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v.31 n.

2 ISSN 1414-9184
eISSN 1984-669X
Jul-Dez/2021 Temas Livres
ISSN 1414-9184
eISSN 1984-669X

PERIÓDICO CIENTÍFICO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM


SERVIÇO SOCIAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Temas Livres

v.31 n.2
Jul-Dez/2021

A Revista Praia Vermelha é uma publicação semestral do


Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade
Federal do Rio de Janeiro cujo objetivo é servir como espaço de
diálogo entre centros de pesquisa em serviço social e áreas afins,
colocando em debate, sobretudo, os temas relativos às políticas
sociais, políticas públicas e serviço social.
Conheça nossas políticas editoriais.

Revista Praia Vermelha Rio de Janeiro v. 31 n. 2 p. 217-444 Jul-Dez/2021


UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
REITORA
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PRÓ-REITORA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
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VICE-DIRETORA
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DIRETORA ADJUNTA DE PÓS-GRADUAÇÃO
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REVISTA PRAIA VERMELHA


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EDITOR TÉCNICO Ivanete Boschetti ufrj
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REVISÃO Leonilde Servolo de Medeiros ufrrj
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Sumário
Apresentação 221
Andrea Moraes Alves

ARTIGOS TEMAS LIVRES Elementos introdutórios para pensar sobre 223


o Exército Industrial de Reserva no Brasil
Hiago Trindade

Serviço Social nas transformações societárias: 243


“viradas” de uma profissão centenária
Caroline Magalhães Lima

Cotidiano e ontologia do ser social no pensamento 270 Você está aqui.


de Lukács: reflexões introdutórias
Mónica Brun Beveder

Carlos Nelson Coutinho, György Lukács 292


e a reavaliação das vanguardas
Rafael da Rocha Massuia

Conflitos envolvendo quilombolas no Rio Grande do Sul: 315


entre raça, classe e território
Adriane Cristina Benedetti & José Carlos Gomes dos Anjos

Questão agrária e formação profissional: 341


fundamentos a partir da realidade
Mailiz Garibotti Lusa

Feminismos e a emancipação da América Latina 366


Maria Amoras, Solange Maria Gayoso da Costa & Natália Aguiar de Barros

Deficiência e Cuidado: a experiência das 391


mulheres no contexto do Zika Vírus
Gabriela Carneiro Peixinho

Guerreiras de luta: mulheres assistentes sociais 415


e luta pelos direitos dos idosos
Beatrice Limoeiro

RESENHA Clássicas do Pensamento Social: mulheres e feminismos 440


Para acessar os demais textos
no século XIX, de Verônica Toste Daflon e Bila Sorj
deste número clique aqui e
por Andrea Moraes Alves veja o sumário online.
PERIÓDICO CIENTÍFICO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
SERVIÇO SOCIAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

Cotidiano e ontologia do Everyday life and ontology of


social being in Lukács’ thought:

ser social no pensamento de introductory reflections

The text presents the main


Lukács: reflexões introdutórias contributions of Lukács in the study of
daily life and its necessary relationship
Lukács O texto apresenta as principais contribuições de Lukács no estudo with the ontology of the social being,
da vida cotidiana e sua relação necessária com a ontologia do ser based on the materialist and dialectic
Cotidiano
social, tendo como base a perspectiva materialista e dialética. perspective. The backbone of his
Ontologia A espinha dorsal de sua teoria da cotidianidade reside nos estudos theory of daily life resides in studies
sobre a questão estética, uma das atividades mais elevadas de on the aesthetic question, one of the
objetivação do ser social, que, tendo como ponto de partida a vida highest activities of objectification of
cotidiana, a ela retorna com a potencialidade de transformá-la the social being, which, starting from
num espaço de ampliação e enriquecimento do próprio ser social. everyday life, returns to it with the
potential to transform it into a space
Mónica Brun Beveder of expansion and enrichment of the
Docente do Departamento de Trabajo Social, Facultad de Ciencias Sociales, social being itself.
UdelaR, doutora em serviço social pela FSS/UERJ.
mbrunb@hotmail.com Lukács
Everyday life
Ontology

próxima página

referências e notas

Recebido em 03/06/2020
Revista Praia Vermelha Rio de Janeiro v. 31 n. 2 p. 270-291 Jul-Dez/2021
Aprovado em 14/09/2020
Introdução
v.31 n.2 [2021]
início Toda atividade humana tem como ponto de partida e ponto
de chegada a dimensão da vida cotidiana. O comportamento
cotidiano do homem é o começo e o fim de toda ação
página anterior humana, de toda criação do homem. Este é o fundamento
da teoria da cotidianidade formulada pelo marxista húngaro
Georg Lukács (1885-1971).
O conjunto de questões que constituem a essência da vida
cotidiana, afirma Lukács, não tem tido uma longa pré-história
(LUKÁCS, 1977, p.9), sendo tema desprezado pelas Ciências Sociais
por ser concebido como “mundo de mera empiria” (LUKÁCS,
1977, p. 9).
Para o marxismo vulgar, com forte viés positivista, a vida cotidiana
não é um objeto digno de estudo; não cabe nas esquemáticas
e fatorialistas formas de conceber a vida social destas vertentes
mais assimiladas a elaborações dogmáticas de análise social. Na
sua insistente e dura luta contra os reducionismos e vulgarizações
da obra marxiana, Lukács empreende a atividade intelectual de
“reconstrução reflexiva” da ontologia marxiana como forma de
resgatar sua centralidade para a restituição da riqueza categorial
da teoria social de Marx. É justamente desse lugar de reflexão
que Lukács analisa o “comportamento estético” e seu ponto de
partida e lugar de chegada: a vida cotidiana. Nesse sentido, “a
ontologia se eleva do solo do pensamento cotidiano e nunca
mais poderá tornar-se eficaz caso não seja capaz de nele voltar a
aterrar – mesmo que de forma muito simplificada, vulgarizada e
desfigurada” (LUKÁCS, 2012, p. 30).
O objetivo deste trabalho é aportar contribuições para pensar
a dimensão da vida cotidiana no pensamento lukacsiano em
sua relação com a ontologia do ser social, buscando construir,
embora num nível preliminar e introdutório, uma reflexão que
permita a compreensão de que “a tomada da realidade de que
a cotidianidade contemporânea é um nível constitutivo supõe a
reconstrução reflexiva da sua ontologia, da totalidade concreta R. Praia Vermelha
próxima página própria da sociedade burguesa madura” (NETTO, 1987, p. 89). É Rio de Janeiro
necessário destacar que não é possível analisar as reflexões de v.31 n.2
Cotidiano e ontologia do ser Lukács acerca do cotidiano sob a perspectiva ontológica sem p. 270-291
referências e notas social no pensamento de Jul-Dez/2021
considerar o método de Marx, motivo pelo qual a questão do
Lukács: reflexões introdutórias ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
método materialista dialético será retomada.
271 eISSN 1984-669X
Embora não de forma declarada, o sentido ontológico das análises
de Lukács já comparece em seus escritos sobre a “particularidade v.31 n.2 [2021]
início
da estética” que, não por acaso, se iniciam com uma reflexão
sobre o cotidiano. O desenvolvimento do ser social para além
página anterior da generalidade biológica realiza-se por meio de objetivações
como a ciência, a filosofia, a arte, a ética, o trabalho criador.
Todas as atividades sociais do ser humano são produto do
desenvolvimento do ser social, “do homem que se faz homem
mediante seu trabalho” (LUKÁCS, 1966, p. 24).
Ao tratar do lugar do “comportamento estético na totalidade
das atividades humanas”, Lukács afirma que o primeiro ponto a
ser observado é a conduta do ser humano na vida cotidiana. Por
essa razão, na obra lukacsiana, a espinha dorsal de sua teoria da
cotidianidade se encontra em seus estudos sobre as questões
estéticas, inseparáveis, por sua vez, da perspectiva ontológica.
Nesta, a estética é uma das atividades mais elevadas de
objetivação do ser social, que, tendo como ponto de partida a vida
cotidiana, a ela retorna com a potencialidade de transformá-la
num espaço de ampliação e enriquecimento do próprio ser social.

