade 
profissional.  
 
3. O caso argentino dos advogados/as ativistas: os avanços LGBT e o 
poder conservador dos movimentos contra o aborto  
 
Em  contraste  com  o  cenário  brasileiro  mencionado  no  item 
anterior,  vale  a  pena  conhecer  uma  particularidade  argentina. 
Conforme  alguns  teóricos  (Lista,  2012,  Manzo,  2011,  Vecchioli,  2006), 
uma nova classe de advogados/as litigantes estaria emergindo no país, 
fundamentalmente  por  meio  das  transformações  sociopolíticas  e 

                                                            
8  Bonelli et alli (2008) conceitua como “apagamento de gênero” a característica marcante 
de como a incorporação de mulheres na base da profissão tem se dado em nosso país. 

142
 
jurídicas  que  se  deram  desde  a  reinstauração  da  democracia.  Esses 
novos  profissionais  poderiam  ser  chamados  de  “ativistas”  e  se 
caracterizam  por  estarem  vinculados  a  movimentos  sociais  e/ou 
organizações não‐governamentais e compreenderem que o direito pode 
ser  entendido  também  como  uma  ferramenta  de  mudança  e 
transformação social e que o acesso à justiça não pode ser considerado 
apenas  de  um  ponto  de  vista  formal,  antes  ser  plenamente  exercido 
pelos/as  afetados/as.  Em  relação  a  isso,  e  ao  referir‐se  aos/às 
advogados/as ativistas, Lista (2012, p.148) reflete: 
 
“Quem adota e promove uma definição de acesso à justiça mais ampla, 
dinâmica  e  com  base  substantiva  […]  tende  a  conceber  a  politização 
dos  conflitos  sociais  como  uma  estratégia  jurídica  na  demanda  e  na 
defesa  dos  direitos  dos  peticionantes.  Por  sua  vez,  ao  promover  a 
participação  e  a  incorporação  dos  setores  mais  desprotegidos  nas 
relações  de  desigualdade  social,  tendem  a  reforçar  o  poder  de  tais 
setores e fortalecer sua autonomia”.  
  
A  origem  desses  novos  “ativistas”  foi  favorecida  por  diversos 
fatores,  entre  os  quais  se  destacam  a  reforma  constitucional  de  19949, 
um  maior  nível  de  mobilização  de  organizações  não‐governamentais 
em  defesa  dos  direitos  de  incidência  coletiva10,  uma  situação  política 
favorável  para  a  mobilização  do  direito,  a  incorporação  por  parte  dos 
movimentos  sociais  de  profissionais  legais  em  suas  fileiras,  a  adoção 
por  parte  desses  movimentos  de  um  discurso  de  direitos  humanos  e 
fundamentalmente  pelas  ajudas  econômicas  recebidas  por  parte  de 
organismos internacionais que exigiam, em troca, que entre as medidas 

                                                            
9  Tal  reforma  implicou  a  incorporação  do  reconhecimento  de  direitos  de  incidência 
coletiva e instrumentos jurídicos próprios para a defesa desse tipo de direitos, como o 
amparo coletivo e a ação de habeas data. 
10  Por  “direitos  de  incidência  coletiva”  entendemos  aqueles  direitos  que  possuem  um 

número  indeterminado  de  indivíduos,  os  quais  podem  ver‐se  afetados  diante  de 
determinadas  ações  ou  medidas  tanto  do  Estado  como  de  outros  indivíduos.  Se 
incluem  nos  direitos  de  usuários  e  consumidores,  direitos  a  um  ambiente  sadio, 
direitos das minorias (sexuais, raciais, etc), entre outros.  

143
 
a  serem  implementadas  deviam  se  desenhar  estratégias  de  litígio  de 
interesse público.11  
Dentro desse contexto, surgem as primeiras clínicas jurídicas na 
Argentina  (incentivadas  pelo  financiamento  externo  e  aplicando  um 
modelo e uma metodologia de trabalho que surgiu nos Estados Unidos 
na década de 1920 e foi transplantada para a América Latina quase um 
século  depois)  que  pretendiam  ser  espaços  de  reflexão  e  formação  de 
futuros/as advogados/as, com a ideia de alterar a concepção tradicional 
do  direito  em  dois  sentidos:  por  um  lado,  educando  advogados/as 
diferentes,  com  maior  sensibilidade  social  em  defesa  dos  direitos  dos 
mais  desprotegidos,  bem  treinados  em  questões  de  interpretação  e 
crítica ao direito e às instituições; também, a médio e longo prazo, que o 
direito  fosse  mobilizado  como  uma  verdadeira  arma  de  transformação 
social,  diminuindo  as  desigualdades  sociais  e  protegendo  direitos 
historicamente postergados (Puga, 2002).  
Desde  então,  advogados  e  advogadas  comprometidos/as  com 
causas  de  interesse  público  ou  com  a  defesa  de  interesses  de 
movimentos sociais não deixaram de proliferar, e os tribunais em todo 
país conheceram e resolveram causas novas que vão desde pedidos de 
proteção ao meio ambiente sadio, saneamento de rios e bacias hídricas, 
proteção  a  usuários  e  consumidores,  discriminação  racial  ou  por 
motivos  de  gênero,  sexualidade,  direitos  de  propriedade  dos  povos 
originários,  entre  muitos  outros.  E apesar  do  incômodo  e da  reticência 
que  essas  demandas  causaram  (e  ainda  causam)  nos  distintos  órgãos 
judiciais, uma posição favorável por parte da Corte Suprema de Justiça 
da Nação diante desse tipo de demandas, na última década, incentivou 
a  utilização  estratégica  do  direito  por  parte  desses/as  novos/as 
profissionais.  
Nos últimos anos, em matéria de direitos sexuais e reprodutivos, 
diversos  grupos  vinculados  ao  movimento  da  diversidade  sexual12 

                                                            
11 Por litígio de interesse público entendemos a estratégia de judicializar diversos casos 
com a finalidade de penetrar nas agendas públicas, gerar mudanças políticas e sociais 
ou  impactar  nas  políticas  de  governo.  Em  relação  à  ajuda  econômica  recebida  por 
parte dessas organizações, foi particularmente importante a proveniente da Fundação 
Ford, que exigia a utilização desse tipo de litígio (Teles, 2008) 

144
 
tiveram  um  grande  êxito  no  momento  de  obter  respostas  às  suas 
demandas.  Essas  se  vincularam  fundamentalmente  ao  reconhecimento 
de  direitos,  por  parte  do  Estado,  para  conseguir  o  matrimônio  em 
condições  iguais  às  dos  casais  heterossexuais  e,  posteriormente,  para 
que  fosse  reconhecida  a  identidade  de  gênero  autoconferida  de  toda 
pessoa  que  assim  o  deseje.  Durante  as  campanhas  desenvolvidas,  se 
desenharam estratégias judiciais e políticas tendentes a obter respostas 
judiciais aos seus pedidos, e, em alguns casos, dando bons resultados. É 
por  isso  que  se  deve  considerar  que  esse  movimento  soube  mobilizar 
com grande efetividade o direito (Manzo, 2011). 
No  caso  das  estratégias  para  o  casamento  entre  pessoas  do 
mesmo sexo, sua origem data do ano de 2006, quando um conjunto de 
organizações LGBT13 decidiram nuclear‐se em uma federação (imitando 
o  mesmo  modelo  que  tinha  demonstrado  êxito  na  Espanha).  Assim, 
surgiu a FALGBT: Federación Argentina de Lesbianas, Gays, Bisexuales 
y  Trans14.  Um  ano  mais  tarde,  essa  federação  lançou  a  campanha  pelo 
reconhecimento  do  direito  ao  casamento  para  casais  formados  por 
pessoas  do  mesmo  sexo  (denominada  “Campanha  pelo  Casamento 
Igualitário”), com apresentações diante da justiça. A principal estratégia 
não  consistia  tanto  em  obter  uma  sentença  judicial  favorável,  antes  o 

                                                                                                                                                
12  Cabe  esclarecer  que  o  movimento  pela  diversidade  sexual  na  Argentina  não  é  um 
bloco  unitário  e  homogêneo.  Ao  contrário,  existem  diversas  e  importantes  divisões 
dentro  dele  (Meccia,  2006).  O  mesmo  se  passa  no  Brasil,  país  em  que  não  se  dá 
unificação  similar  à  observada  na  Argentina.  A  ABGLT,  com  sede  em  Curitiba,  não 
foi criada a partir de uma coalizão das diversas vertentes LGBT brasileiras tampouco 
tem  um  discurso  e/ou  metas  partilhados  com  elas.  Em  outras  palavras,  no  Brasil  há 
mais divergências e menos coesão do que na Argentina no que toca às demandas de 
diversidade sexual.  
13 A sigla LGBT faz referência a “Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros/as”.  

14  Em  relação  a  isso,  Litardo  (2009:171)  menciona  que  a  FALGBT  surge  como 

consequência da “experiência espanhola, FELGBT – Federación Estatal de Lesbianas, 
gais,  bisexuales  y  trans  ‐  (…)  a  que  possibilitou  a  reforma  do  código  civil  espanhol 
para  o  direito  ao  casamento  entre  pessoas  do  mesmo  sexo”  no  ano  de  2005  e  que  a 
federação na Argentina “tem uma série de objetivos que se destacam a priori por uma 
nacionalização  da  questão  GLTTTBI  em  todo  território  argentino.  A  Federación  se 
instalou  como  um  espaço  de  integração  regional  em  busca  de  uma  articulação  em 
nível  federal  como  estratégia  de  integração  na  luta  e  demanda  por  direitos  civis  e 
políticos da comunidade GLTTTBI”.  

145
 
que  se  buscava  era  instalar  o  debate  sobre  a  reforma  do  casamento  na 
agenda  pública  de  então.  Foi  por  isso  que,  alguns  meses  mais  tarde, 
diversos  deputados  apresentaram  na  Câmara  um  projeto  de  lei  de 
“casamento igualitário” no marco da mesma campanha. 
De maneira surpreendente, a estratégia judicial funcionou e, no 
dia  10  de  novembro  de  2009,  uma  juíza  da  cidade  de  Buenos  Aires 
resolveu  o  caso  declarando  a  inconstitucionalidade  dos  artigos  do 
Código  Civil  que  regulavam  o  matrimônio,  classificando‐a  de 
discriminatória. Em poucos meses, na cidade de Buenos Aires, distintos 
juízes  reconheceram  novamente  esse  direito,  gerando  uma  importante 
jurisprudência  vinculada  ao  reconhecimento  dessas  demandas.  Com 
esses  precedentes  favoráveis,  a  FALGBT  anunciou  que  lançaria  uma 
“campanha judicial em  todo o território nacional” com a finalidade de 
obter  novas  sentenças  desse  tipo  em  lugares  diferentes  do  país.  As 
representações  se  fariam  por  parte  de  advogados  e  advogadas  da 
Federación e contariam com a colaboração do Instituto Nacional contra la 
Discriminación,  la  Xenofobia  y  el  Racismo  (INADI)  (Campana,  2011).  As 
respostas  a  essas  novas  demandas  não  foram  favoráveis  e  a  questão 
caiu nas mãos da Corte Suprema de Justicia de la Nación.  
Não  foi  necessário  que  o  órgão  máximo  judicial  do  país 
resolvesse: no dia 15 de julho de 2010, o Congresso argentino aprovava 
as  modificações  no  Código  Civil15,  permitindo  o  acesso  ao  casamento 
para os/as homossexuais.  
Obtido o direito ao casamento, a FALGBT lançava uma segunda 
campanha denominada “Derecho a la identidad, derecho a tener derecho” e, 
com  ela,  o  reconhecimento  da  identidade  de  gênero  se  convertia  na 
nova  demanda  do  movimento  pela  diversidade  sexual  na  Argentina. 
Nesse  caso,  a  estratégia  seguida  foi  a  mesma:  pressionar  tanto  no 
âmbito  legislativo  quanto  no  judicial.  No  primeiro,  se  apresentaram 
vários  projetos  de  lei  e,  em  novembro  de  2011,  as  comissões  de 
“Legislación General” e “Justicia” da Câmara dos Deputados discutiram e 
aprovaram  um  deles16,  começando  assim  o  processo  legislativo.  No 
                                                            
15  Lei nacional número 26.618. 
16   Veja  “Un  paso  hacia  la  identidad  de  género”.  Disponível  em  http://www. 
pagina12.com.ar/diario/sociedad/3‐180876‐2011‐11‐09.html.  (último  acesso:  30  de 
novembro de 2011).  

146
 
âmbito judicial, levaram‐se a cabo vários pedidos de reconhecimento de 
identidade de gênero diante da justiça e autorização para mudar nomes 
nos  documentos  públicos.  A  novidade  dessas  solicitações  foram  que 
os/as afetados/as alegavam que era sua identidade autodeclarada a que 
deveria  se  levar  em  conta  no  momento  de  resolver,  e  não  o  fato  de 
terem sido submetidos/as a intervenções cirúrgicas ou perícias médicas, 
psicológicas  ou  psiquiátricas.17  Essas  demandas  obtiveram  uma 
recepção  favorável  nos  mesmos  tribunais  de  Buenos  Aires  que 
consideraram  que  a  instituição  civil  do  matrimônio  compreendido 
apenas como entre homem e mulher era inconstitucional (enquanto que, 
nos  tribunais  do  resto  do  país,  diante  da  mesma  demanda,  a  resposta 
era  muito  diferente),  autorizando  aos  demandantes  a  mudarem  suas 
identidades  sem  obrigá‐los/as  a  submeterem‐se  a  perícias  médicas  ou 
psicológicas, e levando em consideração somente a autonomia de quem 
demandava.  Essa  demanda  também  se  resolveu  no  âmbito  legislativo, 
com  a  lei  nacional  26.743,  a  qual  reconhece  a  identidade  de  gênero  de 
todas as pessoas do país.  
Nesse caso, resulta difícil aferir a influência que a estratégia judicial 
pôde ter na decisão do Congresso Nacional argentino. Na verdade, o que 
se pode supor é que a lei de identidade de gênero seria o primeiro passo de 
um  processo  de  transformações  em  diferentes  instituições  estatais  (nas 
quais se incluem a justiça) que já havia começado.18  
                                                            
17  É  importante  sublinhar  que  até  o  momento,  os  pedidos  de  reconhecimento  de 
identidade  de  gênero  para  realizar  intervenções  cirúrgicas  de  mudança  de  sexo  ou 
retificar documentos públicos, em sua maioria se caracterizavam por: 
1.  Outorgar  uma  grande  relevância  às  distintas  perícias  a  que  as  pessoas  trans 
deveriam  submeter‐se  e  os  informes  de  experts  (médicos  forenses,  psiquiatras, 
psicólogos, entre outros) que, em consequência, se produziam. 
 2. O relato de uma vida de sofrimento. Esses casos, em geral, tratavam sobre pessoas 
trans que já tinham sofrido intervenções cirúrgicas, e que por suas histórias de vida, 
caracterizadas  pelo  sofrimento  constante  e  a  discriminação  permanente,  logravam 
convencer  ao  juíz  sobre  a  necessidade  de  intervenção  cirúrgica  e/ou  retificação  dos 
registros documentais. 
18  Já  existia  o  reconhecimento  da  identidade  de  gênero  das  pessoas  trans  em  distintas 

repartições públicas no momento de aprovação e sanção da lei. Assim, por exemplo, 
na  província  de  Córdoba,  no  ano  de  2011,  o  Ministério  da  Saúde  reconheceu  a 
identidade  de  gênero  de  travestis  e  transsexuais  que  foram  atendidas  em  hospitais 
públicos  da  Província  (Resol.  Ministerial  146/2001).  A  Universidade  Nacional  de 

147
 
Quando  se  faz  referência  ao  uso  estratégico  do  direito  na 
Argentina,  em  geral  os  teóricos  têm  uma  perspectiva  otimista,  e 
entendem  que  a  mobilização  do  direito  pode  ser  entendida  como  uma 
ferramenta  capaz  de  conseguir  mudanças  sociais  significativas  no 
reconhecimento  de  direitos  por  meio  de  vitórias  em  campos  judiciais 
(Böhmer,  1997;  Courtis,  2003;  CELS,  2008).  Inclusive  quando  as 
respostas dos juízes não são favoráveis, se considera que o mero feito de 
ter  utilizado  os  tribunais  produz  “efeitos  indiretos”  benéficos,  pois  em 
alguns casos as demandas se instalaram na opinião pública, nos meios 
de  comunicação  e  nos  setores  políticos  e  acadêmicos.  Dessa  maneira, 
mantém‐se  justificada  a  estratégia  jurídica.  Essa  postura  se  baseia  na 
visão  estadunidense  exposta  por  Michael  W.  McCann,  o  qual,  em  sua 
obra  Rights  at  Work  (1994),  considera  que  o  direito  pode  participar 
diretamente em um processo político de contestação contra uma ordem 
estabelecida.  Como  sublinha  esse  autor  em  um  artigo  mais  recente,  o 
direito  proporciona  “simultaneamente  princípios  normativos  e 
estratégicos para a direção das lutas sociais” (McCann, 2004, p.508). 
Dentro dessa perspectiva se poderia entender porque uma parte 
importante  do  movimento  da  diversidade  sexual  optou  por  uma 
inclusão  de  estratégias  judiciais  em  suas  campanhas  pelo 
reconhecimento  de  direitos.  Além  disso,  nos  permitiria  justificar  como 
as  decisões  da  justiça  asseguraram  direta  e  indiretamente  o  êxito  das 
campanhas lançadas. Desse modo, o uso estratégico do direito por parte 
do  movimento  LGBT  seria  um  claro  exemplo  de  quanto  os  tribunais 
podem contribuir à mudança social.  
Com certeza, se fizermos uma leitura mais detalhada, em ambos 
os  casos,  as  demandas  se  resolveram  definitivamente  no  Congresso 
Nacional e não na justiça. Além disso, não é possível encontrar vínculos 
diretos  entre  essas  sentenças  que  reconheciam  direitos  e  a  decisão  do 

                                                                                                                                                
Córdoba, por sua parte fez o mesmo em outubro, sendo a primeira universidade na 
Argentina  que  legislou  sobre  esse  assunto,  garantindo  o  respeito  à  identidade  de 
gênero  autopercebida  de  seus  membros  (Ord.  HCS  9/11),  e,  posteriormente,  viria  a 
resolução 1181/2011 do Ministério de Seguridad de la Nación, estabelecendo que “Las 
personas trans deberán ser  reconocidas por la identidad de género adecuada a su percepción, 
tanto en el trato personal como para cualquier tipo de trámite, comunicación o publicación al 
interior de las Fuerzas”.  

148
 
Poder Legislativo. E mais, em quase todos os casos, as sentenças que se 
ditaram  fora  da  cidade  de  Buenos  Aires  não  reconheciam  os  direitos 
que  o  movimento  demandava.  Assim  mesmo,  a  maior  parte  da 
imprensa  escrita  se  centrou  no  debate  parlamentar  e  houve, 
comparativamente,  uma  escassa  cobertura  dos  fatos  judiciais  (Sgró 
Ruata e Rabbia, 2011). Tudo isso nos leva a duvidar da efetividade que 
tiveram realmente as estratégias judiciais empregadas pelo movimento 
e  quanto  essas  estratégias  trouxeram  para  suas  lutas  por 
reconhecimento.  
Ainda  que  não  possamos  concluir  que  o  movimento  pela 
diversidade  sexual  tenha  sido  exitoso  pelo  emprego  de  estratégias 
judiciais, é possível admitir que outros setores, aos quais denominamos 
“pró  vida”  têm  uma  grande  eficácia  no  momento  de  usar  os  tribunais 
argentinos.  Esses  setores  se  caracterizam  por  serem  marcadamente 
conservadores,  estarem  relacionados  com  instituições  católicas, 
manterem uma concepção estática e tradicional da sexualidade (à qual 
vinculam  exclusivamente  com  seu  papel  reprodutivo)  e  expressar  que 
seu  principal  objetivo  é  a  defesa  da vida  desde a  concepção.  Ademais, 
esses setores se caracterizam por ter utilizado tradicionalmente a arena 
judicial  para  impedir  o  avanço  em  matéria  de  sexualidade  e  (não) 
reprodução.  De  fato,  atualmente,  o  Ministerio  de  Salud  de  la  Nación 
enfrenta nove demandas judiciais somente contra o Programa Nacional de 
Salud Sexual y Procreación Responsable19 (Peñas Defagó, 2009). 
De todos os casos, o mais emblemático foi o “Portal de Belén”20. O 
caso  se  originou  quando  um  laboratório  farmacêutico  obteve  uma 
autorização do Ministerio de Salud de la Nación para produzir a pílula de 
anticoncepção hormonal de emergência (conhecida como “pílula do dia 
seguinte”). Essa autorização fez com que uma ONG chamada “Portal de 
Belén”  se  apresentasse  diante  da  justiça  argumentando  que  tais  pílulas 
atentavam  contra  a  vida  das  crianças  por  nascer,  e  solicitou  que  se 
tirasse  sua  autorização  e  se  proibisse  sua  fabricação,  distribuição  e 
comercialização  em  todo  país.  A  Corte  Suprema  de  Justicia  de  la  Nación 
aceitou  a  demanda  considerando  que  a  vida  humana  começa  desde  a 
                                                            
19  Lei 25.673 
20   Caso  “Portal  de  Belén  Asociación  Civil  sin  fines  de  lucro  c/Ministerio  de  Salud  y 
Acción Social de la Nación s/Amparo”. 

149
 
concepção  e  tal  fármaco  devia  ser  considerado  abortivo  e,  em 
consequência, ilegal.  
Os  casos  não  se  esgotam  aqui.  Esses  grupos  obtiveram 
resoluções judiciais favoráveis que impediram as realizações de abortos 
permitidos  pela  lei,  o  ensino  de  educação  sexual  nas  escolas,  a 
distribuição  de  métodos  contraceptivos  em  hospitais  públicos  e, 
inclusive, a anulação dos primeiros casamentos entre pessoas do mesmo 
sexo  a  que  fizemos  referência  anteriormente  (Campana,  2011).  Se  a 
maioria  desses  casos  se  caracteriza  por  utilizar  o  sistema  judicial  para 
impedir o avanço dos direitos, os tribunais em todo país se mostraram 
bastante receptivos a esse tipo de demanda, convertendo‐se em aliados 
importantes quando se disputam essas questões.  
O  caso  dos  avanços  alcançados  pelas  demandas  de  direitos 
LGBT  argentinos  e  a  manutenção  de  uma  visão  negativa  do  aborto 
podem  ser  pensados  dentro  da  dinâmica  maior  em  que  se  enquadram 
essas  disputas  judiciais  no  período  democrático  recente:  uma 
rediscussão  do  que  é  a  nação  argentina.  De  forma  paralela,  o  mesmo 
tem  se  passado  no  Brasil,  no  qual  não  apenas  o  aborto  continua 
criminalizado como os direitos LGBT têm avançado mais timidamente. 
É  perceptível  que  a  partir  do  Governo  Dilma  Rousseff  a  agenda  geral 
dos direitos humanos sofreu uma freada, o que o caso recente da eleição 
de um parlamentar da frente evangélica para a presidência da Comissão 
do Congresso sobre Direitos Humanos vem corroborar.  
De forma apenas parcial e controlada, o que temos assistido em 
terras brasileiras são algumas conquistas envolvendo nossa diversidade 
étnico‐cultural,  em  especial  o  reconhecimento  da  constitucionalidade 
das  cotas  nas  universidades  pelo  Supremo  Tribunal  Federal. 
Compreensivelmente,  devido  às  diferentes  composições  populacionais 
e às diferentes histórias, o caso argentino se desenvolve de maneira que 
demandas de reconhecimento e direitos se dão em uma sociedade que 
(ainda)  se  vê  de  forma  mais  homogênea  enquanto  no  Brasil  a 
problemática de uma sociedade multirracial se impõe.  
A despeito das diferenças, ambas as sociedades passam por um 
processo  democrático  de  reavaliação  do  que  se  compreende  como  a 
nação  argentina  ou  brasileira.  A  seguir  refletimos  preliminarmente 
como  essa  transformação  da  forma  como  compreendemos  quem  faz 

150
 
parte  de  nossas  respectivas  nações  tem  se  dado  a  partir  de  um 
enquadramento  multiculturalista,  o  qual  tem  marcas  das  sociedades 
que  criaram  a  noção  de  diversidade  e  podem  limitar  os  avanços  e  as 
conquistas em dois países do Sul Global. 
 
4. Diversidade e diferenças: para onde caminham as nações? 
 
Em  relação  ao  caso  argentino  e  suas  conquistas  recentes,  a 
sociedade  brasileira  e  seu  legado  cultural  autoritário  parece  amortecer 
as  conquistas  democráticas  recentes  em  uma  das  esferas  em  que  elas 
mais  poderiam  florescer.  Afinal,  como  já  observamos,  entre  as 
motivações que levam estudantes a optarem pelo Direito se encontram 
ideais  como  o  de  prestar  um  serviço  à  sociedade  e  aos  que  mais 
precisam. 
Trata‐se  de  algo  similar  ao  que  se  passa  em  outras  esferas 
profissionais  e  políticas  que  mantém  esses  compromissos  vinculados  a 
vertentes  de  reflexão  sobre  diversidade  e  multiculturalismo.  As 
melhores  das  intenções  terminam  por  traduzir  demandas  de 
transformação  das  relações  de  poder  e  diminuição  das  desigualdades 
sociais  em  discursos  que  apelam  à  retórica  da  tolerância  e  da 
incorporação  de  grupos  sociais  minoritários  sem  modificar  os 
privilégios dos socialmente majoritários, leia‐se, frequentemente não os 
mais  numerosos,  antes  os  que  detém  o  poder  regulador  da  ordem 
social.  
O  fato  acima  é  perceptível  no  contrassenso  de  chamar  as 
mulheres  ou  os  negros  de  minorais  em  uma  sociedade  como  a 
brasileira,  em  que  eles/as  são  metade  ou  mais  da  população.  Na 
verdade,  minorias,  diversidade  e  multiculturalismo  formam  um 
vocabulário  tímido  e  conservador  para  lidar  com  desigualdades  e 
injustiças. O termo diversidade é uma noção teórico‐política que surgiu 
na  América  do  Norte  em  meio  à  preocupação  com  conflitos  étnico‐
raciais,  e  mesmo  culturais,  entre  a  década  de  80  e  a  de  90  do  século 
passado.  Nesse  período,  havia,  por  exemplo,  desde  conflitos  culturais 
entre  diferentes  comunidades  de  imigrantes  de  ex‐colônias  na 
Inglaterra,  na  França  e  na  Holanda  até,  na  América  do  Norte,  a 
rivalidade  entre  as  partes  de  fala  francesa  e  inglesa  no  Canadá  que 

151
 
levou a uma tentativa de transformar o Quebec em um outro país. Nos 
Estados  Unidos,  no  início  da  década  de  1990,  entraram  para  a  história 
episódios  de  conflitos  raciais  entre  negros  e  brancos  como  os  que  se 
passaram em Los Angeles.  
É neste contexto histórico de grande preocupação social que surge 
a  demanda  por  reflexões  acadêmicas  e  políticas  apaziguadoras  e 
conciliatórias. Em 1990, é lançado um texto fundamental sobre o tema, The 
Politics of Recognition [A política do reconhecimento] do filósofo canadense 
Charles Taylor. Nesse artigo há uma reflexão que serve de base para boa 
parte  do  que  foi  produzido  daí  por  diante  sobre  diversidade,  tanto  em 
termos  acadêmicos  como  na  forma  de  políticas  sociais.  A  noção  de 
diversidade busca compreender as demandas por respeito, das demandas 
por acesso a direitos por parte de pessoas que historicamente não tiveram 
esses direitos reconhecidos como negros, povos indígenas, homossexuais, 
mas de forma a que esses direitos particulares sejam reconhecidos dentro 
de um contexto institucional universalista. 
O  universalismo  se  revela  intransigente  e  incapaz  de  lidar  com 
transformações  históricas  e  sociais  em  que  o  apelo  à  igualdade  se 
sobrepõe  ao  reconhecimento  das  injustiças  sobre  o  qual  sua  tradição 
intelectual, social e legal se assentou desde ao menos o final do século 
XVIII  (cf.  Miskolci,  2010).  O  multiculturalismo,  por  sua  vez,  menos  do 
que antagonizar com o universalismo busca atualizá‐lo para a realidade 
contemporânea,  em  particular  das  nações  mais  heterogêneas  ou  – 
melhor  dizendo  –  mais  abertas  ao  reconhecimento  de  sua  diversidade 
interna. A despeito dos avanços, o multiculturalismo mantém intocado 
e inquestionado o olhar hegemônico sobre o qual assenta seus ideais, o 
qual pode ser claramente definido como os dos grupos estabelecidos e 
detentores do poder econômico, cultural e político desde a colonização.   
No  Brasil,  um  país  marcado  por  séculos  de  colonização 
exploratória e pela escravidão, a República foi criada em fins do XIX de 
forma a preservar os privilégios das classes dominantes brancas, ricas e 
letradas.  Desde  então  predominou  o  discurso  universalista  e  os  ideais 
de um liberalismo aparentemente fora de lugar, mas cuja lógica servia a 

152
 
manter a imensa maioria da população sem cidadania plena.21 De forma 
simplificada, pode‐se dizer que apenas após o final da última ditadura 
militar  (1964‐1985)  é  que  surgiram  condições  políticas  abertas  a 
demandas de reconhecimento de diferenças anteriormente ignoradas ou 
violentamente negadas.  
A  Assembleia  Constituinte  de  meados  da  década  de  1980  foi  um 
marco  ao  impulsionar  debates  democráticos  sobre  nossa  sociedade  e  seu 
resultado, a Constituição de 1988, estabeleceu o marco institucional dentro 
do qual floresceriam as demandas por reconhecimento das diferenças em 
fins do século XX. Dentre elas, algumas das mais visíveis foram a demanda 
de  igualdade  de  direitos  por  parte  de  homossexuais,  a  luta  dos 
movimentos negros pelas ações afirmativas e de indígenas e quilombolas 
por demarcação de suas terras e reconhecimento de suas culturas.  
Na  Argentina,  a  situação  não  é  muito  diferente.  O  modelo 
agroexportador,  desenhado  no  final  do  século  XIX,  por  uma  elite 
capitalista e liberal quase não se modificou até hoje. E ainda que, formal 
e  legalmente,  a  cidadania  plena  se  alcançou  em  1947,  quando  se 
reconheceu  o  direito  ao  voto  feminino,  e  os  movimentos  operários  e 
sindicais  estavam  bem  estabelecidos,  não  foi  antes  de  1983,  com  a 
reinstauração  da  democracia,  que  os  diversos  movimentos  sociais  e 
atores  coletivos  começaram  a  ter  participação  na  vida  política  e 
institucional do país.  
A  crescente  importância  política  e  institucional  que  começou  a 
cobrar  a  sociedade  civil  na  arena  política  foi  juridicamente  respaldada 
pela  reforma  constitucional  de  1994.  Essa  reforma  implicou  uma 
importante transformação nas instituições do país, o reconhecimento de 
novos direitos e instrumentos jurídicos tendentes a garantir o exercício 
efetivo  deles.  Mas,  além  disso,  durante  a  década  de  1990  se  produziu 
uma importante retirada por parte do Estado de várias de suas funções 
tradicionais e, consequentemente, o surgimento de muitas organizações 
políticas  e  sociais  tendentes  a  suprir  esse  vazio.  Dentro  desse  contexto 
político  e  institucional  favorável  é  que  floresceram  diversas  das 
demandas por reconhecimento de direitos e das diferenças.  
                                                            
21   Sobre  essa  profícua  linha  de  reflexão  sobre  os  aparentes  paradoxos  brasileiros 
consulte a clássica discussão de Roberto Schwarz intitulada “As ideias fora de lugar” 
(2000). 

153
 
Apenas dentro do que as pessoas de fala inglesa denominam de 
constitutional  law  e  que  podemos  traduzir  por  Estado  de  Direito 
podemos  debater  os  termos  de  convivência  em  uma  sociedade  que 
pretende um dia ser plenamente democrática. Muito além das também 
fundamentais  conquistas  das  eleições  diretas,  do  voto  universal,  a 
democracia é um construto histórico e cultural que depende do grau de 
liberdade de rediscussão dos limites da cidadania, sobretudo buscando 
ampliá‐la  para  aqueles  e  aquelas  que  não  têm  reconhecida  sua 
humanidade,  seus  direitos,  sua  igualdade  jurídica  e  social.  Apenas 
depois  dos  anos  oitenta  que  as  sociedades  brasileira  e  argentina 
passaram a viver dentro dessas condições, portanto há apenas menos de 
três décadas, um curto período dentro de nossa longa história.  
Quando  alguém  se  pergunta  por  que  ainda  vivemos  em  uma 
sociedade injusta e autoritária é só refletir sobre como nossa experiência 
democrática é recente e curta. No caso brasileiro, vinte e cinco anos são 
muito  pouco  tempo  dentro  desses  séculos  de  experiência  histórica 
colonial,  escravagista  e  mesmo  imperial  ou  republicana  dentro  dos 
quais  se  forjou  uma  sociedade  altamente  desigual  não  apenas  em 
termos  econômicos,  mas  também  em  outros  aspectos  não  menos 
importantes  como  raça/etnia,  gênero,  sexualidade,  etc.  De  qualquer 
forma,  o  Brasil  conquistou  muito  neste  quarto  de  século  e  avançou  a 
passos  largos  em  comparação  com  muitas  outras  nações  com  histórias 
similares. Ainda há muito o que fazer, mas vivemos dentro de um clima 
democrático  profícuo  para  as  transformações  que,  quiçá,  possam  vir  a 
nos  tornar  uma  sociedade  plenamente  democrática  e  com  justiça  para 
todos/as.  
No caso argentino, os contínuos golpes de estado, a instabilidade 
das  instituições  políticas,  a  alternância  entre  regimes  ditatoriais  e 
democráticos, um modelo baseado na exportação de matérias agrícolas 
e  importação  de  manufaturas  e  a  dependência  econômica  das  grandes 
potências produziram um paulatino empobrecimento da maior parte da 
população, convertendo‐se também em um país altamente desigual.  
É em meio ao cenário inaugurado pelas novas Constituições e a 
rearticulação dos movimentos sociais na década de 1990 que começa a 
surgir  uma  nova  forma  de  compreensão  da  nação  e  do  acesso  à 
cidadania. As políticas criadas sob o rótulo da diversidade buscam fazer 

154
 
frente  a  este  novo  cenário  cultural  e  político  tão  recente  quanto 
imprevisível.  Não  é  de  se  estranhar  que  em  sociedades  marcadas  pelo 
comando por elites temerosas com relação ao povo e à possibilidade de 
perda  de  sua  posição  de  comando22  busquem,  ao  menos  inicialmente, 
fazer frente às demandas sociais de reconhecimento das diferenças por 
meio  do  filtro  político  que  as  traduz  na  linguagem  da  tolerância  da 
diversidade.  
Tolerar  é  muito  diferente  de  reconhecer  alteridades,  de  valorizá‐
las em sua especificidade e conviver com a diversidade também não quer 
dizer aceitá‐la. Em termos teóricos, diversidade é uma noção derivada de 
uma  concepção  estática  de  cultura  que  advoga  a  tolerância  dos 
“diferentes”,  mas  mantendo  a  cultura  dominante  intocada  por  esses 
“Outros”  sociais.  É  como  se  da  ignorância  ou  do  apagamento  das 
diferenças  sociais  passássemos  apenas  a  reconhecê‐las  recusando  nos 
relacionarmos/transformarmos  pelo  contato  com  elas.  A  retórica  da 
diversidade  busca  manter  intocada  a  cultura  dominante  criando  apenas 
condições de tolerância para os diferentes, os estranhos, os “outros”. Seu 
resultado, o multiculturalismo, tende a criar condições sociais e políticas 
de gestão das diferenças ou, sendo mais direto e claro, o estabelecimento 
de  um  regime  atualizado  das  antigas  formas  de  segregação  que 
caracterizaram historicamente sociedades como a norte‐americana.  
A  retórica  da  diversidade  tem  forte  apelo,  e  não  apenas  no 
Brasil,  na  Argentina  ou  na  esfera  da  política,  pois  apresenta  o  mundo 
como  podendo  ser  diverso  sem  modificar  hierarquias  ou  relações  de 
poder.  Alguns  falam  de  diversidade  por  meio  do  termo 
multiculturalismo,  essa  utopia  euro‐norte‐americana  da  convivência 
com imigrantes, não‐brancos, não‐heterossexuais, entre outros, a partir 
de  uma  perspectiva  que  mal  encobre  sua  origem  branca,  cristã, 
ocidental e masculina. Trata‐se de uma utopia dos nostálgicos do poder 
branco  colonial,  na  qual  as  diferenças  seriam  toleradas  sem  modificar 
profundamente  os  valores  e  os  privilégios  dos  grupos  sociais 
dominantes.  
                                                            
22  Sobre as origens históricas desse medo da elite brasileira em relação ao povo consulte 
Miskolci (2012) e Azevedo (1987). Azevedo mostra que o temor da Abolição originou 
o  medo  dos  negros  no  Brasil,  Miskolci  por  sua  vez  analisa  como  esse  temor  dos 
negros foi transformado em medo do povo após a proclamação da República. 

155
 
Distinguir  entre  diferença  e  diversidade  exige  abandonar  uma 
concepção normativa e fossilizada de sociedade. Se a diversidade apela 
para  uma  concepção  horizontalizada  de  relações  em  que  se  afasta  o 
conflito e a divergência em nome da conciliação, lidar com a diferença é 
algo  incomensurável,  mas  potencialmente  mais  democrático  e 
promissor.  Uma  perspectiva  informada  pelas  diferenças  pode 
questionar  e  até  modificar  hierarquias,  colocar  em  diálogo  os 
subalternizados  com  o  hegemônico  de  forma,  quiçá,  a  mudar  a  ordem 
que mantém e reproduz desigualdades. 
Os discursos jurídicos e a formação em Direito ainda constituem 
um conjunto de técnicas que buscam fazer o Outro se enquadrar ou ser 
reconhecido  sem  modificar  as  concepções  hegemônicas  de  justiça  e 
igualdade.  Ou  seja,  demandas  de  reconhecimento  e  igualdade  a  partir 
da diferença tendem a ser enquadradas em um modelo legal autoritário, 
normativo,  violento.  Podemos  reavaliá‐lo  de  forma  que,  ao  invés  de 
homogeneizar ou alocar confortavelmente cada um em uma gaveta por 
meio  das  diferenças  possamos  modificá‐lo  e  atualizá‐lo  de  forma  a 
mudar  sua  histórica  conformação  aos  interesses  dos  grupos 
dominantes.  
Nas sábias palavras de Adriana Vianna: 
 
“Falar de “direito à diferença” implica, em primeiro lugar, reconhecer 
a possibilidade de heterogeneidade cultural e social como algo legítimo 
em  universos  políticos  mais  amplos,  dotados  de  uma  suposta 
“unidade”,  como  se  dá  nos  Estados‐nação  modernos.  Mais  do  que 
apreender a diferença como condição inerente aos grupos sociais, isso 
equivale  a  defendê‐la  como  algo  relevante  na  constituição  da 
especificidade  de  indivíduos  e  coletividades  que  não  desejam  negá‐la 
para  serem  reconhecidos  como  participantes  legítimos  de  unidades 
abrangentes” (Vianna, 2012, p. 204‐205). 
 
  Percebe‐se como as demandas de reconhecimento e acolhimento 
das diferenças questionam a compreensão ainda corrente do que seria a 
nação brasileira ou mesmo a argentina. Esse construto cultural e legal, a 
nação,  pode  ser  repensado  e  adquirir  uma  acepção  mais  inclusiva  e 
democrática.  A  noção  de  diversidade  busca  amortecer  as  críticas  e 
incorporar  de  forma  controlada  e/ou  subalterna  grupos  sociais  cuja 

156
 
história se confunde com uma de luta constante contra o aniquilamento 
de suas singularidades. A perspectiva das diferenças tende a ser temida 
como  trazendo  consigo  necessariamente  o  conflito  e  a  discórdia, 
interpretação  dos  estabelecidos  sociais  que  deixa  de  reconhecer  as 
alteridades  internas  à  sociedade  brasileira  ou  argentina  como 
interlocutoras em nível de igualdade.  
As  diferenças  podem  incitar  o  debate,  fazer  com  que  as 
divergências  se  traduzam  em  diálogos  e  negociações.  Talvez  o  maior 
desafio  de  nossas  democracias  seja  o  de  deixar  para  trás  os  temores 
elitistas  sobre  o  povo  ou  as  demandas  subalternas  como  ameaças  à 
ordem. Superar este medo dos grupos sociais injustamente mantidos à 
margem  do  reconhecimento,  do  respeito  e  da  justiça  exige  modificar  a 
histórica aversão de nossas elites políticas, intelectuais e econômicas às 
divergências  ou  ao  conflito.  Em  um  contexto  plenamente  democrático 
todos/as  –  e  especialmente  cada  um/a  –  tem  o  direito  de  divergir  ao 
mesmo  tempo  que  demanda  seu  reconhecimento  como  parte  da 
coletividade.  
É nesse contexto em que o papel da formação dos advogados e 
das  advogadas,  na  Argentina  e  no  Brasil,  cumpre  um  papel  central. 
Concepções  jus‐naturalistas,  arcaicas,  positivistas  e  conservadoras 
continuam  dominando  o  currículo  quando  se  tratam  de  profissões 
jurídicas. Os estudantes são meros receptores passivos de discursos que 
não  podem  ser  colocados  em  dúvida  tampouco  discutir,  são  formados 
sem  ferramentas  críticas  e,  em  sua  maioria,  carecem  de  compromisso 
social  e  ideal  de  justiça.  Desse  modo,  se  formam  operadores  jurídicos 
cujo papel é reproduzir a ordem existente.  
No  caso  argentino,  os/as  advogados/as  ativistas  têm  pouca 
margem  para  produzir  mudanças  significativas  no  que  se  refere  ao 
reconhecimento  de  direitos.  Nesse  mesmo  contexto,  aqueles/as 
advogados/as  que  se  oponham  ao  avanço  dos  direitos  encontram  na 
justiça um campo propício para tornar efetivas suas demandas. Cenário 
similar se encontra no Brasil, de forma que em ambos os países o direito 
e a mudança social parecem não se dar bem.  
Uma modificação na esfera formativa do Direito seria uma bem‐
vinda  contribuição  para  o  aprofundamento  de  nossas  democracias.  A 
transformação  poderia  começar  pela  incorporação  de  uma  perspectiva 

157
 
educacional  dialógica,  o  incentivo  ao  debate  em  sala  de  aula  e  a 
incorporação  de  fontes  históricas  e  sociológicas  que  tensionam,  mas 
também  enriquecem,  o  aprendizado  legal  por  meio  do  incentivo  à 
reflexão  e  a  contextualização  da  prática  profissional.  Dessa  maneira,  o 
próprio  Direito  passaria  a  incorporar  as  diferenças  reconhecendo  seu 
papel social não apenas de mantenedor da tradição ou do estabelecido, 
mas também de veículo de transformação social. 
A  prática  profissional  pode  adaptar‐se  às  demandas  atuais  por 
maior  acesso  à  justiça,  reconhecimento  de  diferenças  historicamente 
ignoradas  ou  negadas  pela  ordem  jurídica  herdada  de  nosso  passado 
autoritário.  Em  suma,  o  Direto  pode  manter  seu  compromisso  com  a 
ordem  sem  deixar  de  incorporar  as  demandas  que  apontam  para  a 
construção  de  uma  sociedade  mais  justa,  a  qual  não  alcançará  seus 
ideais de igualdade sem o apoio da esfera jurídica. 
   
  
 
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160
 
A construção de identidades homossexuais na advocacia paulista: 
uma abordagem sociológica de profissionalismo e diferença 
 
 Dafne Araújo1  
 Maria da Gloria Bonelli2 
 
 
1. Introdução 
 
Este  texto  procura  mostrar  as  continuidades  e  as  mudanças  que 
vêm ocorrendo na advocacia no que diz respeito à diversidade sexual3 
no  exercício  profissional.  Introduzindo  novas  questões  para  reflexão 
acerca  da  homossexualidade,  identidade  e  diferença,  visa  ampliar  a 
perspectiva  binária  heterossexual  que  predomina  nos  estudos  sobre 
gênero  nas  profissões  jurídicas,  centrada  numa  dimensão  relacional 
restrita ao masculino e feminino. Complementando a investigação sobre 
profissionalismo e diferença no mundo do Direito, este estudo focaliza 
advogados e advogadas na cidade de São Paulo, que se identificam ou 
não  como  homoafetivos  e  que  trabalham  com  a  problemática  da 
diversidade, em especial na defesa de vítimas de discriminação sexual. 
A  abertura  para  a  diversidade  dentro  das  carreiras  jurídicas  é 
fruto de várias transformações que tiveram origem na década de 1990, 
no  Brasil.  Até  essa  data,  a  advocacia  era  exercida  em  escritórios  de 
pequeno e médio porte. Posteriormente, os escritórios foram crescendo 
de  acordo  com  o  cenário  da  globalização  e  efervescência  econômica. 
Essas  grandes  mudanças  no  mundo  jurídico  se  deram  principalmente 
pela  privatização  das  grandes  empresas  públicas  naquele  contexto.  A 
demanda  por  operadores(as)  de  direito  cresceu  e  houve  um  aumento 
                                                            
1  Dafne  Araújo  é  mestranda  do  Programa  de  Pós‐Graduação  em  Sociologia,  da 
Universidade  Federal  de  São  Carlos  e  pesquisadora  do  grupo  Sociologia  das 
Profissões, da UFSCar.  
2  Maria  da  Gloria  Bonelli  é  professora  titular  do  Departamento  de  Sociologia  da 

Universidade Federal  de  São  Carlos,  onde coordena  o  grupo  de  pesquisa  Sociologia 


das Profissões, que conta com apoio do CNPq.  
3  Mantivemos  o  uso  da  expressão  diversidade  sexual,  embora  trabalhemos  com  a 

abordagem  da  diferença,  pela  opção  de  manter  a  forma  como  o  grupo  estudado  se 
nomeia.  

161
 
significativo  na  oferta  de  cursos  superiores.  Como  consequência,  a 
participação feminina na carreira se ampliou.4  
Além da feminização das carreiras jurídicas, a visibilidade de gays 
no  mercado  de  trabalho  também  é  fruto  de  transformações  culturais  e 
comportamentais  que  foram  atribuídas  às  situações  de  trabalho  e,  ass 
do  im, reduziram as oposições às mudanças na forma tradicional de se 
exercer  a  profissão  no  Brasil.  Este  capítulo  discute  as  diferentes 
dinâmicas  que  ocorrem  na  situação  de  trabalho  dos  advogados  que 
assumem sua homossexualidade.  
 O  estudo  se  destinou  a  desenvolver  os  seguintes  aspectos:  a 
investigação  a  respeito  das  mudanças  ocorridas  entre  operadores  e 
operadoras  do  direito  sobre  a  diversidade  sexual  e  a  visibilidade  dos 
homossexuais no mercado de trabalho jurídico; e como os entrevistados 
equacionam  os  possíveis  conflitos  entre  a  visibilidade  homoafetiva  e  o 
ideário da neutralidade profissional. 
Para  compreender  melhor  essas  mudanças,  procurou‐se  captar 
como  se  dá  a  inserção  de  advogados  e  advogadas  no  mercado  de 
trabalho,  articulando‐a  com  as  abordagens  teóricas  referentes  a  gênero 
que  fornecem  fundamentação  para  análise.  Essa  bibliografia  trata  as 
diferenças  na  profissionalização  segundo  o  gênero  que  se  desloca  do 
binarismo e do determinismo biológico. Dessa maneira, aponta como o 
gênero é produto de uma construção social que fixa identidades a partir 
de diferenças percebidas entre os sexos. 
A pesquisa de campo ocorreu em dois momentos: inicialmente, a 
equipe  do  projeto  Profissionalismo,  gênero  e  diferença  nas  carreiras 
jurídicas  entrevistou  quatorze  advogados  atuantes  em  escritórios  e 
sociedades de advogados da capital e do interior, abordando a questão 
da  diferença  de  gênero  e  sexualidade  na  prática  jurídica.  Depois 
focamos  exclusivamente  o  Grupo  de  Advogados  pela  Diversidade 
Sexual  –  GADvS,  na  cidade  de  São  Paulo.  Para  compor  esta  parte  do 
estudo,  realizamos  cinco  entrevistas,  sendo  três  com  advogados  gays 
militantes  da  causa  LGBT  (lésbicas,  gays,  bissexuais  e  transexuais); 
houve  também  o  acompanhamento  de  eventos  no  GADvS,  o 
levantamento de notícias e artigos através de redes sociais e do site da 

                                                            
4  Bonelli, et. al., 2008. 

162
 
Ordem  dos  Advogados  do  Brasil,  seccional  São  Paulo  (OAB  –  SP). 
Procuramos  delinear  e  comparar  suas  trajetórias  profissionais, 
compreendendo  as  formas  como  percebem  e  vivenciam  a 
homossexualidade na profissão.  
 
2. O profissionalismo e as mudanças na advocacia brasileira 
 
Ao  pensar  profissões,  articulamos  a  abordagem  de  Freidson 
(2001)  ‐  que  aponta  as  limitações  do  foco  nos  processos  de 
profissionalização e direciona a análise para o profissionalismo ‐ com a 
proposta  de  Evetts  (2011),  que  critica  a  tipologia  sugerida  por  esse 
autor,  incorporando  a  ela  negociações  de  significados  que  os  próprios 
profissionais realizam em torno de tal conceito. 
 Para  Freidson5,  o  profissionalismo  é  uma  das  formas  de  se 
estabelecer relações no mundo do trabalho e concorre com outras duas 
formas pela legitimação na sociedade: a de mercado e a burocrática. A 
forma  de  organização  do  trabalho  pelo  profissionalismo  é  um  modelo 
que  valoriza  o  saber  especializado  (o  saber  abstrato),  obtido  em 
instituição  de  ensino  superior.  É  acompanhada  da  regulação  de  seus 
membros  pelos  pares  através  do  credenciamento  e  do  controle  do 
ingresso  no  mercado,  sendo  longa  a  permanência  na  atividade.  A 
ideologia  que  sustenta  essa  terceira  lógica  é  a  da  especialização 
discricionária para a prestação de serviços de qualidade, da autonomia 
da expertise frente aos interesses específicos dos clientes, do Estado e do 
mercado.  A  ênfase  na  neutralidade  do  profissionalismo  fundamenta  o 
privilégio dessa autonomia e do monopólio.  
Na  lógica  de  mercado,  o  treinamento  costuma  acontecer  no 
próprio  ambiente  de  trabalho,  havendo  baixa  permanência  na  mesma 
ocupação, já que o ingresso na atividade é aberto e a especialização é do 
cotidiano.  A  ideologia  da  livre‐concorrência  prioriza  o  conhecimento 
generalizado ao especializado, a livre escolha do consumidor em vez do 
controle  do  mercado.  A  lógica  burocrática  por  sua  vez  estrutura‐se  a 
partir  de  uma  relação  hierárquica  de  comando,  a  porta  de  entrada  é 
controlada  pelo  setor  de  recursos  humanos,  sendo  médio  o  tempo  de 

                                                            
5  Freidson, 2001. 

163
 
permanência  na  ocupação,  ascendendo‐se  no  interior  da  organização. 
Ideologicamente,  ela  se  embasada  na  valorização  do  caráter 
administrativo,  da  produtividade  da  especialização  mecânica  e  da 
eficiência. 
O  controle  do  ingresso  nas  atividades  exclusivas  da  profissão 
são garantidas por jurisdições, que reservam esse mercado de trabalho 
especializado aos habilitados, protegendo‐o da concorrência dos leigos. 
Além  desse  fechamento,  a  construção  de  carreiras  controladas  pelos 
pares, que avaliam a expertise daqueles que progridem nesse percurso, 
é  a  forma  de  insular  a  profissão  em  relação  às  influências  políticas.  O 
insulamento  das  carreiras  jurídicas  públicas  dá  a  dimensão  da 
autonomia profissional e da independência das instituições da justiça. O 
fechamento  estabelece  quem  pode  tentar  ingressar  na  carreira, 
exigindo‐se requisitos para o recrutamento que antecedem a aprovação 
nos  concursos,  como  possuir  a  formação  superior  em  Direito,  a 
credencial da OAB, a experiência anterior na advocacia. O insulamento 
é  a  garantia  dos  membros  que  ingressaram  na  carreira  de  que  os 
critérios  de  promoção  serão  definidos  pelos  pares,  sem  ingerências 
externas.  Instituições  públicas  se  organizam  principalmente  na  forma 
burocrática  e  na  profissional.  O  avanço  desta  última  sobre  aquela 
depende das conquistas de seus membros nas relações com o Estado. 
Contemporaneamente, estudiosos das profissões têm questionado 
a persistência das fronteiras entre o tipo ocupacional, o burocrático e o do 
mercado,  com  o  surgimento  de  hibridismos  que  põe  em  xeque  essa 
terceira  lógica.  Evetts6  segue  nessa  direção,  detendo‐se  na  análise  das 
mudanças  que  vêm  ocorrendo  no  profissionalismo  devido  ao  trabalho 
dos profissionais nas grandes empresas e corporações internacionais. Ela 
identifica  duas  maneiras  de  se  conceber  o  profissionalismo:  como  valor 
ocupacional  e  como  discurso.  Na  primeira  –  profissionalismo 
ocupacional – o apelo a esse  valor é iniciativa do próprio  grupo, dando 
ênfase  às  relações  entre  os  pares,  à  construção  de  uma  identificação 
comum,  à  discricionariedade  e  a  confiança.  A  segunda  maneira  – 
profissionalismo organizacional – é imposta de fora do grupo, vindo de 

                                                            
6  Evetts, 2011, p.407. 

164
 
cima, principalmente dos chefes e patrões; esta prioriza o gerencialismo, a 
burocracia, a padronização e o desempenho.  
Para  a  autora,  o  profissionalismo  como  valor  ocupacional  tem 
predominado  na  literatura  especializada,  sendo  visto  como  sistema  de 
valores  normativo  e  como  ideologia.  O  primeiro  sentido  reflete  uma 
visão  otimista  das  contribuições  do  profissionalismo  para  a  coesão  e 
ordem  social.  O  segundo  sentido  é  crítico  desse  primeiro,  percebendo 
negativamente  o  profissionalismo  como  ideologia  que  sustenta  o 
fechamento  do  mercado  aos  não  credenciados  e  o  monopólio  do 
controle do trabalho.  
 Evetts7  aponta  o  surgimento  mais  recente  de  uma  terceira 
interpretação  do  profissionalismo  como  valor  ocupacional:  aquela  que 
analisa  o  discurso  administrativo,  característico  do  profissionalismo 
organizacional,  que  visa  impulsionar  a  racionalização  e  a  disciplina, 
reorganizando  e  controlando  o  trabalho.  Tal  discurso  surge  fora  do 
grupo,  geralmente  nas  organizações  privadas  e  no  Estado 
descaracterizando o sentido da autonomia profissional e do controle do 
trabalho  pelos  pares.  A  ênfase  recai  no  controle  dos  praticantes  pelos 
gerentes  e  supervisores,  na  competitividade  e  no  individualismo,  em 
substituição  às  relações  colegiadas  e  à  competição  jurisdicional  para 
garantir  o  monopólio  da  atividade.  No  Estado,  tal  profissionalismo 
adquire o sentido de eficiência administrativa e produtivismo. 
 Sobre esse apelo, Evetts considera que:  
 
“é  necessário  tentar  compreender  de  que  forma  o  profissionalismo 
como sistema normativo de valores e como ideologia agora está sendo 
crescentemente usado nas modernas organizações, e outras instituições 
e lugares de trabalho, como um mecanismo para facilitar e promover a 
mudança ocupacional.”8 
 
O  modelo  híbrido  que  transpõe  fronteiras  foi  situado  por  Evetts 
(2011)  como  externo ao grupo  profissional,  vindo  de  cima.  A  abordagem 
da autora vincula os valores manifestos nos discursos do profissionalismo 
aos interesses conflitantes da profissão, do Estado e do mercado.  

