Você está na página 1de 12

O sentido da escrita ficcional de Gilberto Freyre:

a seminovela e a história intelectual


BRUNO CESAR CURSINI*

Resumo
Este trabalho apresenta condições de leitura, assim como uma contextualização
parcial, do primeiro romance de Gilberto Freyre, a seminovela Dona Sinhá e o
filho padre. Nós também nos debruçamos sobre parte de seus trabalhos como
crítico literário, na tentativa de entender o que ele valorizava na ficção, e de que
forma aplicou isto a seus próprios romances. Também observamos algumas de
suas disputas com a intelectualidade do sudeste em seus motivos e
desdobramentos metodológicos, e tentamos compreender como essa disputa –
contemporânea à escrita das seminovelas – pode ter influenciado Freyre em sua
atividade de romancista.
Palavras-chave: Gilberto Freyre, seminovela, literatura, narrativa, Dona Sinhá
e o filho padre.
The ways of Gilberto Freyre's fiction: the seminovel and the intellectual
history
Abstract
This paper presents reading conditions as a partial contextualization of Gilberto
Freyre’s first novel, the seminovel Mother and son: a brazilian tale. We bent
over some pieces of his Works as a literary critic, trying to understand what he
valued in fiction and how he applied that in his own novels. We also observe
some of his querrels with intelllectuals in southeast Brazil in its motivations and
developments, and try to understand how this quarrel – that happend at the same
time as the seminovels were wrote – may have influenced Freyre in his activity
as a novelist.
Key words: Gilberto Freyre, seminovel, literature, narrative, Mother and son: a
brazilian tale.

*
BRUNO CESAR CURSINI é formado em história pela Faculdade de Ciências Humanas e
Sociais (FCHS) da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), campus de Franca;
Mestre em história na Universidade Federal de Uberlândia - UFU.

80
Introdução A primeira parte, portanto, dedica-se a
Este artigo investiga algumas uma tentativa de situar as distinções e
possibilidades abertas por Gilberto semelhanças entre romance e novela de
Freyre com seu primeiro romance, a acordo com a teoria literária ao nosso
seminovela Dona Sinhá e o filho padre. alcance e, estabelecendo a importância
No estudo de crítica literária organizado do gênero romanesco como crucial para
por Freyre, Heróis e vilões no romance estruturação da imaginação romântica na
brasileiro (1979), os termos “romance” e qual Freyre se fiou para escrever Dona
“novela” quase sempre vêm Sinhá e o filho Padre, fazemos um breve
acompanhados um diretamente do outro, panorama de seu desenvolvimento, com
o que, aplicado ao entendimento do algumas ponderações acerca de suas
subtítulo seminovela, que Freyre escolhe relações com a história
para seu primeiro texto de ficção em Na sequência, investigamos as
prosa, pode ou não se revelar potencialidades do discurso literário
significativo para o entendimento deste como gerador de saber, demonstrando
mesmo texto. que, por esta característica, tal
modalidade discursiva tornou-se atraente

81
para Freyre, que se utilizou dela em sua começou como especificamente
disputa metodológica e de representação inglês. (ROBERT, 2007, p. 11)
do passado com os intelectuais da USP, Os dois teóricos divergem sobre as
que emergiam como seus rivais a partir origens do romance, mas é digno de
dos anos 1950. O artigo espera esclarecer observação que ambos situam esta
alguns pontos acerca da longa e profícua origem na Inglaterra, no mesmo período.
relação que Freyre, um intelectual que
sempre acreditou na literatura, manteve O termo” romance” é usado pelo
com a ficção. narrador-personagem para definir Dona
Sinhá e o filho padre nas seguintes
I – Novelesco e romanesco passagens, no curso da narrativa:
“Talvez no decorrer do romance, fosse
Massaud Moisés observa que um modo interessante incluir um ou outro desses
“defeituoso” de se utilizar a expressão pormenores.” (p. 16); “Romance um
novela, em nossos dias, é para descrever tanto diferente.” (p. 9); “Meu romance.”
romances curtos, com mais de cem e (p. 15); “uma espécie de romance.” (p.
menos de duzentas páginas. Moisés traça 7). Assim, ao incluir mais esta
as origens do gênero novelesco a partir imprecisão classificatória, Freyre
de produções literárias muito anteriores consegue criar novos empecilhos a quem
ao surgimento do romance moderno, quer que se proponha enquadrar seu livro
como as canções de gesta e as histórias em categorias muito rígidas. Ele se
de cavalaria. Para este autor brasileiro, lembra, já no posfácio, como autor
Dom Quixote seria o momento em que o falando ao leitor, das antinovelas, dando
gênero das novelas de cavalaria atingiu os exemplos de Le Planetarium, de
seu auge. O romance, por sua vez, Nathalie Sarraute, Degrés, de Michel
aparece na Inglaterra do século XVIII, Butor e Dans le Labyrinthe, de Alain
com o livro de Henry Fielding, A história Robbe-Grillet. Estes títulos seriam
de Tom Jones (MOISÉS, 2006). Marthe antinovelas
Robert, entretanto, problematiza esta
classificação de outra maneira, num por não terem enredo [...] como as
trabalho bem mais atual. Para ela, Dom novelas convencionais; nem
tampouco, personagens; nem
quixote seria justamente uma das obras
pretenderem ser psicológicas, muito
fundadoras do romance moderno, “se menos sociológicas ou históricas,
entendermos por modernidade o deixando os seus autores que os seus
movimento de uma literatura que, equivalentes de personagens falem
perpetuamente em busca de si mesma, se ou se exprimam como falariam ou se
interroga, se questiona, fazendo de suas exprimiriam em filmes ou no rádio
dúvidas e sua fé a respeito de sua própria ou na televisão, isto é, dentro de
mensagem o tema de seus relatos” (2007, outras convenções, que não as
p. 11). Sob outra ótica, porém, esta literárias; e que são as que
primazia caberia a Robson Cruzoé, que é correspondem à chamada cultura de
massa. (FREYRE, 1964, p. 184)
moderno sobretudo na medida em
Carmen de Fátima Henriques da Matta
que reflete com bastante clareza as
tendências da classe burguesa e
afirma que a distinção fundamental que
mercantil oriunda da revolução se estabelece é que a antinovela seria o
inglesa. Nesse sentido, com efeito, resultado de um esgotamento do gênero
pode-se dizer que o romance é um novelesco, sendo uma novela em
gênero burguês que, antes de se negativo ou uma novela em subtração.
tornar internacional e universal, Esta autora aponta que as seminovelas

