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HISTÓRIA DA ÁSIA

Emiliano Unzer
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Informações sobre a obra: www.amazon.com/dp/1521900205

© Amazon Inc. 2019


Primeira impressão em 2019

Catalogação na Publicação (CIP)


Ficha Catalográfica feita pelo autor
_____________________________________________________________________
U141h Unzer, Emiliano, 1977 –
História da Ásia / Columbia & San Bernadino, EUA: Amazon, 2019.
739 p.: il.; 23 cm
Inclui bibliografia.
ISBN-10: 1521900205
ISBN-13: 978-1521900208
1. Ásia – História. I. Título.
CDU: 950

Copyright © 2019 Emiliano Unzer


Todos os direitos reservados.
ISBN-10: 1521900205
ISBN-13: 978-1521900208
Capa: Artista feminina com uma tambura, Índia da Dinastia Mogol. Século 18.
"Saget, Steine, mir an, o sprecht, ihr hohen Paläste!
Straßen, redet ein Wort! Genius, regst du dich nicht?"
(Falai-me ó pedras, oh falai, vós altos palácios!
Ruas, dizei uma palavra! Gênio, não te moves?)
(tradução nossa)
- Johann Wolfgang von Goethe (1749 - 1832)
Römische Elegien ("Elegias Romanas") (1789), Primeira Elegia.
Introdução
Índia e Sul Asiático
Índia e Sul da Ásia (Do Rio Indo à Satavana – 3º Milênio a.C. - 1º Milênio a.C.)
Índia e Sul da Ásia (Dos Pandias aos Chalukyas – Século 5 a.C. – Século 10 d.C.)
Índia e Sul da Ásia (De Mahmud de Ghazni à Vijayanagara – Século 11 - 16)
Índia e Sul da Ásia (De Babur a Baji Rao – Meados do Século 16 - 18)
Índia e Sul da Ásia (De Dupleix a Cornwallis - Séculos 17 e 18)
Índia e Sul da Ásia (De Wellesley a Curzon – Século 19 ao Início do 20)
Índia e Sul da Ásia (De Gokhale a Gandhi – Início do Século 20 - 1947)
Índia e Sul da Ásia (De Nehru a Modi – 1947 – Início do Século 21)
China e Região
China (50 mil a.C. – século 7 d.C.)
Tibete (século 7)
China (618 – 907)
Tibete (Século 8)
China (907 – 1279)
Tibete (Séculos 9 - 13)
China (1279 - 1895)
Tibete (Séculos 14 - 19)
Os Turbulentos Anos Chineses (1895 - 1949)
Tibete (Início do Século 20 – 1949)
A China Vermelha (1949 – Início do Século 21)
Tibete (1949 – Início do Século 21)
Japão e Coreia
Japão (Das Origens ao Período Heian - c. 10000 a.C. – 1185 d.C.)
Coreia (Dos Primórdios ao Século 6 d.C.)
Coreia (Século 7 ao 8)
Japão (De Kamakura à Tokugawa Ieyasu - 1185 - 1600)
Coreia (Século 9 - 13)
Coreia (Século 14 ao 16)
Japão (Do Período Edo à Era Meiji - 1603 - 1912)
Coreia (Séculos 17 e 18)
Coreia (Século 19)
Japão (Da Era Taishô à Heisei - 1912 – Início do Século 21)
Coreia (1900 - 1945)
Coreia (1945 - 1953)
Coreia (1953 – Início do Século 21)
Sudeste Asiático
Pyu e Pagan (Século 8 d.C. – 13 d.C.)
Funan, Chenla e Khmer (2º Milênio a.C. – Século 14 d.C.)
Van Lang, Nam Viet, Dai Viet e Champa (1º Milênio a.C. – Século 15 d.C.)
Srivijaya, Majapahit e Malaca (1º Milênio a.C. – Século 15 d.C.)
Ava, Lanna e as Dinastias Toungou e Konbaung (Século 13 d.C. – 19)
Lanna, Sukhothai, Ayutthaya e Sião (Século 13 d.C. – 19)
Tonquim, Annam e Conchichina (Século 15 – 19)
Java, Ilhas do Sudeste Asiático e Filipinas (Século 15 – 19)
Sudeste Asiático (Século 19 – Início do Século 20)
Sudeste Asiático (Meados do Século 20)
Sudeste Asiático – Parte Continental (Segunda Metade do Século 20)
Sudeste Asiático – Parte Insular (Segunda Metade do Século 20)
Referências

APRESENTAÇÃO

Este livro foi fruto de anos de pesquisas e viagens feitas pela Ásia. A motivação adveio da insatisfação de
livros e publicações de uma área significativa para a história mundial. O tempo dedicado à pesquisa foi incentivada
pelo departamento de história da Universidade Federal do Espírito Santo quando, em 2014, me foi designado à área
de história da Ásia a ser concretizada em forma de um livro introdutório e depois em formas de aulas letivas pelo
sistema de ensino a distância para todo o estado.
A faísca da iniciativa diante do desafio de uma obra maior na área veio após assistir as estimulantes aulas do
professor Vinay Lal, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), momento em que passei a entender o
cosmopolitismo da história indiana que permitiu com que várias comunidades e religiões convivessem por séculos,
concretizando em inúmeras e admiráveis obras pelo subconsciente indiano. Disso depois veio a publicação minha
em 2016 de “História da Índia”.
Um ano depois, pude perceber a insatisfação de meus alunos de livros em português sobre a história do Japão,
algo que resolvi novamente retomar a tinta a tentar mudar tal realidade. Diante disso, veio a obra “História do Japão:
uma introdução” em fins de 2016.
Em meados de 2017, me defrontei com um livro inspirador sobre a história tibetana, a de Sam Van Schaik que
me dispôs a tentar desvendar e escrever sobre o Tibete. Algo que me ajudou depois a complementar meu
entendimento sobre o budismo e a história chinesa.
Sempre fui viajante apaixonado [1] - desde quando morei na Europa com minha família aos 8 anos de idade e de
quando peguei a mochila e me aventurei pelas terras bolivianas e peruanas com meu amigo de infância, Fábio
Augusto, aos 16 anos de idade. E, quando no sudeste da Ásia, não pude ficar indiferente à monumentalidade dos
templos khmers no Camboja, perto de Siem Reap, dos monumentos de Borobudur e Prambanan em Java e dos
encantadores templos budistas nas terras tailandesas. A isso se juntou minha fascinação depois de ter pessoalmente
ido ao mausoléu de Ho Chi Minh, o grande herói dos vietnamitas, em Hanói em 2017. E disso nasceu outro livro,
“Reis, Templos e Mares: uma história do sudeste asiático”, algo que deveria complementar minhas incursões sobre a
história asiática. No início do ano seguinte, em 2018, resolvi por bem escrever sobre a história coreana – que
resultou no livro “A Montanha e o Urso: uma história da Coreia” - muito a pedido de alunos que manifestaram
insatisfação de leituras sobre o assunto.
Em último momento, depois de ter viajado pelo Irã por um mês, decidi começar a rascunhar a respeito de tão
admirável história. Mas, nesse meio tempo, resolvi retomar minhas anotações sobre a China e finalizei algo que era
crucial para a conclusão de uma obra mais abrangente sobre a Ásia. Eis que, depois de anos de busca por livros,
leituras e anotações, de viagens e registros, concretizou-se essa obra que apresento ao público da língua portuguesa.
As pesquisas e congressos sobre a história asiática ainda permanecem tímidos no Brasil. Apesar disso, há
notáveis iniciativas que tentam mudar tal realidade. Desde 2017, há a realização anual do Simpósio de História
Oriental organizado pelos professores André Bueno da Uerj, Dulceli Tonet Estacheski e Everton Carlos Crema da
Unespar (Universidade Estadual do Paraná). Cabe a eles, primeiramente, meus agradecimentos por instigar pesquisa
numa área inovadora e desafiadora no meio acadêmico brasileiro. Outras importantes universidades brasileiras já
estão começando a ter laboratórios de pesquisa na área, e isso certamente é um alento para os asianistas.
No campo pessoal, o esforço desmedido diante de tal obra me foi possível graças aos anos de amor e apoio de
minha esposa, Míriam, de meu “filho canino”, Tito, da inspiração de meus pais aos livros e curiosidade pelo mundo,
Weber e Mercedes, e de amigos que me acompanharam em algumas viagens pela Ásia, Cadu, Rafael e Diego. A eles
devo uma parte substancial dessa obra. E não posso esquecer de quem, antes de tudo, a obra dirige-se: àqueles
alunos, leitores e pesquisadores que, como eu, são fascinados com a Ásia.

OBSERVAÇÕES

Os termos e nomes em estrangeiro são um permanente desafio para o escritor. Quando possível, decidi por
manter nomes convencionais, tais como Pequim, Cingapura, Tóquio, Jacarta, Bangkok, apesar de algumas vezes
indicar o nome original, exceção feita ao termo Ayutthaya pois assim se convencionou na maioria das publicações
da área. Nomes próprios, em geral, nos países asiáticos vem o nome de família primeiro e depois o de batismo e
assim mantive o mesmo para não causar estranhamento tal como Kim Il Sung (e não Il Sung Kim) e Toyotomi
Hideyoshi (e não Hideyoshi Toyotomi). Com relação a conceitos e nomenclaturas busquei indicar o termo na língua
original para referências mais precisas para leitores e pesquisadores.
Há vários trechos de citações diretas que tive que traduzir por conta própria e assim consta entre parênteses
“tradução nossa”, especialmente em trechos literários e frases com significado histórico.
Ademais, sempre que me foi possível, busquei incluir mapas, figuras e tabelas para melhor compreensão do
leitor, nem sempre habituados aos eventos da história asiática. E certamente faz com que a obra fique mais
interessante.
A transliteração de nomes das línguas asiáticas que não usam o alfabeto latino é sempre um desafio. No chinês,
tanto tradicional quanto o simplificado, decidi por usar o sistema pinyin. Do japonês, utilizei o amplamente usado
estilo Hepburn. Do alfabeto coreano, o sistema McCune-Reischauer, e do tailandês aquele que foi promulgado pelo
Real Instituto da Tailândia, o Sistema Geral Real de Transcrição de Tailandês (RTGS). Para nossa sorte no Brasil e
no Ocidente, os alfabetos malaio e indonésio, com origens bastante próximas, foram latinizados, assim como o
vietnamita.
Por fim, empenhei-me em sempre indicar as fontes no pé da página para servir de referência para leitores
interessados, pesquisadores e estudantes caso queiram se aprofundar mais no tema especificado.
Introdução

Nesse início do século 21, três das seis maiores economias do mundo estão na Ásia, sendo a segunda e terceira a
China e o Japão. A Índia não fica muito atrás, em sexto lugar, com projeções promissoras de ultrapassar a economia
britânica em breve [2]. Isso representa uma mudança surpreendente quando comparado à situação de um século atrás,
quando as economias ocidentais dominavam economicamente, militarmente e politicamente boa parte do globo
terrestre. Até meados do século 20, a Ásia permanecia em boa parte pré-industrial (com exceção do Japão) e com
sociedades alarmantemente empobrecidas – ainda mais depois das devastações da Segunda Guerra Mundial – e
desiguais. Desde a década de 1960, contudo, o quadro começou a se modificar. O Japão retomou seu
desenvolvimento pré-guerra e testemunhou um dos maiores crescimentos econômicos do século 20. Pouco depois, a
ilha de Taiwan, Coreia do Sul, Hong Kong e Cingapura se juntaram à ascensão nipônica. E a partir de fins da década
de 1970 e 1980, o colosso chinês e indiano, e as economias do sudeste asiático completaram o quadro de uma região
do planeta que se tornou dínamo da economia global deste século.
Mas como se deram tais mudanças? A perspectiva histórica nos revela de que a China e Índia, até fins do século
18, eram as maiores economias do mundo antes das transformações da Revolução Industrial na Europa. O luxo
asiático sempre esteve na mentalidade ocidental, e isso decorreu da pujança e de variedade de produtos que a Ásia
oferecia ao mundo. Foi Vasco da Gama, afinal, que foi para a Costa de Malabar na Índia em fins do século 15 e não
o contrário. O império mogol na Índia que Aurangzeb comandava abarcava quase um quarto da economia mundial
em fins do século 18. A China do imperador Qianlong podia se gabar de que não tinha interesse em produtos
ofertados pela indústria britânica na embaixada de Lord MacCartney em 1793. Tendemos a considerar a tecnologia
– da pólvora e da imprensa – como crucial para a dominação ocidental que assolou o continente asiático no século
19, mas não foram esses inventados na China muitos antes dos europeus?
Foram as narrativas de Marco Polo que eletrizaram os europeus a respeito do fantástico e da riqueza
imensurável. E assim, com o passar das gerações, ainda associamos a Ásia com o enigmático, exótico, luxuoso e
decadente. Velhos hábitos são difíceis de mudar, mas nada parece obstruir nossa compreensão mais do que isso. Nos
estudos asiáticos toda obra corre o risco de exotizar o Oriente, como nos avisou Edward Said no seu clássico estudo
[3]
, algo como um complexo de Marco Polo em considerar os costumes e valores asiáticos como muito diferentes ou
até mesmo antípodas aos costumes ocidentais, resultado seja do nosso maravilhamento, seja pela tentação de tornar
algo mais exótico e diferente às nossas habituais percepções.
Não somente o tamanho das economias asiáticas nos assombram. Estimados seis em cada dez pessoas nos dias
atuais são asiáticas. A maioria é chinesa ou indiana que juntas totalizam dois bilhões e meio de população. Em
comparação, os EUA têm pouco mais de 300 milhões e cerca de 700 milhões em toda a Europa. Apesar disso tudo,
o público leitor ocidental permanece em grande parte desinformado sobre a história da Ásia, em especial ao período
anterior à era imperialista europeia, não entendendo nem mesmo informações fundamentais decorrentes da falta de
interesse e de narrativas tendenciosas sobre os asiáticos.
Mas quem são os asiáticos? Isso nos remete a esse amplo conceito: Ásia. A Ásia não pode ser considerada como
uma entidade homogênea, mas é muito mais uma região de culturas e povos diferentes, falando centenas de línguas,
de tradições e culturas diferenciadas que, com o passar dos séculos, entraram em contato e resultaram em novas
diversidades. Isso em grande parte ocorreu antes da chegada dos europeus em fins do século 15. O vigor do
comércio interasiático no Oceano Índico, Estreito de Malaca, Mar de Java, arquipélagos do sudeste asiático e Mar da
China é testemunha disso. Como se explica se assim não fosse o poder do império marítimo de Srivijaya e de
Majapahit? E dos tecidos indianos tão apreciados há séculos entre os javaneses? Como se explica a descoberta de
um navio árabe do século 9 nas águas indonésias da ilha de Belitung com milhares de peças de cerâmica chinesa de
Changsha? E das dimensões das frotas do almirante Zheng He do século 15 que fez com que os navios de espanhóis
e portugueses parecessem diminutos? Mas seria igualmente tolo ignorarmos os ocidentais na história asiática. Como
entenderíamos a Índia do século 19 sem os eventos depois da Batalha de Plassey (1757), a China depois do trauma
das duas Guerras do Ópio (1839-42 e 1856-60), a abertura forçada dos portos japoneses depois das ameaças feitas
por Comodoro Perry (1853) e das vitórias dos vietnamitas sobre os franceses em Dien Bien Phu (1954), os japoneses
na Segunda Guerra Mundial e da retirada dos EUA de Saigon (1975)?
Diante de sua vastidão, a Ásia deverá ser entendida a partir de suas regiões a se evitar excesso de generalizações
e abstrações rasas. Para tanto, o continente foi dividido em quatro macrorregiões: Índia e sul asiático; China e
região; Japão e Coreia e; sudeste asiático. E foi delimitado os territórios asiáticos ao leste a partir das terras do
Afeganistão, apesar dessa ter sido rota crucial de comerciantes e peregrinos budistas na chamada Rota da Seda e ser
local de uma das escolas mais notáveis nos primeiros séculos de nossa era da arte greco-bactriana, a de Gandara. O
mundo islâmico do Irã (antiga Pérsia) e Ásia Central foram desconsiderados nessa obra, apesar da sua protagonismo
essencial na história asiática em geral. Pois é impensável refletir sobre o subcontinente indiano e sudeste asiático
sem a marcante presença muçulmana que dominou o comércio e as rotas de navegação muito antes dos europeus.
Não foram contra eles que os portugueses lutaram e alegaram ter expulsado para todo sempre quando tomaram a
cidade portuária de Malaca em agosto de 1511? Ainda nos resta imaginar como teria sido a história se as tropas
chinesas tivessem sido vitoriosas na Batalha de Talas (751) que expôs os exércitos muçulmanos do califado dos
abássidas aliados aos turcos contra a China da Dinastia Tang.
Em termos temporais, esta obra foi organizada por uma sequência cronológica com ênfase nos personagens,
locais e eventos de destaque na história asiática. Foi evitado, na medida do possível, o uso de marcos históricos
ocidentais como o período da antiguidade, medieval e moderna, visando enfatizar uma temporalidade própria
asiática, apesar de sempre estar ligada aos eventos históricos mundiais. Este livro pretende narrar as complexidades,
convivências, ambiguidades, tolerâncias e conflitos da diversidade política, étnica, linguística, religiosa e cultural
asiática.
Mas vamos para as partes constitutivas dessa obra.
Comecemos pela primeira parte, a Índia e o subcontinente indiano. Como definir a Índia? Em termos históricos,
a Índia tem origem no Vale do Rio Indo hoje em território paquistanês. Em termos culturais e religiosos, a Índia foi
berço das crenças do hinduísmo, budismo, jainismo, siquismo entre outros, e abrigou os zoroastrianos advindos das
terras persas a oeste, assim como foi local onde prosperou o Islã desde o século 7 através do Gujarate e Sind, no
noroeste indiano. Em termos geográficos o país desde 1947 delimita-se ao norte com o Paquistão, Bangladesh,
Butão, Nepal e a China. Com a ex-Birmânia, hoje o Mianmar, ao leste. Além da proximidade com a ilha de Sri
Lanka ao sul. Ou seria a Índia também a sua numerosa comunidade de diáspora pelo mundo estimada em mais de 30
milhões? Seria a Índia simplesmente hindu que perfaz quase 80% de sua população? Se assim fosse, seriam os
hindus apenas os ortodoxos bramanistas, ou também os xivaístas, vixnuístas e outras correntes populares? E as
grandes comunidades hindus no Nepal, nas ilhas Maurício, em Bali e em outras partes do mundo? Seriam elas a
Índia também? E os aproximadamente 14% da população indiana que se declaram muçulmanos, em torno de 172
milhões de pessoas, segunda maior comunidade muçulmana do mundo, não seriam eles também indianos? E a
comunidade budista, sikh (ou sique), jainista e cristã [4] na Índia? Em termos linguísticos, a Índia abriga mais de 20
línguas oficiais, mais de 1500 dialetos e grupos étnicos. Quem desses seriam mais indianos que os outros?
O conceito de Índia e região sul asiático, portanto, é mais complexo do que parece ser à primeira vista. Para
entendermos essa estonteante e caleidoscópica região, devemos buscar sua história que poderá nos fornecer alguma
perspectiva de como a Índia se formou, se consolidou, influenciou e assimilou suas políticas, identidades, valores e
culturas. Enfim, a Índia é talvez muito mais um conceito civilizacional do que uma mera expressão definida apenas
em termos geográficos, religiosos e étnicos.
Em certo sentido, os estrangeiros fazem parte da história da Índia. A passagem terrestre mais acessível à Índia
fica localizada a noroeste, pela porção mais ocidental da cadeia dos Himalaias, o Hindu Kush, no norte afegão,
através do chamado Passo Khyber, passagem pelos quais muitos nômades das estepes asiáticas chegaram e
invadiram as férteis planícies do vale do rio Indo, do Ganges e Yamuna. Foi por onde o Islã chegou de maneira
predominante às terras indianas a partir dos afegãos e dos infames saques de Mahmud de Ghazni (971 - 1030) ao
templo hindu xivaísta de Somnath em Gujarate em 1024. E depois foram sucedidos pelas sucessivas invasões de
povos centro-asiáticos como os timúridas sob Tamerlão (1336 - 1405), e dos turcos (ou túrquicos) e mogóis, a partir
de meados do século 16. Os mogóis estabeleceram-se no norte indiano após a vitória sobre a dinastia turca (ou
túrquica) dos Lodis em Délhi (na batalha de Panipat, em 1526) e fundaram um império unificado sob comando
político e militar muçulmano - e que deixaram como heranças inconfundíveis o mausoléu do Taj Mahal (1632 -
1653) e o conjunto do Forte Vermelho em Agra (1648) – até a predominância dos britânicos a partir de meados do
século 18 em diante.
A história do subcontinente indiano defronta-se com certa novidade na chegada dos europeus a partir de fins do
século 15 na Costa de Malabar a sudoeste . Esse elemento inovador, de acordo com Pannikar [5], foi o uso armado
das embarcações oceânicas. O Oceano Índico sempre foi cenário de um intenso comércio internacional entre árabes,
malaio-indonésios, chineses, e mercadores indianos gujaratis (de Gujarate) e sindis (do Sind). As atividades entre
esses eram feitas, no geral, de maneira pacífica visando zelar pela continuidade da prática comercial até a chegada
das caravelas portuguesas, embarcações fortemente armadas e com uma atitude bélica irrestrita, com ameaças de
sequestro e tomada de cargas valiosas no mar, prática antes pouco concebidas e consideradas desleais à boa prática
do comércio. Posteriormente, a predominância europeia sobre a Índia se tornará evidente com a atuação política e
militar de agentes britânicos da Companhia Britânica das Índias Orientais, apesar das amplas resistências indianas
organizadas por líderes como Baji Rao (1700 – 1740) e Tipu Sultan (1750 - 1799). Em 1857, após massivas
rebeliões indianas, as autoridades de Londres e Calcutá decidiram rever e administrar diretamente a Índia como
colônia da Coroa Britânica. Nessas propostas de reformas administrativas, surgiram dentro do criado corpo de
funcionários públicos, o Serviço Público Indiano (Indian Civil Service), as primeiras lideranças indianas que depois
inspirou o movimento pela independência no século 20.
Na segunda parte defrontamo-nos com outro centro de civilização que irá moldar e influenciar toda a região do
leste asiático. A China. Desde os primórdios do vale do Rio Amarelo, a cultura chinesa se consolidou nos seus
próprios termos ideológicos e culturais – o rigor da escrita chinesa, os ensinamentos de Confúcio acerca da ordem e
preceitos cívicos e políticos, os do taoísmo que enfatiza a relação do homem com a natureza e o cosmos, e depois o
budismo que reflete acerca da responsabilidade individual diante da sociedade, do universo e do tempo. Essa
herança irá perpassar gerações de chineses que, com o tempo, irá ser incorporada por nações estrangeiras, muitas
dessas das estepes ao norte e oeste da China, quando migraram ou invadiram as planícies chinesas.
Como no subcontinente indiano, os estrangeiros também sempre fizeram parte da história chinesa, e seria
diferente em outras regiões? Povos de nômades de origens turcas, khitans, mongóis e manchus todos foram
elementos fundamentais para consolidar e unificar a China que pela tradição passou a se referir como o Império do
Meio. O que nos indica como os próprios chineses, com o tempo, acostumados a serem referências civilizacionais
com as nações no leste asiático, passaram a considerar os estados estrangeiros ou como tributários, ou como
distantes e bárbaros. Pois os chineses detinham tudo o que lhes interessava e exportava - por séculos por rotas
terrestres ao oeste pela chamada Rota da Seda e por rotas marítimas pelo sudeste asiático à mercê dos temidos
piratas malaios, japoneses e filipinos – somente para aqueles que lhes interessavam. As relações do Império do Meio
com o exterior, portanto, sempre foi algo intrigante. Como relacionar-se com os outros sendo que esses deviam
tributos ao que era o centro da ordem asiática, ou melhor, local onde o Filho do Céu, o imperador, representante
terrestre da ordem cósmica, residia? Foi, pois, nessa perspectiva que os ocidentais passaram a romper com a tradição
chinesa e, ao longo do século 19, a humilhar o império chinês com uma série de agressões e tratados desiguais.
Hoje, nos arredores de Pequim, permanecem as ruínas do antigo Palácio Imperial de Verão (Yuanmingyuan) como
símbolo do bombardeio e pilhagem que as tropas ocidentais fizeram em 1860. O trauma desses eventos resultará em
décadas de desordem e fragmentação e somente foi reunificada num regime comunista próprio a partir de 1949. Ao
fim do século 20, a China apresentou-se como a região mais dinâmica do globo terrestre e isso certamente irá marcar
a história mundial do século 21.
Visando contrabalançar o sinocentrismo, o estudo da região também analisou a região tibetana e arredores a
servir de contraponto da história chinesa. Interessante notar as relações entre as regiões, ora de dominação – como
quando os tibetanos invadem a China e ocupam sua capital, Chang’an em 763, ora de relações entre iguais ou de
opressão como houve no Tibete em 1959. E como o budismo tibetano se formou, com suas múltiplas origens, que
chegou a determinar eventos históricos marcantes dos povos mongóis e da dinastia imperial Yuan da China nos
séculos 13 e 14.
Na terceira parte iremos nos concentrar um pouco mais para o leste asiático, no Japão e na Coreia.
O Japão há muito é motivo de imaginação e fascinação do mundo ocidental. Nascido nas suas origens envoltos
em mitos das disputas entre os deuses, Amaterasu e Susano-o, e partir dos yamatos sob a liderança de Jimmu, as
ilhas japonesas traçaram uma trajetória histórica toda própria que aguçou-lhe o senso de singularidade e, por vezes,
de isolamento.
A história japonesa nos revela seu dinamismo e singularidade. Sua formação adveio de migrações de diversos
povos, de malaio-polinésios e depois de coreanos que compuseram sua base étnica. Das cerâmicas do período
Jomon (c. 10 000 a.C. – c. 300 a. C) e das evidências do cultivo de arroz que possibilitou o assentamento sedentários
no arquipélago no período Yayoi (c. 300 a.C. – c. 250 d.C.), o Japão irá gradativamente se consolidar como reino
unificado a partir das ofensivas do clã dos yamatos do sul da ilha de Honshu nos primeiros séculos de nossa era. Os
enormes túmulos do período Kofun (c. 250 d.C. – 710 d.C.) servem até os dias atuais como símbolo do poderio dos
yamatos sobre todo o arquipélago japonês. A introdução do budismo e da cultura chinesa irá adicionar novos
elementos que resultará num período igualmente turbulento e efervescente – foi nesse período que Murasaki Shikibu
compôs uma das maiores obras literárias do mundo, o Genji Monogatari (“Conto de Genji”) – assim como o foi o
período Nara (710 – 794) e de Heian (794 – 987).
No Japão do período Kamakura (1185 – 1333) e de Muromachi (1333 – 1568), houve intensas batalhas internas
que fragmentaram a unidade política do país, resultando em várias unidades locais leais a um senhor latifundiário
(daimiô) que passará a enfatizar a defesa e proteção de suas propriedades contra os outros rivais. Em fins do século
16, líderes militares emergem desse cenário de conflitos, como Toyotomi Hideyoshi (1536 - 1598) que depois
alimentou ambição de invadir a península coreana na chamada Guerra Imjin (1592-1598), Oda Nobunaga (1534 -
1582) e Ieyasu Tokugawa (1542 - 1616). Este último irá depois se firmar como o comandante geral do Japão, com o
endosso do imperador, e se tornará o xogum com seus descendentes a sucedê-lo até meados do século 19. Esse
domínio inconteste de Ieyasu somente teve início depois da sua vitória na batalha de Sekigahara de 21 de outubro de
1600. Anos depois, em 1638 em Shimabara, foi eliminado outro possível foco de instabilidade do reino japonês
entre rebeldes e cristãos convertidos de Nagasaki ao custo de milhares de vida. Após isso, o Japão dos Tokugawas
passou a aprovar éditos que efetivamente isolaram o reino do restante do mundo até o século 19.
Em 1853, uma frota de navios sob comando do americano Matthew Perry apareceu na baía de Edo (atual
Tóquio) e exigiu a abertura dos portos japoneses. Um ano depois, foram assinadas as cláusulas do Tratado de
Kanagawa. Conflitos entre os leais aos Tokugawas e aqueles que desejaram ter maior voz na política japonesa,
muito desses, comerciantes da região meridional, resultaram numa guerra civil que irá perdurar até 1868, quando o
jovem imperador, Mutsuhito é declarado como Imperador Iluminado, Meiji. Em fins do século 19 até a década de
1920, o Japão irá atravessar um notável período de modernização ao mesmo tempo voltando-se para conservar suas
tradições. No plano externo, ecoando as agressões imperialistas dos ocidentais na Ásia e insatisfeitos com o que não
lhe foi concedido nas negociações de paz após a Primeira Guerra Mundial, os japoneses começaram a agir cada vez
mais de maneira expansionista sobre o leste asiático depois de terem derrotado os chineses em 1895 sobre a ilha de
Taiwan. Os eventos da Segunda Guerra Mundial deram aos expansionistas japoneses a oportunidade de dominar,
brevemente, quase toda a área do leste e sudeste asiático até sofrerem ampla contraofensiva dos americanos. Após o
lançamento de duas bombas atômicas, em agosto de 1945, sobre Hiroshima e Nagasaki, o Japão assinou sua
rendição e entrou para um novo período de desenvolvimento e compromisso pacifista.
Na Coreia, a história não foi menos dramática. Desde os primórdios, vários grupos étnicos compuseram a
população da península coreana, e que moldaram a cultura e identidade da região. Manchurianos, japoneses,
chineses, além da diversidade de coreanos foram gradativamente unificados e dominados num reino a partir do
século 10 com Goryeo. Depois das invasões mongóis em meados do século 13, o reino coreano passará a se
fundamentar em novas bases, com a Dinastia Joseon (ou Choson). O século 19 testemunhará a crescente ameaça de
japoneses, chineses e russos nas suas fronteiras. No século seguinte, a península conhecerá a dominação colonial
japonesa até o fim da Segunda Guerra Mundial. E, depois da devastação da Guerra da Coreia, em 1953, a península
será fraturada em duas.
A Coreia, em termos geográficos, ocupa uma península no leste asiático. A região é rodeada por mares em seus
três lados: o Mar do Leste, o do Sul e do Oeste. Na maioria dos mapas, o Mar do Oeste, ou Ocidental é chamado de
Mar Amarelo, e o do Leste, de Mar do Japão. Isso, naturalmente, foi sempre contestado pelos coreanos, pois os
termos remetem a outras referências nacionais estranhas aos coreanos. Esses mares vizinhos e a ligação terrestre ao
norte desempenharam papéis cruciais na história coreana. Foi por esses caminhos que houve fluxo migratório,
comercial e cultural, geralmente mais vindo das terras ao oeste para o leste. Mais para o leste, as ligações para o
arquipélago japonês se deram por navegações, o que não elimina por completo a ligação marítima entre a China e a
Coreia, como houve na aliança em 660 entre o reino coreano de Silla com a China da Dinastia Tang. No outro
sentido, os japoneses invadiram a península coreana na década de 1590 por meio naval. E episódios marcantes
navais se deram em 1894 e também em 1905 na guerra entre japoneses, russos e chineses nos mares da região. Em
1951, durante a Guerra da Coreia, o General MacArthur desembarcou no porto de Inchon para atacar as forças
norte-coreanas. O mar sempre foi elemento marcante para a história coreana.
Foi também pelos mares que houve a prosperidade dos reinos coreanos. Silla, durante dos séculos 8 e 9, dominou
o comércio os mares da região e o comércio com os chineses e japoneses. Foi pelo comércio que as migrações
coreanas ocorreram, como o de comerciantes que se estabeleceram na foz do Rio Yangzi, na China. A partir da
Dinastia Joseon, que se comprometeu a manter a estrita e isolada lealdade à Dinastia Ming na China no século 15, a
Coreia começou a rever sua inserção internacional. A partir da segunda metade do século 20, a Coreia na sua porção
meridional, uma vez livre da dominação japonesa, novamente retomou sua vocação marítima e internacional. E a
situação no norte coreano consolidou-se no duro jogo dos interesses soviéticos e, depois, numa política
autossuficiente.
Em termos étnicos e linguísticos, os antecessores dos coreanos vieram de migrações do nordeste asiático e norte
da China. Mas a principal evidência aponta para origens culturais e da língua coreana não de chineses, mas de
falantes da família linguística altaica, tais como os turcomanos, mongóis, tungus, manchus e japoneses. Uma família
completamente distinta das línguas chinesas. Outras evidências apontam que as origens coreanas com relação aos
mitos e símbolos de totens de ursos e tigres remetem a povos altaicos das estepes asiáticas. O culto desses símbolos
e mitos conjugam-se com a prática siberiana do xamanismo e de objetos de valores simbólicos usados em rituais
como a espada e o espelho, algo que se pode constatar também na história japonesa.
A influência chinesa, aparentemente, veio em momento posterior com a introdução da escrita, dos caracteres
chineses ou sinogramas, além dos ritos e ideais cosmológicos confucianos e budistas. Embora a origem da língua
coreana seja diferente da chinesa, a Coreia adaptou os sinogramas para suas palavras e gramática. Essa forma
chinesa modificada, chamada de idu, foi reflexo da prestigiosa influência que a elite coreana incorporou ao entrar
em contato com a cultura sínica. A unificação da língua coreana em definitivo se deu com a expansão do reino de
Silla, que conquistou os reinos de Paekche e Koguryo no século 7.
A escrita coreana acabou sendo elaborada a partir do sistema chamado de hangul, elaborado sob o mando do rei
Sejong da Dinastia Joseon, no século 15. A motivação para a criação de uma escrita e alfabeto próprio foi permitir
aos coreanos lerem e entenderem as obras chinesas. Mas a língua chinesa e seus caracteres permaneceram por
séculos como sinal de prestígio e cultura no meio coreano. Somente no século 19 foi promovido ampla campanha na
Coreia para a publicação de jornais e livros a serem escritos em hangul. No período da dominação japonesa no
início do século 20, o hangul e a língua falada coreana foram gradativamente banidos nas escolas e locais públicos.
Após a Guerra da Coreia, a escrita coreana voltou a ser valorizada, mas dada a divisão da península após 1953, cada
estado coreano passou a ter vocábulos e características diferenciadas ao longo das décadas de separação. Para tanto,
a Coreia do Norte refere sua escrita não como hangul, mas como chosongul. Apesar disso, as diferenças não são
ainda tão marcantes, e não há dificuldade de comunicação entre as duas partes coreanas. A fratura da Coreia em
duas permanece como um marco traumático dos efeitos da Guerra Fria sobre uma península que foi mais integrada
no seu passado do que separada.
Na quarta e última parte nosso foco vai um pouco mais para o sul, para a região do sudeste asiático. Como situar
e conceituar o sudeste asiático? Seria toda a região, evidente nos mapas políticos atuais, apenas uma mera expressão
geográfica, sem fundamentos históricos e culturais? Ou seria uma miríade diversificada de nações que em seu
conjunto compõe, pela conveniência, a junção do mundo indiano e chinês? A diversidade histórica dessa região fez
com que nunca fora referida como uma única categoria no passado. A não ser se considerarmos os conceitos
coloniais de europeus que a chamavam de “Índias Orientais” e os franceses a uma parte da região como
“Indochina”. Há em comum um compartilhamento de influências e adaptações da cultura indiana, pelo hinduísmo e
budismo, e do sistema político e social chinês, como o confucionismo, que se conjugou com as culturas tradicionais
locais, cada um à sua maneira. O Vietnã, especialmente o norte, assimilou e adaptou a cultura chinesa. Mais ao sul
da costa, contudo, a influência dos povos marítimos (indianos e muçulmanos) foi grande, como em Champa. No
Camboja, Laos, Tailândia e Mianmar, para nos atermos aos nomes atuais, a presença do hinduísmo e budismo foi
marcante. E mais ao sul, pela Malásia, Indonésia e sul das Filipinas, o Islã fez-se marcante com os mercadores
árabes no comércio.
Há no conceito do sudeste asiático uma dualidade intrínseca. Existe algo em comum, mas igualmente uma
diversidade. Esse talvez seja o desafio inicial da região o qual, espera-se, que parte dessa obra ofereça um olhar mais
acurado para sua história. Como ignorar o impressionante legado do complexo de templos de Angkor, Borobudur ou
de Pagan (Bagan)? Como não se surpreender com o expansionismo dos birmaneses e depois da consolidação
política dos tais em Ayutthaya (Aiutaia) e depois no reino de Sião? E da prosperidade comercial marítima
acumulada pelos reinos de Srivijaya e Majapahit, algo que despertou a cobiça dos chineses, portugueses, holandeses
entre outros? E o que dizer da extraordinária resiliência dos vietnamitas em resistir e adaptar? São essas questões
fascinantes que devem nos instigar se desejamos compreender a história do sudeste asiático.
Foram os chineses que nos ofereceram as primeiras narrativas de outros reinos que emergiram no sudeste
asiático desde os primeiros séculos de nossa era. Por volta de 240, os chineses trouxeram de volta relatos
impressionantes de um reino a que eles denominaram de Funan, localizado na foz do rio Mekong. Igualmente
fascinados ficaram quando chegaram diante das muralhas de defesa de Sriksetra (ou Sri Ksetra), capital dos pyus
que floresceu ao longo do rio Irauádi por volta da mesma época, que depois irá com o tempo se tornar num dos mais
poderosos reinos birmaneses. O próprio nome da cidade, Sriksetra, “campo afortunado ou campo de glória” em
sânscrito, já indicava a influência indiana a partir da expansão de comerciantes, sacerdotes hindus e brâmanes mais
ao oeste. Revela-se com isso a influência cultural que a Índia teve sobre o sudeste asiático, impactando o reino dos
khmers, conforme demonstra o complexo de templos hindus em Angkor Wat, sobre os povos chams na costa
vietnamita, e indo até as ilhas de Java e, de maneira mais duradoura, sobre Bali. Enquanto a Índia teve papel
primordial em termos culturais e religiosos, a China desempenhou papel político e comercial predominante. As
expedições do almirante Zheng He, no século 13, foram fruto de gerações de estudos e contatos visando ampliar o
alcance do Império do Meio para os mares internacionais.
Veremos que o impacto indiano foi decisivo na formação dos reinos birmaneses que cedo adotaram o budismo
teravada, na conversão do rei Anawrahta, como meio de legitimação, apesar de ter sido mantido os cultos
tradicionais birmaneses dos espíritos nats. Um de seus sucessores, Kyanzittha, reivindicou ser um dos mais
entusiastas adoradores de Buda no século 11. A cidade de Pagan, nesse sentido, tornou-se local dos mais sagrados
do mundo budista. A cultura indiana havia se espalhado mais para o leste, no reino dos khmers, que depois
fundariam a sua capital conhecida como Angkor, às margens do imenso lago Tonle Sap. Apesar dos khmers terem
adotado o hinduísmo, alguns de seus membros converteram-se depois ao budismo pois desconsideraram o sistema
de castas proposto, mesmo com a adoção de seus reis a serem referidos como devarajás, “deuses reis” do sistema
hindu.
No Vietnã, o impacto veio de outra fonte, os chineses, ao longo de sua vida dinástica embora tenham mantido
sua identidade distinta. A língua vietnamita serve como exemplo disso, com sua fonte vindo de línguas
austroasiáticas, como também são os casos das línguas khmer e mon, e não do chinês. Contudo, a presença chinesa
por quase mil anos criou uma cultura elitizada única que passou a valorizar os estudos e cultos aos ancestrais do
confucionismo. Isso se deu mais no norte vietnamita, pois mais ao sul da costa, o reino Champa, dos chams,
trilharam outro caminho histórico mais voltado ao hinduísmo e culturas advindas dos mares do sudeste asiático. O
longo envolvimento dos vietnamitas com os chineses fez com que os franceses, no início do século 19, interessados
na região, a denominar tudo como Indochina a realçar o Vietnã e seu interior como ponto de passagem entre o
universo indiano e chinês.
O efervescente comércio marítimo no sudeste asiático deu nascimento a poderosos reinos organizados.
Estrategicamente localizado, Srivijaya, a partir de Sumatra, controlou toda a rota que passava pelo que hoje
chamamos de Estreito de Malaca, além de atuar como atração internacional na sua ativa promoção do budismo para
os que viajaram das terras chinesas aos locais de nascimento e vida de Buda na Índia. Um desses monges chineses,
Yijing (ou I Ching), em 671, ficou atônito com a generosidade dada aos diversos mosteiros e escolas pelos monarcas
de Srivijaya. Um desses legados será a língua malaia adotada usada como a de aprendizagem e estudo e que depois
se tornaria como uma das línguas francas no sudeste asiático. Srivijaya depois se tornou alvo de inveja e disputas e
sucumbiu ao crescente poderio marítimo dos indianos cholas no século 11. O reino que mais se beneficiou disso foi
Majapahit, no leste de Java. Sua ascensão adveio depois de uma desastrada embaixada dos mongóis sob o imperador
chinês da Dinastia Yuan, Kublai Khan, que resultou na destruição de um reino rival na ilha javanesa em fins do
século 13. Assim foi possível a fundação de um novo reino mais ampliado e centralizado em Java, que depois
explorou as possibilidades marítimas e comerciais com a nova orientação da dinastia chinesa de Yuan a partir do
século 14 em buscar uma política mais continental, afastando-se dos mares.
A partir do século 16, houve um notável renascimento dinástico birmanês sob os Toungou (ou Taungus). Foi sob
essa linhagem que foi reunificado o reino, muito em cima das rivalidades contra os tais centrados em Ayutthaya (ou
Aiutaia) que chegou a ser destruída em 1767. Os birmaneses fizeram uso das novas armas e táticas apresentadas
pelos europeus, estes já se fazendo presentes no sudeste asiático. Nisso, as fortalezas e muralhas foram ampliadas e
passaram a ser construídas de tijolos e pedras ao invés do uso da madeira e terra. A dinastia sucessora birmanesa, a
dos Konbaungs, teve que enfrentar cada vez mais o interesse e presença dos britânicos que vieram de Calcutá na
região oriental indiana a partir de meados do século 18. Desses encontros resultaram as Guerras Anglo-Birmanesas
no século 19 que acabaram pondo termo ao império birmanês. A região ao lado do reino birmanês, testemunhará a
ascensão e queda do reino de Ayutthaya e da efêmera existência decadente do reino dos khmers. Angkor, antiga
capital khmer chegou a ser ocupada pelos tais em 1431, mudando-se a capital para Lovek e, depois, Phnom Penh.
Apesar das vitórias, o reino dos tais de Ayutthaya incorporou os magníficos elementos culturais dos khmers,
reivindicando serem os seus verdadeiros herdeiros. Ainda hoje é discernível a presença da arte cambojana khmer no
Grande Palácio Real em Bangkok.
Subsequentemente, constataremos as dificuldades enfrentadas pelas dinastias vietnamitas a partir do século 17.
Apesar do imperador Le Tranh Tong em buscar unificar toda a nação, o Vietnã viu-se dividido depois por
desentendimentos políticos em duas partes de 1672 a 1806. A Dinastia Nguyen governou a parte meridional a partir
da capital, Hué, enquanto os Trinhs controlaram os reis Le no norte. A unificação somente se daria no início do
século 19, sob os imperadores Nguyens, mas seu excessivo apego às tradições confucionistas talvez os tenham
impedido de se prepararem para as ambições francesas. O horizonte dos tempos tinha mudado, depois dos europeus
humilharam o império chinês da Dinastia Qing nas duas Guerras do Ópio em meados do referido século. Em 1859,
Saigon, no delta do rio Mekong já era ocupada e administrada pelos franceses. Em 1874, a corte vietnamita viu-se
obrigada a ceder o acesso a Hanói e ao seu porto em Haiphong.
A situação histórica de Malaca, Aceh, Mataram, Brunei e as Filipinas também serão examinadas. As
intervenções europeias assomaram-se no arquipélago de ilhas do sudeste asiático a partir do século 16, a começar
pelo pioneirismo dos portugueses quando tomaram o controle de Malaca em 1511. Isso somente foi possível com a
retirada do interesse e presença naval e comercial chinesa da região, abrindo um vácuo de poder para os
estrangeiros. Os holandeses, através de sua Companhia das Índias Orientais, estabeleceram-se na parte ocidental de
Java, onde fundaram Batávia em 1611, e de lá começaram a enfrentar uma série de confrontos com os outros reinos
javaneses, em especial o de Mataram. Após o fracasso de uma segunda investida em 1629, o sultão javanês Agung
desistiu e passou a conciliar seus interesses com a dos holandeses. Era o início do fim dos reinados independentes
javaneses. Os holandeses passaram gradativamente a expulsar a presença dos portugueses da região, com as
exceções das ilhas Sundra e Timor. Os espanhóis mantiveram-se nas Filipinas, que somente tiveram que lidar com
alguma contestação europeia com a chegada dos britânicos em Manila em 1762.
A condição colonial se consolidou em fins do século 19 até meados do século 20, com a quase totalidade do
sudeste asiático a ser administrado aos interesses ocidentais presentes. Todavia, alguns choques de interesses
possibilitaram ao reino de Sião, atual Tailândia, preservar-se soberana, mesmo que por isso tivesse que conceder
seus domínios no Laos, Camboja aos franceses, e partes meridionais aos britânicos.
A era colonial europeia começou a ver seu crepúsculo no sudeste asiático com o crescimento dos sentimentos
nacionalistas e a avassaladora ofensiva japonesa a partir da China em 1941. Nas Filipinas, houve desde 1898 uma
tomada do controle espanhol pelos americanos, e isso pareceu ser um primeiro passo ameaçador aos olhos de
Tóquio. O momento decisivo se deu quando os japoneses atacaram de surpresa a base naval americana no Havaí, em
fins de 1941, dando ao governo dos EUA o aval para a entrada na Segunda Guerra Mundial. Nesse turbilhão de
eventos, as colônias europeias mostraram-se vulneráveis e propensas às agitações anticoloniais, como o foi o caso de
Sukarno na Indonésia. No caso da França, restou-lhes a dura intolerância de buscar combater pelas armas do que
ainda consideravam como a Indochina, resultando posteriormente na sua derrota frente aos comunistas vietnamitas
em 1954. Na Grã-Bretanha, o Partido Trabalhista de Clement Attlee buscou rever toda a condição do império
britânico, ao passo que os holandeses teriam que se sujeitar à humilhação de se retirarem da Indonésia após amplas
condenações dos EUA e dos organismos internacionais em 1949.
O fim da Segunda Guerra Mundial irá expor a condição de lutas e esforços pelas independências pós-coloniais
no sudeste asiático. Enquanto as colônias britânicas em boa parte tiveram uma transição negociada, o mesmo não se
pode dizer do Vietnã, que passou a ser objeto de temor comunista aos olhos de Washington. Diante disso, os
comunistas vietnamitas do Viet Minh tiveram que lutar por mais vinte anos, desde a Conferência de Genebra de
1954 para conseguir expulsar as tropas americanas e derrotar seus aliados no Vietnã do Sul. Os filipinos, após a
retirada dos japoneses em 1945, começaram arduamente a consolidar sua própria vida independente, apesar das
tentações ao autoritarismo de Ferdinand Marcos. Os militares fizeram-se presentes na condução do poder na
Tailândia e no Mianmar, atual nome da Birmânia, sendo que neste último país as lutas internas ainda atentam contra
sua plena integridade. A perseguição militar aos comunistas atingiu patamares de insanidade com Suharto na
Indonésia, em que estimados meio milhão foram perseguidos ou mortos entre 1965 e 1966. O mesmo se pode dizer
de outro brutal regime, o do Khmer Vermelho, que ascendeu ao poder no Camboja sobre os escombros deixados
pelos americanos na Guerra do Vietnã. Comparativamente, a Malásia parece ter atravessado seus primeiros passos
independentes de maneira mais suave, apesar de ter negociado duramente com sua diversidade de povos e culturas.
Em Bornéu, Brunei decidiu por bem não se integrar ao governo de Kuala Lumpur em 1962. Em 1965, vendo-se
expulso da Malásia, Cingapura teve que achar seu caminho próprio ao desenvolvimento, que conseguiu de maneira
notória graças em boa parte ao seu povo e a Lee Kuan Yew.
Mas vamos recuar no tempo a partir do Vale do Indo quatro mil anos atrás...
Índia e Sul Asiático

“How can the mind take hold of such a country?''