                                                            
7  Evetts, 2011, p.410. 
8  Evetts, 2011, p.407. Tradução livre. 

165
 
As  mudanças  que  vêm  ocorrendo  na  advocacia  brasileira  são 
acompanhadas  da  passagem  do  predomínio  do  profissionalismo  como 
valor  ocupacional  normativo,  quando  a  prática  jurídica  era  solo  ou 
partilhada por colegas, para o crescimento do discurso do profissionalismo 
organizacional, com a proximidade dos sócios das grandes sociedades de 
advogados em relação a seus clientes corporativos.   
A  advocacia  diversificou  suas  formas  de  atuação,  combinando  o 
exercício  liberal  em  escritórios  de  pequeno  porte  atendendo 
principalmente clientes individuais, com a expansão das médias e grandes 
sociedades de advogados, que estratificaram a profissão. Os sócios dessas 
firmas  contratam  advogados  associados  para  dar  conta  dos  serviços 
jurídicos demandados principalmente pelos clientes empresariais.  
Houve  também  o  aumento  expressivo  na  oferta  de  cursos  de 
ensino superior de direito, com a ampliação do número de ingressantes 
no mercado de trabalho. Em 2001, o Brasil tinha 380 cursos  de direito  e 
em  2011  havia  saltado  para  1.210.  Em  julho  de  2013,  a  OAB  nacional 
contava  com  773.908  advogados,  sendo  45.6%  de  mulheres.  A  maior 
oferta dos cursos superiores contribuiu para mudar as formas de exercer 
a  profissão  no  Brasil.  Além  de  representar  um  expressivo  aumento  da 
participação  feminina  na  carreira,  observou‐se  a  estratificação  do 
tamanho  dos  escritórios  e  da  posição  dos  advogados  neles,  seja  como 
sócios  ou  associados.  O  crescimento  das  sociedades  de  advogados  que 
lidavam  com  as  especializações  na  área  de  negócios  e  no  direito 
empresarial foi outra mudança observada na prática jurídica, a partir das 
grandes  privatizações  de  empresas  públicas,  no  final  dos  anos  1990.  A 
globalização  econômica  também  foi  responsável  por  parte  dessas 
mudanças, com a atuação direta dos Estados Unidos em transferências de 
modelos de instituições e adaptação de cultura jurídica.9 
Junto  com  a  clientela  corporativa  veio,  além  da  especialização 
criteriosa,  a  demanda  por  trabalhos  de  caráter  rotineiro  e  repetitivo, 
como  as  milhares  de  ações  de  consumidores  contra  grandes  empresas 
de telefonia, bancos, entre outras. 
Portanto,  a  organização  do  trabalho  jurídico  foi  perdendo  suas 
características homogêneas como profissão: o predomínio da advocacia 

                                                            
9  Bonelli, et. al., 2008. 

166
 
solo  ou  em  escritórios  pequenos  combinou‐se  com  as  sociedades  de 
advogados  médias  e  grandes;  a  advocacia  generalista  foi  diversificada 
pela expertise em áreas de elevada especialização e, pelo seu oposto , o 
trabalho jurídico repetitivo.  
Resultado  da  internacionalização  da  profissão,  o  modelo  de 
sociedades  de  advogados  trouxe  consigo  o  intercâmbio  de 
conhecimento  especializado  entre  países,  através  da  padronização 
transnacional  de  serviços  jurídicos.  Para  que  isso  seja  possível,  é 
necessário que o profissional domine línguas estrangeiras, em especial o 
inglês,  além  ter  experiência  de  cursos  ou  estágios  no  exterior.  Um  dos 
advogados  entrevistados  teve  a  oportunidade  de  fazer  um  curso  nos 
Estados  Unidos  e  gerenciar  a  filial  de  um  escritório  paulista  em  Nova 
York.  Na  mesma  sociedade  de  advogados  encontra‐se  a  elite  dos 
profissionais  internacionalizados  e  os  associados  que  assumem  as 
tarefas  desvalorizadas.  O  processo  de  estratificação  da  profissão  é 
acompanhado  de  sua  generificação,  com  homens  predominando  nas 
áreas  mais  especializadas  e  mulheres  concentradas  nos  trabalhos 
jurídicos rotineiros.  
A visibilidade do gênero na carreira pode, portanto, associar‐se à 
estratificação  do  grupo  e  às  maiores  ou  menores  chances  de  sucesso 
profissional. Por esta razão, conhecida nos escritórios, várias advogadas 
atuam para que as marcas de gênero não venham para o primeiro plano 
na prática profissional, procurando deixá‐las restrita ao âmbito privado. 
Se  esse  padrão  é  conhecido  para  a  recepção  à  diferença  de  gênero  na 
advocacia,  nos  perguntamos  neste  capítulo  como  a  homoafetividade 
repercute  nas  carreiras  dos  advogados?  Ela  produz  o  tipo  de 
estratificação  observada  para  as  mulheres?  Como  se  busca  dar 
visibilidade ou apagar as marcas da sexualidade na advocacia?   
 
3. Conceituando gênero e sexualidade  
 
Scott  (1990)  tratou  o  gênero  como  categoria  analítica  e 
desconstruiu  a  concepção  biologizada,  abordando  como  a  diferença 
sexual é socialmente construída. A segregação no mercado de trabalho 
é,  para  a  autora,  parte  do  processo  de  construção  binária  do  gênero  e 
das relações de poder que engendram. 

167
 
Sendo assim, gênero não é característica essencial fixa e imutável 
do  ser.  As  diferenças  anatômicas  foram  essencializadas  em  contextos 
históricos  e  culturais  específicos.  Segundo  Butler  (2003),  a  cultura  é  a 
forma  de  distinguir  sexo  e  gênero.  A  autora  contrasta  sexo  como 
diferença  biológica  entre  macho  e  fêmea,  e  gênero  como  construção 
social,  cultural  e  psicológica.  A  partir  desse  pressuposto,  identidades 
fixas  e  essencializadas  em  “homens”  e  “mulheres”  puderam  ser 
discutidas.  Desse  modo,  Butler  concebe  o  gênero  como  gradiente  que 
combina  masculino  e  feminino  com  heterossexualidade  e 
homossexualidade, sem oposições entre eles. Segundo ela, o gênero que 
o  corpo  expressa  é  resultado  de  atos  e  gestos  performáticos  que 
fabricam identidades normalizadas, imitadas ou parodiadas do mito da 
feminilidade e da masculinidade.  
Segundo  Barbalho  (2008,  p.46)  “as  pessoas  tendem  a  pensar  de 
maneira  heteronormativa,  de  forma  que  ao  pensar  nas  identidades  a 
primeira  noção  de  classificação  é  binária,  ou  seja,  homem  ou  mulher, 
masculino ou feminino.”. 
Não só o gênero é culturalmente construído, mas o sexo também, 
superando  o  binarismo  sexo‐natureza,  gênero‐cultura.  A  partir  dessa 
perspectiva,  gênero  deixa  de  se  referir  ao  masculino  e  ao  feminino,  e 
passa  a  apresentar  múltiplas  possibilidades  de  identificações  que  não 
estão  essencializadas  em  formas  duais  de  diferença  sexual  e  de  gênero. 
Scott  (1990)  criticou a  visão hegemônica de  que  a dominação masculina 
se  justificava  por  diferenças  biológicas,  entre  homens  e  mulheres.  Scott 
adota  uma  visão  foucaultiana  ao  encarar  que  o  poder  circula  em  uma 
perspectiva  relacional,  possibilitando assim o acesso feminino ao poder, 
mesmo que este seja desigual ao dos homens. 
Para  Butler  (2003),  tanto  o  sexo  (que  se  refere  às  diferenças 
biológicas),  quanto  o  gênero  (que  envolve  as  diferenças  culturais, 
sociais,  e  psicológicas)  são  produzidos  culturalmente  e  historicamente. 
De acordo com essa visão, o gênero deixa de se limitar ao masculino e 
ao  feminino,  possibilitando  assim  diversas  identificações  que  não 
seguem necessariamente o padrão dual de diferenciação sexual. 
Essa  autora  ainda  afirma  que  o  gênero  carrega  consigo  as 
relações  de  poder  que  produzem  o  efeito  de  um  sexo  pré‐discursivo, 
este  que  é  construído  culturalmente.  Essas  relações  sociais  de  poder 

168
 
desenvolvem‐se  em  contextos  específicos,  não  sendo  permanentes.  A 
discriminação e a desigualdade entre os sexos e os gêneros resultam de 
relações de dominação que podem ser mudadas.  
O  preconceito  em  relação  à  diversidade  sexual  é  uma  dessas 
relações de dominação. A percepção da homossexualidade no ambiente 
de  trabalho  das  carreiras  jurídicas  desnuda  os  limites  da  neutralidade 
da  expertise  e  do  mérito  nesta  dimensão.  A  ideologia  do 
profissionalismo  carrega  consigo  o  apagamento  dos  processos  de 
construção social das diferenças de gênero, que são realimentados pela 
essencialização à medida que elas são usadas para reafirmar qualidades 
profissionais femininas e masculinas.  
A  visibilidade  da  diferença  sexual  está  engendrada  à  lógica  do 
armário abordada por Segdwick (1990), que se impõe ao homossexual e 
também  aos  heterossexuais  já  que  os  profissionais,  em  sua  maioria, 
declaram não ter preconceito em relação à diferença sexual, mas ela tem 
de  ser  mantida  sob  discrição,  para  não  interferir  na  carreira.  Para 
Segdwick, todos, homens e mulheres, hetero ou homo‐orientados, estão 
dispostos dentro dos mesmos processos sociais de regulação de nossas 
vidas a partir da sexualidade. 
Apesar  disso,  hoje  é  possível  perceber  maior  visibilidade 
homoafetiva nas carreiras jurídicas. Isso decorre de mudanças culturais 
que  se  processam  nas  grandes  firmas  de  advocacia  globalizadas  e  se 
refletem  nas  sociedades  de  advogados  brasileiras.  Elas  se  empenham 
em ter como modelo as sociedades norte‐americanas, visando ampliar a 
circulação  internacional  e  as  parcerias  nessas  redes,  que  tratam  as 
políticas de diversidade como diferencial positivo.  
A  diversidade  sexual  vem  sendo  discutida  no  âmbito  dos 
direitos  como  reconhecimento  à  diferença  nas  identidades  pessoais  e 
sociais.  O  olhar  crítico  sobre  a  construção  heteronormativa  permite 
perceber as barreiras à expressão livre da identificação homoafetiva e a 
produção de desigualdades no exercício do desejo e da sexualidade.  
 
4. A identidade homosexual na profissão do(a) advogado(a) 
 
Em  22  de  março  de  2011  foi  criada,  no  âmbito  do  Conselho 
Federal  da  OAB,  a  Comissão  da  Diversidade  Sexual  e  Combate  à 

169
 
Homofobia,  destinada  a  discutir  e  coordenar  as  matérias,  projetos  e 
ações da entidade nessa área. Representando uma importante mudança 
no cenário jurídico nacional, o apoio da comunidade jurídica tornou‐se 
importante  para  a  visibilidade  de  homossexuais  em  uma  profissão  já 
consolidada. 
As conquistas dos homossexuais que estão sendo concretizadas 
nos tribunais, têm contado com o apoio da comunidade de advogados 
que vem se mobilizando para defender os direitos homoafetivos. Em 28 
de fevereiro de 2010, a Associação da Parada do Orgulho LGBT de São 
Paulo10 fechou parceria com o Escritório Lessi e Advogados Associados. 
O acordo visa atender de forma gratuita os associados da APOLGBT e 
demais  pessoas  que  procuram  pelos  serviços  da  associação.  Segundo 
notícias  veiculadas  na  época,  a  iniciativa  partiu  do  presidente  do 
escritório, Pedro Lessi, que representa vários casos de discriminação por 
orientação  sexual.  Para  ele,  o  respeito  à  orientação  sexual  é  um  direito 
fundamental  e  todo  indivíduo  deve  ter  esse  direito  garantido  nos 
tribunais,  já  que  não  são  garantidos  pelo  Legislativo.  Desde  então, 
desde  questões  contratuais  menores,  como  desrespeito  ao  uso  da 
logomarca  da  APOLGBT,  até questões  de  repercussão  nacional,  como 
ofensas públicas à população LGBT, podem ser objeto de representação 
jurídica. 
Inicialmente, a pesquisa teve a intenção de articular sexualidade 
e  profissionalismo,  partindo  da  hipótese  de  que  operadores  e 
operadoras do direito não revelassem a homossexualidade, mantendo‐a 
na  intimidade  sob  a  lógica  oculta  do  armário,  com  discrição  para  não 
afetar  de  forma  negativa  sua  carreira.  Priorizariam  assim  sua 
identificação  profissional  perante  sua  identificação  sexual. 
Entrevistamos  alguns  advogados  gays  que  são  bem  sucedidos  na  sua 
atuação  em  sociedades  de  advogados,  e  observamos  a  confirmação  do 
apagamento  da  visibilidade  da  sexualidade,  para  superar  barreiras  à 

                                                            
10 A Associação  da  Parada  do  Orgulho  LGBT  de  São  Paulo é  uma  entidade  civil,  de 
direito privado, sem fins lucrativos, fundada em 1º de fevereiro de 1999, tendo como 
missão  a  garantia  da  cidadania  de  lésbicas,  gays,  bissexuais,  travestis  e  transexuais, 
assim como a promoção da visibilidade e autoestima desta população e a educação da 
sociedade  para  o  fim  da  discriminação,  preconceito  e  violência  homofóbica.  (Fonte: 
http://www.paradasp.org.br/ associacao.php) 

170
 
progressão.  No  entanto,  além  desse  tipo  de  conduta,  o  trabalho  de 
campo  permitiu  localizar  outro  comportamento  entre  os  profissionais. 
Foi  possível  encontrar  advogados  e  advogadas  que  assumissem 
publicamente  sua  homossexualidade,  que  se  apresentam  como  figuras 
públicas do Direito, e como militantes da causa homoafetiva na cidade 
de São Paulo e em outras grandes cidades do país. A pesquisa de campo 
permitiu tomar conhecimento de um grupo de profissionais do Direito 
que,  além  de  reconhecer  publicamente  sua  identidade  homossexual, 
luta  por  direitos  e  trabalha  com  causas  relacionadas  à  sexualidade 
contra‐hegemônica.  Eles  também  trabalham  com  clientes  empresariais, 
nas  sociedades  de  advogados,  nos  escritórios  que  lidam  com  outras 
especialidades,  além  da  defesa  contra  a  discriminação  sexual.  Trata‐se 
de  um  grupo  ativo  nas  causas  acerca  do  direito  homoafetivo  e  para  o 
respeito de operadores e operadoras do direito homossexuais: o Grupo 
de Advogados pela Diversidade Sexual. 
Formado  por  operadores  do  Direito,  o  Grupo  de  Advogados 
pela  Diversidade  Sexual  –  GADvS  é  uma  entidade  privada  que  tem 
como objetivo principal garantir os direitos de cidadania da população 
homossexual.  Além  de  advogados  e  advogadas,  o  grupo  conta  com  a 
atuação  de  profissionais  de  diversas  áreas,  numa  perspectiva 
multidisciplinar  na  luta  pelos  direitos  LGBTs.  Com  dois  anos  de 
existência,  o  grupo  luta  em  prol  do  respeito  à  diversidade  sexual, 
juntamente  com  a  atuação  no  judiciário,  e  é  referência  em  casos  de 
sucesso. Seus membros se sentem preparados para dar suporte jurídico 
e  orientação  a  qualquer  cidadão,  principalmente  os  de  orientação 
homoafetiva.  
Para eles, o desafio é declarar e tornar legítimo o direito de gays 
ao  casamento  e  às  uniões  estáveis,  além  do  reconhecimento  que  a 
homofobia  é  uma  conduta  criminosa,  assim  como  o  racismo.  O  grupo 
destaca  a  premissa  básica  de  que  todos  são  iguais  perante  a  lei,  se 
colocando  o  objetivo  de  reduzir  a  violência  moral  e  física  que  a 
população  LGBT  vem  sofrendo.  Para  o  diretor  do  GADvS  (advogado, 
gay,  militante  da  causa  LGBT),  o  avanço  dos  direitos  da  comunidade 
gay não é um modismo, mas um processo histórico.  Apesar de alguns 
projetos  de  leis  tramitarem  por  mais  de  uma  década  (como  o  caso  de 

171
 
parceria  civil  e  criminalização  de  homofobia),  ainda  não  existem  leis 
federais protetivas. 
Os  valores  normativos  predominante  no  profissionalismo 
enfatizam  a  neutralidade  da  expertise,  mas  a  agenda  da  diversidade 
sexual  que  é  encampada  pelo  GADvS  dá  visibilidade  a  essa  diferença.  
As  identificações  profissionais,  embora  coletivas  aos  advogados,  não 
são fixas e vivenciadas da mesma forma pelos pares. As interseções com 
as marcas das diferenças pluralizam esses processos identitários, podem 
ganhar ou não visibilidade. As lutas simbólicas em torno desse ideário 
profissional foram observadas nas entrevistas realizadas pela equipe da 
pesquisa.  Encontramos  advogados  e  advogadas  que  foram  bastante 
firmes em se apresentar  como pessoas não preconceituosas em relação 
ao  profissional  gay,  mas  pouco  dispostas  a  aceitar  a  visibilidade  dessa 
diferença, como na fala a seguir:  
 
“O  [nome  do  advogado]  está  saindo  do  armário  agora,  ele  ainda  não 
falou  para  nós,  isso  não  é  problema,  a  atitude  dele  tem  que  ser 
diferente,  o  problema  dele  são  os  pais,  desde  a  contratação  eu  já 
percebi. (...) Não; isso não é problema não, a atitude dele tem que ser 
diferente,  desde  que  não  ofenda  ninguém,  ele  só  não  pode  é  chegar 
aqui de Maria Chiquinha etc, etc, porque não condiz com o ambiente, 
ele tem que se comportar de acordo com o ambiente. Se eu chego num 
ambiente gls eu não posso ficar assim, né?(fez trejeitos com as mãos), 
como  uma  pessoa  homossexual  chega  num  ambiente  ele  tem  que 
respeitar  o  ambiente  onde  ele  está,  um  casal  que  vai  num  boteco  ele 
não vai ficar se agarrando, se beijando, não vai ficar sentando no colo 
do  outro  em  público,  isso  depende  da  postura  da  pessoa,  não  da 
opção.”  (Joyce,  advogada  sócia,  escritório  familiar  no  interior,  46‐50 
anos, divorciada, com filhos) 
 
  Alguns dos advogados gays entrevistados também reforçaram a 
neutralidade  do  profissionalismo,  para  evitar  que  as  marcas  da 
homoafetividade abalem o status conquistado na carreira. A passagem 
abaixo  aborda  a  questão  da  “postura  profissional  neutra”,  na  visão  de 
um deles.  
 
“Eu acho o seguinte, a questão do trejeito, de ser afeminado ou não, eu 
acho  que  isso  implica  numa  postura  de  confiança  que  eu  acho  que  o 

172
 
senso  geral  da  sociedade  tem,  por  exemplo,  eu  acho  que  você  vai  se 
sentir  mais  confortável  sendo  atendido  por  um  profissional  se  ele 
mantém  uma  linha  reta,  não  é  pra  ser  o  machão,  grosseiro,  aquele 
típico  macho,  entendeu,  homem,  e  também  não  é  pra  ser  uma  pessoa 
que  é  homem  e  quer  ser  mulher  entendeu.  Eu  acho  que  isso  acaba 
criando  um  problema  de,  talvez  confiabilidade  no  profissional,  a 
pessoa acha meio estranho. Eu não tenho preconceito com isso, eu acho 
que tanto faz, mas eu acho que em geral as pessoas têm essa percepção. 
(...) 
Eu  acho  que  pra  parar  com  questão  de  preconceito  eu  acho  que  tem 
que  parar  de  participar  às  pessoas  se  é  gay,  se  é  lésbica,  se  é  isso  ou 
aquele  outro.  Você  não  é  nada,  você  é  você,  uma  pessoa,  um  ser 
humano que trabalha. Pronto, ponto final. ” (Jonas, advogado sócio de 
renda, 26‐30 anos, solteiro, sem filhos) 
 
  O  apagamento  das  marcas  visíveis  da  diferença  quanto  à 
sexualidade  realizada  por  esse  entrevistado  é  acompanhado  da  ênfase 
na  identificação  com  a  profissão,  que  se  sobrepõe  ao  pertencimento  a 
outra  comunidade,  como  a  homoafetiva.  O  profissionalismo  repõe  o 
status  social  negado  às  pessoas  gays  na  sociedade  e  traz  recompensas 
através do reconhecimento obtido pelo domínio da expertise. 
   Rumens  e  Kerfoot  (2009)  analisaram  homens  gays  no  trabalho 
em organizações receptivas à inclusão. Eles sugerem que mesmo nesses 
ambientes,  os  homens  gays  atuam  sobre  o  self  para  se  identificarem 
como profissionais, vivendo empoderamento. Dessa forma, não deixam 
de  ser  afetados  pelas  normas  que  tratam  a  sexualidade  e  o 
profissionalismo como polos opostos. 
Em  contraste  com  essa  forma  de  lidar  com  a  diferença  na 
profissão,  temos  entre  os  profissionais  do  GADvS  aqueles  que 
vivenciam a interseção entre a identificação profissional e homoafetiva 
de forma pública. Nosso interesse neste aspecto é registrar as dinâmicas 
nas situações de trabalho dos advogados que assumem abertamente sua 
sexualidade  em  comparação  com  aqueles  que  não  o  fazem,  ou  que 
entendem  que  a  sexualidade  é  assunto  da  intimidade,  restrito  ao 
privado.  
 As lutas concorrenciais entre o apagamento da diferença, com a 
política do armário e a visibilidade da identificação profissional e sexual 

173
 
apontam oportunidades de mudanças nessas relações, ao se questionar 
a  hegemonia  da  neutralidade.  Jovens  advogados  formados  em  2009  já 
presenciavam em suas universidades maior abertura para a diversidade 
sexual, seja na carreira, seja no preparo para casos e clientes. Segundo o 
advogado João, a faculdade em que cursou direito sempre foi ativa na 
defesa da não discriminação sexual.  
 
ʺhavendo  inclusive  cadeiras  de  Psicologia  e  Sociologia  dentro  do 
Direito, visando promover debates para que a comunidade aceitasse os 
ʺgaysʺ.  Tive  até  mesmo  uma  professora  homossexual  não  assumida, 
mas que levantava a bandeira. Notei receio com tal tema somente com 
relação àqueles alunos mais velhos, de outra época. Os mais jovens têm 
aceitado  a  diversidade  sexual  sem  problemasʺ.  (João,  advogado,  24 
anos, solteiro, gay não assumido) 
 
Advogados  do  GADvS  também  compartilham  da  opinião  e 
afirmam  que  existe  hoje  a  possibilidade  de  assumir  e  afirmar  a 
identidade gay já na faculdade. Para eles, a geração de advogados que 
se  formou  na  década  de  90,  e  hoje  tem  entre  35  e  40  anos,  só  pode 
assumir  sua  sexualidade  após  chegar  ao  topo  da  carreira.  Assim 
aconteceu com Joaquim, que só “saiu do armário” após se tornar sócio 
de um importante escritório de São Paulo.  
Para o entrevistado Jorge, estudante de direito, existe a 
 
“certeza  que  está  havendo  uma  abertura  para  mais  homossexuais  se 
assumirem,  não  que  deixou  de  existir  a  discriminação,  porém  a 
abertura para se falar no tema e se assumir atualmente está sendo mais 
aceita, na faculdade de Direito existe muitos homossexuais assumidos, 
na  minha  própria  faculdade  existe  uma  trans  que  está  no  3º  ano  da 
faculdade, o fator formal na formação do Bacharel em Direito está bem 
mais  informal,  tal  informalidade  possibilita  o  que  chamamos  de 
diversidade ser mais perceptível e difundida, o que ajuda também com 
a  extinção  de  estereótipos,  como  de  que  todo  homossexual  é 
cabeleireiro.  Grupos  de  diversidade  sexual  estão  presentes em apenas 
Universidades Públicas (pelo menos é até onde sei), não existe (ou não 
conheço)  um  grupo  dentro  de  uma  faculdade  de  Direito 
especificamente,  mais  sim  grupos  interdisciplinares”.  (Jorge,  20  anos, 
estudante de direito, solteiro, gay não assumido) 

174
 
Em contrapartida, João vê como algo negativo para a carreira de 
um  advogado  caso  ele,  segundo  suas  palavras,  ‘levante  a  bandeira’  e 
demonstre  a  sua  opção  sexual  para  a  sociedade.  Diz  não  ser 
preconceituoso,  mas  não  vê  motivos  para  que  a  sexualidade  e  a  opção 
sexual de cada um sejam declaradas e divulgadas, visto que não necessita 
disso para exercer sua profissão, e acrescenta: ʺé algo que deve ser mais 
fechado,  não  necessitando  de  publicização  até  mesmo  para  evitar 
preconceitos.  Há  colegas  gays  que  não  divulgam  sua  opção  sexual,  e 
apenas exercem suas profissões como se heterossexuais fossem.ʺ  
No  que  se  refere  ao  ambiente  de  trabalho  e  a  relação  com  os 
clientes, João acredita que  
 
ʺA marca da sexualidade não implica na não escolha do advogado pelo 
cliente,  entretanto,  desde  que  este  advogado  se  porte  como  um 
advogado  e  não  como  um  “advogado  gay”.  Quero  dizer,  ele  não 
precisa a todo instante demonstrar sua opção sexual e fazer questão de 
que  ela  seja  exposta,  pois  neste  caso  enfrentará  preconceito  de  uma 
sociedade  que  ainda  não  está  preparada  para  enfrentar  tal  tipo  de 
situação.ʺ (João, advogado, 24 anos, solteiro, gay não assumido) 
 
A  ideia  de  que  o  advogado,  independente  de  sua  sexualidade, 
deve  se  portar  como  “macho”  está  presente  em  todas  as  falas  desses 
entrevistados.  Tanto  para  eles  quanto  para  outros  advogados  e  outras 
advogadas  entrevistados,  é  necessário  que  se  mantenha  uma  postura 
profissional  para  não  sofrer  preconceitos  na  carreira.  Ao  questionar 
como  seria  tal  postura,  as  respostas  eram  sempre  em  relação  ao  modo 
de  se  vestir,  de  falar,  de  andar.  O  ideal  é  que  um  advogado  que  se 
assuma gay não seja afeminado.  
Para  Jorge,  o  advogado  homossexual  tem  grandes  chances  de 
subir  na  carreira,  desde  que  seja  ou  pareça  homem  hetero,  branco, 
casado  e  pai  de  família.  O  homossexual  terá  sua  ascensão  profissional 
garantida  ao  não  se  mostrar  afeminado.  Além  disso,  afirma  que  ser 
homem  no  mundo  jurídico  é  fácil:  “a  maior  facilidade  em  relação 
homem versus mulher seria a de que no mundo jurídico, os homens são 
predominantes,  mais  não  conheço  mulheres  que  tiveram  dificuldades 
em subir na sua carreira profissional”. No entanto, existe a ideia de que 
aqueles  que  se  assumem  gays  teriam  que  se  qualificar  mais  que  os 

175
 
outros. Assim como as mulheres, que acreditam estar em desvantagem 
na  carreira  em  relação  aos  homens,  os  advogados  que  assumem  sua 
opção  sexual  estudam  e  se  dedicam  mais  ao  trabalho  para  não  dar 
brechas para a discriminação.  
 
“Eu acho que a minha opção sexual sempre me fez dar mais duro, mais 
duro  porque  eu  acho  que  o  medo  de  ser  discriminado  e  tudo  mais, 
você  acaba  buscando  uma  proteção  para  seu  sucesso  profissional.  Se 
você  tem  sucesso  profissional  é  mais  difícil  a  pessoa  sobrepujar  isso 
com você” (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay 
assumido). 
 
O  que  nossa  pesquisa  indica  é  que  não  podemos  falar  de 
profissionalismo  como  se  seu  sentido  fosse  único  e  coeso,  já  que  a 
neutralidade  e  o  apagamento  das  diferenças  estão  sujeitos  a 
questionamentos,  bem  como  a  reafirmações.  A  visibilidade  da 
homoafetividade desses profissionais é algo que está sendo construído e 
produzido  historicamente.  Tais  mudanças  estão  intimamente 
relacionadas  à  fragmentação  da  ordem  tradicional  que  deu  origem  ao 
modelo  das  profissões  no  século  XIX,  e  é  hoje  acompanhada  da 
pluralização  dos  valores  na  sociedade  contemporânea,  como  também 
dos embates em torno do ideário do profissionalismo.  
Tal  como  ocorre  com  o  gênero,  os  papéis  sexuais  são  forjados 
socialmente e, por esse motivo, criam‐se expectativas e comportamentos 
apropriados para homens e mulheres. Quando tratamos do ambiente de 
trabalho,  que  se  construiu  em  contraste  com  o  da  casa,  espera‐se  uma 
conduta  que  demarque  fronteiras  difíceis  de  serem  mantidas,  como  as 
do jogo das identidades no público e no privado. O profissionalismo foi 
um  aliado  para  se  constituir  essas  fronteiras  fixas,  mas  elas  estão 
sujeitas a deslocamentos e às disputas discursivas sobre seu significado.  
O  depoimento  abaixo  revela  os  custos  do  cruzamento  das 
fronteiras entre público e privado na visibilidade da homossexualidade. 
As  diferenças  de  comportamento,  a  forma  de  se  vestir,  de  falar 
produzem estereótipos que estigmatizam o profissional no ambiente de 
trabalho com os pares e no relacionamento com clientes. 
 

176
 
Eu  acho que talvez  pelo fato  dele  ser um  pouco  mais  afeminado, que 
pode  ter  originado  esse  tipo  de  preconceito,  isso  é  uma  coisa  que  eu 
realmente vejo nas pessoas, eu acho que hoje em dia a opção sexual é 
muito menos tabu, mas ela é menos tabu com as pessoas que não tem 
os trejeitos, marcas visíveis, o que é muito triste. E qual é o problema? 
Eu  realmente  me  considero  uma  pessoa  totalmente  desprovida  de 
preconceito. (Joaquim, advogado, 38 anos, sócio de um escritório e gay 
assumido) 
 
Como  os  estereótipos  produzem  padrões  de  comportamento 
homossexual  no  qual  o  homem  age  de  forma  mais  afeminada  e  a 
mulher mais masculinizada, quando uma advogada é considerada mais 
dura  e  firme  em  seu  trabalho,  rumores  acerca  da  sua  sexualidade 
entram em pautas veladas nos corredores dos escritórios de advocacia.  
A hipótese inicial a respeito da maior abertura na cidade de São 
Paulo  foi  confirmada  pelos  entrevistados.  Quando  perguntados  se  há 
diferença  entre  a  visibilidade  homoafetiva  em  São  Paulo  e  em  cidades 
do interior ou outras regiões do país: 
 
“Na  cidade  onde  moro,  que  é  São  Paulo,  a  abertura  profissional  para 
profissionais  homossexuais  é  bem  aceita,  porém  em  cidades  menores 
existe  um  tabu  muito  grande.”  (Jorge,  20  anos,  estudante  de  direito, 
solteiro, gay não assumido)  
“Por  estarmos  em  São  Paulo,  eu  acho  que  é  um  lugar  onde  você  tem 
mais  contato  em  relação  a  isso,  as  pessoas  são  mais  abertas  pra  esse 
tipo  de  coisa”  (Joaquim,  advogado,  38  anos,  sócio  de  um  escritório  e 
gay assumido). 
 
5. A diferença sexual e identificação homossexual no Brasil  
 
Os  advogados  homossexuais  dizem  que  não  devem  se  portar 
como  tal,  mas  existe  uma  única  maneira  de  representar  e  praticar  a 
homossexualidade?  O  que  é  ser  um  homossexual  na  carreira?  O  que 
isso representa? Quais são as implicações em assumir tal identidade na 
profissão? Abordaremos agora essas questões. 
Os  movimentos  homossexuais  surgiram  no  Brasil  no  final  da 
década  de  1970.  De  acordo  com  Fry  e  Macrae  (1983),  em  um  pequeno 
ensaio  sobre  a  história  da  construção  médico‐legal  da 

177
 
homossexualidade  e  as  suas  manifestações  no  Brasil,  os  movimentos 
sexuais  surgiram  com  o  propósito  de  repensar  a  identidade 
homossexual  e  combater  as  manifestações  do  preconceito.  Além  disso, 
proporcionou  maior  visibilidade  da  homossexualidade  para  o  público 
como  um  todo.  A  imprensa  passou  a  dedicar  mais  espaço  ao  assunto, 
além  da  televisão  que,  apesar  de  representar  uma  identidade  sempre 
caricata para o homossexual, tornou possível a visibilidade social desse 
grupo de pessoas que antes viviam no anonimato e nos guetos sociais.  
Tais  mudanças  criaram  condições  sociais  mais  favoráveis  para 
que  profissionais  viessem  a  assumir  sua  homossexualidade  dentro  do 
ambiente  de  trabalho.  Não  é  possível  dizer  que  a  homossexualidade 
aumentou,  não  existem  dados  que  comprovem  isso,  mas  os  processos 
de luta para a redução do estigma social garantiram maior visibilidade 
aos homossexuais do que antes disso.  
A  visibilidade  da  identidade  homoafetiva  entre  operadores  e 
operadoras de direito se ampliou, e é possível verificar essas mudanças 
no  cenário  atual  da  cidade  de  São  Paulo.  Importante  ressaltar  nessa 
análise,  os  advogados  entrevistados  e  também  aqueles  com  os  quais 
pudemos entrar em contato, apesar de ocuparem um lugar subalterno, 
enquanto  homossexuais  são  parte  dos  segmentos  favorecidos  da 
população, muitos deles em posições dominantes na hierarquia social.  
Além  disso,  como  vimos  acima,  no  mundo  do  Direito,  a 
ideologia predominante no profissionalismo é baseada na neutralidade 
afetiva.  Dessa  maneira,  aqueles  que  se  enquadram  no  perfil  do 
profissional sério, competente e que se adequam às construções sociais 
de  feminino  e  masculino  tendem  a  prevalecer  diante  daqueles  que 
fogem do padrão.  
 
“Os que são suspeitos de não virem a se dedicar totalmente à carreira 
(cuidados com a família), ou aqueles que corporificam uma imagem de 
si  percebida  como  a  antítese  do  neutro  (a  sexualidade  visível,  a 
emotividade,  a  politização,  o  trajar  diferente  do  ‘terno‐terninho’) 
perdem  a  pressuposição  de  sua  competência,  atestada  pelo  mérito  da 
proveniência  do  diploma,  da  credencial  da  OAB  e  do  currículo.” 
(Bonelli e Barbalho, 2008, p.286) 
 

178
 
Como  os  profissionais  do  direito  lidam  então  com  a  identidade 
profissional  e  a  identidade  homoafetiva?  Elas  entram  em  conflito? 
Segundo Hall (2003), resultado de mudanças estruturais e institucionais, 
o  sujeito  passa  a  ser  composto  de  várias  identidades,  sendo  elas 
algumas  vezes  contraditórias  ou  não  resolvidas.  A  identidade  torna‐se 
algo em contínua transformação, definida histórica e culturalmente, não 
mais  biologicamente.  As  várias  identidades  não  unificadas  no  self 
resultam em uma identificação constantemente deslocada.  
A contemporaneidade apresenta múltiplas identidades culturais 
com  as  quais  o  indivíduo  pode  se  identificar,  fazendo‐o  possuir  uma 
multiplicidade  de  identidades  possíveis.  Hall  argumenta  que  a 
modernidade  tardia  pode  ser  caracterizada  pela  diferença  que  produz 
múltiplas posições de sujeitos, isto é, diferentes identidades.  
Se antes dessa modernidade o que prevalecia eram as identidades 
de  classe  e/ou  gênero,  agora  as  categorias  gênero,  sexualidade,  raça, 
classe,  nacionalidade,  entre  outras,  que  podem  entrar  em  conflito, 
constituem uma totalidade de identidades através das narrativas do self. 
A  representação  torna‐se  elemento  importante  para  que  identidades 
formadas e transformadas culturalmente possam se cruzar. 
No  final  da  década  de  1990,  o  debate  mudou  de  direção  e  os 
teóricos passaram a aludir suas análises à emergência de categorias que 
se  referiam  à  multiplicidade  de  diferenciações  que  se  articulavam  ao 
gênero. Tais categorias são chamadas de categorias de articulação e de 
interseccionalidades. Os questionamentos passaram a ser realizados em 
torno  do  deslocamento  nos  referenciais  teóricos  utilizados  e  de 
abordagens desconstrutivistas.  
Se  os  indivíduos  são  formados  por  diversas  noções  de 
identidades,  é  necessário  mais  de  uma  categoria  para  compreendê‐lo 
como  um  todo.  Interseccionalidades  e/ou  categorias  de  articulação 
oferecem  ferramentas  analíticas  para  a  compreensão  e  articulação  das 
múltiplas diferenças e desigualdades.  
 
“É importante destacar que já não se trata da diferença sexual, nem da 
relação entre gênero e raça ou gênero e sexualidade, mas da diferença, 
em  sentido  amplo  para  dar  cabo  às  interações  entre  possíveis 
diferenças presentes em contextos específicos.” (Piscitelli, 2008, p.266) 

179
 
Ao  debater  as  categorias  de  articulação  e  intersseccionalidades, 
Piscitelli critica as identidades fixas dentro das teorias de gênero. Para a 
autora, o gênero deve ser problematizado e não mais visto sob modelos 
teóricos totalizantes e universalizantes.  
Piscitelli  (2008),  assim  como  Avtar  Brah  rejeita  o  conceito  de 
patriarcado  como  algo  universal.  Brah  (2006)  abordou  o  debate  da 
articulação  entre  gênero,  raça,  etnicidade  e  sexualidade,  no  feminismo 
negro,  na  Inglaterra.  A  proposta  de  Brah  era  trabalhar  diferença  como 
categoria  analítica,  pensando  na  diferença  como  experiência,  como 
relação social, como subjetividade e como identidade. 
 
“A autora afirma que há discursos que apresentam diferenças, como o 
racismo, que traçam limites fixos. Entretanto, outras diferenças podem 
ser  apresentadas  como  relacionais,  contingentes.  Como  a  diferença 
nem  sempre  é  um  marcador  de  hierarquia  nem  de  opressão,  uma 
pergunta  a  ser  constantemente  feita  é  se  a  diferença  remete  à 
desigualdade,  opressão,  exploração.  Ou,  ao  contrário,  se  a  diferença 
remete  a  igualitarismo,  diversidade,  ou  a  formas  democráticas  de 
agência política”. (Piscitelli, 2008, p.269) 
 
Essa  linha  de  pensamento  que  intersecciona  as  diferenciações, 
pode  ser  usada  para  se  pensar  em  como  as  construções  de  diferença  e 
distribuições de poder contribuem para o posicionamento desigual dos 
sujeitos  no  âmbito  global.  Para  melhor  compreensão,  é  necessário 
pensar como Scott (1998) em que os sujeitos são constituídos mediante a 
experiência. Por esse motivo, a sua identidade vai estar relacionada com 
o  lugar  e  tempo  em  que  se  situa.  Uma  mulher  brasileira,  branca, 
estudante  e  de  classe  média  é  vista  de  maneira  diferente  dependendo 
do país em que se situa. Na Europa pode ser vista como migrante, latina 
e outras posições que não teria se estivesse em seu país de origem. 
As identidades são construídas dentro dos discursos e emergem 
em um jogo específico de poder e por isso são produtos da marcação da 
diferença e da exclusão11 . O autor usa o termo “identificação” de Homi 
Bhabha  por  ser  menos  ardiloso  que  o  de  identidade,  pois  ambos  são 
conceitos não muito bem desenvolvidos da teoria social. 

                                                            
11  Hall, 2001. 

180
 
A identificação é uma constante construção, um processo nunca 
completado.  Ela  é  um  processo  de  articulação  e  suturação  porque  está 
sujeita  a  historicização,  estando  constantemente  em  processo  de 
mudança e transformação. Além disso, as identidades são constituídas 
por meio da diferença e não fora dela. Avtar Brah já se questionava de 
que  forma  era  possível  teorizar  o  vínculo  entre  a  realidade  social  e  a 
realidade  psíquica,  para  assim  teorizar  o  sujeito  pós‐colonial  em  suas 
diferentes identidades. 
Stuart  Hall  (2000)  concentra‐se  em  uma  discussão  da 
problemática da formação da identidade e da subjetividade, colocando‐
se a importante pergunta: por que acabamos preenchendo as posições‐
de‐sujeito para as quais somos convocados? 
Como  já  dito  anteriormente,  Hall  salienta  que  está acontecendo 
uma  desconstrução  das  visões  sobre  a  identidade  em  diversas 
disciplinas, as quais põem em crise a noção de uma identidade integral, 
originária  e  unificada.  Um  conceito‐chave  é  o  de  “agência”,  que 
expressa  a  identificação  como  uma  construção,  como  um  processo 
nunca  terminado.  A  identificação  é,  portanto,  um  processo  de 
articulação. Há sempre “demasiado” ou “muito pouco”, mas nunca um 
ajuste  total. Mas  o  conceito  principal  é  o  de  identidade,  que  não  é,  em 
Stuart  Hall,  uma  noção  essencialista,  mas  um  conceito  estratégico  e 
posicional,  ou  seja,  as  identidades  jamais  são  unas.  Em  suma,  as 
identidades  operam  através  da  exclusão,  da  construção  discursiva  de 
uma  exterioridade  constitutiva  e  da  produção  de  sujeitos 
marginalizados,  na  superfície  exilados  do  universo  simbólico  ou  do 
representável.  
A  compreensão  de  identidades  aos  olhos  de  autores  pós‐
coloniais  mostra  desde  a  produção  de  novos  sujeitos  devido  à  nova 
ordem  global,  até  a  difusão  das  interseccionalidades  e  categorias  de 
articulação para abordar as diferenças. O que se pode concluir é que as 
identidades  foram  percebidas  como  um  conjunto  de  diferenças  que 
caracterizam  os  indivíduos  e  os  identifica  dentro  das  práticas 
discursivas  e  psicanalíticas.  As  identificações,  por  pertencerem  ao 
imaginário, sempre são reafirmadas pelos próprios sujeitos que desejam 
se inserir na dinâmica das estruturas de poder.  
 

181
 
6. Conclusões 
 
A  pesquisa  seguiu  um  percurso  que  mostrou  o  recorte  da 
visibilidade  de  advogados  que  lidam  com  a  identidade  profissional  e 
homoafetiva e acabam seguindo para a militância LGBT. O enfoque que 
foi  dado  ao  GADvS  e  aos  advogados  militantes  serviu  de  base  para 
argumentação  de  como  a  homoafetividade  irá  interferir  na  profissão, 
dando outros rumos a partir da militância no movimento LGBT. A força 
da  identificação  sexual  configura  o  caminho  profissional,  mostrando 
uma  interseção  na  qual  se  busca  reconhecimento  para  o  valor  de  sua 
expertise,  rejeitando  a  desqualificação  de  seu  saber  com  a  reconversão 
de  seu  capital  jurídico  para  a  atuação  na  especialidade  dos  direitos 
homoafetivos.   
Quando  os  profissionais  não  fazem  essa  reconversão,  os  custos 
dos  estigmas  são  pesados.  Os  pares  profissionais  produzem  as 
invisibilidades  ao  partilharem  o  ideário  da  neutralidade  do 
profissionalismo  como  fundamental  para  o  exercício  da  advocacia.  Os 
profissionais  gays,  envolvidos  ou  não  em  lutas  contra  a  discriminação 
sexual  apagam  as  marcas  dessa  diferença  ao  agirem  em  sintonia  com 
esse valor normativo, que coloca em pólos opostos a vida profissional e 
a  intimidade,  mantendo  no  armário  sua  homossexualidade.  Nestes 
casos,  a  intersecção  entre  identidades  fica  sujeita  ao  predomínio  do 
status profissional perante o estigma da diferença sexual. 
Por  fim,  a  análise  dessas  trajetórias  profissionais  permitiu 
compreender  os  processos  de  mudança  que  estão  ocorrendo  na 
advocacia  paulista  e  os  novos  arranjos  institucionais,  visando  a 
diversidade sexual, desde as instâncias da OAB‐ SP, como a Comissão 
da  Diversidade  Sexual  e  Combate  a  Homofobia  até  as  sociedades  de 
advogados  que  vêem  na  diversidade  a  possibilidade  de  ampliar  suas 
redes nas grandes firmas internacionais.  
 
 
 
 
 
 

182
 
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183
 
 
 
 
 
 

184
 
As mulheres na magistratura: comparações entre Argentina e Brasil 
 
Camila de Pieri Benedito1 
Maria Eugenia Gastiazoro2 
 
 
1. Introdução 
 
A  proposta  deste  capítulo  é  a  análise  comparativa  sobre  as 
diferentes  formas  de  inserção  profissional,  como  também  sobre 
percepções  de  gênero,  no  judiciário  argentino  (Córdoba)  e  brasileiro 
(estado  de  São  Paulo).  Comparam‐se  dados  qualitativos  de  entrevistas 
realizadas com magistradas para discutir questões teóricas sobre gênero 
e profissão jurídica. 
Como  reconstitui  a  pesquisadora  Margareth  Rago  (2001),  a 
exclusão  das  mulheres  por  um  largo  período  das  funções  públicas  na 
política,  nas  ciências  e  na  filosofia,  são  consequências  de  um  contexto 
histórico  e  social  que  se  refletiu  nas  ciências  –  como  a  medicina  –  que 
retratavam  a  mulher  como  diferente  dos  homens,  sendo  estas 
consideradas inferiores intelectualmente, fisicamente e moralmente.  
A  constituição  do  direito  e  de  suas  instituições  entrelaçou‐se 
com  este  contexto  tornando  sua  presença,  em  relação  a  dos  homens, 
inferior  quantitativamente.  Em  suas  origens,  o  judiciário  brasileiro  e 
argentino  foi  composto  unicamente  por  homens  brancos  e  da  elite 
política (Coelho, 1999; Kohen, 2008) assim como o corpo estudantil das 
universidades  de  direito.  As  primeiras  mulheres  advogadas  também 
demoraram a surgir (Argentina: Bergoglio, 2007, Sánchez, 2005, Kohen, 
2005,  Bergallo,  2005,  Gastiazoro,  2008;  Brasil:  Junqueira,  2007,  Bonelli, 
2012). 
Além  das  lutas  feministas  que  impactam  sobre  o  papel  da 
mulher  em  nossa  sociedade,  auxiliando  seu  maior  ingresso  em  cursos 
                                                            
1  Mestre  em  Sociologia.  Programa  de  Pós‐Graduação  em  Sociologia,  Universidade 
Federal de São Carlos. Pesquisadora do grupo Sociologia das Profissões, UFSCar. 
2  María  Eugenia  Gastiazoro:  Mestre  em  Sociologia  (Centro  de  Estudos  Avançados, 

UNC) e Advogada (Universidad Nacional de Córdoba). Auxiliar Docente na Cátedra 
Sociologia Jurídica da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da UNC.  

185
 
universitários  e  na  vida  pública,  outros  movimentos  ocorrem  tanto  no 
Brasil  como  na  Argentina  refletindo  na  feminização  das  carreiras 
jurídicas:  a  organização  empresarial  dos  escritórios  jurídicos 
intensificou‐se  no  contexto  da  internacionalização  da  economia  nos 
anos  90.  Ambos  os  países  reformaram  seus  sistemas  judiciários  no 
sentido  de  modernizar  e  racionalizar  o  seu  funcionamento,  muitas 
vezes  sob  a  direção  de  organismos  internacionais.  Por  sua  vez  os 
processos  de  democratização  da  educação  trouxeram  um  aumento  do 
número  de  profissionais  do  direito,  sendo  destacado  o  ingresso 
qualitativo de mulheres na profissão (Bergoglio, 2007; Junqueira, 1998). 
Na  Argentina,  a  tendência  à  organização  empresarial  do 
trabalho  dos  advogados  significou  um  aumento  no  tamanho  dos 
escritórios,  bem  como  um  aprofundamento  da  divisão  do  trabalho 
jurídico  e  um  aumento  da  especialização.  O  surgimento  de  grandes 
empresas jurídicas – escritórios com mais de cinquenta advogados – ao 
lado  dos  pequenos  e  médios  escritórios  de  advocacia,  expressa 
claramente estas transformações (Bergoglio, 2005). 
No  caso  do  Brasil,  Junqueira  (1999,  1998)  analisa  este  processo 
iniciado  pelo  contexto  de  privatizações  do  governo  de  Fernando 
Henrique  Cardoso  e  se  estende  sobre  o  maior  ingresso  de  mulheres. 
Sobre  as  diferenças  entre  advogados  e  advogadas,  a  autora  retoma  o 
conceito  de  glass  ceiling3  –  ou  teto  de  vidro  –  que  corresponde  a  uma 
barreira  invisível  que  impede  que  homens  e  mulheres  ocupem  com  a 
mesma facilidade os espaços de maior prestígio, pois para que possam 
alcançar estes postos precisam se esforçar mais que os homens que são 
colocados  nas  posições  mais  prestigiadas  enquanto  elas  permanecem 
nos trabalhos burocráticos e de menores privilégios. 
Na  Argentina,  a  reforma  da  administração  judiciária  e  sua 
modernização  implicaram  uma  série  de  mudanças  que  ampliaram  a 
oferta  de  trabalho  no  setor  público.  Embora  a  feminização  do  poder 
judiciário não seja um processo recente, a possibilidade que existe hoje 
de  prestar  concursos  abertos  influi  na  crescente  inserção  de  mulheres 
neste  campo  de  trabalho.  Entretanto,  vários  estudos  mostram  que  elas 

                                                            
3   Junqueira  utiliza‐se  do  conceito  de  glass  ceiling  cunhado  por  Margareth  Thornton  no 
texto Dissonance and Distrust: Women in the Legal Profession (1996). 

186
 
estão  sub‐representadas  nos  postos  de  maior  hierarquia,  ao  passo  que 
são  sobre‐representadas  em  posições  de  menor  poder  e  decisão 
(Mackinson  e  Goldstein,  1988;  Gastron,  1991;  Bergallo,  2005;  Kohen, 
2008;  Gastiazoro,  2010).  De  modo  semelhante,  no  Brasil  a  participação 
feminina  nas  carreiras  jurídicas  públicas  se  intensificou  a  partir  do 
momento  em  que  as  provas  objetivas  passaram  a  manter  a  identidade 
de  candidatos  e  candidatas  anônima  (Bonelli,  2011)  apesar  de  haver 
ainda o peso do gênero durante a parte subjetiva, de entrevistas. 
Estas variáveis, brevemente elucidadas, ilustram como a questão 
da  equidade  na  participação  feminina  e  masculina  nas  carreiras 
jurídicas  não  pode  ser  considerada  somente  a  partir  da  questão 
temporal. Neste artigo, são resgatadas as perspectivas de mulheres que 
trabalham no poder judiciário de Córdoba e também de juízas estaduais 
e federais paulistas no Brasil. A  ideia é comparar como operadoras do 
direito  no  Brasil  e  na  Argentina  têm  observado  a  questão  da 
participação  das  mulheres  no  direito  para  então  discutirmos  questões 
teóricas sobre diferença de gênero e carreiras jurídicas. 
Na  próxima  seção  do  artigo  serão  destacadas  as  bases  teórico‐
metodológicas  das  duas  análises  para  que  seja  possível  realizar  a 
explanação mais detalhada das pesquisas nos dois países. No trecho A 
inserção das mulheres no poder judicial em Cordoba, será posto em destaque 
a pesquisa de Gastiazoro enquanto na seção A percepção de gênero entre 
juízas  estaduais  e  juízas  federais  no  interior  do  estado  de  São  Paulo  será 
exposta a de Benedito no Brasil. 
 
2. Aspectos teóricos e metodológicos da investigação 
 
A  investigação  na  Argentina  foi  realizada  sobre  o  Poder 
Judiciário  da  Província  de  Córdoba  e  a  Justiça  Federal  de  Córdoba. 
Depois da análise de dados quantitativos que dão conta de processos de 
segregação  vertical  e  horizontal  nos  poderes  judiciários  considerados, 
foram  feitas  entrevistas  com  mulheres  que  lá  trabalham  para 
compreender as desigualdades de gênero. Neste presente artigo foram 
analisadas  entrevistas  tomadas  a  mulheres  juízas  de  diferentes  níveis, 
ademais do caso de uma secretária da Justiça Federal. 

187
 
Embora se venham produzindo transformações tanto no mundo 
do  trabalho  como  na  vida,  a  divisão  sexual  do  trabalho  ainda  é  uma 
estrutura que afeta as atividades das mulheres, e a gestão de seu tempo, 
tanto no campo do privado como do público, elemento cuja repercussão 
ultrapassa aquilo que elas são capazes de ʺnegociarʺ ou ʺrenegociarʺ na 
esfera  privada.  Ademais,  persiste  nos  agentes  um  olhar  que  percebe  e 
valoriza as diferenças de gênero dentro de uma visão binária que incide 
de  maneira  negativa  sobre  as  próprias  mulheres.  Essa  situação  se 
reproduz através da violência simbólica presente nas relações sociais, o 
que impõe uma construção social arbitrária do biológico, e em especial 
do  corpo  (Bourdieu,  2005).  Neste  sentido,  as  desigualdades  de  gênero 
dentro  da  profissão  jurídica  se  sustentam  em  arbitrariedades  culturais 
que se evidenciam como naturais. 
Entre  os  modelos  teóricos  explicativos  das  desigualdades  de 
gênero  apresentados  por  Hull  e  Nelson  (2000),  aquele  das  escolhas  dos 
atores  postula  que  são  as  próprias  mulheres  que  incidem  na 
configuração  das  desigualdades  de  gênero.  A  partir  desta  perspectiva, 
argumenta‐se  –  segundo  a  teoria  do  capital  humano  de  Gary  Becker 
(1985)  –  que  as  diferenças  de  gênero  são  consequência  dos 
investimentos individuais em educação, mas também em experiência e 
treinamento  profissional  que  homens  e  mulheres  investem  em  si. 
Enquanto  as  mulheres  fazem  escolhas  que  privilegiam  as 
responsabilidades  familiares  contra  o  próprio  crescimento  na  carreira 
profissional,  os  homens  concentram  sua  atenção  em  sua  formação  e 
especialização  profissional.  Esta  explicação  resulta  criticável  porque 
coloca o foco no individual sem levar em conta as barreiras estruturais, 
a  discriminação  e  orientação  institucional  de  gênero.  Investigações 
sobre  o  tema  observaram  que,  por  mais  que  as  mulheres  tenham  a 
mesma  formação  e  experiência  de  trabalho  que  os  homens,  tais 
características  não  são  efetivamente  valorizadas  da  mesma  forma 
quando se trata de obter promoções (Fiona e Hagan, 1999; Rhode, 2003). 
Além  disso,  as  pautas  de  trabalho  nas  empresas  jurídicas,  como  a 
extensa jornada de trabalho e a consequente sobreposição crescente da 
vida  com  o  trabalho  são  barreiras  que  potencializam  as  desigualdades 
em  detrimento  das  mulheres,  sustentadas  pela  divisão  sexual  do 
trabalho (Bergoglio, 2007a). Nesse sentido: 

188
 
“... os níveis concretos de autonomia e autodeterminação efetivamente 
alcançados  pelas  pessoas  não  depende  apenas  de  suas  aspirações  e 
esforços  pessoais,  mas  também  do  gênero,  da  idade,  etnia  e  setor 
socioeconômico  em  que  eles  estão  situados...  a  individualização  está 
sempre  inscrita  em  um  campo  de  lutas...  que  determinarão  quais 
sujeitos  efetivamente  possuem  autonomia”.  (Stecher  Godoy  e  Diaz, 
2005:94) 
 
A  teoria  de  Bourdieu  (2005:105)  permite  adentrarmos  na 
ʺ(re)construção  social,  sempre  reproduzida,  dos  princípios  de  visão  e 
divisão  geradores  dos  gênerosʺ,  que  ocorre  dentro  das  estruturas 
institucionais que, por sua vez, são sustentadas por meio das estratégias 
que  os  agentes  colocam  em  marcha.  A  lógica  do  modelo  da  divisão 
entre o masculino e o feminino se instaura e reinstaura por meio de um 
trabalho constante de diferenciação a que os agentes não deixam de ser 
submetidos  e  que  os  leva  a  distinguir‐se  por  meio  de  processos  de 
masculinização ou feminização. 
É certo que: 
 
“as mudanças provadas pela globalização enfraqueceram os costumes 
e  o  senso  comum  tradicionais:  o  paradigma  de  gênero  mudou,  já  não 
se  baseia  mais  no  modelo  capitalista  anterior  do  homem  provedor  e 
das mulheres no espaço doméstico, alcançando também a recuperação 
de uma perspectiva mais complexa de gênero, superando a perspectiva 
reducionista  que  o  coloca  como  oposição  binária  entre  mulheres  e 
homens.  No  entanto,  estes  avanços  deixaram  basicamente  intocada  a 
divisão  sexual  do  trabalho  como  forma  organizativa  da  sociedade, 
tornando muito mais opressora suas múltiplas jornadas e convertendo 
o  tempo  –  sua  escassez  –  em  um  lugar  de  sujeiçãoʺ  (Manifesto  dos 
Direitos Sexuais e Reprodutivos, 2006:8). 
 
Sendo, então, a solução culturalmente institucionalizada na vida 
cotidiana que: 
 
“as  estratégias  de  conciliação  do  trabalho,  do  doméstico‐familiar  e  do 
pessoal  são  uma  questão  de  caráter  privado,  sendo  as  mulheres  os 
agentes que protagonizam estas estratégias privadasʺ (Missa e Unceta, 
2008). 

189
 
Neste  sentido,  as  relações  estabelecidas  entre  os  espaços  e 
tempos  do  produtivo  e  reprodutivo,  do  privado  e  do  público,  do 
familiar e do trabalho são aqui fundamentais.  
No  caso  do  trabalho  de  Benedito,  foram  selecionadas  para  a 
análise  duas  carreiras  jurídicas  públicas  brasileiras:  a  magistratura 
estadual  e  a  magistratura  federal  paulistas,  analisando  desta  forma  a 
presença das mulheres no Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) e no 
Tribunal  Regional  Federal  da  3ª  Região  (TRF3).  A  pesquisa  e  a  análise 
dividem‐se  em  duas  partes:  a  primeira,  quantitativa,  relaciona  o 
conceito de profissionalismo com a maior ou menor presença feminina 
nestas carreiras como também a abertura mais ou menos flexível para a 
presença  destas  nas  instituições.  A  segunda  parte,  qualitativa,  é  a 
análise  dos  discursos  de  juízas  federais  e  estaduais  de  onde  são 
resgatadas suas percepções sobre a presença feminina nas instituições. 
O  conceito  chave  na  análise  é  o  profissionalismo,  tanto  em  seu 
aspecto  institucional  pelas  contribuições  de  Freidson  (1996)  como  o 
definido  em  forma  de  discurso  a  partir  de  Evetts  (2003).  Freidson 
constrói as variáveis do profissionalismo como um tipo ideal4, segundo 
o  autor  o  trabalho  organizado  pela  lógica  do  profissionalismo  se 
distingue  de  outras  formas  de  trabalho5  em  três  pontos  essenciais:  em 
primeiro lugar diferencia‐se do trabalho realizado pelas ocupações que 
são  uma  especialização  mecânica,  sendo  então  uma  especialização 
criteriosa,  ou  seja,  que  demanda  um  estudo  especializado  e 
aprofundado  realizado  na  universidade.  Este  saber  é  abstrato, 
característica  que  compõe  o  segundo  elemento  do  profissionalismo  e 

                                                            
4  O  tipo  ideal  de  Freidson  é  distinto  daquele  concebido  por  Weber.  Neste  caso,  o  tipo 
ideal  se  constrói  em  um  conceito  mutável  a  partir  das  diferentes  variáveis  com  as 
quais se encontra como organização estatal e condições históricas e geográficas. 
5  Freidson  coloca  que  o  profissionalismo  concorre  com  outras  duas  formas  de 

organização  do  trabalho  em  nossa  sociedade:  a  lógica  de  mercado  e  a  lógica 
burocrática.  A  lógica  de  mercado  se  contrapõe  ao  profissionalismo  ao  criticar  seu 
caráter  monopolista  em  relação  ao  mercado  de  trabalho  e  o  credencialismo  ‐ 
obrigatoriedade de diploma. Desta forma, nesta lógica o treinamento dos ingressantes 
costuma acontecer no próprio ambiente de trabalho e seus membros são transitórios. 
Já a lógica burocrática compreende um Estado controlador e hierárquico, sendo uma 
organização ideologicamente embasada pela valorização do caráter administrativo e 
de eficiência. 