82
são justamente o oposto, pois adicionam II. A literatura como produtora de saber
e incorporam elementos de diversos
gêneros. Da Matta também observa que Leenhardt (2006) observou que Gilberto
a antinovela carece propositalmente de Freyre procurava ir o mais longe possível
dimensão psicológica, sociológica ou com suas descrições afim de, com isso,
histórica, e que possui personagens que, chegar a uma melhor compreensão do
diferente dos de Freyre, não são real. Pretendemos examinar sua opção
caracterizados pelo seu uso único da pela novela – ou romance – como
linguagem. (2007, p. 67) estratégia descritiva e,
consequentemente, de compreensão. De
Edilberto Coutinho, em seu estudo acordo com Peter Gay
pioneiro das seminovelas não viu, na
a ficção pode, sem dúvida, oferecer
verdade, “a necessidade de estabelecer a veracidade dos detalhes; os
rigidamente as fronteiras – dentro do romancistas e poetas não são
gênero ficção – entre o que seria estranhos à pesquisa [...]. Mas [os
determinantemente novela ou romance” fatos verdadeiros na ficção] existem
(1983, p.8-9). para fornecer cenários plausíveis às
personagens imaginadas, para
Também Robert (2007) observa que, facilitar o ingresso do leitor num
devido ao escopo praticamente ilimitado mundo fictício que lhe foi criado
dos assuntos que o romance é capaz de pelo escritor. A verdade é um
incorporar a sua alçada, assim como de instrumento opcional da ficção, não
sua capacidade de colonizar outras áreas sua finalidade essencial. (1990, p.
da literatura, definir o que é ou não 172)
classificável como um romance se torna Em concordância com a colocação de
extremamente problemático, mesmo do Gay, Ivan Jablonka (2017) diz que um
ponto de vista dos lexicógrafos. Os romance ajuda a esclarecer a realidade
próprios romancistas, porém (e, como não por ser ele verossímil ou
acabamos de ver, Freyre não seria documentado, mas pela qualidade de sua
exceção) parecem ter contribuído para a abordagem. Para Jablonka, isto
indefinição classificatória do gênero. explicaria o porquê ser “mais útil ler
Para Robert, autores improvisados em Proust do que um mau sociólogo; Le zéro
teóricos sequer pensam em formular as et l´infini e 1984 mais do que um
questões adequadas, eles só constatam o trabalho entediante sobre o stalinismo”
que a seus olhos é obvio, e usam isto para (2017, p. 16).
supor um imperativo (o romance é, o
romance deve), graças ao qual “o gênero Os procedimentos investigativos não são
cai integralmente sob o alcance de uma privilégio das corporações acadêmicas,
jurisdição superior cuja competência portanto. A investigação é um “esquema
parece tão evidente que prescindiria de universal de pensamento que pode ser
exame, mesmo para o principal aplicada e estendida tanto às ciências
interessado” (2007, p. 22). Estaria Freyre quanto à vida cotidiana. Ela é familiar,
incorrendo no erro de que fala Peter Gay simultaneamente, ao detetive, ao
(1990) e confundindo dois âmbitos – o policial, ao juiz de instrução, ao
histórico e o ficcional – sem proveito jornalista, ao arqueólogo, ao historiador
para nenhum dos dois? Esperamos e ao sociólogo” (JABLONKA, 2017, p.
conseguir lançar alguma luz sobre os 14). É interessante que Freyre, em Dona
motivos que levaram Freyre a optar por Sinhá, compare suas técnicas de
esta estratégia. investigação às de um detetive, já que,