(“Como pode a mente se apoderar de tal país?”)
- E. M. Forster (1879 - 1970), ''A Passage to India''.

Índia e Sul da Ásia (Do Rio Indo à Satavana – 3º Milênio a.C. - 1º Milênio a.C.)
Harappa e Mohenjo-Daro
A noroeste da Índia e leste do Paquistão há uns quatro mil anos atrás, corriam rios abundantes e perenes que
propiciaram um acesso regular à água potável, vital para o sustento de animais e humanos. Terra essa que é chamada
de Punjab, “cinco rios”, pois assim corriam os rios a desaguarem todos como afluentes do rio Indo. E desse nome
veio, através dos cronistas e viajantes estrangeiros a nos relatar pelos séculos seguintes, o que se convencionou
referir-se a toda a região como a “Índia” [6].
Foi então no vale do rio Indo que foram encontrados os primeiros vestígios de assentamentos planejados e
permanentes de comunidades humanas datando por volta de 2200 a.C. Em locais hoje referidos como Harappa e
Mohenjo-Daro (mapa) ficou evidenciado um avançado sistema de planejamento urbano e sanitário, com largas ruas
pavimentadas e locais que parecem remeter a banhos públicos e tanques de água.

Mapa - Vale do Indo e dos sítios de Harappa e Mohenjo-Daro.

Nesses dois sítios podemos identificar, portanto, as primeiras evidências de uma sociedade sedentária organizada
com algum controle centralizado e as primeiras manifestações civilizacionais do passado indiano. Havia
necessidade, diante demonstra o avançado planejamento dos sítios, de um comando centralizado e de um mínimo de
especialização social demandada para o planejamento e execução de construções que teriam servido ao bem público
– como as reservas de água para tempos de seca – ou a um rico e poderoso membro sobre o restante da sociedade.
Mas isso são ainda conjecturas, pois tudo ainda permanece um mistério.
Há outros vestígios materiais que podemos inferir sobre as sociedades dos locais citados. Uma escultura de
pedra, hoje num museu de Carachi, Paquistão, nos mostra uma pessoa de vestes elaboradas e aparência serena e
imponente que sinaliza uma pessoa proeminente, talvez um sacerdote. Em outra gravação, é retratada uma pessoa
em posição peculiar, talvez meditativa, indicando remotas origens de posições defendidas pelas escolas iogues. E
pelos símbolos e retratos silvestres na gravação, talvez seja até mesmo uma divindade, um antecessor de Xiva
(Shiva), deus indiano caracteristicamente próximo do meio silvícola e da animália, num dos seus atributos como
Pashupati, “senhor dos animais” ou de Rudra, deus do meio silvestre e dos animais
Há evidências de continuado assentamento em outros sítios. E mais recuados no tempo, como em Mehrgarh, no
Baluchistão, ao oeste indiano em direção ao atual sudeste iraniano. Nesse local as datas vão desde o sétimo milênio
a.C., na transição da vida nômade para a sedentária. Em Amri, no Sind, também no oeste indiano, a datação situa-se
em torno de 3600 a.C., e neste parece indicar que o desenvolvimento de sua cerâmica, por exemplo, se deu em
termos autóctones, sem, portanto, ser influenciado por contatos com outros povos. Algo extraordinário, pois há
evidências de cerâmicas e outros produtos originados dessa região encontrada mais ainda ao oeste, na Mesopotâmia,
no sul do Iraque, e ao norte, nas estepes da Ásia Central.
A partir de 2500 a.C. além dos centros como Harappa e Mohenjo-Daro, outros locais como Kalibangan, indicam
que o padrão de construção convergiu num mesmo padrão e estilo, possivelmente apontando para uma confederação
política unida. E já no fim do mesmo milênio, em Harappa, houve a construção de muralhas e fortes para fins
defensivos contra invasores.
Sobre as hipóteses de seu declínio dessa cultura do vale do Indo, a maior parte dos arqueólogos concorda situar
num período entre 1800 a.C. a 1700 a.C. Alguns estudiosos [7] apontam para as crescentes invasões de estrangeiros
vindos do norte, com uso de armas de bronze e a cavalo, povos chamados de arianos [8], sustentando os seus
argumentos nos achados de ferramentas e utensílios que foram subitamente abandonados nos sítios escavados. Outro
fator considerado foram os fatores de mudanças ambientais. Com o clima alterado, grandes inundações do vale do
Indo alteraram de maneira definitiva o curso dos rios, gerando erosão do solo e seca do clima na região.
Os arianos
Por volta do segundo milênio a.C. uma onda migratória de povos advindos da Ásia Central começou a avolumar-
se nas regiões do noroeste indiano e do Punjab. Com esses chegaram o uso de armas de cobre, bronze, montagem
em cavalos e carruagens. A origem desses povos, chamados em sânscrito de aryas [9], arianos, ainda é motivo de
viva controvérsia entre historiadores e arqueólogos. Alguns apontam para a vasta estepe da região central asiática,
outros em regiões meridionais russas ou até mesmo mais ao oeste, na Europa [10]. O grande estudioso britânico, Sir
William Jones, no seu clássico estudo [11] sobre a escrita sânscrita trazida com esses povos, buscou estabelecer a
origem dessa cultura com as línguas europeias. Atestando para uma suposta dominação inerente dos povos indo-
europeus sobre outros povos asiáticos, uma forma de legitimar a dominação britânica sobre a Índia em fins do século
18.
Não se sabe ao certo a relação desses povos arianos com o que é recitado pelo mais antigo dos sagrados quatro
épicos védicos, o Rig Veda. Neste, não é descrito nenhuma forma urbana de organização social, algo que já era
notável em locais como em Harappa, local onde, a partir de 2000 a.C. a 1400 a.C., os arianos gradativamente
começaram a se mesclar com os elementos locais. Talvez fosse mais apropriado considerarmos um extenso período
de contato e miscigenação entre os elementos pré-arianos anteriores no noroeste indiano com a chegada de povos
arianos. Interpenetrações que irão combinar elementos harappanos de culto a divindades e animais, como visto na
figura do proto-Xiva, com o culto ariano do cavalo, do fogo e do raio (como nos deuses Agni e de Indra,
respectivamente). E que depois se inseriu uma relação de dominação e diferenciação social, em castas sociais
hierarquizadas (varnas) com os setores dominantes arianos, sacerdotes (brâmanes) e guerreiros (xátrias), a
prevalecer sobre outros (shudras) da sociedade [12]. Na convivência dos tempos, os arianos foram ordenando a
hierarquia social conforme sua posição de dominação.
Os Vedas
O conjunto dos épicos védicos é a mais importante fonte de informação a respeitos dos arianos, e é a base mais
antiga de crenças, práticas, valores e línguas da Índia. Em sua consideração a respeito da importância dos Vedas,
Rabindranath Tagore (1861 - 1941) [13] com propriedade assim os descreveu:
Um testamento poético da reação coletiva de um povo pela admiração e respeito da existência. Um povo de vigorosa e simples imaginação que foi
despertado logo no início da civilização a um sentido do mistério inesgotável que está implícito na vida.[14] (tradução nossa)

Os épicos são compostos por quatro categorias de textos. Os mantras, que tratam de palavras sagradas, os
brâmanas que ordenam os rituais sacrificiais, os upanixades que são tratados esotéricos e filosóficos e os sutras,
instruções ritualísticas. Essas categorias, conforme Kulke & Rothermund [15], expressam etapas históricas dos
arianos desde a vida seminômade nas estepes asiáticas até o seu gradual assentamento e incorporação dos elementos
urbanos sedentários no vale do rio Indo e posteriormente nas planícies a leste do rio Ganges [16].
Os mantras, conjunto mais sagrado transmitidos apenas entre os sacerdotes (brâmanes), são compostos por
quatro grupos: o Rig Veda (o mais antigo deles), o Sama Veda, o Iajur Veda e o Atarva Veda. O Rig é a mais
completa e valiosa fonte histórica que temos sobre a sociedade ariana, pois se considera que fora composto por volta
de 1300 a 1000 a.C. Os primeiros livros do Rig tratam mais de assuntos filosóficos e sagrados, além de
ordenamentos sociais e familiares. Os livros posteriores do épico Rig têm como assuntos a política e a guerra, ao
abordar os confrontos entre os arianos e povos do vale do rio Ganges. Nesses, há relatos de povos não-arianos de
pele escura, chamados de dasas ou dasyus que serão gradativamente incorporados, expulsos ou dominados. Nas
inúmeras campanhas de guerra descritas, há hinos védicos do Rig que glorificam uma das mais destacadas
divindades arianas, o deus do fogo, raio e destruidor de fortes (purandara), Indra:
Armado com seu raio e confiante em sua proeza, ele vagou
quebrando os fortes dos dasas.
Lança o seu dardo, (...) ó Trovejante, sobre os dasyus; a aumentar o
poder e glória dos arianos , ó Indra.

(Rig Veda, Livro 1, Hino CIV)

Indra, (...) o destruidor de fortes, dispersou os anfitriões dasas que habitavam nas trevas (...).
A ele rendido (...), a Indra no tumulto da batalha.
Quando em seus braços estendeu o raio, ele massacrou os dasyus e derrubou seus fortes de ferro.
(Rig Veda, livro 2, Hino XX) [17] (tradução nossa)

A expansão dos povos arianos se deu em etapas subsequentes advindos da região da Ásia Central para o noroeste
indiano, e em direção a leste ao longo da planície dos rios Ganges e Yamuna, local de excepcional fertilidade para o
plantio de culturas como o arroz e propício para rebanhos de animais domesticados como o gado bovino. Junto com
os rios da região do Punjab, a importância das regiões fluviais, cultivo de culturas agrícolas e gado parecem ter
ganhado proeminência entre esses povos antes seminômades das estepes. Assim como nos revela trechos do Rig
Veda:
Quando dois exércitos opostos entram em contenda em batalha
por sementes e proles, águas, vacas ou milho da terra.

(Rig Veda, livro 6, Hino 25) [18] (tradução nossa)

A vida sedentária, portanto, começou a partir de meados do primeiro milênio a.C. entre os arianos, com o
estabelecimento de vilas e cidades, e de campos cultivados descerrados da condição silvestre resultado de uso de
ferramentas (e armas) de ferro. O comércio e o artesanato ganharam proeminência na sociedade ariana, a surgir uma
casta nova, os vaixás. E houve, concomitantemente, um incremento nas reflexões e preocupações filosóficas a
respeito da vida, sociedade e universo.
Nessas sociedades assentadas, várias entidades políticas arianas começaram a despontar na região do vale do
Ganges-Yamuna, entre eles os báratas e os purus que uniram-se como o clã dos kurus e predominaram sobre outros
povos da terra que a partir de então passou a ser chamada de kurukshetra, lar dos kurus. E são os kurus, suas glórias
e feitios que são recitados no épico Maabárata, como na batalha de Bárata, supostamente ocorrida por volta de 950
a.C., combatida entre duas grandes tribos arianas dos kurus, os kauravas e os pandavas.
Os arianos se mesclaram com o passar dos séculos com outras etnias locais, resultando numa sociedade cada vez
mais indo-ariana. Em tempos de paz como nos é revelado nos textos védicos, é distinguida uma diferenciação social
entre aqueles membros livres (vish) e aqueles nobres guerreiros (xátrias) dentre dos quais era selecionado um rei
(rajan). Os sacerdotes (brâmanes) também são mencionados como grupo distinto nos textos. Povos não-arianos
submetidos ao trabalho manual eram considerados à parte de todos. E todos foram sistematizados em castas,
(varnas). Essa ordem estabelecida aparece em textos védicos:
Quando os deuses prepararam o sacrifício de Purusha [19]
Seu óleo era a primavera, o dom era o outono, verão era a madeira
Quando dividiram Purusha, quantas porções eles fizeram?
Do que eles chamam de sua boca, seus braços? Do que eles chamam suas coxas
e os pés ?
O Brâmane era sua boca, de ambos os braços foi o Raj feito
[Xatriá]
Suas coxas se tornaram o Vaixá, de seus pés o Shudra foi
produzido.
(Rig Veda, Livro 10, hino 90) [20] (tradução nossa)

A estratificação social foi mais explicitada no período tardio védico, ou seja, por volta de 1100 a.C. a 500 a.C.,
com a necessidade de ordenamento social e político a consolidar as conquistas e o poderio sobre os povos
submetidos. Nesse sentido, o topo do poder residia na mão de um gramani, espécie de líder guerreiro da sociedade
ariana advindo, portanto, da casta dos guerreiros, vaixás. A inserção de sacerdotes, brâmanes, junto à elite,
constituiu sinal de que entre os arianos desde tempos seminômades era reservada a líderes espirituais uma posição
de destaque e influência na sociedade. Tal é atestado com a cerimônia anual de um rei, o rajasuya, que deveria ser
guiada e conduzida segundo rituais sacrificiais e preceitos guardados por sacerdotes.
Abaixo desses vinham os artesãos e trabalhadores, carpinteiros, ceramistas e ferreiros, normalmente advindos de
sociedades submetidas. Compostos de povos de pele mais escura. Eles são mencionados nos textos védicos pela sua
importância na manutenção de carruagens e fabrico de armas e instrumentos. Muitos eram desconsiderados pela
elite, que os enxergavam como shudras, o estrato mais baixo social, indicando sua posição marginal na sociedade
védica. Com relação ao comércio, a atividade não era considerada tão impura, podendo brâmanes e xátrias participar
dessa ocupação considerada crucial para a economia e prosperidade das sociedades arianas [21].
O que nos remete ao conceito de jati (“nascimento, origem”) que somente aparece no corpus védico num período
tardio. Esse conceito social é uma forma de casta que conviveu com o sistema de varnas e buscou organizar as
diferentes comunidades, tribos, nações e grupos religiosos e linguísticos da Índia designando-lhes determinadas
ocupações na sociedade. Assim, as milhares de categorias jatis iam desde as funções militares (srivastava) até
vendedores de perfume (gandhi), nomes que depois foram incorporados como nomes de famílias e clãs. E cada
categoria era dinâmica, pois dependia do prestígio e poder de cada jati numa determinada sociedade, o grupo
poderia ascender ou decair dentro da ordem social. O aparecimento tardio desse conceito aos Vedas parece indicar
uma incorporação posterior de uma antiga prática social em vigor em outras partes da Índia além do compasso dos
varnas [22].
O Maabárata e os Upanixades
O maior épico da literatura indiana, o Maabárata [23] nos conta a respeito das guerras e intrigas no Kurukshetra –
região ocidental do vales do Ganges e Yamuna – de duas entidades políticas arianas tardias relacionadas, e o drama
dos regentes de ambos os lados. Há controvérsias de sua autoria, mas atribui-se tradicionalmente a compilação dos
seus cantos ao lendário sábio Vyasa (literalmente, “compilador”) e ao deus Ganesha [24] [25], e sua datação remete
acerca de 800 a.C. até suas versões finais por volta de 400 a.C.
Seu tema trata das intrigas e disputas pelo trono dos kurus, na capital Hastinapura, disputado pelos regentes dos
kauravas e pandavas. Ambos os lados discordavam sobre o casamento da princesa kuru Draupati. As disputas
políticas pelo poder culminaram na Guerra de Kurukshetra, em que os pandavas saíram vitoriosos. Muita além das
batalhas, o foco maior é em torno da tragédia humana em busca de poder, riqueza, glória acompanhada de mortes,
perdas e miséria. As lealdades de família e política se entrelaçam e resultam, com frequência, em conflitos
dramáticos revelados no épico.
Entre as inúmeras histórias que compõe o Maabárata, a mais notória é o Bhagavad Gita. Num momento
dramático no campo de batalha, um avatar [26] do deus Vixnu (Vishnu), Krishna, aparece ao angustiado príncipe
pandava, Arjuna, a aconselhá-lo sobre o seu dever (darma) de um guerreiro (xátria) diante do seu destino. Em
determinado momento, Arjuna começa a questionar a real divindade de Krishna e este, após hesitar, decide então
revelar todo o esplendor divino e do universo, uma forma de teofania (vishvarupa):
Ó Mestre (...), se você acha que é possível, em seguida, gentilmente mostra-se em sua forma imortal para mim.

(...) Krishna respondeu: (...) eis minhas formas divinas ilimitadas de vários matizes e formas.
[27]
Ó descendente de Bharata [Arjuna], eis aqui os Adityas, Vasus, Rudras, os Ashvini-Kumaras e os Marutas . Eis as múltiplas formas
surpreendentes, nunca antes vistas.

Ó conquistador do sono, eis que neste único lugar todo o cosmos, incluindo todos os seres móveis e imóveis, tudo dentro dessa Minha forma,
juntamente com qualquer outra coisa que você deseja ver.

No entanto, você é incapaz de perceber isso com os olhos do presente, por isso vou dar-lhe visão divina. Agora, eis meu esplendor místico!

(...) Krishna revelou a Sua forma de bocas infinitas e os olhos, adornado com muitos ornamentos divinos e levantando muitas armas celestes. Ele foi
decorado com guirlandas e roupas divinas e ungiu com fragrâncias celestiais. Ele era o mais maravilhoso, esplendoroso, ilimitado e que a tudo
permeia.

(Bhagavad Gita, Capítulo 11, versos 4 a 11) [28] (tradução nossa).

A filosofia indiana no período tardio védico começou a refletir uma mudança de atitude diante do destino e do
universo, diferentemente da atitude anterior dos arianos seminômades de fatalismo, magia e transitoriedade. A partir
de então, a visão enfatiza cada vez mais a vulnerabilidade e brevidade do indivíduo, e da importância de sua conduta
na vida com relação aos outros, surgindo conceitos como o carma (“ação”, em sânscrito), uma boa conduta a gerar
consequências no futuro e em outras formas de vida. E samsara (“perambulação”), em que nossas ações irão se
refletir nas subsequentes reencarnações, consistindo estas num ciclo incessante de renascimentos. Esses dois
conceitos talvez tenham sido incorporados pelos arianos védicos diante das mudanças sociais e políticas ao
estabelecerem-se e ordenarem-se em reinos permanentes e dinásticos, a refletirem sobre os efeitos da guerra, morte e
fragilidade da vida humana [29].
Esses acréscimos filosóficos e religiosos foram sendo adotados pela sociedade, desde os brâmanes aos shudras e
incorporados como comentários finais aos textos védicos, conhecidos como os Upanixades, ao final dos textos
védicos (por isso conhecido como vedanta, “fim dos Vedas”) entre 750 a.C. e 500 a.C. A ênfase dada no período
final dos Vedas e dos Upanixades, portanto, se voltam mais para o caminho místico do indivíduo, para a sua alma
(atma) e sua relação com a alma do universo (brahman), acreditando numa relação entre esses dois universos em
termos de conciliação e unidade, através de transmigrações e renascimentos [30].
Os Mahajanapadas e a ascensão do império mágada
Por volta de 700 a.C. ocorreram assentamentos indo-arianos na região de Ujjain, capital do reino de Avanti, a
mais de 800 km ao sul de Kurukshetra. Ao norte e a leste, houve deslocamentos para regiões de altitude com
temperaturas amenas e menos florestadas em comparação ao sul e ao leste indiano. Mas foram as terras férteis a
leste, em direção ao vale do rio Ganges e Yamuna, hoje nos estados indianos de Bihar e Uttar Pradesh, que
provaram ser irresistíveis aos povos indo-arianos. Da região do Kurukshetra no século 6 a.C., a maior migração foi
em busca de kshetra, termo que designa terras propícias ao cultivo e gado.
As terras do leste indiano forneceram também as condições para a formação de estados unificados sob comando
militar e sacerdotal, em categorias chamadas de janapadas. Algumas dessas unidades após anexações e ampliações
resultaram em mahajanapadas, ou grandes reinos. Entre esses constaram alguns com maior projeção: os reinos de
mágada (Magdha ou Magadha), Kosala, Vatsa e Avanti a disputarem entre si a supremacia. Em essência, foi essa a
história política da Índia do século 6 a.C., com a gradual predominância do reino de mágada [31]. A maior expansão
deste reino se deu na dinastia dos Haryankas (c. 600 a 413 a.C.), especificamente sob o reinado de Bimbisara (r. 542
– 492 a.C.). Com este, o reino ganhou contornos imperiais, abarcando as regiões indianas de Bihar e Bengala a leste,
além mais de Uttar Pradesh e Odisha ao longo da costa sul.
A estrutura desses estados Mahajanapadas foi, em essência, um conjunto fluido de alianças e lealdades entre
lideranças políticas. O comando central direto exercia-se apenas sobre territórios nos arredores da capital e algumas
entidades tribais adjacentes. Os reinos mais afastados e aliados tinham considerável autonomia, somente sendo
exigida lealdade em casos de guerra e atendimento a ocasionais cerimônias reais. As fronteiras imperiais
confinaram-se em grande parte a limites naturais, como rios, desertos e montanhas. Esse sistema político de alianças,
conceituado como rajamandala (“círculo de estados”) [32] por Cautília (Kautilya) [33], foi praticado em tempos
posteriores entre regentes hindus e o sistema imperial indo-britânico a partir do século 18.
O Budismo e o Jainismo
Na fase histórica entre o final do século 7 a.C. ao final do século 5 a.C., foi decisivo o desenvolvimento da
cultura indiana e regiões próximas. Foi uma fase de intensa urbanização e efervescência cultural [34]. E foi sob o
império mágada que o budismo e o jainismo foram fundados e floresceram. Nos cânones budistas em língua páli [35]
consta que Bimbisara concedeu proteção e culto à primeira destacada personalidade histórica da Índia, o príncipe
Sidarta Gautama (563 a.C. ou 480 a.C. – 483 a.C. ou 400 a.C.), o Buda (Shakyamuni), na região onde ele caminhou
e atingiu a Iluminação pelos estados de Uttar Pradesh, Bihar e na sagrada cidade de Bodh Gaya.
Os ensinamentos de Buda foram uma expressão espiritual de reforma. Nas crônicas budistas que narram sobre a
vida e as encarnações de Buda, como no Jataka [36], há vivo retrato de que Sidarta cresceu e pregou em inquietos e
florescentes ambientes urbanos ao longo do Ganges, a questionar a dominação da elite guerreira e sacerdotal (xátrias
e brâmanes). Outro grande reformista da época, talvez um contemporâneo, foi o fundador do jainismo, Mahavira
(599 a.C. – 527 a.C.), uma religião ascética que se popularizou entre os mercadores e comerciantes indianos, pois
condenava veementemente a agressão e violência contra qualquer forma de vida – desde insetos a mamíferos – algo
impeditivo para agricultores e pastoralistas.
Ambos os movimentos religiosos do século 5 a.C. caracterizaram-se como uma transição de um período
magicista e místico dos textos védicos e dos Upanixades para um novo tipo de racionalidade. O Buda centrou seu
pensamento na busca pela salvação individual a romper o ciclo de reencarnações e sofrimentos (samsaras), a atingir
a libertação (moksha).
Após a morte de Buda, um concílio de monges começou a editar o conjunto de seus ensinamentos a ser
preservado em 404 a.C. na cidade de Rajgir, no Bihar [37]. Em concílios posteriores, ocorreram cismas entre aqueles
que defenderam os ideais ascéticos da comunidade dos monges (sanga), enquanto outros defenderam um maior
envolvimento dos monges com a população leiga, alargando o conceito estrito de sanga. Este novo movimento, mais
amplo, originou depois o chamado “Grande Veículo” (Maaiana), enxergando os outros movimentos budistas como
mais restritos e ortodoxos, considerando-os como “Pequeno Veículo”, Hinayana, expressão pejorativa de referência
à escola teravada. Esse cisma foi de crucial importância para o posterior alastramento do budismo por regiões além
da Índia.
A Dinastia Máuria - auge do Império Mágada
Por volta de 320 a.C., um comandante militar local em campanha conseguiu um feito extraordinário à época.
Entrou triunfante pelos portões da capital dos mágadas, Pataliputra (atual Patna), uma das maiores e mais
fortificadas cidades indianas. Seu nome era Chandragupta. Tal evento ocorreu em momento pouco propício ao que
restava do passado mágada, pois ao oeste ocorreram desde o século 6 a.C. invasões persas aquemênidas nas regiões
do Sind e Punjab. A noroeste, sucessivas incursões gregas macedônicas, resultado do espetacular avanço de
Alexandre, o Grande (356 a.C. – 323 a.C.) sobre o Império Persa, tinha estabelecido uma dinastia local, Greco-
Báctrio (250 a.C. – 125 a.C.) sob comando de governadores macedônicos (sátrapas). Foram sucedidos por um reino
indo-grego (180 a.C. – 10 d.C.), na região da Báctria [38], que sintetizou as heranças indianas e Greco-Macedônicas
como ficou demonstrado no reinado de Menandro I (r. 155 a.C. – 130 a.C.), patrono do budismo e protagonista nos
sagrados textos Milinda Panha [39].
Chandragupta Máuria (r. 321 a.C. – 297 a.C.) ascendeu ao poder em período conturbado da ordem mágada e de
retraimento dos macedônicos no norte-noroeste indiano em Punjab (Báctria). A partir de 325 a.C. o líder indiano
avançou mais ao leste, e foi derrotando as forças do Império Mágada, em Pataliputra, e fundou a Dinastia Máuria.
Teve como mentor e professor o sábio brâmane Cautília que o aconselhou na manutenção e expansão do poder e
efetiva administração política. De acordo com textos jainistas, o Parisistaparvan, Chandragupta converteu-se ao
jainismo no final de sua vida quando abdicou do trono em favor de seu filho, Bindusara (r. 298 – 272 a.C.). Há
relatos de que realizou o rito jainista de fome até a morte (sallekhana) em Belgola, perto de Mysore (Maiçor), hoje
no estado de Karnataka [40].
Bindusara, conhecido pelos gregos como Amitrochates (do sânscrito, Amitraghata, o “destruidor de inimigos”),
empreendeu grandes campanhas militares e expansão de alianças políticas na direção sul, no planalto do Decão, a
estender o controle máuria até a região de Mysore. De acordo com relatos históricos, sua conquista chegou à “terra
entre os dois mares”, presumivelmente entre o Mar Arábico e a Baía de Bengala. No entanto, na costa leste indiana,
o reino de Calinga (hoje Orissa ou Orisha) manteve-se hostil e somente foi conquistada após longas batalhas no
reinado de seu filho, Asoka (Asoca ou Ashoka) (r. 268 – 232 a.C.), um dos mais famosos imperadores indianos [41].
A morte de Bindusara em 272 a.C. levou a uma luta pela sucessão entre seus filhos que durou quatro anos. Em
268 a.C. ascendeu ao trono Asoka. De acordo com o Asokavadana (“narrativa de Asoka”), a mãe do imperador,
Subhadrangi, era filha e descendente de brâmanes de Champa. O que lhe conferia certo status e legitimidade,
diferentemente das origens humildes e obscuras de Chandragupta Máuria. Segundo a lenda, Asoka tinha sido
enviado para acabar com uma revolta na cidade de Taxila, notável centro de estudos budistas, durante o reinado de
seu pai. A sua missão foi bem-sucedida após negociações pacíficas. Após o fato, sua fama aumentou, e ganhou o
controle como vice-rei de Ujjain, quando se casou com Devi de Vedisa em 286 a.C. (Vidisamahadevi ou Sakyani),
além de duas outras consortes [42]. Ademais, Asoka concedeu amplas doações religiosas e de caridade pelo seu reino.
Após uma vida de prazeres mundanos, período em que era chamado de Kamasoka, de acordo com Taranatha [43],
viveu uma fase de extrema crueldade que lhe valeu o nome de Candasoka. Após sua conversão ao budismo, passou
a ser conhecido como Dhamaasoka. O evento mais importante do reinado de Asoka após a sua conversão ao
budismo foi a vitória sobre o reino de Calinga em 260 a.C., ganhando o controle das rotas para o sul da Índia, tanto
por terra como por mar, expandindo e prosperando o Império Máuria (mapa).

Mapa - Império Máuria por volta de 265 a.C.

Os horrores e misérias da guerra contra Calinga causaram profundo remorso a Asoka, conforme descrito em um
dos seus éditos em pedra[44]: “150 mil pessoas foram deportadas, 100 mil foram mortos e muitos mais pereceram
posteriormente”. Conta-se que foi essa experiência que o fez converter ao budismo e a evitar qualquer forma de
violência. A conversão parece não ter sido imediato, contudo, mas após um período de autorreflexão e reclusão de
dois anos sob influência de um monge budista, Upagupta, de acordo com o Édito Bhabra [45] da região do Rajastão.
Neste também constam a sua aceitação dos ensinamentos de Buda e compromisso com a retidão e caminho
espiritual (darma) e o senso de comunidade (sanga).
Foi durante o seu reinado que ocorreu o Terceiro Concílio Budista em Pataliputra, em 250 a.C., no qual
resultaram importantes avanços de definições doutrinárias e proselitismo da escola teravada [46] para outras regiões
como o sul indiano, a ilha de Sri Lanka, ao leste em direção à Birmânia (atual Mianmar) e sudeste asiático, e envio
de missionários da escola maaiana ao norte em direção ao Tibete, Ásia Central e China [47]. Emergiram do concílio
importantes discussões dos mais ortodoxos teravadas sobre a necessidade de conter heresias e outras versões
heterodoxas do budismo.
No aspecto externo, Asoka trocou intensas relações diplomáticas com o mundo helênico, via os gregos
macedônicos do Império Selêucida (312 a.C. – 63 a.C.) na Báctria, a noroeste da Índia. Conforme consta em seu 13º
Édito, parte escrito em sânscrito, parte em aramaico e grego, o imperador indiano chegou inclusive a enviar
representantes budistas para o mundo helênico no Mediterrâneo [48]. Tudo isso demonstrou a capacidade de projeção
e diálogo internacional de Asoka na época. Segundo a tradição a Caxemira, no norte indiano, foi incorporada pelo
máurias e ali foi construída a cidade de Srinagar. O Nepal tinha relações estreitas como parte do império, e foi dito
que uma das filhas de Asoka, Charumati, tenha se casado com um príncipe das montanhas nepalesas, Devpala [49].
Conta-nos a lenda de que a grandiosa estupa budista de Boudhanath, nos arredores de Katmandu, foi engrandecida
por ordens da princesa indiana.
A leste, a influência de Asoka se estendeu até o delta do rio Ganges. Tamralipti (hoje Tamluk) foi um importante
porto na costa da baía de Bengala a partir do qual os navios zarpavam para a Birmânia (hoje Mianmar), Ceilão (hoje
Sri Lanka) e partes meridionais da Índia. Na extensão mais ocidental, o Império Máuria controlou os povos
Gandharis, Kambojas e Yonas – este último termo genérico, uma referência a muitas nações a oeste, inclusive os
indo-gregos macedônicos – como seus aliados de fronteira. No Ceilão, ao sul, as relações foram intensas e próximas,
chegando Asoka a enviar seu filho Mahendra (“conquistador do mundo” em sânscrito) e sua filha Sanghamitra para
pregar o budismo pela ilha no 3º século a.C. atendendo aos pedidos do rei cingalês Devanampiya Tissa (r. 307 a.C. –
267 a.C.) [50]. E na região meridional indiana, há referência de contatos diplomáticos amigáveis com vários reinos,
como consta no 2º Édito: Cholas, Pandias, Stiyaputras e Keralaputras.
A desintegração do império da dinastia iniciada por Chandragupta Máuria foi um processo lento e desintegrante
iniciado após a morte de Asoka em 232 a.C. Fontes como os Puranas [51], além da literatura budista e jainista não
fornecem dados consistentes sobre a decadência imperial. O único consenso, como narra os Puranas, é de que a
dinastia perdurou 137 anos. A morte de Asoka acarretou em maiores divisões do império, em partes ocidentais e
orientais. A parte oriental do Império, com sua capital em Pataliputra, passou a ser governado por Dasarata Máuria
(r. 252 a.C. – 242 a.C.), provável neto de Asoka. De acordo com os Puranas, Dasaratha reinou por oito anos.
As províncias ao oeste e ao norte, Gandara e Caxemira, foram governadas por um de seus filhos – que fora
cegado na infância pela madrasta – Kunala (r. 263 a.C. - 242 a.C. ?) e, em seguida, por Samprati (r. 224 a.C. – 215
a.C.). Este último foi, segundo algumas fontes [52] como no capítulo Theravali (ou Sthaviravali) do sagrado livro
Kalpa Sutra [53], um importante patrono e devoto do jainismo. Essa região foi posteriormente ameaçada pelos
helênicos vindos da Báctria a quem foi praticamente perdida em 180 a.C.
Kunala provavelmente deve ter morrido aproximadamente em período próximo ao de Dasarata; de modo que
Sampriti passou a governar tanto a leste como ao norte e oeste e pode ter recuperado a unidade imperial e o trono em
Pataliputra. Este evento ocorreu em 223 a.C. Após algumas décadas, no entanto, a tendência desagregadora ficou
mais uma vez evidente. O último regente da Dinastia Máuria, Briadrata (r. c. 187 a.C. – 185 a.C.), governou por
territórios bastante encolhidos desde os tempos de Asoka. Em 185 a.C., foi assassinado em um desfile militar por
seu comandante-chefe de sua guarda, pelo general Pusiamitra Sunga, que tomou então as rédeas do poder e fundou
uma nova dinastia, a Sunga [54].
As causas do declínio da dinastia dos máurias foram múltiplas. Guerras sucessivas exauriram os recursos
imperiais, como na desgastante conquista de Calinga por Asoka em 232 a.C. Outros fatores apontam o declínio
como resultado de uma sucessão de reis ineptos e fracos após Asoka. A partição do império em partes ocidentais e
orientais após Asoka fragmentou a unidade política e pulverizou a rede de lealdades imperiais. Os demais motivos
podem ter sido a inquietação de brâmanes na conversão budista de Asoka e ao jainismo de Samprati. Ou a tendência
em fase posterior da vida de Asoka e adotada por seus sucessores de promover a não-violência que resultou em
descontentamento das castas militares e alentando possíveis usurpadores ao poder.
A Dinastia dos Sungas e Kanvas – o declínio do Império Mágada
Com a queda dos máurias em 185 a.C. a história da Índia derivou para uma tendência centrífuga. Os
acontecimentos políticos se tornaram mais difusos, envolvendo uma variedade de reis, guerreiros e pessoas. O norte
da Índia viu-se apanhado num turbilhão de acontecimentos advindos da Ásia Central, uma questão sempre
permanente na sua história, pois muitos invasores nômades, habitantes das montanhas, alvejaram as riquezas dos
vales indianos. Os arianos foram os mais remotos.
Os sucessores imediatos da dinastia dos máurias do Império Mágada e nas províncias vizinhas foram, de acordo
com os Puranas, os da Dinastia Sunga (180 a.C. – 73 a.C.) considerados descendentes de uma família brâmane
pertencente ao clã Bharadvaja. Os sungas vieram da região de Ujjain, no oeste da Índia, onde eles eram funcionários
sob os máurias. O fundador da Dinastia Sunga foi Pusiamitra Sunga (r. 180 a.C. – 149 a.C.) um general do último rei
máuria Brihadratha que conseguiu usurpar o trono matando seu mestre. Ele não tomou títulos régios, mas foi durante
todo o seu reinado referido pelo simples título Senapati, ou “General”. Pusiamitra era um defensor da fé bramânica
ortodoxa e reviveu os antigos sacrifícios védicos, incluindo o sacrifício de cavalos [55].
A literatura budista o retrata como um perseguidor de budistas, destruidor dos seus mosteiros e lugares de culto
especialmente aqueles que tinham sido construídos por Asoka. Isso claramente foi um exagero, já que as evidências
arqueológicas revelam que diversos monumentos budistas no período foram renovados [56]. Apesar de praticar o
infame regicídio para subir ao poder, Pusiamitra teve seu valor histórico ao defender o Império Mágada contra as
invasões dos gregos macedônicos bactrianos a noroeste e ao restaurar seu poder e prestígio a uma extensão
considerável pelo norte da Índia.
Quando Pusiamitra morreu por volta de 149 a.C., após um reinado de 36 anos, ele foi sucedido por seu filho, o
príncipe Agnimitra (r. 149 a.C. – 141 a.C.) que havia governado as províncias meridionais durante a vida de seu pai.
Agnimitra governou por apenas oito anos. E serviu de inspiração a Calidasa [57] para a figura do herói da sua obra
Malavikagnimitram [58].
Agnimitra foi sucedido por sucessores ineptos e fracos. A exceção por ser dada à Bagabadra (r. c. 110 – 83 a.C.),
rei sunga de certa proeminência, pois foi para sua corte em 113 a.C. que o grego Heliodoro representou como
embaixador os interesses do rei bactriano Antialcidas (r. c. 115 a.C. – 95 a.C.), e não poupou admiração e elogios
aos palacianos e cortesãos. Isso não só mostra que os sungas mantiveram estreita relação com os reis gregos
bactrianos, mas também demonstra a vitalidade da cultura indiana quando Heliodoro se converteu ao hinduísmo,
conforme fica claro nos escritos na chamada Coluna de Heliodoro próximo da cidade de Bhophal [59]. Bagabadra
mostrou ser um ativo patrono das crenças de Buda, pois foi no seu reinado que a estupa de Sanchi, em Madhya
Pradesh, foi ampliada. Ao fim de sua vida, foi sucedido por Devabuti (r. 83 – 75 a.C.), que foi derrubado por seu
ministro brâmane Vasudeva que fundou a Dinastia Kanva em 75 a.C.
Os Kanvas, de acordo com os Puranas, governaram apenas por 45 anos e tiveram quatro reis sucessivos. Após
assassinar o rei dos sungas, Devabuti, Vasudeva Kanva (r. 75 – 66 a.C.) governou por nove anos para ser sucedido
por seu filho, Bumimitra (r. 66 – 52 a.C.) e depois por Naraiana (r. 52 – 40 a.C.) e Susarma (r. 40 – 28 a.C.). A
Dinastia Kanva testemunhou o declínio absoluto do Império Mágada que se desintegrou em vários mahajanapadas.
O epicentro político da Índia se deslocou mais para o noroeste onde várias dinastias estrangeiras, como entre os
gregos bactrianos, lutaram pelo controle da região. Em 28 a.C. o último rei Kanva, Susarma, foi derrotado por outro
regente, antes vassalo dos mágadas, da Dinastia Satavana da região central indiana [60]. Este fato não só sinalizou o
fim do Império Mágada após cinco séculos de eminência, mas também a ascensão de outras regiões indianas ao
centro e sul do subcontinente.
O Império Cuchana
Os cinco séculos entre o declínio dos máurias e a ascensão do império gupta em 320 d.C. tem sido
frequentemente considerado como um período obscuro e de instabilidades na história indiana, em que dinastias
diversas digladiaram-se por controles políticos efêmeros e de curta duração na região norte da Índia. Com exceção
dada ao império dos Cuchanas (30 – 375 d.C.) sob Kanishka, o Grande [61] (r. 127 – 163 d.C.) que rivalizou em
extensão com o dos romanos e partas a oeste e à Dinastia Han dos chineses ao nordeste, o período no restante da
Índia certamente faltou em grandeza e unidade imperial.
Mas essa suposta desordem, especialmente nos dois primeiros séculos d.C., foi um período de intensos contatos e
trocas comerciais e culturais, encontrando-se a Índia na encruzilhada entre partes do continente asiático com o
mundo budista e muçulmano ao norte e europeu mais ao ocidente. A resultar, como exemplo, em ambiente de
múltiplas religiosidades, crenças e sincretismos, como ficou atestado no reinado de Kanishka em Gandara [62].
O budismo, que tinha sido fomentado por regentes indianos desde Asoka, ganhou notáveis projeções
internacionais através do reino grego bactriano e depois de Cuchana na região noroeste indiana. E a partir dali,
através de estudiosos, monges e missionários, seguindo os caminhos da Rota da Seda, expandiu-se para a Ásia
Central e para as terras chinesas. Ao mesmo tempo em que houve relatos de conversão de gregos ao budismo, como
o fez o governante Menandro I (r. 165/155 a.C. – 130 a.C.), elementos culturais helênicos bactrianos foram
incorporados ao budismo maaiano, como a adaptação da figura de Hércules como uma entidade budista, um
bodisatva [63] (Vajrapani, Jingang Shou na China ou Kongo Rikishi no Japão), protetor e guarda de Buda [64]. Ao sul
da Índia e ao sudeste asiático, as ligações estabelecidas através da expansão budista provaram ser fundamentais para
o futuro curso da história asiática. Nessa vertente, a escola teravada foi determinante [65].
Mas foi na Índia mesmo que experiências sociais e culturais cruciais tomaram seus cursos. Estrangeiros e castas
inferiores na Índia começaram a enxergar o budismo como uma comunidade mais igualitária distante das barreiras
de castas do hinduísmo ortodoxo. Isso não significou um declínio do hinduísmo. Ao contrário, formas populares de
cultos hindus como ao deus asceta Xiva e a Krishna – que tinham sido figuras marginalizadas no passado ortodoxo
predominado pelos arianos e bramânicos – ganharam proeminência nos primeiros cinco séculos de nossa era [66].
A rivalidade entre o budismo adotado oficialmente por algumas autoridades desde os tempos de Asoka e o
hermetismo das castas bramânicas pelo ortodoxismo hindu fez com que cultos heterodoxos ganhassem terreno entre
a maioria da população (camponeses, trabalhadores em geral, comerciantes, mulheres entre outros) e de
comunidades de estrangeiros. De grande importância para a renovação do hinduísmo foi a promoção realizada pelos
regentes Cuchanas e sua legitimação ao identificarem-se com certas divindades do panteão hindu. Ademais, a
legitimação religiosa foi de crucial importância para regentes estrangeiros a serem aceitos pela sociedade indiana.
Assim o fez Menandro I ao se converter por volta do ano 100 a.C. após discussões com o sábio Nagasena, e suas
cinzas foram espalhadas de obedecendo aos ritos budistas [67]. Kanishka foi identificado com Mitras, divindade
zoroastriana, mas também por vezes retratados em moedas como relacionado à Xiva.
Com relação às artes do período, as realizações foram nada menos que sublimes. As esculturas e imagens
budistas de herança indo-greco-bactriana em Gandara formaram parâmetro antropomórficos para as posteriores
representações artísticas em escolas como em Matura, além das esculturas de Bamiyan e alhures na China. Matura
se tornará o epicentro de toda a arte budista indo-cuchana possibilitando a ascensão da escola Sarnath que definiu o
estilo artístico do período gupta. Vindos do oeste, as influências pérsicas foram incorporadas no período dos sungas
e resultaram em interessantes resultados em esculturas como visto na estupa de Sanchi.
No campo social, o período testemunhou a grande codificação dos costumes, valores e normas das leis hindus
(darmashastra) no Código de Manu [68] (Manu Smriti) provavelmente escrito entre os séculos 2 e 3 d.C. A
ordenação geral que permeia a obra foi fruto de sua época, de incertezas e questionamentos depois do declínio dos
máurias e sungas, a buscar fontes tradicionais de normas sociais. Todos esses elementos, de renovação popular de
cultos, de novos sincretismos e escolas artísticas e codificações de normas formaram a base social e cultural de uma
nova era indiana, a do império dos guptas (320 d.C. – 550 d.C.).
As narrativas da mitologia hindu e o florescimento cultural indiano
Procederemos a compreender como foi construída a narrativa e estrutura mitológica indiana. Foi no período
desde os Vedas até os primeiros séculos d.C. que obras e narrativas foram feitas a ordenar não somente a sociedade
e suas normas, como o Código de Manu, mas a dos deuses e outras entidades do vasto panteão hindu. Essa vastidão
se explica em boa parte por essa religião ter sido uma construção de séculos, a incorporar e ordenar diferentes
divindades do universo indiano. Há estimativas nos tempos atuais de que são aproximadamente 330 milhões de
entidades e deuses [69].
Nessa imensa estrutura, no topo, situam-se na trindade sagrada (trimurti) os deuses Brama (representa a força
criativa ativa no universo), Vixnu (a manutenção e preservação da ordem do universo) e Xiva (destruição e
renovação do universo). Brama é considerado muito distante dos anseios da humanidade e pouco cultuado, apenas
em raríssimos templos na Índia, como na vila sagrada de Pushkar no Rajastão. Vixnu e Xiva dividem os corações da
maior parte dos adeptos hindus, vixnuístas e xivaístas, respectivamente.
Vixnu (também chamado de Naraiana e Hari) é comumente retratado com pele pálida azul e segurando nos seus
quatro braços uma concha (representando os cinco elementos da criação ao soprá-la, Om), lótus, disco de energia
(suprema arma a controlar os demônios) e um cajado (força física e mental originária de todo o universo). Segundo
os Puranas, ele encarnou-se em avatares [70] através de dez personagens (dashavatara) sendo os mais conhecidos
Rama, Krishna e, segundo algumas interpretações, Buda. Assim descreve o Bhagavad Gita sobre os avatares de
Vixnu:
Em qualquer lugar e sempre que a verdade vacilar e a mentira dominar, Eu me manifestarei, ó descendente de Bárata.
Para restabelecer os princípios religiosos, para salvar os devotos e aniquilar os canalhas, Eu surjo em cada milênio.

