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Retrato do Irã1

Betty Mindlin

U quando dadelavradezdediasumadeescritora
m relato viagem, segundo prometem, a obtenção do passa-
porte. Vamos nos inteirando, nas páginas
com pleno domínio de sua arte, erudita e bem-humoradas de Nahal, do “jeitinho”
ficcionista, pode transformar-se no qua- iraniano, combinado a estratagemas de
dro de um país e de seu clima político, toda sorte para burlar regras e valorizar
cultural e social. É o caso de Passeport à supostos serviços úteis. O médico legista
l´iranienne [Passaporte iraniano] (classi- tem influência junto a militares por disse-
ficado como romance na folha de rosto), car cadáveres e talvez fazer tráfico de ór-
uma descrição da passagem da autora gãos – mas após muitas peripécias, sua in-
Nahal Tajadod por Teerã, onde nasceu tervenção mostra ser inútil. Nahal perde
e viveu até os 17 anos. Acompanhada da horas e dias no trânsito iraniano, pior que
filhinha pequena, Kiara, cujo pai é o ci- o de São Paulo ou da cidade do México,
neasta Jean-Claude Carrière, ela vai visi- em providências kafkianas sem resultado.
tar a terra natal, rever parentes e amigos Essas aventuras permitem-lhe, porém,
e tentar renovar seu passaporte iraniano – contar-nos como é a vida dos iranianos.
ela é também cidadã francesa. Percebe-se Para tirar a fotografia do passaporte, en-
que vai com frequência, tem até mesmo trar nas repartições públicas, ou mesmo
um apartamento na cidade. circular nas ruas, as mulheres são obriga-
Desde as primeiras páginas do livro – das a esconder qualquer mecha de cabe-
dividido em capítulos correspondentes lo, saltos altos, unhas pintadas, batons,
aos dias da semana, um sábado até a ter- trajes ocidentais ou considerados impu-
ça-feira da segunda semana –, o quotidia- dicos. Disfarçam-se sob vestes largas ou
no e os afazeres aparentemente sem im- chador. Funcionárias examinam quem
portância ou só pessoais vão compondo entra nos prédios do governo, vasculham
o conjunto das características de um país, roupas e bolsas, buscando o que é proi-
de relações humanas muito particulares, bido. As mulheres não podem dar a mão
de uma sociedade e cultura. Surge, como ou olhar os homens, nem sequer amigos
pano de fundo, um esboço do regime au- ou parentes com quem tinham a maior
toritário e fundamentalista, e das fortes intimidade. Patrulhas de costumes pren-
reações em direção à liberdade que ela vai dem os desobedientes, jovens em grande
observando em quem encontra. maioria, multam-nos, e, se não pagam,
Tudo gira em torno da tarefa insana submetem-nos a castigos corporais. Bebi-
de documentação, com a burocracia e os das alcoólicas, vinho, nem pensar. Todos
estratagemas necessários para fugir à es- se tratam de você, jamais de senhor ou se-
pera interminável. Ao acaso, ela recorre a nhora. Depois da Revolução de 1979, as
fotógrafos vizinhos, que se oferecem para mulheres só são chamadas de mãe, o que
resolver todos os seus problemas, desde irrita Nahal sobremaneira. No entanto,
estofar cadeiras e instalar antena parabó- todos infringem as regras. As funcioná-
lica, ilegal no Irã, até apresentá-la a um rias oferecem comida a uma Nahal des-
médico legista capaz de tornar mais ágil, falecendo de fome, admiram (e ganham)