83
para a descoberta e a verificação de podem ser também seus tipos
uma verdade humana o detetive está novelisticamente válidos. Em Heróis e
melhor armado do que o naturalista, vilões, Freyre dá mostras de entender a
pois é mais livre e mais preparado criação literária também como
para o desconhecido, seja este qual
apropriação do saber sociológico pelos
for. Mais: que para o naturalista
trata-se menos de descobrir a
autores, assim como construção desse
verdade do que de verificar leis; mesmo saber. É neste sentido que, ao
enquanto o detetive sabe que refletir sobre os dramas shakespearianos,
também o excepcional existe e que o Freyre acredita que neles
humano é sempre particular. (1964,
a vida, o humano, os conflitos do
p. 49)
indivíduo com o meio, os
Mais a diante, Freyre revela que esta desajustamentos entre grupos e entre
“técnica de detetive” foi empregada na personalidades transbordam do que
neles é estético, do que neles é arte
própria urdidura da seminovela, ao dar
formal, teatro recreativo, para se
forma ao personagem principal: ele faz constituírem em material de
com que extraordinária riqueza para todos os
um ainda informe pré-José Maria, analistas, desde os dias de Elizabeth,
recordado através de probabilidades da natureza humana: tanto os ditos
psicológicas, tenha se tornado o José científicos, sociológicos,
Maria já um tanto concreto psicológicos, como os de tendências
reconstituído noutros capítulos mais humanísticas.” (1979, p. 24)
através da técnica dos detetives, isto Outros romancistas são por ele
é, sobre os indícios de uma
lembrados: Balzac, que desejava “ser
personalidade em desenvolvimento,
do que pela arte daqueles biógrafos menos um ficcionista no sentido
que, em trabalhos de história ou de ordinário da palavra, que um historiador
ficção misturada à história, social” (1979, p. 45). Para Freyre, Balzac
prescindem de tais indícios para se teria desenvolvido todo um método,
apoiarem em probabilidades mais pautado não somente pela preocupação
lógicas que psicológicas. (1964, p. com o homem antropológico,
101) sociológico ou histórico, mas também
com o homem biográfico. Segundo
O sentido que Freyre dá a sua produção
Edilberto Coutinho,
literária, portanto, é o da investigação do
passado brasileiro através de técnicas para Gilberto Freyre, o que Balzac
sociológicas. Heróis e vilões no romance parece ter desejado terá sido a ficção
brasileiro (1979), por ser um estudo de em torno das relações humanas
crítica literária feito por Freyre, pode surpreendidas em seus vários setores
oferecer algumas luzes na interpretação e nos seus aspectos cotidianos, mais
de sua ficção. Este livro gira, conforme do que nos excepcionais, sustentada
por um tipo de história social ou por
diz seu próprio subtítulo “em torno das
uma espécie de sociologia da
projeções de tipos sócio-antropológicos história. (1983, p. 52)
em personagens de romances nacionais
do século XIX e do atual [ou seja, do Segundo Freyre, também Tolstói,
XX]”. O interesse pelos personagens Thomas Mann e André Malraux
como tipos sociológicos weberianos já produzem romances capazes de suprir “o
havia sido indicado em Dona Sinhá: antropólogo, o sociólogo, o historiador,
Freyre procura demonstrar que os tipos o biógrafo cientificamente orientado em
sociologicamente válidos do alemão suas técnicas de análise e de