(Bhagavad Gita, canto IV, versos 7 e 8)[71]

Segundo um dos Puranas, os dez avatares de Vixnu serviram para ordenar a sociedade humana e o cosmos,
atendendo aos seus princípios. Os avatares manifestaram-se em partes zoomórficas e antropomórficas. O primeiro
foi Matsya, em parte forma de peixe, e foi o que resgatou Manu de um dilúvio, apesar dos avisos prévios feitos.
Assim ele resgatou o ordenador das sociedades humanas da catástrofe maior da natureza.
Em segundo, Vixnu veio como Kurma, parte em forma de tartaruga. Em que foram salvas a figura da
imortalidade (Amrita), as divindades com relação às asuras (“demônios”) e a ordem cósmica ao garantir o fluxo dos
oceanos de leite do universo (kshir sagar) a representar a galáxia Via Láctea. Depois veio em parte como javali. Que
combateu e derrotou o demônio Hiranyaksha ao mergulhar nas águas e erguer a Terra das profundezas. E depois
como o leão Narasimha, que se manifestou para novamente derrotar Hiranyaksha quando testou a fé de seu filho.
Esse ciclo de quatro avatares, chamada Era da Satya Yuga (“Era da Verdade”), em o mal e a mentira eram
desconhecidos e prevaleciam o bem e a verdade. A era subsequente foi a dos homens, na Treta Yuga, em que a
ganância dos homens é maior e suas virtudes são menores, mais materialistas e menos propensos à espiritualidade.
Nessa era, primeiro veio Vixnu como Vamana, um brâmane anão, que foi derrotar o deus dos demônios, Bali, a
pedido do deus Indra, irmão mais velho de Vixnu. Vamana teve audiência com Bali que resolveu atender ao pedido
do brâmane por um pedaço de terra para viver. Ao constatar a sua reduzida estatura, Bali concedeu ao seu pedido a
ser definido em três passos dados. Mas Vixnu, na forma do anão, deu o primeiro passo do tamanho da galáxia, o
segundo abarcando o Universo e o terceiro sobre a cabeça de Bali. Segundo a tradição da época, Bali,
inteligentemente, forçou este último ato, pois a sola sobre a cabeça significa a submissão de quem coloca o pé, em
forma de autoridade, vida e posses [72].
Parashurama, um brâmane guerreiro, foi o avatar seguinte, no qual Vixnu veio vingar todos aqueles guerreiros
(xátrias) arrogantes que mataram injustamente brâmanes. O avatar seguinte foi Rama, grande e perfeito homem, com
suas façanhas descritas no épico Ramaiana [73]. Neste maior épico da mitologia indiana, uma miríade de tópicos é
abordada, incluindo a guerra, o amor, a fraternidade, a conduta ideal, amor filial entre outros. É essencialmente a
história de um governante ideal, filho, pai e homem. Uma das histórias mais dramáticas do épico retrata Rama a
obedecer lealmente aos desejos de seu pai, o rei Dasaratha, de viver 14 anos na floresta, junto com sua esposa, Sita,
e seu irmão Lakshman. Durante sua estadia na floresta, o demônio Ravana sequestra Sita. Rama vai prontamente
atrás dela, e nisso ele busca aliados na floresta e faz amizade com o rei dos macacos, Sugriva e seu devoto
Hanuman. No final, ele trava grandiosa guerra com Ravana, supostamente imperador da ilha de Lanka (Sri Lanka) e
resgata Sita para depois governar por mais mil anos. Sita, ao final de sua vida, precisa provar de que o filho dela não
é fruto com Ravana, e assim deu luz a gêmeos e foi resgatada de volta ao ventre da Terra por sua mãe, a deusa
Bhumi, provando sua suprema lealdade e pureza [74].
Em momento posterior, Vixnu encarna-se como Krishna, conforme descrito no Bhagavad Gita, além Maabárata
e nos Puranas. Krishna foi um avatar complexo e nem sempre de conduta exemplar, apresentando-se com todas as
contradições humanas. Num dos episódios mais conhecidos descritos nos textos purânicos (Bhagavata Purana)
Krishna, que era afeito aos prazeres mundanos da vida, depara-se com várias donzelas solteiras (gopis) a banharem-
se desnudas no rio Yamuna. Na ocasião, Krishna decide por roubar as roupas delas e anuncia sua presença em cima
de uma árvore, conforme narrado:
No início da manhã, as gopis costumavam ir ao rio Yamuna para tomar banho. Elas se reuniram em conjunto, segurando as mãos umas das outras, e
em voz alta cantaram hinos louvando Krishna. É um costume antigo entre meninas e mulheres que quando tomam banho no rio colocam suas vestes
sobre a margem e mergulham na água completamente nuas. A parte do rio onde as meninas e as mulheres tomam banho era estritamente proibido a
qualquer membro do sexo masculino, e este ainda é o sistema.
(...)
Quando as gopis viram Krishna que permanecia forte e determinado [em cima de uma árvore próxima com as vestes delas], viram que não tinham
alternativas a não ser obedecer Sua ordem [de sair da água e ir buscar as vestes com ele]. Uma após outra, elas saíram da água, mas porque elas
estavam completamente nuas, elas tentaram cobrir sua nudez, colocando a mão esquerda na região pubiana. Todas elas foram assim tremendo. A
atitude delas foi tão pura que o Senhor Krishna tornou-se imediatamente satisfeito [75] (tradução nossa).

Buda é considerado como avatar de Vixnu apenas entre alguns da comunidade de vixnuístas, pois muitos
desconfiam de que isso foi uma maneira de incorporar o budismo ao sistema religioso hindu [76]. E, por fim, aquele
último avatar que está por vir, Kalki, a apresentar-se em cima de um cavalo branco e com espada flamejante a
eliminar todo o mal e restaurar a ordem, darma, no universo [77].
Xiva, o deus asceta, é a terceira divindade da Tríade (trimurti) hindu. Como todas as coisas e formas de vida
estão sujeitas a deteriorar e decair, um destruidor era necessário; e a destruição é considerada como a função
peculiar de Xiva. Isso parece pouco em harmonia com a forma pela qual ele é normalmente representado. Deve-se
lembrar, porém, que, de acordo com o ensinamento do hinduísmo, a morte não é o fim, no sentido de passar para a
não-existência, mas simplesmente uma mudança para uma nova forma de vida. Aquele que destrói, portanto, faz
com que os seres venham a assumir novas fases de existência. O Destruidor é realmente um re-Criador; daí o nome
Xiva, o brilhante ou feliz, que é dado a ele, o que não teria sido o caso, se ele tivesse sido considerado como apenas
como o destruidor, no sentido comum do termo [78].
Xiva normalmente é representado com um terceiro olho na sua testa (tri netra) e nu com o cabelo preso em um
coque. No seu cabelo aparece uma lua crescente e uma caveira, a simbolizar a quinta cabeça de Brama que foi
punido por desejar a sua filha, Sandhya. Um colar de cabeças e serpentes como pulseiras atestam ao seu caráter
impiedoso e de ligação ao mundo da natureza, como Pashupati, “senhor dos animais”. Com frequência Xiva está em
postura de dança (Nataraja), com um fogo (agni, “fogo divino”) numa das mãos e na outra um tambor (damaru, “o
som da criação”) representando o ritmo da destruição criativa do universo (fig.). Ao aparecer pisando num anão
(Apasmara), representa-se a vitória sobre a ignorância. O ciclo que aparece ao seu redor, na figura, é o ciclo da vida
e morte do universo. No pedestal, abaixo do anão, há uma referência à flor de lótus, significando renascimento [79].
Fig. – Escultura em bronze de Nataraja.

A esposa de Xiva era Parvati, muitas vezes representada como seu lado mais destrutiva e terrível, Kali e Durga.
Ela é, de fato, uma reencarnação de Sati (ou Dakshayani), a filha do deus Daksha. Daksha não aprovava o
casamento de Sati e Xiva e até foi mais longe e realizou uma cerimônia de sacrifício especial a todos os deuses,
exceto a Xiva. Indignado com esta desfeita, Sati se jogou no fogo sacrificial. Xiva reagiu a esta tragédia através da
criação de dois demônios (Virabhadra e Rudrakali) de seu cabelo que causaram grandes estragos na cerimônia e
decapitou Daksha. Aos outros deuses, Xiva apelou para que acabassem de vez com a violência e, cumprindo a sua
promessa, trouxe Daksha de volta à vida, mas com a cabeça de um carneiro (ou cabra). Sati acabou por ser
reencarnada como Parvati em sua próxima vida e novamente casou-se com Xiva [80].
De com os Puranas, Xiva teve um filho com Parvati, o deus Ganesha. O menino foi na verdade criado a partir de
terra e argila para fazer companhia a ela e protegê-la, enquanto Xiva continuou suas andanças meditativas. No
entanto, Xiva voltou um dia e, encontrando o menino que guardava a sala onde Parvati foi tomar banho, perguntou
quem ele era. Não acreditando que o menino era seu filho, mas um mendigo impudente, Xiva invocou os demônios
bhutaganas que lutaram contra o menino que, eventualmente, conseguiram distraí-lo com a aparência da bela Maya
(“ilusão”). Enquanto admirava a sua estonteante, mas ilusória beleza, Maya cortou-lhe sua cabeça. No tumulto,
Parvati apressada saiu de seu banho e gritou que seu filho tinha sido morto. Percebendo seu erro, Xiva, em seguida,
enviou o pedido desesperado para fazer com que o menino fique inteiro de novo, e a única cabeça por perto era a de
um elefante. E assim Ganesha, o deus com cabeça de elefante, nasceu [81]. Outros filhos de Xiva são Skanda ou
Karttikeya, o deus da guerra e Kuvera, o deus dos tesouros.
Entre os feitos de Xiva que atestam seu caráter virtuoso e exemplar, aparecem episódios de auto-sacrifício,
quando Vasuki, o rei das serpentes, ameaçou vomitar veneno de cobra através dos mares. Xiva, assumindo a forma
de uma tartaruga gigante, recolheu o veneno na palma da mão e o bebeu. O veneno queimou sua garganta e deixou
uma cicatriz permanente azul, daí um dos seus muitos títulos se tornou Nilakanta ou “Pescoço Azul” [82].
Xiva está intimamente associado com o linga (ou lingam) - um falo ou símbolo de fertilidade ou energia divina
encontrada em templos ao deus. Após a morte de Sati, e antes de sua reencarnação, Xiva ficou de luto e foi para a
floresta Daru para viver com os sábios (rishis). No entanto, as esposas dos rishis logo começaram a se interessar por
Xiva. Movidos pelo ciúme, os rishis enviaram um grande antílope e, em seguida, um tigre enorme contra o deus que
foram rapidamente dominados e Xiva passou a vestir a pele do tigre. Os sábios então amaldiçoaram a masculinidade
de Xiva que, em consequência, cujo órgão caiu ao chão. Quando seu falo atingiu o chão, terremotos de grandes
proporções começaram e os rishis se apavoraram e clamaram por seu perdão. Isto foi concedido, mas Xiva disse-
lhes que o culto do falo como o linga simbólico deveria ser observado para toda a eternidade [83].
Uma infinidade de outras divindades e entidades recheia os contos dos épicos e dos Puranas, que por volta dos
últimos séculos antes de nossa era estavam ganhando suas versões definitivas. Além dessa literatura, um ramo
literário laico, a tratar de leis, costumes, valores e contos morais foram escritos, classificados como xastras
(shastras). Um conjunto importante de compêndios e tratados que se subdivide em aqueles que tratam das questões
morais de contos populares, Nitixastra (Neeti Shastra), como a coleção de poemas no Sumati Satakam de Baddena
Bhupaludu (1220 – 1280?) que inspirará a literatura desse gênero de outros povos como entre os persas.
O Artaxastra (Arta Shastra), como o de Cautília, trata essencialmente das questões de política e governo [84].
Outro gênero, Darmaxastra (Dharma Shastra), lida com os deveres, direitos e responsabilidades da pessoa, família e
sociedade [85]. E aquela tradição que enfatiza os prazeres, desejos sensuais e espirituais, agrupados como Kamaxastra
(Kama Shastra) – do qual deriva uma parte relacionada a conselhos sexuais, como o Kama Sutra de Vatsyayana
(século 2 d.C.) [86].
Para as questões do corpo, higiene, respiração, concentração e meditação houve a influente compilação de sutras
(coletânea de aforismos) por Patanjali (c. 400 d.C.) voltadas para a Ioga (do sânscrito yuj, “somar, juntar, unificar”)
tirando de tradições e práticas mais recuadas no tempo [87]. Entre esses escritos iogues, o Hata Ioga ganhou maior
popularidade, principalmente no Ocidente, que trata mais das posturas físicas. Mas há uma enormidade de outras
escolas, o jnana, o raja, o karma, o laya, o tântrico, o bakhti entre outros.
Em suma, tal como no Japão no período Heian (794 – 1185) ou como o fez o Venerável Beda (673 – 735)
durante a decadência do Império Romano Ocidental, foi no período de desunidade e crise política que a Índia
testemunhou um fervor social e cultural. Épicos antigos como o Maabárata, Ramaiana, o conjunto dos Puranas
foram compilados nesses tempos conturbados da Índia. Assim como os xastras (shastras) de cunho laico, ou os
escritos iogues. E o Código de Manu. Serviram de orientação, ensino, exemplo de vida e conduta, ética e filosofia
para aqueles que viveram num período de desorientação.
Os Guptas
O império gupta representou um zênite unificado da Índia, entre 320 a 550 d.C. No período, ficaram conhecidas
as notáveis realizações nas artes, arquitetura, ciência, religião e filosofia indiana. E foram sintetizadas e amplificadas
as criações culturais do período anterior. Foi no reinado de Chandragupta I (r. 320 – 335) que os guptas
consolidaram sua mais ampla dominação sobre grande parte da Índia, algo inexistente desde a queda dos máurias.
Ademais, houve um período sustentado de prosperidade durante dois séculos e meio que veio depois a ser
considerado na história indiana como a “Idade de Ouro”.
Ainda permanecem obscuras as origens da Dinastia Gupta. Escritos de monges budistas consistem na fonte mais
recorrida sobre isso, como os diários de viagem dos monges chineses Faxian (337 – 422), Xuazang (602 – 664) e I
Tsing (635 – 713), valiosos e únicos a respeito. O primeiro governante (adiraja) que é narrado da dinastia remete a
Sri-Gupta (c. 240 – 280) que aparentemente governou, tal como os máurias, a partir de Pataliputra e partes da região
de Bengala mais a leste. Sri-Gupta foi sucedido no trono por seu filho Gatotkacha (c. 280 – 319) [88].
Mas foi a partir do governo de Chandragupta I (r. 305 – 335) que o domínio dos guptas ganhou maior extensão.
E isso foi em parte resultado de anos de alianças e casamentos com poderosas famílias e clãs a assegurar uma
dominação maior no norte indiano. A cavalaria ligeira, assim como uma disciplinada infantaria garantiram
campanhas bem sucedidas dos guptas em campos de batalha. No campo político, um dos maiores feitos políticos
iniciais de Chandragupta I foi seu casamento com a princesa Kumadevi do reino Licchiavi [89], no atual estado de
Bihar e partes do Nepal, região onde viveu Sidarta (Buda). Com isso, o estadista gupta garantiu uma ampla base
territorial com abundantes minas de minério de ferro, a fornecer material para a metalurgia, para a confecção de
armas e uma valiosa mercadoria para o comércio.
Quem sucedeu Chandragupta foi seu filho, Samudragupta (r. c. 335 – c. 380), um gênio militar que expandiu as
fronteiras do império Gupta. Além de consolidar a dominação no norte indiano, Samudragupta avançou e incorporou
as terras mais meridionais ao sul dos Montes Víndias. Alguns estimam que os Guptas nesse período estenderam-se
desde os Himalaias ao norte, até os rios Krishna e Godaveri ao sul, de Balkh no Afeganistão a oeste até o rio
Brahmaputra na região de Assam no leste (mapa).
Mapa - Império Gupta sob Chandragupta II e extensões feitas por Samudragupta, século 4-5 d.C..

O testamento mais eloquente dos feitos de Samudragupta é a grande quantidade de moedas de ouro achadas com
sua figura e uma inscrição presente numa coluna antes erguida por Asoka em Allahabad. Neste, constam as
qualidades do regente (prashasti, espécie de elogio) que promoveu a convivência entre as diversas crenças no seu
império [90]. Como exemplo, concedeu ao rei do Ceilão (hoje Sri Lanka), Sri-Meghavanna [91] (304 - 332), permissão
para a construção do imponente mosteiro budista na cidade de Bodh Gaya, em Bihar, onde Buda atingiu a
Iluminação.
No aspecto político, Samudragupta seguiu cuidadosamente os conselhos de Cautília e assegurou alianças e
lealdades com regentes locais, como recomenda os deveres de um rei (rajdarma) no Artaxastra. Como filantropo,
doou grandes valores de dinheiro e promoveu de acordo com sua paixão, as artes, a educação, a poesia e a música.
Chandragupta II (380 – 413), após uma breve luta sucessória pelo poder, subiu ao trono após desbancar seu
irmão mais velho, Ramagupta. Assim nos é contado nos fragmentos achados da obra perdida Devichandragupta de
Visakhadatta (séculos 4 a 5 d.C.) [92]. Também em versões diferentes como no Harshacharita (“Vida de Harsha”) de
Banabhatta (século 7 d.C.). Nesta última, o escritor conta-nos de que Ramagupta manteve apaixonado interesse por
uma rainha, Dhruvadevi, que acabou desistindo de sua mão para seu adversário político e concorrente amoroso, o rei
de Matura [93]. Somente após esses eventos dramáticos que o irmão mais novo de Ramagupta, Chandragupta II, com
seus aliados mais próximos, foi ao encontro do inimigo, resgatou Dhruvadevi e assassinou o regente rival.
Eventualmente, Ramagupta foi morto por seu irmão mais novo que se casou com Dhruvadevi tempos depois. Mas
essa versão pode ter suas dúvidas, pois as evidências de Ramagupta não aparecem em inscrições nem em moedas do
período [94].
Seguindo os feitos imperiais de seu pai, Chandragupta II foi um governante tolerante, capaz e administrador
qualificado. Chegou a expandir seu reino a oeste para a costa do Mar Arábico. Sua coragem e audácia lhe renderam
o título de Vikramaditya [95] (“Bravo como o Sol”). Para melhor governar a vastidão do império expandido de forma
mais eficiente, Chandragupta II fundou sua segunda capital em Ujjain. Ele também teve o cuidado de reforçar sua
frota marítima. Os portos de Tamralipta e Sopara consequentemente tornaram-se centros movimentados de comércio
[96]
. Ele foi um grande patrono da arte e da cultura também. Alguns dos maiores estudiosos do dia, incluindo os
chamados Navaratna (“Nove Gemas”) enfeitaram sua corte [97]. Numerosas instituições de caridade, orfanatos e
hospitais beneficiaram-se de sua generosidade. E locais de repouso para os viajantes foram criadas ao longo das
estradas.
Em termos políticos e administrativos, o império gupta foi dividido em províncias, pradesh, nome até os dias
atuais usados na Índia – como em Uttar Pradesh, Madhya Pradesh, Andhra Pradesh, Arunachal Pradesh – e foram
nomeados a partir da capital (visando assim maior centralidade e disciplina administrativa) chefes administrativos
para cada província. Em regiões mais meridionais, pela grande distância da capital, houve prudência ao delegar a
autoridade aos regentes originais após as campanhas vitoriosas, assim como o fez Samudragupta, exigindo apenas
certa parcela da cobrança de impostos.
No aspecto jurídico, na área penal, as penas foram mais brandas e a tortura banida [98]. As pessoas podiam
circular entre bairros e cidades livremente, a lei e a ordem prevaleceram sobre os furtos e roubos. Assim constatou
um dos primeiros dos peregrinos budistas chineses a escrever sobre os costumes indianos, Faxian (Fa-Hien ou Fah-
Hian) (337 – c. 422). As condições sociais e econômicas da população em geral foram descritas como satisfatórias e
seguras pelo chinês. Muitos optaram pelo vegetarianismo e evitaram as bebidas alcoólicas. Assim segue Faxian
sobre a condição da população à época de Chandragupta II na cidade de Matura:
As pessoas são prósperas e contentes, livres de qualquer imposto ou restrições oficiais. Apenas aqueles que trabalham na terra do rei pagam um
imposto, e eles são livres para ir ou ficar como desejam. Os reis governam sem recorrer à pena capital, mas os infratores são multados pouco ou
muito de acordo com a natureza do seu crime. Mesmo aqueles que conspiram alta traição só têm a mão direita cortada. Todos os serventes do rei
recebem emolumentos e pensões. As pessoas neste país não matam seres vivos, não bebem vinho, e não comem cebola ou alho. A única exceção a
isso são os chandalas, que são conhecidos como "homens maus" e são separados dos outros. Quando eles entram em cidades ou mercados, alardem
com um pedaço de madeira para anunciar sua presença, para que os outros possam saber que eles estão chegando a evitá-los (tradução nossa)[99].

As moedas de ouro e prata foram emitidas em grande número, um indicativo geral da vitalidade da economia
gupta. O comércio floresceu tanto dentro do reino e quanto fora. Algodão, especiarias, pedras preciosas, pérolas,
metais preciosos foram exportados por via marítima. As relações comerciais com Oriente Médio, África e Extremo
Oriente foram notáveis. Da África vinham marfim e cascas de tartaruga. Seda e plantas medicinais da China e do
Extremo Oriente. No mercado interno, alimentos, grãos, especiarias, sal, pedras e barras de ouro constituíram os
produtos mais negociados [100].
O período gupta mostrou-se tolerante diante da diversidade religiosa nos primeiros séculos de nossa era. Os
regentes e brâmanes dominantes eram em geral devotos vixnuístas, que adoram a Vixnu. O que não os impediu de
serem tolerantes com os outros crentes hinduístas, budistas e jainistas. Os mosteiros budistas receberam doações
generosas, como constatou outro cronista chinês budista à época, Yijing [101], assim como a construção e manutenção
de casas de repouso a monges e peregrinos budistas. Nalanda, no atual estado de Bihar, foi local proeminente de
estudo e educação budista na era gupta. O jainismo floresceu em várias regiões indianas, como demonstra as
cavernas em Udayagiri em Orissa, e as inúmeras estátuas de tirthankaras [102] em Bengala, Gorakhpur, e Gujarate.
No campo artístico, o sânscrito alcançou status de lingua franca e estabeleceu-se como a norma culta da corte e
das artes. Foi nessa língua que Calidasa escreveu os épicos Abhijnanasakuntalam (“O Reconhecimento de
Sakuntala”), Meghaduta (“O Mensageiro das Nuvens”), Raghuvansha (“As Façanhas de Raghu”) e Kumarsambhaba
(“O Nascimento de Kumara”). Harisena, outro poeta de renome, panegírico e flautista, compôs no pilar em
Allahabad os grandes feitos de Samudragupta, por volta de 345. Sudraka escreveu três obras consideradas seminais
para o teatro indiano: Vinavasavadatta, o monólogo Padmaprabhritaka e a sua mais famosa peça, Mrichchhakatika
(“Pequeno Carrinho de Argila”). Vishnu Sarma escreveu as famosas fábulas indianas, Panchatantra (“Os Cinco
Princípios”), que influenciaram outras literaturas depois de traduzidas como no persa (na obra “Kelileh o Demneh”)
e árabe (em “Kalila wa dimna”)[103].
As obras literárias e científicas foram publicadas tanto em sânscrito, em páli e também em forma mais corrente,
o prácrito. Varahamihira (505 -587) escreveu a obra enciclopédica Brihat-Samhita que abrangeu os campos da
astrologia, órbitas planetárias, eclipses, chuvas, nuvens, arquitetura, crescimento das plantações, fabricação de
perfume, matrimônio, relações domésticas, pedras preciosas, pérolas e rituais. O gênio matemático e astrônomo
Ariabata (476 – 550) escreveu o seu magnum opus Aria Batiia, abrangendo aspectos da geometria, trigonometria e
cosmologia, chegando inclusive a sugerir o modelo heliocêntrico cerca de mil antes de Copérnico [104]. E as inúmeras
publicações de medicina indiana ayuvérdica (ou aiuvérdica) refinaram as práticas cirúrgicas e inoculação contra
doenças contagiosas.
Os melhores exemplos da pintura, escultura e arquitetura dos guptas podem ser encontrados em Ajanta, Ellora,
Sarnate, Matura na Índia, e Anuradhapura e Sigiriya no Sri Lanka. Floresceu nos templos o uso da música vocal,
instrumentos musicais como a flauta e mridangam (espécie de tambor), símbolos de devoção. Em suma, as
realizações artísticas e filosóficas no período foram profundas e férteis. Artistas e literatos foram encorajados a
meditar sobre a capacidade humana conjugada com a divina e capturar sua essência em suas criações. Como foi
sugerido em um dos Puranas, no Agni Purana, "ó Senhor de todos os deuses, ensina-me em sonhos como realizar
todo o trabalho que tenho em minha mente” [105].
Cumaragupta I (c. 415 – 455) sucedeu a morte de seu pai, Chandragupta II e governou o império gupta, manteve
a ordem e paz [106] e chegou a afastar ameaças de uma tribo chamada de Pusiamitra – não confundir com Pusiamitra
Sunga. Foi sucedido por seu filho, Scandagupta (r. c. 455 – c. 467), últimos dos regentes soberanos dos guptas. Este
conseguiu repelir as invasões dos hunos brancos (ou heftalitas), foi um estudioso e realizou grandes obras de
construção e manutenção de barragens como no lago Sudarshan em Gujarate. Mas esses foram os últimos dias de
glória do império gupta.
Após a morte de Scandagupta a dinastia se envolveu com conflitos internos. E iniciou-se o gradual declínio do
império dos guptas. Os governantes não tinham mais as capacidades de estadistas dos regentes anteriores para
manter a coesão e a ordem política interna. Os hunos brancos (heftalitas) e outros estrangeiros fustigaram as
fronteiras, colocando em xeque a prosperidade econômica do império. Ademais, os reis guptas posteriores
mantiveram-se mais ocupados em autoindulgências do que a administrar os desafios políticos prementes. Após a
derrota e captura do líder heftalita Mihirakula (r. 502 – 530), durante a regência gupta de Narasimagupta Baladitya
(r. c. 510 – 550), os hunos brancos voltaram a assombrar o império para, finalmente, dar os golpes fulminantes
aproximadamente no ano de 550.
As seguintes linhas da obra Mricchakatika (“Pequeno Carrinho de Argila”) de Sudraka apropriadamente resume
a ascensão e queda dos guptas:
O destino brinca com nós como baldes num poço,
Onde é preenchido um, e noutro uma concha vazia,
Onde um ascende, outro descende;
E mostra como a vida é feita de mudanças – um momento, céu, outro momento, inferno.
(tradução nossa) [107].

Literatura Sangam
Na Índia meridional, ao sul dos Montes Víndias e atravessando o planalto do Decão, a história guarda um
percurso diferente. Nos dois últimos milênios antes de nossa era, as influências do norte indiano chegaram através
do nordeste e planalto ocidental (Gates Ocidentais) que gerou ao longo das gerações culturas e línguas próprias,
dravidianas, com características únicas [108].
A cultura védica chegou às terras meridionais indianas através de uma complexa dinâmica cultural. Os textos
védicos e purânicos chegaram ao sul talvez antes do reino de Asoka [109] como também línguas que depois se
popularizaram na escrita páli e prácrito com a chegada de hinduístas, budistas e jainistas. A transmissão do norte
indiano para o sul se deu muito em parte por brâmanes que hinduizaram e propagaram ideologicamente sobre
sociedades locais, muitos de sociedade tribais de regiões ermas, a serem considerados e incorporados como párias
ou intocáveis no sistema de castas hindus (varnas). Nesse intento, os brâmanes se consolidaram aliando-se a
regentes guerreiros locais e ordenando os valores e a sociedade, seguindo o épico Maabárata que preceita delegar
tribos das florestas, mangues e desertos a desempenhar funções indesejáveis como cavar poços, providenciar água e
comida.
Mas essa influência não foi somente unilateral, a imposição da cultura védica e do sânscrito sobre o sul da Índia
[110]
. Houve no sul uma efervescência literária, reunidas e compiladas na chamada Literatura Sangam [111], que reúne
escritos a respeito da história, religião, cultura, sociedade indiana, além de ensinamentos morais, valores e casos de
aventura, amor e morte. A Literatura Sangam é essencialmente secular e foram escritas na língua tâmil. Alguns de
seus autores, como Thiruvalluvar (c. século 3 a.C. a c. século 1 d.C.), na sua obra Thirukkural escreveu
extensamente sobre a ética e várias questões da vida como a riqueza, virtudes e amor. O poeta tâmil Mamulanar (c.
séculos 2 ou 3 d.C.), por sua vez, interpretou os incidentes históricos e militares na Índia [112].
Segundo o Tolkappiyam [113], os poemas Sangam dividem os aspectos humanos em duas categorias: o campo
interno (agam ou akam), e o campo externo (puram). Os temas do campo interno referem-se aos aspectos do amor,
paixão, sentimentos e desejos e são tratados de forma metafórica e abstrata. Os do campo exterior discutem as
experiências humanas como o heroísmo, valentia, ética, benevolência, filantropia, vida social e costumes [114]. Essa
divisão em agam e puram não é rígida, mas depende da interpretação no contexto específico.
Essas emoções assim definidas correspondem em parte às paisagens (thinai) classificadas de acordo com a
literatura Sangam [115]. As emoções ligadas à poesia, de cunho interiorano, agam, correspondem às paisagens de
regiões montanhosas (kutinji), florestas (mullai), terras agrícolas (marutham), regiões costeiras (neithal) e desertos
(paalai). Além dessas paisagens vinculadas, há sentimentos conturbados sem correspondência geográfica, o
perunthinai e kaikkilai, casos de amor não correspondido e inadequado, respectivamente.
Eis um exemplo de poema thinai, compostas em tâmil, com referências aos lacerantes sentimentos de agonia,
espera e separação, da esfera agam, e a íntima relação desses sentimentos de uma amante com a paisagem, cores,
clima invernal, flora e fauna montanhosa, kutinji:
Brotos de feijão preto
estão rosas e frescos,
como pés emaranhados
de codornas de briga,
largados na haste
além de seu tempo.
As vagens maduras
são arrebatadas
por furiosas manadas de veados!

É início de inverno já;


agonia desta temporada,
insuportável;
e há apenas uma cura para isso:
ser envolvido
mais uma vez
nos braços fortes
e o peito largo
do meu homem.
(tradução nossa) [116]

As condições geográficas forneceram, no sul da Índia, excepcional fertilidade ao longo do vales de rios, como o
Godaveri e Krishna, que fluem das regiões planálticas para as regiões costeiras, e determinou a ascensão e poderio
dos reinos locais. Com isso, a propensão e abertura aos mares foram evidentes e predispôs esses reinos ao contato e
comércio internacional. No interior, contudo, pelas vias terrestres, os planaltos e florestas contribuíram para um
maior isolamento de unidades políticas uma das outras.
Os vales dos grandes rios foram aquelas que propiciaram condições para grandes contingentes populacionais
decorrentes do sistemático cultivo de arroz por canais de irrigação, represas e poços de água, obras a serem
coordenadas por autoridades centrais. Eram esses os locais de artesãos e agricultores, de acordo com a literatura
Sangam. As regiões das montanhas (kurinji) eram habitat de pastoralistas. Os das florestas (mullai), caçadores e
coletores. Nos desertos (paalai), o local era de bandidos e assaltantes a ser evitado por viajantes. As regiões
costeiras (neytal), por sua vez, seriam a de pescadores e comerciantes marítimos, a viver da pesca, sal e comércio.
Os contatos com o meio internacional marítimo levaram os produtos e a cultura indiana para os grandes centros
urbanos e portos do Oceano Índico. Há relatos, por exemplo, de Salomão, na Bíblia (Reis, 10:22) [117], das riquezas
das terras indianas: ouro, prata, marfim, macacos e pavões. O grego Megástenes relata na sua obra Indica [118] a
prosperidade dos pandias a comerciar pérolas no quarto século a.C. O Artaxastra de Cautília nos conta sobre o
vibrante comércio de conchas, diamantes, pérolas, pedras preciosas e ouro [119]. Essa prosperidade resultou em
crescimento de alguns reinos meridionais costeiros sobre outras unidades menores da região.
O reinos de Calinga e de Satavana
Por volta do segundo ou primeiro século antes de nossa era, a atual região indiana de Orissa, à época o reino de
Calinga (mapa), foi conquistada por Karavela (c. séculos 2 e 1 a.C.), da Dinastia Mahamegavana (c. 250 a.C. –
século 5 d.C.), após a queda da dinastia dos máurias. Karavela deixou registros de seus feitos como consta em
prácrito na inscrição Hathigumpha (“Caverna do Elefante”) em Udayagiri, datado por volta de 150 antes de nossa
era, no décimo terceiro ano de seu governo [120]. Na inscrição ele se denomina “Supremo Senhor de Calinga”
(Kalinga Adhipati), sendo provável descendente da Dinastia Chedi (c. 600 a.C. – 300 a.C.) que havia migrado do
leste de Madhya Pradesh para Calinga, a sudeste. Ele também se refere como marajá (maharaja, “grande rei”), título
que o indica como sucessor das dinastias antes reinantes na região, dos Nandas e máurias [121].

Mapa - Reino de Calinga, em 265 a.C.


Acredita-se que Karavela tenha sido um jainista e defensor do princípio da não-violência (ahimsa). Mas isso não
o impediu de liderar campanhas bem sucedidas em regiões distantes ao norte, para além do reino mágada [122] e
chegando a ameaçar a presença dos indo-greco-bactrianos (chamados de yavanas) a noroeste. Ao sul, Karavela
defendeu uma ampla aliança em forma de confederação de regentes dravidianos (tamiradeha sanghata).
A prosperidade do reino de Karavela era tamanha que houve abolição de impostos para a grande maioria de seus
súditos, a partir de seu sexto ano de governo, entre os habitantes das cidades (paura) e do interior (janapada).
Karavela incentivou as festividades ao ar livre [123], as artes da dança, música, e uso de instrumentos musicais
(tauryatrika) que tinham sido proibidos durante a Dinastia máuria anterior. Nesse sentido, Karavela revitalizou o
senso de orgulho do reino de Calinga que tinha sido devastado pelas campanhas de Asoka em 260 a.C. [124].
A unidade política do reino de Calinga parece ter desintegrado após a morte de Karavela. Seu filho e sucessor,
Kudepasiri, de acordo com a inscrição Mancapuri na caverna de Udayagiri, nos legou relatos sem maior
importância. Ainda que à época, Megástenes, de acordo com o que narra Plínio, o Velho (23 – 79) em Naturalis
Historia [125], descreveu em termos grandiosos sobre a população da capital Calinga, que ele denomina de Parthalis.
Outra dinastia, Satavana (mapa), parece ter tido mais continuidade do que o da dinastia de Karavela. Os Puranas
relatam que esse reino durou 460 anos, mas pouco é conhecido de suas origens. O pouco que é revelado nos textos
purânicos e em inscrições na cordilheira dos Gates Ocidentais, em Nanaghat, é de que descendem de Simuka [126] (c.
30 a.C. – c. 7 a.C.) que pertencia a uma nação da região central indiana, os Andhras. E de que Simuka depois foi
sucedido por seu irmão, Krishna (ou Kanha), que foi depois sucedido por seu filho, Satakarni [127]. Mas essa
sucessão, aparentemente, vai de encontro com o que consta nas inscrições na caverna de Nanagath, o que faz com
que a linhagem inicial não seja livre de controvérsias a partir disso.

Mapa - Reino de Satavana, em 125 d.C.

Foi Satakarni I (c. primeiro século a.C.) o primeiro grande rei dessa dinastia, mencionado nas inscrições de
Hathigumpha relacionados ao rei Karavela. Parece que esse rei lutou e expandiu rumo ao leste pelo rio Godaveri, e
empreendeu campanhas a oeste contra Malwa, Anupa e Vidarbha, aproveitando o enfraquecimento causado na
região pelas invasões indo-gregas vindas do norte indiano. E também avançou ao sul do Godaveri. Obedeceu aos
ritos védicos de sacrifícios, favoreceu e patrocinou os brâmanes [128].
No primeiro século de nossa era, os satavanas sofreram uma série de invasões de povos Sakas, mas a ordem foi
restaurada por Gautamiputra Satakarni (c. segundo século d.C.). Seu reino não somente restaurou os territórios
perdidos mas estendeu a dominação ao norte, para o Rajastão atual, ao sul na região do vale do rio Krishna, até o
Saurashtra no Gujarate a oeste e Calinga a leste. Assumiu os títulos imperiais de raja-raja (“Rei dos Reis”), marajá e
senhor do Víndia [129].
Foi sucedido por seu filho, Vashishtiputra Satakarni (ou Sri Pulumavi) (c. século 2 d.C.) que foi referido por
Ptolomeu como Sri Polemaios. Durante esse período, os satavanas buscaram a prosperidade e vincular regiões
costeiras ligadas ao comércio marítimo internacional. Sri Yajna Satakarni foi o último regente da linha dinástica
satavana. De acordo com Shailendra Sen [130], reinou de 170 a 199. As moedas do seu governo aparecem com
imagens de navios, sugerindo a prosperidade advinda do comércio marítimo e poderio naval.
No campo cultural, foi durante a Dinastia Satavana que foram escritas em prácrito marashtri - antecessor da
língua marata - a antologia Gaha Sattasi, obra composta de refinados poemas que refletem sobre a complexidade do
amor. Por tradição, atribuiu-se como autor da obra o rei satavana Hala (r. c. 20 – 24). Alguns trechos da obra nos
mostram a sua força poética, como quando um marido, de maneira carinhosa, compara o rosto de sua esposa com o
esplendor da lua e a vivacidade das cores de um crustáceo:
O marido alegra-se da face da dona da casa, enquanto sua mão, suja de fuligem da cozinha, vai para o rosto; a isso se assemelha a lua manchada.
(...)
Esta lua se reflete nos seus olhos de gazela, e marcada na sua bochecha ficam as marcas de dentes ainda úmidos [manilama, espécie de beijo
chamado de “guirlanda de joias”] como um mexilhão com o interior escarlate [131]
(tradução nossa).

A partir do terceiro século de nossa era, o poder dos satavanas começou a declinar. Líderes locais antes aliados e
submetidos pelo poder central satavana começaram a almejar mais autonomia que resultou em desagregação
imperial. Ao norte, os domínios passaram a ser dominados pelos Vakatakas (c. 250 – c. 500) [132]. A região mais
oriental, ao longo do vale do Krishna e Godaveri, foi ocupada pela Dinastia Ikshvaku, que reforçaram a ligação com
os brâmanes hinduístas locais, além de promoverem os interesses budistas por estes apresentarem ligações políticas
e comerciais mais ampliadas pelas terras indianas e comércio internacional. Os ex-feudatários dos satavanas, os
pallavas, a partir do século quatro d.C., começaram a dominar a próspera região dos deltas do rio Krishna e do
Godaveri [133].

Índia e Sul da Ásia (Dos Pandias aos Chalukyas – Século 5 a.C. – Século 10 d.C.)
Até por volta do ano 500 d.C., os grandes impérios na Índia se concentraram no norte do país. Após o período
imperial dos máurias e dos guptas, os fragmentos históricos nos retratam um quadro de desunião política e
fragmentação cultural. Mas isso não se depreende que a história indiana seja menos fascinante. Os poderios
regionais que ascenderam pela Índia propiciaram o surgimento de ricas expressões linguísticas e culturais, tendo
como emblema a corte artística tâmil da academia Sangam em Madurai do século 13 [134].
O Tamilakam – Os impérios Pandia, Chola e Chera no sul da Índia
Por um período de aproximadamente 300 anos a partir do século 6 d.C., a história do sul da Índia é praticamente
de conflitos entre três reinos a sobreporem uns aos outros, como considerou Sasrti [135]. Esses três estados da Índia
meridional são os dos cholas, pandias e cheras – inseridos na região dos tâmeis, o Tamilakam (mapa) [136] – e já são
mencionados nas inscrições de Asoka do século no pilar de Vaishali do século três a.C.

Mapa - Reinos dos cholas, pandias e cheras no sul da Índia.

Essas nações não foram incorporadas ao reino de Asoka diretamente, mas foram aliadas e amigavelmente
tratadas, inclusive em termos comerciais como na importação de produtos medicinais. Asoka também cuidou de
mandar missionários ao sul para o ensino do darma e os ensinamentos essenciais do budismo que indica o interesse
e a demanda cultural dessas nações indianas na época [137]. A famosa inscrição Hathigumpha, “Caverna do Elefante”,
de Karavela (século dois a.C.) menciona uma confederação de estados tâmeis – satyaputra, possivelmente
“Irmandade da Verdade” [138] – que tinha 113 anos à época e que era fonte de ameaça ao reino Calinga.
Demonstrando assim a capacidade dos tâmeis em se reunirem em comum contra um reino externo [139]. O poeta
tâmil, Mamulanar (séculos 2 ou 3 d.C.) nos informou que houve uma grande e custosa expedição militar do reino de
Moriar (i.e. dos máurias, durante o reinado de Chandragupta Máuria e Bindusara) contra forças tâmeis mais ao sul
[140]
.
Os Pandias
O reino pandia foi um dos três reinos antigos do Tamilakam e suas origens recuam desde tempos pré-históricos e
até fins do século 15. Inicialmente, sua capital era em Korkai, num dos portos mais meridionais da península indiana
que, com o tempo, mudou-se para a “Atenas do Oriente”, Madurai.
Os pandias viveram seu auge no século 13, quando expandiram o reino para o norte, para a região dos telugos e
invadiu a ilha de Sri Lanka ao sul, conquistando a sua parte setentrional. Seus laços comerciais eram extensos e
internacionais, prosperam com as rotas marítimas com o sudeste asiático e comerciaram pérolas nos mares e
mercados do Oceano Índico. A literatura Sangam, segundo a tradição, foi em grande parte patrocinada pelos pandias
e alguns de seus maiores escritores também foram regentes.
A literatura Sangam, bem como fontes gregas e romanas nesse período são as fontes mais abundantes a respeitos
dos pandias. Sangam refere-se às academias estabelecidas em Madurai por regentes que patrocinaram os trabalhos
de escritores e poetas, resultando em grande atividade literária e cultural desde 500 a.C. a 500 d.C., sendo o segundo
século d.C. o período mais profícuo. Nesta, a gramática tâmil foi firmada na obra clássica, Tolkappiyam, e o grande
épico tâmil, Shilappatikaram, composto por volta dos séculos 5 e 6 d.C.[141]
Entre as fontes estrangeiras, consta a famosa obra “Périplo do Mar Eritreu” (c. 60 – 100 d.C.) que descreveu as
riquezas e a próspera atividade comercial de um reino pandia unido [142]. O cronista chinês Yu Huan em seu texto
Weilue (“Breve História de Wei”) (239 - 265) destaca do reino de Panyue (Pandia):
O reino de Panyue também é chamado Hanyuewang. Localiza-se vários milhares de li [cada unidade, por volta de 415 metros] ao sudeste de Tianzhu
(norte da Índia), e está em contato com o circuito Yi [no moderno sul de Yunnan, estado no sudoeste chinês]. Os habitantes são pequenos; da mesma
estatura que os chineses. Os comerciantes de Shu (na parte ocidental do estado chinês de Sichuan) viajam tão longe até este reino. A rota do sul
[empreendidas por estes comerciantes], depois de atingir seu ponto mais ocidental, se direciona ao sudeste até que ele atinja o seu destino [143]
(tradução nossa).

O imperador romano Juliano (r. 361 – 363) chegou a receber um emissário dos pandias no ano de 361. E um
pujante centro comercial romano existiu na costa pandia, na foz do rio Vaigai, a sudeste de Madurai. Além de Roma,
houve contatos comerciais duradouros com o Egito ptolomaico e com a China no terceiro século d.C. De acordo
com Estrabão, um embaixador pandia do rei “Pandion ou (...) Porus” foi enviado a Augusto César, conforme
mencionado pelo historiador grego Nicolaus de Damasco [144].
Nas crônicas Sangam, vários reis pandias são mencionados, entre eles Nedunjelivan (“O Vencedor de
Talaiyalanganam”), Nedunjelivan (“O Conquistador do Exército Ariano”) e Mudukudimi Peruvaludi (“O de Vários
Sacrifícios”). É somente a partir dessas fontes, em forma de cólofons [145], que reunimos os nomes e a sucessão de
reis e chefes pandias, e os escritores e poetas nas cortes.
Sobre a genealogia dos seus governantes, embora haja muitas referências ao reino pandia nos textos antigos, não
há maneira consensual de determinar a sucessão de seus reis. Os nomes dos primeiros governantes dificilmente
podem ser confirmados, mas os historiadores construíram uma história cronológica dos pandias desde a queda do
reino dos Kalabhras [146] até o seu declínio quando foram dominados e influenciados pelo reino dos cholas, a partir
do século 10 d.C. [147].
O império pandia, contudo, ainda conhecerá um reavivamento político e cultural intenso, após as vitoriosas
batalhas contra os seus rivais cholas. O auge se deu sob a regência de Sadayavarman Sundara Pandyan I (r. 1251 –
1268 ). Este governante é lembrado, além do expressivo crescimento econômico e comercial do seu reino, por seu
generoso patrocínio das artes e da arquitetura dravidiana, com especial destaque à reforma e decoração de kovils [148]
na região tâmil na Índia. O maior esplendor, de fato, se deu com a construção do famoso templo de Meenakshi (fig.)
em Madurai, local onde cerimônias e casamentos reais se davam. O patrocínio e apoio aos estudos e artes na cidade
real atraíram grandes artistas e estudiosos da época, ainda hoje considerada como a capital cultural de Tamil Nadu.
Fig. – O imponente complexo de templos de Meenakshi em Madurai, Tamil Nadu. Uma das joias da arquitetura dravidiana.

