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2 ISSN 1414-9184
eISSN 1984-669X
Jul-Dez/2021 Temas Livres
ISSN 1414-9184
eISSN 1984-669X
Temas Livres
v.31 n.2
Jul-Dez/2021
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referências e notas
Recebido em 03/06/2020
Revista Praia Vermelha Rio de Janeiro v. 31 n. 2 p. 270-291 Jul-Dez/2021
Aprovado em 14/09/2020
Introdução
v.31 n.2 [2021]
início Toda atividade humana tem como ponto de partida e ponto
de chegada a dimensão da vida cotidiana. O comportamento
cotidiano do homem é o começo e o fim de toda ação
página anterior humana, de toda criação do homem. Este é o fundamento
da teoria da cotidianidade formulada pelo marxista húngaro
Georg Lukács (1885-1971).
O conjunto de questões que constituem a essência da vida
cotidiana, afirma Lukács, não tem tido uma longa pré-história
(LUKÁCS, 1977, p.9), sendo tema desprezado pelas Ciências Sociais
por ser concebido como “mundo de mera empiria” (LUKÁCS,
1977, p. 9).
Para o marxismo vulgar, com forte viés positivista, a vida cotidiana
não é um objeto digno de estudo; não cabe nas esquemáticas
e fatorialistas formas de conceber a vida social destas vertentes
mais assimiladas a elaborações dogmáticas de análise social. Na
sua insistente e dura luta contra os reducionismos e vulgarizações
da obra marxiana, Lukács empreende a atividade intelectual de
“reconstrução reflexiva” da ontologia marxiana como forma de
resgatar sua centralidade para a restituição da riqueza categorial
da teoria social de Marx. É justamente desse lugar de reflexão
que Lukács analisa o “comportamento estético” e seu ponto de
partida e lugar de chegada: a vida cotidiana. Nesse sentido, “a
ontologia se eleva do solo do pensamento cotidiano e nunca
mais poderá tornar-se eficaz caso não seja capaz de nele voltar a
aterrar – mesmo que de forma muito simplificada, vulgarizada e
desfigurada” (LUKÁCS, 2012, p. 30).
O objetivo deste trabalho é aportar contribuições para pensar
a dimensão da vida cotidiana no pensamento lukacsiano em
sua relação com a ontologia do ser social, buscando construir,
embora num nível preliminar e introdutório, uma reflexão que
permita a compreensão de que “a tomada da realidade de que
a cotidianidade contemporânea é um nível constitutivo supõe a
reconstrução reflexiva da sua ontologia, da totalidade concreta R. Praia Vermelha
próxima página própria da sociedade burguesa madura” (NETTO, 1987, p. 89). É Rio de Janeiro
necessário destacar que não é possível analisar as reflexões de v.31 n.2
Cotidiano e ontologia do ser Lukács acerca do cotidiano sob a perspectiva ontológica sem p. 270-291
referências e notas social no pensamento de Jul-Dez/2021
considerar o método de Marx, motivo pelo qual a questão do
Lukács: reflexões introdutórias ISSN 1414-9184
Mónica Brun Beveder
método materialista dialético será retomada.
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Embora não de forma declarada, o sentido ontológico das análises
de Lukács já comparece em seus escritos sobre a “particularidade v.31 n.2 [2021]
início
da estética” que, não por acaso, se iniciam com uma reflexão
sobre o cotidiano. O desenvolvimento do ser social para além
página anterior da generalidade biológica realiza-se por meio de objetivações
como a ciência, a filosofia, a arte, a ética, o trabalho criador.
Todas as atividades sociais do ser humano são produto do
desenvolvimento do ser social, “do homem que se faz homem
mediante seu trabalho” (LUKÁCS, 1966, p. 24).
Ao tratar do lugar do “comportamento estético na totalidade
das atividades humanas”, Lukács afirma que o primeiro ponto a
ser observado é a conduta do ser humano na vida cotidiana. Por
essa razão, na obra lukacsiana, a espinha dorsal de sua teoria da
cotidianidade se encontra em seus estudos sobre as questões
estéticas, inseparáveis, por sua vez, da perspectiva ontológica.