Ontologia do ser social no pensamento lukacsiano e sua base


materialista: observações sobre a questão do método
Em seus escritos sobre a peculiaridade do estético, já comparece
de forma nítida a “impostação ontológica” (NETTO, 2002) que
vai conectar os eixos do pensamento da obra madura de Lukács
desde a década de 1930, quando o marxista húngaro terá
acesso a obras então inéditas de Marx e Engels. É pelo exame
cuidadoso dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 (1987)
e de A Ideologia Alemã (2007), obras até então não publicadas,
que Lukács aprofunda e consolida seus estudos marxianos,
encontrando evidências da influência do pensamento de Hegel
na obra de Marx. A relação Marx-Hegel se torna apreensível para
Lukács pelos elementos da crítica à filosofia hegeliana feita por
Marx a partir do horizonte aberto pela crítica da economia política.
R. Praia Vermelha
De acordo com José Paulo Netto (2002), os elementos para uma
próxima página Rio de Janeiro
teoria da vida cotidiana presentes na Estética, cuja primeira
v.31 n.2
parte foi concluída em 1960 e publicada pela primeira vez em p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
referências e notas social no pensamento de 1963, já assinalam a “imensa distância entre suas concepções Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias e a dogmatização própria do ‘marxismo-leninismo’” (p. 13), ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder evidenciada pela direção ontológica da obra lukacsiana. 272 eISSN 1984-669X
Esta distância se baseia na oposição entre ontologia do ser
social e gnosiologia, provocando um “deslocamento do trato v.31 n.2 [2021]
início
epistemológico” (NETTO, 2002, p. 84).
No confronto contra as vulgarizações do marxismo, a “impostação
página anterior ontológica” seria, para Lukács, uma das formas de resgatar o
pensamento marxiano no caminho para o “renascimento do
marxismo”. Nesse sentido, a recuperação da riqueza categorial da
obra de Marx somente seria possível pela urgente restituição de
sua condição original de ontologia.

Por um lado, nenhum leitor imparcial de Marx pode deixar de


notar que todos os seus enunciados concretos, se interpretados
corretamente, isto é, fora dos preconceitos da moda, são ditos,
em última análise, como enunciados diretos sobre certo tipo de
ser, ou seja, são afirmações puramente ontológicas. Por outro
lado, não há nele nenhum tratamento autônomo de problemas
ontológicos; ele jamais se preocupa em determinar o lugar desses
problemas no pensamento, em defini-los com relação à teoria do
conhecimento, à lógica etc. de modo sistemático ou sistematizante
(LUKÁCS, 2012, p. 281).

Por considerar que a retomada da sua condição de ontologia


é o elemento que preside o processo de “renascimento do
marxismo”, a questão da gênese e da historicidade concretas
do ser social – problemas que conformam o complexo assumido
pela “impostação ontológica” já referida – passa a ser o “núcleo
irradiador e articulador da reflexão teórica de Lukács” (NETTO,
2002, p. 84).
Como esclarece Lukács, a influência da obra de Hegel sobre a
ontologia marxiana se estabelece, desde o início, em termos
críticos, com base na “oposição excludente entre o idealismo
hegeliano e o materialismo por eles [Marx e Engels] renovado”
(LUKÁCS, 2012, p 282). Sobre a “virada materialista” da filosofia
hegeliana, dotada de profundo caráter ontológico justamente por
confrontar idealismo e materialismo, nos deteremos brevemente
R. Praia Vermelha
a seguir.
próxima página Rio de Janeiro
A perspectiva materialista consiste numa superação dialética da v.31 n.2
Cotidiano e ontologia do ser dialética hegeliana. Embora a dialética na filosofia de Hegel tenha p. 270-291
referências e notas social no pensamento de Jul-Dez/2021
como ponto de partida o real, a “síntese hegeliana” – unidade
Lukács: reflexões introdutórias ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
superior entre tese e antítese – é produto do movimento do
273 eISSN 1984-669X
próprio pensamento e, portanto, do conjunto de categorias que
“parecem criar-se umas às outras, encadear-se e ligar-se umas v.31 n.2 [2021]
início
nas outras, unicamente pelo trabalho do movimento dialético”
(MARX, 1985, p. 120). Em contraposição ao caráter absoluto
página anterior do “devir hegeliano”, que revela sua crença no progresso pela
resolução dos conflitos no movimento (dialético) do pensamento,
“o materialismo dialético não considera as categorias como
resultado de alguma enigmática produção do sujeito, senão
como formas constantes e gerais da realidade objetiva mesma”
(LUKÁCS, 1966, p. 57).
Em Hegel, a razão (pura e absoluta) é o real e o que move a
história. Por esse motivo, as categorias apresentam-se como
categorias a-históricas, imutáveis e sem nenhuma concretude
material. Para Marx, ao contrário, a razão é a forma de conhecer
o real que existe independente do sujeito que conhece1 . As
categorias são, em verdade, expressão teórica do movimento real
que é produzido por relações sociais construídas pelos homens, o
que confere a estas categorias um caráter histórico e transitório.
Nas esclarecedoras palavras de Lukács:

as categorias não são elementos de uma arquitetura hierárquica


e sistemática, mas, ao contrário, são na realidade “formas de ser,
determinações da existência”, elementos estruturais de complexos
relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas inter-relações dinâmicas
dão lugar a complexos cada vez mais abrangentes, em sentido tanto
extensivo quanto intensivo (2012, p. 297).