190
 
funciona como um mecanismo de reserva de mercado e construção de 
credenciais  –  os  diplomas,  terceiro  elemento  –  que  permitem  somente 
aos iniciados o ingresso nos grupos profissionais. 
As  carreiras  jurídicas  podem  ser  consideradas  profissões  por 
serem  concebidas  nestes  moldes.  Somente  indivíduos  com  o  título  de 
bacharel  em  direito  podem  fazer  parte  destas  instituições  que  ainda 
demandam  processos  de  seleção  individuais,  ou  seja,  provas  e 
concursos  especiais  para  que  os(as)  bacharéis  possam  se  tornar 
advogados(as),  juízes(as),  promotores(as)  de  justiça,  dentre  outros 
tantos  profissionais  do mundo  jurídico.  A  história  de  cada  uma  destas 
carreiras e a forma como constituíram sua autonomia e profissionalismo 
–  como  descrito  nos  moldes  de  Freidson  –  variam  entre  si,  existindo 
carreiras mais e outras menos consolidadas6. 
A hipótese, que é inclusive confirmada pelos dados, coloca que 
as carreiras mais antigas e prestigiadas são também as que possuem um 
menor  número  de  mulheres  e  menor  flexibilidade  para  o  crescimento 
quantitativo  de  seu  ingresso  como  também  sua  presença  nos  cargos 
mais altos. Em dados de 2010 (Benedito, 2011) na primeira instância da 
magistratura federal havia 37,01% de mulheres, número que sobe para 
46,15% na segunda instância. No caso do TJSP em primeira instância o 
número  é  próximo  do  TRF  com  36,70%  mulheres,  mas  cai 
dramaticamente para 3,98% na segunda instância. 
Como  colocado  em  Bonelli  (2011),  o  TJSP  é  uma  das  mais 
prestigiadas  instituições  jurídicas  do  país  e  que  mais  cedo  estabeleceu 
sua  autonomia  e  espaço  no  mundo  do  direito.  Com  uma  composição 
inicial  estritamente  masculina,  branca  e  elitizada,  estes  patamares 
permanecem  ainda  hoje  na  carreira  com  uma  criteriosa  seleção  de 
                                                            
6   A  legitimação  das  carreiras  frente  a  sociedade  também  se  compõe  por  um  processo 
mais  complexo  e  em  constante  transformação  que  ocorre  desde  o  surgimento  das 
carreiras aos dias atuais, havendo um constante diálogo entre as instituições e entre as 
instituições  e  a  sociedade.  A  definição  de  Andrew  Abbott  (apud  Rodrigues,  1997) 
sobre  o  profissionalismo  o  descreve  como  o  equilíbrio  de  um  sistema  sempre 
dinâmico  que  absorve  e  regula  transformações  internas  e  externas.  As  profissões 
detém o monopólio de um serviço prestado (por exemplo a medicina pelo cuidado da 
saúde humana) que Abbott descreve como jurisdição, disputas entre as profissões pelo 
monopólio  de  áreas  de  conhecimento  e  atuação.  Estas  disputas  ocorrem 
simultaneamente de forma intra e interprofissional (Rodrigues, 1997). 

191
 
membros.  Sua  capacidade  de  definição  dos  patamares  de  seleção  e 
promoção explicam a fraca presença feminina, em especial na segunda 
instância. 
Já  no  caso  da  magistratura  federal,  um  processo  histórico 
distinto com o impacto do executivo sobre ela – a extinguindo durante o 
governo Vargas, ressurgindo apenas durante a ditadura militar –, pelas 
novas  atribuições  e  transformações  a  partir  da  Constituição  de  1988  e 
um processo de seleção para a segunda instância não autônomo que se 
realiza conjuntamente ao executivo, transformam sua composição: 
 
“A  maior  feminização  na  segunda  instância  da  Justiça  Federal  tem 
então a ver com a sua menor autonomia de promoções e de controle de 
seus membros, resultado tanto de sua dependência do executivo para 
as  promoções  como  pela  sua  tardia  consolidação  como  profissão. 
Assim,  foi  mais  fácil  a  entrada  da  mulher  na  segunda  instância  da 
carreira pelo fato de a carreira ter se iniciado em um momento que as 
mulheres  estavam  começando  a  aumentar  de  número  nos  cursos  de 
graduação  e  intensificando  sua  entrada  no  mercado  de  trabalho”. 
(Benedito, 2011, p.55). 
 
Além  do  âmbito  quantitativo  da  feminização  das  carreiras 
jurídicas  é  possível,  a  partir  da  construção  teórica  de  Julia  Evetts, 
aprofundar  a  análise  sobre  as  construções  subjetivas  das  mulheres  no 
TJSP  e  na  Magistratura  Federal.  Para  Evetts  o  profissionalismo  se 
constitui  e  se  legitima  frente  a  sociedade  como  um  discurso  de 
competência  e  altruísmo,  delimitando  seu  espaço  como  detentor  do 
monopólio  daquele  saber  e  do  serviço  prestado.  Analisando  o  uso  do 
termo do profissionalismo no âmbito privado, a autora percebeu como 
este tem sido utilizado como disciplina7, definindo e moldando perfis e 
corpos desejáveis dentro das instituições. 
Sob a perspectiva foucaultiana, os corpos podem ser entendidos 
como resultados de um processo histórico e dinâmico que incide sobre 

                                                            
7  “O uso do discurso do profissionalismo em uma grande empresa privada de serviços, 
pela  gerência,  serve  para  orientar  identidades  de  trabalho,  condutas  e  práticas 
‘apropriadas’” (Evetts, 2006, p. 525). 

192
 
eles um efeito de poder8. Conjuntamente aos discursos do gênero, pode 
se considerar que as construções identitárias das magistradas articulam 
os discursos do profissionalismo com os de gênero que é entendido aqui 
a partir das contribuições de Judith Butler que foge de uma análise que 
parte do sexo natural onde se impõe uma história de gênero masculina 
e feminina e passa a compreendê‐lo como uma identidade construída e 
performática  em  que  “a  platéia  social  mundana,  incluindo  os  próprios 
atores,  passa  a  acreditar,  exercendo‐a  sob  a  forma  de  uma  crença” 
(Butler, 2003, p. 200). 
O  gênero  e  o  profissionalismo  se  encontram  na  construção  de 
uma  corporalidade  adequada  ao  mundo  jurídico.  A  ideia  é  de  que 
sendo profissões constituídas a partir do masculino, existe um processo 
de negociação da diferença que ora busca uma essencialização positiva 
de  atributos  naturalizados  como  femininos  ora  os  invisibiliza  e,  dessa 
forma,  as  posturas  reservadas  e  as  roupas  despidas  de  qualquer 
conotação  sexualizada  demonstram  um  processo  de  invisibilização  da 
diferença  enquanto  que  a  relevância  dada  às  qualidades  femininas  e  o 
ganho  das  carreiras  jurídicas  com  elas  realiza  uma  essencialização 
positiva.  
 
3. A inserção das mulheres no Poder Judiciário em Córdoba. 
 
3.1 O tratamento diferenciado 
 
A profissão jurídica foi um campo masculino até princípios do 
século  XX.  Apesar  das  dificuldades,  a  presença  das  mulheres  nesta 
profissão foi aumentando ao longo do século, sendo hoje significativa a 
percentagem  de  mulheres  tanto  ingressando  na  carreira  como  no 
exercício profissional (Kohen, 2005; Bergoglio, 2005). 

                                                            
8  A analítica do poder é um recurso teórico empenhado por Foucault que se distingue 
daquela denominada pelo autor como teoria do poder na qual este é proposto como 
soberano  e  fonte  da  dominação.  Na  analítica  do  poder,  não  sendo  concebido  como 
algo  que  possui  dono  ou  que  pode  ser  repassado,  que  possui  origem,  meio  e  fim, 
entendido a partir como relações que emergem historicamente em meio a negociações 
e  lutas  que  se expandem  pela  sociedade  como  regimes  de  verdade  que  constroem  e 
moldam os corpos (Foucault, 2003). 

193
 
O  ingresso  crescente  de  mulheres  no  poder  judiciário  da 
província  de  Córdoba  é  destacado  pelas  entrevistadas  como  um 
processo que era evidente já nos anos 80, e cujos obstáculos expressos as 
mulheres  deveriam  superar.  Havia  certas  resistências  quanto  ao 
ingresso  massivo  das  mulheres,  e  a  elas  eram  exigidos,  para  serem 
admitidas, maiores atributos em comparação com os homens. 
Uma  depoente  conta‐nos  que  algumas  vezes,  nos  escritórios 
jurídicos,  a  atacavam  por  se  mulher,  e  esclarece  que  nem  sequer  se 
costumava  dizer:  ʺsenhora  juízaʺ.  Apesar  de  seu  sexo,  a  estrutura  a 
identificava como um juiz – homem –, igualando‐a à retórica masculina 
e  conta,  inclusive,  que  isso  estava  estampado  no  próprio  carimbo  que 
ela utilizava: 
 
“Nas palavras escritas me atacavam por ser uma mulher, mas eu nunca lia 
essas coisas. Em outras palavras, diziam: ʺVocê, juiz, eu a rejeitoʺ. Porque 
nem  sequer  se  usava  ʺsenhora  juízaʺ.  Desde  85  que  eu  era  juiz,  eu  era 
ʺsenhor  juizʺ...  meu  carimbo  dizia:  ʺDoutora  ...ʺ  e  abaixo  dizia  ʺsenhor 
juizʺ, não dizia ʺsenhora juízaʺ oficialmente. Isso ninguém se lembra, mas 
eu o tenho muito presente” [Vogal, Civil e Comercial, PJ Córdoba]. 
 
Esta  situação  dá  conta  de  elementos  da  estrutura  ocupacional 
que formalmente impunham a forma masculina nas práticas de todos os 
agentes implicados na justiça, independentemente de seu gênero, já que 
tradicionalmente essa era uma profissão masculina. 
Outra  entrevistada,  que  foi  juíza  de  um  tribunal  de  foro 
múltiplo no interior de Córdoba, relatou como foi posta à prova por sua 
condição  de  mulher,  sobretudo  nos  casos  que  requeriam  a  atuação  da 
polícia: 
 
“Foi difícil minha tarefa porque, sobretudo quando eu tinha que lidar 
com a polícia, aí sim eu reconheço que tornavam a questão difícil pra 
mim.  Porque,  por  exemplo,  eu  tinha  uma  violação  e  desde  o  médico 
legista,  que  escrevia  os  relatórios  em  termos  vulgares...  Então  o  que 
eles queriam era... Ainda por cima, se eles me viam andando com um 
vestidinho  branco  nessa  época,  digamos...  era  como  um  desgaste,  um 
jogo de provocações, que queriam não sei... Eu sempre tive um caráter 
muito forte, não sou uma pessoa autoritária, mas eu sempre fui muito 
firme,  e  para  a  população  isso  lhes  oferecia  muita  segurança” 
[Múltiplo, Juiz Jurisdição, PJ Córdoba]. 

194
 
O tratamento dados às mulheres se assemelha ao analisado por 
Boigeol  (2005)  na  França.  A  investigadora  argumenta  que  lá,  um 
primeiro  acesso  das  mulheres  à  magistratura,  sobretudo  nos  postos 
mais  altos  do  poder  judiciário,  foi  entendido  como  um  atentado  ao 
modelo  tradicional  familiar  e  aos  atributos  constitutivos  da  profissão, 
bem  como  uma  concorrência  em  relação  à  qual  os  juízes  estavam 
plenamente  conscientes  de  sua  fragilidade.  Embora  todos  os  casos 
expostos  sejam  de  mulheres  com  mais  de  50  anos  de  idade,  também 
algumas  mais  jovens,  cuja  idade  gira  em  torno  dos  30  anos,  percebem 
que as mulheres continuam sofrendo algum preconceito de gênero em 
relação ao tratamento dado a elas por seus chefes. 
O  tratamento  diferenciado  dado  às  mulheres  também  foi 
observado  em  tribunais  federais  de  Córdoba,  e  uma  das  entrevistadas 
relatou como, no momento de investigar as causas de direitos humanos, 
foram subestimados por sua condição de mulheres, o que não significou 
que não persistiram com seu trabalho. 
 
3.2 Regime de trabalho e práticas que consolidam as marcas de gênero 
 
As  mulheres  destacam  que  a  administração  judiciária  tem  uma 
estrutura  profissional  que  lhes  permite  conciliar  as  exigências  do 
trabalho  com  as  da  vida  familiar,  algo  distinto  do  que  acontece  no 
campo do exercício da advocacia. Nos tribunais, as mulheres encontram 
um  horário  fixo  que  oscila  entre  6  a  8  horas  diárias,  conforme  sejam 
contratadas  ou  funcionárias  públicas,  respectivamente,  ademais  há 
regime de licenças, férias, o que incentiva a inserção das mulheres nesse 
campo. Assim o percebem as próprias entrevistadas: 
 
“As  empregadas  contratadas  que  começam  a  trabalhar  valorizam 
muito poder levar, digamos, adiante um projeto de família com filhos, 
gravidez,  com  um  horário  que  é  bastante  acessível  para  as  mulheres, 
porque as  duas  da  tarde as  contratadas  já  podem  ir  para  sua  casa  (as 
funcionárias  públicas,  as  4  da  tarde),  elas  tem  3  meses  de  licença 
maternidade, tem duas férias por ano, têm todo o mês de janeiro livre, 
oito dias úteis em julho, tem licença para amamentação, e também 20 
dias  ao  ano  por  adoecimento  familiar,  ou  seja,  tudo  isso  elas  tem,  e  é 

195
 
muito respeitado, se respeita muito a licença maternidade” [Juiz, Civil 
e Comercial, PJ Córdoba]. 
 
Mas,  embora  a  estrutura  ocupacional  da  administração 
judiciária  leve  a  que  as  mulheres  busquem  inserir‐se  neste  campo  de 
trabalho,  o  sistema  de  licenças  muitas  vezes  age  contra  elas,  já  que 
alguns juízes veem isso como um problema para o desenvolvimento do 
trabalho dos tribunais. 
 
“a  licença  maternidade  e  a  licença  amamentação  causam  um  impacto 
muito  grande  no  tribunal,  porque  não  se  cobrem  as  licença  de 
maternidade,  então  comigo  aconteceu,  por  exemplo,  no  final  do  ano 
passado, desde outubro e novembro até o começo de março deste ano, 
ter duas pessoas a menos para trabalhar... Isso é muito problemático e 
pode  levar,  indiretamente,  à  discriminação  de  juízes  que  não  querem 
empregar mulheres” [Juiz, civil e comercial, PJ Córdoba]. 
 
Por exemplo, esta mesma juíza conta o caso de uma empregada 
que  é  uma  mãe  solteira  com  um  filho,  que  não  conta  com  uma  rede 
social  familiar  em  Córdoba  porque  é  de  outra  província.  Ela  teve  que 
sair  de  um  tribunal  do  qual  pediu  transferência  porque  sua  chefa  se 
incomodava cada vez que ela faltava quando seu filho estava doente. 
Por outro lado, as entrevistadas notam que, em geral, os homens 
tendem  a  ser  cada  vez  menos  contratados;  observam  que,  como 
contratados, os homens são muito poucos. As mulheres que trabalham 
nos tribunais da província relatam que a pouca presença de homens faz 
com que, muitas vezes, eles sejam mais solicitados do que as mulheres, 
inclusive há casos em que são solicitados especificamente homens. 
 
“Há muitos tribunais civis onde toda a equipe, desde a secretária até o 
escrevente,  são  todas  mulheres.  Nós  aqui  temos  um  assistente‐
secretário  homem,  contratados  nós  temos  um  empregado  efetivo,  e 
dois estagiários homens... somos o tribunal que mais homens tem. Sei 
de  um  tribunal  no  qual  o  juiz  é  homem,  e  que  dizem,  extra‐
oficialmente, as pessoas têm dito que ele quer que seu tribunal venha a 
ser  integralmente  composto  por  homen”  [Juiz,  Civil  e  Comercial,  PJ 
Córdoba]. 
 

196
 
3.3 Diferenciação do trabalho por gênero 
 
A  segregação  horizontal  é  um  processo  que  tem  a  sua  história. 
Se rastreamos o que contam as mulheres que ingressaram em tribunais 
da  província  há  mais  de  20  anos,  observamos  que  havia  obstáculos 
explícitos  para  o  acesso  a  determinadas  foros.  Em  geral,  as  mulheres 
não eram nem admitidas nem desejadas no âmbito do direito penal ou 
do  trabalho,  essas  eram  matérias  reservadas  aos  homens.  Eram  muito 
poucas  as  que  entravam  ali.  Havia  uma  segregação  horizontal  que 
vedava às mulheres trabalhar no campo da justiça penal, o que por sua 
vez  incidia  em  uma  segregação  vertical,  como  se  deduz  da  citação 
acima. Assim, por seu gênero as mulheres eram excluídas dos âmbitos 
de trabalho considerados não adequados para elas. Um desses espaços 
eram os tribunais criminais, onde se exerce um poder muito importante, 
o  exercício  da  coerção  física  sobre  os  cidadãos.  As  justificativas 
apresentadas eram que ali não colocavam mulheres em função do tipo 
de  crimes  que  tratava,  principalmente  os  que  afetavam  a  integridade 
sexual.  Isto  significa  que  os  delitos  nos  quais  as  vítimas  geralmente 
eram  mulheres  ficavam  nas  mãos  dos  homens,  sob  sua  decisão,  sendo 
as mulheres excluídas desse âmbito do poder.  
Algumas  mulheres  que  ingressaram  em  foros  específicos  como 
civil ou de menores, enviadas a eles apesar de seu interesse por outros 
ramos,  em  geral  permaneceram  ali,  porque  começaram  a  se  interessar 
ou  a  gostar.  Além  do  mais,  ter  trajetória  num  mesmo  foro  é 
conveniente, já que é um antecedente pra ascender dentro dele. Embora 
hoje  não  haja  restrições  institucionais  para  que  as  mulheres  ingressem 
no  foro  penal,  a  percentagem  de  homens  neste  foro  ainda  é  maior, 
sobretudo  nos  cargos  de  magistrados  e  funcionários.  Este  limite 
explícito  que  existia,  já  não  existe  na  estrutura  institucional,  inclusive 
quando há vagas no foro penal é muito possível que elas as ocupem. Os 
concursos para ingressar na polícia judiciária têm permitido e permitem 
que  muitas  mulheres  entrem  nesse  setor.  Todavia,  as  entrevistadas 
apontam  que  trabalhar  na  penal  continua  sendo  mais  difícil  para  as 
mulheres em função das condições de trabalho e, em alguns casos, isso 
implica que as mulheres peçam transferência para outras jurisdições. 

197
 
Como  vemos  hoje,  as  mulheres  participam  cada  vez  mais  em 
foros  tradicionalmente  masculinos.  Mas  se  observa  ainda  uma 
segregação  horizontal  acentuada  entre  os  âmbitos  de  civil  e  comercial 
por um lado, e penal de outro. Os tribunais do trabalho, embora tenham 
sido  um  espaço  de  acesso  restrito  para  as  mulheres,  hoje  são  um  foro 
que se destaca pela forte presença delas. 
Outra questão que surge no relato das entrevistadas se refere à 
diversidade  de  condições  de  trabalho  que  existem  nos  diferentes  foros 
dentro  dos  tribunais.  Ao  comparar  os  foros  de  civil  com  os  de  penal, 
observam  que  os  de  civil  são  mais  precários  e  hostis  a  elas  que  os  de 
penal. 
 
“as condições de trabalho na civil são muito duras, porque a carga de 
trabalho é significativamente mais pesada que em qualquer outro foro, 
é  impressionante  a  quantidade  de  causas  que  se  movem  por  dia,  é 
necessário  um  trabalho  muito  mais  dedicado,  as  condições  de 
infraestrutura  dos  tribunais  civis  são  espantosas  em  relação  aos 
tribunais  penais,  que  têm  muita  comodidade,  tem  ar  condicionado, 
cada funcionário tem um computador, um telefone, um escritório, um 
espaço  próprio  que  aqui  não  tem...  aqui  às  vezes  não  tem  um  lugar 
onde  colocar  um  estagiário,  aqui  todo  mundo  fica  amontoado,  eu 
tenho um escritório muito pequeno, às vezes juízes têm um escritório 
maior, ás vezes tem dois funcionários trabalhando no escritório do juiz 
porque não tem espaço” [Juiz, Civil e Comercial, PJ Córdoba]. 
 
Por  outro  lado,  o  tratamento  entre  empregados  e  advogados  é 
muito diferente na civil e na penal. Alguns entrevistados apontam como 
isso parece influenciar os funcionários do sexo masculino, que preferem 
migrar para a penal, por exemplo, porque não suportam os maus tratos, 
enquanto as mulheres tendem a ficar. 
Ademais encontramos os típicos argumentos que apontam para 
a  inserção  diferenciada  de  homens  e  mulheres  dentro  do  poder 
judiciário  em  função  de  uma  questão  de  afinidades  distintas,  quase 
natural  entre  os  sexos.  Essa  afinidade  é  expressa  por  outra  das 
entrevistadas que, embora observe que as mulheres hoje estão em todos 
os  âmbitos  do  poder  judiciário,  em  sua  opinião  a  penal  é  para  os 

198
 
homens, já que as mulheres, por sua sensibilidade costumam ficar mais 
expostas nesse lugar. 
Também  nos  tribunais  federais  de  Córdoba  a  diferenciação  por 
foro  persiste,  embora  sua  marca  não  seja  tão  profunda  como  era  há 
vinte anos atrás. Uma das entrevistadas conta o caso específico de sua 
corte,  onde  a  juíza  é  mulher,  o  que  permitiu  que  as  mulheres 
ingressassem  no  tribunal  e  estivessem  claramente  representadas  em 
todos os foros. 
 
“desde quando eu entrei já eram todas mulheres na Civil e, em Penal 
eram  todos  homens,  há  20  anos.  E  em  alguns  tribunais  isso  têm  se 
mantido,  ou  têm  ingressado  mulheres  mas  continua  tendo  mais 
homens que mulheres. Agora, em um fórum, a partir do momento que 
a juíza é mulher, que é desde... de 91, ou seja... bem, aí se tem invertido 
e  cada  vez  mais  mulheres  são  empregadas.  Aqui  na  Secretaria  Penal 
predominam  mulheres  e  em  todo  o  fórum  predominam  mulheres” 
[Secretaria Criminal, Tribunal Federal, Córdoba]. 
 
Como sucede nos tribunais provinciais, aponta que as condições 
de trabalho na penal podem incidir numa maior presença de homens, já 
que requer mais dedicação ou disponibilidade de tempo. Mas, para elas, 
as diferenças de gênero em penal não se expressam como nos juizados 
provinciais em função do tipo de delitos que tratam. 
 
“Sim, mas na parte federal nem tanto. Talvez a questão de existir mais 
homens  na  penal  seja  porque  eles  têm  que  trabalhar  no  período  da 
tarde,  às  vezes,  na  penal.  Porque  na  província,  na  penal,  chegam 
alguns assuntos, alguns crimes, que a mulher mesmo trata de... evitar. 
Veja, por exemplo, estupros, homicídios, você tem todos esses arquivos 
com  fotos,  e muitas  mulheres  por aí  dizem...  Não,  não  tenho  vontade 
de  me  meter  a  investigar  esse  tipo  de  coisa,  ou  lidar  com  a  polícia  e 
tudo  isso,  que  é  bem...  por  isso  que  as  mulheres  tratam  de,  de  se 
afastar. Aqui já não é tão duro, porque as causas que nós temos são por 
drogas, vem os consumidores, não, não é... ou fraudes contra o Estado 
nacional, ou por... adulteração de documentos...” [Secretaria Criminal, 
Tribunal Federal, Córdoba]. 
 
 
 
 

199
 
3.4 Diferenciação de gênero nos níveis de ocupação 
 
A  distribuição  por  gênero  nos  diferentes  níveis  do  sistema 
judiciário  é  observada  pelas  entrevistadas,  embora  nem  todas  o 
percebam  como  um  processo  produtor  de  desigualdades.  O  caso  a 
seguir  põe  em  manifesto  a  diferenciação  por  gênero  em  termos  de 
níveis de ocupação: 
 
“Agora,  o  que  eu  posso  te  dizer,  o  que  eu  percebo,  por  exemplo,  nos 
foros  civis,  há  tribunais  que  têm  maioria  de  empregadas  mulheres, 
poucos  homens,  mas  há  homens...  há  uma  maioria  de  mulheres 
empregadas, mas a nível de decisão, digamos, no nível hierárquico há 
mais  homens  do  que  mulheres.  Ou  tantos  homens  quanto  mulheres. 
Ou seja, também poderíamos interpretar que nas posições de decisão e 
de  responsabilidade  existem  mais  possibilidades  para  os  homens  do 
que para as mulheres, porque não se mantém o mesmo percentual das 
categorias  mais  baixas  nas  mais  elevadas”  [Juiz,  Civil  e  comercial,  PJ 
Córdoba]. 
 
Por outro lado, o grau de segregação vertical tem relação com o 
tipo  de  foro,  o  que  quer  dizer  que  se  intersecta  com  a  segregação 
horizontal.  Assim,  na  esfera  penal,  são  muito  poucas  as  mulheres 
ocupando  o  lugar  de  representantes  de  Câmara,  enquanto  que  uma 
representante do foro de família observa o contrário em seu campo: 
 
“Mas  veja  nas  câmaras  como  está  equiparado,  nesta  câmara  são  duas 
mulheres e um homem, e na câmara superior são dois homens e uma 
mulher. E nos tribunais não, nos tribunais há mais mulheres, havia um 
homem  que  se  foi,  e  agora  vem  outro  e  o  outro  que  estava  era  meu 
companheiro.  Mas  se  nos  Tribunais  de  Família  há  uma  marcada 
predominância  feminina,  o  notável  é  que  nas  câmaras  estamos 
empatados” [Família, Vogal, PJ P. J. Córdoba]. 
 
As  mulheres  que  dizem  não  perceber  segregação  vertical 
costumam citar quase sempre o caso de mulheres que hoje são membros 
do  Tribunal  Superior  de  Justiça  como  um  paradigma  da  igualdade  e 
prova do acesso das mulheres aos postos mais altos do poder judiciário. 
O  acesso  das  mulheres  aos  tribunais  superiores  é  uma  imagem  forte, 

200
 
que  impõe  uma  percepção  de  igualdade  para  todos  os  escalões  do 
poder judiciário, quando na realidade isso não ocorre, já que persistem 
os processos de segregação vertical. 
Se  tomarmos  a  profissão  jurídica  como  um  todo,  na  qual  se 
distinguem dois âmbitos – o poder judiciário, por um lado, e o exercício 
da  profissão,  de  outro  –  observamos  que  a  retórica  –  ligada  ao  poder 
simbólico  de  definir  as  coisas  –  tem  força  na  definição  dos  locais  de 
trabalho que por um lado devem ocupar as mulheres e que, por outro, 
elas  decidem  ocupar,  que  são  sobretudo  lugares  compatíveis  com  a 
divisão  sexual  do  trabalho.  Nesse  sentido  os  tribunais  se  apresentam 
como  um  campo  de  trabalho  específico  desta  retórica,  cada  vez  mais 
acessíveis através do sistema de concursos, como é o caso dos tribunais 
de Córdoba. É muito destacado o discurso de que as mulheres vão para 
o  Judiciário  porque  deste  modo  lhes  é  possível  ter  uma  família.  Isso 
mostra  a  persistência  da  tradicional  divisão  sexual  do  trabalho  que 
repercute  tanto  na  construção  da  identidade  profissional  e  de  gênero 
das mulheres como na estrutura da divisão dual do trabalho jurídico. 
 Seguimos  notando  os  processos  de  diferenciação  que,  apesar 
das  mudanças,  tornam  a  se  reproduzir.  Hoje,  embora  nos  campos  do 
poder  judiciário  e  penal  haja  mais  mulheres,  não  significa  que  a 
diferenciação  se  desvaneça  em  prol  da  equidade,  mas  que  há  novos 
processos de diferenciação. Consequentemente, o Judiciário se feminiza, 
e ademais o peso recai sobre as mulheres, já que os homens começam a 
ganhar  vantagens  por  serem  cada  vez  mais  escassos  e,  em 
consequência, mais solicitados dentro do espaço dos tribunais. 
O  profissional  se  identifica  com  a  abstração,  a  igualdade  e 
neutralidade  no  campo  do  trabalho  sem  aperceber‐se  dos  vieses  de 
gênero  que  se  evidenciam  nos  dados  quantitativos  que  enfatizam  a 
segregação.  Este  viés  de  gênero  mostra  que  a  direção  que  homens  e 
mulheres  dão  a  suas  carreiras  profissionais  e  a  seus  interesses  e 
compromissos  profissionais  está  condicionada  pela  divisão  sexual  do 
trabalho, tanto no âmbito da profissional como da vida privada. 
Em  uma  sociedade  na  qual  se  põe  ênfase  no  indivíduo,  mas 
onde  as  transformações  econômicas  estruturam  o  mundo  do  trabalho, 
as  estratégias  dos  agentes  assumem  diferentes  expressões.  Temos  hoje 
uma  profissão  jurídica  que  está  incorporada  no  mundo  do  trabalho 

201
 
mais  amplo  no  qual  se  registra  uma  desigualdade  de  gênero  nos 
rendimentos auferidos, ademais do impacto negativo que as condições 
informais  de  trabalho  têm  sobre  as  mulheres,  e  o  campo  da  profissão 
não  é  alheio  a  essas  vicissitudes.  Especificamente,  tanto  as  mudanças 
estruturais da economia como as reformas do poder judiciário ocorridas 
nas últimas décadas implicaram uma reorganização do trabalho jurídico 
(Bergoglio, 2005). O impacto dessas mudanças significou o progressivo 
assalariamento  da  profissão  e,  nesse  sentido,  muitos  profissionais  são 
absorvidos  pela  administração  judiciária,  e  muitos  outros  pelas 
empresas  jurídicas  (Bergoglio,  2005;  Sanchez,  2005).  Neste  contexto,  as 
mulheres  valorizam,  no  momento  de  tomar  decisões  chaves  em  sua 
carreira, a necessidade de segurança e a importância de um salário fixo 
ou  de  licenças  que  sejam  respeitadas.  Estas  escolhas  impactam 
diferencialmente  sobre  as  mulheres:  aquelas  incorporadas  pela  justiça 
destacam  a  importância  do  salário  fixo,  enquanto  que  no  campo  do 
exercício  da  profissão  afirma‐se  que  os  rendimentos  podem  ser  muito 
mais altos.  
 
4.  A  percepção  do  gênero  entre  juízas  estaduais  e  juízas  federais  no 
interior do estado de São Paulo 
 
Para  a  análise  das  percepções  subjetivas  por  parte  das 
operadoras  do  direito  brasileiras,  foram  selecionadas  entrevistas  com 
magistradas no interior de São Paulo. Os depoimentos são de três juízas 
federais (TRF3), Ana Alice, Mariana e Carolina e duas juízas estaduais 
do  TJSP,  Juliana  e  Marcela.  As  magistradas  atuam  nos  municípios  de 
Laranjeiras,  Rio  das  Pedras  e  Água  Vermelha,  todos  localizados  na 
região central do estado9. As entrevistas se focaram na percepção destas 
magistradas  sobre  a  participação  das  mulheres  nas  carreiras  e  nas 
principais barreiras que estas podem vir a enfrentar por serem mulheres 
e ocuparem uma posição de poder e prestígio. Nas respostas é possível 
observar:  o  impacto  da  maternidade  e  dos  cuidados  com  a  família  na 
articulação  entre  a  vida  pessoal  e  a  vida  profissional,  a  separação  do 

                                                            
9   Com  o  compromisso  de  manter  a  identidade  das  entrevistadas  preservadas,  seus 
nomes e os nomes das cidades são fictícios. 

202
 
preconceito  sofrido  pelas  mulheres  na  carreira  do  que  ocorre  na 
sociedade  como  um  todo  e  a  essencialização  de  características 
masculinas e femininas que afloram na atuação profissional. 
Das  cinco  entrevistadas  três  são  mães,  porém  a  maternidade 
aparece na fala de todas como a principal dificuldade enfrentada pelas 
mulheres  na  magistratura.  Nos  discursos  é  possível  resgatar  esta 
questão a partir de três falas: a primeira que se coloca a partir da intensa 
tarefa  em  articular  as  longas  jornadas  de  trabalho  com  o  cuidado  da 
família,  a  segunda  que  resgata  a  necessidade  de  uma  vida  social  mais 
restrita e, por fim, o impacto da maternidade como um empecilho que 
dificulta promoções e o aprofundamento dos estudos.  
Ana Alice é juíza federal e na época da entrevista estava com 44 
anos, é mãe de duas filhas e sua primeira formação é como engenheira. 
Para  ela,  articular  trabalho,  maternidade  e  estudos  foi  sem  dúvida  seu 
maior enfrentamento como magistrada e atualmente com doutorado na 
área  do  direito,  um  livro  publicado  e  a  consequente  estabilidade 
profissional,  cumpriu  grande  parte  de  suas  expectativas,  mas  ainda 
assim entende como o maior impedimento à ascensão na magistratura a 
maternidade: 
 
“Chega  um  determinado  nível,  vamos  dizer,  quando  você  já  é  juiz 
titular,  as  perspectivas  são  um  pouco  limitadas,  porque  o  acesso  aos 
Tribunais  é  bem  difícil,  tem  o  componente  de  certa  forma  político,  e 
também  tem  que  conciliar  o  trabalho  com  a  ascensão  profissional,  de 
modo que tudo isso é muito dificultoso no dia a dia, porque se você se 
concentra  no  trabalho  e  na  família,  de  uma  certa  forma,  sobra  pouco 
tempo  para  você,  vamos  dizer,  se  dedicar  a  algumas  atividades  que 
talvez sejam necessárias para você subir na carreira, como fazer outros 
cursos  que  isso  seria  interessante,  só  que  não  há  tempo  muitas  vezes 
suficiente  para  tudo  isso”  [Entrevista  com  Ana  Alice,  magistrada 
federal]. 
 
Juliana  é  uma  magistrada  estadual  que  desde  a  infância,  por 
influência  do  pai  também  juiz  do  TJSP,  sonhava  em  ser  juíza  e,  para 
tanto,  organizou  toda  a  sua  vida  em  direção  ao  direito  e  mais 
especificamente  ao  tribunal.  Atualmente  com  42  anos,  é  juíza  cível, 
diretora  do  fórum  e  mãe  de  um  garoto  de  dois  anos,  o  que  torna  sua 

203
 
vida  bastante  atribulada.  Sobre  a  questão  das  dificuldades  na  carreira, 
aponta a maternidade da seguinte forma: 
 
“Eu  tenho  um  filho  pequeno,  até  retardei  muito  a  minha,  o  meu 
ingresso na vida materna, por conta da profissão, né? Depois de quinze 
anos  de  magistratura  que  eu  tomei  coragem  e  engravidei,  até  porque 
havia  uma  questão  biológica  na  minha  vida...  eu  tava  com  quarenta 
anos  e  eu  não  tinha  mais  tempo  para  retardar  a  maternidade  (...).  A 
gente, mulher ainda, a questão complica bastante... você é profissional, 
você  é  mãe,  você  é  esposa,  você  tem  funcionários  para  administrar, 
você tem uma casa pra administrar, por mais que você tenha pessoas 
que te ajudem o encargo fica todo sobre a gente, né?” [Entrevista com 
Juliana, magistrada estadual]. 
 
Da  mesma  forma  esta  questão  aparece  no  depoimento  de 
Marcela,  magistrada  estadual  e  mãe  de  dois  filhos.  A  maternidade  é 
também colocada como um trabalho a mais e especialmente feminino: 
 
“Dentro  da  carreira  em  si,  dentro  da  magistratura  em  si,  eu  nunca 
enfrentei nenhuma dificuldade pelo fato de ser mulher, eu acho que a 
condição  de  mulher  nos  traz  dificuldades  em  relação  à administração 
do  seu  tempo  pessoal,  que  eu  vejo  os  colegas  homens,  eles  muitas 
vezes  deixam  toda  a  administração  doméstica  e  os  cuidados  com  os 
filhos  exclusivamente  com  a  esposa,  e  por  mais  que  o  meu  marido 
divida comigo todas essas atribuições, muitas vezes as crianças até por 
um apego decorrente da gestação, da amamentação, eles querem muito 
mais a mãe do que o pai, a criança muitas vezes quando chora quer a 
mãe e tudo isso traz uma sobrecarga pessoal significativa” [Entrevista 
com Marcela, magistrada estadual]. 
 
Carolina, na época recém ingressa na magistratura federal e com 
apenas  29  anos,  era  casada  e  não  tinha  filhos,  uma  escolha  tomada 
justamente  pela  dificuldade  de  articular  a  maternidade  com  a  longa 
jornada de estudos para o ingresso no judiciário e depois por conta da 
alta movimentação dos recém‐ingressos:  
 
“...  quanto  mais  qualificada  é  a  mulher  mais  difícil  fica  para  ela  ter 
filhos,  principalmente  antes  dos  trinta  anos,  mas  do  meu  concurso  só 

204
 
tem  uma  mulher  com  filhos,  tem  uma  outra  que  engravidou  agora  o 
bebê  nasce  acho  que  até  agora  novembro,  dezembro,  mas  a  maioria 
acaba  tendo  filhos  mais  tarde.  A  dificuldade  para  entrar  na  carreira  é 
um  dos  fatores,  não  existe,  é  muito  complicado  estudar  o  necessário 
para  passar  e  ficar  grávida  ou  cuidar  de  uma  criança,  isso  é  muito 
complicado. O fato de ter que mudar, ou seja, você vai, tem gente que 
foi  para  Ponta  Porã,  para  Corumbá,  para  Dourados,  para  Jales  e  a 
família  não.  Então  isso  é  uma  outra  dificuldade,  mas  não  é  um  fator 
impeditivo,  no  máximo  o  projeto  fica  um  pouco  adiado”  [Entrevista 
com Carolina, magistrada federal]. 
 
Para  Mariana,  que  é  divorciada,  a  maternidade  aparece  como 
uma  escolha  delicada.  Escolheu  não  ter  filhos  e  pesando  diversos 
fatores concluiu ter tomado a melhor decisão. 
Nos  estudos  que  relacionam  trabalho  e  gênero  no  Brasil  e 
internacionalmente,  a  relação  entre  o  papel  social  da  mulher  sobre  os 
cuidados  da  família  e  a  consequente  pressão  no  ambiente  de  trabalho 
são postos em análise. Hochschild  (apud Bonelli, 2004) mostra como as 
mulheres  sofrem  não  uma  dupla  jornada  de  trabalho  na  casa  e  no 
trabalho,  mas  tripla.  A  primeira  jornada  de  trabalho  seria  aquela 
realizada no escritório em que deve haver uma dedicação máxima para 
a realização de um serviço bem feito, a segunda seria feita em casa onde 
se deve demonstrar ser uma boa mãe, esposa e dona‐de‐casa enquanto a 
terceira e última jornada de trabalho se compõe pelo trabalho emocional 
que conecta subjetivamente as duas primeiras e constrói um sentimento 
de satisfação. 
 
“O  trabalho  das  emoções  feito  principalmente  pela  mulher  para  lidar 
com  a  dupla  jornada  de  trabalho,  e  o  custo  emocional  que  ele 
representa  tanto  na  negação  do  problema  quanto  nas  separações 
conjugais que causam, tornam‐se uma terceira jornada de trabalho na 
vida cotidiana” (Bonelli, 2004, p. 362). 
 
O  controle  da  vida  pessoal  pelas  magistradas  se  intercala  com 
estas  questões  indo  até  a  necessidade  de  uma  vida  menos 
movimentada.  Isso  se  relaciona  tanto  com  a  necessidade  da  própria 

205
 
carreira  que  as  coloca  no  patamar  de  figuras  públicas10  como  pelos 
compromissos da maternidade.  
 
“Quando  meu  filho  dorme  é  onze  horas  da  noite  e  eu  tô  morta  e  eu 
quero  dormir  (risos)  e  aqui  no  fórum  não  dá  tempo  de  nada  a  gente 
realmente  é  uma  constante,  a  gente  observa  que  a  maioria  dos  juízes 
não  tem,  não  conseguem  ter  uma  vida  social  muito  intensa  e  é  assim 
comigo também” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual]. 
 
O profissionalismo como um discurso, no sentido de Evetts, serve 
para analisar como condutas e corpos são moldados nas instituições. Isso 
se inicia desde os bancos escolares, se aprofunda nos processos de seleção 
que separam os adequados daqueles que não o são, vai até o cotidiano do 
trabalho  com  as  demandas  sobre  posturas  sóbrias,  atitude  reservada  e 
vestimentas  formais.  As  origens  do  judiciário  como  homogeneamente 
branco,  masculino  e  de  elite  repercute  até  os  dias  atuais  com  uma 
presença  feminina  de  origens  privilegiadas  –  como  é  o  caso  das 
entrevistadas  –  e  as  roupas  que  excluem  qualquer  possibilidade  de 
sensualidade desloca seus corpos para o âmbito masculino. 
Como operadoras do direito são sujeitos ativos e as vestimentas 
sóbrias  que  encobrem  os  corpos  a  partir  do  corte  “correto”  das  saias e 
dos  decotes  conservadores  e  dos  tecidos  sem  transparências  e  largos  o 
suficiente  para  não  marcarem  os  corpos  realizam  esse  deslizamento 
entre  o  passivo  e  o  ativo.  Como  Butler  coloca,  o  gênero  existe  em  sua 
corporalidade pela performance, sendo possível se observar nos corpos 
como  as  negociações  da  presença  feminina  nas  carreiras  jurídicas 
ocorrem. 
Além  dessas  questões  ainda  existem  processos  de 
essencialização positiva de características naturalizadas como femininas 
como é possível ver nos seguintes depoimentos: 
 
“...acho  que  nessa  carreira  não  tem  diferença  entre  homem  ou  a 
mulher.  Tem  que  ter  esse  perfil  de  isolamento,  de  gostar  de  leitura,  e 
ficar  sozinho,  muito  tempo  de  concentração  lendo,  não  sei  se  isso  é 
                                                            
10  O discurso é de que ao fazerem parte do judiciário tornam‐se algo como modelos de 
conduta tanto pelo respeito à instituição da qual fazem parte como pela posição que 
ocupam de julgar sobre a lei. 

206
 
uma  característica  que  predomina  em  mulheres,  talvez  outras 
características  não  existam  tanto  em  mulher...  essa  coisa  da 
agressividade  policial  de  investigar,  mas  é  mais  fácil  encontrar 
indivíduos  que  tenham  esse  perfil,  homens,  mas  aqui  não  sei  se  mais 
mulheres gostam disso, eu acho que tanto faz se é homem ou mulher 
não dá diferença nenhuma” [Entrevista com Mariana, magistrada]. 
 
“Na  verdade  a  gente  ouve  muito  elogio  até,  falando  que  as  mulheres 
que  são  da  magistratura,  elas  são  mais  humanas,  elas  são  mais 
cuidadosas,  são  bem  mais  cautelosas,  mais  decididas,  a  gente  sempre 
ouve  isso,  pelo  menos  eu  sempre  ouço  isso  como  um  elogio  e  nunca 
senti  preconceito  e  assim nunca  eu  acho  que às  vezes  o  preconceito  a 
gente  que  cria  do  outro  para  com  você  né?  Eu  acho  que  tem  muito 
disso, uma coisa que eu não fico puxando “Ah, então é porque eu sou 
mulher,  por  isso  que  o  senhor  não  gostou  da  minha  sentença?” 
Entendeu?  Sabe,  não  tinha  isso  na  cabeça,  então  eu  nunca  senti 
diferença. Eu acho... que a gente também não é homem, mas eu sempre 
recebi assim, muitos elogios, dos advogados e, hoje o universo tá muito 
feminino  e  então  é,  bastante  comum  ter  uma  juíza,  duas advogadas e 
às  vezes  duas  mulheres  como  parte,  então  hoje  tá  muito  comum  isso 
já” [Entrevista com Juliana, magistrada estadual]. 
 
“Eu  acredito  que  a  sensibilidade  feminina  realmente  a  diferencia  do 
trabalho,  eu  vejo  que  os  homens  na  carreira  jurídica  eles  entendem, 
tomam  decisões  e  atuam  de  uma  forma  muito  mais  fria  e  prática  do 
que  a  mulher,  resolvendo  aquele  problema  que  se  propõe  naquele 
momento, isso a maioria, enquanto que a mulher muitas vezes procura 
ver  o  que  tem  por  trás,  principalmente  nas  questões  de  família” 
[Entrevista com Marcela, magistrada estadual]. 
 
Para finalizar, outra fala que se repete é sobre a não existência de 
qualquer  tipo  de  preconceito  dentro  das  instituições,  a  partir  do 
argumento de ser uma instituição intelectualizada que demanda de seus 
membros o nível universitário. Sobre isso a seguinte fala é um exemplo: 
 
“...  acho  muito  proveitosa  que  seja  objeto  de  estudo  todo  esse 
desenvolvimento da mulher na carreira [no caso as carreiras jurídicas] 
porque, embora eu acredite que, que nem eu disse, que não é objeto de 
preconceito  o  trabalho  da  mulher  na  carreira  jurídica,  eu  acredito 

207
 
também que isso não exista na maior parte das outras áreas, a mulher 
ainda  hoje  é  vítima  de  muito  preconceito  na  sociedade  (...)  tudo  isso 
demonstra  o  quanto  nossa  sociedade  ainda  precisa  se  desenvolver 
muito,  para  oferecer  a  mulher  a  dignidade  que  merece  na  sociedade” 
[Entrevista com Marcela, magistrada estadual]. 
 
Deve  se  levar  em  consideração  como  a  participação  das 
mulheres nas carreiras jurídicas é sutilmente negociada no cotidiano do 
fórum  de  justiça  e  na  vida  pessoal  e  profissional  dos  membros  destas 
carreiras.  A  palavra  sutil  é  aqui  utilizada,  pois  remete  ao  fato  de  as 
percepções de gênero, da participação feminina, da existência ou não de 
preconceitos e mesmo na definição do que significa ser um bom ou uma 
boa  profissional  estão  profundamente  entrelaçadas  com  ideias 
naturalizadas sobre quem são os homens e quem são as mulheres, o que 
fazem, como sentem e como trabalham. 
A presença feminina pode ser tanto vista como um ganho para o 
mundo  jurídico  a  partir  de  uma  essencialização  positiva  de 
características  femininas  dadas  como  naturais  como  também  pode  ser 
apagada a partir dos trajes escolhidos que escondem qualquer sinal de 
passividade,  fragilidade  ou  sexo,  que  se  encontram  culturalmente 
imbricados  ao  feminino.  O  discurso  do  profissionalismo  permeia  estas 
negociações  construindo  e  negociando,  constantemente,  performances 
de gênero e construindo subjetividades que remetem ao sucesso e que, 
por conta de uma origem exclusivamente masculina, acabam por serem 
constituídas  a  partir  de  características  também  tipicamente  colocadas 
como masculinas, como a força e a capacidade de decisão. 
 
“Então  você  ser  uma  boa  juíza  sem  deixar  de  ser  mulher,  porque  a 
questão  é  essa,  vamos  dizer,  não  confundir  os  papeis,  porque  na 
verdade  um  papel  é  um  papel  profissional  com  o  outro  lado  seu 
pessoal,  e  há  quem  confunda  ou  que  exagere  muitas  vezes.  Então 
tradicionalmente talvez uma vocação mais masculina. Acho que assim, 
nesse  sentido  sim,  porque  justamente  o  homem  que  está  mais 
acostumado  a  tomar  certas  decisões  que  causam  impacto,  ou  que  ele 
mesmo decide do modo dele, enfim, então essa dificuldade ela existe, 
não vou dizer que não exista, mas você se acostuma a lidar com isso, 
você se acostuma a decidir, a ter que tomar decisão, muitas vezes que 

208
 
contraria  interesses.  Então  você  sabe  que  não  dá  para  agradar  todo 
mundo,  então  é  uma  questão  também  de  costume,  de  experiência” 
[Entrevista com Ana Alice, magistrada federal]. 
 
Em  seu  trabalho  sobre  as  mulheres  nos  esportes  equestres, 
Miriam  Adelman  (2011)  se  depara  com  uma  situação  semelhante  em 
que  mulheres  passam  a  integrar  esportes  de  origens  exclusivamente 
masculinas,  nos  quais  o  sucesso  se  baseia  em  características  como  a 
força  e  o  vigor  físico.  Como  coloca  no  texto,  a  partir  da  revisão 
bibliográfica sobre o tema e sua articulação com o objeto de pesquisa, “a 
atividade  esportiva  feminina  era  inicialmente  terreno  para  a  expressão 
de  sujeitos  femininos  rebeldes  e  desobedientes”  (Adelman,  p.  936), 
demonstrando  o  impacto  da  chegada  de  sujeitos  vistos  culturalmente 
como  frágeis,  delicados  em  um  mundo  onde  a  força  e  mesmo  a 
agressividade são dados como necessários. 
Utilizando‐se do conceito de Sedgwick (apud Adelman, 2011) de 
homossociabilidade,  a  autora  coloca  como  as  identidades  são  negociadas 
em contextos de sociabilidade masculina. Intercalado a esses espaços de 
sociabilidade  vêm  a  tona  noções  arraigadas  de  feminilidade 
relacionadas  ao  frágil  e  aos  cuidados  do  lar  que  afastam  as  mulheres 
destes  espaços,  vistos  como  incompatíveis  com  suas  naturezas.  A 
sociabilidade  nestes  esportes  é  permeada  por  formas  de  interação 
masculinas em que existe certa dificuldade e uma constante necessidade 
de prova das mulheres que pretendem fazer parte deste circuito.  
No caso das mulheres nas carreiras jurídicas públicas o impacto 
de  sua  presença  no  direito  já  parece  ter  passado  deste  estágio  inicial, 
que  é  possível  ser  analisado  como  tendo  ocorrido  ainda  no  século  XX. 
Porém, atualmente, ainda é possível perceber como a presença feminina 
é  ainda  motivo  de  conflitos  e  necessita  ser  interpretada  e  negociada 
pelos  membros  das  instituições,  tanto  homens  como  mulheres.  Além 
das  manifestações  discursivas  é  possível  perceber  como  os  trajes 
funcionam  como  uma  ferramenta  subjetiva  assim  como  também  a 
essencialização  positiva  que  busca  adequar  as  mulheres  ao  que  se 
compõe como uma atuação profissional de excelência.  
 
 

209
 
5. Considerações finais 
 
As  abordagens  teórico‐metodológicas  escolhidas  pelas 
pesquisadoras  para  a  análise  dos  dois  contextos  –  o  argentino  e  o 
brasileiro  –  são  entre  si  distintas  mas  é  possível  ainda  assim  perceber 
aproximações  entre  os  dois  trabalhos.  Nos  dois  casos  a  questão  da 
maternidade  e  dos  cuidados  da  família  aparece  como  um  dado  de 
grande relevância sobre a participação da mulher nas carreiras jurídicas. 
Culturalmente associadas aos cuidados domésticos, como profissionais 
no  direito  acabam  por  acumular  o  trabalho  profissional  com  aquele 
realizado  em  casa.  Tanto  no  caso  do  Brasil  como  no  da  Argentina,  as 
carreiras  públicas  aparecem  como  uma  escolha  empregatícia  mais 
adequada  àquelas  que  buscam  constituir  família  por  se  estabelecer  em 
horários determinados e pela possibilidade de licenças. 
No caso da segregação horizontal, observou‐se em Córdoba que, 
até cerca de vinte anos atrás, determinados espaços de trabalho estavam 
restringidos  e  outros  eram  criados  para  as  mulheres,  por  decisões 
provenientes da própria instituição do poder judiciário. Atualmente, se 
registra  maior  participação  das  mulheres  em  matérias  que  eram 
tradicionalmente  masculinas,  ainda  que  subsista  marcada  segregação 
horizontal  entre  os  âmbitos  de  civil  e  comercial,  por  um  lado,  e  penal 
por  outro.  Embora  possam  aceder  aos  espaços  vinculados  à 
administração  de  penas,  ainda  se  evidenciam  alguns  obstáculos  que 
incidem no desempenho das mulheres nestes espaços. Já no trabalho de 
Benedito  no  Brasil  esta  questão  não  aparece  com  grande  visibilidade 
principalmente  por  conta  do  foco  escolhido  para  as  entrevistas  com 
magistradas da justiça federal e da justiça estadual. Talvez se houvesse 
uma  pesquisa  no  caso  da  advocacia  a  situação  poderia  ter  sido 
diferente. 
No  caso  da  segregação  vertical,  o  trabalho  de  Benedito 
demonstra uma inequidade bastante dramática no número de homens e 
mulheres nos níveis mais altos das magistraturas em foco, que, em sua 
pesquisa,  é  explicada  pelo  insulamento  institucional  dessas  carreiras 
que  acabaram  por  construir  um  perfil  homogêneo  de  membros  que 
ainda  hoje  se  faz  presente  –  apesar  de  estar  se  transformando.  A 
segregação  vertical  por  gênero  se  apresenta  em  todos  os  foros 

210
 
analisados  na  Argentina.  A  implementação  de  sistemas  meritocráticos 
pode  ter  efeito  positivo  para  a  redução  das  desigualdades  de  gênero, 
porém  tais  sistemas  são  mais  exigentes  com  as  mulheres,  inseridas 
numa sociedade na qual persiste a divisão sexual do trabalho, o que faz 
com  que  as  diferenças  de  gênero  se  estanquem  no  interior  de  uma 
profissão na qual a proporção de graduadas é cada vez maior. 
 
 
 
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213
 
 
 

214
 
Participação popular e legitimidade judicial:  
sobre o julgamento por júri 
   
            María Inés Bergoglio1 
 
 
1. Introdução 
 
Como destacou Tocqueville, os países que têm chamado os cidadãos 
comuns  para  compartilhar  as  responsabilidades  judiciais,  se 
caracterizam pelo alto reconhecimento popular da magistratura. Resta‐
nos  perguntar,  entretanto,  até  onde  estes  efeitos  são  registrados  nas 
nações  que,  em  contextos  marcados  pela  insatisfação  com  o  trabalho 
judicial, têm incorporado recentemente a participação leiga na justiça. 
Este  artigo  explora  as  relações  entre  a  participação  leiga  na 
administração  da  justiça  e  legitimidade  judicial  em  Córdoba,  na 
Argentina,  onde  os  tribunais  mistos  têm  sido  implantados  desde  2005 
para  o  julgamento  de  alguns  crimes  aberrantes.  Para  isso  são 
empregadas  diversas  fontes  empíricas,  dentre  as  quais  se  destacam  os 
dados  de  pesquisa  da  população  geral  obtidos  em  Córdoba  em  1993  e 
2011. 
Embora  já  exista  evidências  de  que  aqueles  que  têm  atuado  como 
jurados melhoram suas opiniões sobre o funcionamento da justiça, por 
enquanto  o  caráter  limitado  da  experiência  cordobesa  sugere  que  seus 
efeitos sobre a legitimidade judicial na cidadania geral podem ser muito 
fracos ainda. 
Nos últimos anos, diversos países ‐ Japão, Coreia, Espanha, Croácia, 
Rússia,  Argentina  ‐  têm  introduzido  a  participação  de  leigos  em  seus 
sistemas  judiciais,  muitas  vezes  no  contexto  de  reformas  orientadas 
para  aprofundar  os  processos  de  democratização.  É  necessário 
interrogarmo‐nos  sobre  as  consequências  destas  inovações 
institucionais, já que a presença dos cidadãos comuns entre aqueles que 

                                                            
1   Faculdade  de  Direito,  Universidade  Nacional  de  Córdoba.  Agradecimentos  ao  apoio 
para  este  projeto  outorgados  pela  Secretaria  de  Ciência  e  Técnica  ‐  Universidade 
Nacional de Córdoba 

215
 
tomam  decisões  legais  significativas  pode  afetar  o  sistema  legal  como 
um todo. 
A  contribuição  dos  sistemas  de  júri  à  consolidação  das  formas 
democráticas  de  governo  tem  sido  extensamente  discutida2.  Em 
primeiro lugar, foi salientado que constitui uma forma de participação 
cívica.  O  júri  provê  uma  oportunidade  institucionalizada  para  que  os 
cidadãos  se  reúnam,  deliberem  e  tomem  decisões  legalmente 
significativas.  Transfere  abertamente  poder  aos  cidadãos  e  destaca  o 
lugar que ocupam no Estado.  
Aqueles que promovem a participação dos cidadãos comuns nos 
procedimentos penais destacam também que a instituição cumpre uma 
função  global  de  controle.  A  presença  dos  leigos  nos  tribunais  penais 
contribui  para  garantir  que  os  veredictos  sejam  consistentes  com  as 
ideias  de  moralidade  e  justiça  vigentes  na  comunidade,  e  promove  a 
equidade  dos  procedimentos  (Machura,  2003).  Lempert  (2007)  destaca 
que,  de  todo  modo,  há  uma  melhora  na  transparência  das  ações  dos 
juízes. 
De  fato,  várias  iniciativas  recentes  para  instaurar  o  julgamento 
por  júri  são  registradas  em  contextos  marcados  pela  desconfiança  na 
justiça. Assim, Klijn & Croes (2007) informam sobre uma iniciativa para 
incorporar  a  participação  cidadã  nas  decisões  cidadãs,  que  surgiu  na 
Holanda  em  meio  a  um  clima  de  descontentamento  popular  pela 
excessiva clemência dos juízes. Enquanto isso, Fukurai e Krooth (2010) 
relatam uma proposta para instaurar o júri popular no México, inserida 
num  conjunto  de  medidas  para  reformular  a  administração  da  justiça, 
considerada vulnerável à corrupção relacionada ao tráfico de drogas. A 
experiência  de  tribunais  mistos  em  Córdoba,  Argentina,  começou 
também  num  contexto  de  insatisfação  com  o  trabalho  judicial3.  Estas 
iniciativas  têm  em  comum  o  fato  de  que  a  participação  dos  leigos  é 
concebida como uma forma de controlar o poder dos juízes, no contexto 
de uma situação caracterizada pela insatisfação com o trabalho judicial 
ou a falta de confiança na justiça. 
                                                            
2  Para  uma  revisão  detalhada  dos  efeitos  esperados  do  julgamento  por  júri,  ver  (Hans 
2008; Voigt 2008). 
3 Na sessão 5 se explica com maiores detalhes a introdução do julgamento por júri em 

Córdoba, Argentina. 