84
interpretação de valiosas sugestões além tempo, escoadouros inesgotáveis, já que
de quase-científicas, quase-filosóficas” pode tratar de absolutamente tudo. O
(1979, p. 46). Edilberto Coutinho, romance é “livre, livre até o arbitrário e
examinando não somente Heróis e até o último grau de anarquia”
vilões, como também um conjunto de (ROBERT, 2007, p. 13).
prefácios que Freyre produziu para obras
Freyre flertava com a ideia de escrever
de crítica de literatura brasileira, concluí
romances desde a remota juventude, num
que este autor está em constante busca
período crítico de sua formação
por um “conteúdo social” na literatura,
(CASTRO GOMES, 2005;
sem, entretanto, considerar que tais
PALLARES-BURKE, 2005). Sua ideia
elementos “devam prevalecer sobre a
era libertar o próprio trabalho dos rigores
expressão literária das obras estudadas”
da academia e, no caso, um gênero tão
(1983, p. 54).
eclético, livre e abrangente quanto o
Freyre acaba por aproximar o romancista romance deve ter-lhe parecido
não apenas de cientistas sociais e inegavelmente sedutor. O formato pelo
historiadores, como também de qual ele optou inicialmente, entretanto,
biógrafos. Para ele, o trabalho de foi o do ensaio; ou ao menos esse era o
biografar-se pessoas comuns transforma- nome que ele gostava de dar a seus
as em “sujeitos-objeto” de estudos que extensos livros de pesquisa. Mesmo
“concorrem para nosso mais profundo e assim, Casa-grande & senzala era, vez
mais extenso conhecimento do Homem por outra, chamado de romance, fosse
através de expressões menos notáveis ou por entusiastas ou detratores. Entusiastas
menos ilustres dos seus diferentes tipos que exaltavam as qualidades artísticas e
antropologicamente significativos” a fluidez do texto; detratores que usavam
(1979, p. 46). Ele então nos dá alguns a palavra “romance” como sinônimo de
exemplos que chamam sua atenção na embuste e falsidade.
literatura nacional: o sargento de
Seja como for, O próprio Gilberto
milícias, o bom crioulo, o moleque
Freyre, ao contemplar sua trilogia de
Ricardo e o pequeno burocrata Gonzaga
ensaios1 parece ter julgado que as
de Sá.
margens para experimentação não
A multifuncionalidade que Freyre haviam sido suficientemente dilatadas
enxerga no romance nos parece ainda. Acreditamos que ele tenha
semelhante à observada por Robert, decidido explorar outras formas de falar
quando ela observa que este gênero, após sobre o Brasil, histórico, sociológico e
ter enfrentado origens humildes no antropológico, falar sobre si – pois, dado
ocidente, vem se apoderando de setores a veia autobiográfica de sua obra, fica
cada vez mais vastos da experiência claro que os ensaios das décadas de
humana, e reproduzindo-a à maneira do 1930-1950 eram também uma maneira
moralista, do historiador, do teólogo, do de falar, e falar muito, de si mesmo – e
filósofo e, até mesmo, do cientista. O transformar a realidade nacional. Esta
romance é similar à sociedade transformação não se dando apenas
imperialista em que nasceu, tendendo ao dentro da narrativa, onde impera a
universal e absoluto, o que faz com que harmonia racial concebida nos anos 1930
uniformize e nivele a literatura, e ardorosamente defendida por ele nas
fornecendo-lhe, entretanto, ao mesmo últimas décadas de vida, mas
1
Casa-grande & senzala, Sobrados e mucambos
e Ordem e progresso.

85
possivelmente tentando se estender para nos anos 1960. Um novo projeto de
o universo extratextual. Brasil começou a emergir na
Universidade de São Paulo, encabeçado
A visão de Freyre sobre o papel por Sérgio Buarque de Holanda e
transformador da literatura, segundo também por marxistas como Caio Prado
Maria Lúcia Pallares-Burke, remonta Jr, Nelson Werneck Sodré, Florestan
seus anos de juventude, e deve muito a Fernandes e alguns de seus discípulos,
seu contato com os escritos de William tais como Octavio Ianni e Fernando
Morris. De acordo com ela, “há fortes Henrique Cardoso. Esta competição foi
indícios para acreditar que a descoberta de amplas consequências; nas palavras
de William Morris significou para Freyre de Joaquim Falcão, estas foram “relações
um forte apelo à ação” (2005, p. 228). que afetaram, como ainda afetam, todo o
Morris, John Ruskins e outros vitorianos Brasil. Fazem parte da competição
anti-vitorianos transmitiram a Freyre maior, permanente e inerente a qualquer
uma noção que ele já parecia guardar cultura e a qualquer nação” (2001, p.
consigo, intuitivamente: que a beleza não 131). De fato, foram colocadas em
é algo fútil, mas deve ser associada ao disputa duas narrativas diferentes de
cotidiano e a vulgaridade da nossa vida, nação, que implicavam também duas
como instrumento para transformá-la. O propostas distintas de modernização do
“culto ao passado” que Freyre país. Simone Meucci diz que
estabeleceria, nesse sentido, não era
mero saudosismo ou escapismo, mas era diante das expectativas e dos
“necessário para pôr em prática a energia resultados sociais (nem sempre
criadora” (PALLARES-BURKE, 2005, favoráveis) do desenvolvimento
p. 230). econômico, formulou-se, ao longo
dos anos 1950, a concepção de que
A capacidade de transformação dos cientistas sociais atuariam,
ensaios clássicos de Freyre é sobretudo, na construção e
planificação de uma sociedade
incontestável; uma transformação bem
economicamente sadia e
vinda e necessária, já que implodiu a democrática. Os intelectuais
preponderância das teses de (sobretudo os economistas e
superioridade racial do europeu branco, cientistas sociais) consideraram-se
e permitiu ao brasileiro encarar a própria responsáveis pela condução racional
condição de mestiço como um valor das mudanças e pelo controle de
respeitável em si, e não como uma seus efeitos. (2015, p. 308)
degeneração que condenava a nossa
civilização a, irremediavelmente, nunca Alberto Aggio, acredita mesmo que há
produzir nada de valioso. Entretanto, o algum consenso entre especialistas
que este trabalho aponta é que, ao quanto ao fato de que
envelhecer, Freyre ainda não
considerava sua obra completa. Embora são poucas as regiões no mundo
muitos classificassem seus estudos como onde os intelectuais têm tanta
ascendência sobre a vida política
“romances”, não raro isto era feito de
quanto na América Latina. Não há
modo a diminuí-los, tentando dar a dúvida a respeito da sua atitude de
entender que seu conteúdo não teria liderança político-social. É
valor informativo, ou que as teses ali reconhecida, no sub-continente, a
defendidas careciam de embasamento sua importância quanto à gênese e à
adequado. Isto começou a acontecer em difusão das ideias, bem como o
meados dos anos 1950 e se intensificou papel mediador que exercem os