“Extraída pela razão teórica da estrutura do real” (NETTO, 2002,


p. 78), a categoria da totalidade, tomada de Hegel por Marx, é
uma das categorias nucleares da teoria social marxiana. Por
isto, Lukács defende, contra o “ponto de vista do indivíduo”, o
“ponto de vista da totalidade”, sendo esta considerada enquanto
totalidade concreta e, portanto, processo histórico-social.
No âmbito da totalidade concreta, outra categoria nuclear da
dialética de Marx ganha sentido, sendo central para a análise
R. Praia Vermelha
da vida cotidiana. Trata-se da categoria da mediação. Segundo
próxima página Rio de Janeiro
Netto, “sem a mediação [...] a própria estrutura da realidade,
v.31 n.2
tomada como totalidade concreta, estaria despida da sua inerente p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
referências e notas social no pensamento de complexidade” (2002, p. 80). A totalidade forma uma unidade do Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias contraditório, sendo constituída por complexos com maior ou ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder menor grau de complexidade, cuja interação somente é garantida 274 eISSN 1984-669X
e efetivada pelos processos de mediação que contêm o que
determina o surgimento, desenvolvimento e as formas de ser v.31 n.2 [2021]
início
de um complexo, razão pela qual a mediação é uma categoria
ontológica, componente da realidade objetiva.
página anterior Nenhum objeto na totalidade concreta é realmente imediato;
“nenhum objeto se põe ao pensamento sem que seja produto,
resultado de mediações” (NETTO, 2002, p. 81). Uma máquina de
fiar algodão é capital quando mediada pela sociedade capitalista,
pelas determinações e relações sociais específicas da sociedade
capitalista. No entanto, a máquina de fiar algodão aparece, em
sua imediaticidade, como capital para o “sujeito cognoscente”,
mas não é imediatamente isso. Portanto, “a imediaticidade é
uma função da consciência teórica e não um dado ontológico”
(NETTO, 2002, p. 81). Desse modo, não é “propriedade natural” da
máquina de fiar ser capital2 . Torna-se evidente a necessidade de
compreender as mediações que formam os nexos estabelecidos
entre os complexos constitutivos da totalidade. Desde seu
primeiro “acerto de contas” com Hegel, nos manuscritos de
Kreuznach em 1843, o projeto marxiano de reconstrução teórica
do movimento constitutivo do ser social desvenda

este movimento que, expressando-se sob formas econômicas,


políticas e culturais, extravasa todas elas nas mediações que unificam
a totalidade concreta – sistema dinâmico e contraditório de relações
articuladas que se implicam e se explicam estruturalmente – e
constituem o conduto do seu devir (NETTO, 2002, p. 83).

Nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 (1987), Marx


trata das categorias econômicas como “categorias da produção
e da reprodução humana” (LUKÁCS, 2012, p. 284), construindo as
bases para uma “exposição ontológica do ser social sobre bases
materialistas” (LUKÁCS, 2012, p. 285). Torna a economia, desse
modo, o centro da ontologia marxiana; e, sendo as categorias
econômicas categorias específicas da produção e reprodução
humana, estas esferas da vida humana são problema central da
ontologia3 . R. Praia Vermelha
próxima página Rio de Janeiro
Lukács enfatiza que a ontologia marxiana parte da ideia da
v.31 n.2
articulação entre natureza e sociedade, contrapondo à tradicional p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
referências e notas social no pensamento de separação entre estas duas esferas da vida a consideração “de Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias modo concreto e materialista, de todas as relações da vida humana, ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder e antes de tudo, as relações histórico-sociais” (LUKÁCS, 2012, p. 285). 275 eISSN 1984-669X
Nesse sentido, o ser social pressupõe o ser da natureza inorgânica
e orgânica, o que significa que não existe ser social independente v.31 n.2 [2021]
início
do ser da natureza. O ser social é uma unidade entre os três
níveis do ser: o ser inorgânico, nível elementar e extremamente
página anterior complexo, que não dispõe da faculdade de reproduzir-se, mas
se transforma; o ser orgânico da natureza, que se desenvolve
a partir do ser inorgânico, mas distingue-se dele por ser mais
desenvolvido e mais complexo; o ser social, que é o nível mais
diferenciado e mais complexo do ser, ao mesmo tempo em que
supõe a existência dos dois níveis anteriores. Esta concepção do
ser social enquanto unidade – não identidade – entre esses três
níveis de desenvolvimento do ser sugere que não existe sociedade
sem natureza.
A passagem do nível inorgânico para o orgânico e também
do nível orgânico para o nível social se efetua por um “salto
ontológico”, um salto estrutural e qualitativo, sem que haja uma
determinação prévia ou qualquer forma de fatalismo. No entanto,
os três níveis do ser são irredutíveis, têm legalidades (tendências,
regularidades e movimento) próprias e intransferíveis4 . Portanto,
há uma especificidade estrutural no modo de ser de cada um
desses níveis, o que significa que não se pode transferir categorias
pertinentes a um nível para outro nível do ser. Assim, “a ontologia
marxiana do ser social exclui a transposição simplista, materialista
vulgar, das leis naturais para a sociedade” (LUKÁCS, 2012, p. 287).
O ser orgânico começa a desenvolver uma nova atividade que
supõe a transformação da natureza mediante instrumentos
produzidos por ele, isto é, pela mediação de elementos que
são extensão de seu corpo. Mas essa nova atividade não está
inscrita na composição genética do ser, ela é produzida social
e historicamente, reproduzindo-se mediante sua própria ação.
Nesse sentido, as “formas de objetividade do ser social se
desenvolvem à medida que a práxis social surge e se explicita
a partir do ser natural, tornando-se cada vez mais claramente
sociais” (LUKÁCS, 2012, p. 287) e avançando no “recuo da
barreira natural”5 (MARX apud LUKÁCS, 2012, p. 287) pelo R. Praia Vermelha
próxima página autodesenvolvimento do ser social. Este desenvolvimento Rio de Janeiro

tem como elemento fundamental o “pôr teleológico no v.31 n.2


p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser trabalho”, pela teleologia inerente à natureza da atividade
referências e notas social no pensamento de Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias
do trabalho, “transformação material da realidade material”
ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
(LUKÁCS, 2012, p. 287).
276 eISSN 1984-669X
Evidencia-se que, na ontologia marxiana, a relação estabelecida
entre natureza e sociedade está baseada na categoria do trabalho, v.31 n.2 [2021]
início
atividade que é condição e fundamento para a existência do
ser social. É no processo de produção dos meios materiais para
página anterior sua existência, determinado pelo estágio de desenvolvimento
das forças produtivas, que o ser humano produz sua própria
vida material e estabelece relações sociais com outros homens,
produzindo sua existência enquanto ser social. Há uma dupla
transformação:

Por um lado, o próprio ser humano que trabalha é transformado


por seu trabalho; ele atua sobre a natureza exterior e modifica, ao
mesmo tempo, sua própria natureza, desenvolve “as potências que
nela se encontram latentes” e sujeita as forças da natureza “a seu
próprio domínio”. Por outro lado, os objetos e as forças da natureza
são transformados em meios de trabalho, em objetos de trabalho, em
matérias-primas, etc. (LUKÁCS, 2012, p. 286).