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o batom encontrado na bolsa, reclamam der ou entrar em choque com os costu-
da rigidez que “eles” lhes impõem. Os mes do povo que desejava conhecer. Exibi
taxistas a tratam por senhora com o res- minhas pernas em Teerã, Ispahan, Shiraz,
peito de tempos antigos, seus visitantes Persépolis, sem jamais ser submetida a ne-
fotógrafos ou outros lhe dão a mão. As nhuma inconveniência ou insulto. Uma
mulheres passam férias em Dubai, paraí- vez, ao sair sozinha pelas ruas de Teerã,
so sonhado das iranianas burguesas, exi- uma pequena multidão de meninos de
bindo biquínis nas praias e usando deco- dez a doze anos cercou-me, deitou-se no
tes. Nos restaurantes, veem-se casais de chão, e olhou para cima, para o que devia
namorados camuflando carícias, cafés de lhes parecer o céu, encoberto apenas pela
lésbicas, roupas colantes e mocinhas ma- pouca metragem de pano azul marinho.
gras usando perfumes e bolsas ocidentais. Eu achei graça e nos tratamos com genti-
Há uma solidariedade tácita e generaliza- leza recíproca. Com as mulheres, vestidas
da, inventiva, contra a mão de ferro das de negro, ainda com o rosto descoberto,
normas opressivas. Contrabandistas ob- eu me sentia inteiramente à vontade, e
têm vinho e outras bebidas, assim como “conversávamos” como velhas cúmplices
caviar a preços baixos. Bebe-se muito nas e amigas, com uma palavra mágica, Pelé,
embaixadas, fabrica-se um (péssimo) vi- identificando meu país e origem, abre-te
nho doméstico servido em garrafas de sésamo da geografia desconhecida.)
Coca-Cola. Antes, diz Nahal, os irania- O refinamento dessa cultura milenar,
nos bebiam na rua e rezavam em casa; muito anterior ao islamismo e aos árabes
agora exibem a religião nas ruas e bebem – que também criaram um denso univer-
escondidos em suas salas. A revista Vo- so artístico e literário –, é aparente nos
gue e outras de modas são prestigiadas, pequenos eventos diários. Há o hábito do
e a empregada de Nahal morre de ciúme “tarof”, de recusar gentilezas ou ofereci-
quando ela oferece alguns exemplares aos mento de comida e presentes, espécie de
fotógrafos cuja irmã é costureira. Tudo pechincha às avessas, que retarda em ritual
é possível, debaixo do pano. Sentimos a a aceitação de favores, como o pagamen-
alegria de mudanças inevitáveis, que vi- to de um jantar, um táxi, ou mesmo uma
rão do anseio de liberdade da população transação comercial. As iguarias elabora-
como um todo. E do desejo de consumo das, sucos e doces coloridos, mesmo em
(nem sempre um belo modelo). lugares populares, dão água na boca. As
(Antes de 1979, estrangeiros visitantes fórmulas de polidez são poéticas, como
conseguiam manter o comportamento “que vossa alma saboreie a doçura dessa
e roupas que eram seus, como eu mes- sobremesa...”, e assim por diante. A hos-
ma pude observar. Diante das condições pitalidade e o calor humano dissolvem a
atuais, é extraordinário pensar que viajei impessoalidade de uma grande metrópo-
por todo o Irã usando uma minissaia e le, lembrando um Brasil arcaico.
uma camiseta decotada – hoje seria presa E sobretudo a apreciação da poesia
na primeira esquina, se estivesse na Teerã e da literatura clássica, oral e escrita, em
do livro de Nahal. Era 1970, época do toda parte e a toda hora. Matando a fome
xá Pahlevi. Muito jovem, magrinha, in- em um boteco, depois de um dia de pe-
gênua, enfrentava o calor insuportável do regrinação infrutífera pela burocracia,
mês de julho, sem me dar conta de ofen- Nahal e um amigo, tradutor de Balzac