216
 
Tem‐se  sustentado,  ainda,  que  esta  instituição  contribui  para  a 
legitimação do poder judicial. Tocqueville já havia observado o impacto 
positivo que a interação entre os juízes e cidadãos comuns tem sobre o 
prestígio  dos  juízes:  ʺO  júri,  que  parece  diminuir  os  direitos  da 
magistratura, funda, na verdade, o seu próprio império, e não há países 
onde  os  juízes  sejam  tão  poderosos  quanto  naqueles  onde  o  povo 
participa da distribuição de privilégiosʺ (2001; e.o. 1840, p. 138). A partir 
de  pesquisa  sócio‐jurídica,  Machura  (2003)  e  Marder  (2005)  revelaram 
os  efeitos  positivos  da  participação  cidadã  na  administração  da  justiça 
sobre  a  confiança  nos  juízes.  Voigt  (2008)  relata  correlações  positivas 
entre a confiança no sistema legal e a incorporação da participação dos 
leigos. 
Na  teorização  contemporânea  sobre  a  democracia,  se  destaca  a 
contribuição  da  deliberação  pública  para  a  construção  da  legitimidade 
de ordem política. Os pesquisadores que trabalham com este marco de 
referência têm destacado que a sala do júri se parece com a situação da 
fala ideal habermasiana, pois oferece um espaço para o debate racional 
entre  iguais,  governado  pela  força  do  melhor  argumento  (Iontcheva, 
2003; Gastil & Weiser, 2006). 
Resta‐nos questionar, entretanto, até que ponto a introdução dos 
tribunais por júri seria eficaz no sentido de melhorar a legitimidade da 
administração  da  justiça.  Trata‐se  de  uma  questão  para  a  qual  é  difícil 
obter evidência empírica, já que requer comparações internacionais4 ou 
estudos  de  séries  históricas.  A  questão  é  particularmente  interessante 
desde  uma  perspectiva  latino‐americana,  uma  vez  que  na  região  os 
baixos níveis de confiança na justiça são crônicos. 
Com o objetivo de fornecer alguns elementos para o avanço da 
discussão  desta  questão,  o  trabalho  revisa  a  evolução  da  confiança  na 
justiça em Córdoba, Argentina, onde foi introduzida a participação dos 
leigos  no  campo  penal  em  2005.  Através  de  dados  de  pesquisas  de 
opinião  pública,  analisamos  as  mudanças  nas  atitudes  em  relação  aos 
juízes e júris, na população em geral, entre 1993 e 2011. 
 

                                                            
4   Ver  por  exemplo  a  tentativa  de  Voigt  (2009)  de  comparar  mais  de  80  países, 
classificados segundo o tipo de participação leiga que implementa. 

217
 
2. Legitimidade e confiança na justiça: questões teóricas 
 
O  trabalho  de  Weber  continua  sendo  o  mais  influente  na  análise 
contemporânea  sobre  a  legitimidade.  A  partir  de  sua  perspectiva,  a 
legitimidade  é  entendida  como  a  qualidade  de  uma  autoridade  ou 
instituição  que  leva  as  pessoas  a  se  sentirem  obrigadas  a  seguir  suas 
regras  ou  decisões.  Todos  os  poderes  desejam,  por  isso,  alimentar  a 
crença em sua legitimidade, e só é possível analisar essa legitimidade a 
partir de uma abordagem relacional. 
Sua  tipologia  sobre  as  formas  de  dominação  legítima  tem  sido 
utilizada por décadas na investigação sociojurídica. Recentemente, têm‐
se  observado  que  a  utilidade  dessa  classificação  tende  a  se  reduzir  no 
mundo  contemporâneo,  enquanto  que  a  grande  maioria  dos  regimes 
legítimos  corresponde  ao  tipo  racional‐legal  (Dogan,  2010).  Esta  crítica 
parece menos justificada a partir da perspectiva latino‐americana, uma 
vez  que  na  região  o  enfraquecimento  dos  partidos  tradicionais 
acompanha a crescente personalização da política. (Cheresky, 2010). 
Rosanvallon  (2009)  apontou  também  que,  nas  sociedades 
contemporâneas,  onde  a  expressão  eleitoral  perde  sua  centralidade, 
surgem  novas  formas  de  aproximação  da  ideia  de  interesse  público,  o 
que  dá  origem  a  novas  formas  de  legitimação,  que  entendem  por 
legitimidade  a  imparcialidade,  a  reflexividade  e  a  proximidade.  Ao 
contrário  da  legitimidade  tradicional  de  estabelecimento,  obtida  pelos 
governos democráticos através do mecanismo eleitoral, esses modos de 
legitimação  apontam  para  as  qualidades  da  relação  entre  os  que 
exercem o poder e os cidadãos. Essas qualidades nunca são definitivas, 
por isso as autoridades necessitam se relegitimar continuamente. 
A  perspectiva  relacional  é  hoje  o  principal  legado  weberiano 
presente  neste  campo  de  pesquisa.  Como  destaca  Lembcke  (2008),  tal 
perspectiva está presente entre os que adotam um enfoque top‐down e se 
concentram em descrever os esforços dos poderosos ou das instituições 
para  que  suas  pretensões  de  legitimidade  sejam  aceitas.  O  enfoque 
relacional  também  se  encontra  entre  os  que  definem  a  legitimidade 
como  a  crença  na  correção  de  tais  pretensões  por  parte  daqueles  que 
estão  sujeitos  a  um  sistema  de  dominação.  Neste  caso,  o  foco  não  se 

218
 
dirige tanto para os esforços do poder para validar sua dominação, mas 
para os motivos de concordância com as demandas de poder. 
Esta  segunda  abordagem,  do  tipo  bottom‐up,  é  adotada  neste 
trabalho,  que  analisa  a  legitimidade  a  partir  das  convicções  subjetivas 
dos  cidadãos.  A  partir  desta  perspectiva,  é  possível  fazer  afirmações, 
empiricamente  fundamentadas,  sobre  a  extensão  da  aprovação  que 
recebe  um  sistema  de  dominação,  ou  descrever  dinamicamente  sua 
evolução.  
Na  análise  empírica  da  legitimidade  dos  tribunais  se  utiliza 
frequentemente a noção de apoio difuso, inicialmente desenvolvida por 
Easton  (1965).  O  apoio  específico  se  refere  ao  consentimento  a  uma 
decisão  em  particular.  Mas  a  autoridade  seria  frágil  se  tivesse  que 
depender  inteiramente  de  tais  acordos,  já  que  a  tomada  de  decisões  ‐ 
especialmente  nos  tribunais  ‐  sempre  favorece  alguns  e  prejudica 
outros.  A  autoridade  sobrevive  graças  a  um  ambiente  de  apoio  geral, 
que não está relacionado a uma medida específica, mas que é difuso, e 
que lhe permite decidir à discrição. 
O  apoio  difuso  pode  ser  entendido  como  um  reservatório  de  boa 
vontade,  e  implica  que  as  pessoas  têm  confiança  na  capacidade  de 
certas  instituições  de  fazer  políticas  desejáveis  em  longo  prazo.  Supõe 
certa lealdade à autoridade, e implica que o fracasso ao realizar políticas 
desejáveis  a  curto  prazo  não  prejudica  o  compromisso  básico  das 
pessoas com a instituição. Esta noção de apoio difuso tem sido utilizada 
para estudar empiricamente a legitimidade judicial (JL Gibson, Caldeira 
e Spence, 2005; J. Gibson, 2007) entendida como a confiança no sistema 
judicial, e é empregada da mesma forma nesta investigação. 
 
3. A confiança na justiça: questões metodológicas 
 
Na  América  Latina,  a  pesquisa  empírica  sobre  a  legitimidade 
institucional tem utilizado dados de pesquisas de opinião provenientes 
de  duas  fontes  de  dados  comparativos  em  nível  regional  ‐  Gallup  e 
Latinobarómetro  ‐  que  utilizam  as  clássicas  perguntas  sobre  o  grau  de 

219
 
confiança  em  diferentes  instituições5.  A  principal  utilidade  destas 
medidas  é  a  possibilidade  de  realizar  análises  comparativas  entre 
diversos países, assim como de seguir a evolução no tempo dos níveis 
de legitimidade. Ao que se refere à Argentina, Turner & Carballo (2010) 
publicaram  dados  sobre  a  confiança  na  justiça  para  várias  datas, 
começando  por  1984.  Por  outro  lado,  a  série  Latinobarómetro  oferece 
medições anuais desde 1995. 
Tem‐se  destacado,  entretanto,  que  uma  medida  adequada  da 
legitimidade deve incluir tanto itens atitudinais ‐ como a confiança nas 
instituições ‐ como itens condutuais6, que permitam observar o grau de 
obediência  à  autoridade,  ou  a  disposição  para  cumprir  com  seus 
mandatos.  A  crítica  é  digna  de  consideração,  especialmente  em  uma 
região onde a baixa legitimidade das instituições judiciais não impediu 
a crescente judicialização da política (Sieder, Schjolden e Angell, 2005). 
A  observação  é  particularmente  importante  em  um  país  como  a 
Argentina,  onde  são  registrados,  ao  mesmo  tempo,  baixos  níveis  de 
legitimidade  das  instituições  judiciais  e  consideráveis  taxas  de 
litigiosidade. 
Em  nosso  país,  o  índice  de  confiança  na  justiça  elaborado  pela 
equipe  da  Universidade  Di  Tella  considera  tanto  os  indicadores 
condutuais  como  atitudinais.  Entre  os  primeiros  se  incluem  os  itens 
relacionados  à  disposição  para  recorrer  à  justiça  em  conflitos 
patrimoniais, de trabalho e familiares; entre os segundos se encontram 
as  questões de  opinião  sobre  a  imparcialidade,  eficiência  e  integridade 
da  justiça.  A  série,  iniciada  em  2004,  mostra  sistematicamente  valores 
mais elevados nos itens condutuais do que nos atitudinais 7. 
Neste  projeto  foram  utilizadas  duas  medidas  diferentes  de 
confiança na justiça, ambas destinadas a detectar as atitudes em direção 
aos  magistrados.  A  primeira  delas  está  centrada  na  figura  pessoal  do 

                                                            
5  A  formulação  da  questão  é  a  seguinte:  Por  favor,  diga,  para  cada  um  dos  grupos, 
instituições  ou  pessoas  mencionadas  na  lista,  quanta  confiança  você  tem  neles:  muita  (1), 
alguma  (2),  pouca  (3)  ou  nenhuma  (4)  confiança  em...?  O  Congresso  Nacional,  o  Poder 
Judiciário, os partidos políticos, as Forças Armadas, a Igreja, os Meios de comunicação, etc. 
6 Para mais detalhes sobre tal classificação de indicadores ver Power e Cyr (2010). 

7  Ver  em  http://www.utdt.edu/ver_contenido.php?id_contenido=521&id_item_menu 

=1601 maiores detalhes sobre a construção deste índice e os resultados alcançados. 

220
 
juiz,  e  é  resultado  da  resposta  mais  simples  para  o  público  em  geral 
(Você  acha  que  o  juiz  inspira  muita,  bastante  ou  pouca  confiança  e 
sensação  de  proteção).  A  segunda  utiliza  a  medida  tradicional  de 
confiança  nas  instituições,  usada  na  pesquisa  comparativa 
internacional, mencionada acima. 
Foram  utilizados  os  dados  de  duas  pesquisas  de  opinião  pública, 
realizadas  na  cidade  de  Córdoba  por  esta  equipe  de  pesquisa.  A 
primeira  delas  incluiu  400  casos,  e  ocorreu  muito  antes  da  introdução 
da  participação  dos  leigos,  em  1993.  Nesta  foi  medida  a  confiança  na 
figura  do  juiz  como  pessoa,  e  foram  obtidas  opiniões  com  relação  a 
temas  como  a  independência,  a  imparcialidade,  a  eficiência  e  a 
honestidade da justiça. 
O  segundo  estudo  foi  realizado  em  2011,  quando  os  tribunais 
mistos já funcionavam há seis anos, e foram realizadas 434 entrevistas. 
Além da confiança na figura pessoal do juiz foi medida a confiança no 
poder judiciário. Isso permitiu observar que a correlação (R de Pearson) 
entre  ambas  as  medidas  é  de  0,443,  com  um  nível  de  significância  de 
0,000.  As  opiniões  relativas  à  avaliação  da  justiça  foram  recolhidas  da 
mesma forma que no projeto anterior. 
Também  foram  utilizadas  as  bases  de  dados  do  Latinobarômetro 
para  o  período  de  1995‐2010  para  a  descrição  da  situação  argentina 
dentro do contexto regional. 
 
4. A confiança na justiça na Argentina 
 
Na  Argentina,  as  pesquisas  de  opinião  revelam  níveis 
relativamente baixos de confiança nas instituições, entre elas, no poder 
judiciário.  Os dados do Latinobarômetro indicam que somente um em 
cada três cidadãos (34,5%) declarou ter muita ou alguma confiança nos 
tribunais  em  2010.  A  informação  comparativa  permite  contextualizar 
esta cifra. 
Como  pode  ser  visto  na  Tabela  1,  na  União  Europeia  os  dados 
recolhidos pelo Eurobarômetro indicam um valor de 47% para a mesma 
data. Além da homogeneidade das médias, as diferenças entre os países 
europeus são destacadas. Na área germano‐escandinava a proporção de 
cidadãos que confiam no Judiciário está acima de 60%. No Reino Unido, 

221
 
a  confiança  nos  tribunais  também  é  maioritária,  enquanto  que  os 
valores diminuem nos países que recentemente aderiram à democracia, 
como a Espanha, ou se caracterizam pela frequência de crises políticas, 
como  a  Itália.  As  recentes  democracias  da  Croácia  ou  da  Letônia 
registraram valores semelhantes aos argentinos. 
Esta conexão entre a solidez da democracia e a confiança na justiça 
é  igualmente  visível  quando  observamos  os  dados  norte‐americanos8. 
Enquanto  no  espaço  europeu  quase  metade  dos  cidadãos  confia  na 
justiça, na América Latina a proporção regional atinge 32%. Na região, 
os países com maior tradição democrática, como o Uruguai ou a Costa 
Rica,  ultrapassam  claramente  a  média  regional.  Também  é  importante 
notar que o Brasil ‐ o país latino‐americano com a mais longa tradição 
de júri, cuja participação dos leigos na administração da justiça funciona 
desde  1822  (Amietta,  2010)  ‐  registra  níveis  de  confiança  na  justiça 
significativamente maiores que a média da área. 
A  capacidade  das  instituições  para  responder  às  demandas 
socioeconômicas  dos  cidadãos  também  influencia  os  níveis  de 
legitimidade  institucional.  Como  mostram  os estudos  comparativos  de 
Gilley (2006) e Power e Cyr (2010), não é de se estranhar que os países 
latino‐americanos  com  maiores  níveis  de  desenvolvimento  humano 
contem instituições de maior respaldo social. 
Esses dados permitem observar que a confiança no poder judiciário 
registrada na Argentina apresenta valores próximos à média regional. É 
um  pouco  maior  do  que  encontramos  em  países  com  significativas 
desigualdades  étnicas,  como  Peru,  Bolívia  e  México,  cujo  sistema 
judicial formal concorre com práticas judiciais dos povos originários, o 
que  acaba  por  enfraquecer  ainda  mais  a  confiança  nas  instituições  do 
Estado. (Power e Cyr, 2010).  
Esta  revisão  da  informação  disponível  sobre  os  níveis  de 
legitimidade  institucional,  em  nível  regional,  indica  que  vários  fatores 
influenciam a confiança na justiça, tais como: a tradição democrática, a 
capacidade das instituições de responder às demandas socioeconômicas 
dos cidadãos ou as desigualdades étnicas. 
                                                            
8   Para  uma  discussão  detalhada,  empiricamente  fundamentada,  da  relação  entre  a 
experiência democrática e os níveis de legitimidade na América Latina, ver Power e 
Cyr (2010). 

222
 
Tabela 1 ‐ Confiança no Poder Judiciário, 2010. 
 
Muita/alguma  Pouca/nenhuma  Não sabe 
América Latina 
confiança  confiança  /não respondeu 
Uruguay  58,1%  38,5%  3,4% 
Brasil  51,1%  45,4%  3,6% 
Costa Rica  46%  49,9%  4,1% 
Venezuela  37,8%  58,1%  4,1% 
Chile  36,9%  61,5%  1,6% 
Argentina  34,5%  63,6%  2% 
Colômbia  34%  59,4%  6,6% 
Panamá  33,6%  61,3%  5,1% 
México  27,5%  67,7%  4,8% 
Paraguai  27%  69,8%  3,3% 
Bolivia  23,5%  68,3%  8,2% 
Peru  14,7%  82,7%  2,6% 
Média  32,4%  63,2%  4,3% 
Muita/alguma  Pouca/nenhuma  Não sabe 
Europa 
confiança  confiança  /não respondeu 
Dinamarca  84%  14%  2% 
Suécia  73%  25%  2% 
Áustria  71%  26%  3% 
Alemanha  60%  34%  6% 
Reino Unido  50%  45%  5% 
França  45%  50%  5% 
Espanha  44%  51%  5% 
Itália  42%  52%  6% 
Letônia  36%  54%  10% 
Croácia  20%  76%  4% 
União Européia  47%  48%  5% 
Fonte: Para América Latina, Latinobarômetro (www.latinobarometro.org). Para Europa, 
Eurobarômetro  (http://ec.europa.eu/public_opinion/index_en.htm).  Dados  processados 
para este projeto. 
 
 
 
 
 
 

223
 
Tabela 2 ‐ Confiança no Poder Judiciário – Argentina, 1995 ‐2010. 
 
Ano  N  Muita/alguma  Pouca/nenhuma  Não sabe/ 
confiança  confiança  não 
respondeu 
1995  1200 (100%)  33,6%  62,1%  4,4% 
1996  1199 (100%)  23,1%  72,4%  4,5% 
1997  1196 (100%)  20,5%  75,1%  4,2% 
1998  1264 (100%)  19,6%  78,5%  1,9% 
2000  1200 (100%)  27,5%  68%  4,5% 
2001  1200 (100%)  20,5%  77%  2,5% 
2002  1200 (100%)  8,6%  90,4%  0,9% 
2003  1200 (100%)  16,2%  81,2%  2,6% 
2004  1200 (100%)  26,2%  72,4%  1,4% 
2005  1200 (100%)  26,1%  71,7%  2,3% 
2006  1200 (100%)  31,9%  66,9%  1,3% 
2007  1200 (100%)  22,7%  74,5%  2,8% 
2008  1200 (100%)  24,6%  74,1%  1,3% 
2009  1200 (100%)  24,5%  73,3%  2,1% 
2010  1200 (100%)  34,5%  63,6%  2% 
Fonte:  Latinobarômetro,  (www.latinobarometro.org).  Dados 
processados para este projeto. 
 
A análise dos dados históricos sobre a legitimidade da justiça na 
Argentina  mostra  variações  consideráveis  desde  a  restauração  da 
democracia.  Analisando  a  evolução  da  confiança  nas  instituições  no 
período  de  1984‐2006,  Turner  e  Carballo  (2010)  destacaram  a 
deterioração  da  legitimidade  tanto  do  poder  legislativo  como  do 
judiciário,  ocorrida  desde  o  retorno  da  democracia.  Usando  dados  do 
Gallup,  demonstraram  que  em  2006  os  níveis  de  confiança  na  justiça 
chegaram a 20%, praticamente um terço dos níveis registrados em 1984, 
momento que se segue à recuperação da democracia (58%). Tal análise 
vincula  a  queda  nos  níveis  de  legitimidade  à  baixa  capacidade  das 
instituições  em  atender  as  expectativas  econômicas  dos  cidadãos,  e 
salienta que a perda de confiança nas instituições não se limita ao poder 
judiciário, mas se estende a outros poderes do Estado. 
A série de dados do Latinobarômetro, iniciada em 1995, permite 
acompanhar  a  recente  evolução  dos  níveis  de  legitimidade  na  justiça. 

224
 
Além das oscilações anuais, nota‐se que a crise do corralito e do “que se 
vayan todos” colocou a legitimidade da justiça em seu mínimo histórico. 
Naquele momento, menos de um em cada dez argentinos confiava nos 
juízes. A posterior recuperação, provavelmente vinculada às mudanças 
no  mecanismo  de  nomeação  dos  juízes  do  Supremo  Tribunal  assim 
como  nos  esforços  para  melhorar  a  difusão  da  atividade  judicial9,  foi 
relativamente  rápida,  colocando  os  níveis  de  confiança  em  números 
semelhantes  aos  de  1995:  em  2010  cerca  de  um  terço  dos  argentinos 
confiava na justiça. 
O  exposto  até  então  é  suficiente  para  indicar  que,  como  pode  ser 
previsto  a  partir  de  uma  abordagem  relacional  de  legitimidade,  a 
confiança  na  justiça  é  uma  variável  complexa,  sujeita  a  diversas 
influências.  Por  isso,  a  revisão  de  sua  relação  com  a  participação  dos 
leigos  na  administração  da  justiça,  que  será  realizada  a  seguir,  tem 
caráter tão somente exploratório. 
 
5. A experiência cordobesa de tribunais mistos 
 
Ainda que sua implementação seja recente, a instituição do júri tem 
na  Argentina  profundas  raízes  históricas.  Entendida  como  garantia 
contra  o  abuso  do  poder  do  Estado,  é  encontrada  em  projetos 
elaborados  em  1813,  assim  como  nas  Constituições  de  1819  e 182610.  A 
Constituição Nacional de 1853 a prescreve, em seus artigos 24, 64 inc. 11 
e 9911. A longa presença dos projetos de julgamento por júri é um bom 
indicador  da  profunda  aspiração  democrática  dos  argentinos,  assim 
como de sua ampla tolerância à brecha entre o texto da lei e as práticas 
sociais.  Atualmente,  os  julgamentos  por  júri  vigoram  somente  na 
província de Córdoba.  
                                                            
9 Para uma descrição dos esforços realizados para restaurar a legitimidade do Tribunal 
após  a  crise,  ver  Ruibal  (2010).  O  lançamento  do  canal  jurídico  de  CIJ  TV,  canal  de 
notícias  de  transmissão  ao  vivo  pela  Internet  de  todo  o  Poder  Judicial,  feito  pela 
Suprema  Corte  de  Justiça,  em  agosto  de  2011,  foi  um  marco  significativo  dessas 
estratégias. 
10  Para  uma  revisão  histórica  da  presença  dos  julgamentos  por  júri  na  normativa 

argentina, ver Cavallero e Hendler (1988) e Jorge (2004).  
11 Estas prescrições se mantiveram após a reforma de 1994, ainda que a numeração dos 

artigos agora seja 24, 75 inc. 12 e 118. 

225
 
Nesta  província,  a  participação  dos  cidadãos  nos  processos  penais 
foi  ordenada  pela  Constituição  de  198712.  Foi  colocada  em  prática  pela 
primeira vez em 1998, sob a forma de um tribunal misto, composto por 
três juízes profissionais e dois cidadãos comuns ‐ escabino ‐, chamado a 
intervir  em  crimes  graves,  quando  o  advogado,  promotor  ou  a  vítima 
assim o solicitam. A participação cidadã alcançada foi bastante limitada: 
apenas trinta e três casos foram decididos por meio da intervenção leiga 
entre 1998 e 2004 (Vilanova, 2004). 
  Desde  2004,  a  província  de  Córdoba  ampliou  a  participação  cidadã 
nas decisões penais mediante a lei 9.182. A lei foi aprovada no contexto 
de um debate nacional sobre as medidas para combater a insegurança, 
impulsionado por Juan Carlos Blumberg13. Assessorado pelo Manhattan 
Institute, de Nova York14, Blumberg reclamava o endurecimento penal e 
a reforma judicial como meios para melhorar a segurança urbana, assim 
como  a  inclusão  do  julgamento  por  júri  segundo  o  clássico  modelo 
anglo‐saxão. 
A concorrência multitudinária das marchas de Blumberg levou à 
sanção  da  lei  provincial  9.182,  que  ampliava  a  experiência  de 
participação  popular  nos  tribunais  criminais.  A  lei  criou  um  tribunal 
misto,  com  maioria  leiga,  composto  por  oito  cidadãos  comuns  e  três 
juízes profissionais, que decide por maioria simples em casos de crimes 
hediondos e de corrupção. 
Durante o debate parlamentar ficou evidente que esta iniciativa 
também  havia  sido  impulsionada  pelo  interesse  em  recuperar  a 
confiança na Justiça. O membro que representava a maioria expressou o 
principal objetivo da lei nos seguintes termos: 
 
“... o povo argentino pediu justiça porque sentiu que não tinha; o povo 
argentino pediu segurança, porque não tinha; o povo argentino pediu 
para  acreditar  em  suas  instituições  porque  já  não  acreditava.  Então, 
                                                            
12 Constituição da província de Córdoba, Artigo 162. La ley puede determinar los casos en 
que los Tribunales colegiados son también integrados por jurados. 
13  Para  uma  análise  mais  detalhada  do  discurso  deste  movimento  social  consultar 

Pegoraro (2004) e Tufró (2007). 
14 Blumberg. Se Reunió con Policías en Nueva York, La Nación, Jun. 6, 2004. Disponível em: 

http://buscador.lanacion.com.ar/Nota.asp?nota_id=607975&high=Manhattan%20Instit
ute. 

226
 
nós, os legisladores de Córdoba, devemos responder ao apelo popular 
e  criar  as  instituições  que  nos  permitam  repor  um  pacto  social  que 
estava perdido, para criar uma ponte entre o povo e seus líderes, para 
gerar  aquela  crença  que  se  perdeu  no  tempo.  Temos  de  reconstruir  o 
contrato social. Para isso, são necessários os julgamentos por júri, pois 
esse é um instrumento que nos leva ao objetivo já mencionadoʺ (texto 
do debate transcrito em Ferrer e Grundy, 2005, p.101).  
 
O objetivo de relegitimar o poder judiciário por esta via também 
era compartilhado naquele momento por outros atores sociais. Assim, o 
presidente  da  Associação  de  Magistrados,  Víctor  Vélez,  convocado  à 
Legislatura para discutir a iniciativa, expressou [em relação à ampliação 
do  número  de  júris]:  “é  uma  porta  que  se  abre,  por  onde  entra  um 
saudável sentimento de equidade natural, e por onde sai uma boa ideia 
sobre o funcionamento da justiça”15. 
As  principais  resistências  à  iniciativa  procederam  da  profissão 
jurídica. O temor de que, num contexto dominado pelo medo diante do 
delito, a participação dos leigos levasse a um endurecimento das penas, 
estimulou  a  oposição  dos  advogados.  O  forte  apoio  oferecido  pelo 
Tribunal  Superior  de  Justiça  contribuiu  para  a  aceitação  do  novo 
sistema, que após sete anos de aplicação contínua, pode ser considerado 
em vias de consolidação16. 
Em  particular,  a  sua  aceitação  por  aqueles  que  tiveram  a 
oportunidade  de  participar  como  jurados  é  alta,  como  mostram  as 
pesquisas  realizadas  pela  própria  Administração  da  Justiça,  em  2006  e 
2010.  Esses  estudos  também  mostraram  um  aumento  significativo  da 
boa imagem da justiça penal após a experiência participativa17. 
É  importante  observar,  entretanto,  que  a  limitada  competência 
atribuída  aos  tribunais  mistos  cordobeses  é  representada  pelo  registro 

                                                            
15 Publicado em La Voz del Interior, 7/08/2004. Acesso em: http://buscador.lavoz.com.ar/  
16 Para uma análise detalhada do processo de aceitação desta inovação institucional, ver 
Bergoglio (2010). 
17  Andruet,  Ferrer  e  Croccia  (2007)  relatam  que  o  percentual  dos  que  tinham  uma 

imagem  boa  ou  muito  boa  da  justiça  penal  passou  de  44%  para  98%  após  a 
experiência  participativa.  A  repetição  da  mesma  pesquisa  em  2010  mostrou  que  a 
proporção  aumentou  de  52,3%  para  97,7%.  (Ver  este  último  relatório  em 
http://www.justiciacordoba.gob.ar/justiciacordoba/indexDetalle.aspx?id = 110). 

227
 
de  apenas  150  processos  no  período  de  2005‐2010.  Durante  esses  seis 
anos, apenas mil e duzentas pessoas comuns tiveram oportunidade de 
participar das decisões penais. 
   Por  enquanto,  estes  dados  sugerem  que  os  efeitos  da 
participação leiga sobre a confiança que os cidadãos comuns depositam 
nas instituições judiciais podem ser ainda muito débeis. 
 
6. A confiança na justiça em Córdoba  
 
Os  dados  disponíveis  para  este  projeto  permitem  comparar  a 
evolução  da  confiança  na  justiça  entre  1993  e  2011,  assim  como 
permitem analisar algumas das dimensões dessas mudanças. Tal como 
se  observa  na  tabela  abaixo,  a  confiança  na  justiça  tem  experimentado 
uma  leve  melhora  nestes  dezoito  anos.  Embora  o  aumento  dos  que 
declaram que a figura do juiz lhes inspira muita ou bastante confiança 
seja modesto, as opiniões negativas têm diminuído consideravelmente. 
Os  que  mostravam  ter  pouca  ou  muito  pouca  confiança  superavam 
50%, e atualmente representam 40%. 
 
Tabela 3. Confiança na figura do juiz, 1993‐2011. 
 
O juiz inspira   Ano 
   1993  2011 
  Muita confiança  3,6%  3,7% 
   Bastante confiança  14,5%  16,6% 
   Confiança regular  28,7%  39,4% 
   Pouca confiança  38,1%  23,7% 
   Muito pouca confiança  15,2%  16,6% 
Total  100,0%  100,0% 
Relação estatisticamente significativa –  
Qui Quadrado = 21,663 significativo para p<.000 
Fonte: Pesquisas de população geral, Córdoba capital, 1993 e 2011. 
 
Entender estas mudanças requer também entender as modificações 
experimentadas  nos  pontos  de  vista  sobre  os  diversos  aspectos  da 
administração  da  justiça,  que  são  avaliados  pelos  cidadãos  na 
construção  de  suas  opiniões.  Para  este  projeto  foi  selecionado  um 

228
 
conjunto  de  dimensões  conectadas  com  valores  democráticos  centrais, 
tal  como  a  independência  do  poder  político,  a  imparcialidade  diante 
dos  interesses  econômicos,  e  a  igualdade  de  tratamento  a  todos  os 
cidadãos,  sem  importar  sua  condição.  Também  foram  incorporadas 
outras: como a honestidade dos magistrados (entendida coletivamente), 
e sua eficácia no desenvolvimento de tarefas específicas, incluindo aqui 
um  nível  de  castigo  penal  suficiente,  desde  a  perspectiva  do  cidadão 
comum. 
Ao  revisar  as  modificações  da  opinião  cidadã  nestes  aspectos, 
importa  considerar  que  a  experiência  direta  com  a  administração  de 
justiça se tornou mais frequente: a porcentagem da população que tinha 
contato com tribunais passou de 33% a 45% nos últimos dezoito anos. O 
dado fornece uma representação empírica da tendência à legalização da 
vida, destacada por Habermas. 
É  interessante  observar  que  a  percepção  do  cidadão  sobre  a 
independência  dos  tribunais  com  relação  ao  governo  parece  menos 
negativa;  a  diferença,  relativamente  baixa,  alcança  uma  significância 
estatística18.  O  mesmo  ocorre  com  a  avaliação  cidadã  da  honestidade 
dos  magistrados,  onde  as  observações  críticas  têm  diminuído.  No 
período  transcorrido  também  tem  melhorado  a  opinião  sobre  a 
eficiência  dos  tribunais  no  cumprimento  de  suas  tarefas  específicas. 
Estas  mudanças,  estatisticamente  significativas,  podem  estar 
relacionadas  com  a  maior  transparência  da  função  judicial  promovida 
pela participação leiga no processo penal. 
A Tabela 4 informa, da mesma forma, que a proporção de cidadãos 
que pensam que o delito recebe um nível suficiente de castigo penal tem 
aumentado,  relação  que  alcança  significância  estatística.  É  interessante 
observar que a maior satisfação com os resultados do processo penal não 
procede  de  um  endurecimento  das  penas,  pois  a  análise  pormenorizada 
das sentenças emitidas pelos tribunais mistos indica que isso não ocorreu 
(Bergoglio e Amietta, 2010). Este resultado sugere que a participação leiga 
melhora  a  legitimação  das  decisões  penais,  moderando  as  críticas  em 
direção aos resultados dos processos (Park, 2010). 
                                                            
18  Deve‐se observar que a melhoria na imagem da independência judicial no período de 
1993‐2011  também  pode  se  conectar  às  mudanças  no  processo  de  designação  dos 
magistrados, iniciadas em 2000 com a criação do Conselho de Magistratura. 

229
 
Tabela 4 – Opiniões sobre a justiça, 1993 – 2011. 
 
Ano  Qui‐quadrado 
   1993  2011 
Independência dos  Muito alta  5,8%  6,2%  18,19 
tribunais  com  Bastante alta  13,7%  19,9%  significativo 
relação ao governo  Bastante baixa  32,0%  40,7%  para 
Baixa  48,5%  33,3%  p <,000 
Total  100,0% 100,0%
Imparcialidade  Concordo  31,9%  30,5%  0, 18 
nos  julgamentos  Discordo  Não 
68,1%  69,5% 
penais   significativo 
Total  100,0% 100,0%
Imparcialidade  Concordo  20,8%  26,0%  2,95 
nos  processos  Discordo  Não 
79,2%  74,0% 
econômicos   significativo 
Total  100,0% 100,0%
Na  aplicação  das  É  dado  o  mesmo  0,46 
7,1%  8,3% 
leis penais  tratamento a todos  Não 
Se  faz  diferença  de  significativo 
acordo  com  quem  se  92,9%  91,7% 
trata 
Total  100,0% 100,0%
Pune‐se  Sim  10,0%  15,4%  5,42 
suficientemente  a  Não  significativo  
90,0%  84,6% 
delito   para p < ,02 
Total  100,0%  100,0% 
Casos  de  corrupção  Muitos  23,5%  20,9%  12,17 
entre os juízes   Bastante  42,5%  33,9%  significativo  
Poucos  28,9%  41,4%  para p <,007 
Nenhum  5,1%  3,8% 
Total  100,0%  100,0% 
Funcionamento  dos  Muito bom/bom  16,0%  27,7%  26,39 
tribunais   Regular  62,5%  55,2%  significativo  
Mal/Muito mal  21,5%  17,1%  para p <,000 
Total  100,0%  100,0% 
Fonte: Pesquisas de opinião da população, Córdoba capital, 1993 e 2011. 
 
 

230
 
A tabela mostra também que as opiniões sobre a capacidade dos 
juízes em tomar decisões independentes de pressões econômicas, tanto 
em  matéria  penal  como  em  outros  assuntos,  praticamente  não  se 
alterou.  Tanto  em  1993  como  em  2011,  mais  de  dois  terços  dos 
entrevistados  questionaram  a  imparcialidade  dos  juízes;  a  proporção 
não  sofreu  diferenças  estatisticamente  significativas  no  período 
considerado.  Da  mesma  forma,  a  observação  acerca  do  tratamento 
dispensado pelos juízes aos cidadãos reflete que as diferenças sociais e 
econômicas  se  mantiveram  em  níveis  semelhantes  aos  de  1993.  Estes 
dados  sugerem  que  ainda  são  necessários  maiores  esforços  no  sentido 
de  promover  a  realização  dos  ideais  de  igualdade  perante  a  lei  em 
vários aspectos do contato dos cidadãos com a administração da justiça. 
    As  mudanças  no  modo  como  os  cidadãos  avaliam  a 
independência  e  a  honestidade  dos  magistrados,  assim  como  o  modo 
que  funcionam  os  tribunais  em  geral,  e  particularmente  os  penais, 
permite  explicar  a  ligeira  melhora  na  confiança  na  justiça 
experimentada  em  Córdoba  no  período  de  1993‐2011.  Como  mostra  a 
Tabela 5 todas estas dimensões se relacionam significativamente com a 
confiança na justiça. 
  O  quadro  mostra,  da  mesma  forma,  que  a  opinião  sobre  a 
imparcialidade  dos  juízes  e  sua  capacidade  de  proporcionar  aos 
cidadãos  igualdade  de  tratamento  ‐  dimensões  em  que  a  avaliação 
cidadã  é  negativa  para  ambas  as  datas  ‐,  também  estão  associadas  à 
confiança na justiça. Isso provavelmente explica o modesto aumento de 
confiança  na  justiça  registrado  no  período  considerado  e  sugere 
possíveis rumos para a futura ação orientada a melhorar a relação entre 
judiciáveis e juízes. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

231
 
Tabela  5  –  Correlações  entre  a  avaliação  da  ação  judicial  e  a  confiança  na 
justiça. 
 
Dimensão     1993  2011 
Correlação de Pearson 1  1 
O juiz inspira confiança  Sig. (bilateral)  .  . 
N  394  434 
Correlação de Pearson ,180(**)  ,128(*) 
Independência dos tribunais em 
Sig. (bilateral)  ,000  ,010 
relação ao governo 
N  394  401 
Correlação de Pearson ,246(**)  ,235(**) 
Imparcialidade nos julgamentos 
Sig. (bilateral)  ,000  ,000 
penais  
N  381  415 
Correlação de Pearson ,263(**)  ,299(**) 
Imparcialidade em processos 
Sig. (bilateral)  ,000  ,000 
econômicos 
N  375  415 
Correlação de Pearson ,233(**)  ,192(**) 
Tratamento na aplicação das leis 
Sig. (bilateral)  ,000  ,000 
penais 
N  391  426 
Correlação de Pearson ,370(**)  ,356(**) 
Funcionamento dos tribunais  Sig. (bilateral)  ,000  ,000 
N  372  394 
Correlação de Pearson ‐,305(**)  ‐,324(**) 
Casos de corrupção entre os juízes Sig. (bilateral)  ,000  ,000 
N  309  420 
Correlação de Pearson ,160(**)  ,152(**) 
 Pune‐se suficientemente o delito  Sig. (bilateral)  ,002  ,002 
N  387  416 
* A correlação é significativa ao nível 0,05 (bilateral). 
** A correlação é significativa ao nível 0,01 (bilateral). 
 
7. A opinião sobre o julgamento por júri  
 
Os  dados  coletados  também  permitem  analisar  como  o  apoio  ao 
julgamento  por  júri  evoluiu  entre  1993  e  2011.  Duas  perguntas  foram 
utilizadas  para  analisar  a  opinião  diante  da  participação  pública  na 

232
 
justiça penal, utilizando uma formulação geral e outra personalizada19. 
Como se pode ver na Tabela 6, em ambas as datas o apoio à intervenção 
dos  leigos  nos  processos  penais  é  claramente  maioritária.  Também  é 
possível  observar  que  é  baixa  a  proporção  dos  que  se  opõem 
abertamente ao sistema. 
É  interessante  observar,  entretanto,  que  a  implementação  da 
instituição não representou grandes mudanças na atitude dos cidadãos 
em relação ao julgamento por júri. Foi registrado um pequeno aumento 
da  opinião  favorável  (não  significativo),  alcançado  especialmente  por 
aqueles  que  não  expressaram  opinião  em  1993.  A  desagregação  dos 
dados  indica  que  esse  avanço  na  adesão  à  instituição  é  registrado 
principalmente entre as pessoas com baixo nível de escolaridade. 
 
Tabela 6 – Evolução da opinião sobre o julgamento por júri. 
 
Ano  Qui Quadrado 
   1993  2011 
Opinião  sobre  o  A favor  58,9%  62,3%  1,43 
julgamento por júri  Nem a favor nem  Não 
25,3%  21,9% 
contra  significativo 
Contra  15,8%  15,8% 
Total  100,0%  100,0% 
Se  você  fosse  Os juizes  33,8%  38,0%  1,51 
acusado,  preferiria  Um júri formado por  Não 
66,2%  62,0% 
que decidissem   pessoas comuns  significativo 
Total  100,0%  100,0% 
Fonte:  Pesquisas  de  opinião  da  população  em  geral,  Córdoba  capital,  1993  e 
2011. 
 
As  pesquisas  empíricas  têm  demonstrado  que  é  comum  que  a 
imagem  dos  júris  seja  mais  favorável  que  a  dos  juízes  nos  países  do 
Common Law, como ocorre na Inglaterra e no País de Gales, na Nova 

                                                            
19   A  formulação  utilizada  foi:  Como  você  sabe,  em  Córdoba  um  júri  de  cidadãos  comuns 
escolhidos  por  sorteio  atua,  juntamente  com  juízes,  em  julgamentos  criminais  graves,  para 
decidir se o acusado é culpado ou não do crime de que é acusado. No geral, qual é sua opinião 
sobre este sistema? E se você fosse o réu, quem você preferiria que decidisse se ele é culpado ou 
inocente? 

233
 
Zelândia e nos Estados Unidos. Por outro lado, as pesquisas realizadas 
nos  países  de  tradição  civilista  mostram  uma  variedade  de  situações. 
(Roberts e Hough, 2009). 
Os dados disponíveis também permitem observar a relação entre 
a  atitude  em  direção  ao  julgamento  por  júri  e  a  confiança  na  justiça 
(Tabela 7). Em 1993, quando a instituição não estava em vigor, a adesão 
a essa forma de julgamento penal parecia mais frequente entre aqueles 
que confiavam pouco na justiça. Esta relação se fazia visível no que diz 
respeito  ao  apoio  em  geral,  como  o  recolhido  de  modo  pessoal,  e 
alcançava  também  significância  estatística.  Tal  como  foi  mencionado 
acima,  o  interesse  em  implementar  a  participação  dos  leigos  foi  maior 
entre aqueles que tinham uma opinião negativa dos magistrados. 
Por  outro  lado,  em  2011,  esta  ligação  do  apelo  da  participação 
popular nas decisões penais com a desconfiança na justiça desapareceu. 
O apoio geral para o julgamento por júri não foi influenciado pelo nível 
de confiança na justiça. Trata‐se de um traço interessante, que indica a 
aceitação paulatina da instituição entre os cidadãos comuns.  
 
Tabela 7 – Confiança na justiça e a opinião sobre o julgamento por júri. 
 
1993  2011 
Confiança nos juízes  Confiança nos juízes 
Pouca/  Pouca/ 
Muita  muito  Muita  muito 
  /bastante Regular pouca  /bastante Regular pouca 
A favor  47,0%  55,0%  66,0%  63,6%  59,5%  63,6% 
Nem  a 
favor  nem  28,8%  29,4%  21,4%  22,7%  22,7%  20,8% 
Opinião  do 
contra 
julgamento 
Contra  24,2%  15,6%  12,6%  13,6%  17,8%  15,6% 
por júri  
Total  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0%  100,0% 
R  de  ‐0,158(**),  significativa  para 
0,010, não significativa  
Pearson  p < 0,002  
* A correlação é significativa ao nível 0,05 (bilateral). 
** A correlação é significativa ao nível 0,01 (bilateral). 
 
Esta interpretação é reforçada pelo vínculo entre a disposição para 
atuar  como  jurado  e  a  confiança  na  justiça,  já  que  os  que  confiam  na 

234
 
justiça mostram maior disponibilidade em assumir as responsabilidades 
nas decisões penais. 
 
8. Considerações finais 
 
Tal como foi destacado na introdução, a relação entre o julgamento 
por  júri  e  a  confiança  nos  magistrados  é  complexa.  A  experiência 
comparada  mostra  que  o  apelo  de  participação  popular  na 
administração da justiça surge habitualmente em condições de crises na 
relação  entre  os  juízes  e  os  judiciáveis,  quando  a  confiança  cidadã  no 
modo  em  que  os  magistrados  cumprem  suas  responsabilidades  se 
debilita.  Entretanto,  em  longo  prazo,  a  participação  leiga  na 
administração  da  justiça  tem  efeitos  positivos  sobre  a  confiança  na 
justiça, uma vez que consegue consolidar o prestígio dos magistrados.  
Os  mecanismos  que  contribuem  para  este  resultado  são  variados. 
Em  primeiro  lugar,  tal  como  destaca  Park  (2010)  analisando  o  caso 
coreano,  a  simples  presença  dos  cidadãos  comuns  modera  as  críticas 
nas  decisões  penais.  Este  resultado  é  mais  provável  quando  os 
processos penais recebem uma cobertura ampla da mídia. 
Em  segundo  lugar,  tal  como  observou  Tocqueville,  na  interação 
entre  os  juízes  e  jurados  as  diferenças  de  conhecimentos  entre  leigos  e 
letrados  são  evidentes,  o  que  permite  consolidar  o  prestígio  dos 
magistrados.  Nos  tribunais  mistos,  onde  a  deliberação  é  conjunta,  há 
muitas oportunidades para este tipo de interação. 
Por  outro  lado,  espera‐se  que  aqueles  que  participaram  como 
jurados  avaliem  positivamente  sua  experiência  e  a  compartilhem  nas 
várias  redes  sociais  nas  quais  participam.  O  fato  de  que  as  pessoas 
comuns  discutam  seus  encontros  positivos  com  a  administração  da 
justiça beneficia a legitimidade do sistema como um todo. 
Em Córdoba, o contexto em que surgiu a lei 9.182 foi marcado pela 
débil legitimidade da administração da justiça. Os dados coletados em 
1993 confirmam a associação entre a desconfiança nos magistrados e a 
adesão  ao  julgamento  por  júri,  uma  relação  que  apareceu  também  nos 
debates parlamentares da lei 9.182, em 2004. 
As pesquisas de opinião realizadas entre os cidadãos comuns após 
seis  anos  de  aplicação  contínua  dos  tribunais  mistos  revelam  uma 

235
 
melhoria  da  confiança  na  justiça,  pequena,  mas  estatisticamente 
significativa. Para interpretar essas mudanças, é necessário observar se 
os  mecanismos  que  explicam  a  ligação  entre  a  participação  leiga  e  a 
legitimidade da justiça também estão presentes. 
De fato, desde a incorporação do sistema, a cobertura da mídia dos 
processos  com  intervenção  leiga  tem  sido  intensa20,  por  isso  é  possível 
esperar o efeito anunciado por Park, no sentido de que a presença dos 
cidadãos  comuns  reduz  as  críticas  externas  nas  decisões  penais.  Na 
verdade,  nos  dados  coletados  em  2011,  se  observa  que  a  satisfação 
cidadã  com  o  nível  de  punição  criminal  melhorou,  conforme  relatado 
acima. 
Por  outro  lado,  como  foi  relatada  em  estudos  que  incluíam  dados 
qualitativos,  a  interação  entre  os  juízes  e  jurados  no  âmbito  dos 
tribunais mistos cordobeses se desenrola geralmente como uma relação 
pedagógica,  na  qual  os  juízes  se  posicionam  como  professores 
permanentemente  disponíveis  para  ajudar  com  seus  conhecimentos  os 
cidadãos  comuns  e  responder  as  suas  perguntas21.  Da  mesma  forma, 
aqueles  que  prestaram  serviço  como  jurados  estão  satisfeitos  com  sua 
experiência  e  melhoraram  suas  opiniões  sobre  a  administração  da 
justiça22. 
Dadas  estas  condições  favoráveis  para  que  o  efeito  esperado  seja 
registrado, cabe questionar por que este resulta relativamente modesto. 
É  necessário  levar  em  conta  que  a  experiência  cordobesa  de  tribunais 
mistos  é  bastante  limitada:  apenas  150  processos  ao  longo  de  um 
período  de  seis  anos.  Neste  sentido,  mesmo  que  a  experiência  tenha 
sido  favorável,  o  número  de  pessoas  comuns  envolvidas  é  baixo  em 
comparação à população23. 

                                                            
20  O  mais  importante  jornal  da  província,  La  Voz  del  Interior,  publicou  162  notas  sobre 
estas  questões  durante  o  ano  de  2007  e  178  notas  em  2008.  Em  cidades  pequenas,  a 
intensidade  da  cobertura  da  mídia  provocou  reclamações  dos  jurados  entrevistados 
para este projeto. (Bergoglio, 2011). 
21 Ver Bergoglio e Amietta (2010) e Amietta (2011). 

22 Ver referências na nota 17. 

23  A  comparação  internacional  do  número  de  convocações  para  o  serviço  de  jurado  a 

cada  ano  ilustra  este  ponto.  Park  (2010)  estima  que  nos  Estados  Unidos  foram 
distribuídos aproximadamente 2.000.000 de convocações para o serviço de júri a cada 

236
 
Deve‐se  considerar  também  que  a  experiência  cordobesa  em 
julgamentos  por  júri  ocorreu  durante  um  período  marcado  pela 
tendência a uma certa melhoria na imagem da administração da justiça 
no país (ver Tabela 2). No entanto, um estudo recente que compara as 
avaliações  sobre  o  funcionamento  da  justiça  em  diferentes  regiões 
descobriu  que  as  opiniões  positivas  são  ligeiramente  maiores  na 
província  de  Córdoba,  em  comparação  ao  resto  do  país,  onde  não  foi 
implementada a intervenção leiga na administração da justiça24. 
Estes  dados  sugerem  que  a  implementação  dos  julgamentos  por 
júri  poderia  ter  ‐  a  longo  prazo  ‐  efeitos  positivos  sobre  a  imagem  dos 
magistrados,  como  sugerido  teoricamente  e  observado  nos  dados 
coletados de cidadãos com experiência em participação em julgamentos 
por júri. Neste sentido, caberia esperar que, no futuro, a consolidação da 
experiência  de  julgamentos  por  júri  em  Córdoba  melhore 
significativamente a legitimidade do poder judiciário. 
 
 
 
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chapter  in  Bergoglio  M.I.  (Ed.)  Subiendo  al  Estrado,  La  Experiencia  Cordobesa  de 
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AMIETTA,  Santiago,  Governance  in  Córdoba’s  Mixed  Tribunal:  A  Study  on 
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AMIETTA, Santiago. “Poder y Saber en la experiencia de juicios con jurados en 
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ANDRUET,  Armando,  Carlos  Francisco  Ferrer  y  Laura  Croccia,  “Jurados 
populares” en Gestión del sistema de Administración de Justicia y su impacto social”, 
                                                                                                                                                
ano,  o  que  representa  1  a  cada  154  pessoas.  Em  Córdoba  se  distribuíram  4822 
convocações em 2009, ou seja, 1 por 686 habitantes. 
24 O estudo, realizado pela Universidad Siglo 21 em 2011 a nível nacional, registrou que 

16%  dos  inquiridos  considerou  que  em  Córdoba  a  justiça  funciona  bem  ou  muito 
bem.  Essa  mesma  proporção  foi  de  12%  a  nível  nacional.  Mais  detalhes  sobre  esta 
investigação em http://www.21.edu.ar/institucional‐investigacion‐proyectos.html 

237
 
Colección  Investigaciones  y  Ensayos,  Centro  de  Perfeccionamiento  Ricardo 
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240
 
          PARTE III 
 
 
Políticas urbanas e habitacionais e seus efeitos sociais. Um estudo do 
Programa “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e na Argentina 
 
María Alejandra Ciuffolini1   
Lúcia Zanin Shimbo2 
 
 
1. Introdução 
 
A  marginalização  social,  econômica  e  política  de  porções 
significativas da população na América Latina conflui – na maior parte 
dos  países  –  com  um  constante  processo  de  segregação  espacial.  Estas 
circunstâncias  de  segregação  sócio‐espacial  são  resultado  de  um 
conjunto  de  processos  políticos‐institucionais  e  econômicos3  mais 
amplos e de longa data, que têm limitado o acesso aos recursos sociais 
para parcelas cada vez mais significativas da população. 
No  que  diz  respeito  às  condições  de  habitabilidade  urbana,  se 
registra  uma  dinâmica  de  isolamento  espacial  especialmente  dirigida 
aos  segmentos  mais  pobres  da  sociedade,  sendo,  como  diz  Katzman 
(2000), o caso paradigmático de exclusão social hoje. 

                                                            
1 Pós‐Graduação em Relações Internacionais (UCC), Mestre em Administração Pública 
(UNC),  doutora  em  Ciências  Sociais  (UBA).  Professora  e  pesquisadora  da 
Universidade Nacional de Córdoba e Universidade Católica de Córdoba. Diretora da 
Equipe de Pesquisa “El llano en llamasʺ. Linha de pesquisa: políticas públicas, lutas e 
conflitos sociais. 
2  Graduação  em  Arquitetura  e  Urbanismo  (FAU/USP),  mestrado,  doutorado  em 

Arquitetura e Urbanismo (EESC/USP) e pós‐doutorado no Laboratório de Habitação e 
Assentamentos  Humanos  (LABHAB  ‐  FAU/USP).  Docente  e  pesquisadora  do 
Instituto  de  Arquitetura  e  Urbanismo,  da  Universidade  de  São  Paulo  (IAU/USP). 
Linha  de  pesquisa:  política  habitacional,  mercado  imobiliário  e  trabalho  no  canteiro 
de obras.  
3 Um tratamento mais detalhado destas questões foi desenvolvido em Ciuffolini (2010a). 

241
 
Esta tendência é observada tanto na Argentina como no Brasil, a 
partir de programas e experiências diferentes, mas que paradoxalmente 
são  nomeados  da  mesma  forma.  Os  programas  ʺMinha  Casa,  Minha 
Vidaʺ,  têm  um  desenho,  um  alcance  e  uma  implementação 
completamente distintos no caso do Brasil e de Córdoba‐Argentina. Este 
artigo  se  propõe  a  realizar  tanto  uma  análise  desses  programas, 
pontuando  suas  semelhanças  e  diferenças,  quanto  tomar  o  caso 
argentino,  por  ser  mais  antigo,  como  referência  analítica  e  como  um 
anúncio de um problema empírico de larga escala para o caso do Brasil, 
em  relação  ao  impacto  sobre  as  relações  sociais  e  os  processos  de 
subjetivação a que dão lugar. 
Dessa  forma,  o  artigo  está  organizado  em  duas  grandes  seções 
que  abordam  cada  um  dos  casos:  Córdoba‐Argentina  e  Brasil.  A 
primeira,  que  trata  do  caso  de  Córdoba,  está  organizada  em  duas 
partes:  a  primeira  é  uma  descrição  do  ʺMinha  Casa,  Minha  Vidaʺ 
(PMCMV)  e  a  segunda  analisa  o  espaço  a  partir  da  lógica  de  valor, 
circulação  e  significação.  A  segunda  seção  aborda  o  caso  do  Brasil, 
estruturada  em  duas  partes:  a  primeira  refere‐se  à  descrição  do 
programa,  e  a  segunda  trata  das  questões  relacionadas  à  produção  da 
habitação  e  às  tensões  entre  política  habitacional  e  o  PMCMV. 
Finalmente, na conclusão, se oferece um conjunto de reflexões sobre os 
mecanismos  dos  programas  analisados  e  seus  efeitos,  não  apenas 
habitacionais,  mas  também  sociais  e  urbanos,  a  partir  de  uma 
perspectiva comparativa das duas experiências.  
 
2. ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, Córdoba‐Argentina 
 
Um  ponto  de  partida  comum  tem  sido  o  de  entender  que  a 
habitação  não  é  um  elemento  neutro,  mas  que  possui  uma  importante 
carga de condicionamento e controle; ao mesmo tempo que reflete um 
mundo  de  signos,  desejos  e  frustrações.  Essa  condição  da  casa,  não 
apenas material, mas também simbólica e ideologicamente constituída, 
a coloca em conexão direta com a estrutura social e espacial. 