Se o fundamento do ser social é o trabalho, o ser social não é só


constituído pelo trabalho. Em seu desenvolvimento, o trabalho
engendra e desenvolve uma determinada forma de sociabilidade
que é, por sua vez, fator de autodesenvolvimento do ser humano.
Isso significa que o ser social dispõe da faculdade da sociabilidade
e, sem perder sua estrutura natural, tem a capacidade de
incorporar o que é do outro, compartilhar, tem a capacidade de
objetivar-se, de projetar, antecipar e colocar objetivos, elaborar
uma prévia ideação do que quer alcançar com sua ação.
O ser social é criativo, elabora e põe em prática respostas; em face
de problemas, cria alternativas e avalia entre as alternativas a mais
adequada; é objetivo, isto é, se objetiva transformando a realidade
com que se defronta a partir das suas respostas. O trabalho,
como vimos, é a “objetivação fundante e necessária do ser social”
(NETTO; BRAZ, 2006, p. 43), “modelo das objetivações”, mas as
objetivações do ser social vão além do universo do trabalho.
As objetivações são, em termos gerais e concretos, práxis. Esta
categoria R. Praia Vermelha
próxima página Rio de Janeiro
permite apreender a riqueza do ser social desenvolvido: verifica-se, v.31 n.2
Cotidiano e ontologia do ser
na e pela práxis, como, para além das suas objetivações primárias, p. 270-291
referências e notas social no pensamento de constituídas pelo trabalho, o ser social se projeta e se realiza nas Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias
objetivações materiais e ideais da ciência, da filosofia, da arte, ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder 277 eISSN 1984-669X
construindo um mundo de produtos, obras e valores – um mundo
social, humano enfim, em que a espécie humana se converte v.31 n.2 [2021]
início
inteiramente em gênero humano (NETTO; BRAZ, 2006, p. 44).

O ser social externaliza o previamente idealizado, projetado,


página anterior
concebido, buscando transformar a realidade objetiva que o
rodeia, no sentido de responder às necessidades postas por
situações determinadas. Assim, pelas objetivações o momento da
“prévia-ideação” ganha concretude, materialidade, objetividade
quando o ser social é impelido a dar respostas e sanar
necessidades concretas. Destarte, é do solo da vida cotidiana
que brotam as objetivações do ser social; dito de outra forma,
as objetivações não podem ser construídas de forma isolada e
descoladas da vida cotidiana.

Ontologia da vida cotidiana:


o materialismo dialético e o “materialismo espontâneo”
Os elementos que fundamentam a teoria marxista da vida
cotidiana apresentados por Lukács são parte de sua elaboração
ontológico-sistemática e não podem ser descolados dela, sob
o perigo de, por um lado, encaminhar uma análise meramente
descritivo-monográfica dos aspectos da vida cotidiana e, por
outro, isolar tal esfera da vida social, destituindo-a de sua
condição de totalidade concreta, compreendendo-a apenas como
dimensão da contingência, do utilitarismo, do pragmatismo e
da alienação. Para Lukács, é no terreno da vida cotidiana que se
engendram as objetivações do ser social, o que significa dizer que
ele estabelece uma importante articulação entre a vida cotidiana
e a arte, a ciência, o pensamento mágico, a religião.
Destacando a importância de situar o lugar do “comportamento
estético na totalidade das atividades humanas”, Lukács afirma
que o primeiro a ser observado é a conduta do homem na vida
cotidiana, “terreno que, em que pese a sua importância central
para a compreensão dos modos de reação mais elevados e
complicados, segue ainda assim em grande parte sem estudar”
R. Praia Vermelha
próxima página
(1966, p. 11). Rio de Janeiro
Em 1971, prefaciando o livro de Agnes Heller, Lukács menciona o v.31 n.2
p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser caráter recente dos estudos sobre os elementos que constituem
referências e notas social no pensamento de Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias
a essência da vida cotidiana. Dentre eles, destaca a obra do
ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
marxista francês Henri Lefebvre e sua própria obra. Não obstante,
278 eISSN 1984-669X
quando sobre a problemática da vida cotidiana têm se debruçado
e dedicado, as Ciências Sociais a tratam como assunto secundário. v.31 n.2 [2021]
início
Em suas palavras,

As ciências sociais de nossos dias [...] desprezam [...] esta zona


página anterior
intermediária concreta, aquela na qual se encontra o nexo real,
considerando-a como um mundo de mera empiria que, enquanto
tal, não é digno de uma análise científica aprofundada destinada a
examinar as constituições internas (LUKÁCS, 1977, p. 9).

Lukács se contrapõe a essa tendência que considera a vida


cotidiana como “mera empiria”, e ressalta sua importância,
negando que se trate de temática periférica. Para ele, “quando
tentamos compreender ou fazer compreensível efetivamente
no sentido do método marxiano a totalidade dinâmica do
desenvolvimento social, nos encontramos com ele [o cotidiano]
cada vez que a razão chega realmente ao núcleo/nódulo da
questão” (LUKÁCS, 1977, p. 9). Desse modo, as análises orientadas
pelo método dialético, ao alcançarem o “núcleo/nódulo da
questão” do desenvolvimento do ser social, sempre recaem na
questão do cotidiano. Por esse motivo, ao tratar da peculiaridade
da dimensão do estético no desenvolvimento do ser social, Lukács
está firmando sua estética na vida cotidiana.
De acordo com Netto (1983), a preocupação com a estética – e
também com a ética – se insere no núcleo central problemático
da obra de Lukács. Evidentemente, não se pode dizer que não
há mudanças de enfoque, inflexões e giros na evolução da obra
lukacsiana, mas estes se configuraram como uma mudança na
continuidade, continuidade na mudança6 . O caso da sua obra
sobre a estética – que foi inicialmente pensada para ser composta
por três partes, sendo finalizada apenas a primeira – é exemplar
desse caminhar da obra lukacsiana. Para Netto (1983), é nela que
Lukács retoma os temas e os problemas que acompanharam sua
reflexão desde seus estudos e escritos da juventude.

Na Estética, ele recoloca as questões que frequentaram a sua obra


R. Praia Vermelha
próxima página anterior e posterior a 1918/1919: no texto reaparecem os problemas Rio de Janeiro
de que sempre se ocupou em face da arte e da literatura. Esta v.31 n.2
Cotidiano e ontologia do ser
continuidade não oculta as mudanças de enfoque: a Estética é original p. 270-291
referências e notas social no pensamento de pelo enquadramento a que submete mesmo as repetições que faz Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias
dos escritos precedentes. Na verdade, ela configura o último estágio ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder 279 eISSN 1984-669X
intelectual de Lukács – o repensamento de todas as suas ideias. E esta
é a intenção explícita do autor: a obra, a que seguir-se-ia uma Ética v.31 n.2 [2021]
início
que não foi escrita, seria um primeiro produto de uma síntese de toda
a sua evolução (NETTO, 1983, p. 77).
página anterior
Outro elemento a destacar é o caráter seminal da obra que ficou
conhecida como Estética I, não apenas no interior da própria obra
de seu autor, mas no interior do marxismo7 e, ainda, dentro da
tradição filosófica ocidental, pois trata-se da

mais ambiciosa tentativa de construir, em nome do marxismo, uma


estética sistemática, ou seja, uma teoria abrangente e articulada das
manifestações artísticas, teoria capaz de esclarecer a essencialidade
(a peculiaridade) da arte no conjunto das criações do homem (NETTO,
1983, p. 76, grifos do autor).