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dido. Trata-se de um admirador da arte
francesa e de Jean-Claude; apoiou mui-
tos grandes artistas famosos em viagem
ao Irã.
Ao encanto do espetáculo de mario-
netes, soma-se uma coincidência mágica:
a casa que visitaram é vizinha àquela onde
a tia que a acompanha e a avó de Nahal
moraram há quarenta anos. A tia conser-
va uma chave da casa que nunca mais vira,
e abre agora o cadeado do portão...
Ao cenário do Irã, Nahal acrescenta,
em pinceladas esparsas, muito sobre sua
vida. É filha de escritores estudiosos ilus-
trados em muitos campos. Seu pai tradu-
ziu para o persa o Fihrist de Al-Nadim,
TAJADOD, Tajadod. Passeport à l´iranienne. um célebre catálogo árabe do século X.
Paris: JC Lattès, 2007. A mãe, de origem curda, pintava, can-
tava, escrevia. Tinha terras na região de
Mâzandarân, onde seus ancestrais instala-
para o farsi, ouvem um contador recitar ram-se no século XVI, a convite dos reis
o começo do Shahnameh ou O livro dos safavidas. Nahal evoca um belo amor da
Reis, epopeia mítica da Pérsia antiga, de adolescência, aos 14 anos, uma verdadeira
Ferdowsi, poeta do século X, exaltando poesia. Também em seu romance sobre
os feitos de uma heroína guerreira. Todos a vida de Rumi, Nahal faz uma seduto-
conhecem e sabem de cor. ra referência à sua vida pessoal, contando
Quando Nahal já achava que demo- que tentou durante dez anos ter filhos, e
raria meses para conseguir o passaporte, o nascimento de Kiara atrasou a publica-
antevendo o marido ansioso ir sem ela ao ção do livro, mas foi, como num verso de
Festival de Cannes, e temendo não che- seu personagem, “sangue transformado
gar a tempo para sua própria conferên- em leite”. Sua biografia romanceada de
cia na França sobre a relação entre bu- Rumi, escrita na primeira pessoa, na voz
dismo e sufismo, uma jornada mágica é masculina, é de uma extrema delicadeza
a reviravolta. Ela vai com a tia e a filhinha ao tratar as formas amorosas diversas e a
visitar Fayaz, o mais famoso marionetis- experiência mística, e muita habilidade ao
ta do Irã, para convidá-lo, em nome de recriar o clima histórico e o personagem –
Jean-Claude, para o festival de teatro de um livro cuja tradução para o português é
Montpellier. Nessa tarde feérica, em que indispensável (Tajadod, 2004).
os personagens dos clássicos são encena- Nahal tem uma relação indireta com
dos pelos bonecos, o marionetista oferece o Brasil – seu marido Jean-Claude é o
a influência de um amigo presente, oficial roteirista de Brincando nos campos do se-
ligado às autoridades, que no dia seguin- nhor, filme de Hector Babenco, e conhe-
te, com manobras sutis e clandestinas, ce bem a Amazônia e a cultura brasileira.
consegue em minutos o passaporte per- A artista Federica Matta, que morou no

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Brasil e fala português, filha do grande
surrealista chileno Roberto Matta, é ami-
ga e colaboradora do casal, e publicou
com Nahal, entre outras coisas, um livro
encantador, Sur les pas de Rûmi, para o
qual fez belíssimas ilustrações (Matta &
Tajadod, 2006).
Quais as mudanças profundas no Irã
atual? Como esse povo fascinante conse-
guirá transformar-se? Por enquanto, apro-
veitemos todas as pontes para aprofundar
o conhecimento dessa atraente tradição
da amada terra de Nahal, até agora mais
difundida entre nós por meio do cinema.

Nota
1 Este artigo foi escrito antes das eleições
no Irã em 2009.

Referências
TAJADOD, N. Rumi Le brûlé. Paris: JC
Lattès, 2004.
MATTA, F.; TAJADOD, N. Sur les pas de
Rûmi. Pref. Jean-Claude Carrière. Paris:
Albin Michel, 2006.

Betty Mindlin é doutora em antropologia


e autora de Diários da floresta (Terceiro
Nome, 2006), e de sete livros em coauto-
ria com narradores indígenas.
@ – arampia@uol.com.br

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