242
 
É por isso que, em nossa investigação4, o programa – PMCMV – 
de  relocalização  de  populações  em  situação  de  risco  ambiental  e/ou 
social,  implica  uma  análise  do  processo  de  deslocalização/ 
deslocamento,  a  partir  de  um  marco  que  entende  o  espaço  como  um 
recurso  organizacional  e  como  uma  força  de  produção  do  capitalismo 
(Lefebvre,  1974;  Smith,  1990;  Harvey,  2008).  Essa  abordagem  também 
exige  uma  compreensão  do  espaço  como  aquele  que  resulta  das  lutas 
desencadeadas  pelo  controle  e  posse  de  recursos  sociais.  Em 
consequência, solicita uma análise sobre o imaginário social, as relações 
de  poder  e  as  formas  de  dominação  e  resistência  que  nele  se 
organizam5. 
O  processo  de  deslocalização/deslocamento  que  o  programa 
oferece,  está  guiado  pelos  imperativos  de  uma  racionalidade  técnica, 
uma compreensão do urbanismo e da intervenção pública que prioriza 
a constituição de um espaço e de uma ordem abstratos e homogêneos: 
ʺpaisagem anódina e repetida, cubos replicados...ʺ, no dizer de Gómez 
Luque (2010), ʺcidades outrasʺ6. 
Da  investigação  realizada  se  depreende  que,  embora  as 
melhorias habitacionais, de serviços e de equipamentos urbanos7 sejam 
                                                            
4 A pesquisa foi realizada graças ao apoio oferecido pela Secretaria de Ciência e Técnica 
e pelo Centro de Investigações Jurídicas e Sociais da F. de Direito e Ciências Sociais da 
Universidade Nacional de Córdoba. 
5 Situados a partir de uma episteme interpretativa que permite explorar as experiências 

de relocalização e suas implicações na subjetividade política, se realizou um dedicado 
trabalho de campo em 6 bairros da cidade de Córdoba ao longo de um ano (setembro 
de 2008 a novembro de 2009). Foram realizadas um total de 96 entrevistas nos bairros: 
Bairro  Ciudad  de  Mis  Sueños  (18  entrevistas),  Bairro  Ciudad  Obispo  Angelelli  (19 
entrevistas), Bairro Ciudad Ampliación Ferreyra (23 entrevistas), Bairro Ciudad de los 
Niños (5 entrevistas), Bairro Ciudad Ampliación Cabildo (23 entrevistas), Ciudad Sol 
Naciente  (8  entrevistas).  O  estudo  precedente  de  documentos  governamentais  e 
dados secundários governamentais se serve de de estatísticas oficiais. 
6  Gomez  Luque,  M.  “La  casa  o  la  ciudad,  la  arquitectura  de  los  barrios  ciudades”.  En 

Scarponetti, P. y Ciuffolini, M.A. (comps. 2010) Ojos que no ven, corazón que no siente. 
Relocalización territorial y conflicto  vidad  social:  un  estudio  sobre  los  Barrios  Ciudades  de 
Córdoba. Buenos Aires: Nobuko 
7  Os  ʺbairros  cidadesʺ  possuem  os  serviços  básicos  (água  corrente,  energia  elétrica, 

iluminação  pública)  e  de  equipamentos  de  saúde,  ensino  fundamental,  creches  e 


posto policial. As casas são unidades iguais, que constam de uma cozinha, banheiro e 
dois quartos, em lotes autônomos com cercas e sem muros de divisão (42 m2 de área 

243
 
inegáveis,  como  também  o  é  a  envergadura  do  plano,  é  igualmente 
certo que a remoção e a relocalização de numerosos assentamentos em 
direção aos “bairros cidades” têm gerado um complexo leque de novos 
problemas e, também, novas formas de precariedade e desigualdade. 
 
2.1. Descrição do Programa ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, em Córdoba 
 
O  PMCMV  merece  uma  análise  destacada  na  trajetória  das 
políticas  estaduais  de  habitação  tanto  por  seu  impacto,  relativamente 
maior,  em  comparação  com  outras  políticas  habitacionais  que  foram 
aplicadas  simultaneamente  na  cidade8,  como  por  apresentar 
características singulares e inovadoras para estas latitudes. 
Em  primeiro  lugar,  em  termos  de  recursos  aplicados,  o 
programa  significou  o  maior  dos  investimentos  na  cidade  de  Córdoba 
em  matéria  de  política  habitacional  para  os  assentamentos  precários  e 
para as favelas. Esta escala de aplicação foi possível graças aos recursos 
provenientes  de  crédito  do  Banco  Interamericano  de  Desenvolvimento 
(BID)9,  o  que  solicitou  uma  adaptação  das  políticas  às  orientações  e 
condições  que  tal  instituição  requeria  para  o  outorgamento  dos 
créditos10. 

                                                                                                                                                
construída  e  aproximadamente  300  m2  de  terreno).  Se  pensarmos  na  família  típica, 
com  média  de  seis  pessoas  ou  mais,  estas  medidas  condenam  a  uma  intensa 
aglomeração;  ao  que  parece,  do  ponto  de  vista  das  políticas  públicas,  essas 
consequências parecem não ter sido levadas em conta no momento de se projetar os 
conjuntos habitacionais.  
8  Exemplos  destes  são:  1)  O  Programa  Nacional  PROMEBA  (Programa  Melhoramento 

de  Bairros),  que  na  cidade  de  Córdoba  tinha  conseguido  urbanizar  apenas  três 
assentamentos,  que  reuniu  cerca  de  700  famílias  até  o  ano  de  2007  (Buthet  et.  all, 
2007). 2) A prefeitura da cidade, sob a direção de Luis Juez entre 2004 e 2007, também 
foi responsável por urbanizar alguns assentamentos, mas sem muito resultado sobre 
o total da população que vive nas vilas. 
9 Por outro lado, o orçamento que recebia há anos atrás a Mesa de Concertación provinha 

do cálculo de fundos provinciais e nacionais, não de financiamento externo. 
10 Ademais das condições gerais de concessão de empréstimos, a proposta de utilização 

dos mesmos deve ser compatível com as políticas do BID sobre ʺDesastres Naturais e 
Inesperadosʺ (OP‐704), ʺReassentamentos Involuntáriosʺ (OP‐710), ʺDesenvolvimento 
urbano e habitaçãoʺ (OP‐751) “Meio Ambienteʺ (OP‐703). 

244
 
A aplicação do plano implicou a relocalização de pouco mais de 
35 assentamentos dos 158 que existiam em 2001 (Buthet et.al., 2007). Isso 
teve  um  impacto  direto  sobre  os  levantamentos  e  censos  que  foram 
realizados  após  sua  implementação,  que  registraram  uma  diminuição 
tanto da quantidade de pessoas que viviam em “favelas de emergência” 
como do número de favelas registradas na cidade. 
Por sua vez, as condições de administração do PMCMV também 
foram  inovadoras.  Em  primeiro  lugar,  o  plano  estava  enquadrado  em 
uma  nova  constelação  administrativa  que  organizava  o  aparato 
burocrático do Estado Provincial em ʺAgênciasʺ, em conformidade com 
as  propostas  de  modernização  e  reforma  do  Estado11.  Isso  anunciava 
uma  nova  perspectiva  para  articular  atores  privados  e  públicos  no 
campo  das  políticas  públicas  e  realizar  mudanças  nas  modalidades  de 
projeto e execução12. Em segundo lugar, o plano fez convergir, em sua 
estratégia,  três  unidades  administrativas  diferentes:  o  Departamento 
Provincial da Habitação do Ministério de Obras e Serviços Públicos, e a 
ex‐Agência Córdoba Solidária (antigo Ministério do Desenvolvimento e 
Assistência  Social  e  atual  Ministério  da  Solidariedade)  e  a  Agência 
Córdoba Ambiente. 
O  PMCMV  foi  destinado  para  os  grupos  vulneráveis  que 
habitavam zonas inundáveis13 da cidade de Córdoba, com necessidades 
básicas  insatisfeitas  (NBI).  Ele  envolveu  a  relocalização  de  favelas  e 
assentamentos  de  emergência  em  novos  bairros,  longe  das  regiões  de 
origem. Também contemplou a construção de pequenos assentamentos 
com menores dimensões do que os “bairros cidades”. 
O  programa  previa  a  construção  de  12.000  unidades 
habitacionais,  das  quais  8.537  foram  realizadas.  Estas  casas  estão 
incluídas  no  Programa  de  Regularização  de  Habitações  Sociais 
(Programa  Escrituração  de  Vivendas  Sociales)  do  Ministério  do 
Desenvolvimento  Social,  que  concede  a  escritura  gratuita  às  famílias 

                                                            
11  Leis  provinciais  de  Reforma  do  Estado:  Lei  de  8835  (ʺCarta  ao  cidadãoʺ),  Lei  8.836 
(ʺModernização  do  Estadoʺ),  Lei  8837  (ʺIncorporação  de  capital  privado  ao  setor 
públicoʺ). 
12 Ver Boito et. al (2009), Nallino (2003). 

13 Em seguida, se estendeu à população em risco social. 

245
 
beneficiárias,  completando  o  que  previa  o  PMCMV  em  relação  à 
regularização de posse. 
O  programa  previu  a  entrega  às  famílias  de  módulos 
habitacionais que compreendiam dois quartos, cozinha e banheiro, com 
uma  área  de  42  metros  quadrados.  Além  disso,  os  “bairros  cidades” 
foram equipados com escolas de nível inicial e primário, posto policial, 
posto  de  saúde,  áreas  comerciais  e  área  de  esportes,  contando,  em 
alguns  casos,  com  um  centro  de  capacitação  –  O  Conselho  Territorial. 
Ademais,  eles  foram  equipados  com  infraestrutura  de  rede  de  água 
potável,  energia  elétrica,  iluminação  pública,  calçadas,  pavimentação  e 
rede de esgoto com estação de tratamento da água. 
Para  levar  adiante  este  Programa,  uma  equipe  da  área  de 
Habitação Social do Ministério da Solidariedade realizou censos com os 
beneficiários,  anunciando  o  futuro  remanejamento.  Posteriormente, 
promoveram  oficinas  para  capacitar  os  novos  proprietários  quanto  ao 
manejo adequado da infraestrutura habitacional antes da transferência. 
A  transferência  foi  realizada  pela  Guarda  Nacional,  forças 
policiais  e  uma  equipe  do  Ministério  do  Desenvolvimento  Social.  As 
casas desocupadas eram demolidas por tratores presentes no local para 
evitar  a  ocupação  das  mesmas  por  outras  pessoas,  e  para  realizar  a 
reabilitação  ambiental  dessas  áreas,  conforme  estipulava  o  convênio 
com o BID. 
O  PMCMV  foi  financiado  pelo  BID,  juntamente  com  uma 
contrapartida  da  província.  O  primeiro  empréstimo  se  concretizou  em 
2000  –  empréstimo  1287/OC‐AR  –  através  do  qual  o  BID  avalizou  o 
ʺPlano  de  Apoio  à  Modernização  do  Estadoʺ  (Programa  de  Apoyo  a  la 
Modernización  del  Estado  ‐  PAME)14.  Dentro  do  marco  deste  programa 
tomam corpo o ʺProjeto de Emergência para a Reabilitação Habitacional 
dos  Grupos  Vulneráveis  Afetados  pelas  Inundações  na  Cidade  de 

                                                            
14   BID  empréstimo  1287/OC‐AR.  Montante  total  aprovado  pelo  BID:  USD  215.000.000 
(USD  93.282.000  corresponderam  ao  componente  de  emergência  habitacional). 
Financiamento: 20 anos, 7,03% de juros anuais. Montante total de contrapartida local 
(Província):  USD  215.000.000.  Data  de  Aprovação:  2000.  Data  de  finalização  do 
projeto:  2007.  Avalista:  Governo  Nacional.  Além  do  empréstimo  obtido  com  o  BID, 
tomadas para este fim de modernização, a Província conseguiu a aprovação de outro 
empréstimo pelo Banco Mundial (Córdoba Provincial Reform Loan, 4585‐AR). 

246
 
Córdobaʺ (Proyecto de Emergencia para la Rehabilitación Habitacional de los 
Grupos Vulnerables Afectados por las Inundaciones en la Ciudad de Córdoba) 
e  o  programa  ʺMinha  Casa,  Minha  Vidaʺ  (PMCMV).  Em  2006,  este 
programa  recebe  outra  ajuda  como  parte  de  um  segundo  empréstimo 
concedido  também  pelo  BID  à  Província  de  Córdoba:  o  empréstimo 
1765/OC‐AR, conhecido como ʺPrograma de Desenvolvimento Social na 
Província  de  Córdobaʺ  (Programa  de  Desarrollo  Social  en  la  Provincia  de 
Córdoba)15. 
Os objetivos do PMCMV eram: contribuir para o melhoramento 
integral da moradia e das condições de vida das famílias beneficiárias; 
apoiar  os  processos  de  organização  social,  promoção  comunitária  e 
desenvolvimento auto‐sustentável dos grupos que foram afetados pelas 
inundações  do  Rio  Suquía,  seus  afluentes  e  canais,  e  as  áreas  de  risco 
antrópicas, especialmente aquelas relacionadas às situações de pobreza 
e de vulnerabilidade social; relocalizar em um Novo Bairro as famílias 
beneficiárias, dando‐lhes uma moradia com serviços básicos e escritura 
individual;  prover  as  novas  localizações  de  equipamentos  e 
infraestrutura social, possibilitando o acesso aos serviços de educação e 
saúde;  fortalecer  os  processos  de  organização  social  e  as  redes 
comunitárias  da  população  beneficiária;  promover  a  participação  das 
famílias na gestão do projeto16. 
Alguns dos “bairros cidades” criados pelo PMCMV são: Ciudad 
de Mis Sueños (565 casas); Ciudad Obispo Angelelli (564); Ciudad Evita 
(574); Barrio 29 de Mayo‐Ciudad de los Cuartetos (480); Ciudad de los 
Niños  (412);  Ciudad  Juan  Pablo  II  (359);  Ampliación  Ferreyra  (460); 
Ciudad  Villa  Retiro  (264);  Ciudad  Parque  Las  Rosas‐Matienzo  (312); 
Ampliación  Cabildo  (570);  Ciudad  Esperanza  (380)  e  Ciudad  Sol 
Naciente  (638).  Outros  bairros  incluídos  no  PMCMV:  Barrio 
Renacimiento  (233);  Barrio  San  Lucas  (230);  Zepa  (380),  Villa  Bustos 
(197), Los Boulevares (98), Parque Liceo (25), El Quebracho Anexo (230), 

                                                            
15  BID  empréstimo  1765/OC‐AR.  Montante  total  aprovado  pelo  BID:  USD  180.000.000. 
Financiamento: 25 anos, a juros baseados na LIBOR. Montante total de contrapartida 
local  (Província):  USD  35.000.000.  Data  de  Aprovação:  2006.  Avalista:  Governo 
Nacional. 
16  Projeto  de  Emergência  para  a  Reabilitação  Habitacional  dos  Grupos  Vulneráveis 

Afetados pelas Inundações na cidade de Córdoba. 

247
 
Villa  Azalais  (359)  Argüello  Anexo  (147  casas),  San  Lorenzo  (574),  La 
Esperanza  (80),  Chachapoyas  (202),  Los  Álamos  (178),  Yapeyú  (138), 
Villa  Boedo  (128),  Jardín  del  Pilar  (312),  Las  Lilas  (81),  Los  Chingolos 
(266),  Santa  Isabel  (54),  San  Antonio  (188),  Inaudi  Anexo  (60);  e  na 
Grande Córdoba: Malvinas Argentinas (131, nos planos 1 e 2) y Juárez 
Celman (412), e o bairro de Alta Gracia denominado Cafferata (76). 
A estas características que concedem singularidades ao PMCMV 
se acrescenta outra: certa retórica da emergência e da urgência em sua 
concepção  e  justificativa.  Trata‐se  de  um  argumento  no  qual  a 
ʺemergênciaʺ está associada a uma situação de risco que, enquanto tal, 
não pode ser enfrentada com os meios ordinários, e cujo perigo latente 
exige  um  tratamento  urgente,  diante  do  qual  se  requer  uma  ação 
imediata  do  Estado.  Consequentemente,  se  suspende  o  tratamento 
legislativo  que  tais  medidas  implicariam,  dando  lugar  ao  uso  de 
faculdades  puras  do  poder  executivo,  como  o  decreto17.  Neste  caso, 
ademais,  a  agilidade  nas  ações  é  uma  exigência  da  agência 
financiadora18  –  BID  –,  já  que  a  situação  de  emergência  impõe  uma 
dinâmica  de  flexibilidade  jurídica,  na  qual  as  normas  têm  a 
particularidade  de  ser  pragmaticamente  adaptáveis  às  circunstância 
cambiantes. 
Em outras palavras, a emergência torna‐se a base para um novo 
ʺpacto  socialʺ  entre  os  indivíduos  e  a  estatalidade.  Como  explicou 
Murillo  (2008),  essa  nova  relação  já  não  se  assenta  na  ideia  de  direitos 
sociais  universais,  mas  sim  em  uma  espécie  de  novo  humanismo  que 
reduz  a  questão  social  à  atenção  a  um  mínimo  biológico:  ʺas 
necessidades  básicasʺ.  A  política  social  tem  assim  seu  eixo  em  uma 
visão  ʺminimizadoraʺ  das  necessidades  humanas  que  tende,  por  um 
lado,  a  se  mostrar  com  certa  aparência  de  intervenção  voluntária  ou 
moral  das  políticas  de  Estado  e,  por  outro  lado,  digna‐se  a  legitimar  a 

                                                            
17 Esta situação foi formalizada pelo Decreto de Necessidade e Urgência Provincial N º 
2565/01 que declara ʺo estado de emergência hídrica e social na capital da província, 
em  tudo  o  que  ocorre  às  imediações  e  margens  do  Rio  Suquía,  canais  de  irrigação, 
margens de leite de rios e em áreas sujeitas a inundaçõesʺ. 
18  De  acordo  com  o  Regulamento  Operacional  do  BID  OP  704:  ʺPara  obter  assistência 

imediata  em  caso  de  desastre,  o  país  mutuário  deve  declarar  um  estado  de 
emergência e solicitar assistência do Banco em função da sequela do desastreʺ. 

248
 
existência de limiares de cidadania ou de diferentes níveis de cidadania 
(Ciuffolini  e  Vega,  de  2009;  de  la  Vega,  2010)  que  negam  qualquer 
caráter igualitário de direitos. 
Esse desenho de intervenção estatal favorece um tratamento ágil 
e  focalizado  dos  problemas,  em  detrimento  de  uma  ação  integral  que 
ofereça soluções ao complexo fenômeno da pobreza. Assim, o PMCMV 
atende  prontamente  a  questão  da  falta  de  moradia,  mas  reproduz,  em 
seu desenho, as formas de exclusão a ela associadas. Nesse sentido, vale 
destacar  a  intensificação  da  segregação  espacial.  Isso  ocorre  porque  o 
programa  opera  um  deslocamento  geográfico  dos  pobres  para  as 
margens da cidade, agravando outras situações de exclusão, como as de 
emprego, de acesso a serviços básicos, como saúde e/ou transporte, etc. 
Consequentemente,  criam‐se  novos  ou  reforçam‐se  velhos  padrões  de 
desigualdade e de acesso e uso da cidade. 
O  deslocamento  massivo  e  a  relocalização  de  tantos 
assentamentos  para  os  ʺbairros  cidadesʺ  têm  ʺliberadoʺ  importantes 
espaços  na  área  central  para  empreendimentos  privados  e  públicos, 
revalorizando  a  terra  e  tornando‐a  inacessível  aos  segmentos  de  mais 
baixa  renda.  Isso  leva  a  um  processo  de  ʺsuburbanizaçãoʺ,  porque  a 
população  se  estabelece  cada  vez  mais  longe  dos  núcleos  centrais,  e 
produz  uma  menor  densidade  habitacional  na  cidade.  Assim,  a  área 
destinada  ao  uso  urbano  aumentou,  entre  1991  e  2001,  em  320%  para 
além  do  crescimento  populacional,  produto  tanto  do  mercado 
imobiliário  quanto  dos  planos  estatais  de  habitação  e,  ainda,  das 
famílias que se veem obrigadas a afastar‐se cada vez mais em busca de 
terrenos acessíveis. 
 
2.2 O espaço: lógicas de circulação, significação e valor 
 
A  estrutura  da  economia  capitalista  funciona  assumindo  todo 
aquele conteúdo do qual deseja se proteger. O que ameaça o capital não 
é  a  violência,  mas  o  seu  exterior:  que  exista  algo  fora  dele.  Por  esta 
razão,  sua  dinâmica  é  a  de  um  processo  constante  de  reintrodução  de 
tudo  aquilo  que  lhe  é  alheio.  Este  processo  de  mercantilização 
permanente da lógica econômico‐política é o mecanismo através do qual 
se administra e promove a reprodução das relações sociais capitalistas. 

249
 
Nesta  reprodução  intervém  –  algumas  vezes,  por  momentos 
solidários, em outros, competitivos ou conflitantes – o Estado e o capital 
privado.  O  jogo  que  se  estabelece  entre  ambos  reorganiza,  redefine  ou 
mesmo  reconfigura  o  uso  do  espaço  e  as  significações  sociais  que  são 
tecidas  sobre  ele.  Assim,  “toda  intervenção  urbana  é  acompanhada  de 
transformações das atividades e dos valores da sociedade considerada, 
assim  como  de  transformações  efetivas  dos  indivíduos  e  dos  objetos 
sociaisʺ (Castoriadis, 1989:21). 
A  infraestrutura  urbana,  sua  disponibilidade,  acessibilidade  e 
significado,  se  mostra,  parafraseando  a  Gonzales  Ordovaz  (1998) 
também,  como  um  mundo  de  signos,  desejos,  frustrações,  restrições 
evidentes  de  oportunidades  de  inserção  social.  Neste  sentido,  a 
habitação, sua localização e sua relação espacial com o centro da cidade 
e com os centros de consumo e de trabalho, etc., permitem perceber com 
toda clareza a simbologia e a ideologia urbana. 
Nesse  sentido,  o  funcionamento  do  PMCMV  se  orientou 
principalmente a retirar, da zona central e do interior do anel viário que 
circunda  a  cidade,  as  favelas  de  emergência  e  dos  pobres.  ʺValiososʺ 
terrenos  foram  desocupados  para  uso  público  ou  para 
empreendimentos  privados,  configurando  um  novo  mapa  espacial  e 
social  no  qual  a  pobreza  está  confinada  às  periferias  da  cidade.  Essas 
dinâmicas  do  Estado  no  uso  e  na  valorização  de  espaços  e populações 
através de políticas públicas, e a forma como o mercado define algumas 
áreas  como  de  boa  qualidade  e,  portanto,  de  seu  interesse,  implicam 
toda uma engenharia do urbano na qual a população se reacomoda e se 
distribui  de  acordo  com  as  possibilidades  financeiras  para  consumir  e 
com as oportunidades de trabalhar e de produzir (Cravino, et.al., 2009). 
A  população  recategorizada  socialmente  leva  a  constituição  de 
uma  cidade  dual:  por  um  lado,  a  cidade  da  população  produtora, 
proprietária,  que  consome  e  trabalha;  e  por  outro,  a  cidade  dos 
assistidos,  desapropriados,  trabalhadores  precários  e  consumidores 
intermitentes.  Nesses  dois  espaços  se  entrelaçam,  de  maneira 
diferenciada,  a  reprodução  capitalista  das  relações  sociais  e  a 
cotidianidade. 
É a interconexão, as articulações e as tensões reais ou potenciais 
entre esses espaços, que dão origem às relações de classe específicas que 

250
 
são  produzidas  pelos  processos  históricos  –  ou  seja,  em  um  espaço‐
tempo particular – de posicionamento e espacialização do trabalho, das 
relações sociais e das interações face‐a‐face. 
Visto  desta  forma,  o  espaço  compreende  as  barreiras  no  mapa 
(arquitetônica  e  socialmente  delimitadas)  e  nos  horizontes  da  vida 
social.  A  divisão  espacial  oferece  uma  série  de  possibilidades 
estrategicamente  seletivas,  no  sentido  de  desenvolver  relações  sociais 
através  do  tempo  e  do  espaço  (Jessop,  2007:33).  Precisamente,  o  que 
queremos  dizer  é  que  o  espaço,  o  lugar,  o  tempo  e  a  interação 
favorecem  ou  não  uma  conjuntura  de  insurgência  e  resistência.  Por 
outro  lado,  os  deslocamentos  e  relocalizações  implicam  destruição  de 
redes  de  interação,  de  solidariedades  tecidas  no  tempo  e  no  espaço 
(Hernandez, Mestres e Liberal Ibáñez, 2010). 
O  movimento  massivo  de  população  pobre  que  implicou  o 
PMCMV  teve  como  consequência  não  só  o  desenraizamento,  mas 
também  o  desmantelamento  das  estratégias  de  sobrevivência  que  os 
pobres  haviam  constituído  ao  longo  do  tempo,  as  quais  implicavam 
redes  de  controle  e  solidariedade  tanto  entre  os  sujeitos  como  em 
relação à comunidade. Especialmente problemático foi o impacto sobre 
as  relações  de  trabalho,  já  que  em  suas  antigas  localizações  tinham 
acesso  fácil  e  próximo  a  oportunidades  de  emprego  –  quer  fossem 
trabalhos  precários  e  temporários,  quer  fossem  serviços  domésticos  ou 
trabalhos  domiciliares,  como  costura,  carpintaria,  etc.  –,  e  o 
distanciamento  que  a  erradicação  implicou  em  relação  aos  demais 
setores sociais os colocou à margem do trabalho e, inclusive, de outras 
instâncias de integração, como escolas e serviço de saúde. 
Além disso, e concomitantemente com a política de erradicação 
de  favelas,  ocorre  em  Córdoba  a  implantação  de  uma  política  de 
segurança  que  reforça  ainda  mais  a  exclusão.  Ela  consiste  em  limitar 
e/ou controlar a circulação da população pobre – especialmente jovens 
do sexo masculino – para além das fronteiras que delimitam os bairros. 
Assim,  a  mobilidade  dos  segmentos  populares  pela  cidade  é  regulada 
pela força policial e sua política estigmatizante, que atribui à pobreza – 
assim, em geral – as práticas da delinquência e do crime. 
Essa  concomitância  de  políticas  de  habitação  para  setores 
populares  e  políticas  de  segurança  agudizam  as  práticas  de  exclusão, 

251
 
confinando  os  pobres  a  situações  cada  vez  mais  precárias  de  vida.  As 
dinâmicas  institucionais  e  econômicas  se  combinam  em  sua  ação 
cotidiana,  resultando  em  formas  de  regulação,  disciplinamento  e 
reprodução das relações sociais classistas e capitalistas. 
Em  síntese,  nas  cidades  se  expressam  com  toda  transparência, 
através das localizações, dos percursos e dos consumos que se habilitam 
a determinados grupos, os signos das classes sociais. O espaço urbano, 
seu  traçado,  desenho,  infraestrutura  e  aspectos  semióticos  fazem  dele 
um espaço ocupado, carregado de qualidades, de relações, sentidos, ou 
seja,  de  significados  que  falam  a  respeito  de  poder,  prestígio  e  status 
social,  e  definem,  para  cada  grupo  em  particular,  possibilidades  e 
restrições no acesso e uso do comum, isto é, da cidade. 
 
 3. “Minha Casa, Minha Vida” no Brasil e o protagonismo do mercado 
na política habitacional 
 
O Programa “Minha Casa, Minha Vida” foi lançado em 2009 no 
Brasil,  portanto,  quase  uma  década  depois  do  programa  homônimo 
implementado  em  Córdoba.  Assim  como  o  PMCMV  de  Córdoba 
merece uma análise especial dentre os programas estaduais, o PMCMV 
– Brasil representa um marco na trajetória dos programas nacionais de 
habitação  dado  o  volume  de  investimentos  públicos  e  privados,  a 
quantidade de unidades habitacionais a serem produzidas e a sua área 
de  abrangência,  levando  alguns  autores  afirmar  que  “talvez  seja  o 
programa habitacional mais ambicioso já desenvolvido no país, mesmo 
considerando  os  ‘áureos  tempos’  do  BNH  [Banco  Nacional  de 
Habitação]” (Cardoso e Lago, 2013: 14). 
Mais  do  que  isso,  o  programa  vem  corroborar  o  protagonismo 
do mercado imobiliário na política habitacional brasileira, que já vinha 
sendo  privilegiado  em  diversas  medidas  regulatórias  e  institucionais 
desde  meados  dos  anos  1990.  Para  Arretche  (2002),  os  programas 
habitacionais  voltados  para  os  setores  de  renda  mais  baixa  seguiram 
duas vertentes desde então. A primeira vertente dava continuidade ao 
modelo  baseado  na  promoção  pública,  por  intermédio  de  Estados  e 
municípios,  já  praticado  desde  o  Banco  Nacional  de  Habitação  (BNH), 

252
 
entre  1960  e  1980.19  A  segunda  vertente,  entretanto,  rompia  com  o 
desenho  institucional  do  modelo  anterior:  instaurava‐se  a  linha  de 
financiamento  direto  ao  mutuário  final  e  introduzia  um  novo 
“paradigma”  na  provisão  de  habitação  brasileira,  pautado  nos 
princípios de mercado.  
A  “abordagem  de  mercado”  da  política  habitacional  das  duas 
gestões  de  governo  do  Presidente  Fernando  Henrique  Cardoso  (1995‐
2002), apesar de apresentar uma significativa redução na capacidade de 
financiamento diante de um cenário de recessão econômica, inovou ao 
criar  o  programa  “Carta  de  Crédito”  que  permitia  o  acesso  direto  dos 
consumidores,  sem  a  intermediação  de  incorporadoras  ou  órgãos 
públicos  de  promoção  de  moradia  –  como  era  necessário  até  então  ‐ 
para a aquisição de financiamento para obtenção da casa própria, tanto 
de  um  imóvel  novo  ou  usado.  Esse  programa  utilizava  os  dois 
principais fundos de financiamento habitacional, estabelecidos desde o 
BNH:  o  Fundo  de  Garantia  de  Tempo  de  Serviço  (FGTS)  e  o  Sistema 
Brasileiro de Poupança e Empréstimo (SBPE).20 
A  partir  de  2005,  a  produção  privada  de  moradias  se 
potencializou com a entrada do capital financeiro em grandes empresas 
construtoras e incorporadoras e com o vertiginoso aumento de recursos 

                                                            
19  Nos  seus  vinte  e  dois  anos  de  existência,  entre  1964  e  1985,  o  BNH  financiou  a 
produção de 4,45 milhões de unidades habitacionais, correspondendo a 25% do total 
de novas unidades construídas no país – e dessas 4,45 milhões de unidades, somente 
33,1% foi destinada para faixas de renda de 1 a 3 salários mínimos. (Royer, 2009). O 
modelo  de  financiamento  habitacional  adotado  desde  então  no  Brasil,  dentro  do 
Sistema Financeiro da Habitação (SFH), foi o de criação de instrumentos de captação 
de  poupanças  privadas  (voluntárias  no  caso  do  Sistema  Brasileiro  de  Poupança  e 
Empréstimo  –  SBPE;  e  compulsórias,  no  caso  do  Fundo  de  Garantia  de  Tempo  de 
Serviço – FGTS), para aplicação primordial em investimentos habitacionais, tanto na 
esfera da produção quanto na do consumo (Cardoso e Aragão, 2013).  
20  De  acordo  com  Cardoso  e  Aragão  (2013),  os  recursos  do  FGTS  são  destinados  ao 

investimento habitacional para o atendimento de população de baixa renda e também 
para  o  financiamento  de  investimentos  em  saneamento  ambiental,  remunerados  a 
baixas  taxas  de  juros,  sendo  atualmente  operacionalizados  pela  Caixa  Econômica 
Federal.  Já  os  recursos  das  cadernetas  de  poupança,  que  compõem  o  SBPE,  são 
administrados  pelo  sistema  bancário  (público  e  privado),  remunerados  a  uma  taxa 
um  pouco  superior  ao  do  FGTS  e  destinados  primordialmente  ao  financiamento 
habitacional para os setores de renda média. (Cardoso e Aragão, 2013: 17‐18) 

253
 
públicos  para  o  financiamento  habitacional  para  obtenção  da  casa 
própria,  além  de  outros  fatores  conjunturais,  tais  como  o  crescimento 
econômico  do  país,  a  redução  das  taxas  de  juros  e  a  elevação  real  do 
valor do salário mínimo.  
A  ampliação  da  capacidade  de  financiamento  habitacional  era 
prevista  na  Política  Nacional  de  Habitação  (PNH),  elaborada  em  2004 
pelo primeiro governo federal de Luiz Inácio Lula da Silva (2003‐2006), 
que  buscava  ampliar  o  mercado  para  atingir  os  “setores  populares”, 
permitindo  a  “otimização  econômica  dos  recursos  públicos  e  privados 
investidos  no  setor  habitacional”.  Para  tanto,  era  prevista  a  criação  de 
mecanismos  tanto  de  proteção  aos  financiamentos  habitacionais  como 
de captação de recursos, entre os quais, aqueles disponíveis no mercado 
de capitais. (Brasil, 2004). 
Além  disso,  o  Ministério  das  Cidades  foi  criado,  em  2003,  com 
um  caráter  de  órgão  coordenador,  gestor  e  formulador  da  Política 
Nacional  de  Desenvolvimento  Urbano  (PNDU),  e  sendo  responsável 
pela  gestão  da  política  habitacional.  Entretanto,  ele  perdia  força 
operacional  diante  da  manutenção  da  Caixa  Econômica  Federal 
(CAIXA)21,  subordinada  ao  Ministério  da  Fazenda,  e  que  continuou  e 
continua  a  exercer  enorme  poder  na  execução  da  política  habitacional, 
como agente operador dos programas e principal agente financeiro dos 
recursos do FGTS. 
Desde  então,  os  agentes  privados  souberam  atuar  na 
liminaridade  entre  o  que  a  política  especificava  como  “habitação  de 
interesse social” e como “habitação de mercado”, tirando proveito disso 
e  expandindo  consideravelmente  a  produção  habitacional  para  os 
setores  populacionais  de  renda  média  e  baixa,  até  então  desprezados 
pelas grandes empresas construtoras nacionais. Muitas dessas empresas 
produziram  um  estoque  de  unidades  habitacionais,  cujos  preços 
variavam  até  o  limite  máximo  de  USD  100  mil,  em  diversas  cidades 

                                                            
21  Desde a falência do BNH, a CAIXA se tornou o principal agente operador e financeiro 
dos programas habitacionais. Assim, segundo Azevedo (2007), houve a transferência 
do  problema  da  habitação  a  uma  agência  financeira  de  vocação  social,  mas  que  não 
deixa  de  lado  os  paradigmas  institucionais  de  um  banco  comercial  (como,  por 
exemplo, a busca de equilíbrio financeiro, necessidade de retorno do capital aplicado 
etc.). 

254
 
brasileiras, dentro daquilo que o mercado imobiliário passou a chamar, 
grosso modo, de “segmento econômico”.22 
A  crise  financeira  internacional  ocorrida  no  final  de  2008 
ameaçou,  de  certa  forma,  a  comercialização  desse  estoque  (seja  em 
unidades já produzidas, seja em terrenos adquiridos) e a continuidade 
da  expansão  da  produção  habitacional  levada  a  cabo  por  grandes 
empresas. Em março de 2009, PMCMV‐Brasil foi lançado com o objetivo 
de  construir  um  milhão  de  moradias  e  foi  apresentado  como  uma  das 
principais ações do governo em reação à crise econômica internacional e 
também  como  uma  política  social  de  grande  escala.  Ao  mobilizar  um 
conjunto de medidas de estímulo à produção habitacional, mantendo o 
desenvolvimento  dos  setores  imobiliário  e  da  construção  civil,  o 
programa atendia dois imperativos econômicos e sociais – por um lado, 
a criação de empregos no setor da construção, e, por outro, a provisão 
de  moradias.  Segundo  Fix  e  Arantes  (2009),  se  as  “classes  C  e  D”23  já 
haviam sido descobertas por quase todas as empresas nos últimos anos, 
ainda havia limites para a efetivação desse mercado, os quais o pacote 
pretendia, a princípio, superar por meio do “apoio decisivo dos fundos 
públicos e semipúblicos”. 
                                                            
22 Em  Shimbo  (2012),  há  o  desenvolvimento  do  argumento  de  que  a  habitação  social 
transformou‐se, de fato, num mercado. O mercado imobiliário descobriu e constituiu 
um nicho bastante lucrativo: a incorporação e a construção de unidades habitacionais 
com  valores  até  duzentos  mil  reais  (ou  USD  100  mil),  destinadas  para  famílias  que 
podem  acessar  os  subsídios  públicos  ou  não  –  mas  que  necessariamente  acessam  o 
crédito  imobiliário.  Assim,  há  uma  fronteira  de  indistinção,  que  se  estabelece 
empiricamente, entre a forma de produção destinada à habitação de interesse social e 
aquela  voltada  para  a  habitação  de  mercado.  Ou  seja,  considero  que  numa  eventual 
gradação  que  procure  classificar,  num  extremo,  a  produção  pública  e,  no  outro,  a 
produção  privada,  há  uma  zona  intermediária  híbrida  –  a  “habitação  social  de 
mercado”. 
23 Há estudos no Brasil, baseados nos dados de renda domiciliar mensal, que classificam 

a população em cinco classes de renda. Neri (2008) especifica a seguinte classificação: 
a  classe  E  são  aquelas  famílias  que  recebem  até  R$768,00  (ou  aproximadamente  até 
USD 450, em dólares de março de 2008) de renda mensal; a classe D, entre R$768,00 e 
1.064,00  (entre  USD  450  e  630);  a  classe  C  (ou  “classe  média”),  entre  R$1.064,00  e 
4.591,00 (entre USD 630 e 2,700); e classes A e B, acima de R$4.591,00 (acima de USD 
2,700).  Esse  estudo  apontou  para  o  aumento,  nos  últimos  anos  no  Brasil,  da 
participação  da  classe  C.  Vale  destacar  ainda  a  renda  domiciliar  média,  R$  1.957,00 
(ou USD 1,150). Cf. NERI, 2008. 

255
 
3.1 Descrição do Programa “Minha Casa, Minha Vida” ‐ Brasil 
 
Na  Fase  1  do  PMCMV‐Brasil,  para  a  construção  de  um  milhão 
de moradias em todo o território nacional foram alocados R$ 34 bilhões 
(ou USD 14 bilhões, em dólares de março de 2009), dos quais 75% eram 
provenientes  do  Orçamento  Geral  da  União  (estritamente  público  e, 
portanto, a fundo perdido) e 25% do FGTS (recursos onerosos a serem 
devolvidos ao Sistema Financeiro da Habitação ‐ SFH). Desses recursos, 
82%  se  destinavam  para  subsídios  para  moradias,  15%  para 
infraestrutura  urbana  e  3%  para  financiamento  à  cadeia  produtiva. 
(Ferreira, 2012; Cardoso e Aragão, 2013) 
Em  2011,  foi  lançada  a  Fase  2  do  programa,  com  a  meta  de  se 
construir mais 2 milhões de unidades, contando com recursos entre R$ 
120 bilhões e R$ 140 bilhões (ou entre USD 72 bilhões e USD 84 bilhões, 
em dólares de março de 2011), de acordo com reportagens no momento 
do  lançamento,  sem  haver  uma  divulgação  precisa  da  quantidade  de 
recursos  proveniente  de  cada  fundo.  A  meta  física  foi  ampliada  em 
2012, passando para 2,4 milhões de unidades habitacionais.  
O  PMCMV‐Brasil  se  apresenta  formalmente  como  um  único 
programa  habitacional,  mas  que  se  estrutura  operacionalmente  em 
linhas  ou  modalidades  distintas,  de  acordo  com  faixa  de  renda  dos 
beneficiários, origem dos recursos e instituição proponente. Tais linhas 
estão agrupadas em, basicamente, duas faixas de renda: de 0 a 3 salários 
mínimos (SM)24 e de 3 a 10 SMs – posteriormente, a referência deixou de 
ser  o  salário  mínimo  e  passou  a  ter  um  valor  fixo,  ou  seja,  a  primeira 
faixa  até  R$  1.600,00  (ou  aproximadamente  USD  960,  em  dólares  de 
março de 2011) de renda familiar mensal e a segunda, entre R$ 1.600,00 
e  R$5.000,00  (ou  entre  USD  960  e  USD  3.000).  Na  primeira  faixa,  há  o 
subsídio  com  o  uso  de  recursos  do  Orçamento  Geral  da  União.  Na 
segunda,  uma  pequena  parte  é  composta  por  recursos  não  onerosos 
(utilizados  como  “descontos”)  e  a  grande  maioria  advém  de  recursos 
onerosos  provenientes  do  Fundo  de  Garantia  por  Tempo  de  Serviço 

                                                            
24   Em  outubro  de  2012,  um  salário  mínimo  equivale  a  R$622,00  ou,  aproximadamente, 
USD 300. 

256
 
(FGTS).  Em  ambas  as  faixas,  a  CAIXA  é  o  agente  financeiro  do 
programa. (Ferreira, 2012) 
Analiticamente, a primeira faixa corresponde aos programas de 
habitação  de  interesse  social  já  operacionalizados  no  Brasil  desde  a 
primeira  gestão  Lula,  com  algumas  mudanças  quanto  ao  montante  de 
recursos,  aliás,  bastante  considerável,  e  ao  papel  dos  agentes 
promotores.  A  segunda  faixa  incorpora  o  segmento  econômico  à 
política habitacional, tornando‐se evidente o incentivo do poder público 
aos agentes privados na produção de habitação voltada para os setores 
de renda média baixa e média.  
Em  termos  de  gestão  e  de  operacionalização,  para  a  primeira 
faixa,  é  possível  notar  que  o  PMCMV‐Brasil  foi  paulatinamente 
absorvendo  linhas  de  financiamento  que  não  estavam  presentes  no 
momento do seu lançamento, indicando um processo de acomodação e 
de  aperfeiçoamento  do  próprio  programa  durante  sua  implementação. 
Em  2009,  o  programa  enfatizava  a  produção  “por  oferta”  via 
construtoras  e  aqui  trazia  uma  novidade  quanto  ao  papel  dos  agentes 
promotores.  Nesse  caso,  “a  construtora  define  o  terreno  e  o  projeto, 
aprova‐o  junto  aos  órgãos  competentes  e  vende  integralmente  o  que 
produzir  para  a  CAIXA,  sem  gastos  de  incorporação  imobiliária  e 
comercialização,  e  sem  risco  de  inadimplência  dos  compradores  ou 
vacância  das  unidades”.  (Cardoso  e  Aragão,  2013:  37).  A  CAIXA 
seleciona  e  aprova  as  propostas  das  construtoras  e  define  o  acesso  às 
unidades,  a  partir  de  listas  de  demanda,  elaboradas  pelas  prefeituras 
municipais.  Além  desse  cadastro,  as  prefeituras  podem  participar  por 
meio  da  doação  de  terrenos,  isenção  tributária,  desburocratização  nos 
processos  de  aprovação  e  flexibilização  das  normas  urbanísticas  para 
aumentar os índices de ocupação do solo. Portanto, nessa modalidade, 
estão envolvidos, basicamente, empresas, CAIXA e municípios.  
Numa  outra  modalidade,  com  menor  recurso  disponível  que  a 
anterior, o agente promotor pode ser uma entidade sem fins lucrativos 
(cooperativas, associações de moradia etc.) que apresenta seu projeto à 
CAIXA que, por sua vez, efetua a análise e encaminha para o Ministério 
das Cidades, que faz a seleção dos projetos. Após aprovado, a entidade 
selecionada  envia  a  lista  de  beneficiários  a  serem  atendidos.  Nessa 
modalidade,  encontravam‐se  as  entidades  ligadas  às  famílias 

257
 
moradoras em áreas rurais e os agentes principais eram: entidade sem 
fins lucrativos, CAIXA e Ministério das Cidades. 
Em  2013,  o  PMCMV‐Brasil  passou  a  ter  outras  linhas  de 
financiamento, absorvendo municípios com menos de 50 mil habitantes 
e  a  questão  da  moradia  rural  e,  portanto,  abrange  agora  a  quase 
totalidade  dos  programas  habitacionais  anteriores  ao  PMCMV.  Assim, 
atualmente,  há  para  as  famílias  com  renda  mensal  até  R$  1.600,00,  as 
seguintes linhas: 
1.  PMCMV  Empresas:  com  recursos  provenientes  do  Fundo  de 
Arrendamento  Residencial  (FAR),  voltado  para  capitais  estaduais, 
regiões metropolitanas e municípios com população igual ou superior a 
50 mil habitantes, com operacionalização “por oferta” via construtoras, 
como explicado acima.  
2.  PMCMV  Entidades:  com  recursos  do  Fundo  de  Desenvolvimento 
Social  (FDS),  voltado  para  áreas  urbanas  de  todo  o  território  nacional, 
com operacionalização “por oferta” via entidades sem fins lucrativos. 
3. PMCMV Oferta Pública: com recursos do Orçamento Geral da União 
(OGU)  voltado  para  municípios  com  até  50  mil  habitantes  (que  não 
eram  atendidos  pelo  PMCMV  –  Fase  1),  com  operacionalização 
diferente dos anteriores, na medida em que ocorre por oferta pública de 
recursos a agentes financeiros privados autorizados pelo Ministério das 
Cidades (e não pela CAIXA).  
4. Programa Nacional de Habitação Rural: voltado para áreas rurais de 
todo  o  território  nacional.  Divide‐se  em  três  sublinhas:  i)  Para  famílias 
com renda anual bruta de até R$ 15.000,00: com recursos do Orçamento 
Geral  da  União;  ii)  Para  famílias  com  renda  anual  bruta  de  entre  R$ 
15.001,00  e  R$  30.000,00:  com  recursos  do  FGTS;  iii)  Para  famílias  com 
renda anual bruta de entre R$ 30.001,00 e R$ 60.000,00: com recursos do 
FGTS.  Vale  destacar  que  é  a  única  modalidade  do  PMCMV  que 
apresenta  a  linha  de  financiamento  para  reforma  e  ou  ampliação  de 
unidades habitacionais. 
Já para a segunda faixa, destinadas às famílias com renda entre 
R$ 1.600,00 e R$ 5.000,00, a operacionalização não se alterou desde 2009, 
embora  os  valores  máximos  de  financiamento  das  unidades 
habitacionais  tenham  sido  aumentados,  devido  à  pressão  política  das 
próprias  construtoras.  O  modelo  operacional  é  o  seguinte:  “as 

258
 
construtoras  ou  incorporadoras  apresentam  projetos  de 
empreendimentos  à  CAIXA,  que  realiza  pré‐avaliação  e  autoriza  o 
lançamento e a comercialização.” (Cardoso e Aragão, 2013: 39). Após a 
conclusão  da  análise,  a  construtora  pode  obter  um  Contrato  de 
Financiamento  à  Produção  ou  apenas  enquadrar  seu  empreendimento 
para ser comercializado dentro do programa. A comercialização é feita 
pelas  construtoras  ou  pelos  “feirões”  da  CAIXA  e  os  consumidores 
podem obter uma carta de crédito dentro do PMCMV para financiarem 
a aquisição do imóvel. Para as famílias com renda até R$ 3.100,00, há a 
possibilidade  de  subvenção  de  até  R$  23.000,00,  variando  de  acordo 
com  a  renda  e  com  a  localidade.  Nessa  faixa,  portanto,  os  agentes  se 
resumem às construtoras e à CAIXA. 
Em  relação  às  metas  físicas  do  PMCMV,  é  possível  notar  uma 
grande  alteração  em  relação  aos  números  de  unidades  previstas  em 
cada  uma  das  faixas  entre  as  Fase  1  e  2  do  programa25.  Em  primeiro 
lugar,  na  Fase  1,  evidencia‐se  o  direcionamento  dos  recursos  para  o 
segmento  econômico  do  mercado  imobiliário,  destinando 60%  do  total 
do número de unidades habitacionais, ou seja, 600 mil unidades, para as 
faixas  de  renda  que  representam  apenas  10%  do  déficit  habitacional 
brasileiro26,  ou  seja  para  as  famílias  com  renda  entre  R$  1.395,00  e  R$ 
4.650,00. E, para a faixa de renda de até 3 SMs (ou até R$ 1.395,00), que 
concentra aproximadamente 90% do déficit, foram destinadas, 40% das 
unidades, ou seja, 400 mil unidades.  
Em segundo lugar, reforça o argumento de que o programa foi, 
aos  poucos,  se  acomodando  e  se  voltando  para  as  modalidades  da 
habitação  social  strictu  sensu  –  na  Fase  2,  a  faixa  até  3  SM  passa  a 
concentrar  67%  do  total  das  unidades  previstas,  ou  seja,  1,2  milhão  de 
unidades. Mesmo assim, não corresponde ainda à proporcionalidade do 
déficit por faixa de renda. A atuação dos agentes privados no PMCMV 
prepondera em todas as faixas, pois entre as diferentes modalidades da 

                                                            
25  Tais números encontram‐se compilados por Cardoso e Aragão (2013) e Brasil (2013). 
26   O  déficit  habitacional  brasileiro  estimado  em  2007  é  de  6,273  milhões  de  domicílios, 
dos quais 83% estão localizados nas áreas urbanas. Desse total, 89,4% se refere à faixa 
da  população  com  renda  média  familiar  mensal  de  até  três  salários  mínimos  (SM), 
correspondendo  a  4,616  milhões  de  domicílios;  6,5%  na  faixa  entre  três  e  cinco  SM 
(333 mil); 4,1% na faixa acima de cinco SM (209 mil). Cf. Brasil, 2009. 

259
 
Faixa 1, na Fase 2 do PMCMV, apenas 60 mil unidades são destinadas 
às entidades sem fins lucrativos. 
Apesar do déficit habitacional não ter sido uma referência para o 
cálculo  das  metas  físicas,  ele  foi  utilizado  na  distribuição  dos  recursos 
entre as diversas unidades da federação, de forma proporcional, ou seja, 
quanto  maior  o  déficit  do  estado,  maior  a  cota  máxima  de  acesso  aos 
recursos do respectivo estado. (Cardoso e Aragão, 2013) 
 
3.2  A  produção  do  “Minha  Casa,  Minha  Vida”  –  Brasil  e  a 
consolidação de um mercado de habitação 
 
O  PMCMV‐Brasil  veio  legitimar  e  consolidar  um  “padrão 
econômico” da habitação ‐ ou affordable housing, em inglês, que já vinha 
sendo  esboçado  desde  o  final  dos  anos  1990.  Castro  e  Shimbo  (2011) 
analisam  a  trajetória  desse  padrão,  inicialmente  proposto  pelas 
empresas  que  atuavam  com  autofinanciamento  e  por  cooperativas 
autofinanciadas  na  década  de  1990,  que  foi,  posteriormente, 
potencializado por grandes empresas (em grande parte, financeirizadas) 
com forte apoio estatal antes mesmo do PMCMV. 
O  padrão  arquitetônico  e  urbanístico  da  habitação  social  de 
mercado que vem sendo implementado desde então pode ser resumido 
em  três  modalidades  básicas:  conjuntos  de  edifícios  verticais  (em 
grande  parte,  edifícios  de  até  cinco  pavimentos  sem  elevador); 
empreendimentos horizontais (casas térreas ou sobrepostas, em muitos 
casos, geminadas); e uma combinação das duas modalidades anteriores 
no  mesmo  terreno.  Em  grande  parte,  estão  presentes  os  muros  que 
circundam  o empreendimento e prepondera a forma “condomínio” de 
gestão desses espaços.  
A  padronização  dos  produtos  habitacionais  aponta,  por  um 
lado,  para  processos  de  produção  mais  racionalizados  e,  em  alguma 
medida,  industrializados.  Por  outro,  ela  não  significa  necessariamente 
uma qualidade arquitetônica, urbanística e construtiva. Nesse sentido, é 
marcante a compacidade da área interna da unidade, a concentração de 
um  alto  número  de  unidades  por  empreendimento  e  a  presença  de 
áreas  de  lazer  (mesmo  que  diminutas)  conformando  aquilo  que 
diversos  autores  têm  denominado  como  “condomínio  clube”.  Além 

260
 
disso,  o  mesmo  padrão  é  repetido  em  diferentes  regiões  do  país, 
independente  das  condições  climáticas,  culturais  e  morfológicas  do 
local (Ferreira, 2012).  
Além da baixa qualidade arquitetônica e urbanística, outra crítica 
frequente  ao  PMCMV‐  Brasil  diz  respeito  aos  efeitos  territoriais  de  sua 
produção.  Cardoso  (2013)  compila  estudos  recentes  sobre  essa  questão 
em  quatro  regiões  metropolitanas  do  Brasil  (Rio  de  Janeiro,  Belém, 
Fortaleza e Goiânia) que discutem a periferização dos empreendimentos 
do  PMCMV  e  destacam  a  falta  de  articulação  desses  novos 
empreendimentos  tanto  com  a  política  urbana  municipal  (os  Planos 
Diretores) quanto com o plano local de habitação de interesse social.  
Esse  descolamento  não  se  restringe  apenas  às  políticas  de 
desenvolvimento  urbano,  mas  também  a  outros  programas  sociais 
regulados  pelo  próprio  governo  federal.  Isso  porque  a  seleção  da 
demanda para a Faixa 1 do PMCMV‐Brasil fica a cargo das prefeituras 
locais.  Os  critérios  para  seleção  dos  beneficiários  podem  priorizar 
moradores  de  áreas  de  risco  ou  de  assentamentos  irregulares  ou  de 
outros locais que apresentam precariedades habitacionais, e até mesmo 
beneficiários  de  outros  programas  de  transferência  condicionada  de 
renda  (como,  por  exemplo,  o  Bolsa  Família),  mas  não  só.  E  é  aqui  que 
pode entrar a margem para um atendimento clientelista das prefeituras 
locais, pois o critério principal é a renda familiar.  
Portanto, o PMCMV‐Brasil não procura constituir propriamente 
uma  política  de  habitação,  que  estaria  centrada  numa  lógica  universal 
dos direitos e que pautariam o conteúdo normativo da política pública – 
ou  a  “verdadeira  política  pública”,  como  lembra  Dagnino  (2002)27. 
Trata‐se,  genericamente,  de  “um  programa  de  crédito  tanto  ao 
consumidor  quanto  ao  produtor”,  como  sintetiza  Cardoso  e  Aragão 
(2013:40).  Portanto,  os  parâmetros  financeiros  e  a  solvabilidade  do 

                                                            
27   Dagnino  (2002)  problematiza  as  críticas  em  torno  dos  “encontros”  entre  sociedade 
civil  e  Estado  que  ressaltam,  como  um  dos  resultados  desse  encontro,  a  criação  de 
políticas  fragmentadas,  setorializadas,  compensatórias  etc.  –  em  contraponto  ao  que 
seria “a verdadeira política pública”. Para a autora, é necessário que se explicitem os 
pressupostos  dessas  críticas  e  se  aprofunde  na  questão  que  está  implícita  nelas  – 
modelos alternativos de formulação de políticas públicas – e que se remete ao âmbito 
mais amplo dos modelos de gestão do Estado.  

261
 
sistema  importam  muito  mais  do  que  o  conteúdo  universalizante  da 
política e a articulação com a produção da cidade ‐ que requisitaria uma 
abordagem  integrada  entre  política  habitacional,  política  urbana, 
política fundiária e política social. 
A  partir  do  momento  em  que  o  paradigma  da  política 
habitacional  passa  a  ser  regido  pela  lógica  privada  –  como  Arretche 
(2002)  já  anunciava  desde  a  década  de  1990  –,  o  modelo  de  gestão 
empresarial  cabe  perfeitamente  na  operacionalização  da  própria 
política.  Ambos,  Estado  e  empresa,  procuram  rápidos  resultados  e  a 
solvabilidade do sistema (ou dos negócios). Para o PMCMV‐Brasil, que 
se  lançou  com  a  meta  total  de  se  produzir  3,4  milhões  de  unidades 
habitacionais,  é  interessante  que  esse  número  seja  atingido  em  curto 
prazo,  o  que  só  poderia  ser  viabilizado  pela  “eficiência”  da  iniciativa 
privada, segundo uma visão de mercado sobre a política. 
O  importante  aqui  é  destacar  que  a  habitação  social 
transformou‐se,  de  fato,  num  mercado  no  Brasil,  em  termos  de  sua 
lógica  de  produção.  Ou,  em  outras  palavras,  o  mercado  imobiliário  já 
havia descoberto, antes do PMCMV‐Brasil, um nicho bastante lucrativo: a 
incorporação e a construção de unidades habitacionais com valores até 
cem  mil  dólares,  destinadas  para  famílias  que  podem  acessar  os 
subsídios públicos ou não – mas que necessariamente acessam o crédito 
imobiliário.  
 