86
intelectuais entre Estado e determinismo mesológico da noção de
sociedade. (2015, p. 192) que Gilberto Freyre simplesmente
“perdeu” para a intelectualidade do
Pode-se assumir, a partir daí, que no sudeste, como se esta região fosse o
Brasil o intelectual se percebe não único eixo pensante do país, e nada mais
apenas como um guia para a ação, mas de relevante pudesse ser produzido em
como um ator de fato nos processos de outras partes (2010).
transformação da sociedade. Freyre é
bastante representativo desta situação, Simone Meucci diz que, a partir dos anos
não apenas pelas já referidas 1950, houve um esforço, sobretudo por
colaborações que sua obra trouxe para a parte de professores paulistas, para
reestruturação da identidade brasileira romper com as formas consideradas
em torno das questões de mestiçagem, pouco especializadas de conhecimento
mas também por que ele interveio na sociológico. Assim, a produção e os
vida política, tendo sido deputado federal métodos de Freyre foram postos sob
por Pernambuco de 1946 a 1951. É ataque.
justamente neste período que tem início
A manifestação pré-científica da
o embate com a USP, de acordo com
disciplina foi demarcada como
Meucci (2015), se estende até 1964 – ano ligada à tradição ensaística; pouco
da publicação de Dona Sinhá. Claro que especializada e caracterizada pela
a datação de Meucci corresponde a uma narrativa histórica. Nesse ambiente,
análise retrospectiva dos eventos, e não a linguagem e a abordagem de
necessariamente significava que os Freyre, consideradas
atores envolvidos vissem a questão como revolucionárias nos anos 1930,
de fato encerrada. Na verdade, Falcão envelheceram sob novos
aponta o ano de 1964 como uma fase em julgamentos 'especializados'.
que o debate se tornou mais pungente, (MEUCCI, 2015, p. 267)
em decorrência do golpe militar, que Isto fez com que Freyre assumisse, a um
conduziu as discussões para o plano só tempo “a condição de escritor, de
político de maneira cada vez mais aventureiro liberto das restrições da
explícita. Ao cabo, para ele, “a cátedra e de especialista capaz de
competição cresceu, se reproduziu, transmitir seu saber"; condição que lhe
cristalizou-se e chegou até nós” (2001, p. propiciou “o bônus de não limitar suas
152). Freyre seguiria escrevendo formulações pelas regras científicas e de
diversos textos, e este trabalho sugere não ser rigorosamente obrigado a
que tais textos não foram apenas responder às exigências acadêmicas”
obsessão em produzir a própria memória (MEUCCI, 2015, p. 268-278).
ou em falar de si mesmo por mera
vaidade, mas tentativas de dar respostas Ao mesmo tempo, entretanto, esta
a um debate que, em sua visão, situação acabou por marginalizar Freyre
certamente ainda prosseguia. Castro do processo de institucionalização da
Santos, também em uma leitura disciplina sociológica entre nós. Foi uma
retrospectiva dos eventos, coloca Freyre ruptura radical com o ensaísmo que
não apenas como um vencido neste vigorou no Brasil nas décadas de 1920 e
embate, como também atribui a esta 1930, “uma tentativa de separação
derrota o fato de ele estar privilegiado radical entre o modo de produção
com um ponto de vista único, impossível amador e o modo de produção
de ser adquirido de outra forma (1993). especializado. A linguagem literária não
Nicolazzi, entretanto, nos alerta para o parecia ser, afinal, suporte para o