Com a morte de Maravarman Kulasekara Pandyan I (r. c. 1268 – c. 1308), conflitos decorrentes de disputas
sucessórias surgiram entre os seus filhos. Jatavarman Sundara Pandyan III, filho mais novo e herdeiro legítimo, e
Jatavarman Veera Pandyan II, filho mais velho e ilegítimo favorecido pelo rei, lutaram entre si pelo trono,
acarretando em uma longa guerra civil de 1308 a 1323 [149]. Nesse processo, Madurai caiu nas mãos de novos
exércitos invasores vindos do norte, muçulmanos da cidade de Delhi a partir dos saques feitos em 1311 por Malik
Kafur [150]. A partir de então, os pandias não mais conseguiram se reerguer de maneira soberana [151].
Os Cholas
As origens dos cholas remetem às inscrições de Asoka no século 3 a.C. E continuamente foram incorporando e
se aliando aos reinos adjacentes na região meridional da Índia até o seu auge no século 13, época que dominou boa
parte da Índia meridional ao longo da costa oriental, e influenciou o poder na ilha de Sri Lanka e nas Maldivas, além
de ter consolidado as rotas marítimas para o Império Srivijaya, atual Indonésia.
Os cholas eram tradicionalmente tributários dos pallavas e pandias até meados do século 9, quando a guerra entre
esses dois últimos reinos meridionais indianos ofereceu uma chance de autonomia chola. Assim o rei chola
Vijayalaya (r. c. 850 – 870) renunciou ao seu papel feudatário sob os pallavas e capturou a cidade de Tanjavur (atual
Tanjore), tornando-a sua capital [152].
O filho de Vijayalaya, Aditya I (r. c. 870 – 907) procedeu nas suas ambições, ao derrotar o reino dos pandias em
885 e novamente o reino dos pallavas em 897. Seu sucessor, Parantaka I (r. c. 907 - 955) , invadiu a prestigiosa
capital dos pandias em 910, Madurai, assumido o título de Madurain-konda (“Conquistador de Madurai”) e
submeteu o reino no Sri Lanka em 925. Por volta do 985, os cholas reinaram soberanos sobre todas as regiões
falantes do tâmil na Índia meridional.
A proeminência imperial chola ficou ainda mais evidenciada no Tamilakam durante o reinado de Parantaka
Chola II (r. 957 - 970). E foi seu filho, Aditya Karikalan, ou Aditya II, que derrotou as forças pandias na batalha de
Chevur [153]. Após o qual, os pandias foram buscar refúgio entre alguns cingaleses aliados no Sri Lanka, dando início
ao seu longo exílio. Os regentes pandias foram, a partir de então, substituídos por uma série de vice-reis cholas, sob
o título de Chola Pandias, que governaram da cidade de Madurai a partir de c. 1020 [154].
Nesse processo, durante fins do século 10, os cholas conseguiram expandir sua presença para além do vale do rio
Kaveri, núcleo ancestral de seu reino. Sob o governo de Rajaraja Chola I (fig.) (r. c. 985 – c. 1014), os pandias e
cheras foram submetidos e a ilha de Sri Lanka invadida, com o saque da venerável capital cingalesa de
Anuradhapura e a chegada às ilhas Maldivas. Seu filho, Rajendra Chola I (r. c. 1014 – c. 1044), deu continuidade
com vigor à política expansionista [155]. Já no fim de seu reinado, as fronteiras setentrionais chegaram ao rio Ganges,
conquistando os regentes de Bihar e Bengala, ocupando a costa da Birmânia (atual Mianmar), as ilhas Andamão e
Nicobar e controlando os maiores portos para o sudeste asiático no arquipélago da Indonésia e Península Malaia [156].
Foi o primeiro verdadeiro império marítimo indiano, chegando a ter tributos dos reinos do Sião (atual Tailândia) e
do Camboja.
Fig. – O maior regente dos cholas, Rajaraja I.

Após algum tempo, contudo, o vigor imperial chola feneceu. Os chalukyas, aqueles do ramo ocidental, advindos
do planalto do Decão, iniciaram uma série de ofensivas contra a dominação chola. Após décadas de intermitentes
batalhas, o reino dos chalukyas ocidentais se esgotou em 1190, mas com isso também veio o enfraquecimento do
império chola. Frente às rivalidades contra os pandias, os cholas, entre 1150 e 1279, já não conseguiram sustentar as
campanhas de batalha, negociando a independência pandia nos seus domínios tradicionais em torno da cidade de
Madurai. Finalmente, em 1279, sob a regência de Rajendra III (r. 1246 - 1249), o império chola deixou de existir
como entidade soberana ao serem submetidos aos pandias.
Os cholas deixaram um rico legado na região dos tâmeis na Índia. Testemunha disso são as majestosas obras
arquitetônicas como o templo em Tanjavur (ou Tanjore) [157], incríveis obras de pintura e escultura como no templo
de Nageshvara em Bengur (fig.) [158], e uma Idade de Ouro na literatura e poesia tâmil. E todas essas realizações
foram projetadas e influenciaram culturalmente pelas rotas comerciais as ilhas ao sul da Índia e sudeste asiático,
desde o Sri Lanka e Maldivas até a ilha de Java.

Fig. – Templo de Nageshvara, em Bengur.

Os Cheras
Os cheras são mencionados, junto com os pandias e cholas, no épico Ramaiana e também no Maabárata, e no
Upanixade Aitareya [159]. Igualmente, na literatura Sangam, compiladas entre os séculos 4 e 1 a.C. que apontaram os
regentes sucessórios cheras e seus feitos na língua tâmil.
A forma de governo dos cheras se dava em torno de um regente, um monarca autocrata cercado por um conselho
de ministros e estudiosos. Outra instituição de poder era o manram ou sabha que atuava em cada vila do reino.
Nessa espécie de conselho, os anciãos se reuniam embaixo de um marco ou árvore banyan e resolviam as contendas
e decisões mais importantes do local [160].
A força militar dos cheras consistia em exércitos de cavalaria, infantaria, carruagens e elefantes. E detinham uma
significativa marinha. O que denotava sua forte presença nos mares, alentando seu comércio internacional. Há
relatos, nesse sentido, de contatos duradouros e trocas com gregos, romanos, egípcios e árabes. Desde o primeiro
século d.C., houve comércio de especiarias, marfim, madeira, pérolas e gemas através de importantes portos cheras
em Kerala [161].
No campo religioso, os cheras adoravam primordialmente a deusa da vitória e da guerra Korravai, que depois foi
assimilada ao panteão hindu como Devi ou Kali [162]. Os brâmanes talvez tenham entrado no reino, junto com
jainistas e budistas, por volta do 3 século a.C.
O declínio chera adveio depois de sucessivas invasões por povos Kalabhras nos séculos 5 e 6. Além disso, os
Chalukyas de Badami conduziram campanhas de conquista em território chera, em Malabar, conforme atesta um
escrito do rei chalukya Pulakeshin I. E outros regentes pallavas, como o rei Simhavishnu e Mahendravarman
também reivindicaram o controle da soberania chera [163].
Houve, séculos depois, uma segunda dinastia dos cheras que ascendeu, conhecidos na história como
Kulashekharas, entre os séculos 9 e 12. O poder destes residia numa aliança entre uma oligarquia brâmane com
chefes locais. Mas sua soberania parece não ter sido inconteste, pois foram subordinados como feudatários aos
cholas por mais de meio século durante o século 11 [164]. A autonomia dessa nova Dinastia Chera somente ficou
evidente com o enfraquecimento dos seus suseranos. Após o século 12, posterior ao desaparecimento do último dos
regentes cheras, Rama Varma Kulashekhara (r. 1090 - 1102), o reino dos cheras passou gradativamente a ser
governado por um corpo de brâmanes e aliados designados pelos cholas.
Harsha
A despeito da ausência de unidade imperial no norte indiano, houve notáveis ascendências dinásticas
consolidadas por grandes líderes. Um destaque maior seria o que nos relata profusamente o viajante budista chinês
Xuanzang (c. 602–664) e do grande escritor no sânscrito, Bana (também conhecido como Banabhatta) (século 7),
em sua obra Harshacharita [165]. Nesta última, conta-se os feitos (charita) de seu patrono, o rei Harsha (r. c. 606 – c. 
647) .
Harsha encarnou o líder de vocação imperial no norte da Índia, num período em que a unidade política indiana
na região encontrava-se fragmentada. Seu comando político advinha de sua capital, Kannauj, (mapa) situada
estrategicamente entre os rios Ganges e Yamuna [166], de onde restam evidências de grandes obras e estruturas,
conforme atesta as dimensões das fortificações de Harsha Ka Tila, na cidade de Thanesar, no atual estado de
Haryana. Seu império, o mais vasto na região desde a queda dos guptas em 550, foi local de intenso patrocínio das
artes e religiões do budismo, jainismo e hinduísmo. Conforme nos escreveu Xuazang, que visitou o reino em 636,
Harsha mandou construir inúmeras estupas budistas, organizou vários eventos de debates filosóficos e artísticos. E
fez inúmeras doações para o engrandecimento e proteção da maior universidade budista à época, em Nalanda.
Ademais, Harsha, conforme Xuazang, mandou emissários para as terras chinesas em 641.

Mapa – O império de Harsha, século 7.

O governante também foi autor de algumas obras de literatura em sânscrito, denotando seu entusiasmo pelas
artes. A mais notável delas, a Nagananda [167], (“A Alegria das Serpentes”), consiste numa peça teatral em cinco atos
que em seu momento mais dramático, o protagonista, Jimutavahana, depara-se com um monte de esqueletos de
serpentes resultado de sacrifícios feitos em homenagem ao deus em forma de ave, Garuda. O herói, perturbado com
a cena, resolveu então tomar uma atitude similar a Buda, e se oferece ao sacrifício para poupar as outras serpentes,
nagas. Ao final do ato, o herói é restaurado à vida e torna-se um bodisatva. Na peça, com astúcia e sensibilidade de
um estadista, Harsha combinou raro talento para a religião, literatura e política.
Ao final de seu reinado, cujo declínio ficou evidente após ser derrotado por um governante do sul indiano,
Pulakeshin II em 635 [168], a região norte indiana conhece um novo e longo período de desunião e fragmentação em
diversas unidades políticas rivais e concorrentes.
O Império Pratihara dos Gurjaras
A capital Kunnauj sobreviveu ao declínio de Harsha e tornou-se centro político e cultural de diversas dinastias
subsequentes na região norte indiana. Entre esses, os Gurjaras [169], povos advindos do oeste, ex-aliados de Harsha,
com possíveis origens da região da Ásia Central entre os “hunos brancos” [170]. E eles, possivelmente, possuem
origem em comum com os rajputs [171] que se estabeleceram no vale do Ganges e Rajastão a partir do século 8 [172], e
tiveram contribuição essencial na história indiana ao guerrearem e conterem a expansão islâmica inicial no
subcontinente advindo do oeste através da região do Sind [173].
Os Gurjaras fundaram o Império Pratihara em meados do século 7 que se estendeu até 1036 (mapa). O auge se
deu no reinado de Nagabhata I (r. c. 730-760) ao combater o avanço árabe advindos da cidade de Mansura, no Sind,
na batalha do Rajastão em 738, mantendo a frente ocidental desde as terras setentrionais da Caxemira até o próspero
porto de Bharuch no Gujarate [174]. E não menos importante, o líder dos Gurjaras conseguiu dominar a região de
Malwa e o forte de Gwalior, estratégicos na contenção meridional. Foi nesse sentido que transferiu a sua capital para
Avanti, em Malwa.
Mapa - Extensões do Império Pratihara, dos Gurjaras.

Nagabhata foi sucedido por dois regentes inexpressivos que, por sua vez, foram sucedidos por Vatsaraja (r. c.
780- c. 800), que foi certa vez considerado como o “melhor entre os distintos xátrias“ [175]. Este último teve como
maior êxito a conquista da sagrada cidade de Kannauj após intensa disputa entre dinastias rivais por parte dos palas a
leste, e dos rashtrakutas ao sul.
Contudo, Vatsaraja acabou sendo derrotado em batalha por volta do ano 800 por forças da Dinastia Rashtrakuta.
Foi sucedido no trono por Nagabhata II (805-833) que, inicialmente, foi vitorioso sobre o regente Rashtrakuta,
Govinda III (793-814), ao reconquistar a região de Malwa, a cidade de Kannauj, e expandiu rumo a leste em Bihar e
conteve novos avanços árabes a oeste. Foi com Nagabhata II que foi reconstruído o grandioso templo a Xiva em
Somnath (fig.), no Gujarate, que tinha sido destruído pelos árabes.

Fig. – O atual templo de Xiva em Somnath, Gujarate.

Após algum tempo sucessório, o auge imperial de Pratihara se deu com Mihira Bhoja ou Bhoja I (r. c. 836- c.
885) em seu longevo reinado. As dominações se consolidaram e foram expandidas rumo ao ocidente na fronteira
com o Sind islâmico, ao oriente até Bengala, e ao meridiano até o rio Narmada, limite com os rashtrakutas. Seu filho
e sucessor, Mahendrapala I (r. c. 885 – c. 910) chegou a incrementar ao império a histórica região de mágada,
atingiu os limites dos Himalaias ao norte, além de partes de Bengala e Assam ao leste.
O declínio já deu sinais nos conturbados reinados de Bhoja II (r. 910-913) e de Mahipala I (r. c. 912 – c. 944)
que foi perturbado pelas renovadas ofensivas dos rashtrakutas ao sul. Apesar disso, relatos árabes ainda são
impressionantes a respeito do poderio de Pratihara, conforme descreveu Al-Masudi:
O regente possui quatro divisões de exército de acordo com os quatro trimestres das estações dos ventos. Cada um deles conta entre 700 mil a 900
mil homens. Ele tem vastos exércitos nas guarnições no norte e no sul; no leste e no oeste, pois ele é cercado por todos os lados por governantes
belicosos. (tradução nossa) [176]

O efeito político mais nefasto das invasões rashtrakutas foi a crescente fragmentação de alianças com dinastias e
poderios locais. Assim, vários líderes antes vassalos reivindicaram autonomia, notavelmente na estratégica região
meridional de Malwa entre os rajputs da Dinastia Paramada, os Chandelas de Bundelkhand e os Kalachuris de
Mahakoshal. Mais ao sul, o imperador dos rashtrakutras, Indra III (r. c. 914 – 928) saqueou Kannauj em 916,
evidenciando a fragilidade do Império Pratihara [177]. Para piorar, na frente ocidental, defrontou-se com ondas de
ataque de povos turcos (ou túrquicos) das estepes asiáticas. O forte de Gwalior foi perdido aos Chandelas por volta
de 950 e renovadas rebeliões estouraram a leste, em Bengala, pelos palas. Ao final do século 10, os Gurjaras do
império Pratihara somente asseguraram domínios diminutos frente ao seu passado imperial. Como coup de grâce, o
sultão Mahmud de Ghazni (r. 998 – 1030) dos povos túrquicos islamizados advindo de terras afegãs a noroeste,
sitiou e conquistou a cidade de Kannauj em 1018.
No campo das artes, os Gurjaras foram grandes apoiadores e patrocinadores. São magníficos os painéis pintados
nas paredes de templos em Osian em Jodhpur (fig.), Abhaneri e Kotah. E uma das mais belas e graciosas esculturas
é a figura feminina nomeada como Surasundari (“Dançarina Celeste”), hoje no museu de Gwalior. Para coroar as
expressões artísticas da época realizadas sob o Império Pratihara, assombram-nos com o complexo de templos de
expressão e riqueza de detalhes únicos em Khajuraho (fig.) [178].

Fig. – Exemplo da arquitetura de Pratihara no templo em Osian, Jodhpur.

Fig. – Detalhes do primor artístico do conjunto de templos de Khajuraho, da época de Pratihara.

Rashtrakuta
A Dinastia Rashtrakuta (752-985), que governou o sul indiano ao longo da costa ocidental, região conhecida
como Karnataka, é ilustre por várias razões. Eles governaram o território mais vasto do que o de qualquer outra
dinastia nesse período considerado. A sua contribuição no campo das artes e arquitetura é generosa. E os incentivos
que vários reis rashtrakutras forneceram à educação e literatura é única e a tolerância religiosa exercida por eles foi
exemplar.
A palavra rashtra, em sânscrito indica “região” e kuta, “chefe”. Parece que os ancestrais dos rashtrakutas já
exerceram papéis de liderança na região central indiana antes de fundarem uma dinastia. E seus ramos ampliaram-se
para além, ao noroeste, em Gujarate e Rajastão. Os rajputs do clã Rathore reivindicam serem descendentes deles
como também os da Dinastia Ratta (875 – 1250), feudatários por muito tempo dos rashtrakutas [179].
Dantidurga (752-756) foi o primeiro notável regente rashtrakuta, ao guerrear e derrotar as forças dos chalukyas,
momento crucial em que se tornaram soberanos na região de Karnataka. A partir de então, foram quase dois séculos
e meio e quinze reis consagrados. O poder e influência desta dinastia estenderam-se desde os Himalaias até
Rameshwar na costa sul de Maarastra durante os reinados de Govinda III (793 - 814), Indra III (914 -929) e Krishna
III (939 – 967).
Govinda III, conforme uma inscrição nos relata [180], podia dar água gelada dos Himalaias aos seus cavalos, e aos
seus elefantes, a água sagrada do Ganges. Krishna III fez sua fama nas campanhas ao sul ao derrotar as forças dos
cholas. E ao norte, conquistou Malwa. Uma inscrição em canarês [181], encontrada perto de Jabalpur às margens do
rio Narmada, enumera suas várias conquistas políticas em linguagem poética.
Na expansão territorial, os reis rashtrakutas fizeram muitos aliados e feudatários para proteger os flancos do seu
vasto império. Sua capital foi erguida em Malkhed em Gulbarga, também conhecida como Manyakheta, onde o rei
Amoghavarsha I (800–878) compôs a primeira extensa obra literária em canarês por volta do ano de 850, o
Kavirajamarga. A capital também foi ponto de confluência de artistas e intelectuais como o gênio jainista da
matemática, Mahavira (c. 800 – c. 870), em sua seminal obra Ganita Sara Samgraha [182].
As obras literárias nos tempos dos rashtrakutas vão além do Kavirajamarga, compondo um marco histórico na
língua canaresa. Pampa (século 10) escreveu suas duas obras épicas Adipurana e Vikramarjuna Vijaya tornando-o o
maior poeta canarês, considerado posteriormente como o Adivaki, o “Primeiro Poeta”. Na prosa, o Vaddaradhane
(“Culto dos Anciãos”) é a mais importante obra do período (século 10). São dezenove histórias que tratam dos
princípios jainistas sobre tormentos da carne e do espírito. Didática na natureza, as histórias interpretam a teoria do
carma, renascimento e a desolada situação da condição humana. A obra também lança luz sobre a vida social do
período, como a educação, o comércio, magia e superstições, a posição das mulheres [183].
No campo das artes e arquitetura, os dois e meio século dos rashtrakutas testemunharam grandes feitos. Ellora
(séculos 5 a 10) e Elephanta (séculos 5 ao 8), e outras várias cavernas são testamentos magníficos da época,
destacando os grandes monumentos e esculturas monolíticas. Em Ellora, no Maarastra, há obras em templos
escavados nas cavernas de todas as religiões florescentes na Índia de então. Das trinta e quatro cavernas, doze são
budistas, dezessete no lado sul são hinduístas (vixnuísta, xivaísta e shaktista) e cinco cavernas no lado norte são
jainistas. Em Elephanta, talvez tenha a síntese estupenda da arte religiosa da época, a escultura do Trimurti,
representando Brahma, Vixnu e Xiva Maheshwara. Um observador britânico em 1814, assombrado com a obra,
certa vez expressou:
Seguramente não há nada em todo o mundo que exceda os monumentos indianos na magnificência do projeto e grandeza de efeito. A imensa cúpula
da Basílica de São Pedro torna-se insignificante em comparação [184] (tradução nossa).

A tolerância religiosa dos rashtrakutas era lendária. O budismo que se encontrava em decadência foi revitalizado
com o patrocínio real e por eruditos budistas. Dantidurga e Dhruva II fizeram doações liberais para a construção de
mosteiros budistas, chamados de viharas. Estudiosos e instituições jainistas receberam generosas doações do rei
Amogavarsha I, ele mesmo um convicto da fé [185].
Os árabes na costa oeste receberam proteção. Foi concedida a comerciantes muçulmanos a construção de
mesquitas e magistrados islâmicos foram nomeados. Suleiman, um comerciante muçulmano que visitou a Índia no
século 9 escreveu sobre a generosidade e tolerância dos reis rashtrakutas. E considerou o rei Amogavarsha I como
entre os maiores imperadores do mundo à época [186].
Os Palas
No leste indiano, o reino mais proeminente no período foi o da dinastia dos palas (século 8 ao 12). Seu início se
concretizou após um tempo de desordem na região de Bengala, em Matsyanyana, e Gopala I (r. c. 750 – c. 770) foi
escolhido como rei que pôs termo às rebeliões centrífugas, centralizando o poder e iniciando uma nova dinastia
cerca de 750.
Por volta do ano de 780, Gopala foi sucedido por Dharmapala (r. século 8) que procedeu em expandir
significativamente o Império Pala. Nesse intento, chegou a derrotar o rei da cidade de Kannauj, e ali deixando um
pretendente ao trono local, Chakrayudha [187]. Mas seu controle na cidade não se sustentou com o tempo, pois foi
derrotado pelo rei dos rashtrakutas, Dhruva (r. 780 – 793), conforme narra as placas de Munger em Bihar. Apesar
desse revés, houve desordem sucessória após a morte de Dhruva, o que favoreceu nova ofensiva de Dharmapala em
cima da cidade de Kannauj, tornando-o o senhor inconteste do norte indiano, ou como se referiu no título como
Uttarapathasvamin ("Senhor do Norte”) [188].
Após o governo de Dharmapala, seu filho, Devapala (r. século 9) ascendeu ao trono, figurando na história como
o maior rei dos palas, ao incorporar ao império a região de Assam ao norte e Orissa na costa oriental indiana,
conhecendo o Império Pala o seu ápice territorial que, a considerar alguns contratempos, perdurou por mais de
quatro séculos [189]. O mercador árabe Suleiman em seu livro escrito em 951, Silsiltut-Tauarikh, é testemunha
taxativa desse poder, ao considerar as tropas dos palas mais numerosas que os adversários vizinhos dos pratiharas e
rashtrakutas, e nos contar que o rei dos palas era acompanhado em campanha de guerra por cerca de 50 mil elefantes
de guerra [190].
O prestígio dos palas no mundo budista foi enorme, pois foram os guardiões das regiões mais sagradas da
religião. De acordo com cronistas tibetanos, os regentes palas foram grandes patronos do ensino e culto dos
ensinamentos de Buda, e tiveram grande impacto na difusão do budismo maaiano. Dharmapala fundou o famoso
mosteiro budista Somapura Mahavira em Paharpur (fig.), atual Bangladesh, e Devapala, seu filho, agraciou os
adeptos com uma estátua de Buda, construção de prédios adjuntos e recursos adicionais para a universidade de
Nalanda em 860 [191] [192]. E foi nesse período que esta última ganhou fama internacional, ao atrair mais de dez mil
estudantes e professores budistas da Ásia Central, sudeste asiático, China e Sri Lanka [193].

Fig. – Ruínas do grandioso mosteiro budista de Somapura Mahavira, ou Paharpur Bihar, em Paharpur, distrito de Naogaon em Bangladesh.

Os regentes palas promoveram o hinduísmo também. Narayanapala (séculos 9 e 10) deu ordens para a
construção de templos em homenagem a Xiva [194] e concedeu generosos incentivos a brâmanes para assentarem no
seu reino e administrarem escolas hinduístas gurukuls [195].
Os Pallavas
Nas ruínas do Império Satavana que vigorou no Decão surgiram vários reinos independentes na região
meridional indiana. Entre os reinos mais notáveis, o da dinastia dos pallavas se destacou e ocupou a parte sul-
oriental dos domínios satavanas e fundou sua capital em Kanchipuram, ou Kanchi.
A Dinastia Pallava teve início quando o rei Simhavishnu (século 6) ascendeu ao trono por volta de 575. Nesse
ano, povos chamados de Kalabhras [196] invadiram a região meridional indiana e causaram grande destruição. Foi
Simhavishnu que dominou a confusão e restabeleceu a ordem, chegando a estender seu domínio do rio Krishna ao
Kaveri sobre os povos tâmeis e o Sri Lanka (ex-Ceilão). Assim nos conta o grande poeta da época, Bharavi (c.
século 6) sobre seus feitos em sua obra Anvantisundari Katha [197] [198].
O sucessor de Simhavishnu, Mahendravarman I (r. c. 571 - 630) era um gênio versátil e proficiente na arte da
guerra e da paz. Foi no seu reinado que as rivalidades com os Chalukyas Badami começaram e durou por quase um
século tendo grande impacto sobre a história do sul da Índia.
Pulakeshin II (r. c. 610 – c. 642) dos Chalukyas Badami tirou o norte da província de Vengi dos pallavas embora
mais tarde os pallavas tenham recapturado a capital Kanchi. Mas as atividades arquitetônicas do rei
Mahendravarman I foram ainda mais extraordinárias. Muitos templos foram escavados na rocha em Trichinopoly,
Chinglepet, Arcot Norte e Sul. Também construiu a famosa cidade de Mahendravati com um imenso reservatório de
água nas proximidades. Foi um exímio poeta e músico, e compôs uma obra teatral clássica em sânscrito, o
Mattavilasa Prahasana (“A Farsa do Desporto Bêbado”) [199]. Também foi autor de série de tratados sobre música e
um apaixonado admirador de pinturas. E um jainista que pendeu para o xivaísmo nos seus últimos anos de vida.
Porém o maior de todos os reis pallavas foi Narasimhavarman I (r. c. 630 – c. 668) que sucedeu seu pai
Mahendravarman I em 630. Sob ele o poder da Dinastia Pallava atingiu o seu apogeu e, portanto, ele assumiu o
título Mamalla, “Grande Guerreiro”. Pois ele infligiu uma derrota esmagadora sobre Pulakeshin II, rei dos
Chalukyas Badami, em 642 e capturou a capital deste último, Vatapi, assumindo o título Vatapikonda ou
“Conquistador de Vatapi” [200]. Através deste feito os pallavas estabeleceram sua supremacia sobre o planalto do
Decão. Ademais, Narasimhavarman I também realizou uma série de conquistas contra a cholas, cheras, Kalabhras e
os pandias mais ao sul, e até enviou expedições navais contra o Ceilão (Sri Lanka) para entronizar um protegido seu,
Manavarman. O regente pallava foi muito além das artes da política e guerra. Promoveu as artes e mandou construir
no principal porto do império, Mahallapuram, vários templos monolíticos chamados rathas, assim como em
Trichinapalli, hoje no estado de Tamil Nadu.
No reinado de seu neto, Parameswaravarnam I (r. c. 670 - 695), as lutas contra os chalukyas foram retomadas e
seu rival, Vikramaditya I, em dado momento, ocupou a capital dos pallavas, Kanchi. Parameswaravarman I, no
entanto, na batalha de Peruvalanallur em 674, conseguiu retomar as ofensivas diante dos chalukyas e retomou os
territórios e a capital perdida [201]. Parameswaravarnam I foi um xivaísta dedicado e mandou construir vários templos
e edifícios em Mamallapuram.
O rei sucessor, Narasimhavarman II (r. 700 – 728), reinou pacificamente e durante o seu governo foi construído
o famoso templo Kailashnath em Kanchi e chegou a trocar embaixadas com a China em 720 [202]. No reinado de
Nandivarman II (r. c. 730 –795) um novo período de turbulências ocorreu, pois sua ascensão ao trono não foi
incontestada. Ademais, enfrentou em campo de batalha os pandias ao sul, evidenciando a fragilidade dos pallavas
aos chalukyas que tomaram a cidade de Kanchi. Nandivarman II também foi derrotado frente aos rashtrakutas, sob
comando de Dandidurga. O único sucesso de Nandivarman II foi a anexação de alguns territórios em Orissa, na
costa oriental, e submeteu os Gangas da região como feudatários. Portanto, como líder militar, seu reinado
demonstrou um desempenho nada alentador.
E assim teve o início do gradual declínio dos pallavas. O rei Dantivarman (r. c. 795 – c. 846), durante seu reinado
de 51 anos, fez uma última tentativa de derrotar os pandias ao sul, mas assim os cholas que foram usados em batalha
como aliados feudatários aproveitaram a fragilidade após os eventos bélicos e reivindicaram maior autonomia. Além
disso, o rei dos rashtrakutas, Govinda III (r. 793–814), derrotou Dantivarman e ocupou a capital Kanchi em 803 [203].
Os Chalukyas
A dinastia dos chalukyas foi uma poderosa dinastia real indiana que governou grande parte da Índia meridional e
central, entre os séculos 6 ao 12 (mapa). Durante este período, eles governaram em três dinastias relacionadas, mas
separadas. A mais antiga dinastia, Chalukya Badami, governou a partir de seu capital Vatapi (atual Badami) a partir
de meados do século 6. Os Chalukyas Badami iniciaram sua autonomia com o declínio do reino Kadamba e
rapidamente ganhou destaque durante o reinado de Pulakeshin II (r. c. 610 – c. 642).

Mapa - Dinastia dos Chalukyas.

A Dinastia Chalukya Badami entrou num breve declínio após a morte de Pulakeshin II devido a disputas
internas. Recuperou-se durante o reinado de Vikramaditya I (r. 655 – 680) que conseguiu expulsar os pallavas de
Badami e restaurar a ordem no império [204]. Alguns anos depois o império atingiu o auge durante o governo do
ilustre Vikramaditya II (r. 733–746) que derrotou o pallava Nandivarman II e capturou a cidade meridional de
Kanchipuram. O declínio se deu a partir das ofensivas dos rashtrakutas advindos do oeste em meados do século 8,
que ao final do século 10 formaram outra dinastia Chalukya, os chamados Chalukyas Ocidentais que governaram a
partir da cidade de Kalyani (atual Basavakalyan) até o final do século 12.
Outras dinastias chalukyas prosperaram após o avanço dos rashtrakutas. Mais ao leste do planalto do Decão, os
Chalukyas Orientais emanciparam-se em um reino e fundaram uma nova dinastia. Estes governaram a partir de seu
capital Vengi até por volta de 1130, quando se fundiu com os cholas. A capital Vengi continuou a ser governada por
membros dos chalukyas sob a supervisão dos cholas até 1189, quando o reino sucumbiu diante dos hoysalas [205].
A dinastia dos chalukyas constitui um marco importante na história do sul da Índia e uma idade de ouro na
história de Karnataka. A atmosfera política no sul da Índia passou de incontáveis reinos menores fragmentados para
grandes impérios com a ascendência de Chalukya Badami. Pela primeira vez, um reino indiano meridional assumiu
o controle e consolidou toda a região entre o rio Kaveri e o Narmada. O aumento deste império viu o nascimento de
uma administração eficiente, de um comércio internacional pujante e do desenvolvimento de um novo estilo
arquitetônico chamado de Arquitetura Chalukya. A literatura canaresa que contou com o apoio real de rashtrakuta no
século 9 encontrou patrocínio dos Chalukyas Ocidentais nas tradições jainistas e xivaísta. Ademais, no século 11,
floresceu o nascimento da literatura telugo sob o patrocínio dos Chalukyas Orientais [206].
Em termos religiosos, os Chalukyas Badami foram seguidores do hinduísmo, como constata os inúmeros
santuários dedicados a divindades hindus populares. Pattadakal guarda uma arquitetura grandiosa, e o culto de Lajja
Gauri, deusa da fertilidade era bastante popular. O jainismo foi encorajado conforme nos mostra os templos da
caverna em Badami e outros do complexo de Aihole [207].
Na arte e arquitetura, a herança das dinastias chalukyas é imensa. Mais de cento e cinquenta monumentos foram
construídos à época de Badami, entre 450 e 700, no vale do Malaprabha em Karnataka. Os templos escavados de
Pattadakal encomendados pelo Vikramaditya II (740) (fig.) são Patrimônio da UNESCO, e Badami e Aihole são
seus monumentos mais celebres. Duas pinturas da Caverna 1 de Ajanta, “A Tentação de Buda” e “A Embaixada
Persa” são atribuídas aos chalukyas. Em Aihole, o templo Durga (século 6), templo Ladh Khan (450), templo
Meguti (634), os templos Hucchimalli e Huccappayya (século 5) e os templos escavados de Badami (600) são todos
ricos exemplos da arte chalukya.

Fig. – Templos de Mallikarjuna e Kasivisvanatha em Pattadakal da dinastia dos chalukyas.

O florescimento das culturas regionais indianas


A emergência de vários reinos regionais teve um impacto significativo na transformação cultural e religiosa na
Índia no primeiro milênio d.C. Uma nova religiosidade, a transformar a ortodoxia do bramanismo e cultos mais
populares foram as expressões mais evidentes. Ademais, houve uma evolução de línguas regionais como resultado
do apoio e patrocínio de regentes e fortalecimento de reinos regionais indianos.
No campo filosófico e religioso, houve no primeiro milênio a emergência de tendências questionadoras e
renovadoras como reflexos das transformações históricas na Índia. No cenário após a dissolução imperial gupta, a
fragmentação política acarretou uma série de correntes de pensamento que se defrontou com os cânones tradicionais
hindus e refletiram o alastramento da crença budista e jainista, que carregavam uma mensagem mais universal e
igualitária. Uma delas, no âmbito do hinduísmo bramanista, houve uma “contrarreforma” brâmane, visando
revigorar este diante das correntes reformistas. Por outro lado, um grande movimento popular que rejeitou a
ortodoxia buscou a salvação do crente por meio da devoção a uma divindade de cunho mais pessoal, intimista.
Nessa última, consta a mais notória das escolas que foi chamada de “vedantismo”, da palavra vedanta (i.e., anta,
“fim”, dos Vedas) [208].
Foi o grande filósofo Shankara (788 – 820) que sistematizou a filosofia Vedanta, enfatizando seus princípios
monistas (advaita, “absoluta não-dualidade”). Princípio que se inspirou nos ensinamentos dos Upanixades sobre a
unidade indissolúvel entre a alma (atman) e o espírito santo (brahman). A alma individual, inserida numa forma de
ser vivo (jiva) somente é restrita a um ciclo de renascimentos e mortes (samsara) porque o indivíduo acredita que o
mundo é real apesar de ser, em verdade absoluta, mera ilusão (maya). Essa ignorância, ensina Shankara, é o que
impede a alma de se unir e se identificar com o espírito santo. Somente o correto conhecimento (jnana) poderá levar
à percepção da unidade unitária e salvação (moksha) [209]. Assim, Shankara conseguiu sintetizar os princípios
budistas dos renascimentos, no âmbito revitalizado do hinduísmo. Ademais, permitiu a possibilidade de auto-
realização pessoal, independentemente da situação de casta, a ser descoberto por qualquer um diante das ilusões do
mundo e o contato com o Criador Divino.
Outro movimento, de cunho mais emotivo e popular, o Bakhti (“amor, devoção”), desafiou ainda mais a
ortodoxia bramanista. Este movimento enfatizou nos seus ensinamentos o amor filial e um caminho de absoluta e
irrestrita devoção ao divino (bhakti-marga). Inspiraram-se na passagem do Bhagavad Gita [210] em que Krishna diz a
Arjuna: “Aquele que me ama não perecerá (...) pense em mim, me ame, sacrifique-se a mim, me honre, e você será
um comigo”.
O movimento teve seu início por volta do século 6, em Tamil Nadu, sul da Índia. E depois foi se espalhando para
outras partes do país, conferindo um novo aspecto do hinduísmo. Seus protagonistas foram xivaístas (nayanars) e
vixnuístas (alvars) [211] que depois foram santificados no movimento [212]. As escrituras desses santos foram depois
reunidas nas Escrituras Sagradas (Tirumurai) dos tâmeis, também chamado de Tâmil Veda [213].
Esse movimento também produziu uma série de locais sagrados que depois, com o tempo, virariam pontos de
peregrinação na Índia. Além disso, os princípios bhaktistas não somente indicavam locais de culto e visitação, como
rejeitaram os intricados rituais de sacrifícios que as classes mais populares não poderiam arcar, indo contrário,
portanto, ao elitismo dos preceitos bramanistas de liturgia e exclusividade.
O culto de Xiva e Vixnu, nesse movimento, permitiu aos populares um acesso ao sagrado, sem barreiras sociais e
de instrução. Xiva, por exemplo, foi considerado como uma divindade aberto e acessível a todos, que se manifestou
em locais como grutas, cavernas e templos espalhados pelo interior indiano, através de suas imagens e
representações, como o lingam, e Vixnu representado como uma serpente. E foram designados os locais de moradia,
nascimento e episódios na vida desses deuses, que viraram locais sacralíssimos como o Monte Kailash de Xiva.
Lendas e histórias desse tipo foram compiladas visando engradecer e santificar locais e acessos aos devotos.
Imagens e representações tornaram-se formas tangíveis de encarnações divinas (avatara) a todos os devotos [214].
E nesse sentido, várias divindades populares locais, além dos supremos Xiva e Vixnu, foram sacralizadas e
incorporadas ao panteão hindu. Um dos exemplos mais notórios foi a incorporação da deusa de Madurai, dos
pandias, Minakshi, deusa do olho-de-peixe, que depois foi considerada como encarnação da esposa de Xiva, Parvati.
Outro exemplo bastante popular foi a incorporação do deus Jagannath, de Puri, na costa oriental indiana. A imagem
desse deus, cultuado como “Senhor do Mundo” e celebrado em grandes conglomerações em torno de enormes toras
e madeira e colossal carreata de seu veículo de transporte, foi depois identificado com Vixnu. E, por último, o
próprio Krishna que tem raízes de cultos pastorais da cidade de Matura, que acabou sendo considerado como uma
encarnação de Vixnu.
A fragmentação em inúmeros reinos na Índia provocou uma maior regionalização literária e linguística. O
bramanismo hegemônico anterior advindo do norte indiano expressado em sânscrito literário ganhou contornos
regionais nas línguas marata, canarês, bengali, assamês e oriá. Nesse sentido, os escritos religiosos e filosóficos
foram resultado da adaptação de membros religiosos a propagar suas doutrinas em regiões com escasso ou nenhum
conhecimento do sânscrito. Assim, grandes obras religiosas e filosóficas foram traduzidas (e, por vezes, até
questionadas) diante das novas línguas regionais. Como o foi a tradução dos Puranas, cruciais ao vixnuísmo, que
serviu de base literária de várias línguas indianas, como o fez o poeta Sridhar (século 18) para a língua marata [215].
Ou como Tulsidas (1532 – 1632) ao adaptar o épico Ramaiana para a língua hindi no norte da Índia.
Não foram somente os escritos sagrados que serviram de veículo de tradução e consolidação literária regional.
Crônicas de templos e reis também foram escritos e adaptados em língua vernácula a serem lidos e compreendidos
pelos súditos, peregrinos e pelo amplo público.
As transformações da cultura indiana tiveram impacto além da Índia. Junto com as rotas comerciais e religiosas,
com os mercadores, marinheiros, missionários e brâmanes, a cultura indiana influenciou decisivamente em países da
Ásia Central, China, Japão, Coreia e, principalmente, os do sudeste asiático. Testemunha disso se constata no
magnífico complexo de templos hindus e budistas em Angkor (c. 889 – c. 1300) no Camboja, em Pagan (1044 –
1287) no Mianmar e até mesmo na ilha de Java em Prambanan (século 9) e Borobudur (século 9), este o maior
conjunto de templos budistas já construído.
Mas quem levou e quais os motivos desse formidável alastramento cultural indiano? Existem várias explicações
sobre essa transmissão cultural. De acordo com Kulke & Rothermund [216], há a teoria dos xátrias, casta de guerreiros
que expandiram por meios bélicos a presença indiana, explicação rejeitada pela maioria dos estudiosos. Outra teoria,
mais aceitada, é a dos vaixás, mercadores e comerciantes que expandiram a influência indiana pelas rotas
comerciais. O que não explica o alastramento da língua e escrita sânscrita que exige anos de doutrinamento e
instrução. Que nos leva a apoiar a última teoria, a de que foram castas religiosas dominantes, os brâmanes, como os
maiores responsáveis pela transmissão cultural indiana.
Certamente houve a presença de comerciantes indianos advindos da costa de Tamil Nadu e Malabar, sob o
controle dos cholas e pandias, para os portos do sudeste asiático e ilhas no Oceano Índico (mapa) [217], assim como
ao longo de rotas terrestres pela Ásia Central. Mas a transmissão cultural constatada, pela presença do sânscrito que
depois serviu de base para o florescimento de outras línguas no sudeste asiático [218] foi certamente obra de
missionários brâmanes letrados e conhecedores da liturgia e mitologia hindu. Ou de monges budistas estudados que
foram para países asiáticos ao norte e a leste.
Esses religiosos foram os principais transmissores da cultura indiana que serviu de legitimação política e
religiosa pelos regentes locais em Java, Angkor e Pagan [219]. E foram os monges budistas advindos das escolas de
Nalanda e Taxila, este no atual Islamabad no norte do Paquistão, centros do budismo maaiano, que propagaram seus
preceitos ao longo das rotas terrestres para o sudeste asiático e para o Afeganistão, e mais ao norte do Hindu Kush e
Karakorum (Caracórum) levando as escrituras para o planalto do Tibete, deserto do Taklimakan, bacia do rio
Qaidam até as terras chinesas e além.

Mapa - Rotas de transmissão indiana ao sudeste asiático

Índia e Sul da Ásia (De Mahmud de Ghazni à Vijayanagara – Século 11 - 16)


A Índia, a partir do século 13, sofreu uma série de transformações advindas de povos da Ásia Central. Mas, ao
contrário de muitos outros lugares na Ásia Central que foram conquistados por mongóis a partir da grande união de
suas tribos em 1206 por Temujin Khan (Gêngis Khan) (1162 - 1227), a Índia não foi por eles ocupada. Ao invés, na
sua porção setentrional, foi submetida por um escravo militar mameluco turco, Qutb al-Din Aibak (r. 1206 - 1210), a
serviço incialmente de um sultão do Afeganistão [220] que, posteriormente, declarou sua independência e fundou um
novo sultanato a partir da cidade de Delhi.
Esse ato de autoridade terá um impacto na história da Índia, pois, assim, os novos governantes vieram para ficar
e governar. A cultura indiana será enriquecida com isso, se tornará ainda mais complexa e rica com esses novos
contatos duradouros com o Islã da Ásia Central ao norte e a oeste.
Mas o sultanato de Delhi não seria a primeira presença e entidade política islâmica na Índia. Pois no sul do Sind,
no século 8, um general árabe a serviço do Califado Omíada já tinha se estabelecido, Mohammad Ibn Qasin (695 -
715) [221] [222]. Outros líderes árabes depois irão suceder e ampliar a presença islâmica na região, para as regiões de
Gujarate, Kathiawar até o sul do Rajastão em 725. Mas o seu avanço foi depois contido por chalukyas e os
rashtrakutras na costa ocidental, assim como diante dos pratiharas no restante norte indiano.
Mahmud de Ghazni
Por volta do ano 1000, a Índia ao norte encontrava-se fragilizada e dividida entre forças hegemônicas dos
pratiharas advindos de Kannauj e os Chalukyas ocidentais pela costa ocidental e central. Os cholas estavam distantes
demais no sul para interferirem nos assuntos setentrionais. Diante desse cenário, ascendeu um dos personagens mais
polêmicos e extraordinários na história islâmica da Índia, Mahmud da cidade de Ghazni (971 – 1030) (fig.). Esse
líder veio das terras afegãs montanhosas, era filho e sucedeu a seu pai, Sabuktigin (c. 942 – 997), foi um escravo
turco [223] e gênio militar que conquistou boa parte da Pérsia e teve como limite oriental o rio Indo [224]. Estabeleceu
assim uma nova dinastia, a Ghaznávida, em torno da capital Ghazni, ao sul de Cabul atual (mapa).

Fig. – Mahmud de Ghazni

Mapa - Conquistas de Mahmud de Ghazni, no século 11.

Mahmud, após a morte de seu pai, ocupou o trono e passou a liderar campanhas contra as terras indianas
consideradas fabulosamente ricas à época. Os pratiharas foram os primeiros indianos que começaram a sentir as
ofensivas frequentes de Mahmud, assim como os rajputs e os Chandellas. Os muçulmanos de Multan também não
escaparam dos ataques dos Gazhnávidas, considerados por Mahmud como hereges, pois seu governador, Fateh
Daud, era do ramo ismaelita do xiismo [225]. Os hindus, por sua vez, sofreram sistemáticos ataques e pilhagens, como
o ocorrido sobre o templo de Xiva em Somnath, na costa sul de Gujarate em 1025. Neste episódio, em que Mahmud
almejou as riquezas e o sustento de seu reino e capital em Ghazni, os cronistas nos contam que cerca de 50 mil
hindus faleceram, o lingam de Xiva foi destruído e o espólio carregado foi estimado em mais de seis toneladas de
ouro [226]. Episódio até os dias atuais que alimentam apaixonado debate entre hindus e muçulmanos na Índia.
Ghazni, sua capital, foi enriquecida e embelezada com os recursos adquiridos, tornando-a umas das mais
prestigiosas da Ásia da época. E a corte de Mahmud não ficou atrás, pois entre eles conviveram o autor do épico
Shahnameh, o Livro dos Reis [227], Ferdusi (c. 940 – c. 1020), e o erudito Al-Biruni (973 - 1048), o maior estudioso
muçulmano da Índia [228]. E foi este autor que, além dos motivos apontados, descreveu a obstinação e orgulho dos
indianos diante do mundo:
Os hindus acreditam que não há nação como a deles, não há reis como o deles, nenhuma religião como a deles, nenhuma ciência como a deles. Eles
são avarentos por natureza em comunicar o que sabem, e eles tomam o maior cuidado possível para retê-lo dos homens de outra casta entre seu
próprio povo, ainda muito mais, é claro, a qualquer estrangeiro. Sua arrogância é tal que se você lhes disser de qualquer conhecimento ou ciência de
Khurasan [Coração, região oriental da Pérsia] ou da Pérsia, eles vão pensar que você é ou um ignorante ou um mentiroso. Se eles viajassem e se
misturassem com outras nações, em breve mudariam suas mentalidades (tradução nossa) [229].