Nesta, a estética é uma das atividades mais elevadas de
objetivação do ser social, que, tendo como ponto de partida a vida
cotidiana, a ela retorna com a potencialidade de transformá-la
num espaço de ampliação e enriquecimento do próprio ser social.
Considerações Finais
A necessária articulação entre vida cotidiana e a ontologia do
ser social se revela na obra lukacsiana, que concebe a esfera do
cotidiano como a “gênese e devir do ser social concreto” (LUKÁCS,
1977, p. 14), tomando como base o método materialista dialético.
Pelos produtos de suas objetivações superiores, o homem
eleva-se da vida cotidiana, suspendendo-a momentaneamente;
nessa superação dialética dos constrangimentos cotidianos,
reconhece-se enquanto humano-genérico, e regressa à esfera
do cotidiano transformado para responder às necessidades
práticas. Nesse sentido, pelas objetivações mais elevadas, o ser
social é capaz de enriquecer constantemente o cotidiano. É nesse
sentido que se pode compreender a vida cotidiana para além da
ideia se ser a esfera da contingência, da alienação. O homem é,
simultaneamente, ser particular e ser genérico. Mas a suspensão
do cotidiano fortalece a dimensão do ser genérico.
Entretanto,
O marxismo ortodoxo não significa [...] uma adesão sem crítica aos
resultados da pesquisa de Marx, não significa uma “fé” numa ou
noutra tese, nem a exegese de um livro “sagrado”. A ortodoxia em
matéria de marxismo refere-se, pelo contrário, e exclusivamente, ao
método (LUKÁCS, 1974, p. 15).
Referências bibliográficas
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Paulo: Cortez, 2006.
Notas
1 Note-se que sujeito e objeto relacionam-se e determinam-se
um ao outro. O objeto existe externamente ao sujeito e, portanto,
sua existência não depende de que o sujeito o conheça; por outro
lado, no caso das ciências sociais, o sujeito que investiga encontra-
se determinado pelo seu objeto. Ao contrário do pensamento
positivista, a dialética do método de Marx não concebe o
conhecimento como uma relação de espelhamento, onde o
sujeito coloca-se passivamente em sua relação com o objeto para
apreendê-lo. [voltar]
2 “Uma máquina de fiar algodão é uma máquina para fiar
algodão. Apenas em determinadas relações ela se torna capital.
Arrancada a estas relações, ela é tão pouco capital como o ouro
em si e para si é dinheiro, ou como o açúcar é o preço do açúcar”.
O escrito que forma parte de uma série de artigos publicados na
Nova Gazeta Renana em 1849 encontra-se disponível em: <https://
www.marxists.org/portugues/marx/1849/04/05.htm#tn71>.[voltar]
3 Segundo a concepção burguesa, “a economia é mera ciência
R. Praia Vermelha
particular, na qual os chamados fenômenos econômicos puros
próxima página Rio de Janeiro
são isolados do conjunto das inter-relações do ser social como
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totalidade” (LUKÁCS, 2012, p. 291). A concepção marxiana da p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
social no pensamento de economia, ao contrário, “parte sempre da totalidade do ser social Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias e volta a desembocar nessa totalidade” (LUKÁCS, 2012, p. 291). ISSN 1414-9184
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4 “Do ponto de vista ontológico, legalidade significa
simplesmente que, no interior de um complexo ou na relação v.31 n.2 [2021]
início
recíproca de dois ou mais complexos, a presença factual de
determinadas condições implica necessariamente, ainda que
página anterior apenas como tendência, determinadas consequências” (LUKÁCS,
2012, p. 363). [voltar]
5 Para os filósofos idealistas, o ser social é independente do
ser da natureza, como se o afastamento da base natural do
ser eliminasse o fator biológico. De fato, há um “constante
crescimento, quantitativo e qualitativo, dos componentes pura ou
predominantemente sociais” (LUKÁCS, 2012, p. 289); entretanto,
o ser social tem sua gênese e reprodução na base do ser da
natureza. [voltar]
6 Daí o equívoco ou, no mínimo, imprecisão das abordagens da
obra lukacsiana que a separam como escritas pelo “jovem Lukács”
e o “Lukács maduro”. [voltar]
7 “Nos encontramos, pois, na paradoxal situação de que há
e não há uma estética marxista, há que conquistá-la, cria-la
inclusive, mediante investigações autônomas e que, ao mesmo
tempo, o resultado não pode senão expor e fixar conceitualmente
algo que existe já segundo a ideia” (LUKÁCS, 1966, p. 16). Apesar
disso, Lukács entende que esse paradoxo se dissipa quando se
considera o problema à luz do método dialético-materialista: “[...]