87
exercício do controle racional” simples “escritor” para, inclusive,
(ARRUDA, 2001, p. 213). Fernando evadir-se das tentativas de
Nicolazzi, entende este momento de enquadramento metodológico de seus
embate como a segunda fase da oponentes, levava alguns destes a acusá-
apreciação crítica do corpus freyriano; a lo de estar “escondendo alguma coisa”
primeira foi caracterizada por um por trás da designação (MOTA, 1977, p.
excesso de loas e louvores a Casa- 64). “Quando tentavam enquadrá-lo
grande & senzala, a terceira é aquela em como sociólogo ou antropólogo, ou
que, após a morte de Freyre, começam a mesmo historiador social, ele se
se produzir análises que tratam sua obra reivindicava apenas escritor. Pretendia-
mais como simples objeto de estudo do se gênero, e não espécie.” (FALCÃO,
que como algo com que simplesmente 2001, p. 141). Edilberto Coutinho, que
concordar ou discordar, ou pode ser creditado como o autor da
apaixonadamente exaltar ou detestar análise de maior folego a respeito da
(2010). Detestar é um adjetivo forte para ficção de Gilberto Freyre até o momento,
qualificar a maioria das posições sem dúvida parece estar dentre os
descritas por Nicolazzi, mas o fato é que, leitores que “cederam às inegáveis
quase trinta anos após a publicação de qualidades da obra” de Freyre,
Casa-grande & senzala, Freyre se viu às transformando-se também em seu
voltas com defensor entusiasmado. Mais que isso,
os infortúnios de uma crítica que não em sua tese, Coutinho procura de
sucede em estabelecer um veredicto diversas formas demonstrar que Freyre é,
para o livro de Gilberto Freyre, ora antes de tudo, escritor de ficção, e que
cedendo às inegáveis qualidades da esta figura de ficcionista se insinuava
obra, ora reconhecendo o desde os primeiros e principais ensaios
descompasso entre o que o autor do autor. Sem julgar o mérito total da
pretendia e o que de fato realizou. constatação de Coutinho, chamamos
Em um contexto de definição aqui, em contraste com suas proposições,
rigorosa do que a Sociologia, as observações de Meucci, segundo as
enquanto ciência, deveria ser, a obra quais nem sempre foi interessante a
de Gilberto Freyre aparece como
Freyre se ver atrelado a imagem de
contribuição significativa para o
desenvolvimento de um campo romancista, ficcionista e inventor de
intelectual, ao mesmo tempo que é estórias (2015). Sergio Buarque de
colocada como exato negativo do Holanda, velho amigo e colaborador de
que o campo pretendia configurar, Freyre – e de quem Coutinho empresta a
pelo menos em sua formulação expressão “imaginação do real”, que usa
universitária paulista, isto é, o no título de seu trabalho -, embora não
modelo para a instituição de uma fosse marxista, era da USP, e teria
sociedade progressista, industrial, inclusive se abstido de contribuir para
burguesa e democrática. um texto em livro comemorativo dos 25
(NICOLAZZI, 2010, p. 281) anos da publicação de Casa-grande &
Foi assim que, durante um longo tempo, senzala, livro este que tinha como
a obra de Freyre passou a representar propósito, dentre outros, revalorizar o
este negativo do que a sociologia paulista ensaio de Freyre.2 Holanda também, e
pretendia formular para a disciplina. Sua um tanto supreendentemente, chegou
“teimosia” em transformar-se em mesmo a remover citações e menções ao
2
Trata-se do volume Gilberto Freyre, sua
ciência, sua filosofia, sua arte, de 1962.