No entanto, é o terceiro aspecto que Netto levanta para tratar da


relevância dessa obra de Lukács que nos interessa de forma direta
neste trabalho. O autor destaca que, apesar de operar num plano
extremamente abstrato, o referencial que Lukács adota para tratar
da obra estética é a vida social cotidiana, chegando inclusive a
elaborar uma “teoria da cotidianidade” (NETTO, 1983, p. 77).
O ser social se desenvolve e complexifica através das formas
de objetivação; no âmbito da cotidianidade, o homem produz
objetivações, formas de produção e reprodução da vida social,
ao responder a situações concretas com as quais se depara,
comportando-se e construindo padrões de comportamento
de caráter prático. Num primeiro momento as objetivações
são indiferenciadas, mas, ao longo do complexo processo
de desenvolvimento do ser social, as objetivações vão se
diferenciando umas das outras, evidenciando com mais
nitidez suas peculiaridades.
O desenvolvimento do gênero humano, o “salto ontológico”, o
ir além da generalidade biológica dos homens, se objetiva, em
última instância, em formas mais elevadas como a ciência, a
filosofia, a arte, a ética, o trabalho. Assim, as atividades sociais do R. Praia Vermelha
próxima página homem são produto da evolução social do ser social, “do homem Rio de Janeiro
que se faz homem mediante seu trabalho” (LUKÁCS, 1966, p. 24). v.31 n.2
p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser Os produtos de tais objetivações realizam uma generalidade a um
referências e notas social no pensamento de Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias
nível cada vez mais alto, isto é, cada vez “menos imediatamente
ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
particular” (LUKÁCS, 1977).
280 eISSN 1984-669X
Para Lukács, a peculiaridade do estético pode ser compreendida
no confronto com a ciência, embora seja importante comparar v.31 n.2 [2021]
início
a dimensão da estética também com a religião e a ética
(LUKÁCS, 1966). Isto porque as duas – assim como o pensamento
página anterior cotidiano – são reflexos da realidade8 e resultam na produção de
conhecimento, embora em níveis, graus e modalidades distintos.
Por um lado, o conhecimento científico se refere à reprodução
ideal – no plano do pensamento – do movimento da realidade
objetiva, tal como se processa, buscando apreender, por meio
de conceitos, os nexos reais que constituem a realidade sem a
incidência “dos sentidos e significados oriundos do sujeito que
pesquisa” (NETTO, 1983, p. 78). Desse modo, o conhecimento
científico busca se conectar com a esfera da universalidade,
estabelecendo-se por processos desantropomorfizadores
pela busca da redução da influência dos seres humanos no
processo de pesquisa e produção de conhecimento. Por outro
lado, o conhecimento produzido pela arte tende à máxima
antropomorfização – igualmente a religião e o pensamento
mágico – pois reproduz, em imagens sensíveis e no âmbito
da particularidade, “o real não como ele é em si mesmo, mas
como é para nós” (NETTO, 1983, p. 78), para os homens, para
a humanidade. No caso da “grande arte”, o conhecimento
produzido teria para Lukács a função social de promover a
autoconsciência da humanidade.
Entende-se, pelo exposto, que a estética configura-se como
um modo peculiar de reflexão da realidade objetiva, uma forma
de expressar a realidade objetiva; é, portanto, fonte peculiar de
objetivação, espelhamento da realidade objetiva (LUKÁCS, 2012),
e, enquanto tal, a estética se diferencia e se distancia das outras
esferas da vida social, embora a elas esteja relacionada.
Seguindo os passos de Lukács, Heller (1977) concebe o “mundo
das objetivações” como constituído por um conjunto de diferentes
níveis de objetivações. O primeiro nível, a “esfera da objetivação
em si”, é constituído pela linguagem, o sistema de hábitos e o uso
de objetos. É a apropriação ativa deste nível ou esfera que produz R. Praia Vermelha
próxima página e reproduz os elementos que compõem a vida cotidiana, sendo Rio de Janeiro

um nível imprescindível para a constituição da sociabilidade. No v.31 n.2


p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser entanto, não é o único nível que tem importância para a vida
referências e notas social no pensamento de Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias
cotidiana, não é único que se refere e se conecta à vida cotidiana.
ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
Nesse sentido, “quanto menos alienada é a vida cotidiana,
281 eISSN 1984-669X
em maior grau se relaciona o homem, dentro também da
cotidianidade, com outros níveis – superiores – das objetivações”9 v.31 n.2 [2021]
início
(HELLER, 1977, p. 7). Reforçamos, portanto, que “a particularidade
do estético” está vinculada ao problema da vida cotidiana. Temos,
página anterior desse modo, e seguindo as indicações de Heller (1977) sobre
a importância das obras de Lukács acerca do estético, que o
pensamento cotidiano é a “fonte primária” da produção científica
e estética: o estético brota do cotidiano, sendo dele distinto.
No prólogo a sua “Estética I” ou “A Particularidade da Estética”,
Lukács é claro e afirma que

O comportamento cotidiano do homem é início e fim ao mesmo


tempo de toda atividade humana. Se representarmos a cotidianidade
como um grande rio, pode se dizer que dele se desprendam, em
formas superiores de recepção e reprodução da realidade, a ciência e
a arte, se diferenciam, se constituem de acordo com suas finalidades
específicas, alcançam sua forma pura nessa especificidade – que
nasce das necessidades da vida social – para logo depois, como
consequência de seus efeitos, de sua influência na vida dos homens,
desembocar de novo na corrente da vida cotidiana (1966, p. 11-12).