Após a morte de Mahmud em 1030, a Índia atravessou um período de pausa de quase um século antes da invasão
de novos povos a descer do Afeganistão. O que poderia ter consolidado sua unidade política e militar diante de
novos invasores, mas o efeito nesse interregno foi contrário. Depois do declínio dos pratiharas, os rajputs se
consolidaram no norte indiano em múltiplas alianças entre si, mas com pouca unidade. Ademais, os méritos bélicos
não se refletiram no sistema rajput de hierarquia militar, ou seja, havia poucos líderes e oficiais de valor militar na
cavalaria ocupados por pessoas mais de cunho político e familiar com pouca disciplina e mérito. Acrescenta-se a
isso as barreiras de casta e sociedade diante da composição das forças de batalha e o uso extensivo da duvidosa
lealdade de mercenários.
Em contraste, os excelentes cavaleiros da Ásia Central eram veteranos habituados a anos de campanha e
batalhas, liderados por verdadeiros líderes de guerra. Outro fator foi a ideologia islâmica que era mais igualitária do
que a ortodoxia hindu estratificada em castas, o que oferecia a qualquer um a possibilidade de glória e fortuna em
campo de batalha diante das lendárias riquezas que a Índia oferecia. E foi nesse sentido, de superioridade militar
que, após algum tempo, a Índia sucumbiu diante de novas forças invasoras muçulmanas.
O Sultanato de Delhi
Em 1191 e 1192, nos arredores da cidade de Tarain, a noroeste de Delhi, uma confederação de forças reunidas
dos rajputs foram à batalha contra forças invasoras muçulmanas. No comando e supervisionando as manobras destes
últimos estava montado em seu cavalo, Muhammad de Ghur (r. 1173 - 1206), líder que já havia sobressaído entre os
afegãos e persas para consolidar um império na Ásia Central. Retrocedendo alguns anos, Muhammad de Ghur havia
submetido Multan em 1175 e em 1186 já havia destronado o último sucessor dos Ghaznávidas. Assim, seus olhos
voltaram-se para as férteis planícies indianas, algo que ele estava determinado a conquistar e não apenas saquear
como o fez Mahmud de Ghazni mais de cem anos antes.
O momento culminante se deu em Tarain, local onde aparentemente as forças dos rajputs hindus lideradas por
Prithviraj Chauhan (r. 1178-1192), regente de Ajmer e Delhi, conseguir conter as ofensivas invasoras. Mas, após
alguns meses, Muhammad retornou com uma impressionante e disciplinada força de arqueiros e cavalos, ágeis no
campo de batalha contra as pesadas forças de infantaria e elefantes dos rajputs. Assim, além da vitória, Muhammad
estendeu depois de várias campanhas quase todo o norte da Índia em poucos anos (mapa). Em 1193, capturou
Kannauj e Varanasi. Depois, o forte em Gwalior, Ajmer e Anilwara, à época principal cidade do Gujarate. Em suma,
a maioria dos fortes e posições estratégicas dos rajputs foi dominada e eliminada [230].

Mapa - Domínios da Dinastia Gúrida estabelecida por Muhammad de Ghur, séculos 12 e 13.

Muitos dessas vitórias se deu sob comando de um de seus subordinados, um mameluco (escravo militar) de
notável talento bélico de origem turca centro-asiática, Qutb Ud Din Aibak (1150–1210) (r. 1206 - 1210), que serviu
como governador em Delhi após esta ter sido capturado aos rajputs em 1193. Após a morte de Muhammad de Ghur,
em 1206, Aibak decidiu estabelecer de vez sua presença em Delhi e fundou uma nova dinastia, a chamada Dinastia
Mameluca de Delhi (1206 - 1290) sob aprovação do Califado Abássida de Bagdá, e foi a ele concedido pelo califa o
título de sultão, i. e., governador com plenos poderes soberanos [231]. Assim deu-se o início do Sultanato de Delhi que
se estenderá, após várias dinastias, até a conquista dos mogóis (ou mugals, não confundir com os mongóis) em 1526.
Mais a leste, em Bengala, outro líder militar sob o comando de Muhammad de Ghur, Muhammad Bakhtiyar
Khilji (que viveu de meados do século 12 ao início do seguinte) realizou rápidos avanços e conquistas militares,
capturando a região de Bihar e destruindo, sob alegações de heresia, a universidade budista de Nalanda por volta do
ano 1200. Em 1202, o maior regente bengali, Lakshmana Sena, caiu do poder. Bengala a partir de então irá gravitar
para fora do controle de Delhi, a tornar-se um centro de tradição própria. Após a morte de Muhammad de Ghur, em
1206, conforme atestou a separação entre Bengala e Delhi, o império dos Gúridas [232] começou a se fragmentar. Os
príncipes hindus rajputs começaram a reivindicar autonomia e tomaram de volta o controle de Gwalior e
Ranthambor.
Em Delhi, após a morte de Aikbar, Iltutmish (r. 1211 – 1229) tornou-se regente e sultão na cidade em 1211. Sua
dura tarefa era consolidar o sultanato de Delhi em cima das rebeliões dos rajputs pelo norte e noroeste da Índia,
como aconteceu perto da cidade de Udaipur e Agra, no Rajastão [233]. E conseguiu em 1239 submeter os seguidores
de Bakhtiyar Khilji com sucesso em Bengala e Bihar, a leste, conferindo ampla extensão territorial sob controle de
Delhi. A impetuosidade das reconquistas de Iltutmish foi celebrada em versos por um poeta persa [234]:
[Iltutmish] [C]onquistou pela segunda vez o forte que se assemelha aos céus;
(...) cuja mão e espada
A Alma do Leão [outro nome atribuído a Ali] de repetidos ataques elogiou. (tradução nossa)

Mas sua maior façanha talvez tenha sido a contenção dos mongóis, sob o comando de Gêngis Khan que chegou
ao rio Indo em 1221, embora este tenha deixado algumas de suas tropas na região de Punjab durante todo o século
13.
O mérito de Aibak e Iltutmish foi a consolidação de um sultanato independente em torno da cidade de Delhi,
dando início a uma unidade imperial no norte indiano não vista desde os guptas e Harsha. Delhi, que tinha sido uma
pequena fortaleza dos rajputs, e emergiu como capital imperial e ganhou grandes obras no que hoje é conhecida
como a Velha Delhi, ao norte do que depois os britânicos irão construir ao sul desta, a Nova Delhi nos séculos 19 e
20. Como maior símbolo desses dois regentes, figura a torre de Qutb Minar (fig.), simbolizando a rica combinação
dos elementos indo-islâmicos, assim como a mesquita Quwwat-ul-Islam e o túmulo de Iltutmish.

Fig. – O minarete de Qutb Minar, em Delhi, expressão combinada dos elementos indo-islâmicos do século 13.

Após a morte de Iltutmish, décadas de incessantes disputas entre governantes e generais se deram pelo controle
do sultanato de Delhi. Nesse período de turbulências, há de se destacar o breve porém notável governo da filha de
Iltutmish, Razia al-Din (r. 1236 - 1240), retratada como governante sábia e líder competente: “Ela guardou todas as
qualidades admiráveis condizentes de uma líder”, como consta nas crônicas muçulmanas de Tabaqat-i-Nasiri [235]. E
nessa obra foi concluído: “Mas de que adianta todas essas qualidades se o destino negou a ela a sorte de ter nascido
como homem?”. Em 1240, após conspirações de outros seguidores indignados de Iltutmish, a sultana foi destronada
e morta.
As ofensivas dos mongóis (chagatais) advindos do noroeste e baseados em Punjab na cidade de Lahore,
começaram novamente a ganhar ímpeto em meados do século 13 até serem contidos e derrotados pelo sultão
mameluco de Delhi, Ghiyas ud din Balban (r. 1266 – 86). Balban, conhecido pela sua crueldade e impetuosidade
diante de seus inimigos e opositores, procedeu em reprimir outras revoltas de seu reino e derrotou os contestadores
em Bengala, nomeando seus descendentes como governadores na região até 1338 [236]. Após a morte de Balban em
1286, Bengala novamente terá sua breve autonomia de sultanato diante de Delhi (1290 – 1320) [237].
A expansão além das regiões setentrionais da Índia pelo sultanato de Delhi ganhou impulso sob Alauddin Khilji
(r. 1296 - 1316). O sultão almejava ser um grande imperador, comparável a Alexandre, o Grande, um “Sikander”,
como mostra as moedas de seu governo. O seu histórico iniciou-se com a conquista do forte de Devagiri, derrotando
o regente local, o rei dos Yadavas. Em 1298, ele dominou o Gujarate e entre 1031 e 1022 capturou os fortes dos
rajputs em Ranthabor e Chittor, façanha esta que foi imortalizado no épico Padmavat (1540) de Jayasi (1477–1542)
[238]
, e outros locais estratégicos em Malwa em 1305. Dois anos após, Alauddin submeteu de vez o regente de
Devagiri, no planalto do Decão, e tornou-o tributário ao seu comando.
A partir de 1309, Alauddin começou as ofensivas mais ao sul da Índia. E sua mais formidável presa seria a
magnífica capital dos Kakatiyas, em Warangal, hoje no estado de Andhra Pradesh [239]. Com esse intento, nomeou
um de seus mais talentosos generais, Malik Kafur (? - 1316), que retornou a Delhi vitorioso com espólio de guerra
tão vasto que foram necessários mil camelos para o carregamento. E, segundo a lenda, entre esses objetos de valor, o
famoso diamante Koh-i-Nur [240]. Ano seguinte, Malik Kafur prosseguiu adiante e invadiu a capital dos hoysalas,
Dvarasamudra, e a cidade imperial dos pandias, Madurai, submetendo os seus regentes como subordinados (mapa).
Mapa - Extensões de Alauddin Khilji, em 1316.

Mais ao norte e noroeste, Alauddin lançou uma série de campanhas contra os mongóis. Em 1299, o líder local
dos mongóis, descendente de Gêngis Khan, Qutlugh Khwaja (? – 1313-4), invadiu a Índia com um exército de 200
mil homens, almejando controlar Delhi. Foi expulso em batalha por Alauddin e novamente quatro anos depois
quando o sultão de Delhi estava concentrado tentando capturar Warangal. Nesses eventos, os mongóis conseguiram
chegar à capital Delhi, arrasando as ruas, templos e edifícios da cidade [241].
Mas talvez o maior legado de Alauddin sejam suas reformas administrativas. Enquanto seus predecessores
basearam seus poderes e tributos em cima de alianças com líderes e regentes locais, Alauddin procedeu em
centralizar o poder na capital e padronizar a tributação. Notoriamente, cobrou um imposto menor, mais padronizado
e regular de todos. E entre os mais pobres, composta em sua maioria por camponeses hindus, buscou coibir taxas
abusivas feitas por intermediários e chefes locais [242].
Entre os seus cortesãos e oficiais, que poderiam ser propensos a revoltas e conspirações, buscou confiscar todas
as suas propriedades, e os nomeou-os para a coleta de impostos e levantamento de dados em locais definidos de
maneira rotativa, evitando assim maiores ameaças de deslealdade e corrupção ao seu poder. Conseguiu assim, de
maneira gradativa, centralizar as lealdades políticas e assegurou a entrada de impostos ao tesouro imperial que foi
fundamental para custear as suas campanhas militares. Essas medidas foram as mais sistemáticas reformas
administrativas centralizadas na Índia antes da dinastia dos mogóis no século 16. Bastante pragmático apesar de ser
um devoto muçulmano, Alauddin seguiu mais os preceitos do Artaxastra, de pôr o interesse do estado acima de
qualquer norma, mesmo dos ensinamentos corânicos, como ele declarou em diálogo conforme narrado no livro de
Barni, o Tarikh-i-Firoz Shahi [243]:
Apesar de ser um muçulmano de ascendência muçulmana, visando evitar rebeliões em que milhares poderiam perecer, eu ordeno e concebo
conforme o que é melhor ao estado e para o benefício do povo (tradução nossa).

Em 1316, Alauddin faleceu e foi sucedido por seus filhos em período de política turbulenta. A ordem somente
voltou em 1320, quando os cortesãos colocaram no trono Ghiyath al-Din Tughluq (r. 1320 – 1325) como o novo
sultão. Filho de um escravo militar turco que serviu ao sultão Balban, o novo regente fundou uma nova dinastia em
Delhi.
Ghiyath al-Din Tughluq conduziu novas campanhas contra as rebeliões na cidade de Warangal e sobre a
Bengala. Ao retornar à Delhi, morreu num suspeito desabamento de um salão de recepção celebrando suas vitórias
militares [244]. Seu filho, Muhammad bin Tughluq (r. 1324 - 1351), governará sem interrupções o sultanato por 27
anos. Ambicioso por natureza, erudito e fluente em árabe, persa e turco e sânscrito, Muhammad Tughluq almejou
expandir ainda mais o seu reino, a anexar todos os domínios do sul da Índia. Logo depois de ascender ao trono, em
1326-7, conquistou os reinos hindus de Madura e de Kampili [245] onde depois o domínio de Vijayanagara irá
florescer. Também submeteu os rebeldes hoysalas e, visando projetar e proteger melhor seu império no flanco
central e meridional, decidiu mudar a capital de Delhi, ao norte, para uma nova capital em Daulatabad, perto de
Devagiri, que provou seu um desastre para a sua popularidade e para as finanças imperiais. Testemunha desse
ruinoso projeto foi o viajante marroquino Ibn Battuta (1304 - 1369) que esteve na Índia à época trabalhando como
juiz islâmico (qadi) [246].
Seu fracasso na nova capital fez com que retornasse a Delhi, demonstrando fraqueza e insegurança aos olhos da
população e líderes locais. No sul, foi sinal claro para novas rebeliões. Em 1334, o governador de Madurai declarou
independência como sultão de Mabar. Quatro anos depois, Bengala, a leste, seguiu no mesmo sentido e em 1346 o
império Vijayanagara foi fundado tendo como capital uma cidade perto da ruinosa Daulatabad. Na Índia Central, um
sultanato em Bamani foi estabelecido em 1347. Os centros regionais indianos novamente começaram a se firmar em
cima da fragmentação imperial de Delhi.
Os anos finais de Muhammad Tughluq foram narrados por Ibn Battuta em seu Livro de Viagens (Rihla) como
um período de fome, terror, opressão e perseguição em cima da população hindu e muçulmana, opositores e
supostos conspiradores [247]. E assim iniciou-se o gradativo declínio do sultanato de Delhi. Firoz Shah, primo de
Tughluq, subiu ao trono em 1351 e governou duradouramente por 37 anos. Firoz teve o mérito de consolidar o
comando do sultanato em Delhi novamente e desistiu de qualquer pretensão de incorporar os reinos centrais e
meridionais indianos. Foi fracassado nas suas tentativas de reprimir as revoltas em Bengala nas campanhas de 1353-
1354 e 1359, apesar de ter conseguido algumas vitórias em Orissa, mais ao sul de Bengala ao longo da costa oriental
[248]
. Em 1362, suas ofensivas sobre o Gujarate e Sind quando resultaram em sua morte no deserto.
Firoz foi mais notável na construção de obras, canais, fortes e mesquitas. Uma cidadela em Delhi, a Feroz Shah
Kotla (fig.), foi terminada e foram erguidos dois pilares de Asoka trazidas de províncias distantes. Tentou introduzir
novas reformas administrativas, ao abolir a tortura e estendeu a cobrança de impostos (jizya) aos brâmanes, causa de
grande impopularidade entre a casta [249]. Firoz morreu em 1388, quando o poderio de Delhi começou a se
desintegrar em fase terminal. Seus sucessores disputaram o trono e acarretou em confronto na capital. Nesse período
de fragilidade política, as províncias passaram a ser de fato autônomas. O sultanato de Delhi finalmente caiu em
1398, quando o mais formidável líder à época, vindo de Samarcanda, Tamerlão (Timur) (1366 - 1405), ocupou e
arrasou Delhi depois de ter conquistado a Pérsia em 1387 e Bagdá em 1393. Por três dias, os soldados de Tamerlão
saquearam e pilharam os tesouros e valores de Delhi, estuprando e matando a sua população hindu, poupando os
muçulmanos. Delhi, depois do evento, ficou desabitada e abandonada por anos.

Fig. – Forte de Feroz Shah Kotla ou Ferozabad, em Delhi.

Em 1414, Delhi foi brevemente centro de uma nova dinastia, sob os Sayyids (1414 – 1451), mas a sua influência
sobre as regiões próximas na Índia foi bastante restrita, concentrando-se nas planícies entre os rios Ganges e
Yamuna. Em 1451, um chefe afegão do clã dos Lodis, Bahlul (r. 1451 - 1489), destronou os regentes anteriores e
criou uma nova dinastia em Delhi, projetou seu poder para algumas regiões centrais indianas e consolidou uma
administração eficiente, fundamentos que iriam depois ser usadas na maquinaria de estado dos mogóis. Visando
melhor controle sobre Gwalior e outras regiões dos rajputs, o regente Lodi, Sikandar (r. 1489 - 1517), mandou
construir uma nova capital em Agra. Mas o maior legado dos Lodis se encontra em Delhi, nos Jardins Lodi, local de
muitos dos túmulos e monumentos de seus regentes.
No Planalto do Decão e o Sul da Índia
Em 1345, Zafar Khan, um militar de origem turca a serviço de Muhammad Tughlug, sultão de Delhi, ocupou a
cidade de Daulatabad e, diante das crises políticas ao norte que deu ensejo às suas ambições e declarou-se sultão de
Bamani sob o título de Bahman Shah. Dois anos depois, temendo pela segurança de sua capital, decidiu deslocar
junto com sua corte mais ao sul, ao norte de Karnataka, para Gulbarga. Aproximadamente ao mesmo tempo, dois
novos reinos hindus que desconheceram qualquer invasão bem sucedida dos muçulmanos foram criados, o de
Vijayanagara, parte meridional de Karnataka, e o dos Gajapatis em Orissa na costa oriental.
O Sultanato de Bamani
Desde o princípio em 1347, o reino muçulmano de Bamani (mapa) procurou se consolidar no poder, armando-se
contra as incursões esperadas de Muhammad Tughluq do norte. Diante dessas campanhas, a capital foi novamente
deslocada, a sair da área de Gulbarga, indo mais para noroeste, em Bidar, em fins do século 15 [250]. Assim descreveu
um viajante russo, Afanasy Nikitin (? – 1472), que nos deixou um vívido relato da nova capital, situada em altitude
mais elevada, por volta de mil metros, ressaltando o esplendor dos edifícios e da vida dos nobres contra a miséria da
população em geral [251].

Mapa - Sultanato de Bamani, século 14.

A personalidade mais marcante, segundo o russo, foi o ministro Bamani de origem persa, Muhammad Gawan (g.
1463 - 1482), que reformou as formas de tributação e centralizou a autoridade contra as tendências de desintegração
do novo sultanato. Acabou sendo morto em 1481, e assim sucedeu-se um período de declarações de independências
de governadores em Bijapur, em 1489, Ahmadnagar e Berar em 1491, Bidar em 1492 e de Golconda em 1512. O
último sultão de Bamani, Mahmud Shah (1482 – 1518) já não detinha nenhuma autoridade sobre a dissolução do seu
reino. Bijapur, em destaque, ficou envolvida em anos de lutas contra rivais vizinhos no Decão e chegou a perder o
porto de Goa, na costa ocidental, a novos rivais advindos dos oceanos, os portugueses, em 1510.
As províncias segregadas de Bamani, em geral, viveram autonomamente até serem incorporados pela expansão
dos mogóis sob Aurangzeb (r. 1685 - 1705) dois séculos depois. Nesse meio tempo, floresceu nas regiões uma
cultura indo-islâmica própria, como o surgimento da língua urdu. Assim, sob as ruínas do sultanato de Delhi, e antes
das invasões dos mogóis, floresceram no Decão reinos independentes hindus e muçulmanos. No esteio, as culturas
islamo-pérsica e hindu se mesclaram, resultando em novos estilos e obras e popularizando novas línguas e dialetos.
Como exemplo, os regentes de Bijapur toleraram o marata como língua corrente local e das transações comerciais
cotidianas. Em Bengala, mais a leste, longe da dominação de Delhi, o sultão local financiou a tradução para a língua
bengali do Ramaiana, feita pelo poeta Krittibas (1381 - 1461). Por volta de 1500, o governador de Chittagong,
encomendou a tradução do Maabárata ao poeta da corte, Kavindra Parameshvara (c. 1515 - 1519) ao bengali. Em
suma, uma nova onda de florescimento cultural regional indiano ganhou ímpeto durante o período.
Na arquitetura, os Bamanis empreenderam uma série de construções que misturou elementos de estilo
muçulmano com locais. O resultado produziu elementos distintos, como ficou demonstrado nos grandiosos domos
de Gol Gumbaz (fig.), em Bijapur, e o de Charminar, em Hyderabad (Haiderabade) [252]. No campo da literatura, a
contribuição mais notável que empregou influências indo-islâmicas foi o do santo sufi [253] Hazrat Banda Nawaz
(1321 – 1422).
Fig. – Gol Gumbaz, em Bijapur, exemplo da arquitetura indo-islâmica do reino de Bamani, século 14.

O reino Gajapati de Orissa


Uns dos mais temíveis e organizados rivais do sultanato de Delhi foi o reino dos Gajapatis (“Senhor dos
Elefantes”) em Orissa, na costa oriental (mapa). Esses chegaram a controlar desde a foz do rio Ganges ao norte até o
rio Godaveri ao sul desde o século 13, alcançando por vezes Tiruchirappalli ao sul de Madras (atual Chennai) no
século 15. Juntamente com o reino de Vijayanagara, levaram mais adiante a preservação dos costumes e intuições
hindus na Índia oriental e meridional, em contraste com a costa ocidental e setentrional que tiveram maior influência
islâmica no século 13.

Mapa - Reinos dos Gajapatis de Orissa, na costa oriental indiana (em roxo), e do império de Vijayanagara, ao sul (em vermelho claro), início do século
16.

A história de Orissa sob os Gajapatis se iniciou com os avanços de um líder, o rei Anantavarman Chodaganga (r.
c. 1077 – c. 1150), que conquistou o fértil delta do rio Mahanadi por volta do ano de 1112. Dez anos depois,
estendeu sua presença ao norte, em Bengala, após a morte do regente local, o rei Ramapala (r. 1077 - 1133), e
atingiu ao sul a foz do rio Godaveri. Ao fim de sua vida, Chodaganga mandou construir o famoso templo em
homenagem ao deus Jagganath em Puri [254].
Seus sucessores, no início do século 13, defrontaram-se novamente com os bengalis muçulmanos advindos do
norte. O rei Narasimhavarman I (1239 – 1264) chegou a contra-atacar os muçulmanos. Em 1244, as forças de Orissa
conseguiram notável vitória contra Bengala, quando o neto de Narasimhavarman alcançou o rio Ganges, e
avançando de tal maneira no território muçulmano em Bengala que estes não os atacaram por mais de um século.
Somente em 1361, sob o sultão de Delhi, Firoz Shah (r. 1351 - 1388), os Gajapatis sofreram novas ofensivas na sua
porção setentrional, de acordo com o que relata o Tarikh-i-Firoz Shahi. O rei Gajapati, na ocasião, Bhanudeva III (r.
1352 - 1378) foi derrotado em batalha em Cuttack e foi poupado na condição de pagar tributos ao sultão de Delhi. O
Tarikh-i-Firoz Shahi assim continua [255]:
Os estandartes vitoriosos agora partiram para a destruição do templo de Jagannath. Este era o santuário dos politeístas dessa terra e santuário de
devoção dos incrédulos do Extremo Oriente. Foi o mais famoso dos templos deles (tradução nossa).
Apesar disso, não houve maiores consequências para o status autônomo dos Gajapatis de Orissa como reino
hindu. Os pagamentos de tributos logo cessaram. Mas a dinastia iniciada por Anatavarman Chodaganga já tinha
perdido seu auge e declinou nos anos subsequentes. Após a morte do rei Bhanudeva IV (r. 1424 - 1434), Kapilendra
(r. 1434 - 1466) ocupou o trono em 1453. E, após se firmar no poder e empreender uma série de reformas tributárias
sobre o sal, assegurando maior arrecadação, Kapilendra despontou como o maior líder hindu de sua época,
estendendo seus domínios desde Bengala ao norte ao Kaveri ao sul [256].
Após Kapilendra, seguiu-se um longo período de instabilidades no reino de Orissa. Alguns territórios
conquistados contestaram a dominação imperial dos Gajapatis, principalmente de muçulmanos ao norte, como as
lideradas pelo Hussain Shah (1493 – 1518) que fundou uma nova dinastia em Bengala. Ao sul, houve a ascensão do
maior regente de Vijayanagara, Krishnadeva Raya, em 1509, afastando de vez qualquer pretensão de dominação em
terras meridionais. Em 1568, de maneira fulminante e final, um general muçulmano de Bengala, Kalapahad, arrasou
Orissa assim como o fez Firoz Shah quase dois séculos antes. Em sequência, o templo de Jagganath em Puri e suas
imagens foram profanados, saqueados e queimados [257]. Mas, após algumas décadas, o templo e o culto desse deus
foram restaurados, pois o regente local, Ramachandra, conseguiu assegurar aliança com o imperador mogol, Akbar
(r. 1556 - 1605), a servir de aliado a conter os rebeldes na região e o sultão rival de Golconda.
No campo cultural, o reino dos Gajapatis testemunhou um efervescente período de cultura e arquitetura regional.
Os cultos e templos em torno de Jagganath, em Puri, foram patrocinados pelo estado e serviram como elementos de
legitimidade aos governantes de Gajapati. Assim como foi incorporado o culto ao deus Surya (Deus Sol) de seu
impressionante templo em Kornark (fig.). Na literatura, houve a transcrição de obras clássicas do sânscrito para a
língua oriá, como feito por Sarala Das (século 15) com o épico Maabárata [258].

Fig. – Templo de Surya em Kornark.

Vijayanagara
O surgimento do Império de Vijayanagara (também conhecido pelos portugueses como o de Bisnaga) foi
fundado por vários irmãos, entre eles os mais destacados, Harihara e Bukka, que combateram as ofensivas do
sultanato de Delhi. De origens contestadas pelos historiadores, esses irmãos aparentemente sofreram grande
influência de um monge hindu, Vidyaranya, que os reconverteram ao hinduísmo depois de terem sido islamizados
como prisioneiros. Essa versão tradicional, contudo, é cada vez mais contestada [259]. Após o fato, se estabeleceram
em Kampili e depois em outro local estrategicamente perto do rio Tungabhadra, quando fundaram uma dinastia a
combater os muçulmanos de Delhi, atual cidade de Hampi. As controvérsias, no entanto, não obscurecem o legado e
importância dos ensinamentos revivalistas hindus de Vidyaranya, que buscou enfatizar os princípios de Shankara, no
início do reino Vijayanagara e seu culto no mosteiro de Sringeri diante dos avanços da fé muçulmana.
Bukka (r. 1356 - 1377) sucedeu seu irmão Harihara (r. 1336 - 1356) em 1356 e coordenou as ofensivas
expansionistas do império nascente. Lutou contra o sultão de Bamani, Muhammad Shah (r. 1358 - 1377), e assinou
com ele um tratado de limites dos reinos tendo como marco o rio Krishna em 1365. Cinco anos depois, Bukka foi
vitorioso em batalha contra o sultão de Madurai (sultão de Mabar) pondo termo a um dos mais meridionais
sultanatos da Índia [260].
Nos governos sucessórios de Harihara II (r. 1377 – 1404) e de Devaraya I (r. 1406 – 1424), foram consolidadas
as fronteiras e as forças políticas do império. Sob Harihara II, o império cresceu a nordeste contra os regentes de
Kondadivu e sobre os dinásticos da cidade de Warangal. Esse curso levou à colisão com as forças dos Gajapatis de
Orissa. O primeiro embate se deu entre o rei Gajapati Bhanudeva IV (r. 1424 - 1434) e o rei de Vijayanagara
Devaraya I (r. 1406 - 1422) que terminou com um acordo de coexistência pacífica entre as duas entidades. No
entanto, sob Devaraya II (r. 1425 - 1446) as guerras contra Orissa foram retomadas e perduraram por quase um
século. O que enfraqueceu ambos os grandes reinos hindus contra as pretensões muçulmanas do norte. O período de
maior retração de Vijayanagara se deu contra o líder Gajapati, Kapilendra e de seu filho, Hamvira (r. 1472 - 1476),
que atuou como governador sobre a costa oriental indiana na região de Kondavidu e Rajahmundry, atual costa de
Andhra, até o vale do rio Kaveri ao sul em 1463 [261].
E foi nesse período que a dinastia fundada pelos irmãos Harihara e Bukka conheceu seu declínio. O seu último
rei, Virupaksha II (r. 1464-1485) foi incapaz de impedir concorrentes e usurpadores ao seu trono. Nesse cenário, o
príncipe de Saluva, Narasimha (r. 1486 - 1491), emergiu como figura inconteste ao poder, um possível salvador do
império de Vijayanagara. Mas a sua sucessão, após sua morte em 1491, não apresentou tranquilidade política. A
dinastia inicial se desfez e uma nova se instalou no trono, sob o nome de Tuluva (1491 - 1570) a comandar
Vijayanagara. O império atravessou instabilidades internas, mas perdurou nas suas fronteiras pelo fato de seus
grandes rivais próximos estarem ocupados em conflitos e fragmentados em rebeliões internas: o sultanato de Bamani
desintegrava-se e o poderio de Gajapati minguava-se.
A glória maior de Vijayanagara se deu no início do século 16, sob o comando de Krishnadeva Raya (r. 1509 –
1529), ou simplesmente Krishnadeva, maior regente da Dinastia Tuluva. Ele provou ser um gênio político e militar
desde o início de sua carreira. Enfrentou o líder de Bamani, Mahmood Shah II (r. 1482–1518) e saiu vitorioso no
Decão, tornando-o como um vassalo na região a controlar outros poderios regionais e manter o sultanato dividido e
incapaz de maior coesão [262]. Depois, Krishnadeva ganhou controle da costa de Andhra e capturou a cidade de
Cuttack, capital de Orissa. Em reconhecimento, os Gajapatis ofereceram a filha do regente local em casamento para
selar aliança.
Krishnadeva entrou para a posteridade também pelas suas construções e administração. Quase todos os
grandiosos templos do sul da Índia, como em Chidambara, foram erguidos e restaurados na época de seu governo.
Foi generoso patrono das artes e da literatura na língua telugo [263]. E foi adepto do vedantismo e teve como seu guru
um dos maiores líderes espirituais à época, o santo Vyasatirtha (1447–1548). Depois de sua morte, os conflitos
internos ao trono novamente foram retomados. Seus sucessores, Achyutadeva Raya (r. 1529 – 1542) e Sadashiva (r.
1543 - 1545), foram líderes fracos que viveram à sombra do ambicioso cunhado de Krishnadeva, Aliya Rama Raya
(1485? –1565), que agiu como regente de facto a conduzir os negócios do império.
E foi durante o reino de Sadashiva, a partir de 1510, que os primeiros confrontos com os portugueses se deram
[264]
, pois estes violaram e destruíram a santidade de tempos hindus perto de Goa e Madras. Mas logo foi assinado
um termo de paz, assegurando o fornecimento de cavalos de guerra importados do Golfo Pérsico pelos lusitanos.
Mas os eventos mais cruciais para Vijayanagara foram os embates e rebeliões contra os sultões no Decão.
Eventualmente, sua política de “dividir para governar” entre os regentes muçulmanos deve fim com uma ampla
aliança de sultões conforme nos diz o cronista muçulmano Ferishta, causado pela destruição de mesquitas por
soldados de Vijayanagara [265]. As forças combinadas anti-Vijayanagara tomaram a ofensiva contra a fortaleza de
Talikota, às margens do rio Krishna, nos anos de 1564 e 1565. Ao fim das batalhas, o líder de Vijayanagara, Aliya
Rama Raya (r. 1543 - 1565), foi capturado como prisioneiro e decapitado. Após o qual, seu irmão, Tirumala (r. 1565
- 1572) tomado pela pânico e medo, reuniu grande contingente de homens, elefantes e tesouro e empreendeu fuga,
deixando a capital imperial desguarnecida diante de invasores muçulmanos. O fim se deu com a pilhagem e
destruição da capital de Vijayanagara em 1565.
Os descendentes de Tirumala ainda continuaram a reger a região por mais algum tempo, sob uma nova dinastia,
a de Aravidu (1542 - 1646), a última desse grande império. Mas a capital de Vijayanagara, de mesmo nome, nunca
mais retomou seu antigo esplendor e glória soberana. Somente três anos depois da devastação da capital, em 1568,
os Gajapatis também sucumbiram diante de novos invasores, marcando o fim dos grandes reinos hindus diante de
disciplinados exércitos muçulmanos advindos da Ásia Central, os mogóis, marcando uma nova era na história da
Índia.
O comércio e a economia de Vijayanagara tiveram grande papel em assegurar os tributos necessários para a
construção e manutenção de templos, reservatórios de água, palácios, fortes e o corpo administrativo, religioso e
militar. O Oceano Índico por volta do século 16 constituía um largo espaço de transações comerciais de árabes,
malaios, chineses e alguns europeus a usarem os previsíveis ventos das monções. Com a China, o comércio das
costas indianas já tinham se concretizado desde a Dinastia Tang (618 - 907). O Islã, estabelecido na Ásia Central e
Pérsia, controlou o fluxo terrestre e marítimo comercial da Índia em direção oeste e para a Europa até ser contestado
com a presença das caravelas portuguesas em fins do século 15. Ademais, a Índia teve grande prosperidade desde o
século 10 pela sua situação geográfica entre o sudeste asiático e China com o Golfo Pérsico e o mundo muçulmano.
E seus produtos tinham fama e demanda lendárias pelo mundo: a destacar as especiarias, têxteis, pedras preciosas,
sal, arroz, madeira, incenso, pérolas, marfim, âmbar e ébano. E o vibrante comércio atraiu grande contingente de
comerciantes árabes, armênios, chineses, judeus entre outros nas cidades portuárias de Mangalore, Honavar,
Bhatkal, Barkur, Cochin, Cannanore, Machilipatnam e Dharmadam, todas controladas e tributadas pelos
governantes de Vijayanagara, dando lhes acentuado perfil cosmopolita [266].
No campo da cultura, a antiga cidade e capital de Vijayanagara foi local de expressão máxima dos projetos
imperiais. Ela constava como uma das maiores cidades do mundo nos séculos 15 e 16 e era esplêndida em seu
planejamento urbano, com templos, fortes e jardins abundantes (fig.). Isso foi em boa parte obras dos reinados de
Deva Raya I (r. 1406 - 1422) e Krishnadeva Raya (r. 1509 - 1529). Essas obras foram descritas e testemunhadas por
viajantes estrangeiros impressionados com a magnificência da cidade. O persa Abdur Razzak que esteve no local no
século 15 escreveu [267]:
A cidade de Vijayanagara é tal que a pupila do olho nunca viu um lugar como este, e os ouvidos da inteligência nunca foram informados sobre algo
assim nada igual no mundo (tradução nossa).

E o português Domingo Paes assim expressou [268]:


As pessoas nesta cidade são inúmeras, tanto que eu não desejo contá-las temendo parecer fabuloso. O que eu vi parecia tão grande como Roma e
muito bonito à vista; há muitos bosques de árvores dentro dela, muitos pomares e jardins de árvores de fruto e muitas condutas de água que fluem no
meio dela, e em outros lugares existe vários lagos [grandes reservatórios de água] (tradução nossa).

Fig. – Expressão do esplendor arquitetônico e artístico de Vijayanagara, em Hampi, Karnataka.

Nos tempos do governo de Krishnadeva Raya, frequentaram ilustres poetas e escritores que contribuíram para o
nascimento da literatura em telugo e canaresa. Em telugo, os oito estudiosos [269] patrocinados pelo rei – conjunto
deles chamados de Ashta diggajas - produziram uma série de obras clássicas. Krishnadeva mesmo, o rei, como
amante e admirador das artes, chegou a compor também uma excepcional obra, o livro Amuktamalyada (“Aquele
que Veste e Concede Grinaldas”) na língua telugo entre 1509-1530, em que narra os amores e sofrimentos do
casamento do deus Vixnu com Andal ou Goda Devi, uma santa tâmil local (santos chamados de alvar). Acredita-se
que o rei teve a sua inspiração para escrever o livro depois de ter sonhado com Vixnu [270].

Índia e Sul da Ásia (De Babur a Baji Rao – Meados do Século 16 - 18)
Babur
Em 1525, um ano antes do avanço do fundador da Dinastia Mogol, Babur (r. 1526 - 1530) que atravessou o
Passo de Khyber, no Afeganistão, a mais importante passagem montanhosa do norte da Pérsia e Afeganistão para a
Índia, a realidade política indiana era fragmentada e instável com muitos governantes locais seguidores da religião
de Maomé.
Nascido no Uzbequistão e rei de Fergana desde 1495, Babur sentiu-se invencível nas suas campanhas e entendeu
de que sua glória e fortuna estavam todas nas incontáveis riquezas que a Índia poderia oferecer. Mas nunca pensou
em se tornar um indiano, era admirador e versado em persa e sua literatura e sonhava em conquistar e reerguer a
cidade uzbeque de Samarcanda [271], a retomar o fausto da época de um de seus mais ilustres antecessores, Timur,
Timur-i-Lang ou Tamerlão (1336 - 1405), e, por parte de sua mãe, de Temujin Khan (Gêngis Khan) (1162 - 1227).
Para tanto, evocando seus remotos parentes, considerou a si e para seus sucessores como timúridas [272], mas ficou
mais tarde conhecido pelos persas e ocidentais como mogóis, i.e., em parte descendentes de Timur, em parte de
Gêngis Khan.
Apesar de seu sonho sobre Samarcanda, não obteve êxito na conquista da cidade. E foi mais para o sul, passando
pela cordilheira do Hindu Kush, que chegou a sitiar a cidade de Cabul em 1504, estabelecendo um novo reino na
região e mantendo-se seu regente até 1526 [273]. A partir de então, Babur iniciou uma série e incursões de pilhagem
às regiões vizinhas, constatando a pobreza de recursos na região afegã por ele controlado. Em último momento,
reuniu um grande contingente de homens armados com mosquetes e canhões, adquiridos por contatos com os turcos
otomanos, e chegou a conquistar mais a sudoeste a histórica cidade de Kandahar (Candaar) em 1522, abrindo-lhe a
passagem desimpedida para o Hindustão, como a Índia era chamada à época pelos persas. Apenas aguardava uma
oportunidade propícia para atacar a cidade de Delhi.
E o momento adveio depois de anos de instabilidades políticas desde a morte do sultão de Delhi, Sikandar Lodi
em 1517. Seu sucessor, Ibrahim Lodi (1517 - 1526) reinou pifiamente o sultanato imerso em crises e disputas pelo
poder, chegando um de seus aliados a enviar um emissário a Cabul para pôr termo ao incompetente sultão de Delhi.
Diante disso, em 1525, Babur atravessou o Passo de Khyber, determinado a se tornar o novo sultão de Delhi [274].
A batalha decisiva que entrou para os anais da história se deu perto da cidade de Panipat, aproximadamente 80
km ao norte de Delhi, em 1526 (mapa). Apesar de ser numericamente inferior às tropas reunidas por Ibrahim Lodi,
Babur esteve seguro de suas tropas, mais ágeis, veteranas e com elementos surpresa no campo de batalha diante dos
pesados elefantes de guerra dos adversários: o efeito psicológico dos canhões. Seu filho, Humayun (1508 - 1556),
futuro sultão indiano, tomou as primeiras iniciativas no campo e conseguiu capturar na sua ofensiva centenas de
soldados e uma quantia considerável de pilhagem, causando grande orgulho ao seu pai e elevando a moral de suas
tropas.

Mapa - Máxima extensão de Babur após a batalha de Panipat, início do século 16.

Na batalha que se seguiu, Babur ciente de sua superior mobilidade e do fator surpresa, mobilizou sua cavalaria
circundando as tropas de Lodi e forçando-as por uma estreita passagem de terra, onde poderia concentrar o seu
poder de fogo de artilharia. Assim, Ibrahim Lodi foi morto e derrotado em batalha, dando termo à Dinastia Lodi.
Babur se vangloriou diante de sua vitória [275]: “[P]ela graça do Todo Poderoso Deus, esta difícil tarefa foi fácil para
mim e aquele poderoso exército, no espaço de metade de um dia foi arruinado ao pó” (tradução nossa).
Depois de Panipat, a cidade de Delhi foi ocupada. Em Agra, Humayun pilhou magníficos tesouros, entre eles o
famoso diamante Koh-i-Moor, um dos maiores diamantes do mundo e hoje a principal joia da Coroa Britânica.
Babur ainda enfrentou algumas lideranças rajputs que inconformados ambicionaram ocupar o trono em Delhi. E
nisso resultou a batalha de Khanwa, em 1527, em que o rajput Rana Sanga (1484 - 1527) foi derrotado no brilhante
uso tático de canhões de Babur. Assim, após os eventos e com a morte de Rana Sanga, foi estabelecida a presença
dos mogóis na Índia [276].
As causas da queda do sultanato de Delhi sob a Dinastia Lodi foram consideradas por historiadores. Entre os
fatores mais evidentes, de acordo com Chaurasia [277], consta a impopularidade dos regentes lodis, considerados
despóticos e intolerantes por boa parte da população hindu. Diante disso, à época de Ibrahim Lodi, a corte ocupava-
se em intrigas diante da lassidão do sultão em lidar com os assuntos de estado. Outros fatores considerados foi a
inaptidão do exército lodi, numeroso, mas pouco ágil e adequado às táticas de guerra de cavalaria e artilharia
empregadas por Babur.
Uma última batalha a assegurar e consolidar a dominação de Babur na região setentrional central na Índia foi
realizada em 1528, em Malwa. A despeito da heroica resiliência da população e dos rajputs no forte, os mogóis sob
Babur testemunharam um antigo rito de autoimolação em nome da honra dos rajputs, o jauhar. Em que, diante da
iminente derrota, crianças e mulheres rajputs cometeram suicídio e alguns homens depois enfrentaram a morte
sozinhos em batalha, conforme relatou com espanto Babur em seu livro de memórias, Baburnama [278].
Em 1530, após ter se assegurado no trono, Babur adoeceu e morreu aos 47 anos de idade. Um período de luto
seguiu-se entre seus aliados e familiares, conforme expressou sua filha, Gulbadan (c. 1523 – 1603): “Negro tornou-
se o dia para as crianças, parentes e todos” (tradução nossa) [279]. Humayun, seu filho, o sucede no poder aos 23 anos
de idade com muitos pretendentes rivais a reivindicar o seu trono.
Humayun
Ao ascender ao trono, Humayun (r. 1530 – 1540; r. 1555 - 1556) disputou o poder entre os pretendentes, Sher
Shah Suri (r. 1540 - 1545), governador que serviu a Babur em Bihar, a leste, e o sultão Baradur de Gujarate (r. 1526
– 1535; r. 1536 - 1537), ao sul e sudoeste. E durante os primeiros cinco anos de mandato de Humayun, esses dois
rivais obtiveram sucesso nos seus avanços territoriais. Sher Shah Suri assegurou-se a leste mesmo com a ofensiva
inicial de Humayun. Mas a ameaça maior veio do sul, pois Baradur fechou uma trégua temporária em 1534 com os
portugueses, garantindo-lhes alguns portos em Bassein (Baçaim), ao norte de Bombaim (Mumbai atual), e no
Gujarate, em Diu [280].
Em 1535, Baradur sofreu uma série de derrotas, ao perder os fortes de Champaner e Mandu frente à Humayun, o
que lhe assegurou presença estratégica na região central setentrional indiana além de Delhi e Agra. Em 1537,
Baradur, fragilizado diante das derrotas, visita os portugueses para negociações a bordo de um navio sob comando
de Nuno da Cunha (1487 – 1539). No evento, Baradur é morto e os lusitanos asseguram-se na região de Gujarate.
Após o fato, os mogóis sob Humayun, percebendo a mudança dos ventos, foram negociar com os portugueses,
cedendo-lhes o porto de Damão, ganhando assim os lusitanos o controle de vasta faixa costeira ocidental indiana,
desde Bombaim (Mumbai) ao sul até Diu ao norte, região denominada por eles de Províncias do Norte, além do
controle de Goa [281].
Mas ao se ausentar da capital, Humayun deixou abertos os acessos e defesas de Agra, Delhi e região. Apesar de
conseguido assegurar a defesa das cidades, Sher Shah Suri ampliou e consolidou seu poder, e saqueou a principal
cidade ao leste, Gaur em 1537, localizada estrategicamente ao longo do rio Ganges em Bengala. Humayun, depois
dos eventos, decidiu se retirar da vida política e mergulhou “numa vida de indulgência e luxúria” [282].
Nesse processo, seu irmão mais novo, Hindal Mirza (1519 - 1551) tomou as dianteiras do estado e do exército,
mas não conseguiu prevenir a tomada de toda a Bihar por Sher Shah Suri, incluindo a sagrada cidade de Varanasi.
Sitiou o forte em Chunar e Jaunpur, controlando todo o acesso fluvial do curso médio do rio Ganges e Yamuna no
atual estado de Uttar Pradesh. Para agravar ainda mais a situação, o outro irmão de Humayun, Kamran Mirza (1508
- 1557), deixado pelo seu pai a governar as províncias a nordeste em Punjab, percebendo a gravidade da situação dos
mogóis no Hindustão, partiu com seus homens de Lahore, atual Paquistão. Ao chegar em Delhi, negociou o futuro
do sultanato com o príncipe mogol Hindal Mirza (1519 - 1551), filho mais novo de Babur, e prometeu-lhe lealdade
depois da deposição de Humayun.
Para salvar seu futuro político, Humayun partiu então para o leste a negociar com Sher Shah Suri em 1539, na
cidade de Chausa, nas margens do rio Ganges. O resultado, em suma, foi o controle de partes de Bihar e Bengala por
parte de Sher Shah. Em contrapartida, ficou reconhecido que Humayun era o imperador mogol. Humayun
ingenuamente acreditou nesses termos, pois, logo após a sua retirada da cidade, as tropas de Sher Shah massacraram,
na calada da noite, todo o acampamento mogol. Por pouco não vindo a morrer o próprio Humayun. Sher Shah
voltou-se depois para Bengala e se proclamou Sultan-ul Adil, “O Soberano Justo” [283].
Em 1540, as tropas imperiais mogóis e as de Sher Shah se defrontaram de novo na cidade de Kannauj. Humayun
sofreu nova derrota e fugiu com o que lhe restou para Agra e depois a encontrar com seu irmão, Kamran Mirza em
Lahore, visando refortalecer-se e fechar aliança. Não houve consenso nesses encontros, deixando a situação do
Império Mogol à mercê das forças de Sher Shah. Humayun, derrotado e frustrado, durante os próximos quinze anos,
partiu para o seu exílio. Em 1544, buscando aliados, foi para Herat, no Afeganistão e depois cruzou a fronteira para
as terras persas. Ali, na corte dos persas safávidas (1510 - 1736), Humayun aceitou a fé xiita [284], abandonando o seu
credo sunita, e conseguiu mais tropas e apoio do shah [285] persa Tahmasp I (r. 1524 - 1576) para novas contra
ofensivas militares. Assim prosseguiu para Kandahar, Cabul e depois a Lahore, tirando Kamran do poder, em 1553
[286]
.
A partir de então, Humayun retoma as investidas bem sucedidas de seu pai no norte da Índia. Em 1545, Sher
Shah tinha morrido em batalha contra os rajputs no forte de Kalinjar, e seu filho sucessor, Islam Shah Suri (r. 1545 -
1554), não tinha o mesmo carisma e liderança de seu progenitor. Além do mais, Islam Shah tinha morrido em 1554,
provocando um cenário fragmentado de lealdades políticas sobre a sucessão. Assim, aproveitando a ocasião, e
fortalecido com sua aliança aos persas, Humayun entrou em Delhi e proclamou-se novamente como imperador
mogol em 1555. Ano seguinte, após ouvir um dos chamados para as preces diárias muçulmanas (azaan), Humayun
tropeçou nas escadas, bateu a cabeça e morreu três dias depois. Seu grandioso túmulo ainda permanece
resplandecente em Delhi, demonstrando os elementos arquitetônicos e artísticos indo-persa-islâmicos que irão
dominar a Índia sob a dinastia dos mogóis.
Akbar
Nascido no Sind, atual sul do Paquistão, e filho mais velho de Humayun, Akbar (1542 - 1605) já exerceu as
responsabilidade de governador de Punjab à época do fatal acidente que levou a vida de seu pai. Para garantir sua
sucessão ao trono, seu funcionário e guardião, Bairam Khan (c. 1501 - 1561), obstruiu e ocultou o quanto pôde a
morte de Humayun para não gerar maiores intrigas e disputas e dar tempo a Akbar assumir o trono em Delhi. Assim,
em 1556, aos 13 anos de idade, Akbar foi coroado imperador mogol, proclamado segundo as tradições persas com o
título Shahanshah (Rei dos Reis). Bairam continuaria sendo seu primeiro ministro (vakil) até ele completar a
maioridade [287]. E foi Bairam que também garantiu relativa estabilidade além de Delhi e Agra das ameaças de
pretendentes ao trono, como entre líderes afegãos e contra o rei hindu Hemu numa outra batalha vencida em Panipat
em 1556. Depois se seguiram as vitórias sobre rebeldes em Punjab, sobre Sikandar Shah, e em Ajmer, assegurando a
dominação no Rajastão em 1558 [288]. Apesar de sua lealdade, Bairam foi visto cada vez mais com olhos
desconfiados por Akbar. Em 1560, ordenou a Bairam ir fazer o hajj (“Peregrinação”) a Meca, que no caminho
decidiu se juntar aos rebeldes e foi derrotado em batalha no Punjab [289].
Akbar provou ser um líder militar de valor e continuou as campanhas vitoriosas no seu reinado. No auge de suas
extensões, o Império Mogol estendeu-se desde o Afeganistão ao norte, Sind a oeste, Bengala a leste até a foz do rio
Godavari ao sul. O seu sucesso imperial foi resultado de sua habilidade de manter as lealdades de seus aliados e o
carisma diante de seus súditos. Aliou-se com regentes rajputs derrotados, invés de demandar tributos, e concedeu-
lhes autonomia de governo sobre território local. Assim, conjugou um governo centralizado com alianças feitas com
autoridades locais.
E forjou ampla aliança política com laços matrimoniais. Como quando se casou com princesas hindus, como a
Jodha Bai (Heer Kunwari) (1542 - 1623) em 1562, filha mais velha do regente de Jaipur, assim como as princesas de
Bikaner e Jaisalmer. Assim tornaram os membros dessas famílias reais rajputs parte plena de sua família, deixando
de ser considerado como um sinal de degradação aos olhos dos regentes hindus [290].
Em termos de administração, Akbar em 1574 reformou todo o sistema de tributação. Cada governador, subah,
era responsável por manter a ordem em sua região, enquanto um coletor de impostos independente e designado
recolhia os impostos e mandava-os à capital. Isso criou um sistema de equilíbrio e controle em cada região, pois
aquele que tinha os recursos coletados em impostos não detinha comando de tropas e aqueles que tinham tropas à
sua disposição não tinham os recursos, todos a depender do governo central. E para selar o controle central sobre a
administração nas províncias, saíam do tesouro imperial os salários fixos de cada funcionário civil e militar de
acordo com o seu posto ou cargo na hierarquia [291] [292].
No campo religioso, Akbar destacou-se pela sua intensa curiosidade pela diversidade. Participou e patrocinou
festivais de outros credos e, em 1575, na cidade de Fatehpur Sikri onde mandou construir, seguindo o plano e estilo
persa, um templo (Ibadat Khana, “Casa de Adoração”) onde frequentemente hospedou estudiosos de outras religiões
– hindus, zoroastrianos, cristãos, iogues e muçulmanos de outras seitas (fig.). Ademais, era comum na sua corte a
celebração de festivais hindus como o Diwali e o Shivaratri [293]. E ele autorizou a construção de uma igreja pelos
jesuítas em Agra e desencorajou o abate de gado pela sociedade a respeitar os preceitos hindus.
Fig. – Imperador Akbar recebendo representantes de várias crenças religiosas, no Ibadat Khana (“Casa das Adorações”) em Fatehpur Sikri.