88
trabalho de Freyre nas novas edições de fora de todo platônico. Fora um
Raízes do Brasil, por volta desta mesma tanto sensual. (FREYRE, 1964, p.
época (NICOLLAZI, 2010). Isto ajuda a 16-17)
dimensionar a profundidade da História e ficção são personificadas num
desvalorização da obra de Freyre. triângulo amoroso com o narrador-
Acusado de falta de rigor científico, sem personagem, que a seguir confessa
saber determinar qual o destino do seu desejar as duas como se fossem capazes
legado para o futuro, pensamos que de se tornar uma única e mesma coisa:
Freyre possa ter começado a escrever “haveria um tempo artisticamente
suas seminovelas com as pretensões de, fictício que fugisse ao domínio do
em primeiro lugar, mostrar a todos o que histórico mas fosse perseguido pelo
um romance, ou trabalho de ficção histórico até os dois tempos se tornarem,
escrito por ele, de fato seria: houve de pelo menos em alguns casos, um tempo
sua parte um esforço em apresentar seus só?” (FREYRE, 1964, p. 17). Fica
ensaios como obras de pesquisa rigorosa, sugerido assim que a busca por uma
distantes do romance ou de qualquer verdade rigorosamente histórica pode
forma de fantasia. Isto iria ajudá-lo a acabar passando mais perto da ficção do
legitimar suas contribuições para a que gostariam os adversários intelectuais
constituição da disciplina sociológica no de Freyre, e que haveria outras formas de
país. Entretanto, é possível que deixasse se buscar uma verdade humana que não
uma lacuna em suas ambições pessoais: o quantitativismo racionalista.
se era preciso apresentar seus principais
trabalhos como distantes da criação A temática escolhida para Dona Sinhá –
literária, talvez seus planos de escrever a história de um seminarista – parece, por
romances – alimentados desde os 20 sua vez, colocá-la em diálogo com uma
anos – não tivessem, afinal, se série de outras narrativas que surgiam na
consumado (CASTRO GOMES, 2005). mesma época, tanto no Brasil quanto na
Isto parece coadunar com a inferência de América Latina. Para Fernando Alves
Coutinho (1983), de que as seminovelas Cristovão, Freyre fez a feliz escolha por
seriam a expressão mais acabada de um tema em “ascendente popularidade”:
Gilberto Freyre, de modo análogo a Em 1961 já Carlos Heitor Cony
confissão ser a forma final de expressão redigira a sua Informação ao
encontrada por Jorge Luís Borges. Crucificado que bem se pode inserir
na corrente cultural chamada da
O autor da seminovela – através da "morte de Deus", e não tardariam em
figura de seu narrador-personagem - 64 os filmes de Glauber Rocha e
deixa claro, em determinada passagem, toda uma literatura de antigos padres
que está ciente de estar cometendo de e seminaristas que iria encontrar no
fato uma espécie de adultério. pletórico e revolucionário Quarup,
de Antônio Callado, um dos seus
A história como que me momentos mais altos. Tão atual se
surpreendera a querer traí-la, tornou o tema que, ainda na década
entregando-me a namoros com a de sessenta, foi possível publicar-se
ficção; e antes que se consumasse o um livro de título perfeitamente
desvio como que me fazia voltar aos insólito pela carga publicitária
seus braços femininos porém fortes, concentrada: O Assunto é Padre. Tal
absorventes, imperiais. A verdade, iniciativa, da editora Agir, inspirou-
porém, é que eu experimentara o se precisamente nos estudos de
gosto da traição; meu namoro com a Gilberto Freyre, partindo do
Ficção não pensasse a história que princípio, formulado à maneira de

89
um anúncio publicitário em voga, de signo da distância estabelecido por
que "cada brasileiro tem um padre Euclides da Cunha. As seminovelas
em sua vida”. (1984, p. 201) freyrianas seriam assim, de certo modo,
Assim, Freyre tirava partido, muito a continuação do trabalho de pesquisa
habilmente, de uma temática literária em incessante do autor pela própria vida, na
voga e ascensão, para compor sua sua obra sempre aberta, em associação
seminovela, que o consolidava como aos assuntos brasileiros; mas seriam
“escritor”, designação que confundia e também uma provocação a seus
incomodava os rivais da USP e ao competidores USPianos, de mais de uma
mesmo tempo o projetava como maneira.
ficcionista sintonizado com o que se As seminovelas reforçam ainda mais a
produzia no país e no continente. autodesignação de “escritor”, que tanto
Conclusões incomodava Carlos Guilherme Mota e
outros, por parecer muitas vezes uma
Aproximar a narrativa histórica das evasão. Embora apresente-se em Dona
narrativas compostas por romancistas foi Sinhá com diversos avisos ao leitor a
um movimento tentado por diversos respeito de seu amadorismo como
intelectuais contemporâneos de Freyre novelista e ficcionista, por outro lado o
nos anos 1970 e 1980, mas com os quais, Freyre autor dos prefácios de Sobrados e
até onde pode averiguar esta pesquisa, mucambos – redigidos pouco tempo
ele não travou contato. Possivelmente antes - envaidece-se das aproximações
seus interesses nestas duas últimas de seus ensaios com romances e de si
décadas de vida não recaiam sobre as com romancistas. É digno de se
novidades mais atuais em teoria da perguntar, portanto, até onde ele
história ou historiografia. Sua atividade realmente se via como mero estreante.
como romancista é um olhar constante No que ele se via estreando, afinal?
sobre o século XIX, tanto em termos de
referências literárias como de época Podemos afirmar que muitas das
retratada. Entretanto, deve-se lembrar imprecisões que Freyre cria com este seu
que o caráter imaginativo e subjetivo do primeiro ensaio de prosa ficcional são
fazer historiográfico já havia sido notado logros intencionais com o leitor. Na
mesmo pelos metódicos do século XIX, verdade, com toda a comunidade leitora.
na França. Langlois e Seignobos já A criação deste texto híbrido, de
falavam sobre a dose de fantasia na classificação problemática, que
história. ventilava uma série de ideias polêmicas
sempre girando em torno da defesa do
Ficaria assim a representação do passado que passaria a ser chamado “democracia
à mercê de uma grande subjetividade, racial” constituí, sem dúvida, uma dupla
impossível de ser refutada inteiramente, provocação: uma ousadia de método
ao menos no caso dos grandes clássicos. expositivo, e uma reafirmação do núcleo
Embora fosse um estreante na ficção duro do pensamento freyreano no que diz
propriamente dita, Freyre tinha a respeito a sua crença na harmonia e
retaguarda bibliográfica de seu extenso cordialidade das relações inter-raciais no
corpus, que munia de fôlego suas Brasil.
estratégias representativas vazadas pelo
(auto)biografismo, pela reprodução de
reminiscências e pelo que Nicolazzi
(2010) coloca como uma grande
aproximação autor-obra, em oposição ao