Ao retornarem “na corrente da vida cotidiana”, a ciência e a arte,


como objetivações privilegiadas ou superiores do ser social,
enriquecem a vida cotidiana, que as assimila para responder às
necessidades práticas, desenvolvendo novos aspectos dessas
formas de objetivação. No prefácio ao livro Sociologia de la Vida
Cotidiana de Agnes Heller (1977), Lukács afirma que a análise
científica da realidade não pode prescindir da mediação da
esfera do cotidiano, onde se constituem e operam “as inter-
relações e interações entre o mundo econômico-social e a vida
humana” (LUKÁCS, 1977, p. 9). Os homens, compreendidos em
sua particularidade e, portanto, em sua historicidade, se adaptam
“às formas sociais que suas forças produtivas” concretamente
engendram. É evidente que esta adaptação se refere aos “atos
particulares de homens particulares”, enquanto sujeitos inseridos
num “processo social conjunto concretamente determinado” R. Praia Vermelha
próxima página (LUKÁCS, 1977, p. 9-10). Rio de Janeiro
v.31 n.2
Evidencia-se, portanto, que o cotidiano – “espaço-tempo de p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
referências e notas social no pensamento de constituição, produção e reprodução do ser social” (NETTO, Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias 1987, p. 65), o nível em que a “reprodução social se realiza na ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder reprodução dos indivíduos” (NETTO, 1987, p. 65) – é, do ponto de 282 eISSN 1984-669X
vista ontológico, ineliminável, insuprimível. No entanto, importa
salientar que não há uma a-historicidade nesta concepção de vida v.31 n.2 [2021]
início
cotidiana, pois em cada sociedade sua estrutura é distinta, seus
ritmos e regularidades variam, assim como os comportamentos e
página anterior os modos de reação dos sujeitos coletivos. Existem, desse modo,
componentes ontológicos estruturais que constituem “todos
os cotidianos”. Estes aspectos que determinam e condicionam
todas as existências individuais, determinações básicas, portanto,
da vida cotidiana, são: a heterogeneidade, a imediaticidade e a
superficialidade extensiva.
O cotidiano é o “mundo da heterogeneidade”, no qual interagem
e se inter-relacionam todas as atividades que compõem o
conjunto das objetivações do ser social. Estas atividades,
evidentemente, estão organizadas de forma hierárquica e de
acordo com determinações histórico-sociais. De acordo com
Lukács, um dos fatores que acrescenta mais dificuldade para a
análise do cotidiano é, justamente, sua heterogeneidade.
A conduta que particulariza o cotidiano é a “conduta imediata”,
composta pelo espontaneismo e pelo automatismo necessários à
reprodução direta do indivíduo. No nível do cotidiano os homens
devem “dar respostas” imediatas, úteis e práticas a determinadas
situações e, desse modo, é no cotidiano que se estabelece
a relação direta entre pensamento e ação. Tendo em vista a
necessidade de responder de forma imediata a determinadas
situações que se apresentam no cotidiano e a heterogeneidade
das atividades que desempenha, o indivíduo apenas alcança
uma compreensão da totalidade como um somatório das partes,
sem considerar as relações entre as diferentes situações do
cotidiano. Desse modo, a superficialidade extensiva é o que rege
o pensamento cotidiano.
Essas três determinações fundamentais que compõem a
cotidianidade impõem ao ser social um modo específico de ser,
formas particulares de pensar e agir, expressando-se, em primeiro
lugar, num “materialismo espontâneo” (LUKÁCS, 1966, p. 46),
R. Praia Vermelha
próxima página
que afasta o sujeito da “objetividade material” (NETTO, 1987, p.
Rio de Janeiro
67) do que está posto no nível do cotidiano. Segundo Lukács, v.31 n.2
uma análise séria deve demonstrar que “[...] o homem da vida p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
referências e notas social no pensamento de cotidiana reage sempre aos objetos de seu entorno de um modo Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias espontaneamente materialista [...]” (LUKÁCS, 1966, p. 46). Isto é, tal ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder materialismo tem um caráter puramente espontâneo e limitado, 283 eISSN 1984-669X
pois dirige-se aos objetos imediatos da prática. A espontaneidade
além de ser traço marcante da vida e pensamento cotidianos, v.31 n.2 [2021]
início
coexiste perfeitamente com representações idealistas, religiosas,
mágicas, etc.10 (LUKÁCS, 1966). Outra questão a ser pontuada
página anterior é que o caminho evolutivo do materialismo espontâneo da
vida cotidiana ao materialismo filosófico somente pode abrir-
se quando o pensamento humano supera a conexão imediata
que existe entre o reflexo da realidade, sua reprodução pelo
pensamento e a prática, mediante a introdução de um conjunto
de mediações entre o pensamento e a prática.
As determinações fundamentais da vida cotidiana se expressam
também no pragmatismo, pela ausência de conhecimento
interno das situações para projetar ações de resposta a elas. Os
constrangimentos da vida cotidiana demandam dos indivíduos

[...] respostas funcionais às situações, que não demandam o seu


conhecimento interno, mas tão-somente a manipulação de variáveis
para a consecução de resultados eficazes – o que conta não é a
reprodução veraz do processo que leva a um desfecho pretendido,
porém o desfecho em si; no plano da cotidianidade, o critério da
utilidade confunde-se com o da verdade (NETTO, 1987, p. 67).

Os constrangimentos impostos pelas determinações


estruturantes da vida cotidiana – heterogeneidade, imediaticidade
e superficialidade extensiva – provocam a submissão da dimensão
humano-genérica à dimensão da singularidade; o indivíduo só se
percebe enquanto ser singular. A percepção da vida cotidiana pela
perspectiva da singularidade tem relação com o fato do indivíduo
ter que agir no plano da singularidade por meio da produção de
padrões de comportamentos a partir dos constrangimentos da
cotidianidade, o que dificulta o alcance da consciência humano-
genérica.
Entretanto, é na própria vida cotidiana que se apresentam as
condições para a suspensão da heterogeneidade, no sentido
do indivíduo reconhecer-se como “portador de consciência
R. Praia Vermelha
humano-genérica”, colocando-se na dimensão da particularidade
próxima página Rio de Janeiro
– mediação entre o singular e o universal. A superação da
v.31 n.2
singularidade – pela transcendência da vida cotidiana – só é p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
referências e notas social no pensamento de possível pelo desenvolvimento de objetivações superiores, menos Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias instrumentais e menos imediatas, capazes de “homogeneizar” ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder a cotidianidade. Tais objetivações “homogeneizadoras” têm 284 eISSN 1984-669X
suas configurações e determinações postas no real, na própria
vida cotidiana. Para Lukács, estas objetivações, “suspensões da v.31 n.2 [2021]
início
cotidianidade” (NETTO, 1987, p. 69), são o trabalho criador não
alienado, a arte e a ciência.
página anterior Deve-se apontar para o fato de que não se trata de uma
eliminação da cotidianidade, pois, como vimos, o cotidiano é
dimensão insuprimível da vida social. Trata-se, em verdade,
da sua suspensão dialética e não absoluta, um momento
no qual o indivíduo se percebe e assume como “humano-
genérico”, retornando modificado à cotidianidade, enriquecendo
e transformando a vida cotidiana. Os constrangimentos
da vida cotidiana não são suprimidos dessa esfera, mas o
indivíduo regressa, após a “suspensão momentânea”, com um
comportamento diferente frente a eles. É nesse “retorno” que a
cotidianidade pode transformar-se num espaço de ampliação
e enriquecimento do ser social; é nessa dialética cotidianidade/
suspensão da cotidianidade que se encaminha o desenvolvimento
e a complexificação do ser social. Destarte, “a vida cotidiana
permanece ineliminável e inultrapassável, mas o sujeito que a ela
regressa está modificado” (NETTO, 1987, p. 69-70).
Este é talvez o elemento mais interessante da teoria da vida
cotidiana que Lukács desenvolveu: a sua perspectiva de
totalidade aberta põe e repõe o elemento do contraditório na
análise da vida cotidiana; a própria superação da cotidianidade
– enquanto conjunto de determinações que constrangem o
ser social a reagir de forma imediata, superficial, utilitarista e
pragmática, produzindo e reproduzindo os processos de alienação
– não é externa à vida cotidiana, mas se encontra em potência no
“espaço-tempo” da produção e reprodução do ser social.