Em 1579, uma declaração, mazhar, foi declarada concedendo autoridade ao imperador a interpretar as leis e
costumes religiosos, colocando-se acima dos entendimentos dos estudiosos islâmicos, os mullahs (ou mulás). Isso
ficou conhecido como o Decreto de Infalibilidade que permitiu a Akbar o poder de criar um estado multicultural e
inter-religioso. Em 1582, Akbar estabeleceu um novo culto, o Din-i-Ilahi (“Fé Divina”), combinando elementos do
Islã, Hinduísmo e Zoroastrismo. A fé tinha como centro Akbar como profeta e líder espiritual, mas não sobreviveu
ao seu reinado.
Ao contrário de seu pai, Humayun, e de seu avô, Babur, Akbar não tinha vocação e amplo conhecimento das
letras e artes. Todavia, alimentou grande admiração pela cultura e discussões intelectuais. E foi no seu reinado que o
estilo mogol de arquitetura ganhou novo fôlego, combinando elementos islâmicos, persas e hindus. Patrocinou
grandes estudiosos, poetas, músicos, artistas, filósofos e engenheiros na sua corte em Delhi e em Fatehpur Sikri.
Entre esses cortesãos, estão os chamados do grupo Navaratna (“Nove Joias”). Grupo que serviu ao imperador
como conselheiros e artistas, incluindo o biógrafo de Akbar, Abul Fazl ibn Mubarak (1551 - 1602), que compôs a
obra em três volumes de sua vida, o Akbarnama. No grupo houve também uma plêiade de talentos: o poeta laureado
Abul Faizi (1547 - 1595), o proeminente músico e compositor Mian Tansen (c. 1493 - 1585), o mais sagaz dos
conselheiros da corte, Raja Birbal (1528 - 1586), o ministro das finanças Raja Todar Mal (? – 1589), o general Raja
Man Singh (1550 - 1614), o talentoso escritor e militar, Abdul Rahim Khan-I-Khana (1556 - 1627), e os visionários
conselheiros Fagir Aziao-Din (1613 - ?) e Mullah Do-Piyaza (? – c. 1620), este último ainda objeto controverso de
verificabilidade histórica [294].
Sua morte adveio em 1605, aparentemente de disenteria [295]. Alguns estudiosos desconfiam que o infortúnio
decorreu de envenenamento possivelmente ligado às intrigas de seu filho, Jahangir, que acabou sucedendo-o.
Jahangir
O príncipe Salim (1569 – 1627), assim nomeado antes de ganhar o nome imperial, Jahangir, foi o filho mais
velho de Akbar e de sua esposa rajput, Jodh Bai. Sua criação e educação foram esmeradas, cresceu em Fatehpur
Sikri, rodeado de tutores persas, turcos, árabes e hindus. Seu professor mais influente foi Abdul Rahim Khan-I-
Khana (1556 - 1627), um gênio militar, diplomata e escritor que foi integrante do conselho dos sábios de Akbar, o
Naravatna. Foi sob seu ensino que o príncipe à época começou a apreciar as artes e os versos.
Recebeu também instruções sobre administração civil e militar. Acumulou experiência quando conduziu
vitoriosamente uma expedição militar em Cabul em 1581. Em 1585, foi promovido ao mais alto cargo de oficial do
exército, mansadbar, a comandar mais de 10 mil homens. Mas o príncipe também tinha suas predileções mundanas,
era amante do vinho e bon vivant. Também era impaciente e ambicioso. Almejou o trono mesmo antes da morte de
seu pai, como quando praticou um golpe em 1600. Mas a fortuna lhe favoreceu somente cinco anos depois, em
1605, quando Akbar morreu e Jahangir assumiu o trono com apoio de várias mulheres influentes do harém imperial
e cortesãos.
Uma vez no poder, Jahangir, com 36 anos de idade, se defrontou com as ambições de seu filho mais velho, o
príncipe Khusrau (1587 - 1622). Este somente desistiu do trono após ser derrotado em batalha perto de Jullunder em
1605. Jahangir depois voltou sua atenção ao líder sikh, Guru Arjun (1563 - 1606), que havia apoiado e financiado as
revoltas de Khusrau e castigou-o pelas ofensas feitas.
Mas isso não denotava a implacabilidade de seu senso de justiça. Jahangir buscou ser justo de maneira equânime.
Uma de seus atos mais famosos, apesar de imerso em lendas, foi ter estendido uma “corrente da justiça” feita de
ouro, fora do forte de Agra. Aquele que se sentisse injustiçado e conseguisse chamar a atenção do imperador
puxando a corrente poderia ter seu caso novamente julgado [296].
Sua política territorial seguiu a tendência expansionista de seu pai, embora não tenha sido tão triunfante. Em
1605, ele mandou seu segundo filho a reprimir as revoltas lideradas pelo marajá de Mewar, Rana Amar Singh (1559
- 1620). Mas o estratégico forte de Chittor não foi facilmente conquistado e somente foi resolvido o impasse na
assinatura de um tratado em 1615, com o reconhecimento de suserania por parte de Rana [297]. Em contrapartida, a
família real de Mewar foi reconhecida com absolutos poderes na região e sua família foi incorporada aos da casa dos
Timúridas. Esse entendimento consistiu num marco nas relações entre uma das famílias mais poderosas dos rajputs e
o trono em Delhi. Diante disso, Jahangir mandou erguer duas estátuas de mármore de Rana e seu filho, Karan, nos
jardins de seu palácio em Agra [298].
Em outras partes da Índia, Jahangir mandou expedições contra rebeldes perto das fronteiras orientais em Assam e
incorporou uma série de territórios perto dos Himalaias, desde a Caxemira ao norte a Bengala a leste. Nas terras
afegãs, Jahangir desafiou a hegemonia dos regentes persas da Dinastia Safávida, ambicionando controlar Cabul,
Peshawar e Kandahar, importantes e prósperos centros comerciais da Ásia Central com o norte indiano. Em 1622,
Jahangir mandou seu filho, o príncipe Khurram (que se tornará o imperador Shah Jahan) a pacificar os rebeldes na
direção sul nos sultanatos independentes de Ahmadnagar [299], Bijapur e Golconda. Mas o maior sucesso militar de
Jahangir tenha sido a captura do forte de Kangra, no Punjab, em 1620 [300], ganhando uma presença estratégica na
região noroeste indiana.
Jahangir manteve, com seu pai, uma corte variada e tolerante com todas as ideias, talentos e credos. Ele se
impressionava com os debates religiosos. Prova disso foi o relato do primeiro embaixador formal inglês em 1615,
Sir Thomas Roe, sobre a calorosa recepção que o imperador promovia a hindus, muçulmanos, cristãos e judeus. Os
festivais hindus também, tal como fez seu pai, foram permitidos. Os jesuítas foram tratados com respeito e cortesia.
E a presença deles começou a ser usada cada vez mais com fins político a fim de favorecer os interesses dos
portugueses contra os britânicos anglicanos e outros cristãos protestantes. Como quando preveniram o sucesso da
missão do capitão inglês William Hawkins, em 1608, de entregar uma carta do rei Jaime I e a negociar pelos
interesses da Companhia Britânica das Índias Orientais [301]. Os portugueses não ficaram para trás, pois negociaram
seus interesses em torno do lucrativo comércio de exportar da Índia índigo e de tecidos chitas. Os holandeses, por
sua vez, visando ligar uma rota de comércio com as Ilhas das Especiarias (atual Ilhas Molucas, região oriental da
Indonésia) aportaram em Paliacate, ao norte de Madras (atual Chennai, principal porto no sudeste indiano à época
[302]
.
O reinado de Jahangir caracterizou-se também pelas notáveis obras arquitetônicas. A influência persa foi
materializada na construção do túmulo em mármore em Agra ao imperador, terminado em 1628. Diferente do
grandioso Taj Mahal, construído pelo seu sucessor, a construção apresenta as características sofisticadas em suas
paredes de belas incrustações no mármore, características que se tornarão notáveis na arquitetura e arte mogol. Outra
construção de destaque foi a renovação que foi feita no túmulo de seu pai, Akbar, em Sikandra, e da grandiosa
mesquita erguida em Lahore, no Paquistão.
O grande interesse de Jahangir por pinturas e retratos resultou em obras surpreendentes no seu reinado. Crescido
em Fatehpur Sikri, rodeado de artistas nos ateliês patrocinados por seu pai, Akbar, Jahangir foi um entusiasta no
assunto. Um novo estilo que Jahangir promoveu em sua corte foi o retrato político, como aquele que o retrata
abraçando efusivamente o imperador persa, Shah Abbas (r. 1588 - 1629).
Entre seus laços matrimoniais, com várias princesas rajputs e de famílias poderosas aliadas, a mais importante
das esposas dele foi Mehr Um Nisa – conhecida como Nur Jahan (1577 - 1645) (“Luz do Mundo”). Nur Jahan foi
uma mulher de extraordinária energia e talento. De origem nobre persa, ela trouxe a refinada cultura de sua corte
safávida de origem, além de escritores, arquitetos, artistas e músicos para Agra. E na corte mogol, além da influência
cultural, tinha pretensões políticas.
Deu à luz ao príncipe real e filho mais velho de Jahangir, Khusrau (1587 - 1622). Este, seguindo os conselhos de
sua mãe, seguiu convencido de que deveria disputar o trono imperial contra seu outro meio-irmão mais novo, o
príncipe Khurram (1592 - 1666), que depois se tornará no futuro imperador Shah Jahan (r. 1628 - 1658). Assim, no
agravamento das doenças de Jahangir, em 1622, Nur Mahal convence Jahangir de que o príncipe Khurram deveria
partir em campanha militar no Decão, longe dos negócios da corte em Agra. Khurram assim seguiu mas levou
consigo o príncipe Khusrau. Ao ouvir boatos de que Jahangir estava à beira da morte, Khurram resolveu então matar
seu meio-irmão e eliminar seus oponentes ao trono.
Um ano após, em 1623, o príncipe Khurram marchou para Agra com seus homens mais leais. Nur Mahal,
naturalmente, buscou mobilizar as tropas imperiais a conter essa rebelião. Khurram conseguiu evadir-se para regiões
meridionais da Índia por mais de três anos antes de finalmente retornar para o encontro de seu pai em seus
momentos finais de vida.
O imperador Jahangir já vinha adoecendo ao longo dos anos, antes de sua morte em 1627. Nos anos finais de
reinado, desiludido com a política e as disputas pelo poder, buscou se refugiar em suas posses ao norte, de clima
mais ameno, na Caxemira. Ali ele lidava com os jardins cultivados e animais de apreciação. Sua paixão pela
botânica era tamanha que buscou construir jardins artificiais como o Shalimar Bagh em Srinagar, na Caxemira em
1619.
A morte do imperador adveio em 1627, numa pequena vila na Caxemira. O que catalisaram os pretendentes e as
intrigas pelo trono.
Shah Jahan
Shah Jahan (1592 – 1666) nasceu com o nome de príncipe Khurram em Lahore em 1592. Terceiro filho do
imperado Jahangir, sua vida foi marcada por intensas disputas pelo poder, a competir com seus irmãos e a influência
da imperatriz Nur Jahan. Ascendeu ao trono em Agra em 1628. Como príncipe, sua carreira militar foi marcada por
várias campanhas de consolidação interna e nas fronteiras, como em Mewar (1615) e no Decão (1617 a 1621), ao sul
indiano, e em Kangra (1618), a noroeste.
A despeito de ser filho de mãe hindu, a princesa de Marwar do Rajastão, Jagat Gosaini, o príncipe Khurram não
seguiu a mesma política de tolerância religiosa de seus antecessores. Em 1632, já como imperador Shah Jahan, ele
ordenou que todos os templos hindus recém erguidos fossem desfeitos. As igrejas cristãs em Agra e Lahore foram
destruídas e o assentamento português em Hugli, perto de Calcutá na Bengala, foi atacado, pois esses europeus
foram considerados como espiões e traidores a propagar doutrinas heréticas ao império [303].
Entre 1630 e 1636, Shah Jahan reduziu a soberania dos sultanatos independentes em Ahmadnagar em 1632, em
Golconda em 1635 e em Bijaur em 1636 (mapa). A noroeste, no entanto, não foi tão bem-sucedido. Em 1647 sua
tentativa de anexar Balkh e Badakshan, terras ancestrais do imperador fundador dos mogóis na Índia, fracassou. Na
região das terras afegãs, Shah Jahan entrou em longos conflitos com as tropas persas dos safávidas, na chamada
Guerra Mogol-Safávida (1649 - 1653), quando os persas tomaram o controle de Bamyan e Kandahar [304].

Mapa - Extensão do império mogol sob Shah Jahan, em 1637.

Teve três esposas. Sua segunda esposa, Mumtaz Mahal (1593 - 1631) (“A Joia do Palácio”), com quem se casou
em 1621, morreu depois de ter dado luz a 14 dos seus 16 filhos. Era sua companheira mais fiel e amada, e foi em
homenagem a ela que Shah Jahan mandou erguer em 1648, em Agra, um dos monumentos mais belos da arquitetura
mundial, o Taj Mahal (fig.). Nesse mausoléu, constam os detalhes delicados nas incrustações nos mármores, as
inscrições de textos corânicos nos portais, além do aprazível jardim ordenado inspirados no conceito persa, o
charbagh [305]. Foram usados pelas mãos dos artistas, ônix, lápis-lazúli, cornalina, malaquita entre outros. Uma
composição única, simétrica e esplêndida que expressa a serenidade e a leveza de um edifício que já descrito como
por Rabindranath Tagore como “uma lágrima na face da eternidade” e por Rudyard Kipling como “a encarnação de
todas as coisas puras” [306].

Fig. – O magnífico mausoléu de Taj Mahal, construído entre 1632 a 1653 a mando de Shah Jahan a homenagear sua amada morta, Mumtaz Mahal.
Agra, Uttar Pradesh.

A Mesquita de Jama (Jama Masjid) em Delhi, e a Mesquita da Pérola (Moti Masjid) em Agra são outras duas
obras-primas da arquitetura mogol. E na parte antiga da cidade de Delhi, Shah Jahan mandou construir uma nova
capital em 1639, Shahjanabad, com o seu imponente Forte Vermelho. E dentro desse forte, um Salão de Audiências
Especiais (também conhecido como Palácio do Imperador, Shah Mahal) onde o imperador sentava-se num trono
cravejado de rubis, pérolas e esmeraldas e, no dossel, dois pavões dourados que deu fama e renome como o Trono
do Pavão [307].
No campo das letras de seu reinado, a literatura em hindi ganhou grande alento e foram patrocinados escritores e
poetas nessa língua como o seu chefe de gabinete Sundar Das e o poeta Chintamani, músicos e compositores como
os exímios Jagannath, Sukh Sen e Lal Khan [308] [309] [310]. E outras obras clássicas também foram escritas no período
em persa, a língua da corte, como as do historiador Amin Qazvini [311].
A partir de 1657, a saúde de Shah Jahan começou a dar sinais de deterioração. Isso gerou entre seus quatro
filhos, Dara Shikoh (1615 - 1659), Shuja (1616 - 1661), Murad Baksh (1624 - 1661) e Aurangzeb (1618 - 1707),
iniciativas e intrigas visando à sucessão [312]. Eventualmente, foram resolvidas as diferenças entre Dara Shikoh e
Aurangzeb, que provou ser o mais bem-sucedido ao trono. Visando garantir seu poder, ao adentrar a cidade de Agra
em 1658, Aurangzeb capturou seu pai adoecido e aprisionou-o no forte de Agra. Consta a lenda de que sua cela
tinha vista para o Taj Mahal. Shah Jahan morreu aos 74 anos de idade, em 1666, nessas condições, assistido e
cuidado pela sua filha mais velha, Jahanara Beguim Sahib (1614 - 1681) [313].
Aurangzeb
O sexto imperador mogol, Aurangzeb (1618 - 1707), nomeado com o nome imperial de Alamgir I, regeu sobre
boa parte do subcontinente indiano por quase 50 anos, desde 1658 até o seu óbito em 1707. Nesse meio tempo, o
império mogol conheceu sua extensão territorial máxima (mapa), mas as desgastantes campanhas contra rebeldes no
Decão geraram um grande déficit do tesouro imperial. Depois de sua morte, a dinastia dos mogóis entrou em um
período de longo declínio diante de novos invasores e insurgentes.
Mapa - Império Mogol sob Akbar (em vermelho) e depois das expansões de Shah Jahan e Aurangzeb (em azul).

A sua disputada ascensão ao trono diante de seus quatro irmãos demonstrou a sua implacabilidade. Assegurou a
prisão de seu irmão Murad Baksh, seu maior oponente pelo trono, até a sua morte em 1661. Seu outro irmão, Dara
Shikoh, um ex-aliado, agora se juntou ao seu outro irmão, Shuja. A este último Aurangzeb tinha prometido o
governo da próspera região de Bengala, mas sua incerteza diante das promessas – e após ser derrotado em batalha
em 1660 - o levou a fuga ao exílio para a região mais a leste hoje em Mianmar (ex-Birmânia), no reino de Arakan
(em português, Arracão) [314].
Aurangzeb manteve convicções bastante firmes e ortodoxas a respeito de suas crenças religiosas. Era um
muçulmano convicto e acreditava que as fontes corânicas sobre os costumes e leis, a shari’a [315], era base para as
codificações legais. Os costumes na corte mogol também mudaram drasticamente. De acordo com a nova
interpretação da lei, reunidas na compilação de leis instituídas chamadas de Fatawa-e-Alamgiri [316], foi proibida a
música, a dança e o canto. As artes representativas, com base nos novos preceitos islâmicos interpretados, como a
pintura figurativa e de retrato foram banidas. Como consequência, imagens e representações foram desfiguradas.
Entre os não-muçulmanos, como a maioria hindu, práticas tradicionais como o darshan [317] foi coibido, e templos
hindus foram profanados e destruídos, como o Vishvanath em Varanasi (antiga Benares) em 1669 e o templo a
Krishna em Matura, o Keshava Deva em 1661, erguendo no local uma mesquita, a Katra Masjid [318].
Assim, Aurangzeb agiu para conter questionamentos de sua ordem política contra supostos hereges (kafir) que
poderiam ameaçar a estabilidade de seu governo. E nesse sentido, diferentemente de seus antecessores como Akbar,
não demonstrou uma política tolerante para formar duradouras alianças com regentes hindus (rajás) locais como os
rajputs.
A repressão aos rebeldes foi a primazia de sua política imperial, ao invés de selar as alianças internas ao norte.
Ao se voltar para as campanhas ao sul, Aurangzeb decidiu, tal como Muhammad Tughluq o fizera alguns séculos
antes, mudou a capital imperial de Delhi para uma nova, Aurangabad, no Decão. Fazendo assim, o imperador e sua
corte deixaram exposta a região norte indiana para regentes e líderes insatisfeitos. Sua atenção voltou-se ao seu mais
formidável adversário político e militar, o império hindu dos maratas.
No Punjab, a noroeste, uma nova religião que foi fundada em fins do século 15 por Guru Nanak (1469 – 1539)
que combinou elementos do Islã, do hinduísmo e de outras crenças, resultou numa seita quietista que rejeita
qualquer sentido de hierarquia, privilégios e líderes. Infundiu nos seus seguidores um senso de disciplina e lealdade
que resultou em coesas comunidades contra eventuais opressores muçulmanos. Sob Aurangzeb, o líder sikh Guru
Tegh Bahadur (1621 - 1675) foi executado em Delhi e foi proibida a construção de seus templos (gurdwaras). As
relações com esses seguidores foram duras.
Diante dessa situação delicada, Aurangzeb decidiu nomear seu filho, Bahadur Shah (1643 - 1712), futuro oitavo
imperador mogol, como governador das províncias a noroeste, incluindo o Punjab dos sikhs. O novo governador
decidiu abrandar sua política com os sikhs, mas, mesmo assim, o líder sikh Guru Gobind Singh (1666 - 1708)
decidiu se preparar para eventualidades futuras e estabeleceu uma nova ordem sikh em 1699, de “santos guerreiros”,
khalsa, disciplinados e dispostos a morrer pela sua causa [319]. Os conflitos contra os mogóis e rajputs aliados se
concretizaram anos depois, em Chamkaur em 1704, com a morte dos filhos de Gobind Singh e do exército sikh.
Mais a leste, na Bengala, região distante e tradicionalmente autônoma de Delhi, os seguidores mais brandos e
tolerantes do Islã, os muçulmanos sufis, descontentes com a ortodoxia rígida de Aurangzeb, acharam abrigo e poder
[320]
.
A Guerra Mogol-Marata
Mais foi no Decão que Aurangzeb enfrentou suas maiores dificuldades. Ainda como príncipe sob o trono de seu
pai, Shah Jahan, Aurangzeb já tinha atacado os sultanatos de Ahmadnagar e Golconda (1636) e de Bijapur (que
somente iria ser incorporado em 1686) e colocou sob sua autoridade os regentes aliados (nawabs, ou nababos em
português).
Em 1657 as rebeliões no Decão sob Aurangzeb começaram a se intensificar. Usando táticas de guerrilha,
embustes e subterfúgios, Shivaji Bhosle (1630 - 1680) (fig.) tomou o controle de alguns fortes em Bijapur,
assumindo de fato a liderança dos maratas. Mais tarde, fortalecidos diante da retirada dos mogóis, o exército de
Shivaji conseguiu capturar e matar o general Afzal Khan em 1659 na batalha de Pratapgad, transformando as forças
maratas em uma poderosa força militar no flanco sul do império mogol [321]. Um ano depois, Shivaji ousadamente
atacou e retomou o controle de Pune, em Maarastra, derrotando um dos generais mais confiáveis de Aurangzeb,
Shaista Khan [322].

Fig. – Retrato de Shivaji, líder dos maratas.

Por fim, Aurangzeb mandou então o general hindu Jai Singh a tomar as ofensivas contra os maratas. Inicialmente
o general foi bem sucedido, a ponto de capturar alguns fortes dos maratas e chegando a um acordo temporário com
Shivaji, no Tratado de Purandar de 1665. No caminho a Agra, no entanto, o líder marata e seu filho foram colocados
em prisão domiciliar, de onde conseguiram escapar. Retornando ao Decão, expulsou as forças mogóis e foi coroado
com o título de Chhatrapati, imperador da Confederação Marata em 1674 [323]. Seis anos depois, Shivaji morreu e
passou o comando marata a seu filho, Sambhaji (r. 1680 - 1689).
O filho de Aurangzeb, Muhammad Akbar (1657 - 1706) decidiu então iniciar diálogos e fechou alianças com
Sambhaji, almejando uma futura união para o império mogol. Mas Aurangzeb tinha outros planos, ao mudar a
capital mais para o sul, para Aurangabad e tomou controle pessoal das operações no Decão. Após outras batalhas,
Muhammad Akbar decidiu fugir para o exílio na Pérsia. Sambhaji eventualmente foi capturado, torturado e morto
em 1689. Sucedeu ao comando marata Rajaram Bhosale (r. 1689 - 1700), mas a Confederação Marata entrou em
período de desunião e fragilidade [324]. Os confrontos com os mogóis ainda perduraram por muitos anos, sob
múltiplos comandantes locais maratas (sardars), custando a Aurangzeb grande número de vidas e recursos
desgastantes.
Ao fim, as guerras entre os mogóis e os maratas perduraram por mais de 25 anos, de 1680 a 1707, até a morte de
Aurangzeb. A respeito dos custos da guerra e do fim do imperador mogol, o indologista Stanley Wolpert concluiu:
A conquista do Decão, ao qual, Alamgir [Aurangzeb] dedicou os últimos vinte e seis anos de sua vida, foi em muitos aspectos uma vitória de Pirro,
com um custo estimado de centenas de milhares de vidas por ano durante a última década de um jogo de xadrez fútil (...) A despesa em ouro e rúpias
dificilmente pode ser estimada com precisão. A base de acampamento de Aurangzeb era como um capital em movimento - uma cidade de tendas
com 48 km de circunferência, com cerca de 250 bazares, com meio milhão de pessoas, 50 mil camelos e 30 mil elefantes, os quais tiveram que ser
alimentados, despojando do Decão de todo seus grãos excedentes e riqueza (...) Não somente a fome, mas a peste bubônica irrompeu (...) Mesmo
Aurangzeb, não conseguia mais compreender a finalidade de tudo isso ao se aproximar dos 90 anos de idade (...) "Eu vim sozinho e partirei como
um estranho. Eu não sei mais quem eu sou, nem o que tenho vindo a fazer aqui", foi o que o velho confessou a seu filho, Azam, em fevereiro 1707
[325]
(tradução nossa).

Quem sucedeu Aurangzeb foi seu filho mais velho Muazzam, com o nome de Bahadur Shah (r. 1707 - 1712),
que governou por cinco anos e foi incapaz de conter a dissolução do império mogol. Aspirando uma ordem com os
maratas, nomeou como regente (rajá) de Satara o neto de Shivaji, Shahuji Bhosle (1682–1749). E este nomeou como
seu principal ministro (peshwa), Balaji Vishwanath (1662 - 1720), que colocou em ordem as finanças e o poder
entre os maratas. O filho de Balaji, Baji Rao (1700 - 1740), tomou o cargo de seu pai aos 19 anos de idade,
mantendo o seu ofício de 1720 a 1740, durante o qual provou ser um brilhante administrador e estrategista e
ascendeu como o supremo líder militar, político e governante de facto sobre os maratas [326].
Em seu auge, diante da imobilidade dos mogóis, Baji Rao conduziu o avanço marata até a cidade de Delhi, que
foi capturada rapidamente em 1737 mas não ocupada, pois o líder marata soube que não poderia assegurar seu
controle por tempo duradouro [327]. Ao invés, Baji Rao negociou com o Trono do Pavão e ratificou os domínios
maratas mais ao sul. Mas a queda de Delhi demonstrou claramente que o império mogol estava em declínio. E ficou
ainda mais evidenciado com a vulnerabilidade de Delhi diante do saque que a cidade sofreu por tropas persas que a
invadiram após a batalha de Karnal em 1739, sob o comando do rei persa Nader Shah (1698 - 1747) [328] [329].
A respeito do estado a que ficou reduzido Delhi e o Império Mogol depois de Nader Shah, o historiador
Abraham Eraly epitomou:
Em poucas décadas, o império desapareceu por completo e as autoridades do imperador confinaram-se à cidade de Delhi apenas. Pouco depois, até
mesmo esse privilégio mesquinho foi perdido, tornando o imperador um pensionista, primeiro dos maratas, depois dos britânicos. Mas ele ainda foi
chamado de imperador mogol; os outros poderiam ocupar seus territórios, saquear seus tesouros, privá-lo do poder, mas ninguém poderia tirar seu
título ou prestígio (apesar de vazio) que mantinha. Assim ocupou um mogol o trono imperial em Delhi por um século e meio após Aurangzeb [330]
(tradução nossa).

Ao considerarmos o século 18, inúmeros potentados locais se consolidaram com o colapso do regime mogol,
assim como o ocorrido com o fim do império gupta. Em Bengala, o regente local, o nawab (nababo em português,
título honorífico dado pelo imperador mogol) assegurou maior independência, como também o de Awadh, na atual
região de Uttar Pradesh, centro norte indiano. Um vizir mogol, espécie de grão-ministro e conselheiro do imperador,
Mir Qamar-ud-din Khan Siddiqi, em 1724, decidiu deixar Delhi após a morte de Aurangzeb e foi fundar uma
dinastia própria, a de Asaf Jahi, mais ao sul, no Decão, em Hyderabad, sob o título muçulmano de nizam, Nizam-ul-
Mulk (r. 1724 - 1748). Os maratas, por sua vez, prosseguiram sua política de conquistas na Índia Ocidental, e o sul
indiano fracionou-se em pequenas unidades resultado da dissolução do império Vijayanagara. Ao norte, por fim,
região tradicionalmente dominada pelos mogóis, as invasões de afegãos liderados por Ahmad Shah Durrani (1722 -
1772) foram marcantes na década de 1750 [331].

Índia e Sul da Ásia (De Dupleix a Cornwallis - Séculos 17 e 18)


Os europeus e a Índia
Na perspectiva indiana dos mogóis, a presença europeia nos séculos 16 e 17 foi de menor importância. Os
portugueses que tinham se estabelecido em Gujarate, foram expulsos com a retomada da região em 1574 e de Hugli,
na Bengala, em 1632. Como mercadores marítimos, os lusitanos foram bem recebidos, garantindo-lhes os mesmos
direitos com que foram tratados outros comerciantes nos portos indianos. Mas a aparição de outros europeus, como
os britânicos e holandeses, foi bem vista por regentes indianos, pois assim ofereciam a quebra de monopólio
marítimo no Oceano Índico a tratar com países mais a oeste.
As consequências da presença europeia sobre os assuntos políticos mogóis ainda eram diminutas nos séculos 16
e 17. Os portugueses concentraram-se, talvez por estratégia, talvez por incapacidade, em cidades portuárias, com
foco nos mares e no comércio mundial. Ademais, ficaram à mercê do regime dos ventos de monções, que forneciam
ventos favoráveis para a costa indiana somente por alguns meses do ano. Assim, os lusitanos se contentaram com a
sua presença costeira indiana, principalmente na costa de Malabar até a cidade de Goa.
Ao mesmo tempo em que os portugueses tinham se assegurado em algumas partes do litoral indiano (mapa), os
holandeses, ao longo do século 17, tinham consolidado uma economia forte e sólida o suficiente para financiar suas
viagens para o Oriente e Índia em busca de mercadorias lucrativas. Em 1602, foi fundada a Companhia das Índias
Orientais Holandesas (Verenigde Oost-Indische Compagnie ou VOC), visando captar investimentos e minimizar os
riscos das empreitadas desse vulto. E tinham em mente, antes de tudo, assegurar uma rota segura com as ilhas
indonésias, especificamente nas ilhas Molucas, de onde extraíram enormes lucros nas praças europeias. Em 1619,
visando assegurar esse comércio, fundou na ilha de Java a cidade de Batávia, hoje Jacarta, capital da Indonésia [332].
Em Londres, em 1600, foi fundada a Companhia Britânica das Índias Orientais (British East India Company,
doravante BEIC) que começou a operar em moldes parecidos com os holandeses, mas em escala menor à época [333].
Em 1612, Sir Thomas Roe tinha negociado de maneira bem sucedida um posto comercial na Índia em Surat, no
litoral ocidental. Aumentando suas ambições comerciais, em 1640, a BEIC alugou um terreno para fazer um forte,
do que viria a se chamar Madras (atual Chennai) na costa oriental indiana.
Mapa - Assentamentos europeus na Índia, de 1498 a 1739, com as respectivas bandeiras nacionais.

O declínio dos portugueses na Índia iniciou-se com as ofensivas holandesas que tinham declarado guerra aos
espanhóis, época em que eram unidos aos lusitanos na União Ibérica (1580 – 1640). Aproveitando-se da situação, os
holandeses buscaram capturar e ocupar as bases portuguesas no continente americano, africano e asiático, durante a
chamada Guerra Luso-Holandesa (1595 - 1663). Já em 1658, com a ajuda do rei cingalês de Kandy, Rajasimha II (r.
1629 - 1687), os holandeses expulsaram os últimos portugueses da ilha de Ceilão (atual Sri Lanka) [334] e, depois, de
Cochim em 1662, assim assegurando o lucrativo comércio de canela na região.
Para pôr termo às guerras, foi assinado o Tratado de Haia em 1661, aceitando os portugueses as perdas na Índia e
outros lugares na Ásia, como compensação ao controle lusitano do nordeste brasileiro. Neste mesmo ano, Bombaim
que tinha visto a presença portuguesa desde 1534, foi cedida ao Reino Unido como dote do casamento entre a
Infanta Catarina de Bragança e o Rei Carlos II de Inglaterra. Dali em diante, até fins do século 17, Bombaim se
tornaria uma das principais bases indianas da BEIC.
Em meados do século 17, o Império Mogol vivia ainda no seu auge sob Shah Jahan, e desconsiderava a presença
europeia na Índia. Mas alguns sinais preocupantes, sob a regência de Aurangzeb começaram a aparecer. De 1686 a
1690, na chamada Guerra de Child [335], os britânicos empreenderam batalhas navais contra a marinha mogol e
bloqueou o comércio da região da Bengala com o sudeste asiático. Como resultado, Aurangzeb expulsou a BEIC da
cidade de Hugli na Bengala que, depois de pedidos de misericórdia por parte da companhia britânica, a companhia
britânica se mudou para uma pequena vila pantanosa mais ao sul em direção ao delta do rio Ganges, Calcutá [336].
Os franceses foram os últimos europeus do século 17 que organizaram uma companhia de comércio com a Índia.
Seis décadas após os ingleses e holandeses, a França fundou, em 1664, sob a supervisão de seu ministro das
finanças, Jean Bapiste Colbert, a La Compagnie Française des Indes Orientales (CFIO, Companhia Francesa das
Índias Orientais) seguindo o exemplo e organização da companhia holandesa. Alguns historiadores franceses
tentaram explicar tal atraso. E apontam como causa o desinteresse e visão paroquial de mercadores e da elite
francesa, inseridos na capital, Paris, afastados dos portos e litoral francês [337]. A primeira presença francesa na Índia
se deu em 1667, sob o huguenote François Caron que tinha trabalhado na VOC e com a ajuda de um armênio de
Isfahan, Martin Marcara Avanchins, que aportaram em Surat [338].
Dois anos depois, os franceses tentaram sem sucesso obter a aliança dos britânicos do forte de Madras contra as
bases holandesas na Índia durante a Primeira Guerra Anglo-Holandesa (1652 - 1674). Mas foi somente graças a um
aventureiro, François Martin (1634 - 1706), que os franceses finalmente conseguiram assegurar uma base indiana,
em Pondicherry em 1674 [339]. Seus planos e experiência forneceram as orientações para a construção política
francesa na Índia ao longo do século 18, durante o governo de Dupleix (1697 - 1763).
Após o saque de Delhi em 1739, a dissolução imperial mogol pareceu ser inevitável. Vários regentes e
governadores locais ganharam maior autonomia com a fragmentação mogol. Um dos mais talentosos dentre eles foi
o líder e governador, o nababo de Bengala, Murshid Quli Khan (r. 1717 - 1727), que tinha feito uma ampla reforma
administrativa e fiscal na região, mudou a capital de Daca para uma nova, Murshidabad, em 1704 [340], e ampliou
seus domínios em Bihar, a oeste, e em Orissa, ao sul. E eliminou boa parte dos seus rebeldes. Dessa maneira,
paradoxalmente, Murshid preparou a Bengala para um período de estabilidade e prosperidade que foi relevante para
os comerciantes britânicos da BEIC a partir de meados do século 18 [341]. Mas enquanto Murshid esteve no comando,
os britânicos tiveram que a ele se aliar e se submeter. Em 1717, foram concedidos a BEIC alguns benefícios sem
tributação, embora controladas pelo ministro das finanças de Murshid da família de banqueiros de Jagat Seth [342].
No oeste, os negócios britânicos em Gujarate, em Surat, eram cada vez mais problemáticos diante da crescente
insegurança da cidade frente a rebeldes, bandidos e piratas, consequência diante da dissolução do poderio mogol e
do saque por parte do líder marata Shivaji em 1670. Para tanto, visando assegurar seus negócios investidos, os
britânicos passaram gradativamente a mudar seus negócios, residências e depósitos para um porto adquirido mais ao
sul, em Bombaim, tornando essa cidade a sede da BEIC em 1687 [343]. Mas a estabilidade política e a prosperidade
econômica mais a leste, em Bengala, a partir dos assentamentos britânicos em Calcutá, eram cada vez mais
tentadores e promissores [344].
A atuação de britânicos e franceses até então tinham sido primordialmente a defender seus interesses comerciais.
No entanto, a partir da marcante atuação política de um novo e talentoso francês, Joseph François Dupleix - em
ofício de 1742 a 1754 - como governador de Pondicherry, o cenário de atuação europeia na Índia começou a ganhar
novos contornos.
Funcionário de um depósito comercial da Compagnie des Indes Orientales em Bengala por vinte anos, Dupleix,
com base nessa experiência, desenvolveu um agudo senso de estratégia e política na Índia. Soube usar os poucos
recursos da companhia francesa e tirou proveito das alianças firmadas com poderosos líderes indianos. Em termos
militares, a servir aos seus planos políticos, regimentou e organizou unidades disciplinadas de infantaria com
soldados indianos (toofangchi, vulgo sipaio) no uso de modernas armas de fogo, algo que teve grande impacto em
campo aberto de batalha contra a carga da cavalaria tradicionalmente valorizada pelos regentes indianos.
No agravamento da Guerra de Sucessão Austríaca (1740 - 1748) que colocou como rivais os britânicos e
franceses, Dupleix, com a ajuda do almirante La Bourdonnais (1699 - 1753), governador da ilha de Reunião no
Oceano Índico, tomou o controle britânico em Madras, em 1746, dando início a uma série de conflitos entre
britânicos e franceses na Índia, nas chamadas Guerras Canaresas [345]. Entre os britânicos capturados que conseguiu
fugir da prisão, um ousado jovem, Robert Clive (1725- 1774), conseguiu chegar com as notícias no forte britânico
de São Davi, a 80 km ao sul de Madras [346]. Alguns anos depois, com a paz firmada no Tratado de Aix-la-Chapelle
de 1748, Madras fora retornado aos britânicos, expondo a crescente ambição e belicosidade dos europeus em solo
indiano.
A paz firmada não significou o fim das rivalidades políticas entre britânicos e franceses na Índia. Em 1748, no
mesmo ano do tratado, o nizam de Hyderabad, Nizam-ul-Mulk faleceu, gerando uma série de disputas sucessórias
entre seus filhos [347]. Paralelo a isso, lutas similares ocorreram entre os filhos do nababo de Arcot, em Tamil Nadu,
que tinham sido antes aliados vassalos ao sul dos domínios de Hyderabad.
Foram nessas disputas que os britânicos e franceses se posicionaram em termos rivais, visando garantir regentes
aliados locais e privilégios comerciais no Decão e na costa indiana. Os franceses, com o brilho e astúcia diplomática
de Dupleix, foram bem-sucedidos em Hyderabad, ao terem no comando um protégé seu como nizam, Muzzafar Jung
(r. 1750 - 1751) assim como seu sucessor, Salabat Jung (r. 1751 - 1762) em 1751 com a crucial ajuda do general
francês Joseph Patissier de Bussy (1718 - 1785). Os britânicos, por sua vez, garantiram um importante aliado no
comando de Arcot, fruto das ofensivas lideradas por Robert Clive em 1751, após a cidade de ter sido sitiada por
Chanda Sahib, nababo dos canareses e aliado de Dupleix (r. 1749 – 1752) [348].
O futuro francês na Índia pareceu promissor sob Dupleix e com um aliado em Hyderabad. Mas foram as decisões
políticas em Paris que minaram o sonho de Dupleix. Os diretores da Compagnie, após anos de déficit comercial e
com as dívidas das guerras, decidiram cortar fundos e rever o envolvimento francês na Índia. Assim, Dupleix, que
insistentemente alegou em cartas a Paris por maiores ajudas financeiras [349], foi demitido de seu cargo como
governador de Pondicherry em 1754, e foi assinado um acordo de paz definitivo com os britânicos na Índia no
Tratado de Paris de 1763. Em 1769, a Compagnie, incapaz de se manter com recursos próprios, foi abolida por Luís
XVI que assumiu a administração das possessões francesas na Índia [350].
Robert Clive
Aos 29 anos de idade, Robert Clive já tinha ganhado fama e fortuna nas ilhas britânicas e tinha esperanças de
uma carreira política britânica a assegurar seu futuro. O resultado eleitoral não o favoreceu, após o qual voltou sua
atenção de novo à Índia. Chegou a Madras em 1755 com o cargo de tenente-coronel do Exército Imperial Britânico
pouco antes do momento em que os depósitos da BEIC em Calcutá, na Bengala, foram atacados. Tal evento
decorreu das ações lideradas por um jovem nababo de Bengala, Siraj-ud-Daula (r. 1756 - 1757), que considerou as
atividades britânicas como ameaçadoras à sua soberania.
Assim, Clive comandou com sucesso suas tropas britânicas a socorrer as instalações e funcionários da BEIC,
além de ter também reintegrado o depósito francês nas proximidades de Calcutá, em Chadernagar. Após os eventos,
Clive decidiu desobedecer às ordens de seus superiores e negociou secretamente com um pretendente ao poder em
Bengala, Mir Jafar (r. 1757 – 1760; r. 1763 -1765), comandante das tropas do nababo. Feito a intriga, Clive
procedeu mais ao norte de Bengala e entrou em batalha com Siraj-ud-Daula em Plassey em 1757 (fig.), contando
com a lealdade de Mir Jafar. Os eventos, apesar de arriscados, foram favoráveis ao britânico que contava com um
número bem inferior de homens em campo, compensado com a entrada dos homens de Mir Jaffar a seu favor. Ao
fim das agressões, o nababo foi derrotado e morto. Mir Jafar subiu ao poder na Bengala e Clive foi devidamente
recompensado com generosa quantia em dinheiro e controle sobre alguns tributos na região. Ademais, foi eleito
governador da BEIC em Calcutá [351].

Fig. – Robert Clive negociando com Mir Jafar após a vitória na batalha de Plassey em 23 de junho de 1757.