90
Referências ______. Sobrados e mucambos. São Paulo:
Global, 2004.
AGGIO, Alberto. Um lugar no mundo: Estudos
de história política latino-americana. Rio de GAY, Peter. O estilo na História: Gibbon,
Janeiro: Contraponto; Brasília: Fundação Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo:
Astrogildo Pereira (FAP), 2015. Companhia das Letras, 1990.
ALVES CRISTOVÃO, Fernando. A ficção de JABLONKA, Ivan. O terceiro continente.
Gilberto Freyre como produto de sua obra ArtCultura. Tradução de Alexandre de Sá
sociológica. In: Ciência & Trôpico. Recife: Avelar. Uberlândia, v. 19, n. 35, p. 9-17, jul.-dez.
1984. Disponível em < 2017.
https://periodicos.fundaj.gov.br/CIC/article/vie
LANGLOIS, Charles; SEIGNOBOS, Charles.
w/362> Acesso em: 03 set. 2018.
Introdução aos estudos históricos. São Paulo:
ARRUDA, María Armínia do Nascimento. Renascença, 1946.
Metrópole e cultura. Bauru: EDUSC, 2001.
MEUCCI, Simone. Artesania da Socilogia no
CASTRO GOMES, Angêla de (org.). Em Brasil: Contribuições e interpretações de
Família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre. Curitiba: Appris, 2015.
Gilberto Freyre. Campinas: Mercado das Letras,
MOISÉS, Massaud. A criação literária: prosa I.
2005.
São Paulo: Cultrix, 2006.
COUTINHO, Edilberto. A imaginação do real:
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura
uma leitura da ficção de Gilberto Freyre. Rio de
brasileira (1933-1974). São Paulo: Ática, 1977.
Janeiro: José Olympio, 1983.
NICOLAZZI, Fernando. Um estilo de história:
DA MATTA, Carmen de Fátima Henriques.
a viagem, a memória, o ensaio: sobre Casa-
Gilberto Freyre e a literatura: em torno do seu
grande & senzala e a representação do passado.
ensaísmo, ficções e método interpretativo.
São Paulo: Editora Unesp, 2010.
Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Instituto de Letras, 2007. PALLARES-BURKE, Maria Lúcia Garcia.
Gilberto Freyre: um vitoriano nos trópicos. São
DIMAS, LEENHARDT e PESAVENTO (org.).
Paulo: Editora UNESP, 2005.
Reinventar o Brasil: Gilberto Freyre, entre
história e ficção. Porto Alegre: Editora da PALTI, Elías José (org.). “Giro lingüístico” y
UFRGS/EDUSP. 2006. história intelectual. Buenos Aires: Universidad
Nacional de Quilmes, 1998.
FALCÃO, Joaquim. A luta pelo trono: Gilberto
Freyre versus USP. In: FALCÃO, Joaquim; ROBERT, Marthe. Romance das origens,
ARAÚJO, Rosa Maria Barbosa (Orgs.) O origens do romance. São Paulo: Cosac-Naify,
imperador das ideias: Gilberto Freyre em 2007.
questão. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.
SANTOS, Luiz Antônio de Castro. O espírito da
FREYRE, Gilberto. Dona Sinhá e o Filho aldeia: orgulho ferido e vaidade na trajetória
Padre: Seminovela. Rio de Janeiro: José intelectual de Gilberto Freyre. Novos estudos
Olympio, 1964. Cebrap. N. 27, 1993.
______. Heróis e vilões no romance brasileiro. WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: ensaíos
São Paulo: Cultrix/ Editora da Universidade de sobre a crítica da cultura. São paulo: EDUSP,
São Paulo, 1979. 1994.
______. O outro amor do Dr. Paulo:
Seminovela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1976.
Recebido em 2019-02-05
Publicado em 2019-09-11

91

Você também pode gostar