4. Considerações Finais 
 
O  comum  a  toda  forma  social  de  dominação  é  que  ela  se 
configura no e pelo espaço, em estreita relação com a lógica da produção 
e  da  circulação.  Esse  processo  de  inscrição  espacial,  dos  modos  de 
produzir, consumir e, especialmente, habitar, é condição necessária para 
a  configuração  das  relações  sociais,  suas  possibilidades  e  restrições. 
Nesta  operação  de  demarcação,  ocupa  um  lugar  privilegiado  a 
infraestrutura urbana, sua disponibilidade, acessibilidade e significado, 
que  expõe  claramente  o  mundo  dos  signos,  desejos,  possibilidades, 
frustrações,  restrições  expressas,  oportunidades  de  inserção  social  em 
um momento determinado. Mas, no interior da infraestrutura urbana, é 
a moradia, sua localização e sua relação espacial com o centro urbano e 

262
 
com  os  centros  de  consumo,  trabalho,  lazer,  etc.,  aquilo  que  permite 
apreciar de modo privilegiado a simbologia e ideologia urbana. 
Consequentemente,  quando  se  analisam  programas  de 
habitação,  tem‐se  a  oportunidade  de  aprofundar  a  análise  do  impacto 
social,  econômico  e  político  dos  mesmos,  além  de  observar  sua 
implementação,  pertinência  e  seus  resultados.  No  desenvolvimento 
deste  artigo,  oferecemos  uma  minuciosa  descrição  dos  Programas 
ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ, postos em marcha em ambos os países, na 
tentativa  de  explicar  seus  mecanismos  e  seus  efeitos,  não  apenas 
habitacionais, mas também sociais. 
A primeira questão em relação a esses programas, é que embora 
seus  nomes  sejam  idênticos28,  os  conteúdos,  as  escalas,  os  agentes,  as 
formas  de  produção  e  de  regulamentação  são  totalmente  distintos. 
Entretanto, os empreendimentos habitacionais produzidos e os espaços 
urbanos  resultantes  em  ambos  os  programas  são  muito  semelhantes. 
Trata‐se  da  produção  de  grandes  assentamentos  que  conformam  ora 
condomínios fechados, ora “bairros‐cidades”.  
Uma  segunda  questão  na  qual  podemos  encontrar  outra 
semelhança  é  o  processo  de  segregação  sócio‐espacial,  que  no  caso  de 
Córdoba  se  manifesta  explicitamente,  enquanto  no  Brasil,  que  tem 
linhas  e  modalidades  diferenciadas,  parece  afetar  especialmente  a 
parcela de beneficiários com menores salários. Estudos recentes indicam 
justamente  que  os  empreendimentos  da  Faixa  1,  portanto  das  famílias 
mais  pobres,  encontram‐se  localizados  em  áreas  de  expansão  urbana, 
mais afastados dos centros do que os empreendimentos das Faixas 2 e 3, 
voltados para população com maior renda. 
Entretanto,  no  Brasil,  o  programa  é  muito  recente  para  se 
analisarem  os  efeitos  sociais  e  territoriais  advindos  desse  tipo  de 
aglomeração  urbana  e  de  habitação.  O  caso  argentino  é  emblemático  e 
serve  como  referência  sobre  o  que  pode  acontecer  no  Brasil,  numa 
escala muito mais ampliada, em relação ao aprofundamento de práticas 
de exclusão e de constituição de territórios de precariedades, sejam elas 
habitacionais, urbanas e sociais.  
                                                            
28   E,  neste  aspecto,  outro  estudo  seria  necessário  para  verificar  se  o  nome  argentino 
inspirou  o  caso  brasileiro,  que  pode  ser  uma  possibilidade  plausível  em  épocas  de 
internacionalização de programas sociais, ou se foi apenas uma coincidência.  

263
 
Outra  semelhança  entre  ambos  os  programas  é  sua  baixa 
qualidade  arquitetônica  e  urbanística.  Os  emergentes  desequilíbrios 
territoriais  gerados  pelas  intervenções  por  meio  das  políticas  públicas 
impactam, de maneira imediata, sobre os percursos e os usos sociais do 
espaço.  O  deslocamento  para  as  áreas  suburbanas  e  escassamente 
equipadas  tem  como  resultado  uma  experiência  controversa  entre  a 
condição  de  classe  e  o  status  de  cidadãos.  A  brecha  aberta  entre  um 
status  e  outro,  e  as  contradições  entre  eles,  são um  terreno  igualmente 
fértil  para  a  constituição  de  dois  processos  completamente  opostos.  O 
primeiro  faz  da  contradição,  e  da  consciência  acerca  dela,  o  lugar 
privilegiado  para  a  constituição  do  político  como  resistência  à 
dominação:  as  lutas  políticas  e  sociais  são  gestadas  precisamente  na 
experiência  que  os  indivíduos  têm  desta  inconsistência.  O  segundo  se 
edifica a partir das experiências de desprezo – dor, raiva ou indignação. 
Os  processos  de  exclusão  violam  os  pressupostos  normativos  da 
interação  e  da  coesão  e  afetam  de  modo  direto  os  sentimentos  morais 
dos  sujeitos  (Honneth,  2009,  p.263).  Desse  modo  as  formas  estruturais 
de desprezo estão associadas aos sentimentos de injustiça. 
No  que  diz  respeito  às  diferenças,  cabe  destacar  que,  embora 
ambos  os  programas  se  apresentem  formalmente  como  um  único 
programa  habitacional,  no  caso  do  Brasil,  ele  se  estrutura 
operacionalmente  em  linhas  ou  modalidades  distintas,  de  acordo  com 
faixa  de  renda  dos  beneficiários,  origem  dos  recursos  e  instituição 
proponente. Já em Córdoba há uma única modalidade de operação, que 
se  constitui  através  de  financiamentos  provenientes  sobretudo  de 
crédito  internacional,  e  em  menor  medida  de  fundos  próprios  do 
governo provincial. Ademais, esse último é implementado diretamente 
a partir do âmbito governamental, sendo que seu produto é a moradia 
já  construída.  No  caso  do  PMCMV‐Brasil,  de  outro  modo,  trata‐se, 
genericamente,  de  “um  programa  de  crédito  tanto  ao  consumidor 
quanto ao produtor”29, com fundos públicos ou com fundos controlados 
pelo  Sistema  Financeiro  da  Habitação,  todos  de  origem  nacional  – 

                                                            
29   Um  programa  de  alcance  nacional  como  o  PMCVM‐Brasil,  que  trabalha  desde  a 
operação do financiamento, é o programa PROCREAR, implementado pelo Governo 
Federal. 

264
 
apesar  da  entrada  de  capital  financeiro  internacional  nas  grandes 
empresas construtoras. 
Em  ambos  os  programas,  a  produção  da  habitação  está  dentro 
de  um  processo  de  mercantilização  mais  amplo  de  políticas  sociais. 
Nessa  produção  e  reprodução  intervêm  –  de  maneiras  por  vezes 
solidárias, em outras competitivas ou conflitantes – o Estado e o capital 
privado.  No  caso  brasileiro,  houve  a  constituição  de  um  mercado  de 
habitação  social,  que  embora  requisite  fundos  públicos,  está  pautado 
por critérios de eficiência privada. Como apontou Oliveira (1998, p.13), 
para  se  construir  “o  pretenso  mercado  auto‐regulado,  que  dispensaria 
tudo  o  mais  a  não  ser  os  próprios  critérios  da  lucratividade”,  é 
necessário  “muito  Estado,  muitos  recursos  públicos”.  Nesse  sentido, 
houve  uma  mudança  recente  das  relações  do  fundo  público  com  os 
capitais particulares e com a reprodução da força de trabalho: o fundo 
público  funciona  como  prerrogativa  (“ex‐ante”)  das  condições  de 
reprodução  e  não  mais  como  “ex‐post”,  típico  do  capitalismo 
concorrencial. Isso significa, ainda de acordo com Oliveira (1998, p.21), 
que  a  “per‐equação  da  formação  da  taxa  de  lucro  passa  pelo  fundo 
público,  o  que  o  torna  um  componente  estrutural  insubstituível”.  No 
caso  do  PMCMV‐Brasil,  além  dessa  per‐equação,  a  decisão  sobre  as 
formas  de  regulamentação  do  fundo  público  passou  também  pelas 
empresas.  
Para  finalizar,  e  ir  além  das  semelhanças  e  diferenças 
decorrentes dos programas ʺMinha Casa, Minha Vidaʺ antes pontuadas, 
cabe ressaltar que tanto no Brasil como em Córdoba‐Argentina o déficit 
habitacional é muito elevado e afeta fortemente o segmento mais pobre 
da  população.  Daí  a  importância  dos  programas  habitacionais,  como 
espaços  de  constituição  de  direitos  e  formas  de  inclusão  social.  No 
entanto,  a  validade  e  a  legitimidade  dos  mesmos  são  postas  em  xeque 
toda  vez  que,  por  meio  deles,  se  procede  a  uma  nova  exclusão,  isto  é, 
quando  suas  formas  de  operacionalização  aumentam  a  segregação 
sócio‐espacial já existente, e obstruem ou restringem o acesso e o uso da 
cidade como espaço comum e inclusivo. 
 
 
 

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269
 
270
 
A tradução contemporânea das demandas populares (ou do conflito 
que emerge do universo popular) nos espaços públicos:  
o caso do Córdoba, Argentina 
 
Gerardo Avalle1  
 
 
1. Introdução 
 
O  modo  de  inscrição  das  demandas  populares  nos  espaços 
públicos  é  um  fenômeno  que  adverte  sobre  as  dinâmicas  da 
inclusão/exclusão que assume cada sociedade. Particularmente, o modo 
como esses horizontes de expectativas são processados por dispositivos 
governamentais torna visíveis as tensões do presente. 
Estas  formas  de  nomeação,  de  construir  e  de  impregnar  os 
sentidos  da  política,  estão  longe  de  ser  uma  pretensão  unívoca.  Ao 
contrário,  tanto  espaço  público,  política,  como  Estado  e  governo  são 
conceitos que, para além da institucionalidade que os acompanham, são 
objeto de permanentes disputas e tensões, uma disputa permanente de 
posições, onde alguns dominam e outros resistem, que representam as 
formas  de  dominação  do  presente  e  as  relações  de  força  que 
sedimentam. 
Consequentemente,  um  olhar  que  se  aproxime  das  linguagens 
que assumem as demandas populares, e de sua inscrição nos interstícios 
da  política,  implica  necessariamente  identificar  as  instâncias  de 
tradução  –  institucionais  –  onde  o  potencial  da  resistência  é  transcrito 
nas ordens da administração pública. Isto não significa, de sobressalto, 
o desaparecimento do conflito; pelo contrário, de nossa perspectiva é o 
início  do  desacordo  e  da  resistência  a  serem  processados  pelo  sistema 
político.  Nesse  sentido,  observar  as  linguagens  com  que  as  políticas 
públicas  –  e  especialmente  as  sociais  –  interpelam  e  processam  as 
                                                            
1   Pós‐graduado  em  Ciência  Política  (UCC),  mestre  em  Sociologia  (UNC),  estudante  de 
PhD  em  Política  e  Governo  (UCC‐UCM).  Professor  de  Sociologia  e  Metodologia  na 
Universidade  Católica  de  Córdoba,  professor  de  pós‐graduação  na  Universidade 
Nacional  de  Córdoba.  Pesquisador  UCC  em  conflitos  e  lutas  sociais.  Membro  da 
equipe de pesquisa El Llano em Llamas. 

271
 
expectativas  populares  permite  compreender  os  dispositivos 
governamentais empregados sobre a população. 
A gramática popular adverte sobre o avesso de uma política de 
(des)igualdade, e esta é a afirmação que desenvolveremos neste texto: a 
inscrição  dos  sujeitos  nos  espaços  públicos  e  as  demandas  por  maior 
igualdade  enfrentam‐se  com  um  risco  permanente  de  desativação 
política e inclusão degradada na linguagem da cidadania. 
A possibilidade de sustentar esse tipo de afirmações requer uma 
contextualização que marque, dentro da trajetória das políticas públicas, 
aquelas transformações que as fazem (radicalmente) diferentes de seus 
antecessores,  apesar  de  manter  linguagens  idênticas.  Neste  sentido,  a 
configuração  do  cenário  político  e  social  argentino  tem  registrado,  em 
termos  gerais,  comportamentos  singulares.  Especificamente,  nos 
referimos  às  modificações  que  se  começaram  a  registrar  em  todos  os 
parâmetros  de  relevância  pública:  Estado,  pobreza,  democracia, 
cidadania, direitos. Neste trabalho, decidimos tomar parte dessas vozes 
de demanda e impugnação, recuperando aqueles trechos de entrevistas 
e observações de campo realizadas durante vários anos na província de 
Córdoba,  Argentina2,  que  nos  permitem  compreender  estas 
transformações  e  continuidades  que  o  relato  popular  adverte.  Os 
discursos  mostram,  neste  sentido,  uma  continuidade  quase  estrutural 
em relação ao modo de pensar o político e o público. 
                                                            
2   O  corpus  dos  dados  é  constituído  a  partir  do  trabalho  em  diferentes  projetos  de 
investigação: ʺTerritórios em disputa. Um estudo sobre o conflitos territoriais urbanos 
e rurais na Província de Córdoba ʺ. Dir. Dr. M. A. Ciuffolini. Universidad Nacional de 
Córdoba  e  Universidad  Católica  de  Córdoba.  MynCyT;  ʺApropriação/Expropriação 
de  territorialidades  sociais.  Análise  comparativa  de  processos  de  erradicação/ 
relocalização  de  grupos  sociais  empobrecidos  em  cidades  argentinas”.  Dir.  Dr.  Ana 
Nuñez,  M.  A.  Ciuffolini.,  P.  Scarponetti.  Universidad  Nacional  de  Mar  del  Plata. 
FONCYT;  ʺA  construção  política  da  (des)igualdade:  pobreza  e  sexualidade  nas 
políticas  públicas  da  província  de  Córdobaʺ.  Dir.:  Dr.  M.  A.  Ciuffolini,  Co‐Dir.:  JM 
Vaggione,  Universidad  Católica  de  Córdoba,  MinCyT;  ʺRelocalização  territorial, 
conflitividade  social  e  processos  de  subjetividade  políticaʺ.  Dir.:  Dr.  P.  Scarponetti, 
Co‐Dir. Dr. M. A. Ciuffolini, Universidad Nacional de Córdoba, ʺO chão em chamas. 
Movimentos e lutas sociais urbanas e camponesas na Córdoba de hojeʺ. Dir.: Dr. M. 
A. Ciuffolini, Universidad Católica de Córdoba, Agência Córdoba Ciência; ʺCulturas 
políticas  em  setores  populares  de  Córdobaʺ.  Dir.:  Dr.  M.  A.  Ciuffolini,  Universidad 
Católica de Córdoba. 

272
 
O  presente  trabalho  está  organizado  em  três  seções:  a  primeira 
contextualiza,  a  partir  da  percepção  dos  setores  populares,  o  caso 
argentino;  o  segundo  adverte  sobre  a  emergência  de  novos  atores 
coletivos no marco da crise econômica de 2001; e, finalmente, a terceira 
desenvolve  a  trajetória  dos  dispositivos  estatais  e  das  organizações 
populares, abordadas nas seções anteriores, mas desta vez no território 
da  província  de  Córdoba.  Córdoba  é  um  estado  localizado 
geograficamente  no  centro  da  Argentina,  com  uma  população  de  mais 
de 3 milhões de habitantes, sendo a segunda província mais populosa, 
depois  de  Buenos  Aires.  As  relações  com  a  administração  central 
sempre  foram  tensas,  independentemente  da  orientação  política  dos 
respectivos  governos.  Durante  a  década  de  90,  a  província  foi 
governada por diferentes frações do centenário partido Radical (UCR), 
enquanto a administração central era ocupada pelo peronismo (PJ). No 
final da década, o governo local passa para as mãos do PJ, e o governo 
nacional é liderado por uma mesma orientação política. No entanto, os 
vínculos  nunca  foram  pacíficos,  e  muitas  vezes  extrapolaram  as  vias 
institucionais de resolução. 
 
2. Argentina: a percepção popular de um modelo excludente 
 
Argentina  começa  um  processo  neoliberalizador  a  partir  da 
instauração do governo estabelecido pela ditadura militar em 1976. Isto 
se  aprofunda  sob  as  bases  do  conhecido  ʺConsenso  de  Washingtonʺ 
durante  a  presidência  de  Carlos  Menem  (1989‐1999).  Durante  esta 
década,  os  indicadores  sociais  (pobreza,  desemprego,  miséria,  saúde, 
educação, etc.) se viram fortemente afetados. 
A dinâmica da implementação de reformas estruturais foi dramática 
e  poucas  vezes  consensual.  Isso  supôs  importantes  deslocamentos  dos 
atores  coletivos  envolvidos  nas  tomadas  de  decisões,  o  realinhamento 
no  campo  popular,  e  a  emergência  de  novos  atores  organizados  em 
torno  de  demandas  reivindicativas  básicas  como  o  acesso  a  direitos 
sociais,  coberturas  assistenciais  e  contenção  diante  do  crescente 
desemprego.  Esta  situação  acabou  implodindo  nos  dramáticos 
acontecimentos  que  ocorreram  no  final  de  2001  e  princípio  de  2002, 
reflexo de uma crise política, econômica e social. 

273
 
A  crise  de  2001  reafirmou  a  dinâmica  do  capitalismo  local:  não 
existem  transições  ordenadas  sem  rupturas  e  permanentes  disputas 
entre os distintos segmentos do capital. Ao contrário do que ocorre no 
país vizinho, Brasil, a capital nacional argentina sempre foi dependente 
da  política  estatal  e  da  dinâmica  do  capital  internacionalizado.  Os 
mercados locais (agrícola, industrial e financeiro) sempre se mostraram 
dóceis  diante  do  capital  internacional,  incapazes  de  ser  hegemônicos 
dentro de um projeto de acumulação, o que implicou sucessivas crises e 
transições caóticas entre cada modelo econômico (Aspiazu e Basualdo, 
2012; Sidicaro, 2006). Pós‐2001 o Estado aparece como o ʺmediadorʺ que 
atualmente confronta com os principais grupos concentrados de poder; 
e  trata  de  consolidar  um  bloco  hegemônico  que  gire  em  torno  de  um 
capital  nacional  produtivo,  industrialização  da  matéria‐prima  e 
estímulo  ao  consumo,  além  de  promover  o  capital  financeiro  e  a 
dinâmica  extrativa  dos  recursos  naturais,  situação  que  guarda  certa 
semelhança  com  o  restante  do  país  (Seoane,  2012;  CEPAL,  2011;  Katz, 
2010; Gudynas, 2009). 
Esta  configuração  do  campo  de  força  também  se  traduziu  em  uma 
reconfiguração  do  discurso  político  e  nas  próprias  práticas  da 
estatalidade  (Svampa,  2005).  Parafraseando  Dagnino  (2006),  o  que  se 
observa  é  um  processo  de  ʺconfluência  perversaʺ  entre  um  projeto 
político neoliberal e outro mais democratizante e participativo. E o que 
sucede  é  que,  por  detrás  de  um  discurso  de  inclusão  que  começa  a 
aparecer  fortemente  a  partir  do  ano  2003,  se  observam  trajetórias 
dissimiles  no  que  se  refere  à  implementação  de  políticas  públicas 
(sociais,  trabalhistas,  de  infraestrutura,  etc.)  em  nível  nacional  e, 
especialmente,  nas  administrações  provinciais.  Nesse  contexto, 
indagamos,  a  partir  do  testemunho  fornecido  pelos  setores  populares, 
como é percebida esta dinâmica do sistema político, e as defasagens que 
aparecem  entre  o  discurso  e  a  prática  concreta  empreendida  pela 
estatalidade. 
A situação que se expressa nos relatos sobre a experiência local não 
se restringe a sua faceta econômica, o legado da ditadura não foi apenas 
de  modelos  econômicos  excludentes  e  restritivos  (ʺpara  poucosʺ),  mas 
também  uma  tragédia  (ʺdestruídaʺ)  para  toda  uma  geração  de 
militantes. 

274
 
ʺNós  que  temos  filhos  queremos  deixar  algo  a  eles,  já  que  nossa 
geração, a famosa geração dos setenta, foi destruída por esse processo, 
e  aqueles  que  restaram  são  a  escória,  e  por  isso  temos  os  líderes  que 
temosʺ (bairro Coordenador assembleias, Córdoba, 2002). 
 
ʺCom  esse  eufemismo  se  propunha  privatizar  a  saúde,  privatizar 
ferrovias, privatizar (‐) era a receita concreta do fim do Estado de bem‐
estar,  de  um  modelo,  que  com  seus  prós  e  seus  contras,  vínhamos 
construindo na Argentinaʺ (Sindicato, CTA 01, Córdoba, 2005). 
 
Esse  processo  neoliberal  é  claramente  identificado  como  uma 
consequência da ditadura militar, e nesse ato constitutivo é que se inicia 
uma  mudança  de  paradigma,  e  as  gerações  seguintes  são  aqueles  que 
devem atravessar as consequências estruturais da mudança de políticas 
e da primazia do mercado. 
 
ʺMas nós lutamos contra um modelo que esteve vigente na Argentina 
desde  a  ditadura  militar  em  diante  que,  bom,  foi  o  modelo  que  nos 
deixou  como  estamos,  digamos,  feito  merdas.  E,  bem,  lutamos 
basicamente  contra  isso  e  contra  qualquer  um  que  represente  esse 
modeloʺ (Movimento Piqueteiro, BDP 06, Córdoba, 2005). 
 
ʺnos anos noventa foi Menem, em 2001 De la Rua, hoje sei lá quem, aqui 
na  Província  De  la  Sota...  Entende  o  que  quero  dizer?  Gente  que  está 
ligada ao liberalismo e que... continua construindo um país para poucos 
e não para todosʺ (Movimento Piqueteiro, BDP 05, Córdoba, 2005). 
 
Por isso quando recuperamos a tese da ʺconfluência perversaʺ de 
projetos políticos (Dagnino, 2006) e afirmamos que no interior de cada 
relação  de  força  dominante  persistem  as  consequências  e  tensões  de 
cada  fração  de  poder,  não  fazemos  mais  que  tentar  compreender  a 
aparente contradição entre a narrativa de ʺinclusãoʺ que a política pós‐
neoliberal  expressa,  e  a  percepção  social  de  certa  continuidade  da 
situação de exclusão e desintegração social no presente. 
 
ʺfalar de desocupação na Argentina é hoje, depois de todo o processo 
de  privatizações,  falar  de  um  problema  estrutural  que  não  vai  se 
resolver  de  um  dia  para  outro  ou  com  discursos  bonitos.  Crianças  de 

275
 
manhã  vão  e  tomam  café  da  manhã  na  escola,  almoçam  no  refeitório 
da  escola,  a  tarde  tomam  um  copo  de  leite  e  a  noite  passam  pelo 
refeitório  de  uma  organização  para  pegar  a  comida.  Isso  já  faz  oito 
anos que vem acontecendo, que perspectiva pode ter uma criança que 
cresceu assim?ʺ (Movimento Piqueteiro, MTR 02, Córdoba, 2005). 
 
ʺNosso salário é o resultado de todas as medidas de ajuste que foram 
aplicadas na última década, onde, obviamente, reduziram nosso poder 
aquisitivo  e  outros  setores  têm  feito  horrores  e  lucrado  com  issoʺ 
(União, ATE 01, Córdoba, 2006). 
 
O que ocorreu foi que a crise de um projeto político (econômico, 
social, cultural), que de certa forma se expressou nos acontecimentos de 
2001,  não  realizou  uma  ruptura  total  com  a  institucionalidade  e  os 
modos  de  participação  política  instituídos  durante  as  décadas 
anteriores. Neste sentido, durante os anos 90 a construção democrática 
e  de  cidadania  representou,  usando  as  palavras  de  Dagnino  (2006),  a 
consolidação  de  um  ʺprojeto  neoliberalʺ  que  conseguiu  esconder, 
temporariamente, as tensões entre Estado e mercado. 
Isto supôs a privatização do espaço público, sua fragmentação, a 
retração  do  Estado  e  a  concepção  de  cidadão  consumidor.  Este  marco 
de  ação,  de  práticas  culturais,  de  formas  institucionais,  não 
desapareceu, em última instância começou a se reconfigurar. A tensão 
imanente à constituição dos dois projetos, que de certo modo confluem 
contemporaneamente  (e  perversamente)  para  uma  ʺformaʺ  de  relação 
gerencial  entre  Estado  e  sociedade.  Os  conteúdos  dos  projetos, 
entretanto, não confluem, o conflito entre eles se torna mais velado. 
O relato que segue abaixo expressa essa tensão entre uma prática 
política que tenta dissolver um modo de conceber o público e político, 
por um lado, e a posição subjetiva que orienta os indivíduos dentro do 
sistema social. 
 
ʺAs Assembleias, tratando de construir uma questão nova que busque 
um  senso  de  justiça  através  de  uma  forte  participação  política,  se 
deparam  com  limites  muito  concretos,  nenhum  dos  assembleístas  tem 
proposto  colocar‐se  como  cidadão,  como  contribuinte,  do  sistema 
econômico,  político  e  financeiro  onde  estamos...  as  Assembleias  não 
têm proposto uma rebelião fiscal... temos que incluir em nossos temas 

276
 
de deliberação... assuntos que tenham relação com a gestão pública do 
comum...  das  políticas  aplicadas  em  nível  municipal,  estadual  e 
nacional.ʺ (Assembleia Praça Los Naranjos, Córdoba, 2002). 
 
Os relatos dos entrevistados deslizam dentro de um conjunto de 
argumentos  que  vão  advertindo  sobre  o  sentir  da  população  em  cada 
contexto.  O  final  dos  anos  90  expressam  um  sentimento  de  forte 
insatisfação  da  população  com  relação  à  política  e  suas  instituições, 
produto de décadas de individualismo e de cidadania mercantilizada e 
ʺcontribuinteʺ;  contudo,  é  também  neste  contexto  que  começam  a  se 
pronunciar  fortes  discursos  de  impugnação  institucional  e  emergência 
de  novas  formas  de  organização  alternativas  aos  canais  habituais  de 
participação. Como se observa no relato dos entrevistados, o olhar sobre 
o Estado vai se deslocando a partir de uma rejeição e impugnação total, 
ampliada logo após a crise de 2001 no caso argentino, até se converter 
no centro das demandas dos tempos atuais. 
 
ʺDesde  o  início,  sentimos  a  necessidade  de  nos  reunir  para  discutir 
questões  que  estavam  pesando  sobre  nossas  vidas...  pessoas  que 
buscam  o  acordo  entre  seus  pares,  participando  das  Assembleias...  as 
Assembleias são formadas pela porção mais próxima do povoado, por 
cada vizinho ʺ(Assembleia Bairro Alto Alberdi, D3). 
 
ʺtodo  esforço  que  é  feito  a  partir  da  assembleia  é  construir  um  poder 
alternativo  que  discuta  plenamente  sua  posição  diante  do  Estadoʺ 
(Assembleia Praça Los Naranjos, Córdoba, 2002). 
 
ʺDesconhecemos a autoridade municipal, desconhecemos todo tipo de 
legislação que tenta impedir nosso desenvolvimento... desconhecemos 
esses instrumentos como parte de uma prática que... tenta nos esmagar 
como  povoʺ  (Assembleia  Bairros  San  Martin  e  Paraísos,  Córdoba, 
2002). 
 
ʺnem  os  partidos  políticos  nem  o  Estado  têm  sabido  proteger  este 
direito  básico  de  qualquer  sociedade  que  é  o  de  se  alimentar  e  se 
reproduzir  biologicamente...  a  sociedade  já  não  acredita  nas 
instituições,  porque  elas  já  não  sustentam  normas  e  valores...  As 
pessoas não acreditam no Estado... e é lógico, é o corretoʺ (Assembleia 
Seccional 14, Córdoba, 2002). 

277
 
3. Novas formas de organização, novos discursos, novos projetos 
 
Este  cenário  de  antipolítica,  contra‐hegemonia  ou  democracia 
direta  que  foi  gerado  no  final  do  século  teve  impactos  na  estrutura 
institucional,  nos  discursos  públicos,  e  nas  formas  organizativas  que 
assumiram  os  setores  populares.  Os  relatos  mencionados  acima  se 
referem,  principalmente,  a  dois  tipos  organizativos  diferentes.  Um 
muito  próprio  do  cenário  de  crise,  que  foram  as  ʺassembleias  de 
bairroʺ,  cuja  duração  foi  curta  no  tempo,  mas  que  foi  o  espaço  que 
concentrou um amplo conjunto da população que não encontrava, nas 
vias  tradicionais  de  participação,  um  espaço  de  canalização  de  suas 
demandas. A dinâmica das assembleias consistiu em recriar os espaços 
de deliberação e ação coletiva. 
Por sua vez, os movimentos piqueteiros são organizações que se 
gestaram  como  consequência  do  desemprego  massivo  durante  a 
década  anterior,  que  acabou  expulsando,  em  2002,  mais  de  25%  da 
população  do  mundo  do  trabalho.  Os  ʺpiqueteirosʺ  se  caracterizaram 
por  implementar  medidas  de  ação  direta,  entre  elas  os  piquetes  ou 
bloqueios,  como  sua  principal  prática  para  forçar  uma  resposta 
concreta do Estado. 
Inevitavelmente,  este  contexto  implicou  uma  mudança  nos 
modos  de  ação,  intervenção  e  operação  da  estatalidade.  O  final  do 
século  veio  acompanhado,  por  toda  a  região,  de  um  ar  renovador. 
Linguagem  que  inclusive  permeou  o  discurso  dos  organismos 
financeiros internacionais, incorporando uma perspectiva mais ʺsocialʺ 
no  tratamento  das  problemáticas  que  surgiam  como  consequência  da 
defesa  tenaz  do  modelo  de  mercado.  Assim,  as  estruturas 
institucionais,  para  além  de  toda  possível  resistência  à  mudança,  se 
viram  empurradas  a  um  novo  cenário  político.  O  Estado  reaparece 
como  responsável  pelas  condições  de  vida  de  cada  indivíduo  e  pelo 
destino coletivo da população. 
Neste  contexto,  o  que  parece  interessante  é  investigar  as 
ausências  e  continuidades  que  contêm  esses  discursos,  enquanto 
remanescentes  de  antigos  projetos  em  coexistência  com  os  novos.  Isto 
porque  cada  lógica  da  estatalidade  condensa  a  expressão  das  relações 
de  força  de  cada  período  (Poulantzas,  2001;  Foucault,  2006).  E  neste 

278
 
sentido,  que  não  sejam  hegemônicas  não  implica  que  tenham 
desaparecido.  De  modo  que  é  provável  que  o  ranço  mercantil  esteja 
sempre  presente,  e  à  espreita  a  cada  crise,  apelando  aos  já conhecidos 
argumentos que colocaram em xeque a estrutura de proteção social de 
meados do século passado. 
Os relatos que aparecem a seguir falam sobre recuperar o papel 
do Estado em relação aos problemas sociais, à regulação da economia e 
à  distribuição  de  recursos.  Mas  frente  a  este  papel  ativo  que  se  lhe 
atribuem, novamente se recuperam as velhas críticas aos estados sócio‐
interventores,  como  a  de  serem  funcionais  à  lógica  da  acumulação 
capitalista,  ou  de  atuar  como  representantes  dos  interesses 
empresariais frente às demandas trabalhistas. 
 
ʺAcho  que  o  Estado  é  quem  deve  centralizar  o  uso  do  poder... 
indispensável,  o  Estado  tem  coisas  das  quais  ele  pode  escapar,  ele  é 
responsável  pela  saúde,  pela  educação,  pela  segurança,  por  fazer 
justiça, são coisas tão prioritárias o que tudo isso traz à dignidade e ao 
desenvolvimento  do  homem,  que  o  único  responsável  é  o  Estadoʺ 
(ONGs 01 Carlos Paz, Córdoba, 2000). 
 
ʺo  que...  o  imperialismo  busca  e...  e  o  governo  representando  o 
imperialismo,  é  poder  continuar  mantendo  esse  sistema  de 
acumulação,  onde  ganham  uns  poucos,  quer  dizer,  quem  lucra  na 
América Latina, na África, na Ásia... são os grandes cartéis, os grandes 
monopóliosʺ (Movimento Piqueteiro, Córdoba, CTD‐AV 04, 2005). 
 
O  modelo  emergente  se  afirmou,  em  primeiro  lugar, 
recuperando  a  figura  do  Estado  como  ator  político  chave  do  qual 
emanam as diretrizes da política e da gestão pública (Mecle, 2010). Isso 
implicou, necessariamente, um redimensionamento de toda a estrutura 
de  proteção  social  e,  especialmente  os  mecanismos  de  regulação/ 
assistência  aos  setores  mais  desprotegidos  (não‐empregáveis, 
desempregados, menores, mulheres, idosos, etc.). 
O  paradigma  emergente  requereu,  em  primeiro  lugar, 
incorporar  na  agenda  pública  a  problemática  da  desigualdade  como 
um  problema  social.  Assim,  o  parâmetro  da  política  social  alteraria 
significativamente  seu  lugar  de  enunciação.  A  assistência  continuaria 

279
 
chamando‐se  assistência,  mas  sua  sustentação  deixaria  de  ser  –  pelo 
menos  de  modo  direto  –  a  compensação  de  uma  carência,  o  pobre 
vulnerável. Agora, a linguagem começaria a circular dentro do campo 
da  ʺinclusãoʺ3,  e  desse  modo,  o  apelo  dos  ʺdireitos  humanosʺ  se 
converteria  numa  caixa  de  ressonância  para  incorporar  o  direito  à 
saúde,  educação,  cultura,  trabalho,  entre  outros,  como  argumento  de 
sustentação da penetração estatal. 
 
ʺSe o governo implementa programas... sei lá, o Hambre Más Urgente, o 
Manos  a  La  Obra,  não  é  que  faça  isso  porque  seja  BOM,  mas  o  faz  em 
função de uma pressão social que existe, que coloca diante de seu nariz 
este  problema  da  comida...  bem...  este  problema...  e  o  do  trabalhoʺ 
(Movimento Piqueteiro, MTR 02, Córdoba, 2005). 
 
Dois exemplos são ilustrativos neste caso, o Plano Jefes y Jefas de 
Hogar  Desocupados  criado  em  2002  na  Argentina  tem  nos  seus 
fundamentos  uma  linguagem  marcada  pelas  noções  de  ʺinclusãoʺ, 
ʺdireitos  humanosʺ  e  ʺcidadaniaʺ,  começando  a  reconhecer  situações 
estruturais  de  vida  que  antes  eram  entendidas  como  temporárias  e 
isoladas,  quer  seja  a  pobreza  ou  o  desemprego  (Avalle,  De  la  Vega  e 
Ferrero, 2009). Outro exemplo é o Plano Jóvenes Más y Mejor Trabajo, de 
2003, quando o Estado reconhece a existência de problemas estruturais 
na  geração  de  emprego  e  inclusão  no  mercado  de  trabalho  de  grande 
parte da população, modificando a estratégia de contenção e assistência 
que  eram  pressupostos  dos  seguros  de  desemprego  ou  dos  planos 
sociais criados em meados dos anos 90 como o ʺPlan Trabajarʺ (Avalle e 
Brandan, 2010). 
 
4.  Córdoba,  demandas  e  conflitos  no  território:  participação,  terra  e 
trabalho. 
 
Córdoba  é  uma  das  maiores  províncias  do  interior  da 
Argentina.  Os  níveis  de  pobreza  e  desocupação  tiveram  níveis 
semelhantes  ou  superiores  à  média  nacional  durante  as  últimas 

                                                            
3  Ver Informe de Políticas Sociais do Ministério de Desenvolvimento Social (2007). 

280
 
décadas4.  O  problema  da  habitação,  ou  déficit  habitacional5,  é  um 
fenômeno  crônico  que  se  viu  agravado  em  diferentes  momentos  pela 
falta de políticas habitacionais para os setores populares, pela crescente 
pobreza  e  desemprego  na  década  de  90  e,  atualmente,  pela 
revalorização  e  criação  de  valor  sobre  territórios  localizados  nos 
assentamentos  urbanos.  Segundo  os  dados  disponíveis,  atualmente  a 
Província de Córdoba apresenta um déficit significativo em matéria de 
habitação,  todavia  ainda  mais  significativo  é  o  número  de  domicílios 
que  registram  propriedade  irregular  da  terra  e/ou  da  moradia  que 
habitam. 

                                                            
4  Durante  os  anos  70,  o  desemprego  foi  registrado  em  aproximadamente  3,8%  da 
população  economicamente  ativa.  Na  década  seguinte  sobe  a  5,8%.  Ambos  os  valores 
muito  inferiores  aos  obtidos  durante  a  década  neoliberal,  onde  o  índice  alcançou  os 
11,6%,  com  um  pico  18,4%  em  maio  de  1995.  A  partir  do  ano  1998,  este  indicador 
começa uma escalada que supera os valores históricos alcançados em 2002, chegando a 
21,5%  da  população  economicamente  ativa.  A  partir  desse  momento  se  registra  um 
descenso insistente situando‐se, no quarto trimestre de 2008, no nível mais baixo desde 
outubro de 1992 e maio de 1989, chegando a 7,3%. No primeiro semestre de 2009 volta a 
se  notar  um  incremento  neste  indicador,  situando‐se  em  8,6%,  encerrando  com  uma 
média anual de 8,68% da população desocupada. No entanto, os níveis de desocupação 
relativamente  ʺbaixosʺ  das  primeiras  duas  décadas  não  seriam  acompanhados  da 
mesma forma pelos índices de pobreza. Durante o ano de 1989 a população em situação 
de pobreza ascendia a 29,1%, e a população indigente superava a porção desocupada da 
população  economicamente  ativa.  Em  1990,  o  comportamento  desses  indicadores  é 
ainda mais claro, enquanto se registra uma ligeira queda da desocupação, os níveis de 
pobreza  e  indigência  marcam  um  pico  de  44,9%  e  14,5%,  respectivamente.  Em  1991, 
uma  ligeira  queda  da  desocupação  é  acompanhada  por  uma  queda  em  ambos  os 
índices.  Os  efeitos  regionais  que  gerou  a  crise  mexicana  de  1995  impulsionaram 
novamente  o  crescimento  da  desocupação  e  da  pobreza.  No  entanto,  esta  última  não 
perderá seu impulso ascendente, alcançando os 57,5% em outubro de 2002, superando 
os níveis de 1989. No que se refere aos níveis de desemprego, a província de Córdoba é 
um  das  que  apresenta  maior  volatilidade.  Com  uma  tendência  de  se  aproximar  ou 
superar  a  média  nacional,  particularmente  nos  anos  de  1989,  1997,  2002  e  2007‐2009. 
Quanto  aos  níveis  de  pobreza,  estes  se  mostram  semelhante  à  média  nacional, 
superando‐a nos momentos de crise local ou nacional. 
5 Na Argentina, a média de gastos sociais com habitação para a década de 90 não chega 

a superar 1,7% do PIB, inclusive há a evidência de um ligeiro aumento nos cinco anos 
a  partir  de  2000  (CEPAL,  2009).  Nas  políticas  habitacionais,  especificamente,  com  a 
abertura  democrática  se  alterava  o  índice  de  0,7%  do  PIB,  decaindo  ao  longo  da 
década de 90 para 0,4% do PIB (Rodriguez e Taborda, 2009). 

281
 
Considerando‐se  de  maneira  conjunta  a  situação  de 
aglomeração  crítica  e  as  condições  deficitárias  de  moradia,  a 
percentagem  de  domicílios  é  de  13%,  enquanto  os  problemas  de 
propriedade afeta a 35% dos domicílios na província. Disso resulta que 
quase a metade dos domicílios da província manifesta algum problema 
habitacional.  Um  levantamento  comparativo  de  preços  aponta  que  o 
valor dos terrenos dentro do Anel Viário da cidade de Córdoba subiu, 
em média – entre novembro de 2007 e fevereiro de 2011 – cerca de 50 
por cento, ou seja, 10 por cento ao ano. Ainda assim, existem áreas em 
que  o  aumento  foi  superior  a  70  por  cento  e,  em  alguns  casos 
específicos, cem por cento6. 
O  comportamento  que  essas  variáveis  descrevem  sobre  a 
situação  habitacional  tem  sido  uma  constante  nos  últimos  20  anos, 
dando  lugar  a  distintas  reações  e  demandas  por  parte  dos  setores 
populares.  Somando‐se  à  crise  econômica  do  final  do  século,  este 
contexto  adquiriu  uma  dimensão  dramática,  que  resultou  em  uma 
confluência  de  demandas  por  trabalho,  habitação  e  alimentação;  e 
políticas  públicas  tendentes  a  neutralizar  o  problema,  mas  com  uma 
forte dinâmica segregacionista e revalorização de terras centrais. 
 
ʺporque  há  muitas  casas  que,  por  si  só,  nos  deixam  meio  retirados 
porque  somos  ascendentes  de  favela  (procedentes  de  favela),  e  não 
havia  espaço  mais  perto  do  centro  para  construir  casas.  E  outra, acho 
que  o  governador,  ele  não  quer as favelas  perto  do centro,  mas  longe 
dali,  porque  eles  já  sabem  a  forma  de  viver  das  favelas,  que  roubam, 
que são sujos, que não são todos iguais, mas por isso também estamos 
meio retirados. Ainda que tenha muito espaço perto da usina, mas isso 
é  para  o  país,  traz  mais  dinheiro,  a  favela  nãoʺ  (Assentamento 
Relocalizado, Bairro A. Cabildo 09, Córdoba, 2008). 
 
No  entanto,  a  trajetória  dessa  problemática  teve 
comportamentos diferentes ao longo do tempo. A organização popular 
em torno da habitação traduziu as demandas e expectativas sociais de 
ʺcasa própriaʺ construindo um horizonte de mobilidade social e acesso 
                                                            
6 Realizado  pelo  jornal  La  Voz  del  Interior  e  publicado  em  fevereiro  de  2013 
http://www.lavoz.com.ar/cordoba/tierra‐cada‐vez‐mas‐cara‐escasa  [Acessado  em: 
25/05/2013] 

282
 
a direitos ʺvioladosʺ. O problema da moradia provocou, em finais dos 
anos 80 em Córdoba, a multiplicação de organizações populares que se 
formaram  em  torno  da  gestão  das  necessidades  básicas  (alimentação, 
vestimenta,  água,  luz,  etc.).  Isto  implicou  uma  crescente  organização 
territorial  para  resolver,  de  modo  comunitário,  os  problemas 
cotidianos.  Ao  mesmo  tempo,  um  consistente  posicionamento  no 
espaço  público  como  atores  com  grande  capacidade  de  mobilização  e 
controle territorial. 
 
ʺAqui  na  Vila,  por  exemplo,  há  10  anos  não  tínhamos  água,  então  as 
pessoas  eram  uma  coisa  assim  que  lutavam  todo  santo  dia  e  se 
organizavam em torno da água, chegou um momento em que a favela 
estava  sitiada,  porque  não  havia  água,  então  se  faziam  bloqueios  por 
todos  os  lugares  em  que  parecia  bom  fazê‐lo,  mas  eram  todos  os 
vizinhos,  não  era  uma  organização,  uma  coisa  real,  uma  necessidade 
básica que não tínhamos e, bom, se organizaram e assim conseguiram 
ter água potávelʺ (Movimento Piqueteiro, Unidhos 01, 2005). 
 
Neste  contexto  é  que  ganham  forças  as  demandas  sociais  por 
ʺacesso à cidadeʺ (Ciuffolini, 2007). Um conceito que engloba o direito à 
terra,  moradia,  saúde,  educação  e  serviços  básicos.  Simultaneamente, 
diante  da  ameaça  que  esta  demanda  representava  para  a  estabilidade 
dos  governos  é  que  começam  a  se  ativar  diferentes  dispositivos  de 
regulação. Neste marco surge, no início dos anos 90, em Córdoba, o que 
se  denominou  “Mesa  de  Concertación  de  Organizaciones  de  Baseʺ,  um 
espaço  institucional,  com  financiamento  público,  que  supõe  a  gestão 
colegiada  da  política  de  habitação  e  infraestrutura  social  entre  os 
setores populares organizados e o governo (Avalle e Ibanez, 2011). 
Na  seção  anterior  mencionamos  que  os  dois  atores 
protagonistas de finais do século foram as assembleias de bairros e os 
movimentos piqueteiros. Os dez anos que o antecederam tiveram como 
principais referências as organizações de bairro e de base territorial dos 
setores  populares  cordobeses.  Organizações  que  se  constituíam  em 
torno  da  gestão  de  necessidades  básicas  como  alimentação,  saúde, 
moradia,  foram  articulando‐se  entre  si  e  conseguiram  formar  duas 
frentes organizadas de bairros que mobilizaram mais de 100 bairros da 
cidade. Eles são a Unión de Organizaciones de Base (UOB) e o Movimiento 

283
 
de  Organizaciones  de  Base  (MOB),  que,  em  seguida,  se  integraram  à  já 
mencionada “Mesa de Concertaciónʺ. 
 
ʺMe  dediquei  muito  ao  que  chamamos  de  levar  refeitórios  e...  era 
muito  trabalho,  sabe,  e  ainda  mais  na  época  de  Angeloz,  de  Alfonsín 
(década  de  80)  foi  o  período  mais  forte,  onde  eu  comecei  a  fazer  o 
trabalho,  porque  eu  via  muitas  das  necessidades  do  povo,  e  eu  me 
somei,  eu...  me  juntei,  com  um  bairro  de  Saldán  e  fui  a  Cáritas,  de 
Saldán trabalhei em Cáritas por um ano. Então aí formamos uma inter‐
bairro, assim se chamava, uma... era um integrado de todos os bairros, 
onde  este...  trazíamos  as  necessidades  do  bairro  e  víamos 
concretamente  o  que  podíamos  fazer  pelos  bairros  (...)  Fazíamos 
atividades  (...)  vendíamos  empanadas,  todas  essas  coisas,  até  que 
vimos  a  possibilidade  de  comprar  sacos  de  farinha,  açúcar,  pão,  e 
colaborar  com  o  refeitório”  (Organizações  Territoriais,  MOB  03, 
Córdoba, 2005). 
 
ʺDesde o início de 1992, tinha sido, digamos, por um lado a unidade... 
e,  por  outro  lado,  o  acesso  à  habitação,  acesso  à  terra  e  à  moradia, 
digamos que esta foi a luta mais forte que teve a União. Quer dizer, era 
o  que  ela  tinha  de  forte  (‐)  E  não  deixou  de  discutir  a  questão  da 
educação,  da  saúde  e  do  trabalho,  que  em  diferentes...  etapas 
conseguiu  desenvolver,  que,  digamos,  de  alguma  forma  a  União 
discutiu  profundamente,  mas  não  resolveu  esse  assuntoʺ 
(Organizações Territoriais, UOB 01, Córdoba, 2005). 
 
Em  meados  dessa  mesma  décadas  se  configura  um  cenário 
fortemente  adverso  para  o  protesto  social.  O  Estado  provincial 
reafirmaria  sua  face  repressiva  e  concentraria  novamente  o  poder  de 
decisão  com  respeito  à  política  pública.  Em  um  contexto  de  crise 
econômica e fiscal significativa, com crescentes níveis de desemprego e 
pobreza,  a  gestão  do  conflito  abandona  a  linguagem  do  diálogo  e  da 
ʺconcertaciónʺ.  Neste  marco  se  empregam  numerosas  políticas  de 
contenção  que  buscariam  frear  a  conflitividade  a  partir  de  uma 
proliferação  de  recursos  públicos  destinados  a  subsídios  de 
desemprego,  planos  alimentares,  pensões,  etc.,  juntamente  com  uma 
permanente  prática  de  desqualificação  pública  das  mobilizações  e  do 
assédio a seus dirigentes com o objetivo de cooptá‐los. 

284
 
Se essas tentativas não alcançavam os resultados esperados, a 
repressão  direta  assumia  o  protagonismo.  O  problema  que  se 
avizinhava era a confluência de demandas e reivindicações sociais nos 
espaços  públicos.  Os  relatos  sobre  este  caso  mostram  essas 
confluências,  quando  organizações  de  bairro,  trabalhadores 
desocupados, sindicatos, entre outros, começam a delinear um inimigo 
comum. 
Dois processos, embora aparentemente separados, encontram 
uma linguagem comum para construir seu projeto de futuro. Assim, a 
demanda por trabalho  e por moradia contém uma linguagem coletiva 
que  condensa  desejos  e  expectativas  de  amplos  setores  da  sociedade 
que pretendem ser parte de ʺprojetos políticosʺ que os contenham. No 
entanto,  a  tradução  dessas  demandas  resultou  em  um  processo  de 
permanente fragmentação e despolitização dos atores coletivos. 
 
“É como se o Estado adotasse uma estratégia abrangente para destruir 
o  movimento  piqueteiro...  (‐)  Sim,  alguns  se  apressaram  deste  lado 
para  dizer  ʺOs  bloqueios  não  vão  mais  acontecerʺ.  Também  não  é 
assim, (...) na realidade o Estado tem chamado nossa luta de doutrina, 
e por isso nos reprime de diferentes maneiras, nós também temos que 
fazer  doutrinas,  mas...  isso  não  significa  desacreditar  das  melhores 
ferramentas  de  luta  que  nos  últimos  anos  o  povo  tem  gestado  e  que 
não  apenas  estão  sendo  utilizadas  pelo...  têm  sido  utilizadas  pelo 
movimento  piqueteiro,  mas  também  pelos  trabalhadores  ocupados, 
pelos  docentes,  vimos  isso  aqui  em  Córdoba,  cheio  de  piquetes  e 
bloqueios” (Organização Piqueteira, Córdoba , CTD‐AV 08, 2005). 
 
Como  consequência  disso,  a  política  de  impugnação  se 
converteu em uma política de gestão, com a consequente despolitização 
dos  espaços  coletivos  de  base.  O  dispositivo  de  governo  agiu,  desse 
modo,  traduzindo  a  queixa  popular  na  gestão  mesma  das  decisões 
públicas,  reduzindo  o  potencial  de  conflito.  A  administração  se 
converteu  em  uma  imposição  para  os  setores  organizados,  subtraindo 
espaço  para  o  debate  político.  Desativada  a  ameaça  mediante  a 
desorganização, um segundo processo consistiu na extinção do espaço 
político. 
 

285
 
ʺquando  entrou  um  governo  (provincial)  que  foi  comprando  toda  a 
liderança, sabe? (...) comprando líderes fortes, os líderes que tinham... 
os que tinham força de luta, e bem, foi corrompendo eles (...), porque 
se  você  notar,  hoje  não  temos  uma  mobilização  na  ruaʺ  (Organização 
Territorial, Córdoba, MOB 03, 2005). 
 
Os  relatos  que  se  seguem  narram  o  processo  de  desativação 
que  sofreram  as  organizações  de  base  no  final  dos  anos  90,  sob  o 
mandato  do  governo  peronista  de  De  la  Sota  na  província.  Estas 
organizações experimentam, em um curto espaço de tempo, a perda de 
influência  nos  espaços  institucionais,  a  perda  de  recursos,  que  são 
destinados para financiamento de novas obras de infraestrutura social 
que  não  conseguiriam  nem  mesmo  se  capitalizar,  e  o  rompimento  de 
solidariedades dentro de suas próprias bases. 
 
ʺEu tenho um problema com a minha cooperativa, nós temos um plano 
de habitação e, depois, compramos outras parcelas de terra e entramos 
nos novos planos, em novos bairros, então o governo fez a estrutura e 
depois saiu, politicamente, vendendo isso, dizendo que eram os novos 
bairros  que  ele  dava,  sendo  que  a  terra  é  nossa.  Então,  temos  duas 
coisas, as pessoas que vivem em um novo plano de habitação dizem, ‘a 
minha  casa  quem  me  deu  foi  o  governo’,  mas  nós  temos  uma  outra 
parte  que  não  vai  receber  a  escritura  do  governo,  quem  vai  receber  a 
escritura  é  a  cooperativa,  porque  quem  tem  a  (...)  a  propriedade  é  a 
cooperativa.  Então,  até  isso  os  rachou,  os  rachou  como  organização, 
porque  nós,  muitos  e  muitos  anos  de  luta,  5  anos  de  luta  para 
conseguir  terra  para  um  novo  plano  de  habitação,  quando  ele  entra 
(em 1999) é feito um acordo político dentro da nossa cooperativa com 
eles, feito um pacto político onde se doavam quarenta lotes desde que 
o  governo  desse  a  estrutura.  E  nos  enrolou  justo  aí,  deu  escola, 
iluminação  pública  para  nós,  deu  asfalto,  deu  tudo,  mas  foi  quando 
ficamos  entregues,  o  governo  dizendo  que  era  um  novo  bairro, 
estrutura  de  bairro  novo,  e  acreditávamos  que  esse  novo  plano  de 
habitação  era  o  novo  Plano  De  La  Sotaʺ  (Organização  Territorial, 
Córdoba, MOB 04, 2005). 
 
ʺO  que  vemos  é  que  parte  do  Estado  está  sempre  tentando  nos 
institucionalizar...  como  por  exemplo...  eles  te  dão  esse  subsídio  para  o 
copo  de  leite...  a  partir  de  agora  se  chama  Centro  Infantil  e  centro  de 

286
 
cuidado infantil... isso... e te dão a vaga quando eles querem, e te dizem 
que  tipo  de  filhos  você  tem  que  ter  e  com  o  que  (...)  você  tem  que 
trabalhar...  as  pessoas  são  uma  espécie  de  gestores  do  Estado...  (risos) 
quando eles não ditam o lugar, não colocam o esforço, não organizam as 
pessoas... colocam o dinheiro, que aliás não é a quantidade de dinheiro 
que eles têm que colocar ... mas você trabalha de acordo com os critérios 
deles...  tantas  pessoas...  tantos  meninos  aqui...  tantos  meninos  aqui...ʺ 
(Movimento Piqueteiro, MTR 01 Córdoba, 2005). 
 
Uma vez desativada a capacidade de mobilização por meio da 
cooptação  e  ruptura  das  organizações  de  base,  a  demanda  por 
habitação era totalmente desarticulada. A necessidade não desaparecia, 
mas já não havia organização nem articulação popular  conjunta que a 
sustentasse no espaço público. A ausência de conflito permitia, assim, a 
resolução de um problema gestado diretamente a partir das instâncias 
institucionais. 
Neste  marco  aparece  um  conjunto  de  políticas  cuja  tendência 
seria a de neutralizar a demanda central: o emprego, a alimentação e o 
teto. Em nível nacional são implementados em meados de 2002 o Plano 
Jefas  y  Jefes  de  Hogar  Desocupados7;  em  nível  local,  o  mega‐plano  de 
habitação ʺMi Casa, Mi Vidaʺ8, ambos financiados pelo BID. O primeiro 
exigiu  uma  reincorporação  do  beneficiário  à  disciplina  do  trabalho: 
prestação  de  serviços  em  órgãos  públicos,  controle  de  saúde  e 
reinserção  no  sistema  educacional.  Em  suma,  uma  regulação 
sistemática  do  indivíduo  desempregado.  O  segundo9,  o  plano  de 
habitação,  foi  implementado  de  maneira  vertiginosa  e  arbitrária, 
através da criação de bairros populares que tinham duas características 
fundamentais:  situar‐se  nas  periferias  da  cidade,  e  contar  com  a 
presença  de  todos  os  equipamentos  do  Estado  (polícia,  ministérios, 
escolas,  refeitórios).  Isto  se  traduziu  em  uma  política  diretamente 
destinada à regulação do espaço e ao deslocamento da população. No 
                                                            
7 Programa público que envolveu a transferência de dinheiro para os beneficiários e, em 
troca, a remuneração por horas de controles de trabalho, saúde e educação. 
8  Programa  habitacional  destinado  a  setores  ʺvulneráveisʺ  e  ʺrisco  ambientalʺ  que 

envolvem a transferência de assentamentos irregulares e à prestação de uma casa de 
família. 
9 Este plano é discutido no artigo de Shimbo e Ciuffolini presente neste livro. 

287
 
entanto, isso não implicou ou deteve o crescente problema habitacional, 
mas exatamente o contrário10. 
A  política  intensiva  de  revalorização  territorial  promoveu  a 
expulsão  de  populações  de  seus  locais  de  residência  sem  dar‐lhes  um 
novo  destino,  levando  ao  ressurgimento  das  ocupações  de  terra  que 
aconteciam há 15 anos atrás. 
 
ʺE  é  assim  como,  sabe  quando  dizem  ʹDeus  cria,  eles  se  juntam  e  o 
vento os amontoaʺ, e bom, nos amontoou neste caso aqui ... e eu, isso é 
verdade,  eu  me  senti  excluído  de  um  monte  de...  do  sistema...  nos 
chutava  para  fora,  não  entrávamos  nem  na  classe  média,  nem  na 
média‐baixa,  nem  em  nenhuma  classe,  não  existíamos  e  prontoʺ 
(Ocupação de Terra 04, Icho Cruz, Córdoba, 2012). 
 
ʺE sempre disse a meu filho: ʹOlha, temos a casa porque ganhamos ela 
com  o  nosso  sacrifício,  papai,  mamãe,  lutou,  você  também  lutou. 
Resistimos, todos os dias’. E quando chegam famílias digo a elas ʹesta é 
a minha casa, tanto lutei que vim para cá. E é assim. E aí você tem sua 
casa, tem o orgulho de dizer ‘moro lá’ʺ (Ocupação de Terra, Córdoba, 
2012). 
 
ʺA  questão  da  habitação  sempre  representava  para  nós  um  problema 
porque  não  podíamos...  muitas  vezes,  por  exemplo  no  ano  passado, 
quando  estávamos  alugando,  que  foi  o  ano  retrasado,  chegou  um 
momento  em  que  em  alguns  meses  tínhamos  que  decidir  entre 
comprar  um  par  de  sapatilhas  Brisa  e  pagar  o  aluguel  completoʺ 
(Ocupação de Terra 06, Icho Cruz, Córdoba, 2012). 
 
5. Conclusões 
 
Com  frequência  as  situações  de  desigualdade  e  exclusão  nas 
sociedades  contemporâneas  são  abordadas  a  partir  de  uma  dinâmica 
                                                            
10  O crescimento dos assentamentos informais recentemente é significativo. Atualmente, 
existem  238  na  província,  registrando‐se  entre  2001‐2010  forte  crescimento  da 
população (62%), nos já existentes, ao invés de surgimento de novos assentamentos. 
De  todos  os  assentamentos,  119  estão  localizados  na  cidade  de  Córdoba 
(Levantamento de assentamentos informais na província de Córdoba, Um Teto para 
meu País‐Argentina, em setembro de 2011). 