A vida cotidiana constitui a mediação objetivo-ontológica entre a


simples reprodução espontânea da existência física e as formas mais
altas da generalidade agora já consciente, precisamente porque nela
de forma ininterrupta as constelações mais heterogêneas fazem com
que os dois polos humanos das tendências apropriadas da realidade R. Praia Vermelha
próxima página social, a particularidade e a generalidade, atuem em sua inter-relação Rio de Janeiro
imediatamente dinâmica (LUKÁCS, 1977, p. 11-12). v.31 n.2
Cotidiano e ontologia do ser p. 270-291
referências e notas social no pensamento de Um estudo apropriado dessa esfera da vida social pode contribuir Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias para o estudo da dinâmica interna do desenvolvimento do ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder humano-genérico, pois torna compreensíveis os processos 285 eISSN 1984-669X
heterogêneos que de fato concedem vitalidade às realizações do
ser genérico. Tal estudo pode revelar que, no que aparenta ser v.31 n.2 [2021]
início
uma heterogeneidade caótica de atividades conduzidas de forma
imediata e superficial, estão presentes também as objetivações
página anterior elevadas do ser social. É justamente esta capacidade do ser
social de sair da pura imediaticidade e particularidade para se
estabelecer em níveis genéricos e mais elevados, realizando-se
em ser-para-si, que define a esfera ontológica da vida cotidiana.
Desse modo, é na heterogeneidade dos componentes da vida
cotidiana, que é heterogeneidade imediata, que se expressa a
“autêntica constituição ontológica da vida cotidiana” (LUKÁCS,
1977, p. 14).

Considerações Finais
A necessária articulação entre vida cotidiana e a ontologia do
ser social se revela na obra lukacsiana, que concebe a esfera do
cotidiano como a “gênese e devir do ser social concreto” (LUKÁCS,
1977, p. 14), tomando como base o método materialista dialético.
Pelos produtos de suas objetivações superiores, o homem
eleva-se da vida cotidiana, suspendendo-a momentaneamente;
nessa superação dialética dos constrangimentos cotidianos,
reconhece-se enquanto humano-genérico, e regressa à esfera
do cotidiano transformado para responder às necessidades
práticas. Nesse sentido, pelas objetivações mais elevadas, o ser
social é capaz de enriquecer constantemente o cotidiano. É nesse
sentido que se pode compreender a vida cotidiana para além da
ideia se ser a esfera da contingência, da alienação. O homem é,
simultaneamente, ser particular e ser genérico. Mas a suspensão
do cotidiano fortalece a dimensão do ser genérico.
Entretanto,

na idade avançada do monopólio, a organização capitalista da vida


social preenche todos os espaços e penetra todos os interstícios
da existência individual: a manipulação desborda a esfera da
produção, domina a circulação e o consumo e articula uma indução
R. Praia Vermelha
próxima página comportamental que permeia a totalidade da existência dos agentes Rio de Janeiro
sociais particulares – é o inteiro cotidiano dos indivíduos que se torna v.31 n.2
Cotidiano e ontologia do ser
administrado [...] (NETTO, 1987, p. 87). p. 270-291
referências e notas social no pensamento de Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias Desse modo, seja qual for o enfoque, a interpretação da ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder cotidianidade (dentro da tradição marxista), é reconhecido que 286 eISSN 1984-669X
o eixo “da vida cotidiana contemporânea, aquela própria do
capitalismo tardio, é a reificação das relações que o indivíduo v.31 n.2 [2021]
início
enquanto tal desenvolve” (NETTO, 1987, p 86). Resulta desse
aspecto a necessidade de avançar numa postura teórico-
página anterior metodológica que garanta uma crítica da vida cotidiana a partir
de uma análise que remeta “simultaneamente, à gênese e ao
desenvolvimento interno dos processos que estuda” (NETTO, 1983,
p. 79). Sendo assim, o “tratamento consequente e adequado da
cotidianidade” (NETTO, 1987, p. 75) é a análise histórico-sistemática
dos processos sociais (NETTO, 1987, p. 74) inaugurada com a obra
de Marx.
É necessário, numa perspectiva de crítica da vida cotidiana,
superar as bases do próprio pensamento cotidiano, que constrói
representações instrumentais para a interação do indivíduo
com o mundo (NETTO, 1987). As posturas teórico-metodológicas
positivistas e neopositivistas na análise da cotidianidade estão
fundadas na percepção da objetividade imediata dos processos
sociais, como se estabelecessem uma relação de identificação
com sua estrutura. Estas abordagens não negam ou questionam
o que se põe na imediaticidade, mas, ao contrário, este nível do
real é visto como a verificação da veracidade de suas inferências,
isto é, como se a “pseudo-concreticidade” (KOSIK, 1995), o mundo
das aparências, coincidisse com a realidade concreta. Este tipo de
tratamento do cotidiano, não o questiona ou procura formas de
superá-lo, apenas o repõe e o legitima.
A recusa da ontologia pelas correntes neopositivistas efetiva
uma negação da realidade objetiva e das condições reais
sobre as quais o ser social tem sua gênese e se desenvolve. O
viés epistemologista de tais tendências significa a anulação
da perspectiva de totalidade que opera pela fragmentação
dos processos sociais e a compartimentalização dos saberes.
Nessa perspectiva, a análise da vida cotidiana reduz-se
ao nível monográfico-descritivo, sem a consideração dos
processos constitutivos de tal dimensão da vida social e sem o
estabelecimento dos nexos e mediações entre os elementos que R. Praia Vermelha
próxima página compõem o que, apenas em aparência, consiste num “todo- Rio de Janeiro

caótico”. Desconsidera-se que no cotidiano, o homem, ser prático v.31 n.2


p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser e social, se produz a si mesmo através da práxis (objetivação
referências e notas social no pensamento de Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias
do ser social), produz as relações com outros homens e com a
ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
natureza.
287 eISSN 1984-669X
O necessário rompimento com a facticidade do real e sua
superação, por meio de um procedimento crítico-analítico v.31 n.2 [2021]
início
que recupere a dialética hegeliana e seja comprometido com
a objetividade do real, com sua verdade e essência, enquanto
página anterior totalidade concreta, evidencia o necessário comprometimento
com o método de Marx11 .
Numa das célebres passagens de seu livro História e Consciência
de Classe, Lukács confere ao método um lugar central no resgate
da ortodoxia marxista.

O marxismo ortodoxo não significa [...] uma adesão sem crítica aos
resultados da pesquisa de Marx, não significa uma “fé” numa ou
noutra tese, nem a exegese de um livro “sagrado”. A ortodoxia em
matéria de marxismo refere-se, pelo contrário, e exclusivamente, ao
método (LUKÁCS, 1974, p. 15).

Diante disso, é necessário resgatar o problema do método para


uma análise necessária da vida cotidiana; uma análise que supere
o nível da singularidade (nível elementar do cotidiano) no sentido
de questionar e negar os constrangimentos e as limitações
impostas aos sujeitos no “espaço-tempo de constituição,
produção e reprodução do ser social” (NETTO, 1987, p. 65). Dessa
forma, a centralidade que a ontologia do ser social assume na
reflexão lukacsiana sobre o cotidiano permite compreender as
potencialidades para a transcendência da singularidade contidas
na própria dimensão da vida cotidiana. Este seria um primeiro
passo para o enriquecimento da processualidade cotidiana.

Referências bibliográficas
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Penínusula, 1977.
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Paulo: Cortez, 2006.