embora não seja de um modo imediato nem visível a simples
vista, os métodos do materialismo dialético indicam com clareza
quais são os caminhos e como se deve recorrê-los se se quer levar
a realidade objetiva a conceito, em sua verdadeira objetividade, e
aprofundar na essência de um determinado território de acordo
com sua verdade. Somente realizando e mantendo, mediante a
própria pesquisa, esse método, a orientação desses caminhos, se
oferece a possibilidade de tropeçar com o procurado, de construir
corretamente a estética marxista ou, pelo menos, de aproximar-se
de sua essência verdadeira” (1966, p. 16). [voltar]
8 É importante mencionar que para Lukács o reflexo não é R. Praia Vermelha
próxima página mecânico ou fotográfico. Há, na verdade, uma “adaptação”, Rio de Janeiro
uma “seleção inconsciente no reflexo”, o que significa que v.31 n.2
Cotidiano e ontologia do ser contém um “componente subjetivo ineliminável” (LUKÁCS, 1966, p. 270-291
social no pensamento de Jul-Dez/2021
p. 22). Nesse sentido, entende-se que “os reflexos cientifico e
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estético da realidade objetiva são formas de reflexo que tem se
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constituído e diferenciado, cada vez mais finamente, no curso da
evolução histórica, e que tem na vida real seu fundamento e sua v.31 n.2 [2021]
início
consumação última. Sua peculiaridade se constitui precisamente
na direção que exige o cumprimento, cada vez mais preciso e
página anterior completo, de sua função social” (LUKÁCS, 1966, p. 30). [voltar]
9 Para Hegel, a vida cotidiana é concebida como esfera externa
à filosofia. Consequentemente, “o objeto da filosofia é a alienação
e o posterior retorno do espírito universal à história universal”
(HELLER, 1977, p. 5). Assim, “a vida dos homens adquire significado
na medida em que realizam contra sua vontade o espírito
universal” (HELLER, 1977, p. 5); nas palavras de Hegel: “o direito do
espírito universal está sobre todos os direitos particulares” (apud
HELLER, 1977, p. 6). Na perspectiva hegeliana, o homem particular
não pode ser objeto da filosofia da história, pois a história é o
movimento do espírito universal. [voltar]
10 “Também no homem atual se encontram com muita
frequência articulados fatos muito reais da vida - e compreendidos
de modo materialista espontâneo – com representações
supersticiosas, sem que o grotesco dessa vinculação chegue a ser
em absoluto consciente” (LUKÁCS, 1966, p. 49). [voltar]
11 “O arcaico sentido literal da palavra ‘método’,
indissoluvelmente enlaçado com a ideia do caminho do
conhecimento, contém, em efeito, a exigência, posta ao
pensamento, de percorrer determinados caminhos para alcançar
determinados resultados. A direção desses caminhos está contida,
com evidência indubitável, na totalidade da imagem do mundo
projetada pelos clássicos do marxismo, especialmente pelo fato
de que os resultados presentes se nos mostram como metas
daqueles caminhos. Assim pois, embora não seja de um modo
imediato e visível a simples olho nu, os métodos do materialismo
dialético indicam com claridade quais são os caminhos e como
deve-se reconhecê-los se se deseja levar a realidade objetiva
a conceito, em sua verdadeira objetividade, e aprofundar-se
na essência de um determinado território de acordo com sua
R. Praia Vermelha
verdade. Somente realizando e mantendo, mediante a própria
Rio de Janeiro
investigação, esse método, a orientação desses caminhos, se v.31 n.2
oferece a possibilidade de tropeçar com o procurado, de construir p. 270-291
Cotidiano e ontologia do ser
social no pensamento de corretamente a estética marxismo ou, pelo menos, de aproximar- Jul-Dez/2021
Lukács: reflexões introdutórias se da sua essência verdadeira” (LUKÁCS, 1966, p. 16). [voltar] ISSN 1414-9184
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