288
 
que focaliza de modo permanente o indivíduo ʺvulnerávelʺ ou ʺpobreʺ 
(Bravo, 2001; Indec, 2000; Macadar e Mendive, 1997). Falar de pobreza 
soa,  inclusive,  reiterativo,  dada  a  numerosa  produção  bibliográfica 
sobre  o  tema.  No  entanto,  de  nosso  ponto  de  vista,  acreditamos  ao 
menos ser necessário nos diferenciarmos destes conceitos. 
Pobreza habitualmente é um termo que agrupa um conjunto de 
estratégias de medição e agregação de categorias que colocam o foco na 
“carência”  do  indivíduo;  efetua  uma  leitura  estática  das  condições  de 
vida da população; constrói o pobre como um conjunto homogêneo de 
população marginalizada e excluída da sociedade. No entanto, as vozes 
daqueles  pobres  dão  conta  de  uma  dinâmica  diferente:  em  primeiro 
lugar exige que falemos, em todo caso, de pobrezas – no plural –, uma 
vez  que  estas  se  encontram  ancoradas  em  múltiplas  e  diversas 
experiências  cotidianas;  e,  por  outro  lado,  é  necessário  entendê‐las 
como  posições  determinadas  pela  posse  de  capitais  dentro  de  uma 
estrutura específica de relações, quer dizer, dentro da sociedade e não 
excluídos desta. 
Por sua vez, o conceito de ʺvulnerabilidadeʺ em políticas sociais 
é  problemático  já  que  ora  habilita  dinâmicas  individualizantes,  ora 
totalizantes,  dos  sujeitos  beneficiários  /  destinatários.  Por  um  lado,  o 
ʺbeneficiárioʺ  é  objeto  de  um  tratamento  diferente  do  restante  da 
população, dado que seu atributo principal é a carência de todo tipo de 
recursos ou capital. Assim, o acesso à cobertura da política pública não 
aparece  como  um  direito,  mas  como  uma  compensação  por  danos 
(sociais). 
Simultaneamente,  cada  situação  de  vulnerabilidade  é  inscrita 
em  uma  lógica  mais  global  do  tratamento,  que  visa  a  permanente 
normalização  da  desigualdade  social  que  a  provocou.  Assim, 
configurações do espaço social que assumem um caráter dominante são 
permanentemente  legitimadas  por  um  discurso  compensatório 
proveniente da estatalidade, e, neste sentido, é possível pensar o caráter 
(des)igualitário  que  assume  a  política  pública  frente  às  tensões  do 
presente. 
No  entanto,  a  presença  do  conceito  de  ʺvulnerabilidadeʺ  nos 
discursos  públicos  foi  um  ponto  a  problematizar  nossa  indagação.  Os 
riscos  que  supõe  essa  perspectiva  estão  em  sua  própria  definição. 

289
 
Assume  o  vulnerável  como  aquele  indivíduo  potencialmente  em  risco 
por  algo  que  é  uma  ameaça  para  si  mesmo,  um  estado  de  ʺincerteza, 
impotência  e  insegurançaʺ  (Brusso,  2001).  Sob  esse  pressuposto 
desaparece a construção do beneficiário como um cidadão portador de 
direitos,  como  saúde,  educação,  etc.,  e,  portanto  uma  categoria  de 
caráter universal, para passar a ser um sujeito em potencial ameaça de 
exclusão  de  ʺassistênciaʺ  educativa,  de  saúde,  etc.,  e,  deste  modo,  um 
indivíduo em risco, um indivíduo vulnerável. 
Neste  sentido,  todos  nos  vemos  expostos  a  riscos  (Beck,  1998), 
de  modo  que  se  torna  necessário  ir  identificando  os  mecanismos  para 
atender cada problemática e situação. Neste marco, ʺvulnerávelʺ é um 
conceito  que  penetrou  tanto  nos  escritórios  de  organizações 
internacionais  em  Washington  e  Nova  York  como  nas  barricadas  e 
assentamentos  protagonizados  pelos  setores  populares.  No  entanto, 
como era de se esperar, o olhar foi dirigido para eixos diferentes. 
Espaços como o G7 e em menor medida o G20 vêm substituir os 
mandamentos do Consenso de Washington. O fórum dos 20 países se 
converteu  em  um  palco  de  reivindicações  dos  países  menos 
desenvolvidos, e no espaço de reafirmação de medidas financeiras para 
apoiar  modelos  que  de  modo  permanente  estão  mostrando  a 
inviabilidade de, parafraseando Touraine (1998), uma ʺvida juntosʺ. 
Por  outro  lado,  a  partir  de  baixo,  os  setores  populares 
organizados  têm  instaurado  novamente  o  debate  das  demandas  de 
inclusão  e  radicalizado  as  práticas  de  impugnação  social.  Ambos  os 
conceitos se encontram em constante disputa, constituem um modo de 
(não)  nomear  os  conflitos  sociais  e  de  in/excluí‐los.  Aparece  dessa 
maneira  uma  tensão  chave,  permanentemente  insolúvel,  entre  a 
conformação dos espaços públicos e a definição do sentido da política, 
ou a sua capacidade de definir os rumos de uma sociedade. 
No breve percurso que tentamos refazer sobre o caso argentino, 
e  a  província  de  Córdoba  em  particular,  observado  a  partir  da 
perspectiva  dos  setores  populares,  nos  aporta  uma  série  de  elementos 
para  pensar  e  problematizar  as  consequências  que  provocam  as 
políticas  públicas,  independentemente  do  objetivo  que  perseguem.  Os 
relatos  dos  entrevistados,  que  recuperam  mais  de  20  anos  de 
experiência  do  campo  popular,  nos  advertem  sobre  a  tensão  que 

290
 
permanentemente  se  apresenta  quando  os  espaços  de  decisão  e  ação 
pública  se  vêem  questionados  a  partir  da  própria  base  social.  Sem 
dúvida,  os  recursos  que  os  setores  organizados  conseguem  obter  da 
estatalidade  constituem  um  dos  pilares  para  fortalecer  sua  estrutura 
interna,  sua  capacidade  de  mobilização  e  negociação  com  os 
funcionários públicos. No entanto, esta forma alternativa de gestão dos 
problemas, que implica na intermediação entre indivíduos e Estados a 
partir da organização dos setores afetados, representa um risco para a 
estatalidade, uma ameaça ao controle que se busca exercer sobre essas 
populações. 
Percebe‐se nos textos das políticas estatais, ainda, que as pessoas 
em questão não careçam de Estado, mas ao contrário, que elas o tenham 
de sobra, encontram‐se inscritas em uma nova técnica gerencial, ou uma 
nova  “tecnologia  social”.  A  presença  estatal,  entretanto,  não  é 
exatamente  garantidora  de  direitos:  em  todos  esses  documentos, 
políticas  e  programas,  ao  mesmo  tempo  em  que  se  oferecem 
oportunidades,  produz‐se  histórias  de  vida  típicas  de  tudo  o  que  falta 
para que um sujeito esteja apto a desfrutar do convívio de cidadãos.  
Quando a organização popular constitui uma clara ameaça para a 
legitimidade dos projetos políticos dominantes, os mecanismos estatais 
se  esforçam  por  provocar  a  fratura,  ruptura  e  desmobilização  dessas 
experiências coletivas. E o fazem por múltiplas táticas na arena pública, 
seja  cooptando  seus  dirigentes,  envolvendo  essas  organizações  em 
práticas  cada  vez  mais  burocratizadas,  ou  intervindo  diretamente  no 
território,  perseguindo  a  fratura  da  base  de  apoio.  Mas  quando  esses 
mecanismos  não  são  suficientes,  o  espaço  público  se  torna  um  campo 
de batalha, onde a repressão opera como a única resposta do Estado às 
demandas sociais. 
O  cenário  que  se  apresenta,  então,  é  de  uma  dupla 
aprendizagem,  onde  o  Estado  toma  as  lutas  e  a  organização  popular 
como  doutrinas,  e  aquelas  fazem  de  sua  prática  e  da  relação  com  o 
Estado uma caixa de ferramentas e um estado de coisas que estabelece 
permanentemente  novos  pontos  de  partida  e  instâncias  de  demandas 
sustentadas  com  estratégias  mais  radicais,  mais  móveis,  e  formas 
organizativas que permitem, com relativo êxito, escapar à desativação, 
criando  um  cenário  mais  participativo,  mais  politizado,  e  com  atores 

291
 
fortemente  empoderados.  Daí  que  sustentamos  que  para  pensar  em 
uma  democracia  sólida,  e  reclamar  por  instituições  que  sejam  capazes 
de organizá‐la, devemos garantir os espaços de liberdade para aquelas 
pessoas que estão lutando por uma sociedade mais justa. 
 
 
 
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294
 
Territórios e populações marginais em tempo de desenvolvimento: 
modos de gestão do conflito social no Brasil contemporâneo 
             
Gabriel de Santis Feltran1 
 
   
1. Introdução 
 
  O  Brasil  contemporâneo  está  em  franca  transformação,  em 
grande medida pelo cenário de desenvolvimento econômico da última 
década,  desigualmente  distribuído  pelos  tecidos  social  e  urbano.  A 
conflitividade  social  expressa  por  esse  cenário  também  é  nova.  No 
centro  da  cidade  de  São  Paulo,  a  Polícia  Militar  (PM)  ocupa  a  região 
conhecida  como  “cracolândia”  em  meio  a  uma  grande  operação  de 
ʺrequalificação urbanaʺ. Enquanto isso, a Prefeitura Municipal constrói 
albergues  de  “atendimento”  aos  usuários  de  crack,  cada  um  para  mais 
de  mil  pessoas.  Discute‐se  publicamente  a  pertinência  da  internação 
compulsória dos ʺnoiasʺ. Grandes incorporadoras investem em mão de 
obra  de  presidiários  paulistas  –  cuja  população  foi  quadruplicada  na 
última  década  –  em  troca  de  remissão  de  penas.  Há  200  mil  presos  no 
estado, e cinquenta novos presídios em construção. No Rio de Janeiro, o 
Exército  Brasileiro  ocupa  territórios  de  favela  na  zona  sul,  a  mais 
abastada,  expulsando  traficantes  de  drogas  para  as  periferias.  O 
caminho aberto pelas Unidades de Polícia Pacificadora” (UPPs) também 
serve  aos  mercados  imobiliário  e  do  terceiro  setor.  Uma  sequência  de 
incêndios  criminosos  em  favelas  de  São  Paulo  possibilita  que  as 
políticas de remoção, estancadas desde os anos 1980, retomem fôlego e 
liberem  terrenos  de  interesse  comercial.  O  conflito  alastra  violência. 
Mais  de  80  policiais  militares  foram  assassinados  pelo  Primeiro 
Comando da Capital (PCC), a principal facção criminosa do estado, e a 
vingança das forças da ordem produz uma nova escalada das taxas de 

                                                            
1 Professor  do  Departamento  de  Sociologia  da  Universidade  Federal  de  São  Carlos 
(UFSCar);  Pesquisador  do  Centro  de  Estudos  da  Metrópole  (CEM)  e  do  Centro 
Brasileiro  de  Análise  e  Planejamento  (CEBRAP).  Pesquisa  apoiada  pela  FAPESP  e 
CNPq. 

295
 
homicídios nas periferias, depois de uma década de queda significativa. 
As taxas de desenvolvimento da economia acompanham essa elevação. 
  Esse  cenário  paradoxal,  de  desenvolvimento  associado  a  alta 
conflitividade social, pode ser captado especificamente nos territórios e 
grupos sociais considerados ʺmarginaisʺ no Brasil contemporâneo. Este 
ensaio  reflete  sobre  algumas  relações  entre  a  gestão  contemporânea 
desses territórios e populações, bem como os modos como tem podido 
ser  convertido  ‐  tanto  no  plano  semântico,  quanto  de  mercado  ‐  em 
“desenvolvimento”.  Acompanhando  etnografias  recentes  junto  a  esses 
grupos, sobretudo no estado de São Paulo, proponho algumas sínteses 
analíticas que apontam para a fusão recente entre os problemas “social” 
e de “segurança pública” no debate público brasileiro, bem como para 
algumas  questões  teóricas  e  políticas  pouco  intuitivas,  a  princípio.  A 
hipótese  é  que  esse  modo  de  administrar  o  conflito  urbano  nas 
principais  metrópoles  brasileiras,  que  promovem franca transformação 
territorial,  social  e  econômica  conecta‐se  diretamente  à  validação 
pública do Brasil com o país em franco desenvolvimento. 
  Os  argumentos  expressos  aqui,  ainda  bastante  preliminares, 
partem  de  uma  investigação  coletiva,  em  andamento  desde  agosto  de 
20102,  que  etnografa  três  grupos  urbanos  específicos:  i)  adolescentes  e 
jovens  inscritos  em  atividades  criminais,  moradores  de  bairros  das 
periferias urbanas; ii) moradores de rua; iii) prostitutas3. O que articula 
analiticamente  esses  sujeitos  e  territórios  distintos,  a  princípio,  é  tanto 
sua  condição  marginalizada  frente  a  dinâmicas  sociais  consideradas 
                                                            
2 Trata‐se do projeto de pesquisa “As margens da cidade: grupos urbanos ‘marginais’, 
política  e  violência  em  três  territórios  do  estado  de  São  Paulo”,  desenvolvido  no 
NaMargem  –  Núcleo  de  Pesquisas  urbanas,  além  de  mim  por  Mariana  Martinez 
(PPGAS/UFSCar), Filipe Horta (IESP/UERJ), Daniel Melo (PPGAS/UFSCar), Henrique 
Takahashi, Luciano Oliveira, Evelyn Postigo e Luiz Fernando Pereira (PPGS/UFSCar), 
Liniker  Batista  (PPGAS/Unicamp),  Domila  Pazzini,  Deborah  Fromm,  Leilane 
Matsushita,  Marcos  Vinícius  Silva  (Ciências  Sociais/UFSCar).  Agradeço  a  cada  um 
deles  pela  parceria  nesses  últimos  anos.  O  texto  conta  com  trechos  em  primeira 
pessoa do singular, quando apresento argumentos de minha responsabilidade, e em 
primeira pessoa do plural, quando me refiro a dinâmicas de pesquisa coletiva. 
3  Os  territórios  estudados  concentram‐se  sobretudo  nas  cidades  de  São  Paulo 

(Sapopemba, Heliópolis, Centro – “Cracolândia”), São Carlos e Cruzes (nome fictício), 
no estado de São Paulo. Uma das pesquisadoras desenvolve ainda, inicialmente, seu 
trabalho na Cidade de Deus, Rio de Janeiro.  

296
 
legítimas,  quanto  o  fato  de  estarem,  quase  sempre,  convivendo 
proximamente  com  políticas  e  programas  estatais  (de  atendimento  e 
repressão,  muitas  vezes  simultâneos).  Esses  sujeitos  impuseram  à 
equipe  de  pesquisa,  logo  de  cara,  o  paradoxo  de  serem  considerados 
“excluídos”  da  vida  social  ao  mesmo  tempo  que  apresentavam 
vinculações  empíricas  com  formas  de  “atendimento”  estatais  das  mais 
diversas. Além disso, e ao contrário do que supõe o senso comum, trata‐
se muitas vezes de sujeitos vinculados a distintos arranjos familiares, de 
mercados  de  trabalho  e  geração  de  renda,  bem  como  a  distintas 
religiosidades  e  modos  de  habitar  a  cidade,  ou  seja,  a  diferentes 
instâncias da vida social considerada legítima. A escolha desta condição 
marginal  como  lente  a  partir  da  qual  se  analisa  o  cenário  brasileiro 
contemporâneo  não  é  casual.  Trata‐se  de  uma  escolha  de  pesquisa 
desenvolvida  ao  longo  dos  últimos  anos  de  investigação  coletiva, 
amadurecendo  conexões  entre  pesquisa  etnográfica  e  leitura  teórica 
inspirada, sobretudo, nas etnografias do estado e de suas margens.  
  O  mundo  urbano  brasileiro,  visto  aqui  sob  o  prisma  de  São 
Paulo e, com menor intensidade, Rio de Janeiro, tem mudado muito nas 
últimas  quatro  décadas.  As  periferias  da  cidade  apresentam 
deslocamentos  nada  triviais  nas  bases  da  sua  dinâmica  social.  A 
migração  “nortista”,  central  à  expansão  das  manchas  urbanas  do 
sudeste  brasileiro,  declinou  muito  a  partir  dos  anos  1990;  ao  mesmo 
tempo,  os  mercados  de  trabalho  populares  se  reconfiguraram 
inteiramente, na esteira da chamada “reestruturação produtiva”, tardia 
no  Brasil  se  comparada  aos  países  do  norte  (Kowarick  &  Marques, 
2011).  Consolidou‐se  ainda  a  inscrição  das  mulheres  no  mercado  de 
trabalho  popular,  agora  constitutivamente  marcado  pelas  fronteiras 
entre  formal‐informal  e  legal‐ilegal  (Telles  &  Cabanes,  2006;  Telles, 
2011).  Imersa  nessas  transformações,  a  família  popular  tendeu  à 
nucleação,  em  arranjos  muito  heterogêneos.  A  taxa  de  natalidade 
brasileira de 1,8 filhos/mulher é, hoje, menor do que a taxa de reposição 
demográfica. No plano religioso, e especialmente entre os mais pobres, 
foi  enorme  o  trânsito  do  catolicismo  ao  pentecostalismo  (Almeida, 
2009). Além disso, o acesso à infra‐estrutura urbana e bens de consumo 
cresceu  enormemente  desde  os  anos  1970  e,  embora  ainda  muito 
deficiente, possibilitou que as novas gerações da cidade vivam, hoje, em 

297
 
mundo radicalmente distinto daquele de seus pais (Marques & Torres, 
2005;  Feltran,  2011).  Nesses  anos,  além  do  mais,  a  “violência  urbana” 
tornou‐se  assunto  de  qualquer  cidadão  brasileiro  (Caldeira,  2000; 
Machado  da  Silva,  2004;  Misse,  2006),  e  à  elevação  brutal  das  taxas  de 
homicídio  nos  anos  1990  (Manso,  2003,  2012),  seguiu‐se  na  década 
seguinte  uma  queda  muito  expressiva  em  São  Paulo,  sobretudo  nas 
margens da cidade (Marques, 2010; Feltran, 2010a, 2010b, 2011; Hirata, 
2010; Manso, 2011), fato que não ocorreu em outros estados. Em suma, 
as  palavras‐chave  do  debate  sobre  as  periferias  de  São  Paulo,  ou  seja, 
trabalho,  migração,  religião,  família,  políticas  sociais  e  violência,  estão  hoje 
muito longe de dizer o que diziam há quarenta anos. 
  Nesse cenário, o projeto dos “trabalhadores”4 que colonizaram 
as periferias da cidade, fundindo o desejo operário de ascensão social à 
aposta política na expansão da cidadania (Dagnino, 1994; 2002), sofreu 
deslocamentos  nada  triviais,  em  todas  as  suas  dimensões  fundadoras. 
Analisando o percurso de tensões desse projeto nas últimas décadas, e 
as  dinâmicas  recentes  de  relação  dos  governos  com  “populações” 
marginalizadas  (Foucault,  2000),  argumento  que  o  estatuto  do  conflito 
social e político ensejado pelas periferias urbanas foi deslocado (Feltran, 2012). 
Se  nos  anos  1980  esse  conflito  pôde  ser  pautado  numa  perspectiva  de 
integração  das  camadas  “trabalhadoras”,  pela  aposta  na  contrapartida 
social  do  assalariamento,  agora  trata‐se  sobretudo  de  gerenciar  as 
fronteiras  entre  periferias  e  direito  –  de  modo  compartilhado  entre 
Estado,  polícias  e  “mundo  do  crime”  –  pela  ênfase  sistemática  nas 
representações da violência urbana. 
  As  investigações  de  campo  empreendidas  entre  esses  grupos, 
ainda  muito  preliminares,  sugerem  a  sustentação  desse  argumento. 
Todas  de  orientação  etnográfica,  tiveram  como  ponto  de  partida  duas 
constatações  importantes,  provenientes  de  pesquisas  anteriores  e  do 
diálogo  com  a  bibliografia  mais  recente  sobre  o  tema:  a  primeira 
eminentemente  teórico‐epistemológica;  a  segunda  mais  propriamente 
analítica.  Neste  ensaio,  dividido  em  duas  seções,  trato  de  cada  uma 
delas.  Ao  final,  apresento  sínteses  das  questões  analíticas,  teóricas  e 
                                                            
4   Utilizo  aspas  para  demarcar  as  categorias  de  uso  corrente  nas  periferias  da  cidade, 
como  “trabalhador”,  “mundo  do  crime”,  “bandido”  etc.  Os  nomes  próprios  citados 
são fictícios. 

298
 
políticas  que  me  parecem  estar  inscritas  na  gestão  contemporânea  das 
“populações  marginais”  no  Brasil  urbano,  em  tempos  de 
“desenvolvimento econômico”. 
 
2. Os sujeitos marginais e o mundo social: digressão teórico‐metodológica 
 
  Usualmente, tanto nos relatórios dos serviços sociais que atendem 
a esses usuários da assistência, quanto nas ações das forças policiais que os 
reprimem, e mesmo na produção bibliográfica mais tradicional acerca dos 
grupos  estudados  aqui,  a  dinâmica  social  que  os  caracteriza  tem  sido 
descrita  na  chave  da  ausência.  Ou  seja,  nessas  perspectivas  um  menor 
infrator,  uma  prostituta  ou  um  morador  de  rua,  quase  invariavelmente,  são 
pensados  como  pessoas  vivendo  nos  interstícios  sociais,  a  quem  falta  o 
fundamental  para  uma  vida  social  considerada  saudável,  digna,  cidadã:  o 
trabalho  regular,  a  “família  estruturada”,  as  condições  de  habitação,  o 
respeito  à  lei,  a  civilidade,  a  moral,  o  autocuidado,  a  autoestima. 
Evidentemente, ainda nessa chave, aquilo que caracterizaria esses grupos, 
estendendo‐se e contaminando também os territórios que habitam, seria o 
oposto  dessas  virtudes:  a  vadiagem,  o  alcoolismo,  o  vício,  as  atividades 
ilegais,  ilícitas  e/ou  imorais,  a  promiscuidade,  a  degradação  pessoal, 
familiar  e,  no  limite,  quase  como  conseqüência  natural,  a  criminalidade 
violenta.  A  partir  desse  diagnóstico,  a  vida  desses  sujeitos  tem  sido 
majoritariamente  pensada  a  partir  do  problema  (pobreza,  desordem, 
incivilidade,  imoralidade,  violência,  marginalidade,  criminalidade)  com  o 
qual são identificados, e a produção de conhecimento a respeito deles parte 
da seguinte pergunta: como resolver/administrar esse problema?5  

                                                            
5   Se  o  problema  são  os  outros,  e  não  a  relação,  as  técnicas  de  tratamento  devem  estar 
focadas nos sujeitos aos quais se atribui o problema, e não à relação que o(s) constitui. 
Desde  as  primeiras  décadas  da  modernidade  se  constrói  a  noção  da  cidade  como 
laboratório e clínica do humano, noção formalizada cabalmente nos primeiros escritos 
da Escola de Chicago (Park, 1979). Caberia, portanto, aos homens de bem, aos cidadãos, 
aos  incluídos,  encarregar‐se  de  cuidar  dessa  fronteira  de  dignidade  e  legitimidade 
social, agindo para transformar os viciados e desviantes; seria preciso oferecer‐lhes as 
oportunidades  da  vida  digna,  ou  reprimir  neles  os  impulsos  deletérios.  Da  punição 
exemplar  à  filantropia,  do  suplício  à  disciplina,  e  daí  à  gestão  das  populações,  na 
genealogia  foucaultiana,  os  mesmos  remédios  vem  sendo  testados  por  séculos, 
década a década, ano a ano. 

299
 
  Eis  a  primeira  constatação:  esses  sujeitos  são  concebidos  pelo 
problema  social  que  representam,  e  portanto  pela  ausência  frente  à 
normatividade  dominante  (partilhada  muitas  vezes  pelos  próprios 
sujeitos em questão, em determinadas situações) que lhes é inerente. É 
preciso esclarecer, logo de cara, que não se trata aqui de dizer que esse 
problema  não  existe,  acusando  o  déficit  de  “realidade”  ou  o 
etnocentrismo  de  quem  assim  o  formula.  Se  há  um  século  rompemos 
com  o  positivismo  na  etnografia,  trata‐se  aqui,  apenas,  de  dizer  que  é 
preciso  estudá‐lo  considerando  sua  existência  em  perspectiva,  e  não  sob 
quaisquer  perspectivas.  Assumo  aqui,  inclusive,  que  o  problema  se 
confirma  como  tal  nas  falas  dos  próprios  sujeitos  em  questão,  mas 
apenas  quando  eles  se  dirigem  aos  assistentes  sociais,  psicólogos, 
advogados,  escrivães,  pastores  ou  missionários  que  os  acompanham 
pela vida; o problema não se confirma, entretanto, em inúmeras outras 
situações  de  locução.  São  essas,  pela  carência  delas  na  bibliografia,  que 
cabe a nossa pesquisa explicitar. 
  A  exclusão  social  de  um  trecheiro6  é  inconteste,  partindo  do 
ponto de vista do religioso que lhe presta ajuda filantrópica; mas não é, 
quando  vista  desde  a  conversa  entre  ele  e  os  pares  de  uma  banca  de 
moradores de rua, que se reúnem para passar o dia, arrumar dinheiro, 
comida  e  bebida,  trocar  dicas  sobre  os  lugares  em  que  estiveram  e  as 
pessoas que devem ou não ser respeitadas em cada um deles, os modos 
mais  fáceis  de  escapar  da  polícia  e  conseguir  abrigo  da  prefeitura,  os 
códigos  para  falar  com  os  assistentes  sociais  e  as  críticas  ao  sistema 
(equivalente semântico de sociedade). Nessa segunda perspectiva, já não 
há ausência de sociabilidade, códigos ou laço social, como demonstra a 
bibliografia a respeito (Rui, 2012; Martinez, 2010). Ocorre que a primeira 
figuração,  a  da  co‐presença  de  seres  excluídos7,  portanto  alheios  ao 
pertencimento social, é dominante e se constitui como o ponto nodal de 
elaboração dos critérios pelos quais todos esses sujeitos marginalizados – 
seu passado, sua presença, seus destinos, seus territórios – passam a ser 
                                                            
6 Sobre trecheiros e pardais, classificações internas ao mundo daqueles conhecidos como 
andarilhos, mendigos e vagabundos, no estado de São Paulo, ver Martinez (2010). 
7 Há uma série de críticas produzidas à noção de exclusão social, desde a clássica crítica 

de  Martins  (1997).  Nossa  abordagem  soma‐se  a  elas,  embora  não  se  confunda  com 
nenhuma delas, inteiramente. 

300
 
compreendidos  publicamente.  A  repercussão  dessa  figuração  nas 
políticas  públicas  é  evidente  –  os  programas  sociais,  questionários, 
relatórios  e  fichas  de  atendimento  partem  dessas  premissas  para 
confirmá‐las, progressivamente, nos seus “atendimentos”.  
  Se  há  consequências  políticas  expressas  a  partir  daqui, 
concentro‐me inicialmente naquelas mais propriamente analíticas. Entre 
elas,  parece‐me  relevante  afirmar  que  o  diagrama  de  compreensão 
dominante  produz  uma  fronteira  normativa  que  circunscreve  o 
pertencimento  social.  Apostando  numa  análise  reflexiva,  pode‐se 
perceber  sem  dificuldade  que  essa  forma  de  nomeação,  tal  seja,  a  que 
sugere  a  existência  de  “excluídos”,  ao  fazê‐lo  reforça  os  critérios 
normativos  de  pertencimento  ao  social,  definindo‐os.  Desenha‐se  nesta 
operação, portanto, os limites cognitivos que circunscrevem as margens 
daquele  domínio  passível  de  ser  chamado  de  sociedade,  bem  como  a 
plausibilidade daquilo que pode ser considerado social.  
  O  ganho  da  abordagem  reflexiva  que  se  propõe  a  tornar 
explícita  essa  figuração,  nos  parece,  está  centrado  no  fato  de  que  o 
problema  em  questão,  quando  tratamos  dos  grupos  considerados 
marginais,  deixa  de  ser  o  excluído,  e  volta‐se  ao  diagrama  de  relações 
que  os  nomeiam  como  tais.  Nessa  medida,  desnaturaliza‐se  também  o 
lugar  tradicionalmente  ocupado  pelo  pesquisador8.  Consequência 
primeira  desta  constatação,  e  dos  desdobramentos  analíticos  dela  – 
estudar  os  grupos  marginalizados  é  também  estudar  as  fronteiras 
normativas  que  circunscrevem  o  social  e,  portanto,  conhecer  os  seus 
princípios  normativos  fundadores.  Estudar  as  franjas  sociais  é,  então, 
também estudar o centro.  
No  tratamento  mais  corrente  da  questão,  portanto,  há  uma 
partilha  a  ser  considerada  para  se  pensar  a  sociedade:  o  social,  nessa 
perspectiva,  é  sempre  considerado  circunscrito  por  valoração  e 
normatividade,  e  há  invariavelmente  sua  contraface:  fenômenos, 
territórios  e  seres  dele  apartados,  por  o  constituírem  em  negativo.  De 
                                                            
8  Ressalta‐se, nesse ponto, a contribuição decisiva de pesquisadores, no grupo, oriundos 
dos  contextos  estudados.  É  bastante  recente,  na  bibliografia,  a  presença  de 
pesquisadores desses contextos que compartilham códigos, sociabilidade e territórios 
com seus sujeitos de pesquisa e com as universidades; Dias (2012) apresenta reflexão 
metodológica fundadora a respeito. 

301
 
um lado há um terreno reservado àquilo que é propriamente social – os 
critérios  de  legalidade,  legitimidade,  moralidade  correntes  o  definem; 
de  outro,  há  territórios  e  populações  que  não  compartilham  desses 
critérios, e mesmo os ameaçam, e portanto deve permanecer excluídos. A 
sociedade  tem  sempre  um  lado  de  fora,  portanto,  e  a  fronteira  que 
define seus limites é inteiramente pautada pela relação mútua entre os 
lados que ela divide.  
  A  proposta  das  investigações  deste  projeto  de  pesquisa,  que 
ora desenvolvemos, pensa as margens, interstícios, periferias ou franjas 
do  social  numa  outra  direção,  afeita  a  outra  tradição  de  investigação. 
No tratamento proposto aqui, não há lado de fora na vida social, portanto 
não  há  excluídos  da  sociedade9.  Há  dependentes  de  crack,  prostitutas, 
ladrões, e moradores de rua fazendo parte da vida social e urbana e, por 
vezes, pautando, pela sua presença, a definição mesmo dos critérios das 
ações  dos  grupos  considerados  centrais.  Estudar  os  marginais  a  partir 
das  relações  que  estabelecem  com  as  fronteiras  –  semânticas, 
classificatórias e mesmo físicas – que os definem como excluídos é, nessa 
perspectiva  específica,  acessar  os  critérios  de  formulação  da 
normatividade  social  dominante,  não  raras  vezes  legitimadas  por 
determinações  estatais.  O  conjunto  de  relações  que  compõe  o  social, 
nessa  medida,  abarca  não  apenas  todos  esses  sujeitos,  mas  seus 
territórios,  formas  de  ação,  rotinas,  cotidianos,  instituições.  A 
“sociedade”  ganha,  ao  mesmo  tempo,  mais  amplitude  descritiva  e 
menos caráter normativo.  
  A definição bipolar que opõe os homens de bem aos vagabundos, 
os trabalhadores aos bandidos, as moças de família às prostitutas, inteligível 
por onde quer que se ande, perde força como categoria analítica. Essas 
polaridades  usuais  de  compreensão  da  vida  social  e  urbana  passam, 
então,  não  mais  a  funcionar  como  categorias  pelas  quais  se  poderia 
compreender o que se passa; elas passam a ser vistas como uma espécie 
de representação (coletiva, e não precisamos da transcendência do social 
durkheimiano  para  considerá‐la  assim)  que  é,  justamente,  aquilo  que 
nos caberia estudar. Essas polaridades semânticas, portanto, deixam de 

                                                            
9  A inspiração é, sobretudo, de Das & Poole, 2002; Das, 1999, 2006, 2012. Latour (2000), 
por outros caminhos, chega a conclusões semelhantes. 

302
 
ser  chaves  a  partir  das  quais  se  poderia  pensar  o  problema  dos  grupos 
marginalizados,  e  passam  a  ser  pensadas  como  parte  fundamental  do 
próprio  objeto  que  se  pretende  compreender10.  A  prostituta,  o  morador  de 
rua  ou  o  jovem  infrator  deixam  de  ser,  assim,  sujeitos  dados  ou 
problemas sociais concretos, circunscritos aos interstícios ou alheios ao 
social,  que  nosso  saber  deve  contribuir  para  sanar.  Eles  passam  a  ser, 
antes de mais nada, enunciados naturalizados, porque dominantes, que nos 
cabe  estudar  em  detalhe,  e  na  linha  do  tempo,  para  compreender  as 
forças  que  os  constroem  como  dotados  de  sentido,  e  os  rituais 
cotidianos que os atualizam.  
  É  essa  construção,  e  essa  atualidade,  que  demarcam  as 
consequências analíticas – e políticas – que fazem com que o morador de 
rua, o jovem infrator e a prostituta ocupem, nos contextos pesquisados, o 
lugar  que  ocupam.  São  elas  que  fazem  com  que  se  pense  saber  quem 
eles  são,  e  o  que  pensam,  sem  nunca  ter  travado  contato  com  eles  –  a 
percepção  que  nos  faz  entender  quem  eles  são  se  dá  pelo  que  se  sabe 
que eles não são e não pensam. Estudá‐los o mais rigorosamente possível, 
assim,  tem  por  finalidade  produzir  inteligibilidade  sobre  perspectivas 
múltiplas e conflitantes que, em sua tensão constitutiva, estabelecem os 
parâmetros do conjunto da normatividade social. Estudar as noções de 
moralidade,  legitimidade,  valores  e  concepções  de  mundo,  códigos  de 
pertencimento  e  conduta,  entre  outras,  está,  portanto,  no  centro  dessa 
tentativa. Trata‐se aqui, portanto, de multiplicar as formas de enxergar 
esses  grupos,  buscando  estabelecer  etnograficamente  as  perspectivas  a 
partir  das  quais  a  complexidade  das  suas  relações  sociais  possa  ser 
captada. Busca‐se estabelecer lugares de pesquisa a partir dos quais as 
inúmeras formas de codificação interna, formulação de regras e valores 
morais,  constituição  de  alianças  e  inimigos,  linguagem  e  reflexividade 
desses sujeitos possam se tornar mais presentes na análise.  
As formas de nomeação, classificação, hierarquização e significação, 
enunciadas e postas em marcha nos territórios, situações e grupos estudados, 
são tomadas, nessa medida, como parte fundamental do material de campo 

                                                            
10  Aproprio‐me aqui da reflexão original de Machado da Silva (2004) sobre a categoria 
“violência urbana”, estendendo‐a a outros problemas. 

303
 
que analisamos, cujos diagramas de sentido nos cabe compreender11. Assim, 
pretende‐se  realizar,  sobretudo,  um  retorno  à  tradição  fundadora  da 
pesquisa social, no sentido simmeliano, que propõe uma ruptura – a começar 
pela  inversão  da  questão  central  que  lhe  é  imanente  –  com  o  conjunto  de 
pressupostos  normativos  de  senso  comum  que  informava,  e  que  informa 
ainda  hoje,  boa  parte  das  estruturas  dominantes  de  compreensão  dos 
sujeitos  marginalizados.  Em  termos  práticos,  ao  invés  de  nos  perguntarmos 
pelo que falta para que o problema representado nas figuras de adolescentes 
inscritos no crime, dependentes de crack ou prostitutas seja sanado, ou como 
administrá‐lo  de  modo  mais  eficiente,  eficaz,  efetivo,  preocupamo‐nos 
inicialmente apenas em descrever as relações que caracterizam as dinâmicas 
íntimas,  sociais  e  públicas  desses  sujeitos,  em  sua  vida  cotidiana,  seus 
espaços de atendimento, suas formas de lidar com a cidade, etc. Em seguida, 
procuramos comparar os efeitos de conhecimento acerca das dinâmicas sociais 
que se abrem, nessa perspectiva, aos que são gerados por outras formas de 
analisar.  Constatamos,  então,  que  esses  efeitos  são  muito  diferentes,  que  a 
partir  deles  as  análises  chegam  a  lugares  distintos.  O  choque  entre  essas 
perspectivas  de  saber  é,  então,  inteiramente  rentável  analiticamente. 
Levando‐o  a  sério,  trata‐se  de  um  choque  de  saberes  inteiramente  afeito  à 
constituição da política, no sentido de Jacques Rancière12. 
  O método de trabalho etnográfico nos tem parecido adequado a 
esse  investimento  por  possibilitar  convivência,  a  mais  próxima  possível, 
                                                            
11  A  sociologia  pragmatista  de  Boltanski  &  Thevenot  (1991);  Thevenot  (2006)  tem  sido 
ponto de ancoragem constante dessa reflexão. 
12  O  que  se  passa,  com  efeito,  quando  as  forças  da  ordem  são  enviadas  para  reprimir 

uma manifestação política? O que se passa é uma contestação das propriedades e do 
uso  de  um  lugar:  uma  contestação  daquilo  que  é  uma  rua.  Do  ponto  de  vista  da 
polícia, uma rua é um espaço de circulação. A manifestação, por sua vez, a transforma 
em espaço público, em espaço onde se tratam os assuntos da comunidade. Do ponto 
de vista dos que enviam as forças da ordem, o espaço onde se tratam os assuntos da 
comunidade  situa‐se  alhures:  nos  prédios  públicos  previstos  para  esse  uso,  com  as 
pessoas destinadas a essa função. Assim, o dissenso, antes de ser a oposição entre um 
governo  e  pessoas  que  o  contestam,  é  um  conflito  sobre  a  própria  configuração  do 
sensível. Os manifestantes põem na rua um espetáculo e um assunto que não têm aí 
seu  lugar.  E,  aos  curiosos  que  vêem  esse  espetáculo,  a  polícia  diz:  “vamos  circular, 
não há nada para ver”. (...) Antes de ser um conflito de classes ou partidos, a política é 
um conflito sobre a configuração do mundo sensível na qual podem aparecer atores e 
objetos desses conflitos. (Rancière 1996, p.373). 

304
 
entre  pesquisadores  e  sujeitos  pesquisados,  incluído  aí  o  esforço  de 
reflexão  sobre  essa  convivência  (bastante  significativo  para  pensar  a 
alteridade  como  fronteira).  Mais  uma  vez,  cabe  dizer  que  essa  proposta 
não  é  nada  inovadora,  embora  distinta  do  que  vem  sendo  feito 
majoritariamente  nas  Ciências  Sociais  brasileiras  (e  também  em  muitos 
contextos internacionais), nas últimas décadas. Estamos procurando fazer 
apenas  o  que  os  clássicos  da  Sociologia  –  e  da  Antropologia  –  já 
recomendaram, e foi posto em prática de pesquisa, com algumas distinções 
relevantes,  por  trabalhos  fundadores  como  os  de  Simmel  (2006  [1903]), 
Anderson  (2010  [1923])  ou  Whyte  (2005  [1943]).  Basicamente,  trata‐se  de 
buscar suspender – o tanto quanto possível, e o mais radicalmente possível 
nas  situações  de  pesquisa  –  os  juízos  morais  acerca  dos  sujeitos 
pesquisados, para descrever os modos como essas pessoas interagem entre 
si,  nas  diferentes  situações  que  vivem,  nos  diferentes  momentos  e 
territórios em que convivem. Da mesma forma, atentar para como se dão, 
desde  essa  perspectiva,  suas  relações  efetivas  com  instâncias  sociais  e 
políticas legitimadas como a família, o mercado de trabalho, as igrejas, as 
políticas  sociais,  a  esfera  jurídica,  o  “mundo  do  crime”  e  o  Estado. 
Descrever,  ainda,  as  trajetórias  pessoais,  de  grupos  e  de  associações 
inscritas  nessas  dinâmicas  marginais,  tomando  como  parâmetros  o  que 
acontece, o que se diz, o que se faz, e não o que julgávamos que deveriam 
fazer,  falar,  pensar.  Não  se  trata,  portanto,  de  desconsiderar  que  esses 
sujeitos se apresentam como um problema social, para muitos, mas de não 
reificar  a  existência  desse  problema  como  se  fosse  objetivamente 
encontrado em todas as situações ou perspectivas em questão. Até porque 
nossos dados de pesquisa têm mostrado, justamente, que não é assim que 
as  coisas  se  passam,  se  trabalharmos  com  rigor  a  partir  dos  princípios 
teórico‐metodológicos fundamentais das Ciências Sociais. 
 
3. Pensar a mudança nos setores populares: as margens como lacuna na 
bibliografia 
     
  Um  segundo  ponto  de  partida  desta  pesquisa,  igualmente 
derivado de investigações anteriores e da leitura da bibliografia recente, 
é  aquele  que  percebe  as  dinâmicas  sociais  e  políticas  dos  setores 
populares  a  partir  da  mudança,  da  transformação,  registrada 

305
 
empiricamente  pelos  mais  variados  métodos  –  das  pesquisas  por 
questionário  ao  georreferenciamento,  das  buscas  por  trajetórias 
individuais  às  que  procuram  captar  transformações  estruturais  no 
Estado  ou  na  economia.  Parte‐se  aqui  do  pressuposto  de  que  os 
parâmetros  da  vida  social  nas  margens  urbanas  vêm  se  alterando 
enormemente  nas  últimas  décadas,  de  modo  conectado  a  mudanças 
ocorridas  também  em  outras  esferas  sociais,  econômicas  e  de  Estado, 
inclusive  as  mais  legítimas.  A  transformação  nas  margens  nos  parece, 
portanto,  conectada  às  transformações  do  trabalho,  família,  religião, 
projetos de mobilidade social, formas de associativismo, relações com a 
institucionalidade estatal, as políticas públicas e os movimentos sociais. 
Motivo, portanto, para pensá‐las relacionalmente e, assim, contribuir para 
a transformação também das formas de analisá‐las.  
Dando  passos  atrás  com  relação  às  propostas  dedutivas  de 
teorias  de  grande  envergadura,  a  proposta  é  produzir  pesquisas 
situadas e análises de médio alcance, renovando pela base as formas de 
compreensão  do  social  –  e  aqui  falamos,  portanto,  tanto  de 
pressuposições  teóricas,  quanto  de  estratégias  de  método  e  formas  de 
analisar. Mais uma vez, não há nenhuma intenção em reinventar a roda, 
ou  trabalhar  apenas  com  o  cenário  contemporâneo,  tão  diferente  dos 
anteriores.  Ao  contrário,  trata‐se  de  recorrer  aos  fundamentos  das 
disciplinas  das  Ciências  Sociais,  entre  elas  as  categorias  de  tempo, 
espaço e mudança social: uma das perspectivas mais relevantes para os 
pesquisadores  envolvidos  nesse  projeto  tem  sido,  justamente,  a  busca 
pela  historicidade  e  pelas  múltiplas  causalidades  das  mudanças  em 
curso,  que  derivam  das  formações  sociais  e  políticas  que  lhes 
precederam13.  
                                                            
13   As  transformações  nas  periferias  urbanas  têm  sido  pensadas  ao  longo  das  últimas 
quatro  décadas,  tempo  restrito  para  historiadores,  embora  apenas  inicialmente 
traçado  para  a  compreensão  do  perfil  recente  desses  territórios  (Feltran,  2011a; 
Batista, 2011). Em alguns casos, a temporalidade das pesquisas é maior: as políticas de 
encarceramento  recentes,  em  São  Paulo,  geraram  uma  investigação  sobre  uma 
rebelião  de  1952,  da  qual  se  desdobram  inúmeras  linhas  de  análise  do  presente 
(Horta,  2011,  2012);  a  curiosidade  acerca  da  atual  conformação  dos  dispositivos  de 
justiça  do  PCC  gerou  pauta  para  uma  investigação  sobre  duas  décadas  de  trajetória 
de  um  grupo  de  rap  (Takahashi,  2011)  e,  em  seguida,  para  a  formulação  de  um 
subprojeto  de  pesquisa  acerca  da  expressividade  do  conflito  social  das  periferias  e 

306
 
  A partir dessa tentativa, parece‐me fundamental considerar um 
deslocamento,  especialmente  para  pensar  os  sujeitos  em  questão  nesse 
projeto:  trata‐se  de  pensar  os  modos  de  formulação  pública  da  questão 
social  e  os  descompassos  frente  às  formas  como  ela  é  vivida  entre 
aqueles  figurados  como  seus  protagonistas.  Se  há  algumas  décadas,  e 
em  diversas  perspectivas,  tratava‐se  de  procurar  as  formas  de 
integração  do  trabalhador  à  vida  moderna  e  urbana,  fazendo  proteção 
social e defesa de direitos (Durham, 1973; Kowarick, 1979; Santos, 1979; 
Sader,  1988;  Dagnino,  1994,  2002;  Telles  e  Paoli,  2000;  Telles,  2001), 
atualmente  os  sujeitos‐chave  do  problema  são  aqueles  considerados 
marginais,  e  a  perspectiva  de  integrá‐los  é  cada  vez  mais  frágil. 
Diferentes pesquisas vêm mostrando que os bandidos, favelados, drogados 
e  traficantes,  pontos  de  gravitação  do  problema  social  contemporâneo, 
devem ser, sobretudo, contidos (seja em prisões e clínicas de internação, 
ou  mesmo  fora  delas  (Thomaz,  2008;  Agier,  2008;  Telles  &  Cabanes, 
2006; Misse, 2010; Villela, 2010; Telles, 2011; Hirata, 2011; Feltran, 2011;).  
  A questão social passa a ser compreendida publicamente, então, 
como  problema  de  segurança  e  ordem  públicas,  que  tem  sujeitos  e 
territórios bem demarcados14. Tanto do centro da cidade, habitado por 
dependentes  de  crack,  moradores  de  rua,  travestis  e  prostitutas,  quanto  das 
periferias  e  favelas  mais  distantes,  representadas  como  territórios  da 
violência e do tráfico de drogas, emergiria o ponto de gravitação da “nova 
questão  social”,  que  se  pretende  tratar  com  ampliação  da  repressão, 
controle,  contenção  e  gerenciamento15.  As  tentativas  de  ocupação  de 
favelas  e  cracolândias,  no  Rio  de  Janeiro  ou  em  São  Paulo,  são 
exploradas  ad  infinitum  em  todas  as  mídias,  e se  tornam  problemas  ou 
trunfos  fundamentais  de  governos  de  diferentes  esferas.  O  debate 
                                                                                                                                                
favelas  notável  na  sua  produção  musical,  em  todo  o  século  20  (NaMargem,  2011);  a 
atualidade  do  problema  do  crack  tem  sido  pensada  a  partir  de  seus  antecedentes 
relacionais  –  transformações  no  tráfico  de  drogas,  nas  dinâmicas  sociais  e  políticas 
urbanas,  nas  políticas  de  atendimento,  etc.  (os  trabalhos  de  Martinez,  Oliveira, 
Barbosa, Pereira e Pazzini, nos anexos, seguem nessa direção). 
14 A respeito da distinção entre uma ameaça à segurança individual e uma ameaça à ordem 

pública, em contexto diferente, ver Villela (2011).  
15  Expressão  dessa  centralidade  é  a  filmografia  brasileira  nos  anos  2000,  praticamente 

monotemática:  trata‐se  de  apresentar,  sob  diferentes  perspectivas,  a  questão  das 


favelas e de grupos marginalizados como problema simultaneamente social e policial. 

307
 
público  sobre  a  questão  social  se  confunde,  progressivamente,  com 
aquele voltado às questões da criminalidade violenta, tráfico e abuso de 
drogas, e preconiza‐se mais repressão.  
 
4. Desenvolvimento 
 
  A repressão, entretanto, não é a única face pública da mudança 
dos  setores  populares,  no  Brasil  contemporâneo.  Muito  mais  pública 
tem  sido  a  constatação,  justamente  entre  eles,  de  crescimento  das 
capacidades  de  consumo  em  ritmo  acelerado,  ou  seja,  na  figuração 
dominante  a  constatação  dos  efeitos  positivos  do  “desenvolvimento 
econômico”  e  da  “consolidação  institucional”  do  país.  A  ampliação  no 
acesso  à  escolarização,  saúde  e  outros  direitos  sociais,  a  queda 
substantiva  do  desemprego,  além  da  expansão  agressiva  do  poder  de 
compra, nos últimos anos, são discutidas diariamente pelos gestores do 
mercado  e  do  Estado.  A  propalada  emergência  de  uma  nova  classe 
média16  dá novo alento ao projeto de trabalhadores que, conforme notava 
agudamente  Durham  (1973),  para  o  caso  central  dos  operários  do  seu 
período  de  pesquisa,  tinham  como  centro  de  seu  projeto  de  vida  a 
mobilidade social. Atualmente, a retomada deste projeto pelas elites da 
periferia urbana é quase uma redenção, já que haviam passado por duas 
décadas  de  frustração  importante  desse  projeto.  Dos  últimos  quarenta 
anos,  vivemos  na  segunda  metade  dos  anos  2000  o  período  de  maior 
expectativa de ascensão social entre os trabalhadores pobres urbanos. A 
década atual se inicia em plena marcha dessa esperança (a de um Brasil 
sem pobreza, conforme o slogan oficial). 
  Favelas  e  cracolândias  de  um  lado,  novos  integrantes  da  classe 
média, de outro. Contrafaces, muitas vezes, das mesmas territorialidades 
urbanas:  as  periferias  e  o  centro  da  cidade;  sujeitos  presentes  –  os 
trabalhadores, os nóias, os presos, as prostitutas, as mães de família, os bem‐
sucedidos  –  muitas  vezes,  no  seio  das  mesmas  famílias  populares. 
Nenhuma  dessas  duas  configurações  contemporâneas  está  bem 
estudada na tradição de pesquisa sobre as periferias urbanas e as classes 
populares  brasileiras.  Há  uma  lacuna  relevante  na  bibliografia 

                                                            
16  Crítica a essa abordagem aparece nos dados apresentados por Pochman, 2012. 

308
 
específica  a  respeito,  talvez  ocasionada  pela  ênfase  das  Ciências 
Humanas  latinoamericanas  no  estudo  do  operariado  e  das  classes 
populares  erigidas  em  torno  do  ideal  do  trabalho  –  e  não  do  lumpen, 
sequer  dos  pequeno‐burgueses,  que  hoje  aparecem  sobretudo  como 
derivações  significativas  e  tendenciais,  nas  representações  dominantes, 
das periferias trabalhadoras.  
  Nossas  pesquisas  sobre  esses  sujeitos  marginalizados, 
portanto, se dedicam também a contribuir para o estudo de territórios e 
sujeitos  sociais  populares,  extremamente  heterogêneos,  cuja 
conflitividade não se canaliza para a representação política oficial e que, 
talvez por isso, não tenha sido majoritariamente legitimada como objeto 
válido da bibliografia específica sobre os setores populares urbanos no 
país. A própria tematização desses sujeitos já é expressão  da mudança 
social, captada em pesquisa de campo nos últimos anos. Nota‐se, além 
do  mais,  que  a  presença  estatal  nos  territórios  estudados  auxilia  a 
construção  de  bipolaridades  (que  mascaram  e  reconfiguram,  a  todo 
tempo, a pluralidade empírica desses lugares). Nesse processo, como na 
fotografia,  o  esfumaçamento  de  tons  de  cinza  dispersos  em  dado 
suporte  é  substituído  pela  classificação  dicotômica  de  seus  limites 
extremos:  o  preto  e  o  branco.  E  a  partir  daí  –  o  caso  de  São  Paulo  é 
exemplar  a  esse  respeito  –  expandem‐se  ao  mesmo  tempo  políticas 
extremas:  a  ampliação  agressiva  do  encarceramento  (de  40  mil  presos 
em 1996 para 190 mil em 2012, com mais 50 presídios em construção) é 
simultânea  à  ampliação  do  acesso  a  direitos  e  serviços  sociais 
fundamentais,  aumento  da  escolarização  média  e  emprego, 
modernização  da  infra‐estrutura  urbana  etc.  Praças  de  guerra  em 
remoções urbanas, reintegrações de posse e cracolândias convivem com 
discursos  amenos  da  responsabilidade  social  empresarial.  Essas 
polaridades,  em  vista  geral,  são  apresentadas  como  lógica  única  nas 
situações em que se mostram. Essa clivagem, e a disposição da análise 
situacional, é portanto importante na própria formulação do problema a 
analisar  que,  muitas  vezes,  é  pouquíssimo  claro  nas  dinâmicas 
empíricas observadas. 
Exemplo  desse  esfumaçamento  é  a  constatação  de  que 
atualmente,  entre  os  grupos  urbanos  mais  marginalizados,  há  tudo, 
menos  ausência  de  Estado.  Nem  mesmo  dos  serviços  públicos,  algo  que 

309
 
os movimentos sociais das periferias puderam alardear com certa razão 
nos  anos  1980.  Aumentou‐se  muito  a  presença  estatal  entre  essas 
populações, e nos territórios em que elas habitam. Tanto – e sobretudo – 
para levar até ali a ordem que estaria ausente, procurando, sempre sem 
muito sucesso, reprimir e ocupar os insterstícios urbanos em ofensivas 
civilizatórias,  como  nas  UPPs  cariocas  ou  na  Nova  Luz  paulistana, 
quanto  para  possibilitar  que  pudessem  ser  resgatados  do  crime  e  da 
vagabundagem  aqueles  indivíduos  que,  mesmo  desfrutando  da 
convivência  de  bandidos,  drogados  e  pervertidos,  desejassem  se  tornar 
cidadãos. Logo após a entrada da polícia, ocupam favelas e cracolândias 
uma  miríade  de  ONGs  e  programas  sociais  (a  UPP  tem  um  braço 
policial e um assistencial, como todas as intervenções nas ruas e favelas 
paulistas).  Depois  dessa  ocupação,  a  valorização  imobiliária  produz  as 
“remoções  brancas”  para  que  a  gentrificação  se  instale  definitivamente. 
Por  isso,  paralelas  às  retomadas  das  políticas  de  mercado  imobiliário, 
inclusive populares (Shimbo, 2012), estão as desocupações de favelas e 
as retomadas das reintegrações de posse de prédios ocupados. 
  De  um  lado,  portanto,  as  mudanças  da  questão  social 
contemporânea  promovem  associações  gestionárias  como  ONGs, 
prestadores  de  serviços  sociais  e  cursos  de  aprendizado  profissional, 
das  mais  diversas  qualidades;  de  outro  lado,  aposta‐se  todas  as  fichas 
na  repressão  em  massa  dos  desviantes.  Ao  mesmo  tempo.  Para  a  elite 
das periferias, e os desgarrados das famílias mais pobres que puderam 
fazer  alguma  ascensão  social  e,  por  isso,  cumprem  com  os  critérios 
objetivos  e  disciplinares  da  mobilidade,  há  cursos  de  alta  qualificação 
no  SENAI,  no  SENAC,  entre  outros.  Há  algum  trabalho,  há  cursos 
noturnos,  há  inclusive  universidades  pagas.  Nas  margens  das  favelas, 
há  formação  preventiva  promovida  por  entidades  assistenciais  e  pelos 
Centros  de  Referência  de  Assistência  Social  (CRAS)  para  manicures, 
cabeleireiros, fazedores de bijuterias, entre outros, permanecerem onde 
estão  –  e  não  caírem  na  vida  fácil.  Via  de  regra,  nenhuma  dessas 
atividades chega aos que estão inscritos nos mercados ilegais e ilícitos e, 
se  chegam,  não  duram.  Os  circuitos  de  inscrição  desses  outros  sujeitos 
não  passam  necessariamente  por  elas.  Expandem‐se  lado  a  lado, 
portanto, ações sociais muito heterogêneas – algumas poucas voltadas a 
“garantia  de  direitos”,  para  os  que  moralmente  os  mereçam;  outras 

310
 
tantas voltadas para “evitar que os meninos fiquem na rua, na droga, no 
crime”.  Para  os  que  não  atendem  os  critérios  formais,  mas  sobretudo 
aos critérios morais desejados, há outras políticas hoje muitíssimo bem 
estruturadas  –  Fundação  Casa  para  os  que  têm  menos  de  18  anos, 
sistema  carcerário  para  os  que  têm  mais.  Ambas  em  franca  expansão 
pelo  estado.  Clínicas  de  reabilitação,  internação,  contenção  de 
transtornados mentais e dependentes químicos terminam de compor o 
cenário.  Quem  já  passou  algum  tempo  por  favelas  da  cidade  sabe  que 
não  se  tratam  de  dispositivos  residuais;  quem  já  passou  tempo  entre 
essas instituições totais sabe que elas já não atuam pela integração social, 
no  plano  normativo  anunciado  acima,  mas  são  elementos  estratégicos 
constitutivos  de  uma  nova  ordem  social,  nos  termos  descritos  nesta 
pesquisa.  A  lógica  da  ocupação  de  territórios  e  controle  de  grupos 
marginalizados,  quando  não  de  sua  internação  –  seja  por 
criminalização, por dispositivos de saúde mental ou “guerra às drogas” 
–  é  então  complementada  pela  conversão  desses  processos  em 
acumulação  de  valor.  São  os  modos  relacionais  de  construção  dessa 
nova  ordem,  articulada  entre  gestão  de  miseráveis  e  desenvolvimento 
econômico,  que  parece  ser  possível  vislumbrar  –  embora  ainda 
estejamos  dando  passos  muito  iniciais  nessa  direção  –  a  partir  da 
investigação em curso.  
 