Em Delhi, o imperador mogol, Farrukhsiyar (r. 1713 - 1719), reagiu de maneira positiva aos eventos, pois não
mantinha boas relações com o nababo anterior. Decidiu, pois, conceder aos britânicos da BEIC autoridade de
administração civil (dewan) da província de Bengala, a agir como contrapeso à autoridade do novo e ambicioso
nababo, Mir Jafar. Clive aceitou tal oferta de autoridade, apreciando a autoridade conferida de recolhimento de
impostos em toda a Bengala, e depois ponderou, em carta escrita ao primeiro-ministro em Londres, William Pitt, 1º
Conde de Chatham (g. 1766 - 1768), de que isso poderia ser benéfico para o maior engrandecimento da Coroa
Britânica na Índia, indo além das pretensões comerciais da BEIC [352]. Pitt, no entanto, astutamente, previu de que
isso poderia dar muitos recursos e poderes para a Coroa, para o rei Jorge III, a contornar o controle orçamentário do
parlamento, ameaçando assim em tempo futuro o próprio sistema de parlamentar britânico.
Alguns anos depois, em 1760, Clive zarpou do litoral indiano em direção à sua terra natal novamente. E durante
os próximos três anos Clive buscou, com o uso de sua fortuna acumulada, ter um alto cargo político e título
nobiliárquico. Nesse meio tempo, os eventos na Bengala foram conturbados. Mir Jafar se rebelou contra as
autoridades britânicas que decidiram por bem colocar no seu lugar seu genro, Mir Qasim (r. 1760 – 1763), no trono
local (musnud). A administração do novo regente islâmico e sua colaboração com os diretores britânicos foram
desastrosos para a região. Decorrente disso, foram comuns os casos de saque, pilhagens, corrupção, resultando em
grandes perdas de arrecadação e recursos da BEIC [353]. Diante dessa crise, Clive foi chamado de novo a assumir o
poder da companhia britânica em Calcutá em 1765.
Em outras áreas da Índia, mais a oeste, a ordem mogol era incerta. Em 1761, após a batalha de Panipat, a vitória
não coube nem aos maratas liderados pelo Sadashiv Rao nem aos afegãos sob Ahmad Shah Durrani pelo controle
das planícies setentrionais indianas. Isso, até certo ponto, favoreceu os britânicos, estabelecidos em Bengala. Um
dos líderes no norte da Índia que se beneficiou do impasse em 1761 foi o nababo de Awadh, Shuja-ud-Daula (r.
1753 - 1775), a maior província do império mogol, e detentor do cargo de vizir e preceptor do jovem imperador
mogol, Shah Alam II (r. 1759 - 1806). Dessa maneira, diante dos eventos incertos do norte indiano, Shujad-ud-
Daula emergiu como o mais poderoso regente indiano da época. Sua decisão de confrontar os britânicos a leste,
contudo, mudou tal situação [354].
Enquanto esteve no poder em Bengala, o nababo Mir Qasim solicitou ajuda a esse vizir frente aos britânicos após
a partida de Clive às ilhas britânicas. Assim, Mir Qasim juntou suas forças com as de Shuja-ud-Daula e marchou
rumo ao leste, confrontando os britânicos em Buxar, a sudoeste de Bihar, em 1764. O comandante britânico Hector
Munro (1726 - 1805) conseguiu assegurar vitória no campo, Shuja-ud-Daula foi perseguido em fuga até a cidade de
Lucknow e foi feito prisioneiro [355]. Dessa forma, a batalha de Buxar resolveu a quem coube a supremacia entre os
contestadores na Índia.
Clive, nesse meio termo, retornou ao comando da BEIC e assumiu os encargos de dewan na Bengala. Shuja-ud-
Daula foi reempossado em Awadh sob supervisão britânica em Allahabad. Nos primeiros anos de administração de
Clive, de 1765 a 1767, buscou reorganizar a BEIC a fim de conter a excessiva corrupção entre seus agentes, a
centralizar as decisões em Calcutá.
Em outras partes da Índia, um novo líder conseguiu inspirar e mobilizar maiores rebeliões contra os maratas em
Mysore, no sul indiano, Haider Ali (r. 1761 - 1782). Sua carreira se fez como militar, como general, a serviço do
regente de Mysore, do qual usurpou o poder em 1761. Dentre de pouco tempo, Haider Ali expandiu e consolidou
sua dominação em toda a Índia meridional, resultado de seu brilhante uso de cavalaria ligeira em campo e a adaptar,
de maneira bem sucedida, as táticas e armas europeias. Empregou diversos oficiais franceses, organizou uma
infantaria disciplinada e evitou, sempre que possível, confrontos bélicos diretos com a infantaria britânica. Em
termos administrativos, reformou a hierarquia militar e civil e assegurou pagamentos regulares a seus funcionários
[356]
.
Caso esse líder tivesse se juntado aos maratas, os britânicos poderiam ter sido seriamente desafiados na Índia.
Mas as lutas entre eles perduraram, provocando desgastes e fragilidades. Em 1767, o líder dos maratas, Madhavrao I
(g. 1761 - 1772), ganhou uma batalha decisiva contra Haider Ali. No mesmo ano, os britânicos aliaram-se ao nizam
de Hyderabad, Asaf Jah II (r. 1762 - 1803) e confrontaram Haider Ali, durante a chamada Primeira Guerra Anglo-
Mysore (1767 – 1769) que chegou a ameaçar o controle de Madras [357].
Até então, aparentemente, os britânicos finalmente tinham sido contidos na Índia por um formidável adversário.
Ademais, por volta de 1770, os casos de corrupção e má administração da BEIC em Madras, Calcutá e Bombaim
ganharam monta, inviabilizando o lucro e funcionamento da companhia. Poderiam, assim, estar à mercê de um forte
líder oponente, como Haider Ali. Mas o destino foi favorável aos britânicos. Em 1772, o líder dos maratas, o peshwa
Madhav Rao morreu, e um dos pretendentes à sua sucessão no cargo, Raghunathrao (g. 1773- 1774), fechou aliança
com os britânicos nos termos do Tratado de Surat de 1775 [358], provocando maiores divisões políticas e pondo termo
a qualquer pretensão hegemônica maior dos maratas na Índia. Nessa ocasião, um novo líder britânico veio para
organizar e dominar a política indiana por mais de uma década, Warren Hastings.
Warren Hastings e as Guerras Anglo-Mysore
Warren Hastings (1732 - 1818) foi o principal arquiteto do início do império britânico na Índia. Se Clive foi um
jovem e ousado oficial que ousou afrontar as tradicionais autoridades indianas em busca da glória e fortuna,
Hastings foi o grande administrador visionário da Índia britânica. Hastings também construiu sua carreira servindo
na BEIC, desde 1750 em Calcutá. Em 1757, havia sido aprisionado pelo nababo de Bengala quando era diretor do
depósito da companhia em Kosimbazar. Em 1769, depois de uma temporada no Reino Unido, Hastings voltou à
Índia como membro do conselho do governador de Madras. Seu conhecimento das línguas indianas, sensibilidade
diplomática e experiência no ramo comercial resultaram na indicação dele como governador de Bengala aos 39 anos
de idade, em 1774, posto britânico mais importante na Índia [359] [360].
Os desafios com que Hastings tinha que lidar em ofício foram significativos desde o início. Poucos anos antes, a
fome tinha assolado em Bengala, gerando um grande questionamento da autoridade do dewan britânico na região.
Hastings decidiu centralizar a tributação em Calcutá e não mais confiar o recolhimento a agentes e intermediários
bengalis. Mas sua atenção maior foi além das reformas internas. As relações com regentes indianos de outras regiões
apresentaram problemas prementes para a autoridade britânica em Bengala. O nababo de Awadh, a oeste, por vezes
se envolvia em batalhas contra rivais afegãos (rohillas) e maratas, como na batalha de Panipat de 1761 [361], pedindo
apoio ocasional dos britânicos. Em contrapartida, depois da morte do nababo Shuja-ud-Daula em 1775, o território a
leste de Awadh, na região da sagrada cidade de Benares (hoje Varanasi), foi incorporado pelo controle britânico [362].
Em suma, a interferência política de Hastings na Índia foi marcante, incrementando o poder e controle do BEIC na
Índia.
Os poderes de Hastings como governador eram cerceadas pelas decisões do Conselho Supremo da Bengala em
Londres, que tratavam dos assuntos coloniais. Apesar dessas obstruções em torno da figura de um rival político, Sir
Philip Francis (1740 – 1820), Hastings conseguiu concretizar seus planos políticos. As suas decisões começaram a
afetar muito além da Bengala, como também na costa ocidental, na região de Bombaim, depois que o governador
britânico ali tinha fracassado em batalha contra os maratas em 1779. Nesse evento, Hastings rapidamente interveio e
mandou tropas contra o líder marata Mahadaji Scindia, regente (marajá) de Gwalior (r. 1768 - 1794). Depois, em
1781, foi enviada uma expedição punitiva a Gwalior, capturando as bases de Mahadaji. Em 1782, foi firmada
aliança e paz com os maratas sob o Tratado de Salbai, o que consolidou a posição britânica no oeste indiano [363].
Mais ao sul, entretanto, as contestações aos britânicos e maratas advinha de Haider Ali, que tinha denunciado os
termos de paz assinados com os britânicos após a Primeira Guerra Anglo-Mysore em 1769. Haider, com seu senso
estratégico, aproveitou a condição histórica de conflitos entre britânicos e franceses em 1778, além da fragilidade
marata, e decidiu mobilizar suas tropas no sul da Índia em 1780 [364], derrotando as forças britânicas enviadas sob
comando de Sir Hector Munro e Sir Eyre Coote. Ademais, Haider fez uso de tática aliança com os franceses em terra
e negociando com o almirante francês Suffren a conter a esquadra naval britânica. Em 1782, Haider Ali morreu [365],
e foi sucedido no sultanato de Mysore por seu talentoso filho, Tipu Sultan (r. 1782 - 1799), o Tigre de Mysore, que
continuou os conflitos e impôs favoravelmente o Tratado de Mangalore assinado em 1784 com o governador
britânico de Madras [366].

Mapa - Primeira e Segunda Guerras Anglo-Mysore (1767-69) (1780-84). Em vermelho as possessões britânicas, e em verde as de Mysore.

Hastings ficou furioso com os termos assinados. E foi impedido a intervir no assunto, visto que teve que retornar
a Londres em 1785 a se defender no Parlamento de acusações de corrupção e abuso de poder em Bengala. Mahadaji,
pelo lado dos maratas, aproveitando-se da ausência de Hastings, iniciou novas hostilidades antibritânicas no oeste
indiano e chegou a ocupar Delhi em 1771 e assegurou um aliado no Trono do Pavão, o imperador Shah Alam II, sob
suserania marata [367]. Por sua vez, Mahadaji foi nomeado como administrador geral do império, autoridade com o
qual, ousadamente, foi demandar dos britânicos em Bengala os pagamentos devidos ao imperador mogol.
Tipu Sultan, no sul indiano prosseguiu consolidando suas conquistas. Após confrontar os maratas e o nizam de
Hyderabad no Decão, Tipu dirigiu-se, a partir de 1789, para a costa ocidental - Costa Coromandel - controlada em
boa parte pelos britânicos, e a sudoeste, contra as bases holandesas em Cochim e o entorno em Kerala do regente
local, Dharma Raja de Travancore (r. 1758 - 1798), aliado dos britânicos [368]. Contava com a ajuda francesa, mas a
derrubada da monarquia dos Bourbons na França impediu maiores alianças efetivas. A contrapartida às novas
ofensivas de Tipu no sul indiano adveio com a nomeação de um novo governador britânico, Lord Cornwallis, que
sucedeu Hastings.
Lord Cornwallis
Cornwallis logo que aportou na Índia buscou concluir alianças amplas com o peshwa dos maratas e o nizam de
Hyderabad, que tinham sido previamente derrotados por Tipu. Em 1790 e 1791, Tipu experimentou suas primeiras
derrotas no distrito de Coimbatore, na base francesa de Pondicherry e em Bangalore contra a aliança britânica. Um
ano depois, derrotado, Tipu perdeu o controle da sagrada cidade de Srirangapatna, a capital de facto em Mysore [369],
e retornou os domínios ao sul de Madras na costa ocidental aos britânicos, além de ter assegurado a volta da
regência dos maratas e do nizam, agora como aliados submetidos aos britânicos. Foi assegurada assim a dominação
anglicana no sul da Índia (mapa).
Mapa - Mysore em 1792 (linha vermelha) e as perdas para a Companhia Britânica das Índias Orientais (no mapa, “Company”) e para o Nizam de
Hyderabad e os maratas.

Tipu Sultan, sendo uma extraordinária figura histórica, ainda mais uma vez buscou instigar suas forças contra os
britânicos. Depois de ter resgatado com pagamento a custódia de seus filhos com os britânicos, Tipu planejou e
executou amplas reformas visando aumentar a arrecadação e os recursos do que restou do reino de Mysore visando
financiar campanhas militares. Tais reformas, que contemplaram a redistribuição e planejamento agrícola,
eliminaram os recolhedores de impostos intermediários, possibilitando um maior controle centralizado. Algo que
depois os britânicos herdariam ao controlar a administração no sul da Índia [370].
Os franceses, sob um governo revolucionário desde os eventos em 1789, foram novamente contatados por
emissários de Tipu. E para angariar suas simpatias e apoio, chegou a fundar clubes jacobinos cujos membros se
endereçavam como citoyens. Os britânicos na Índia, sob o governo geral de Lord Wellesley (g. 1798 - 1805),
ficaram alarmados com a possibilidade de Napoleão estender suas ambições na Índia após ter feito sua presença no
Egito. Assim, os britânicos organizaram amplas campanhas contra Tipu Sultan, matando-o na defesa de sua capital,
Srirangapatna em 1799. Os britânicos anexaram tudo do que restou dos mais próximos aliados de Tipu na Costa
Canaresa, Wayanad no norte de Kerala, Coimbatore e Dharapuram. No reino de Mysore, foi entronado um regente
submisso, Krishnaraja Wadiyar III (r. 1799 - 1831), de uma dinastia anterior ao de Haider Ali [371].
A supremacia britânica na Índia na virada do século 18 para o seguinte ainda foi contestada por outros poderosos
rivais a oeste e noroeste da Índia. Na costa ocidental, os maratas sob liderança do novo e inspirado peshwa, Baji Rao
II (r. 1796 - 1818), filho de Raghunath, foi paulatinamente contido em torno da região da cidade de Pune e foram
assinadas alianças com regentes indianos nas proximidades: com os marajás de Gwalior, Indore e de Baroda [372].
Foram assegurados a esses ampla autonomia interna e de tributação, desde que obedecessem às diretrizes políticas
britânicas externas e de defesa. Esses contornos políticos de aliança com regentes indianos servirão de guia de
conduta para a política imperial britânica ao longo do século 19.
Outra região de potencial contestador aos britânicos foi no noroeste da Índia. Na região, a morte de Mahadaji
Scindia (r. 1768 - 1794) provocou a ascensão ao poder local de sikhs que tinham consolidado um reino sob o
comando do marajá Ranjit Singh (r. 1801 - 1839) ao capturar a cidade de Lahore em 1799 [373]. Este líder sikh
provou ser um grande e talentoso estadista. Assim como Tipu, buscou aprender e adaptar as armas e táticas de
combate dos europeus, mas evitou sempre que possível enfrentar os britânicos em batalha.
No âmbito interno, o governo de Cornwallis buscou reformar a administração do BEIC na Índia, visando conter
o nepotismo e casos de corrupção, algo que parecia inerente às ambições de seus funcionários. Para tanto,
Cornwallis assegurou um generoso salário regular para os funcionários da companhia e procurou promover aqueles
com base no mérito de seus ofícios [374]. No campo jurídico, as inovações foram mais inovadoras. Foi elaborado e
posto em vigor um novo código de leis indianos, conhecido como Código de Cornwallis, a partir de 1793. Como
fontes jurídicas, buscaram interpretar e incorporar os costumes de cada grande religião na Índia e foi assegurado a
cada indiano um julgamento longe das arbitrariedades de regentes locais. Para a codificação dessas leis, foi assistido
pelo grande jurista e filólogo britânico, William Jones, que aprendeu diversas línguas e costumes indianos [375]. Além
disso, foi instituído uma Suprema Corte em Calcutá como tribunal de última instância. No mesmo sentido, foram
valorizados os costumes e línguas tradicionais na Índia. Como resultado, um colégio foi inaugurado em Benares
(atual Varanasi) para o estudo das obras em sânscrito [376]. E outras escolas corânicas, madrasas, foram abertas em
Calcutá.
Fatores para a dominação britânica na Índia
Quais foram os fatores que permitiram a extensão e consolidação dos britânicos desde Robert Clive até o
governo de Cornwallis? As explicações a isso se dão em parte em cuidadosos e desinteressados casos de alianças
feitas ao longo de décadas, e em parte devido à uma bem-sucedida estratégia de explorar as divisões e fragilidades
dos regentes indianos e intervir militarmente apenas quando sumamente necessário.
A conquista da Índia nunca despertou grande interesse do público britânico. Nem houve nenhuma grande
campanha nacional para o engrandecimento imperial. As batalhas e conflitos na Índia foram muito mais resultado de
cálculos locais e de pequenas dimensões. Nessas batalhas foram empregados muitos soldados indianos e
mercenários, sem grandes custos para o contribuinte britânico.
O uso da força foi parcimonioso, pois sempre foram levados em consideração os grandes custos de mobilidade e
mantimentos no campo de batalha pelos funcionários da BEIC, uma companhia comercial que deveria buscar sua
própria sustentação financeira, longe dos recursos imperiais de Londres. Nesse sentido, as campanhas militares
britânicas usaram o que aprenderam com os líderes militares indianos, a sustentar os seus homens com o que
saqueavam e pilhavam com as conquistas, assegurando a lealdade dos soldados e de todos durante a campanha.
Além do mais, havia a significativa prosperidade da BEIC nos negócios indianos advindos principalmente dos
tributos recolhidos nas regiões de Madras, Bombaim e Bengala, consideradas à época pela administração como
“presidências” [377]. Nessa última presidência, os lucros com a venda de têxteis de algodão provou ser imensa e
promissora, servindo de atração a muitos jovens ambiciosos britânicos para servir junto a companhia que sonhavam
em ascender na fortuna e na glória como o fez Robert Clive.
Em suma, os fatores de dominação britânica na Índia foram resultado de uma combinação de elementos
favoráveis. Os franceses, rivais europeus mais próximos foram desarticulados desde meados do século 18 com as
decisões políticas de contenção em Paris. Os regentes indianos antibritânicos, tais como Haider Ali e Tipu Sultan,
embora geniais, não conseguiram assegurar amplas coalizões - mesmo com a crucial ajuda inicial dos franceses -
contra os longos conflitos com os britânicos que fizeram extenso uso de aliados com regentes locais, nababos,
nizams e marajás. Os negócios, em último momento, pela prosperidade dos tecidos de algodão e dos tributos
recolhidos pelos funcionários da BEIC garantiram a continuidade da companhia na Índia ao longo do século 18.
Diante desse cenário, de ampliação e consolidação britânica na Índia, na virada para o século 19, os britânicos
começaram a delinear uma estratégia imperial mais abrangente para a sua dominação na Índia.

Índia e Sul da Ásia (De Wellesley a Curzon – Século 19 ao Início do 20)


Ao começar o século 19, a dominação britânica já despontava claramente na Índia. Os debates maiores foram a
respeito da política a ser adotada. Deveria a companhia BEIC manter o monopólio dos negócios na Índia? Ou
deveria a Coroa Britânica não renovar a concessão desse monopólio e intervir mais diretamente na administração
dessa colônia? Foram essas questões que foram discutidas nas primeiras décadas do novo século, algo que foi
manifestada por uma nova geração de funcionários da BEIC e militares britânicos que serviram no país asiático.
As concessões de funcionamento a BEIC na Índia deveriam ser aprovadas por um diretório em Londres, de vinte
em vinte anos, algo que foi proposto em 1773 por William Pitt, o Velho (1708 - 1778) e entrou em vigor em forma
de lei, a Lei de Regulação (Regulating Act), a partir de 1784. A partir de então, um diretório examinou as atividades
e os custos da BEIC na Índia, assim como supervisionou as atividades militares, civis e as receitas da companhia
[378]
.
Em 1813, essa lei revisou alguns termos de concessão. O comércio de chá e o comércio com a China deixaram
de ser exclusividade da companhia, abrindo o caminho para outros concorrentes comerciais, aventureiros e
missionários. Em 1833, o diretório e o parlamento britânico decidiram pôr termo a todo o monopólio da companhia,
tornando-a efetivamente como parte do governo britânico, apesar de ainda conservar a responsabilidade de
administrar as suas posses e funcionários na Índia. Esse sistema concorrente e dual de autoridades, entre Calcutá e
Londres, teve surpreendente longevidade cujo fim se deu apenas em 1857 [379].
Wellesley a Hardinge
O governo-geral de Lord Wellesley, o 1º Conde de Morrington (1760 - 1842), formalmente nomeado como
Governador-Geral da Presidência do Forte William, em Calcutá, se deu ainda em 1798 e se estendeu até 1805. Foi
sob seu governo que Tipu Sultan foi derrotado e morto em 1799, e o reino de Mysore submetido como aliado no
Decão. Mas foram suas reformas administrativas que assinalaram seu governo. Foi inaugurado o Colégio de Fort
William, em Calcutá, onde seriam formados os novos funcionários da BEIC. As disciplinas sobre história, cultura e
línguas indianas foram incluídas no currículo, visando maior engajamento e interação com a sociedade indiana.
E nessa instituição foram traduzidas e estudadas inúmeras obras e clássicos em sânscrito, persa, urdu, bengali,
hindi e árabe pelos estudiosos orientalistas. Foi nesse espírito que Wellesley declarou na inauguração que os oficiais
a serem formados pela instituição deveriam regularmente ser educados e instruídos nos princípios e sistema que
constitui a fundação de um sábio código de regulações e leis promulgadas “visando assegurar (...) para o benefício
de leis antigas e consolidadas desse país” [380] (tradução nossa).
Juntamente com a fundação da Madrassa de Calcutá em 1781 (centro de estudos corânicos), e a Sociedade
Asiática – presidida por Sir William Jones - em 1784, Calcutá gradativamente passou a se tornar o centro intelectual
da Índia Britânica. Ou como considerou Majumdar a respeito do Colégio de Forte William [381]:
O Colégio de Fort William surgiu tanto como um centro de pesquisa e editora de obras clássicas, como também como um berço de criatividade e de
pesquisas. Planejado originalmente para treinar funcionários civis britânicos nas línguas e culturas do país, a instituição prestou os serviços
equivalentes aos de uma universidade nos estudos das modernas literaturas indianas modernas, principalmente o bengali (...) Sob a diretoria de
William Carey, o Colégio pôde também reivindicar o crédito de reunir sábios pandits em sânscrito junto com munshis perso-árabes para reformular a
prosa bengali (...) a variedade de publicações da Academia também merece destaque. A partir de colóquios, debates sobre histórias populares,
crônicas e lendas, para a publicação definitiva de textos literários (tradução nossa).

Com relação aos aliados britânicos, foi no período do governo de Wellesley que sistematizaram a prática da
chamada “alianças subsidiárias”. Esta consiste, em seus princípios, em deixar clara a aceitação exclusiva pela parte
de um regente indiano das forças britânicas em seu domínio e nenhuma outra presença estrangeira. Concordava-se
de que essas forças deveriam ser mantidas e pagas, assim como qualquer outra presença britânica não-militar. Em
caso de conflito, as decisões seriam feitas pelos britânicos. Como contraparte, o regente indiano aceitaria a proteção
em assuntos externos e desordens internas. Caso houvesse transgressão a esses termos, o lado indiano teria que
aceitar os termos indenizatórios ou a perda de parte de seu território. Ademais, o sistema permitia a residência de
uma representante britânica na capital do reino aliado, com os fins de supervisionar os termos da aliança [382].
Esse sistema agradou aos fins expansionistas de Wellesley, já que se alinhava mais com a ideia de que os
britânicos, assim como já pleiteou Clive, deveriam se envolver mais na dominação e administração indiana. Como
efeito, as alianças foram assinadas com os regentes de Conchim (1791), Jaipur (1794), Travancore (1795),
Hyderabad (1798), Mysore (1799), estados de Cis-Sutlej (1815), Agência Central da Índia [383] (1819), Territórios de
Cutch e de Gujarate Gaikwad (1819), Rajputana (1818) e Bahawalpur em Punjab (1833).
Em 1812, foi designado como governador-geral da Índia, o Conde de Moira (ou Marquês de Hastings, não
confundir com Warren Hastings), que governou até 1823. Durante sua administração, o monopólio da BEIC sobre o
chá e o comércio com a China foram revistos. E foram conquistados os avanços sobre parte do território nepalês,
contra os gurkhas (1814-1816), assim como fora realizada a última campanha contra os maratas em 1818.
A guerra contra os gurkhas foi resultado de um plano expansionista econômico da BEIC de ter livre acesso ao
mercado produtor no Tibete de lã de qualidade superior para a confecção do tecido cashmere, que passa pelo reino
do Nepal, nos Himalaias. Depois de fracassadas as missões diplomáticas britânicas de 1792, 1795 e de 1801, o
regente nepalês (durbar), Girvan Yuddha Bikram Shah (r. 1799 - 1816), recusou os termos britânicos apresentados.
Moira assumiu o poder em 1813, e buscou reexaminar as fronteiras entre as regiões de Awadh e domínios
pertencentes aos nepaleses mais ao norte. Nesse sentido, alegando assegurar segurança nas suas fronteiras ao norte
do vale do rio Ganges, foi declarado guerra aos nepaleses em 1814. As batalhas revelaram-se difíceis e longas diante
do terreno montanhoso e da resiliência das tropas gurkhas. As agressões tiveram fim com a assinatura do Tratado de
Sugauli, ratificado em 1816 (mapa). Nesse documento, partes do sudoeste do reino nepalês foram cedidas aos
britânicos, assim como a região de Sikkim e Terai, Darjeeling no oeste de Bengala e partes do atual estado de
Utarakhand [384]. E um representante britânico foi estabelecido em Kathmandu, assim como o recrutamento dos
gurkhas para servir ao Exército Imperial Britânico.
Mapa - Região do Nepal em 1816 depois da guerra contra os britânicos.

Outra longa guerra foi empreendida contra os maratas, de 1817 e 1818. Moira decidiu invadir o norte do
território marata a fim de pôr termo às rebeliões das forças comandadas por Baji Rao II (r. 1796 - 1818). Inúmeros
esforços diplomáticos conseguiram convencer o marajá de Gwalior, Daulat Rao Sindhia (r. 1794 - 1827), ex-aliado
da Confederação ou Império Marata a permanecer neutro nos conflitos, pelos termos assinados no Tratado de
Gwalior de 1817, assegurando passagem pelo Rajastão às ofensivas britânicas. Ao fim dos conflitos, destituídos de
aliados, o líder marata foi derrotado nas batalhas de Khadki (1817) e de Koregoan (1818), perto de Pune no estado
de Maarastra [385]. O peshwa marata enfim foi eventualmente capturado em 1818 e a maior parte de seu território foi
anexado à província britânica, a Presidência de Bombaim, alguns anos depois.
William Amherst (g. 1823 – 1828) sucedeu no ofício a Moira em 1823. Durante esses anos, foi dada a expansão
anglo-indiana rumo ao leste, a incorporar a região de Assam, Arakan (Arracão) e Tenasserim, resultando em
conflitos bélicos contra o reino da Birmânia (1824-1826) (mapa) [386]. As batalhas duraram cerca de dois anos com a
mobilidade de cerca de 15 mil soldados indianos a um custo de 13 milhões de libras esterlinas da época [387], um
ônus elevado para os cofres da BEIC. Decorrente disso, Amherst reviu sua política expansionista na frente oriental,
assinando um tratado de paz em 1826 – o de Yandabon - e deixando a família real birmanesa como soberano na
parte sul do reino.
Mapa - Birmânia (atual Mianmar) e a gradual dominação britânica nas Guerras Anglo-Birmanesas ao longo do século 19.

As questões internas indianas ganharam ênfase nas reformas propostas no subsequente governo de William
Bentick (g. 1828 – 1835). A BEIC tinha apresentado anos de prejuízo a ser socorrido pelo governo em Londres, algo
que deveria ser resolvido pelo novo governador designado para a Índia. Assim, medidas de corte de gastos foram
implantadas, gerando descontentamento entre aqueles britânicos na Índia que alimentavam ambições imperiais
maiores na Ásia.
Com Bentick, a influência de políticos e pensadores que propunham uma maior ocidentalização da Índia,
inspirados pela filosofia e pensamento utilitarista de Jeremy Bentham (1748 - 1875) e James Mill (1773 - 1836),
ganharam destaque. Foram reformadas as escolas indianas, de acordo com as ideias de Macaulay [388], com maior
peso ao ensino da língua e literatura inglesa e as disciplinas ocidentais. O inglês tornou-se a língua oficial da corte e
do governo, substituindo de vez o antigo uso do persa pelos mogóis.
Sobre os costumes tradicionais indianos, Bentick buscou coibir a prática de autoimolação de viúvas na pira
funerária do marido, o sati. Contou com a ajuda e apoio de Rammohan Roy (1772 - 1833) [389] a conter os excessos
da poligamia, da rigidez da divisão de castas e do casamento infantil [390]. Assuntos que chocaram as sensibilidades
principalmente dos conservadores britânicos, entre eles evangélicos, católicos e anglicanos. A ascensão desses
religiosos conservadores, junto com os utilitaristas, irá gerar um ambiente colonial mais intolerante e alienado das
classes britânicas do restante da população indiana nas décadas posteriores.
O governo-geral de Lord Auckland (g. 1826 - 1842) foi marcado por uma nova expansão rumo ao noroeste.
Contestações aos britânicos na região começaram com a atuação de guerrilheiros afegãos a partir de 1838. Para
conter tal insubordinação, Auckland publicou um manifesto, o de Simla, em que declarou o emir do Afeganistão,
Dost Muhammad Khan (r. 1826 – 1839 e 1845 - 1863) como ilegítimo. Os conflitos subsequentes deram início à
Primeira Guerra Anglo-Afegã (1838 - 1842). Em que os britânicos buscaram assegurar um velho aliado confiável no
trono afegão em Cabul, na pessoa de Shah Shuja Durrani (r. 1803 – 1809 e 1839 - 1842). Havia os temores pelo
governo britânico de que os russos, já aliados com o shah persa Mohammad Mirza (r. 1834 - 1848) da Dinastia
Qajar, pudesse se aliar aos afegãos e assim ameaçar a região noroeste da Índia Britânica. De fato, os persas tentaram
invadir as terras afegãs, com a ajuda do conde russo Simonich, mas foram detidos na batalha de Herat em 1838 [391].
Em 1841, com Shuja no trono afegão, Cabul foi tomada por novas insurreições pelos partidários de Dost
Mohammad, liderados pelo seu filho, Muhammad Akbar Khan (r. 1842 - 1845). Nas tentativas de resolver os
conflitos em Cabul, o representante britânico, Sir William MacNaghten, foi morto e as forças britânicas bateram em
retirada quando foram atacados por afegãos Ghilzais no caminho, resultando na morte de 4500 militares e mais de
12 mil civis indo-britânicos. Apenas um britânico sobreviveu, Dr. William Brydon, que chegou com as notícias em
Jalalabad [392]. Nos meses subsequentes, os britânicos organizaram novas contraofensivas e tomaram Kandahar,
Jalalabad e depois Ghazni e Cabul. Mas os custos da guerra foram altos demais e o novo governador-geral da Índia,
Lord Ellenborough, decidiu retirar as tropas britânicas e negociar os termos da paz em 1842.
Lord Ellenborough (g. 1842 - 1844), diante da paz firmada com os afegãos, ganhou notoriedade e medalha de
honra com a legenda Pax Asiae Restituta, condecorado pelo governo britânico. Mas novas frentes de batalha
ocorreram na região do Sind. Designou em 1843 para impor a ordem e reportar a situação na região, Sir Charles
James Napier (1782 - 1853), com plenos poderes políticos e militares [393]. Duras repressões aos rebeldes se seguiram
ao ponto de, conforme conta a tradição [394], Napier ter mandado de volta a Calcutá um telegrama com uma única
palavra, peccavi, “pequei” em latim. Como resultado dos conflitos, Sind foi feita parte da Presidência de Bombaim,
e Napier foi designado como novo governador da região.
Em 1844, o Visconde de Hardinge (g. 1844 – 1848), assumiu o oficio em Calcutá. Seu maior desafio foi ter que
lidar com as crescentes inquietações do reino dos sikhs, no Punjab, a noroeste, após a morte de Ranjit Singh em
1839. Os sihks desde o reino de Ranjit Singh tinham se fortalecido e expandido diante dos afegãos, conquistando
Peshawar e Multan, assim como partes da Caxemira e Jammu.
Mas as desavenças internas no reino sikh geraram instabilidades políticas na sucessão de Ranjit Singh. Ademais,
o exército sikh tinha crescido consideravelmente, a ponto de ser considerado com preocupação pelas autoridades
britânicas. Nesse sentido, as autoridades em Calcutá sob Hardinge decidiram mobilizar suas tropas bengalis para a
fronteira, na cidade de Ferozepur, sob comando de Sir Hugh Gough. Como resposta, o exército sikh atravessou o rio
Sutlej em dezembro de 1845, tendo como resposta a declaração de guerra britânica, dando início à Primeira Guerra
Anglo-Sikh (1845 - 1846) [395] [396]
Na batalha de Mudki, Gough e Hardinge obtiveram vitória apesar das consideráveis baixas. Vencidas as batalhas
de Ferozeshah (dezembro de 1845), Aliwal (janeiro de 1846) e de Sobraon (fevereiro de 1846) Hardinge concluiu a
paz na assinatura do Tratado de Lahore em 9 de março 1846 e no Tratado de Amritsar em 16 de março de 1846, em
que o regente (marajá) hindu da Dinastia Dogra de Jammu, Gulab Singh (r. 1846 - 1857), adquiriu a Caxemira do
controle sikh pelo pagamento de 7,5 milhões de rúpias nanak, moeda sikh da época, além de tributos anuais [397]. O
regente de Punjab, o marajá sikh Duleep Singh (r. 1843 - 1849), por ser menor de idade, foi tutoreado por britânicos
até a sua a maioridade de acordo com o Tratado de Bhyroval [398].
Dalhousie
Os conflitos com os sihks ganharam monta novamente durante o governo-geral de Lord Dalhousie (g. 1848 -
1856). Após o assassinato de um enviado britânico para a cidade de Multan em 1848 por rebeldes leais a um
governador local, Diwan Mulraj, o comandante militar britânico em Bengala, Sir Hugh Gough, decidiu não apenas
mandar uma expedição punitiva para a cidade, mas mandar contingentes do exército para subjugar de vez toda a
região do Punjab, contando com a aprovação de Dalhousie, conforme ele se expressou: “Desavisados pelo
precedente, influenciados pelo exemplo, a nação sikh tem chamado para a guerra; e nas minhas palavras, senhores,
guerra eles deverão ter e com vingança” [399].
A Segunda Guerra Anglo-Sikh (1848-1849) foi iniciada quando Multan foi sitiada por tropas vindos de
Bombaim conjugadas com aquelas mobilizadas de Bengala sob comando do general Whish a partir de novembro de
1848. Mas a resistência na tomada do forte da cidade foi tenaz e perduraram as batalhas na cidade até janeiro de
1849. No campo diplomático, durante a guerra, os sikhs conseguiram ampliar sua aliança ao fechar acordo com o
líder afegão Dost Muhammad Khan, que enviou 1500 cavaleiros como apoio em troca de sua ambição de dominar a
cidade de Peshawar. Em outros locais, o exército indo-britânico obteve vitória suprema em Gujarate em fevereiro de
1849 sobre os sikhs e alguns aliados afegãos. Logo depois, em Rawalpindi, a maior parte das forças sikhs se rendeu
e foram acertados os termos de rendição. O Punjab foi anexado pela administração britânica. O império sikh fora
dissolvido e seu último rei, o jovem Duleep Singh (r. 1843 – 1849), fora enviado ao Reino Unido em exílio.
Na Birmânia, um incidente ganhou proporções trágicas que deram início à Segunda Guerra Anglo-Birmanesa
(1852). Um navio militar de bandeira britânica sob comando do Comodoro George Lambert fora para a região
próxima à capital Rangum questionar sobre o cumprimento do acordo de paz assinado de Yandabon de 1826 (que
dera termo à Primeira Guerra Anglo-Birmanesa). Questionara o britânico sobre a livre passagem e os impedimentos
por parte de um governador birmanês local a respeito. Após uma série de mal entendidos e a ambição imperial de
alguns britânicos no governo de Dalhousie [400], uma esquadra naval foi enviada em 1852 e Rangum fora bloqueada
junto com a apreensão de navios birmaneses.
Os birmaneses ofereceram pouca resistência. Depois de controlada a capital, Rangum, a corte imperial birmanesa
rendeu boa parte do país e a província próxima de Pegu fora anexada em 20 de dezembro de 1853. Mas os anos
posteriores de tentativa de integração das regiões birmanesas com a Índia provaram ser custosas demais, pois a
Birmânia era muito distante, de uma cultura e língua diferentes do que havia no universo indiano. Outro fator de
consequência onerosa para a continuada ocupação da Birmânia fora o grande contingente de soldados indianos a
servir militarmente na região, gerando crescentes descontentamentos entre a soldadesca hindu, pois era considerada
uma violação aos preceitos do kala pani (“água negra”), a manter-se longe das águas sagradas da bacia do rio
Ganges, o que poderia danar a condição pessoal e familiar de casta (varna) e reencarnação [401].
Mas talvez o que foi acarretou maiores consequências para a dominação britânica na Índia durante o governo de
Dalhousie fora a sua aplicação da “doutrina do lapso”. Sob essa doutrina, qualquer domínio não-britânico poderia
ser legalmente apropriado se o regente local não apresentar na ocasião da sucessão um herdeiro masculino capaz e
de direta descendência familiar. Foi sob essa política que ocorreram as anexações de Satara, Jaitpur e Sambalpur em
1849, e de Jhansi e Nagpur em 1853, Tanjore e Arcot em 1855, Udaipur e Awadh em 1856 [402]. Outras anexações
foram depois analisadas e julgadas inválidas pelas autoridades britânicas. Mas a doutrina em si provocou grande
indignação e temor entre os regentes e príncipes indianos temerosos de perderem de vez as suas soberanias.
No âmbito interno, o governo de Dalhousie fez reformas em várias áreas, como na hierarquia civil, militar e
médica. O sistema tributário foi simplificado, visando eliminar os intermediários, muitos advindos de uma elite
aristocrática de privilegiados (os zamindars), a conter os casos de corrupção e abuso de autoridade. O que gerou
crescente insatisfação entre a aristocracia latifundiária tradicional e família de regentes locais, historicamente
detentores dos impostos recolhidos em suas propriedades. Foram instituídos departamentos de obras públicas em
cada presidência - a de Bengala, Madras e Bombaim. Dalhousie, fervoroso adepto do utilitarismo, encorajou e
planejou um amplo programa de obras de linhas ferroviárias pelo território indiano, o que visou antes de tudo o
transporte de recursos naturais, como o minério de ferro e carvão, para as regiões portuárias indianas. Em pouco
tempo, com incentivos governamentais, o capital foi investido em linhas férreas que se espalharam em rede pela
região da Assam, Rajastão e Andhra Pradesh. A quilometragem dessa rede aumentou de 1349 km em 1860, dez anos
depois, 7678 km, 25 495 km em 1880, 56 980 km em 1920-21 e 65 217 km em 1946-47, a maioria irradiando das
três grandes cidades de Bombaim, Madras e Calcutá [403].
Outras grandes obras públicas foram realizadas. Foi concluído o Canal de Ganges, um sistema de canais de
irrigação no norte indiano visando aumentar a produção agrícola indiana, o que de fato aumentou a produtividade da
terra oito vezes, desde as planícies de Harwar a Cawnpore (Kanpur), estendendo-se até a foz do Ganges e regiões de
Assam [404]. Foi implantado um novo e eficiente sistema de correios e telégrafos, e tudo o que se referia a um sistema
mais eficiente de gestão e alocação dos recursos indianos. Em suma, valorizou tudo o que era considerado útil para a
administração imperial na Índia, sem maiores considerações para a instrução e melhoria de vida da população
indiana. Não foi realizada nenhuma grande campanha de educação e vacinação da população em geral,
demonstrando o viés governamental voltado para o grande empresariado e interesses comerciais. E assim foi a
percepção geral da população indiana na década de 1850, entre civis e militares. Foi fechado o Colégio de Calcutá
que valorizava os estudos indianos e asiáticos, inaugurado por Warren Hastings e William Jones, pois era
considerado oneroso e inútil.
Nas relações externas e com os regentes indianos, o governo de Dalhousie negociou com o nizam de Hyderabad
em 1853 e assim o manteve-o como aliado na região do Decão sob o Tratado de Berar. Evitou punir o líder afegão
Dost Muhammad pela sua colaboração na guerra com os sikhs e propôs a ele um tratado de paz e amizade assinado
em 1855 a encargo de John Lawrence. Ao sul das terras afegãs, no Baluchistão, buscou intervir e garantir um aliado
com o Khan de Kalat, Nassir II (r. 1841 – 1857), conforme foi assinado no acordo de cooperação em maio de 1854.
Ao khan foi garantido um subsídio anual de 50 mil rúpias em troca da colaboração política e militar, visando
resguardar qualquer avanço afegão do norte e dos persas ao oeste. No Punjab, Dalhousie procurou administrar
diretamente toda a região, expandindo o processo de policiamento e controle em toda e região noroeste indiana,
objetivando conter as ambições de grupos tribais das montanhas, como os Afridis, Mohmands e outros a atacarem as
férteis planícies e cidades punjabis.
Mas o que revelou ser o mais problemático e oneroso na sua política de anexação e administração direta foi
quando, alegando a “doutrina do lapso”, incorporou a populosa região de Awadh em 1856. Isso decorreu do
relatório de um enviado, James Outram, para a corte real em Lucknow, capital do reino de Awadh, em março de
1855. Foram relatadas as dificuldades na sucessão do trono e na condição desordeira e confusa na região,
propiciando maior intervenção britânica. Em novembro de 1855, o regente de Awadh, Wajid Ali Shah (r. 1847 -
1856), um muçulmano de uma dinastia de xiitas persas com grande apreço pelas artes, letras, dança, música e teatro
indiano [405], se recusou a assinar o ultimato apresentado e foi então proclamada a anexação direta da província em
13 de fevereiro de 1856. As consequências foram enormes para toda a administração britânica na Índia.
Como figura histórica, Wajid Ali Shah, nababo de Awadh, epitomiza toda a riqueza e contradição histórica
indiana. De caráter complexo, o regente tinha pouca propensão para a política usual e tinha acedido ao trono por
acaso, por linhagem real. Mas revelou-se talentoso e generoso no patrocínio das artes. Na sua corte, em Lucknow,
peças de teatro, música e dança – como o kathak – eram generosamente patrocinadas, a contar a mitologia hindu do
Maabárata e Ramaiana. Era um homem de gosto refinado e cortês. Seus poemas e escritos denunciam seu cultivado
gosto estético, ecoando as tradições literárias da corte persa. Apesar de apreciar os prazeres mundanos, não
consumia bebidas alcoólicas e, como um devoto muçulmano xiita, atendia às cinco orações diárias do Islã [406].
As Revoltas de 1857 e as Reformas Britânicas
A série de levantes no norte da Índia que aconteceu no ano de 1857 quase resultou no fim da dominação
britânica. Enquanto indianos referem a esses acontecimentos como a Primeira Guerra de Independência Indiana, os
britânicos consideram-os como apenas um motim por ação de alguns soldados indianos (chamado de sipaios). Não
foi propriamente nem um nem outro. Pois não envolveu todas as regiões indianas, concentrando mais no norte. Mas
também envolveu muitas outras camadas sociais indianas além dos militares.
A elite indiana participante foi mais da velha aristocracia latifundiária descontente com as reformas tributárias e
regentes deslocados com a “doutrina do lapso” implantada por Dalhousie. O próprio imperador mogol, Bahadur
Shah II (r. 1837 - 1857), uma figura simbólica do passado imperial residente em Delhi, emergiu como um símbolo
dos rebeldes antibritânicos. Assim como o foi a figura do peshwa na cidade de Pune, no Maarastra. Foram apenas
símbolos de inspiração, sem qualquer pretensão coordenada para uma nova ordem política indiana.
No entanto, os rebeldes conseguiram mobilizar um grande contingente da sociedade indiana insatisfeita com a
administração britânica de Dalhousie. E os britânicos foram assim pegos de surpresa com a amplitude das revoltas,
despreparados para um confronto tão amplo e duradouro na Índia. Abaixo da elite indiana, as revoltas se espalharam
entre os rajputs e Gurjaras no noroeste da Índia, pois almejaram mais autonomia das intervenções políticas
britânicas. A figura da rainha (rani) de Jhansi foi um dos momentos mais emblemáticos dessa revolta, pois a regente
não conseguiu assegurar um herdeiro natural masculino ao seu trono, sendo assim tomado pelos britânicos.
Em 1856, em Awadh foi posto em prática a “doutrina do lapso”, sendo a região anexada pelos britânicos. Muitos
dos soldados indianos vinham de Awadh, causando grande insatisfação no meio militar com a apropriação da região.
E foi entre esses que as primeiras manifestações de revolta se deram, na cidade de Meerut em 10 de maio de 1857. A
causa imediata, a gota d’água, foi a distribuição de munição lubrificadas com gordura animal para os novos rifles
Enfield P-53. O manuseio desses pelos soldados foi considerado como tabu, pois havia o boato de que a gordura
advinha da vaca, figura sagrada aos hindus, e do porco, proibido pelos muçulmanos. O rumor espalhado foi de que
os britânicos fizeram isso intencionalmente, visando converter a soldadesca ao cristianismo. O que revelou o pouco
diálogo e desconfiança dos soldados indianos frente ao oficialato britânico, vistos como uma casta privilegiada e
distante do penosidade e esforço da vida militar. Os soldados, ao contrário, viviam em boa parte cansados depois de
anos de batalhas como na Birmânia, Punjab, Afeganistão entre outras regiões.
O comandante britânico no quartel de Meerut, o tenente-coronel George Carmichael-Smyth, carecia de carisma e
liderança entre os soldados. E foi para provar seu comando aos seus superiores que decidiu, no dia 24 de abril de
1857, dar uma lição aos questionadores sobre as munições. Nesse sentido, mandou 90 dos seus homens carregarem
as novas munições, sendo obedecido por apenas cinco soldados em linha. A falta de conduta acarretou no
aprisionamento por indisciplina militar dos soldados envolvidos, amplificando ainda mais o descontentamento do
comandante britânico.
No dia seguinte, o motim se espalhou e os amotinados seguiram em marcha rumo a Delhi, a 80 km de distância.
Os britânicos ficaram estupefatos com os eventos e foram incapazes inicialmente de impedir a catástrofe nos seus
momentos iniciais [407]. Delhi caiu aos rebeldes graças à ação de um ex-cabo indiano da Divisão de Artilharia do
Exército Imperial Britânico, que manteve o controle das munições e armas da cidade de maio até setembro de 1857.
Os britânicos, desesperados, tentaram reagir solicitando o apoio do peshwa em Cawnpore mais ao sul. O que se
revelou um fiasco, pois a maioria da população se juntou às causas antibritânicas e expulsaram os britânicos da
cidade em poucos dias.
As notícias dos acontecimentos em Meerut e Delhi rapidamente se alastraram pelo país (mapa). O ambiente de
alarme provocou a precipitada retirada de oficiais e funcionários da BEIC de seus postos em busca de proteção. Em
Agra, a 250 km de Delhi, o abandono britânico favoreceu a ocupação rebelde do forte da cidade. Houve relatos de
saques, desordens e crimes nas ruas na ausência da ordem efetiva.