Notas
1  Note-se que sujeito e objeto relacionam-se e determinam-se
um ao outro. O objeto existe externamente ao sujeito e, portanto,
sua existência não depende de que o sujeito o conheça; por outro
lado, no caso das ciências sociais, o sujeito que investiga encontra-
se determinado pelo seu objeto. Ao contrário do pensamento
positivista, a dialética do método de Marx não concebe o
conhecimento como uma relação de espelhamento, onde o
sujeito coloca-se passivamente em sua relação com o objeto para
apreendê-lo. [voltar]
2  “Uma máquina de fiar algodão é uma máquina para fiar
algodão. Apenas em determinadas relações ela se torna capital.
Arrancada a estas relações, ela é tão pouco capital como o ouro
em si e para si é dinheiro, ou como o açúcar é o preço do açúcar”.
O escrito que forma parte de uma série de artigos publicados na
Nova Gazeta Renana em 1849 encontra-se disponível em: <https://
www.marxists.org/portugues/marx/1849/04/05.htm#tn71>.[voltar]
3  Segundo a concepção burguesa, “a economia é mera ciência
R. Praia Vermelha
particular, na qual os chamados fenômenos econômicos puros
próxima página Rio de Janeiro
são isolados do conjunto das inter-relações do ser social como
v.31 n.2
totalidade” (LUKÁCS, 2012, p. 291). A concepção marxiana da p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
social no pensamento de economia, ao contrário, “parte sempre da totalidade do ser social Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias e volta a desembocar nessa totalidade” (LUKÁCS, 2012, p. 291). ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
[voltar]
289 eISSN 1984-669X
4  “Do ponto de vista ontológico, legalidade significa
simplesmente que, no interior de um complexo ou na relação v.31 n.2 [2021]
início
recíproca de dois ou mais complexos, a presença factual de
determinadas condições implica necessariamente, ainda que
página anterior apenas como tendência, determinadas consequências” (LUKÁCS,
2012, p. 363). [voltar]
5  Para os filósofos idealistas, o ser social é independente do
ser da natureza, como se o afastamento da base natural do
ser eliminasse o fator biológico. De fato, há um “constante
crescimento, quantitativo e qualitativo, dos componentes pura ou
predominantemente sociais” (LUKÁCS, 2012, p. 289); entretanto,
o ser social tem sua gênese e reprodução na base do ser da
natureza. [voltar]
6  Daí o equívoco ou, no mínimo, imprecisão das abordagens da
obra lukacsiana que a separam como escritas pelo “jovem Lukács”
e o “Lukács maduro”. [voltar]
7  “Nos encontramos, pois, na paradoxal situação de que há
e não há uma estética marxista, há que conquistá-la, cria-la
inclusive, mediante investigações autônomas e que, ao mesmo
tempo, o resultado não pode senão expor e fixar conceitualmente
algo que existe já segundo a ideia” (LUKÁCS, 1966, p. 16). Apesar
disso, Lukács entende que esse paradoxo se dissipa quando se
considera o problema à luz do método dialético-materialista: “[...]
embora não seja de um modo imediato nem visível a simples
vista, os métodos do materialismo dialético indicam com clareza
quais são os caminhos e como se deve recorrê-los se se quer levar
a realidade objetiva a conceito, em sua verdadeira objetividade, e
aprofundar na essência de um determinado território de acordo
com sua verdade. Somente realizando e mantendo, mediante a
própria pesquisa, esse método, a orientação desses caminhos, se
oferece a possibilidade de tropeçar com o procurado, de construir
corretamente a estética marxista ou, pelo menos, de aproximar-se
de sua essência verdadeira” (1966, p. 16). [voltar]
8  É importante mencionar que para Lukács o reflexo não é R. Praia Vermelha
próxima página mecânico ou fotográfico. Há, na verdade, uma “adaptação”, Rio de Janeiro
uma “seleção inconsciente no reflexo”, o que significa que v.31 n.2
Cotidiano e ontologia do ser contém um “componente subjetivo ineliminável” (LUKÁCS, 1966, p. 270-291
social no pensamento de Jul-Dez/2021
p. 22). Nesse sentido, entende-se que “os reflexos cientifico e
Lukács: reflexões introdutórias ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
estético da realidade objetiva são formas de reflexo que tem se
290 eISSN 1984-669X
constituído e diferenciado, cada vez mais finamente, no curso da
evolução histórica, e que tem na vida real seu fundamento e sua v.31 n.2 [2021]
início
consumação última. Sua peculiaridade se constitui precisamente
na direção que exige o cumprimento, cada vez mais preciso e
página anterior completo, de sua função social” (LUKÁCS, 1966, p. 30). [voltar]
9  Para Hegel, a vida cotidiana é concebida como esfera externa
à filosofia. Consequentemente, “o objeto da filosofia é a alienação
e o posterior retorno do espírito universal à história universal”
(HELLER, 1977, p. 5). Assim, “a vida dos homens adquire significado
na medida em que realizam contra sua vontade o espírito
universal” (HELLER, 1977, p. 5); nas palavras de Hegel: “o direito do
espírito universal está sobre todos os direitos particulares” (apud
HELLER, 1977, p. 6). Na perspectiva hegeliana, o homem particular
não pode ser objeto da filosofia da história, pois a história é o
movimento do espírito universal. [voltar]
10  “Também no homem atual se encontram com muita
frequência articulados fatos muito reais da vida - e compreendidos
de modo materialista espontâneo – com representações
supersticiosas, sem que o grotesco dessa vinculação chegue a ser
em absoluto consciente” (LUKÁCS, 1966, p. 49). [voltar]
11  “O arcaico sentido literal da palavra ‘método’,
indissoluvelmente enlaçado com a ideia do caminho do
conhecimento, contém, em efeito, a exigência, posta ao
pensamento, de percorrer determinados caminhos para alcançar
determinados resultados. A direção desses caminhos está contida,
com evidência indubitável, na totalidade da imagem do mundo
projetada pelos clássicos do marxismo, especialmente pelo fato
de que os resultados presentes se nos mostram como metas
daqueles caminhos. Assim pois, embora não seja de um modo
imediato e visível a simples olho nu, os métodos do materialismo
dialético indicam com claridade quais são os caminhos e como
deve-se reconhecê-los se se deseja levar a realidade objetiva
a conceito, em sua verdadeira objetividade, e aprofundar-se
na essência de um determinado território de acordo com sua
R. Praia Vermelha
verdade. Somente realizando e mantendo, mediante a própria
Rio de Janeiro
investigação, esse método, a orientação desses caminhos, se v.31 n.2
oferece a possibilidade de tropeçar com o procurado, de construir p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
social no pensamento de corretamente a estética marxismo ou, pelo menos, de aproximar- Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias se da sua essência verdadeira” (LUKÁCS, 1966, p. 16). [voltar] ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder 291 eISSN 1984-669X
Este número da Revista Praia Vermelha
foi diagramado em setembro de 2021
pelo Setor de Publicações e Coleta de
Dados da Escola de Serviço Social da
UFRJ, para difusão online via Portal de
Revistas da UFRJ. Foi utilizada a fonte
Montserrat (Medium 13/17,6pt) em
página de 1366x768pt (1:1,77).

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