 
 
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314
 
Por uma sociologia das narrativas sobre o meio ambiente1 
 
Rodrigo Constante Martins2 
 
1. Introdução 
 
  A  produção  de  verdades/diagnósticos  sobre  a  moderna  crise 
sócio  ambiental  é  atualmente  um  campo  amplo  que  concentra  não 
apenas  investigadores  e  peritos  da  ciência,  mas  também  engloba 
militantes ambientalistas, agentes econômicos, burocracias de governo, 
stakeholders,  dentre  outros.  A  pluralidade  de  interesses  envolvidos  na 
tessitura  de  hipóteses  e  explicações  sobre  causas  e  efeitos  do 
aquecimento  global,  da  perda  de  biodiversidade,  da  poluição  e  da 
escassez  de  água  indica  a  pertinência  de  esforços  sociológicos  de 
problematização das forças sociais que disputam o reconhecimento pelo 
retrato legítimo da questão ambiental. Isto é, as narrativas dos desafios 
ambientais  contemporâneos  podem  ser  apreendidas  como  objeto  de 
investigação  sociológica  através  das  relações  entre  as  categorias  de 
classificação dos fenômenos naturais e as posições das classes e grupos 
sociais que simultaneamente atuam e são afetados por tal classificação. 
  Neste  texto,  a  questão  ambiental  será  abordada  através  das 
narrativas  hegemônicas  dos  problemas  relativos  aos  usos  e  acessos  à 
água  no  século  XXI.  Como  é  sabido,  a  temática  dos  recursos  hídricos 
adquiriu  grande  abrangência  social  e  política  no  decorrer  das  últimas 
três  décadas.  Encontros  multilaterais  envolvendo  técnicos  e  chefes  de 
governo tornaram‐se recorrentes, tendo no mais das vezes o propósito 
de estabelecer inovações normativas para a regulação do uso e acesso à 
água  em  escalas  nacional  e  internacional.  Em  termos  simbólicos, 
ressaltam‐se as novas estratégias de classificação do recurso, associado 
aos signos de riqueza econômica estratégica, como ouro azul ou petróleo 
do século XXI. 

                                                            
1  Este  texto  reúne  resultados  de  estudos  desenvolvidos  pelo  autor  com  apoio  da 
Fundação  de  Amparo  à  Pesquisa  do  Estado  de  São  Paulo  (Fapesp)  e  do  Conselho 
Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq). 
2  Professor  do  Departamento  de  Sociologia  e  do  Programa  de  Pós‐graduação  em 

Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). 

315
 
  Esta  ressignificação  do  recurso,  alçado  à  categoria  de  capital 
natural, também repercute na construção de novas estruturas de gestão 
ambiental,  voltadas  fundamentalmente  para  o  ideal  econômico  da 
alocação  eficiente  dos  fatores  de  produção.  Neste  sentido,  a 
disseminação internacional dos chamados instrumentos econômicos de 
gestão  ambiental  vem  sendo  apontada  como  solução  eficaz  para  o 
ajustamento do consumo social da água. Do ponto de vista prático, tais 
instrumentos  teriam  o  mérito  maior  de  fazer  refletir,  através  de 
mecanismos  de  mercado,  os  níveis  de  escassez  relativa  do  recurso, 
induzindo os agentes econômicos a adotarem condutas racionais de uso 
do capital natural. 
  Neste  artigo  buscaremos  desenvolver  uma  interpretação  crítica 
sobre  o  aparato  conceitual  e  os  valores  sociais  envolvidos  na  narrativa 
que  sustenta  os  instrumentos  econômicos  de  gestão  das  águas.  Para 
tanto,  o  capítulo  divide‐se  em  quatro  partes.  Na  primeira  parte,  mais 
descritiva, serão apresentadas algumas experiências nacionais de gestão 
econômica  dos  recursos  hídricos,  chegando  até  os  contornos 
institucionais  do  caso  brasileiro.  Na  segunda  parte  do  texto  serão 
discutidos  os  pressupostos  teóricos  que,  legitimados  pela  crença 
científica,  amparam  as  narrativas  elaboradas  pelos  especialistas  da 
chamada  “economia  da  água”.  Na  terceira  e  quarta  partes  do  artigo 
serão discutidos alguns elementos críticos envolvidos nestas narrativas 
sobre  “oferta”,  “escassez”  e  “gestão”  do  recurso,  que  atualmente 
influenciam  sobremaneira  o  debate  internacional  sobre  a  governança 
ambiental. Por fim, nas considerações finais, será feita uma síntese das 
principais implicações das discussões empreendidas ao longo do texto. 
  Do  ponto  de  vista  conceitual,  as  narrativas  ambientais  serão 
abordadas  neste  capítulo  não  como  simples  resultado  discursivo  de 
visões de mundo estabelecidas, mas sim como vontade de verdade, nos 
termos de Foucault (2005). Isto é, as narrativas serão interpretadas como 
força, poder singular que atua nos processos de construção de verdades 
que  visam  organizar  e  orientar  as  práticas  sociais.  São,  portanto, 
práticas  discursivas  que  operacionalizam  a  realidade,  transcendendo  o 
domínio  exclusivo  da  representação  e  se  apresentando  como  aparato 
que também produz o real – um efetivo dispositivo de poder. 
 

316
 
2. A gestão econômica da água: experiências nacionais 
 
Problemas  relacionados  à  escassez  de  água  potável  em  nível 
mundial  têm  suscitado  preocupações,  tanto  por  parte  de  Estados 
Nacionais quanto por agências e organizações multilaterais, acerca dos 
modos  de  regulação  e  otimização  do  uso  dos  recursos  hídricos. 
Gradativamente,  em  vários  países  –  sobretudo  nos  pertencentes  à 
OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) – 
o controle institucional direto sobre o acesso e uso dos recursos hídricos 
vem  sendo  feito  a  partir  da  adoção  dos  chamados  instrumentos 
econômicos,  que  teriam  como  função  induzir  os  agentes  econômicos  a 
comportarem‐se  de  acordo  com  padrões  socialmente  desejados.  No 
concernente  à  experiência  internacional  de  gestão  das  águas,  os 
instrumentos econômicos mais utilizados para a garantia de usos mais 
eficientes do recurso têm sido os orientados para a criação de mercados 
de  água  e  para  formas  de  cobrança  pelo  uso  dos  recursos  hídricos  –  a 
valoração da água. 
A instituição de mercados de direitos de água tem sido realizada 
com base na crença do marginalismo neoclássica de que, dentro de um 
sistema  de  livre  mercado,  a  escassez  relativa  de  um  bem  determina 
automaticamente  a  elevação  de  seu  preço,  estimulando  assim  seus 
consumidores  a  otimizarem  o  seu  uso.  Nos  estados  do  oeste  dos 
Estados  Unidos  (Arizona,  Califórnia,  Colorado,  Nevada  e  Novo 
México),  o  direito  de  propriedade  da  água  possui  as  mesmas 
características  dos  direitos  de  propriedade  sobre  a  terra,  podendo 
inclusive  ser  vendido,  cedido  ou  alugado  temporariamente.  A 
administração  do  mercado  de  direitos  de  água  é  feita  pelo  Estado, 
através  de  tribunais  especiais  de  água  (Water  Courts),  encarregados  de 
reconhecer  os  direitos  sobre  o  recurso  e  resolver  eventuais  conflitos 
(Cowan, 1998). 
Na América Latina, o Chile é o país com experiência mais longa 
de implementação de estratégias econômicas de gestão da água. Desde 
1981, a legislação chilena garante a negociabilidade dos diretos de água 
(definidos  como  certo  volume  de  água  por  unidade  de  tempo), 
permitindo o intercâmbio entre o que a lei define como setores agrícolas 
e  não‐agrícolas  (Lee;  Juravlev,  1998).  Contudo,  se  comparado  com  o 

317
 
caso  norte‐americano,  o  mercado  de  água  chileno  ainda  é  considerado 
incipiente, e possui um pequeno volume de transações. 
A cobrança pelo uso dos recursos hídricos, por sua vez, constitui‐se 
atualmente  no  principal  instrumento  de  gestão  de  águas  em  nível 
internacional.  Em  síntese,  tal  instrumento  parte  da  atribuição  de  um 
valor  monetário  aos  recursos  hídricos,  que  se  reflete  na  forma  de 
impostos,  taxas  ou  simplesmente  preços  a  serem  cobrados  sobre  o  uso 
e/ou  contaminação  da  água.  Tal  instrumento  tornaria  possível 
responsabilizar  os  agentes  (usuários/poluidores)  pelas  externalidades 
negativas  que  suas  atividades  comportam,  permitindo  uma 
aproximação  entre  custos  privados  e  custos  sociais,  ao  mesmo  tempo 
em que pode gerar receitas para amenizar os impactos negativos sobre 
os  aspectos  quantitativos  e  qualitativos  dos  recursos  hídricos  (Dinar, 
2000). 
A adoção da cobrança pelo uso dos recursos hídricos tem como 
uma de suas orientações básicas o Princípio do Poluidor Pagador, adotado 
pelas  legislações  ambientais  dos  países  filiados  à  OCDE.  Tal  princípio 
pressupõe que o agente econômico poluidor responderia à demanda de 
sustentabilidade  ambiental  menos  por  considerar  que  tal  temática  seja 
legítima  e  mais  porque  o  não  atendimento  à  mesma  reverbaria 
negativamente em sua posição no mercado, através da elevação de seus 
custos individuais3.  
O  sistema  francês  de  gestão  dos  recursos  hídricos  é  um  dos 
principais exemplos internacionais do emprego do Princípio do Poluidor 
Pagador.  Calçado  em  legislação  da  década  de  60,  tal  modelo  define  a 
bacia  hidrográfica  como  unidade  administrativa  de  gestão  das  águas 
nacionais,  além  de  também  garantir  a  cobrança  pelo  uso  da  água  para 
os  agentes  públicos  e  privados  que  contribuam  para  a  deterioração  da 
qualidade do recurso. A taxa cobrada dos agentes poluidores franceses 
– a redevance – é determinada através do volume de poluição lançado ou 

                                                            
3  Neste mesmo sentido, o Banco Mundial (1998: 80) pressupõe que “as tarifas de água e 
incentivos  fiscais  podem  incentivar  as  firmas  a  adotarem  tecnologias  para  economizar  e 
conservar  a  água,  incluindo  sistemas  de  reciclagem.  Tais  tecnologias  e  alternativas  de 
gerenciamento  tornarão  fácil  a  conservação  da  água  e  a  reutilização”.  No  caso  da 
agricultura, o banco acredita que “da mesma forma, as tarifas podem servir de incentivos 
aos agricultores para alternarem seu trabalho agrícola para culturas que utilizem pouca água.” 

318
 
na degradação gerada sobre os corpos d’água. Sua aplicação seria uma 
forma  de  induzir  o  poluidor  a  realizar  análises  de  custo‐eficácia  entre 
poluir  –  pagando  taxas  –  ou  não  poluir,  adotando  mecanismos  ou 
tecnologias que reduzam sua carga poluidora (Barraqué, 1991). 
Na  Alemanha,  embora  a  gestão  das  águas  seja  assegurada  aos 
estados  (Länder),  a  legislação  geral  sobre  a  cobrança  pelo  uso  da  água 
tem  caráter  nacional,  cabendo  a  cada  estado  complementá‐la  e/ou 
reforçá‐la. Datada de 1976 (e efetivamente aplicada a partir de 1981), a 
valoração  da  água  na  Alemanha  tem  como  principal  alvo  os  agentes 
poluidores,  através  da  cobrança  pelo  lançamento  de  efluentes.  Mais 
recente,  a  cobrança  pela  captação  de  água  se  baseia  em  legislações 
estaduais  complementares,  não  abrangendo  a  totalidade  do  país.  Na 
prática,  a  cobrança  alemã  atinge  quase  exclusivamente  os  industriais 
(com  lançamentos  diretos  em  corpos  d’água)  e  os  usuários  domésticos 
(através das estações de tratamento de esgotos). 
Na  América  Latina,  o  México  iniciou  sua  política  de  cobrança 
pelo  uso  da  água  em  1991.  Na  ocasião,  os  principais  alvos  eram  as 
municipalidades  e  as  indústrias  que  em  seus  lançamentos  sobre  os 
corpos  d’água  rompiam  limites  de  emissão  pré‐estabelecidos.  A  partir 
de  1995  o  critério  de  cobrança  foi  alterado,  passando  a  basear‐se  na 
carga  efetiva  de  poluentes  lançados  pelos  agentes  individuais  – 
aproximando‐se assim da lógica de mercado própria dos princípios de 
valoração ambiental.  
  No Brasil, o modelo francês tem sido a principal referência para 
a  construção  dos  arcabouços  institucionais  nacional  e  estaduais  de 
gestão dos recursos hídricos. A Constituição Federal de 1988 reiterou o 
domínio público da água, reconhecendo, porém, o valor econômico do 
recurso  e  a  cobrança  por  seu  uso.  Em  1997,  a  Política  Nacional  de 
Recursos  Hídricos  definiu  que  a  valoração  seria  o  instrumento 
privilegiado  de  ação  política  de  controle  ambiental.  Dado  o  caráter 
descentralizado do novo sistema de gestão das águas no país, nos rios 
de  domínio  federal,  cumpriria  aos  Comitês  de  Bacia  Hidrográfica  a 
implementação  da  cobrança.  No  caso  dos  rios  de  domínio  estadual, 
seria dos estados a responsabilidade pela regulamentação do sistema de 
cobrança. 

319
 
  Desde  2003,  em  nível  federal,  a  cobrança  pelo  uso  dos  recursos 
hídricos  é  praticada  pelo  Comitê  do  rio  Paraíba  do  Sul,  que  envolve 
municípios dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro Minas Gerais. Em 
nível  estadual,  o  Ceará  implementou  a  cobrança  no  final  de  1998.  No 
estado  de  São  Paulo,  a  cobrança  pelo  uso  da  água  foi  aprovada  em 
forma  de  lei  em  2005  e  encontra‐se  em  fase  de  implementação  pelos 
Comitês  de  Bacia  Hidrográfica.  A  Política  de  Recursos  Hídricos  deste 
estado,  desde  1991,  reconhecia  a  água  não  só  como  um  bem  público, 
mas também como um bem dotado de valor econômico, “cuja utilização 
deve ser cobrada, observados os aspectos de quantidade, qualidade e as 
peculiaridades das bacias hidrográficas” (São Paulo, 1991).  
De  maneira  geral,  no  Brasil,  o  princípio  da  mercantilização  da 
água,  sobretudo  através  das  estratégias  de  valoração,  vem  sendo 
amplamente  defendido  por  movimentos  ambientalistas  e  pelos 
integrantes  dos  Comitês  de  Bacia  Hidrográfica.  As  justificativas 
comumente  manifestadas  em  favor  do  princípio  estão,  por  parte  dos 
movimentos  ambientalistas,  relacionadas  à  perspectiva  de  penalização 
dos agentes poluidores, e, por parte das instituições gestoras, voltadas à 
arrecadação  de  recursos  financeiros  para  as  atividades  de 
gerenciamento. 
Considerando  este  contexto  de  expansão  das  estratégias  de 
mercantilização  da  água,  nos  parece  que,  em  termos  de  reflexão 
sociológica,  são  necessários  novos  esforços  de  interpretação  crítica  dos 
principais termos envolvidos na noção de valoração ambiental. Ou seja, 
se  por  um  lado  as  necessidades  de  recursos  financeiros  para  a  gestão 
ambiental  e  de  enquadramento  jurídico  dos  agentes  poluidores  são 
inquestionáveis, por outro, é preciso atentar para a não‐naturalização de 
noções  lógico‐dedutivas  que  pouco  contribuem  para  a  construção  de 
políticas  públicas  condizentes  com  a  complexidade  das  disputas 
socioambientais. 
Do ponto de vista da análise sociológica, são vários os caminhos 
de interpretação crítica que podem ser desenvolvidos sobre a narrativa 
da  mercantilização  dos  recursos  naturais.  Dentre  tais  caminhos, 
buscaremos aqui percorrer os contornos essenciais de duas alternativas 
interpretativas,  quais  sejam:  a  das  dimensões  extra‐econômicas  do 
comportamento econômico dos agentes sociais; e a da crítica ao padrão 

320
 
capitalista de uso e acesso aos processos ecossistêmicos. Antes, porém, 
convêm algumas notas sobre os princípios teóricos que sustentam esta 
narrativa da gestão econômica dos recursos naturais.  
 
3. Mercado e meio ambiente: as hipóteses do utilitarismo neoclássico 
 
A  microeconomia  ambiental  neoclássica  tem  fornecido  um 
importante suporte conceitual para a adoção em escala internacional de 
instrumentos  econômicos  para  a  gestão  dos  recursos  naturais  (Jacobs, 
1994;  Martins,  2004).  No  nível  das  políticas  públicas,  este  suporte 
conceitual  fornece  os  fundamentos  para  a  hipótese  do  Princípio  do 
Poluidor Pagador. De acordo com tal princípio, o agente social poluidor 
deve  arcar  com  as  despesas  para  manter  o  meio  ambiente  dentro  de 
parâmetros  aceitáveis  de  qualidade,  sustentando,  por  conseguinte,  a 
hipótese  de  que,  ao  ser  penalizado  pela  cobrança  no  uso  deletério  da 
água,  o  poluidor  seria  induzido  a  adotar  práticas  menos  onerosas  ao 
meio ambiente (OCDE, 1992). 
Na  construção  epistemológica  do  referido  princípio  –  que,  em 
consonância  com  o  utilitarismo  neoclássico,  segue  uma  lógica 
estritamente hipotético‐dedutiva, onde os conceitos aplicadas na análise 
derivam  abstratamente  uns  dos  outros4  –,  supõe‐se  que  o  agente 
econômico  isoladamente  induziria  o  progresso  técnico,  respondendo 
rapidamente  à  demanda  de  sustentabilidade  ambiental.  Contudo,  tal 
resposta  justificar‐se‐ia  menos  pela  legitimidade  dos  valores  da 
sustentabilidade ambiental ante o cálculo econômico do agente do que 
pela ameaça de custos adicionais que o não atendimento à demanda de 
sustentabilidade  lhe  acarretaria.  No  caso  da  aplicação  do  Princípio  do 
Poluidor  Pagador  à  gestão  das  águas,  espera‐se  que  a  insistência  de  um 
agente no uso insustentável do recurso eleve seus custos de produção – 
custos estes que, repassados ao preço final de seus produtos, diminuirá 
sua competitividade. Assim, seria esta uma forma de internalização do 
problema  ambiental  pelos  agentes  econômicos  tida  pela  OCDE  como 
                                                            
4   Neste  sentido,  a  própria  Economia  Ambiental,  com  as  noções  de  equilíbrio  e 
externalidade,  surge  como  derivação  do  neoclassicismo  no  campo  da  ciência 
econômica. A propósito deste caráter lógico‐dedutivo do utilitarismo neoclássico, ver 
Wolff e Resnick (1988).  

321
 
legítima  e  urgente  de  ser  instaurada  nos  países  que  atravessam 
situações limite. 
  Nestes termos, a criação de mercados de água e a valoração do 
recurso  surgem  como  processos  de  significação  por  excelência  da 
questão ambiental em nível social. Por intermédio da instauração destas 
novas  institucionalidades,  as  situações  de  degradação  e  escassez 
relativa dos recursos hídricos seriam naturalmente incluídas no cálculo 
racional‐econômico dos agentes consumidores, que, por sua vez, seriam 
incitados a definirem formas de uso mais sustentáveis de tais recursos.  
Esta  dedução  acerca  das  práticas  individuais  ampara‐se  na 
suposição  neoclássica  de  que  a  alocação  eficiente  de  qualquer  bem  ou 
serviço dá‐se mediante a livre manifestação da escala de preferência dos 
agentes‐consumidores.  Isto  significa  que  seria  possível  medir  a 
sensibilidade  dos  consumidores  diante  das  variações  na  oferta  de 
mercadorias  a  partir,  única  e  exclusivamente,  de  sua  disposição  a 
adquiri‐las/comprá‐las, ou seja, a partir de sua utilidade circunstancial. 
No  caso  dos  bens  ambientais,  a  situação  de  uso  e  acesso  não 
regulados pelos mecanismos de mercado afetaria de maneira decisiva a 
função  de  utilidade  do  agente‐consumidor.  Pearce  (1985),  um  dos 
principais  expoentes  da  Economia  Ambiental,  destaca  que  o  caráter 
não‐rival  dos  bens  ambientais  faz  com  que  seu  consumo  por  um 
indivíduo  não  implique,  necessariamente,  o  não‐consumo  de  outrem, 
impedindo,  assim,  que  os  consumidores  manifestem  suas  preferências 
pelo referido bem por intermédio de lances de mercado. Diante de tais 
circunstâncias,  os  resultados  –  sejam  eles  positivos  ou  negativos  –  dos 
usos  feitos  pelos  agentes  econômicos  dos  bens  e  serviços  de  domínio 
público  constituiriam‐se  em  externalidades  da  atividade  econômica. 
Fundamental  no  arcabouço  teórico  da  Economia  Ambiental,  as 
externalidades são definidas por este paradigma como sendo os efeitos 
gerados pela atividade de um agente econômico sobre outrem, afetando 
sua  função  de  utilidade  e,  por  conseguinte,  o  próprio  equilíbrio  do 
mercado (Baumol; Oates, 1988). A alteração desta situação de equilíbrio 
afastaria o mercado do optimum de Pareto, causando então distorções na 
distribuição  dos  recursos  e  das  rendas  entre  produtores  e 
consumidores.  No  caso  dos  bens  e  serviços  ambientais,  ao  provocar 
algum tipo de prejuízo que se transformasse em custos excedentes para 

322
 
outro,  o  agente  em  questão  estaria  produzindo  uma  externalidade 
negativa, afastando então o mercado do seu ponto optimum de alocação 
dos recursos. 
Desta feita, em uma situação de poluição (que não seria apenas 
ambiental, mas também econômica), a solução para o restabelecimento 
do  equilíbrio  de  mercado  seria  a  internalização,  por  parte  do  homo 
oeconomicus, das externalidades por ele provocadas. Contudo, conforme 
afirmam Baumol e Oates (1988), a ausência de direitos de propriedade 
sobre muitos dos recursos naturais faz com que não haja pressão social 
para que o agente gerador da externalidade arque com os custos sociais 
de sua ação. Para os autores, na medida em que os bens ambientais não 
podem  se  constituir  em  propriedades  privadas,  sendo  então  de  uso  e 
domínio  públicos,  a  racionalidade  própria  das  transações  de  mercado 
não  pode  sobre  estes  imperar.  Por  conta  disso,  Stevenson  (1991)  nos 
mostra que, historicamente, tem sido atribuída aos governos nacionais – 
na  condição  de  gestores  dos  bens  públicos  –  a  função  privilegiada  de 
equacionar os impasses políticos e econômicos criados pela degradação 
ambiental. 
  Entretanto,  vários  outros  autores  têm  argumentado  que  esta 
intervenção governamental tem dado margem ao surgimento de outras 
disfunções na relação entre economia e natureza. Definidas por Gowdy 
e  O’Hara  (1995)  como  falhas  de  intervenção,  ou,  conforme  o  próprio 
Stevenson,  falhas  de  governo,  tais  disfunções  estariam  vinculadas  à 
própria  forma  de  estruturação  do  moderno  Estado‐nação.  Segundo  os 
autores,  o  aparato  burocrático  característico  da  estrutura  deste  Estado 
dificulta a regulação do uso dos recursos naturais na medida em que os 
interesses  políticos  envolvidos  no  âmbito  da  gestão  pública 
transformam  a  questão  ambiental  em  instrumento  de  barganha  entre 
facções  da  burocracia  estatal.  Também  ressaltando  a  existência  das 
falhas  de  governo,  Turner,  Pearce  e  Baterman  (1993)  apontam  as 
possíveis  manobras  na  legislação  ambiental  em  favor  de  interesses 
setoriais, revelando a incapacidade do Estado de fazer refletir os níveis 
de escassez ambiental junto aos agentes econômicos. De acordo com os 
autores, a regulação estatal poderia mascarar o nível de esgotamento do 
capital  natural,  uma  vez  que  não  remete  ao  homo  oeconomicus  a 
responsabilidade  de  adquirir  informações  sobre  o  estoque  de  recursos 

323
 
naturais  para,  a  partir  delas,  realizar  suas  próprias  análises  de  custo‐
eficácia.  
  Diante desses impasses atribuídos à atuação do Estado na gestão 
ambiental,  a  análise  neoclássica  conclui  que  não  há  como  enfrentar  os 
problemas relativos à escassez e à degradação ambiental – retomando o 
bem estar de todos os agentes econômicos –, senão através da criação de 
condições para que os próprios instrumentos de mercado possam atuar 
nas  relações  entre  economia  e  natureza.  Para  tanto,  ao  invés  de 
regulamentar,  caberia  ao  Estado  a  tarefa  de  criar  condições  para  o 
“livre”  funcionamento  dos  mercados  ambientais,  que,  por  sua  vez, 
agiriam  em  prol  da  minimização  dos  impactos  econômicos  da 
degradação ambiental. 
 
4. O mercado como prática social 
 
Em  face  da  consolidação  dos  principais  termos  da  Economia 
Ambiental para a narrativa da moderna crise ambiental, vários estudos 
têm sido realizados, no curso das duas últimas décadas, com o objetivo 
de  estimar  valores  monetários  para  bens  e  serviços  ambientais.  A 
elaboração de indicadores quantitativos ponderados através de critérios 
de escassez, tais como os níveis de vulnerabilidade e insubstitubilidade 
dos  recursos  naturais,  e  a  tentativa  de  mensuração  da  disponibilidade 
da sociedade em pagar pela preservação ambiental – passando inclusive 
pela  construção  de  mercados  hipotéticos  para  os  serviços  ambientais  – 
têm  sido  apresentadas  por  autores  da  Economia  Ambiental  como  a 
solução  viável  e  eficaz  de  gerenciamento  dos  recursos  naturais  em 
escala mundial (Pearce e Turner, 1991; Pearce, 1993; Tisdell, 1997). 
De  outra  parte,  vários  esforços  interpretativos,  partindo  de 
diferentes matrizes teóricas das Ciências Sociais, têm enfatizado tanto a 
falta  de  sustentação  teórica  da  concepção  de  mercados  ambientais 
quanto  sua  inadequação  como  princípio  norteador  de  políticas  de 
gestão  dos  recursos  naturais.  No  geral,  as  críticas  à  Economia 
Ambiental  apontam  para  o  reducionismo  do  comportamento 
econômico dos agentes sociais no uso dos recursos naturais (Leff, 1995; 
Benton,  1994),  a  apreensão  a‐histórica  da  relação  sociedade‐natureza 
(Martins,  2004;  Altvater,  1995)  e  a  própria  concepção  de  sistema 

324
 
econômico  deste  approach,  que  reduziria  a  atividade  econômica  a  um 
sistema  fechado  e  isolado,  desconsiderando  que  a  produção  é, 
fundamentalmente,  troca  e/ou  transformação  de  energia  (Allier  e 
Schlüpmann, 1993; Daly, 1991). 
  Contudo,  a  despeito  das  críticas,  os  princípios  da  economia 
política  da  água  sustentados  pelo  neoclassicismo  marginalista  seguem 
ocupando  lugar  de  destaque  no  debate  internacional  sobre  regulação 
ambiental.  Outrossim,  estes  princípios  são  recorrentemente  utilizados 
para  a  nominação  dos  principais  temas  da  moderna  crise 
socioambiental.  Esta  atividade  de  nominação,  que  se  origina  na 
designação  dos  ativos  ambientais  e  se  estende  até  a  proposição  dos 
mercados futuros de commodities ambientais, também explicita o fabrico 
de  relações  complexas  de  poder,  que  não  se  encerram  nos  limites  de 
autonomia  dos  distintos  campos  de  relações  (burocrático,  acadêmico, 
econômico).  A  rigor,  a  temática  ambiental  perpassa  estes  campos; 
contudo,  fundamenta‐se  sobre  a  retórica  dominante  do  campo 
econômico. 
  O  entendimento  da  gênese  do  moderno  discurso  ambientalista 
requer, sem embargo, a compreensão das formas pelas quais a retórica 
econômica  conduziu  os  termos  da  temática  ambiental  na  agenda 
política desde meados do século XX. Do ponto de vista analítico, propor 
tal  compreensão  não  implica  em  tomar  a  dimensão  econômica  dos 
processos  sociais  como  elemento  determinante  de  interpretação.  Neste 
caso, o olhar sobre a retórica econômica resulta da própria historização 
do  discurso  ambientalista,  posto  que  sua  formulação  foi  resultante  do 
apontamento  de  certos  limites  físicos  para  a  sustentação  do  padrão  de 
crescimento econômico verificado nas economias centrais no curso das 
duas primeiras décadas do pós‐guerra. 
  Um  dos  produtos  sociais  mais  expressivos  da  presença  da 
retórica  econômica  na  gênese  do  moderno  debate  ambiental  é  a  noção 
de  racionalidade  no  interior  do  discurso  ambientalista.  A  expressão 
“racionalização do uso dos recursos naturais” atribui às práticas sociais 
um  conjunto  de  suposições  que  comumente  apresentam‐se  de  forma 
bastante  fragmentada  na  vida  cotidiana.  A  noção  de  cálculo  implicada 
nos  discursos  de  uso  racional  da  água,  da  energia  e  dos  recursos 
florestais,  dentre  outros,  requer  uma  consciência  fundamentada  no 

325
 
cálculo  e  na  previsibilidade.  Esta  consciência  temporal  e  seu  ethos 
correlato aparecem como fundamento da conduta econômica racional e 
capaz  de  assegurar  êxito  ao  planejamento  do  que  nos  últimos  anos 
convencionou‐se chamar de contabilidade ambiental. 
  Entretanto, a suposição da condução universalizada das práticas 
sociais  na  direção  desta  modalidade  de  racionalização  despreza  o  fato 
de  que  a  racionalidade  da  ação  tem  seu  limite  na  conduta socialmente 
estruturada  do  agente.  Logo,  toda  prática  social  está  circunscrita  a  um 
quadro específico de experiências passadas que funcionam como matriz 
de  percepções,  decisiva  para  a  formulação  de  estratégias  de  conduta 
social. Ou, como nos sugere Bourdieu, a prática revela a fundamentação 
da  illusio  como  ordem  de  ação,  rotina;  no  caso  do  utilitarismo,  revela 
que  “o  conjunto  de  disposições  do  agente  econômico  que  fundam  a 
ilusão  da  universalidade  a‐histórica  das  categoriais  e  conceitos 
utilizados são o produto de uma longa história coletiva, e que deve ser 
adquirida no curso da história individual” (Bourdieu, 2003: 83) 
É notório que a crença de que os agentes econômicos, induzidos 
por “sinais” de mercado, deverão incorporar a dimensão ambiental sob 
um  padrão  de  racionalidade  econômica,  pressupõe  a  existência  de  um 
padrão  unívoco  de  racionalidade.  Entretanto,  se  consideramos  que  a 
relação da sociedade com o meio ambiente é mediatizada também por 
processos  políticos  e  culturais,  torna‐se  evidente  que  qualquer 
estereótipo  de  conduta  racional  constitui‐se  numa  idealização  com 
estreito  alcance  analítico.  Weber  (1999),  em  sua  clássica  análise  da 
dimensão  reflexiva  da  ação  social,  já  enfatizava  a  necessidade  de  se 
compreender  o  seu  sentido  subjetivamente  visado,  ou  seja,  os  elos 
significativos  que  fundamentam  a  ação  do  agente.  Para  o  autor,  a 
dimensão  do  termo  racional  vincula‐se  estritamente  aos  processos  que 
sustentam a ação social. Sem a compreensão dos seus elos significativos 
–  ou,  na  terminologia  weberiana,  de  seu  sentido  –  a  ação  torna‐se,  do 
ponto  de  vista  analítico,  um  comportamento  reativo,  sem  conteúdo 
eminentemente social. 
Portanto,  a  racionalidade  de  uma  ação  ou  processo  social  não 
deve  ser  compreendida  senão  a  partir  dos  seus  elos  significativos, 
compostos  tanto  de  motivações  materiais  quanto  simbólicas.  É 
justamente  tal  iniciativa  que  permitiria  à  teoria  social,  tal  como 

326
 
enfatizam apropriadamente Elias e Scotson (2000), a recusa da herança 
iluminista  no  que  tange  à  crença  consoladora  da  supremacia  de  uma 
razão abstrata, descarnada e totalizante. Os dados sociais, por serem sui 
generes, não são racionais ou irracionais em sentido absoluto, mas base 
sobre  a  qual  indivíduos  e/ou  grupos  sociais  se  autoreconhecem  e 
constroem  suas  identidades  (seja  através  do  conhecimento  científico  e 
de ideologias políticas, ou mesmo da construção depreciativa do outro). 
Neste  contexto,  ao  contrário  do  que  supõem  os  neoclássicos,  a 
significação cultural, dentre outras, pode ser o fator determinante sobre 
o  resultado  social  de  uma  dada  ação,  sobrepondo‐se  inclusive  a 
aspectos econômicos que poderiam dar‐lhe sentido distinto. Este seria o 
caso,  por  exemplo,  de  uma  interpretação  um  pouco  mais  acurada  do 
que  o  neoclassicismo  chama  de  falhas  de  mercado.  Na  economia 
moderna,  as  falhas  relacionadas  com  a  alocação  dos  recursos  naturais 
constituem‐se,  a  rigor,  em  vantagens  competitivas  disputadas  por 
diferentes  grupos  (ou  capitais)  econômicos.  A  apropriação  e  uso  de 
condições  ecológicas  favoráveis  ao  processo  de  valorização  capitalista 
têm  sido,  historicamente,  alternativas  para  ganhos  de  produtividade  e 
competitividade  dos  capitais  individuais.  Da  mesma  forma,  o  uso  de 
vantagens institucionais e políticas da esfera não‐mercantil – chamadas 
pelos neoclássicos de “falhas” de governo – também constituem‐se, sob 
o prisma da prática destes agentes, em vantagens competitivas5.  
Ademais,  convém  ainda  destacar  que  o  alcance  dos 
instrumentos  econômicos  na  gestão  dos  recursos  naturais,  ao  serem 
concebidos sob a estratégia marginalista de universalização das práticas 
sociais,  evidencia  de  antemão  seus  limites  em  face  das  distintas 
modalidades  de  disputas  sociais  pertinentes  aos  jogos  de  cada  campo 
de  forças  sociais.  Isto  é,  se  considerarmos  os  recursos  naturais  como 
elementos de disputas que são indissociáveis do espaço social, é mister 
supor que os jogos de oposições e de distinções sociais de cada campo 
revelarão  estratégias  diversas  de  distribuição  dos  recursos  materiais  e 
                                                            
5   Para  apontamentos  sobre  a  construção  política  destas  vantagens  competitivas  no 
contexto  da  economia  norte‐americana  (berço  dos  ideais  do  “livre‐mercado”),  ver 
estudo  de  Fligstein  (2001)  a  propósito  da  emergência  do  valor  acionário  como 
concepção  do  moderno  controle  das  empresas,  e  do  crescimento  do  Vale  do  Silício, 
força motriz da indústria informática naquele país. 

327
 
simbólicos  em  face  dos  princípios  de  diferenciação  do  próprio  campo. 
Neste  sentido,  os  pressupostos  nos  quais  a  aplicação  de  tais 
instrumentos  se  baseiam  –  quais  sejam,  os  da  alocação  econômica 
eficiente  e  da  promoção  do  uso  racional  do  recurso  –  deverão  servir 
sobremaneira aos mecanismos de diferenciação social de cada campo de 
forças.  Por  esta  razão,  não  há  como  estabelecer  nenhum  elo,  seja  de 
ordem prática ou mesmo teórica, entre o pseudo equilíbrio das relações 
de  troca  e  o  equilíbrio  ecológico  requerido  para  a  sustentabilidade  do 
uso dos recursos naturais. 
Nestes  termos,  convém  ainda  resgatar  a  definição  de  Fligstein 
(1996)  para  a  constituição  do  mercado  econômico  como  fenômeno 
eminentemente  sociopolítico.  Tal  como  destaca  o  autor,  a  criação  de 
mercados  implica  em  soluções  sociais  para  problemas  de  direito  de 
propriedades,  estruturas  de  governança,  concepções  de  controle  e 
regras  de  troca.  A  definição  do  perfil  não  resulta  de  processos 
automáticos de interação social. Esta definição é sobretudo política. As 
soluções  para  a  constituição  de  cada  mercado  são  decisivas  para  a 
permanência ou exclusão dos agentes. Portanto, a racionalidade destes 
agentes  no  âmbito  do  mercado  reserva‐se  às  disputas  políticas  pelo 
ordenamento das relações e pela conquista de vantagens competitivas. 
E,  no  campo  destas  disputas  políticas,  os  capitais  econômico,  social  e 
cultural combinam‐se de formas peculiares à posição de cada agente no 
espaço social. 
Mesmo  a  noção  de  equilíbrio,  recorrente  na  literatura  da 
Economia  Ambiental  em  referência  à  obra  de  Pareto,  revela  traços  de 
inconsistência que ultrapassam as dificuldades de identificação do plano 
das  relações  concretas  e  chega  á  sua  formulação  conceitual.  Como  bem 
observa Passeron (2004), a originalidade de Pareto em relação aos demais 
marginalistas  neoclássicos  relaciona‐se  com  sua  ressalva  de  que  o 
equilíbrio econômico de mercado não fornece um modelo que possa ser 
transposto  para  suposições  acerca  do  equilíbrio  social.  O  equilíbrio 
econômico  suposto  pelo  autor  estria  intimamente  atrelado  a  condutas 
lógico‐ideais dos agentes econômicos. Em sua análise econômica, o autor 
procura demonstrar que o livre mercado seria o espaço por excelência de 
realização  de  tais  condutas.  Já  em  sua  obra  sociológica,  Pareto  avança 
sobre  o  que  denomina  de  ações  não‐lógico‐experimentais,  relacionadas 

328
 
ao  que  chama  de  resíduos  e  derivações.  Tal  como  insiste  o  autor,  é 
preciso  estar  atento  ao  fato  de  que  estas  ações  não‐lógicas  não  seriam 
ilógicas:  na  história  social,  equilíbrios,  conflitos  e  crises  se  explicariam 
através  dos  resíduos  (expressão  dos  sentimentos  inscritos  na  natureza 
humana  e  nos  processos  de  socialização)  e  das  derivações,  formas  as 
quais  indivíduos  e  grupos  lançam  mão  para  a  justificação  de  condutas 
não‐racionais  (no  sentido  da  correspondência  da  relação  meios‐fins  na 
consciência do agente e no contexto empírico). Sua sociologia, ao estudar 
as  condutas  não‐lógicas,  não  visava  construir  paralelos  com  a  idéia  de 
utilidade  empregada  na  economia.  E  menos  ainda  indicar  alguma 
convergência  entre  as  duas  noções.  Em  Pareto,  as  ações  lógicas  e  não‐
lógico‐experimentais comporiam, tal como sugere Aron (2002), o esforço 
de construção de uma sociologia totalizante, evidentemente correndo os 
riscos que tais esforços comumente implicam. 
  A  propósito  da  obra  paretiana,  o  que  os  autores  da  Economia 
Ambiental  desprezam  é  justamente  um  de  seus  pressupostos 
fundamentais,  qual  seja,  o  da  inexistência  de  sociedades  compostas 
exclusivamente  de  condutas  lógico‐exprimentais  ou  de  condutas  não‐
lógicas.  Tratar‐se‐iam  de  modalidades  extremas,  quase  no  sentido  dos 
tipos puros weberianos. Como salienta em seu Tratado de Sociologia: 
 
“Embora  isso  desagrade  aos  humanistas  e  aos  positivistas,  uma 
sociedade  determinada  exclusivamente  pela  razão  não  existe  e  não 
pode  existir;  e  isto,  não  por  que  os  prejulgamentos  dos  homens  os 
empeçam de seguir os ensinamentos da ”razão”, mas por que os dados 
do  problema  que  se  quer  resolver  pelo  raciocínio  lógico‐experimental 
lhes  faltam.  Aqui  aparece  de  novo  a  indeterminação  da  noção  de 
utilidade (...). As noções que os diferentes indivíduos têm a respeito do 
que  é  bom  para  eles  mesmos  ou  para  os  outros  são  essencialmente 
heterogêneas,  e  não  há  meio  de  reduzi‐las  a  uma  unidade.”  (Pareto, 
2003, § 2143) 
 
A  leitura  sobre  estes  limites  empíricos  das  condutas  lógico‐
experimentais é o que vem permitindo, por exemplo, a retomada crítica 
da  obra  paretiana.  Este  é  o  caso  dos  esforços  de  Burns  e  Roszkowska 
(2009), que problematizam o princípio abstrato do optimum de Pareto no 
contexto  de  situações  de  conflitos  e  questionamentos  sobre  os 

329
 
resultados  de  processos  institucionalizados  de  negociação  envolvendo 
diferentes agentes sociais. Ressaltando os limites do enfoque paretiano 
para  os  estudos  sobre  conflito,  os  autores  apontam  como  os 
procedimentos  de  negociação  (tais  como  o  voto  e  a  jurisdiciação  das 
relações),  e  não  propriamente  seus  resultados,  adquirem  legitimidade 
nas  sociedades  modernas  (promovendo  uma  espécie  de  alquimia 
institucional).  Nestes  termos,  o  ponto  optimum  de  equilíbrio  para  a 
alocação  de  recursos  se  relativiza  na  avaliação  dos  resultados  das 
negociações  institucionalizadas.  Como  bem  observam  os  autores,  a 
aceitação  geral  dos  procedimentos  é  que  se  torna  fundamental  na 
resolução  do  conflito,  e  não  seu  resultado  como  função  de  utilidade. 
Com  efeito,  talvez  não  seja  por  outra  razão  que  a  crítica  social  aos 
instrumentos  econômicos  de  gestão  de  águas  encontra‐se  em  grande 
medida  centrada  na  condenação  dos  procedimentos  de  mercado  como 
reguladores viáveis das modalidades de uso e acesso a este recurso6. 
 
5. Crítica da economia política da água 
 
Criticar  esta  modalidade  de  economia  política  da  água  não 
significa  simplesmente  retificar  distorções  de  detalhes  da  abordagem 
neoclássica ou preencher eventuais lacunas. Neste esforço de análise, a 
crítica  da  economia  política  da  água  sugere  o  apontamento  de  uma 
nova  narrativa,  capaz  de  superar  os  impasses  inerentes  às 
interpretações  centradas  no  modelo  formalista  de  equilíbrio  de 
mercado. Na direção inaugurada por Marx, em sua crítica da economia 
política clássica, o que este texto coloca em discussão é o próprio objeto 
da  economia  ambiental,  a  saber,  a  alocação  eficiente  dos  recursos 
naturais baseada em categorias econômicas de gestão.  
Sobre  a  constituição  das  categorias  econômicas,  é  importante 
ressaltar  que  a  sociedade  cria  formas  diversas  de  trocas,  que  se 
relacionam  e  se  retroalimentam.  Retomamos,  portanto,  a  assertiva  de 
Mauss  (2003)  de  que  os  mercados  são  constituídos  de  práticas 
                                                            
6   São  muitos  os  críticos  que  no  âmbito  do  debate  público  (principalmente  no  campo 
jornalístico) ressaltam o caráter excludente da gestão estritamente econômica da água. 
Para  uma  síntese  dos  principais  argumentos  envolvidos  em  tal  crítica  no  cenário  da 
opinião pública nas duas últimas décadas do século XX, ver Laimé (2003).  

330
 
econômicas  que  são,  simultaneamente,  políticas  e  culturais.  Como  é 
sabido, em seu clássico Ensaio sobre a Dádiva, o autor interpreta a troca 
como um fato social total, cujas regras manifestam‐se simultaneamente 
na  moral,  na  religião,  no  direito,  na  economia,  na  política,  na 
organização  das  relações  de  parentesco  e  na  estética  da  sociedade  em 
questão. Neste sentido, os indivíduos não podem ser concebidos como 
estátuas econômicas, posto que também são agentes políticos, culturais 
e  pessoas  morais.  É  justamente  por  esta  razão  que,  ao  se  supor  a 
conduta  racional  do  agente  econômico  diante  dos  mecanismos  de 
valoração  da  água,  está‐se  absolutizando  a  dimensão  econômica  da 
conduta social e refletindo‐se sobre um agente abstrato, fracionado em 
sua integridade social. 
Este  superdimensionamento  do  cálculo  econômico  na  conduta 
individual em ambientes de mercado, tal como sugere Sahlins, (2003), é 
uma  expressão  da  própria  cultura  permeada  pela  hegemonia  da  razão 
utilitária.  Tal  razão,  fundamento  da  visão  moderna  de  racionalidade 
econômica,  é,  do  ponto  de  vista  cultural,  a  maneira  pela  qual  as 
sociedades ocidentais vêm se experimentando desde o início do século 
XX. Equivocadamente, este modo de experimentação social segue sendo 
reificado  como  único  fundamento  para  a  explicação  das  propriedades 
das  relações  sociais,  desconsiderando  que  mesmo  a  utilidade  é 
composta  por  dimensões  simbólicas  que  escapam  ao  universo  dos 
fluxos de oferta e demanda dos mercados. 
  Senão,  como  interpretar  as  práticas  culturais  de  grupos  sociais 
distintos  em  relação  às  águas  tomando  como  referência  as  noções  de 
utilidade e conduta racional sustentadas pela economia ambiental? Ou, 
como interpretar a resistência à precificação da água por aqueles que a 
concebem  como  recurso  sagrado,  sem  possibilidade  de  representação 
no universo das mercadorias? Neste caso, tratar‐se‐ia simplesmente de 
uma  conduta  residual,  nos  termos  paretianos?  Ou  ainda,  no  sentido 
antropológico, como compreender as tradicionais Festas dos Pescadores 
e  as  práticas  religiosas  sobre  as  águas,  tão  presentes  em  cidades 
ribeirinhas  brasileiras,  a  partir  das  posições  sociais  de  ofertante  e  de 
consumidor  do  utilitarismo  neoclássico?  Qual  será  a  resposta  racional 
dos que cotidianamente mantém com as águas práticas simbólicas que 
estão para além dos ajustamentos de mercado? 

331
 
  Como  sugere  Espeland  (1998),  a  suposição  de  uma  conduta 
racional  universal  é  problemática  justamente  em  razão  das  dimensões 
de identidade e cultura que amparam as práticas e a construção social 
da realidade. Nestes termos, a leitura dos grupos de interesse e de suas 
estratégias  baseada  diretamente  em  suas  respectivas  posições  de 
mercado  despreza,  segundo  a  autora,  a  complexidade  que  envolve  as 
construções de diferentes visões técnicas sobre a natureza, de diferentes 
disputas políticas envolvidas na regulação do acesso ao meio ambiente 
e  do  multiculturalismo  envolvido  na  construção  da  moderna  temática 
ambiental7. 
Podemos  afirmar  que  a  noção  de  racionalidade  econômica  não 
apenas  possui  um  alcance  relativo,  mas  também  contribui  para  a 
construção de ausências no âmbito dos saberes regionais sobre as águas. 
Intimamente  articulada  à  razão  indolente  analisada  por  Santos  (2002), 
as categorias de conhecimento disseminadas pela economia política da 
água,  ao  marcarem  os  horizontes  de  alcance  para  aplicação  de  certos 
saberes técnicos, também contribuem para a produção da monucultura 
do  saber  e  das  ausências  que  lhe  são  decorrentes.  Talvez  seja  um  dos 
caminhos  possíveis  para  a  interpretação  das  formas  de  exclusão  de 
grupos  sociais  das  possibilidades  de  participação  em  estruturas 
descentralizadas  de  gestão  das  águas8.  Ao  realizar‐se  como  saber 
legítimo,  esta  razão  técnico‐instrumental  não  promove  apenas  a 
                                                            
7  Espeland  (1998)  exemplifica  esta  complexidade  através  do  caso  dos  conflitos 
envolvidos  na  construção  de  uma  barragem  no  oeste  dos  Estados  Unidos.  Destaca, 
em  particular,  os  diferentes  universos  simbólicos  presentes  no  processo  de 
desocupação  territorial  para  tal  construção,  que  envolvia  os  Yavapi,  comunidade 
indígena  do  Arizona  que,  por  considerar  a  terra  como  parte  de  sua  herança  étnica, 
não  a  concebe como  alvo  de atos  de  compra  ou  venda;  os  engenheiros  planejadores 
da  obra,  que  por  quarenta  anos  argumentaram  sobre  seu  mérito  técnico;  e  os 
burocratas de estado envolvidos na elaboração de modelos de consenso para mitigar 
a tensão social em torno da construção da barragem. 
8 A despeito do caráter de parlamento das águas, os Comitês de Bacias Hidrográficas no 

Brasil  revelam  circunstâncias  crescentes  de  exclusão  de  grupos  sociais.  No  contexto 
específico da construção social da governança das águas no estado de São Paulo, este 
processo  vem  sendo  interpretado  por  Martins  (2006;  2007)  através  da  posição  dos 
agentes  nos  aparatos  de  governança,  da  construção  dos  discursos,  dos  critérios  de 
autoridade para as falas/posições no debate descentralizado e das hierarquias sociais 
resultantes destes atos de distinção. 

332
 
marginalização  de  outras  epistemologias  do  saber  ambiental.  A 
acumulação seletiva dos sucessos em termos de nominação estritamente 
econômica  dos  recursos  ambientais  pode  também  levar  ao  processo 
descrito  por  Santos,  Menezes  e  Nunes  (2004)  como  epistemicídio  dos 
saberes  concorrentes,  liquidando  por  conseguinte  os  grupos  sociais 
cujas práticas se assentavam em tais conhecimentos. 
Se do ponto de vista cultural, a noção estrita da racionalidade do 
homu  oeconomicus  reafirma  o  modo  utilitário  de  experimentação  do 
cotidiano  social,  do  ponto  de  vista  da  construção  do  conhecimento,  a 
mesma  dissocia  a  ação  social  dos  demais  processos  que  lhe  compõe. 
Como  também  nos  esclarece  Santos  (2002),  esta  fragmentação  da  ação 
social propiciou o reducionismo das concepções modernas de regulação 
e  emancipação.  Isto  porque  a  emancipação  moderna  tornou‐se 
estritamente  associada  à  racionalidade  cognitivo‐instrumental  da 
ciência,  voltada  à  produção  totalitária  do  saber  e  promissora  da 
dominação plena da sociedade sobre os recursos naturais. A regulação, 
por  sua  vez,  foi  associada,  com  larga  contribuição  do  utilitarismo 
neoclássico,  à  livre  atuação  das  forças  de  mercado.  Deste  modo,  o 
pragmatismo do paradigma da racionalidade econômica, reduzindo em 
nível  analítico  as  várias  dimensões  envolvidas  nos  processos  de 
desenvolvimento  social,  de  produção  de  saberes  e  de  regulação 
institucional  de  práticas  sociais,  foi  alçado  à  condição  de  parâmetro 
supradimensional para a problematização de quaisquer temas relativos à 
sociedade,  política,  economia,  ciência  e  cultura  em  tempos  de 
modernidade. 
  Com  efeito,  as  relações  sociais  não  são  balizadas  somente  pelas 
disputas  econômicas  por  benefícios.  Como  bem  acentua  Mauss  (2003), 
em  sociedade,  não  são  apenas  as  mercadorias  que  circulam,  mas 
também  as  pessoas,  os  nomes,  palavras,  os  títulos  (prestígio),  etc.  Por 
esta  razão,  cálculos  de  custo‐eficácia  não  refletem  os  distintos 
instrumentos  sociais  empregados  nas  práticas  cotidianas  de  classes  e 
grupos.  Outras  regras  e  recursos  sociais  interferem  nas  ações 
individuais. A experiência dos grupos sociais, por exemplo, através da 
construção  de  saberes  e  valores  sobre  o  ambiente  e  sobre  a  própria 
sociedade,  é  um  instrumento  de  percepção  social  decisivo  para  os 
eventuais redimensionamentos da relação sociedade‐natureza. 

333
 
Desta feita, além da compreensão histórica dos processos de uso 
e  apropriação  dos  recursos  ecossistêmicos,  também  faz‐se  necessária  a 
análise  da  transformação  social  da  natureza  através  de  um  dado 
território,  com  formação  histórica  específica  e  relações  próprias  de 
dominação. Neste âmbito, a produção social de valores excedentes nos 
espaços  sociais  ganha  nova  dimensão,  porquanto  abre  caminho  para  a 
problematização  da  relação  sociedade‐natureza  a  partir  da  disputa  entre 
grupos e classes sociais pela hegemonia nas formas de uso, regulação e 
apropriação da natureza local. Isto é, o resgate das dinâmicas regionais 
e das especificidades políticas de cada sociedade permite que, do ponto 
de  vista  analítico,  os  processos  ecológicos  circunscritos  aos  ambientes 
de produção de valor adquiram um conteúdo histórico que ultrapasse a 
simples  condição  de  base  biofísica  dos  processos  de  acumulação.  Por 
outro  lado,  o  que  a  concepção  da  relação  sociedade‐natureza  presente 
no  instrumental  conceitual  da  economia  ambiental  deixa  de  esclarecer 
são  justamente  as  contradições  locais  das  formas  capitalistas  de 
sociabilidade. Deste modo, mantém obscuros os processos que revelam 
mais elementos da crise da sociedade produtora de valores excedentes.  
Não é por outra razão que Leff (1995) destaca que a tentativa de 
pensar a articulação entre sociedade e natureza exclusivamente em função 
das  categorias  de  investimentos  de  capital  e  utilidade  marginal  dos 
fatores  de  produção  impossibilita  a  compreensão  dos  processos 
ecológicos  como  integrantes  da  história  social.  Na  medida  em  que  as 
condições ecológicas do processo produtivo surgem como externalidades 
do sistema econômico, as contribuições dos processos ecossistêmicos e da 
própria  produtividade  ecológica  à  geração  de  riqueza  passam  a  ser 
negligenciadas,  juntamente  com  as  diferenças  entre  a  produção  de 
valores  de  uso  e  valores  exedentes.  Isto  impediria  uma  análise  da 
transformação ecossistêmica derivada da apropriação social dos recursos 
naturais como objeto e meio de trabalho para a produção de mercadorias, 
o  que,  por  sua  vez,  repercutiria  negativamente  na  construção  de 
alternativas  políticas  para  os  grandes  temas  da  moderna  crise  sócio‐
ambiental – como é o caso da questão hídrica. 
Portanto,  no  âmbito  histórico‐estrutural,  é  importante  o 
estabelecimento  de  conhecimentos  complexos  para  a  promoção  de 
políticas para o uso e acesso sustentáveis das águas em níveis nacional e 

334
 
regional. No caso da água, considerando as especificidades regionais de 
disponibilidade e qualidade do recurso, torna‐se de grande relevância o 
esforço de integrar as disputas locais às relações dinâmicas da dialética 
do  particular‐universal.  Este  esforço,  ao  dispor‐se  a  interpretar  a 
complexidade das esferas de sociabilidade historicamente inscritas nos 
modos de interação da sociedade com a natureza, permite a construção 
de cenários mais condizentes com o cotidiano dos grupos e classes que 
possuem  interesses  concretamente  situados  diante  das  potencialidades 
ecológicas e sociais.  
 
6. Considerações finais 
 
A expectativa sobre o aprofundamento da crise de acesso à água 
em  várias  partes  do  mundo  vem  estimulando  não  apenas  disputas 
materiais, mas sobretudo lutas simbólicas em torno dos diagnósticos da 
crise  e  das  possibilidades  de  sua  mitigação.  Neste  capítulo,  buscou‐se 
sistematizar  alguns  elementos  críticos  que  permitem  compreender  o 
cenário de criação de uma narrativa social hegemônica sobre o recurso 
água, focada essencialmente em sua significação econômica. 
Face às discussões empreendidas, nos parece adequado sugerir a 
problematização da conveniência social dos mecanismos de mercado na 
gestão  de  águas  com  base  em  dois  critérios  não  excludentes  de 
apreciação de políticas públicas, quais sejam, os de extensão e densidade. 
Conforme  se  espera  ter  evidenciado  no  curso  do  texto,  a  extensão 
pretendida  pelos  princípios  conceituais  dos  instrumentos  econômicos 
de  gestão  dos  recursos  naturais  é  bastante  ampla,  posto  que,  em  um 
contexto  lógico‐dedutivo,  dissemina  as  hipóteses  do  utilitarismo 
econômico  para  todas  as  esferas  da  vida  em  sociedade.  Entretanto, 
justamente  por  aprisionarem  os  referenciais  da  experiência  social  aos 
mecanismos de conduta econômica, as estratégias de mercantilização da 
água  apresentam  baixa  densidade  informacional,  uma  vez  que  não 
fornecem  suportes  em  seus  princípios  de  gestão  para  as  dimensões 
extra‐econômicas da relação sociedade‐natureza. 
Como  procurou‐se  ressaltar  através  dos  marcos  críticos  aqui 
abordados, há sempre uma intencionalidade simbólica corporificada no 
código  de  recursos  socialmente  desejáveis.  Isto  significa  dizer  que  um 

335
 
recurso  natural  não  pode  ser  reduzido  à  sua  dimensão  econômica 
mesmo  para  os  que  o  observam  como  tal;  ele  também  é  recurso 
simbólico  que  corporifica  signos  culturais,  ocupando  assim  posição  no 
conjunto hierárquico das trocas simbólicas. Evidentemente, em razão de 
sua  posição  neste  conjunto  hierárquico,  suas  dimensões  políticas  e 
econômicas  assumem  significado  particular  para  sociedades  e  grupos 
sociais distintos. 
Por  fim,  mesmo  na  análise  histórico‐estrutural  das  condutas 
econômicas  nos  mercados  capitalistas,  o  formalismo  da  análise 
utilitarista  impede  a  problematização  do  mercado  como  instituição 
política,  palco  de  disputas  que  se  estruturam  em  outros  contextos  (ou 
campos) de sociabilidade. Ou seja,  no curso da análise socioambiental, 
este  formalismo  impede  a  constatação  de  que  os  grupos  e  classes  não 
apenas  criam  bases  materiais  distintas  para  seus  modos  de  vida,  mas 
também  interpretam  de  formas  diversas  a  construção  dos  modos  de 
vida,  das  identidades  culturais  e  da  experiência  social  sobre  as 
potencialidades  ecológicas.  Para  o  contexto  das  sociedades  latino‐
americanas,  que  encontram‐se  em  vias  de  consolidação  de  novos 
princípios para a gestão das águas, a leitura crítica deste formalismo a‐
histórico  nos  parece  decisiva  para  a  construção  do  olhar  plural  que  o 
tema requer. 
 
 
 
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