Mapa - Revoltas indianas em 1857. Regiões em azul escuro e claro tiveram participação significativa de civis e militares amotinados contra a
dominação britânica. A região de médio curso do rio Ganges e Yamuna (Awadh e Uttar Pradesh) (em marrom) foi palco das maiores batalhas. As outras
regiões tiveram pouca participação ou se aliaram contra os rebeldes indianos.

O comando britânico respondeu descoordenadamente aos eventos. Na província de Maarastra, na costa oeste,
houve aqueles que defenderam uma intervenção mais enérgica, discordando daqueles que viram a solução no
diálogo da elite marata da região. Nas cidades de Benares e Allahabad, houve ineptidão das autoridades locais no
desarmamento da população.
Apesar de a rebelião ter se alastrado, não houve, em contrapartida, comando unificado nas manifestações. Foram
notórias, como exemplo, discussões e desavenças entre os rebeldes sobre quem deveria liderar a província de
Maarastra, muitos apoiando a volta do peshwa dos maratas. Outros almejaram um governo republicano autônomo. E
entre os muçulmanos indianos, houve clamores por jihad (luta, esforço, empenho em árabe) contra os infiéis, com
apelo apenas somente entre alguns xiitas milenaristas e artesãos muçulmanos com a desconfiança da maioria sunita e
sufista indiana.
Em Lucknow, em Awadh, foi malfadado o avanço dos rebeldes mesmo depois do sítio dos quarteirões britânicos
por quase seis meses em 1857 devido à resistência organizada pelo comissário britânico local, Sir Henry Lawrence
(1806-1857) [408]. Mas a estrada de ferro que ligava Lucknow a Cawnpore quase foi tomada por rebeldes
comandadas pela rainha de Baiswara, Rana Beni Madho [409]. Nesta última cidade, no caso mais infame dos levantes,
uma multidão enfurecida cercou a comunidade britânica local e 120 mulheres e crianças foram mortas e
desmembradas. O episódio, conhecido como o Massacre de Bibighar, intensamente explorado pela imprensa
vitoriana da época, chocou a opinião europeia e enfureceu as autoridades em Londres que decidiram reforçar a
intervenção no país para reverter o quadro de instabilidade. Foram dadas ordens de execução sumária por
enforcamento e morte por tiros de canhão [410].
Por algum momento, parecia que todo o norte da Índia iria se perder das mãos britânicas. Mas a atuação leal de
regimentos dos sikhs foi fundamental para a virada do destino. Os sikhs ainda alimentavam ódio aos soldados
indianos amotinados, da mesma unidade que os reprimiram e os subjugaram nas duas guerras Anglo-Sikh (1845-
1846) (1848 - 1849) [411]. Assim, foram retomadas as cidades de Delhi, em 21 de setembro de 1857, e Lucknow, após
um longo sítio em 27 de novembro. E Gwalior e seu estratégico forte que tinha sido tomado pelo peshwa dos
rebeldes maratas e forças leais à rainha (rani) de Jhansi, Lakshmi Bai (1828 - 1858), a grande figura feminina da
causa dos rebeldes indianos que somente foi resgatada em junho de 1858 sob o comando do general Hugh Rose,
evento em que a rani veio a morrer [412].
Os conflitos e as falhas na contenção por parte das autoridades britânicas deixaram marcas indeléveis. A
autoconfiança tinha sido abalada, e muitos britânicos já não se viam como superiores ou portadores da civilização
frente aos “bárbaros” indianos. Muitos da elite indiana começaram a considerar a presença britânica como despótica
e autoritária. E ao final das revoltas, que tinham ecoado largamente entre vários setores da sociedade indiana, as
autoridades em Calcutá e em Londres decidiram adotar uma política menos intervencionista do que a praticada por
Dalhousie e mais ponderada e cautelosa a buscar o apoio e a incorporação da elite indiana nos assuntos
administrativos da Índia, abrindo assim escolas aristocráticas para o acesso ao serviço civil indiano (Indian Civil
Service, doravante ICS). Uma instituição que servirá a uma elite de funcionários públicos indianos, de pouco mais
de mil pessoas a comandar, arrecadar, alocar os recursos, reprimir revoltas e descontentamentos, redigir leis,
investigar crimes, julgar e fiscalizar municípios, escolas, hospitais e cooperativas de mais de 300 milhões de
indianos, um quinto da população mundial da época [413].
Nos aspectos sociais e religiosos, as autoridades britânicas reviram suas interferências nas tradições indianas
decorrentes da visão utilitarista do governo de Dalhousie. Assim, as práticas e costumes populares indianos foram
tolerados. A ordem social indiana tradicional foi preservada, sustentadas no apoio a elites locais, religiosas e
latifundiárias. No nível político, visando conter futuras rebeliões, o novo governo imperial britânico na Índia criou
instâncias jurídicas e políticas a nível provincial. Foram abertas novas escolas e universidades, resultado da Lei das
Universidades Indianas que entrou em vigor em 1904 que ampliou o número de vagas e de cursos universitários [414].
Os custos das revoltas foram enormes. O tesouro foi quase desprovido de recursos e a BEIC quase entrou em
falência. Assim, visando evitar o pior para seus acionistas, a companhia britânica deixou de atuar na Índia depois de
258 anos. O parlamento decidiu que a Coroa Britânica assumiria os negócios e controle na Índia, que apresentava
boas perspectivas de crescimento e lucros para a arrecadação britânica. A Índia, depois de anos de investimento em
infraestrutura, começava a produzir e exportar mais de seus produtos para o mercado internacional e a importar mais
dos produtos processados britânicos [415].
Assim, foi transferida a responsabilidade de administração para a monarquia britânica, diretamente submetida à
influência da rainha Vitória que apresentava vivo interesse no império indiano. A monarca até teve aulas de hindi e
foi aluna do indologista mais famoso da época, Max Mueller. Assumiu o título de Imperadora da Índia em 1876 [416]
e designou um Vice-Rei da Índia a zelar pelos seus interesses na Índia que deveria servir no seu ofício até cinco
anos.
Para contrapor seu poder, foi extinto o cargo de Governador-Geral da Índia em 1858 e foi criado o posto de
Secretário de Estado da Índia a cuidar dos assuntos administrativos e econômicos da Índia, Birmânia e Áden, na
Península Arábica. Esse secretário representava toda a elite indo-britânica e poderia ter mais poder que o vice-rei se
contasse com o interesse e apoio da maioria parlamentar em Londres. Ademais, o secretário não tinha que apresentar
nenhum relatório orçamentário ao parlamento, pois a sua receita era independente das ilhas britânicas [417]. Assim,
nesse sentido, o interesse e a percepção sobre a Índia foi gradativamente deixando de ser interesse dos parlamentares
e da sociedade britânica vitoriana.
Com relação aos líderes das revoltas indianas, uma comissão militar britânica se reuniu em Delhi e decidiu exilar
o imperador mogol Bahadur Shah II para Rangum, na Birmânia, onde morreu como um dervixe [418] em 1862, pondo
fim à longa Dinastia Mogol. O peshwa Nana Sahib (1824 – 1857), que tentou restaurar o império marata nas
rebeliões, aparentemente desapareceu após as ocupações britânicas em Cawnpore em 1857 [419].
O Raj Britânico - de Canning a Curzon
Em novembro de 1858, a rainha Vitória declarou, generosamente, em proclamação lida em Allahabad por Lord
Canning de que todos os regentes, chefes da Índia teriam seus direitos e privilégios mantidos de acordo com os
termos assinados com a extinta BEIC. E ao público indiano em geral, de todas as crenças e raças, foram prometidos
direitos e empregos de acordo com suas habilidades, instrução e integridade [420]. A generosidade de suas palavras
intencionava aproximar mais a nação indiana do governo britânico depois das instabilidades das rebeliões.
A proclamação em tom imperial, condizente com o termo cunhado para o período na Índia até sua
independência, Raj (termo de origem sânscrita que significa império, realeza) Britânico, foi seguida pela aprovação
da Lei do Governo da Índia de 1858 que delineou novas diretrizes políticas (mapa) [421]. Um novo Secretário de
Estado para a Índia foi nomeado. Uma Comissão Parlamentar substituiu o antigo Conselho da Índia, instância que
ficava logo abaixo do cargo do Governador Geral da Índia antes de 1858 e que era composta por quinze membros
dos quais a maioria seria escolhido por diretores aposentados da BEIC ou por aqueles gestores que haviam vivido e
atuado na Índia por mais de dez anos. Era uma maneira de evitar o excesso de gerência de pessoas das ilhas
britânicas e de possessões longes e a valorizar aquele que conviveu e lidou com a realidade mais próxima, no caso,
na Índia, doutrina política essa chamada de man on the spot, homem no local.

Mapa - Índia Britânica em 1858. Regiões em vermelho foram administradas diretamente pela Coroa, e as em amarelo, estados que mantiveram seus
regentes (Estados Principescos) aliados ao governo imperial britânico.

Nesse sentido, a administração britânica na Índia começou gradativamente a transitar para um sistema
centralizado a valorizar os diretores e funcionários britânicos na Índia. A participação indiana nos altos cargos civis
e militares ainda era raridade. Na década de 1880, por exemplo, havia apenas 16 indianos entre os 900 membros da
ICS. Ademais, os exames de admissão a esse corpo de elite eram realizados na Inglaterra, um custo e viagem
proibitivos para a maioria dos candidatos indianos. Além do mais, mesmo com os insistentes pleitos por reformas
mais amplas no sentido de ampliar o acesso de indianos aos cargos mais elevados, havia a desconfiança ou até
mesmo um explícito racismo entre a comunidade britânica na Índia, principalmente entre aqueles evangélicos e
conservadores, como ficou demonstrado no romance histórico de Dalrymple [422]. Ou como ficou clara na declaração
do vice-rei, Lord Lytton, que escreveu em 1879 que os altos cargos jamais seriam acessados substancialmente pelos
indianos [423]. Apesar disso, uma nova Estatutária da Administração Pública (Statutory Civil Service) foi aprovada em
1880, abrindo a possibilidade de acesso a alguns cargos diretivos para indianos, mesmo com as restritivas exigências
dos exames de admissão. Era a velha relutância da elite indo-britânica em Londres e Calcutá em abrir mão de seu
poder voluntariamente.
Nos problemas políticos e nas relações com potentados vizinhos, os quatro mais destacados vice-reis da Índia
após 1858 – em ordem sucessiva, Lawrence, Mayo, Northbrook e Lytton – se defrontaram com o difícil problema da
região noroeste indiana, a chamada Fronteira Noroeste. Sir John Lawrence (g. 1864 - 1869) buscou questionar os
limites de seu cargo, buscando a máxima intervenção nos assuntos administrativos indianos, tal como o fez
Dalhousie. Na política externa, Lawrence enfrentou os problemas diretamente no Afeganistão, a noroeste, e nisso foi
calamitoso. Com os russos, aliados com os persas e alguns líderes afegãos, permitiu a eles se desgastarem com as
intrigas políticas das tribos afegãs. Mas não era essa a visão predominante dos britânicos com relação aos russos,
que passaram a cada vez enxergarem neles uma potencial ameaça à Índia Britânica. Uma possível ampla aliança
russo-afegã asseguraria uma base em Cabul que daria, via o Passo de Khyber, acesso às planícies do Punjab e do
Ganges no norte indiano.
Seu sucessor, Lord Mayo (g. 1869 - 1872), foi com relação aos afegãos mais proativo, encontrando o emir
afegão, Sher Ali Khan (r. 1863 - 1879), em Ambala em janeiro de 1869 [424]. Nos termos consentidos, os britânicos
garantiram ao afegão uma defesa das fronteiras contra os avanços russos e, em compensação, o emir teria o apoio de
recursos e treinamento para organizar um exército nacional, além de ter assegurado sucessão reconhecida para seu
filho favorito, Abdullah Jan.
Lord Northbrook (g. 1872 - 1876), ao contrário de Mayo, era um homem de paz, contrário às investidas bélicas
de aliados nas fronteiras indianas. Sua ênfase na administração foi mais voltada para reorganização interna, a fim de
conter os gastos excessivos, diminuir os impostos e prevenir a fome, algo recorrente na Índia com a implantação
extensa do cultivo de monoculturas rentáveis no mercado internacional, como o chá em Assam, índigo e juta na
Bengala. Em 1873, o emir Sher Ali, alarmado com as ameaças russas na sua fronteira solicitou maior presença e
apoio britânico, tendo como resposta uma primeira recusa das autoridades britânicas. Em segundo momento, com a
revisão da sua política a pedido do novo primeiro-ministro em Londres, Benjamin Disraeli, tropas britânicas foram
mobilizadas para a fronteira afegã, demandando de Sher Ali a presença de agentes britânicos em Cabul, Kandahar e
Herat. A demanda desagradou os afegãos que a consideraram como uma provocação e prelúdio para uma futura
anexação.
Novos desentendimentos vieram à tona entre as autoridades em Londres e Calcutá. Northbrook defendeu os
interesses comerciais e econômicos da Índia, enquanto o governo de Disraeli buscou salvaguardar os interesses
estratégicos do império britânico. Assim, como resultado desse desgaste político, Northbrook pediu demissão em
1876.
Foi sucedido no cargo por um experiente diplomata britânico, Lord Lytton (g. 1876 - 1880), que visou atuar a
cargo da política de Disraeli. No entanto, Sher Ali se recusou a ter um residente britânico em Cabul, expressando a
vontade e indignação da maior parte de seus aliados e da nação. Assim foi iniciada a Segunda Guerra Anglo-Afegã
(1878 - 1880), em que decorrente dos confrontos Sher Ali morre em 1879 e suas tropas em grande parte são
derrotadas e desbaratadas ao interior. A paz é assinada em Gandamak, em maio de 1879, atendendo aos termos
britânicos com um residente em Cabul a supervisionar a política afegã [425]. De fato, tornando o Afeganistão num
protetorado britânico.
As revoltas populares afegãs se manifestaram diante dos acordos e avolumaram-se. Em 3 de setembro de 1879, o
representante britânico em Cabul, Sir Louis Cavagnari foi assassinado por rebeldes afegãos. E sob liderança do
Ghazni Mohammad Jan Khan Wardak, os afegãos atacaram os britânicos na base de Sherpur, perto de Cabul, em
dezembro de 1879. Uma segunda fase de agressões teve início. O emir afegão no trono em Cabul, Mohammad
Yaqub Khan, que contava com o apoio britânico era considerado como um fantoche. As batalhas subsequentes
foram desgastantes para as tropas indo-britânicas muitas vezes em terreno montanhoso de difícil acesso frente à
atuação de guerrilha dos rebeldes afegãos. A política agressiva de Disraeli e Lytton provou ser um desastre, e Lytton
pediu demissão em 1880.
Lord Ripon (g. 1880 – 1884), que sucedeu Lytton, foi afortunado em identificar e dialogar com um poderoso e
popular chefe afegão, Abdur Rahman (r. 1880 – 1901), que conseguiu se assegurar no poder e unificar o país
novamente em paz por 20 anos [426] com o discreto apoio britânico e sem nenhuma presença de um residente em
Cabul.
Ripon era de uma escola mais liberal que seguiu a visão do primeiro-ministro britânico Gladstone e sua
administração na Índia foi marcada pelas primeiras reformas cautelares rumo a um sistema de governo mais
democrático, especificamente no nível local, distrital. Mas, com essas reformas postas em andamento, enfrentou a
oposição da classe empresarial de europeus em Calcutá que considerou as reformas como perigosas e nocivas aos
seus interesses e privilégios na sociedade colonial indiana. Um dos pontos mais debatidos foi com relação ao
sistema judiciário, em que Ripon e seus conselheiros consideraram injusto um magistrado indiano não ter
competência jurídica de julgar um europeu mesmo em matéria penal. Para mudar tal quadro, Ripon propôs a Lei
Ilbert em 1883, para abolir tal distinção jurídica [427]. Houve grande furor na imprensa de Calcutá e, diante disso,
Ripon cedeu e emendou a nova lei dando a possibilidade de um europeu a recorrer a um julgamento por júri popular,
o qual metade deveria ser composta por europeus. Em suma, ainda mantendo certa distinção racial e deixando claro
que réus indianos não poderiam ter recurso a um júri. Apesar disso, o Vice-Reinado de Ripon, deu certos sinais aos
indianos que reformas rumo a instituições e leis mais justas e participativas poderiam ser debatidas e aprovadas.
Um dos momentos mais inspiradores nesse cenário, no âmbito político, de congregar as opiniões mais
reformistas – de empresários liberais, políticos, professores, advogados, médicos, jornalistas, intelectuais e líderes
religiosos - na Índia foi com a fundação do Congresso Nacional Indiano (doravante CNI) em 1885 (fig.). Essa
organização política foi fruto de décadas de debates e ideias reformadoras indianas rumo a uma maior libertação [428].
Uma corrente nesse sentido que buscou revigorar o hinduísmo no final do século 19 foi a filosofia Vedanta que
almejava a libertação da alma através da meditação e renúncia ao mundo mundano. Outro conceito aliado a essa
filosofia foi a da karmayoga que enfatizava mais a ação altruísta e desinteressada no meio mundano em busca do
bem maior como uma afirmação do indivíduo, uma auto-realização afirmativa ao invés da contemplação passiva. O
profeta desses novos pensamentos foi Swami Vivekanda (1863 - 1902) que tinha impressionado o público ocidental
quando propagou sua mensagem no Parlamento Mundial das Religiões em encontro em Chicago em 1894. Na sua
volta, Vivekanda despertou os sonhos nacionalistas indianos em busca de maior autonomia e libertação.

Fig. – Foto dos fundadores do partido Congresso Nacional Indiano, em 1885.

Na virada para o século 20, em 1899, foi nomeado como vice-rei da Índia Lord Curzon (g. 1899 - 1905). No seu
reinado, os indianos foram pesadamente tributados para manter o sistema militar e policial britânico na Índia. A
esses setores, nos anos de 1900 e 1901, foram alocados cerca de 40% do orçamento público, algo que contrastava
com os meros 5% para os serviços de bem-estar, saúde e educação [429]. Os gastos com segurança talvez fossem um
inequívoco sinal do crescente descontentamento da dominação britânica. Em 1871, o vice-rei Mayo foi assassinado
por um muçulmano indiano. Em 1897, o Alto Comissário Rand foi morto por um brâmane. No mesmo ano, foram
realizados grandes boicotes contra as instituições britânicas em Bombaim, com violentos confrontos nas ruas e a
destruição de alguns edifícios públicos na cidade. Em 1901, embates similares ocorreram na cidade de Cawnpore,
assim como foi noticiado na Bengala, onde foi estabelecida a Associação Nacional Indiana em Calcutá por
Surendranath Banerjee e Ananda Mohan Bose, visando coordenar as opiniões e discussões acerca do domínio
britânico. E também foram fundados periódicos e jornais indianos de cunho revolucionário, como o Jugantar e o
semanário popular Bangabasi [430]. Bengala tornava-se o epicentro da inteligência crítica e revolucionária do Raj
Britânico.
Em uma tentativa de abrandar os fervores nacionalistas na Bengala, Curzon decidiu dividir a província em uma
parte oriental de maioria muçulmana – Bengala Oriental – e uma mais ocidental, almejando dividir a ampla
mobilização indiana de descontentamento. Como reação a isso, foi fundada a Liga Pan-Muçulmana da Índia (ou
Liga Muçulmana) em Daca em 1906, com o objetivo de agenciar os interesses dos muçulmanos indianos. Na mesma
cidade, um ano depois, o magistrado distrital B. C. Allen foi assassinado e, em 1909, Sir William Wyllie, tenente-
coronel do exército britânico e do Ministério da Defesa, foi morto a tiros por um revolucionário indiano nas ruas de
Londres.
Bal Tilak (1856 - 1920), ardoroso defensor do conceito do swaraj (autogoverno), articulou e formou um novo
partido como resposta à partição de Bengala por Curzon. Ao fazê-lo, foi criada uma ala nacionalista mais radical
dentro do partido do CNI que tinha sido concebido em 1885 para influenciar e cooperar, dentro dos limites jurídicos
e constitucionais, uma reforma na Índia. Os partidários de Tilak, ao contrário, decidiram agir em forma de protestos,
piquetes e boicotes contra os produtos britânicos [431]. Os partidários do CNI, constrangidos diante dos eventos da
partição, decidiram partir para negociações. Gopal Gokhale (1866 - 1915), presidente da CNI, foi a Londres entre
1905 e 1906 e negociou com o novo Secretário de Estado para a Índia, Lord Morley (g. 1905 – 1910) em Londres e
conseguiu promessas concretas de maiores reformas constitucionais na Índia [432].
Nesse meio tempo, em 1905, foi composta uma canção inspiradora (o Amar Sonar Bangla, “Minha Dourada
Bengala”, hoje o hino nacional de Bangladesh) contra a divisão da Bengala pelas mãos do escritor ganhador do
Nobel de Literatura, Rabindranath Tagore (1861 - 1941) [433]. Em Baroda, no Gujarate, Sri Aurobindo (1872 - 1950)
a partir de 1897 começou a escrever artigos políticos críticos no periódico Indu Prakash. Anos depois, em 1906,
Aurobindo se juntou aos rebeldes políticos da Bengala [434].
O governo de Curzon fez algumas concessões diante do cenário de protestos indianos. Reviu a divisão de
Bengala e reunificou-a em 1911. Em 1909, foi aprovada a Lei dos Conselhos Indianos (também conhecido como as
Reformas de Morley-Minto) que permitiu a eleição de representantes indianos em conselhos legislativos. A proteger
as minorias indianas, contudo, um sistema de reservas de cadeiras nesses conselhos seria destinado ao eleitorado
muçulmano e de outras religiões não-hindus. Nesse sentido, os muçulmanos teriam assentos legislativos separados
em nível municipal e distrital e boa parte desses representantes advieram da Liga Muçulmana. Assim foi criado um
ambiente político de separação e alienação indiana pelas autoridades britânicas a minar qualquer sentido de unidade
indiana hindu-muçulmana. Ou seguindo a máxima do imperador romano Júlio César, divide et impera, dividir para
conquistar.

Mapa - Raj Britânico em 1909 com as religiões predominantes, verde (muçulmanos), vermelho (hindu) e amarelo (budista).

E visando evitar maiores atuações das tropas indianas nesse turbilhão político indiano, os soldados indianos
foram mobilizados pelo império britânico. Em 1882, a exemplo, sete mil homens foram deslocados a reprimir as
revoltas antibritânicas no Egito. O advento das crises internacionais que culminaram na Primeira Guerra Mundial em
1914 será outro fator de mobilidade militar indiana, mas que guardará consequências imprevistas aos alicerces do
imperialismo.

Índia e Sul da Ásia (De Gokhale a Gandhi – Início do Século 20 - 1947)


Reformas Políticas e Nacionalismo na Índia
Enquanto Gokhale e seus acólitos estiveram no poder do CNI, o partido adotou um posicionamento mais
moderado e negociador com o governo britânico em Calcutá e Londres. No entanto, em 1915, Gokhale veio a
falecer, o que deu a Tilak uma chance de redirecionar a linha de ação do grupo. Reconhecendo os limites de seu
radicalismo após sair de sua pena na prisão em 1914, e identificando as dificuldades da guerra na Europa, Tilak
começou a adotar uma linha mais ponderada e negociante. Outro surpreendente líder também despontou na mesma
época, Annie Besant (1847 - 1933), uma socialista irlandesa que tinha vindo para a Índia propagar as ideias da
Teosofia [435]. Quando ela fundou a Liga para a Autonomia Indiana (Indian Home Rule League) nos mesmos moldes
do partido na Irlanda, suas ideias tiveram grande impacto entre a elite crítica indiana. Diante disso, um jovem e
brilhante advogado à época, Muhammad Ali Jinnah (1876 - 1948), que aspirava representar todas as vontades
muçulmanas indianas para a autonomia, tinha se impressionado e fundou um partido inspirado nas suas ideias, a
Liga Muçulmana, em 1916.
Os muçulmanos indianos, durante os embates dos britânicos contra os turcos, aliados aos alemães, na Primeira
Guerra Mundial (1914 – 1918), tinham grandes reservas com relação à participação indiana nos conflitos ao lado do
império britânico. Pois consideravam o sultão turco otomano em Istambul, Mehmed V (r. 1909 - 1918), como
herdeiro espiritual do Profeta Maomé (califa). O que lhes levaram a um dilema: a quem eles devem a última
lealdade, ao império britânico ou ao líder espiritual de sua religião? Muitos muçulmanos indianos no final acabaram
decidindo seguir a liderança nacionalista de Jinnah. E assim tinha proposto e negociado um pacto político com
Tilak, do CNI, em 1916, ambicionando juntar os dois partidos rumo a uma Índia autônoma. Em 1917, houve uma
coesão exemplar de Jinnah e Tilak junto com o governo britânico nos esforços de guerra.
Nos próximos dois anos, foram negociadas gradativas reformas constitucionais no que se tornaram as Leis
Montagu-Chelmsford, aprovadas em 1919 e em vigor a partir de 1921, que permitiram certa participação política de
indianos no âmbito local, além de alguns assentos no órgão executivo máximo na Índia abaixo do Vice-Rei e do
Secretário de Estado, no Conselho Executivo da Índia. Nesse, os indianos teriam direito a três assentos a cuidar dos
assuntos de saúde, educação e agricultura, enquanto os britânicos ainda detiveram as áreas cruciais da defesa,
segurança e finanças. No âmbito legislativo local, foram propostas duas câmaras, uma britânica e outra indiana. Os
assentos desse último seriam preenchidos por indianos eleitos de acordo com sua religião, conferindo voz política a
todas as religiões no país, mas assegurando assim uma complicada desunião de identidade.
O projeto de reforma produziu uma forma diárquica de poder, a contrapor um polo britânico contra um indiano.
E fatalmente acarretou em amargas frustrações pelo lado indiano, pois os ministros no Conselho Executivo
dependiam do apoio financeiro britânico. E dificilmente foi alcançado um amplo consenso indiano no legislativo
constituído por uma pletora de interesses pautada na diversidade religiosa.
Ao fim da Primeira Guerra Mundial, o governo britânico na Índia, sob a presidência de Sir Sidney Rowlatt,
introduziu e julgou uma série de leis de estado de emergência a partir de 1919, conhecidas como a Lei de Rowlatt, a
serem aplicadas que visaram reprimir quaisquer manifestações de sedição e aquelas consideradas um risco para a
segurança nacional [436]. Seguiram-se uma enxurrada de protestos pela Índia, cujos participantes consideraram
abusivas e arbitrárias as medidas injustas após o amplo apoio e participação dado da Índia no esforço de guerra ao
lado dos britânicos, enviando aos campos de batalha cerca de dois milhões de homens em sua maioria para regiões
da Mesopotâmia, no atual sul do Iraque, e região mediterrânica do império otomano, hoje partes da Turquia [437].
Entre os protestantes contra a Lei Rowlatt, despontou-se um jovem e inspirado advogado de Porbandar, no
Gujarate, Mohandas Karamchand Gandhi (1869 - 1948) (fig.), que buscou articular campanhas de desobediência
civil e resistência não-violenta ao governo [438].
Gandhi
Filho de um ministro local e de família de casta de mercadores (vaixás) da costa do Gujarate, Mohandas Gandhi
completou seus estudos em Direito em Londres e, subsequentemente, prosseguiu em sua carreira advocatícia em
Bombaim. Aceitou depois a proposta de um empresário muçulmano que o mandou para o que hoje é a África do
Sul, ex-colônia britânica, em Pretória e Durban a partir de 1893 até 1915. Naquele país, como um dos raros
advogados indianos, acabou emergindo como representante da grande comunidade de seus conterrâneos [439]. A
maioria dos casos de discriminação racial que lhe chegou às mãos aguçou-lhe o sentido de questionamento e revolta,
por vezes adotando uma postura extrajurídica de manifestação de protesto, sempre a explorar as brechas e
contradições do sistema jurídico sul-africano e britânico.
Quando Gandhi decidiu retornar para a Índia em 1915, ele já tinha feito sua fama entre as comunidades indianas
na África do Sul. Aos 46 anos de idade, poucos podiam antever sua futura atuação social e política. Inspirado pelas
ideias de Gokhale, Gandhi procurou corresponder-se com ele e com seus seguidores. Fez viagem de um ano pela
Índia a observar e constatar a realidade do povo indiano. Nos anos seguintes, depois da morte de Gokhale durante
seu tour, devotou-se a dar atenção a campanhas de camponeses no distrito de Champaran, em Bihar e no distrito de
Kheda, no Gujarate, em que adquiriu grande experiência política, carisma e percepção social. E ganhou nisso
admiradores e alguns seguidores, como Rajendra Prasad (1884 - 1963) em Bihar e Vallabhbhai Patel (1875 - 1950)
(fig.) em Gujarate.

Fig. - Vallabhbhai Patel.

No último ano da Primeira Guerra Mundial, em 1918, organizou uma ampla campanha para alistamento militar
para o Exército Indo-Britânico em Gujarate, demonstrando sua lealdade com o império, acreditando no
compromisso do governo de Londres em reformar e conceder autonomia efetiva para a Índia depois dos conflitos.
Mas a aprovação da Lei de Rowlatt decepcionou-o profundamente, constatando que os britânicos não respeitaram a
lealdade indiana durante a guerra. Reagindo a essa indignação, Gandhi propôs como método de protesto dentro das
condições políticas e jurídicas britânicas na Índia, manifestações que já tinha organizado na África do Sul:
fechamento de lojas e negócios em certos dias, o hartal (dia de paralisação do trabalho, jejum e orações), com efeito,
um dia de greve.
Enquanto isso, a Índia atravessou um período delicado depois da guerra. No final de 1918, a inflação era notória,
afetando duramente a população mais carente no meio rural e nas grandes cidades. Milhões de soldados retornaram
para a Índia, grande parte deles para o Punjab, região de origem de quase um terço dos soldados indianos que
serviram na guerra, entre sikhs e muçulmanos punjabis, consideradas pelos britânicos como as “raças marciais” [440].
Para tanto, o governo imperial tratou com extrema cautela o Punjab diante de possíveis revoltas entre os locais, não
permitindo a entrada de ativistas políticos como Gandhi na região. Visando controlar as inquietações punjabis, o
governo britânico na Índia decidiu mandar ali mais tropas e forças de segurança, a fim de conter e reprimir como
prova de autoridade e força.
Em 13 de abril de 1919, o governador de Punjab, Michael O’Dwyer, mandou para Amritsar o general britânico
Reginald Dyer que decidiu, diante de uma aglomeração em Jallianwalla Bagh, na cidade de Amritsar, mandar abrir
fogo frente a uma multidão pacífica de cerca de 15 mil pessoas reunidas numa praça de jardins (bagh) adjacente ao
Templo Dourado, um dos locais mais sagrados dos sikhs. Como resultado, 379 mortos, incluindo mulheres e
crianças, e estimados 1200 feridos [441]. O Massacre de Jallianwala Bagh (fig.), como ficou conhecido
posteriormente, carregou uma poderosa mensagem para os indianos de que o governo britânico procederia a casos
arbitrários de repressão, demonstrando sua fragilidade e insegurança no poder na Índia, no momento do conturbado
governo do vice-rei Chelmsford (g. 1916 - 1921). Um sinal de que a dominação britânica apontava para seus limites
e nervosismo diante do alvoroço da população indiana nos anos posteriores a Primeira Guerra Mundial.
Gandhi, percebendo a ocasião histórica da importância da cooperação indiana para a continuidade do governo
britânico na Índia, respondeu coordenando uma estratégia de não-cooperação como seu manifesto a fim de alcançar
o swaraj indiano. Uma autonomia e autogoverno completo. Gandhi foi então mandado para compor uma comissão
de investigação acerca do ocorrido em Amritsar. No congresso anual do CNI em 1919 na cidade, o tom das
resoluções do partido, presidindo a sessão por Motilal Nehru (1861 - 1931), pai de Jawaharlal Nehru (1889 - 1964),
futuro primeiro líder de governo indiano independente, foram moderadas para o desapontamento das alas mais
radicais do partido e descompassadas diante da indignação da sociedade indiana, principalmente no Punjab.
Gandhi, após a comissão de investigação e da sessão do CNI, passou a adotar uma atitude cada vez mais de
enfrentamento político. Tal decorreu, nos meses seguintes em 1919 e 1920, diante do movimento crescente do
Khilafat que defendia um ideal pan-islamista e maior participação política muçulmana na Índia [442]. Gandhi decidiu
ouvir os apelos dos muçulmanos, pretendendo assim assumir uma liderança pan-indianista e não apenas como líder
das causas hinduístas. Outro fator para a guinada de atitude de Gandhi foi a sua indignação do relatório produzido ao
final das investigações acerca dos eventos de Jallianwala Bagh, acabando por não condenar devidamente em termos
disciplinares e penais o general Dyer e os envolvidos no massacre [443]. Como se não bastasse, seus simpatizantes nas
ilhas britânicas levantaram um fundo substancial de fundos para sua aposentadoria, além de suas ações terem sido
consideradas por Winston Churchill, em discurso na Câmara dos Comuns em Londres, como memoráveis sem
paralelos na história moderna do império britânico. Foi condecorado e presenteado com uma espada cerimonial com
a inscrição “Defensor do Império” [444].
Diante disso, as condições de radicalidade e contestação na Índia foram se tornando cada vez mais evidentes. Em
meados de 1920, Gandhi começou a sistematizar sua política de não-cooperação, em suma, boicote aos produtos
têxteis britânicos, escolas, universidades e tribunais de justiça. Em junho do mesmo ano, Gandhi acrescentou ao
boicote as eleições vindouras.
Em agosto de 1920, o líder histórico do CNI, Tilak, morreu, abrindo caminho para a liderança de Gandhi dentro
do então maior partido político indiano, com estimados dois milhões de membros [445]. Em Calcutá, numa sessão do
CNI, Gandhi consegue a aprovação do uso dos boicotes pela maioria dos membros do partido, conferindo-lhe maior
legitimidade política indiana, além de sua ampla visibilidade social. Animado com tal perspectiva, Gandhi começou
a adotar um discurso mais contestatório diante das autoridades britânicas, a lutar pela autonomia indiana, swaraj, em
um ano.
Em 1921, o boicote às eleições resultou em notável ausência dos políticos do CNI no governo indiano, levando-
os a uma radicalidade cada vez maior diante do sistema indo-britânico imperial. Foi um momento histórico sem
retorno, sem maiores possibilidades de conciliação política dos partidários de Gandhi com os britânicos. No mesmo
ano, as inquietações sociais decorrentes dos boicotes cresceram. O tour pela Índia do herdeiro ao trono imperial
britânico em 1921 e 1922, o príncipe de Gales, Edward, fez com que o governo britânico na Índia adotasse uma
postura de apaziguamento com os protestos antibritânicos. No dia 4 de fevereiro de 1922, na vila de Chauri Chaura,
no entanto, o movimento ganhou contornos violentos com o incêndio de alguns policiais numa delegacia, e Gandhi
foi preso. Após o qual ficou detido por dois anos, e muitos acreditaram que isso seria o fim de sua carreira política.
De fato, a influência política de Gandhi e do CNI diminuíram sensivelmente na primeira metade da década de
1920. Gandhi, após ser solto da prisão em 1924, se retirou para um ashram [446] em Gujarate. O número de membros
do CNI despencou, para 18 mil membros em 1925 [447], muitos vendo o fracasso dos movimentos de não-cooperação.
Os boicotes organizados nos anos anteriores perderam seguidores. Muitos voltaram a frequentar as escolas e
universidades. E o mais grave, houve crescente desunião no movimento nacional no enfrentamento aos britânicos
com a retirada da figura de liderança de Gandhi. Entre 1923 a 1927, nas então Províncias Unidas (hoje Uttar
Pradesh) ocorreram vários confrontos inter-religiosos. No noroeste indiano, a população hindu da cidade de Kohat
abandonou suas casas e negócios em 1924. E aqueles que sonharam com uma Índia independente hindu começaram
a organizar-se em organizações nacionalistas como o Rashtriya Swayamsevek Sangh em 1925 e a Associação
Republicana Socialista do Hindustão em 1928.
Neste mesmo ano, o governo britânico na Índia decidiu rever as reformas na constituição indiana desde as Leis
Montagu-Chelmsford de 1919, designando para isso uma comissão exclusivamente de britânicos, na chamada
Comissão Simon, em nome do seu presidente Sir John Simon. A ausência de um membro indiano provocou
generalizada indignação e novos protestos nacionais e boicotes foram organizados em 1928. O mais notório desses
protestos se deu no Punjab, na cidade de Lahore, em outubro em que a polícia reprimiu violentamente uma marcha
popular silenciosa e pacífica [448].
O relatório da Comissão Simon foi publicado em maio de 1930, em que foi proposto um governo representativo
nas províncias, mas ainda mantendo o controle nacional nas mãos de representantes britânicos. Com o clima de
insatisfação popular indiana diante das tímidas reformas políticas rumo a uma maior autonomia política, Gandhi
decidiu organizar uma grande manifestação em abril de 1930.
Foi quando Gandhi partiu de Ahmedabad em marcha por mais de 390 km para a cidade costeira de Dandi, no
Gujarate, marcando sua volta ao cenário político nacional (fig.). O propósito dessa marcha, a Marcha do Sal, foi de
boicotar a compra desse produto, taxado pelo governo britânico que representava à época 3% da receita indiana,
indo Gandhi ao litoral indiano promover uma forma de autossuficiência, swadesh, a colher com o próprio sal da
praia marítima [449]. Milhares se juntaram à caminhada de Gandhi, acima de dois mil protestantes, que depois foram
agredidos pela força policial na cidade litorânea a 250 km ao norte de Bombaim. Conseguinte ao ato de protesto,
Gandhi e mais de 25 mil de seus seguidores, entre eles Jawaharlal Nehru, foram presos, demonstrando mais uma vez
a truculência britânica na Índia ao lidar com grandes campanhas de protesto [450].

Fig. – A Marcha do Sal de Mohandas K. Gandhi de 12 de março a 6 de abril de 1930.

As Conferências de 1930 a 1932 e a Lei do Governo da Índia de 1935


Visando resolver a instabilidade política indiana, o governo britânico realizou três rodadas de conferências em
Londres, entre 1930 e 1932. A primeira rodada foi aberta pelo monarca, George V, em 12 de novembro de 1930, e
foi presidida pelo primeiro-ministro britânico, Ramsay MacDonald. Apesar de toda a pompa, a ausência de
membros do CNI, sendo que alguns estavam aprisionados, comprometeram as negociações. Foi proposta uma
federação indiana, dividida em 11 províncias e os estados principescos, além da participação indiana em todos os
níveis de governo. No mesmo ano, como porta-voz dos indianos mais marginalizados, da casta dos dalits
(intocáveis), B. R. Ambedkar (1891 - 1956) liderou um amplo movimento de 15 mil pessoas no Templo de Kalaram,
em Nashik no Maarastra, exigindo participação e voz política em termos de igualdade para seus representados [451].
O vice-rei indiano da época, Lord Irwin (g. 1926 - 1931), decidiu após os parcos avanços nas negociações em
Londres, conceder liberdade a Gandhi da prisão em janeiro de 1931 em troca de pôr termo à campanha de
desobediência civil. Gandhi então participou na segunda rodada de conferências a partir de sete de setembro de
1931. No evento, ele rejeitou a ideia de eleitorados separados de acordo com as minorias sociais e categorias
religiosas indianas. Também defendeu a ideia de que os “intocáveis”, a quem chamava de harijans (filhos de
Vixnu), não consistiam numa minoria, mas parte integrante da sociedade indiana. Diante da defesa de suas ideias, de
não segmentação e integridade da sociedade indiana para os fins políticos, resultou-se num novo impasse nas
negociações.
A terceira e última rodada de negociações veio em fins de 1932. Foi pouca representada pelas partes
negociadoras, improdutiva e repleta de pessimismos por ambas as partes. Ao fim das três rodadas de conferências,
no entanto, algum contorno de plano foi esboçado para a reforma política da Índia que teria efeito a partir da Lei do
Governo da Índia de 1935. Esta, no geral, concedeu uma maior igualdade e autonomia para os indianos na Índia
Britânica, pondo fim ao sistema diárquico em nível distrital, conforme a Lei de Montagu-Chelmsford de 1919. Foi
também proposta a forma federativa para a toda a Índia, a ser composta pela Índia Britânica e dos estados
principescos [452], entidades políticas que permaneceram autônomas e aliados aos britânicos. As eleições seriam
diretas, aumentando a franquia de voto de sete milhões para 35 milhões de votantes, além de algumas
reorganizações parciais de algumas províncias, entre as mais importantes a separação da Birmânia e Áden como
colônias separadas a ser administradas pela Coroa Britânica [453].
Apesar das amplas reformas, o grau de autonomia em nível provincial ainda limitava-se ao poder dos
governadores provinciais, e do governo britânico na Índia do direito de administrar a defesa e a política externa da
Índia e do poder de suspensão do governo em caso de crise nacional. A Lei do Governo da Índia entrou em vigor a
partir de 1937, com a realização das primeiras eleições distritais, mas sem o status de federação resultado da ampla
oposição dos regentes indianos dos estados principescos que temiam a perda de suas soberanias [454]. Exceção foi
manifestada pelos regentes de grandes estados autônomos aliados aos britânicos, Caxemira, Hyderabad, Mysore e
Travancore [455]. Houve aberta oposição do CNI pois temiam que a forma federativa poderia atentar para a unidade
indiana.
Foram criadas duas novas províncias de maioria muçulmana nas reformas de 1935, a do Sind e a da Fronteira
Noroeste. Ao fazer isso, tinham em mente as autoridades britânicas fragmentar as duas grandes províncias de
Maarastra e do Punjab, locais de grande contingente populacional que tinham demonstrado descontentamento em
forma de manifestações e confrontos políticos rumo à plena autonomia indiana. O maior ganhador dessas mudanças,
sem dúvida, coube ao eleitorado muçulmano e seu maior partido político, a Liga Muçulmana liderada por Ali Jinnah
(fig.) [456].

Fig. – Muhammad Ali Jinnah, líder da Liga Muçulmana e pai da nação paquistanesa.

Após os acordos feitos em Londres, Gandhi voltou à Índia com certo amargor diante dos desentendimentos com
Ambedkar, com as contestações de Jinnah que defendeu vagas separadas aos muçulmanos, e com Nehru que já tinha
começado a flertar com as ideias socialistas para a Índia. Assim, Gandhi procedeu em rever suas atitudes políticas e
considerou Nehru como o mais apto a assumir a liderança do CNI em 1936. Nehru também alimentou profundo
desgosto com o que foi negociado em Londres e aprovado na Lei do Governo da Índia de 1935, pois considerava
como anátema a autonomia dada aos diversos regentes indianos dos estados principescos, um símbolo do passado
imperial retrógrado aos paradigmas socialistas [457].
As eleições indianas realizadas em 1937 na Índia, no geral, foi um estrondoso sucesso para o CNI que
conquistou 707 lugares nas câmaras legislativas distritais de todas as 11 províncias indianas [458], quase 40% do total
de cadeiras pelo país. Os da Liga Muçulmana, para a decepção de Jinnah, apenas 106 dos 491 assentos reservados
aos votos muçulmanos. Os únicos estados que não tiveram maioria do CNI foram o de Bengala e Punjab, que
preferiram votar em partidos locais [459]. A Liga Muçulmana partiu então para formar coalizão com o CNI, o qual foi
rejeitado pela maioria de seus membros, acarretando num acirramento dos ânimos dos partidários de Jinnah que
começaram a considerar os muçulmanos como minoria na Índia. Em 1940, em Lahore, a Liga Muçulmana em
conferência decidiu aprovar a chamada Resolução do Paquistão, um compromisso de formarem no futuro um novo
estado de maioria muçulmana, o Paquistão, nome dado que propunham reunir as regiões do Punjab, partes do
Afeganistão, Caxemira (Kashmir), Sind e Baluchistão. O sonho de Gandhi de ter uma futura unidade indiana
independente, a reunir hindus, muçulmanos e todas as suas minorias étnicas, sociais e religiosas, pareceu estar cada
vez mais distante.
O sucesso eleitoral do CNI não escondeu suas fissuras internas. Em 1937, um líder de cunho mais radical de
Bengala, Subhas Chandra Bose (1897 - 1945) (fig.) decidiu lançar-se candidato à presidência do partido, com
discreto apoio de Gandhi. Bhose acabou ganhando as eleições partidárias em janeiro do ano seguinte [460], conferindo
ao partido um tom de maior confrontação frente às limitadas concessões políticas britânicas.

Fig. - Subhas Chandra Bose, liderança nacionalista indiana que depois negociou com os nazistas.

A Missão Cripps, “Deixem a Índia” e a 2ª. Guerra Mundial


Em 1939, com a eclosão da Segunda Guerra Mundial na Europa, o vice-rei, Lord Linlithgow (g. 1936 - 1943)
declarou, sem consultar os políticos indianos, a entrada da Índia na guerra. A reação à isso foi de indignação no
meio indiano que tinham almejado barganhar a entrada de seu país nos conflitos com a promessa de plena
autonomia política. A guerra então passou a ser considerada não apenas para deter o avanço nazifascista, mas
também a combater o status imperial britânico.
Como consequência das decisões precipitadas pelas autoridades britânicas, o CNI e seus coligados
recomendaram a pronta demissão dos cargos ministeriais no poder executivo indiano. Diante disso, os britânicos
tomaram controle dos gabinetes abandonados, restando apenas os governos regionais do Punjab e Bengala que
permaneceram sob partidos muçulmanos locais. Em suma, a retirada do CNI do comando político indiano deu-lhe a
ausência nas decisões políticas durante o crucial e conturbado período da Segunda Guerra Mundial, cabendo-lhe a
posição de fazer oposição e denúncia, e a organizar campanhas e boicote e protesto com base nos ideais gandianos
do satyagraha, apegar-se ao princípio da verdade. Para o vice-rei, Lord Lilinthgow, um conservador imperialista
convicto, as concessões aos súditos indianos durante a guerra eram vistas como desnecessárias e inúteis.
Diante da polarização e impasse político entre as lideranças indianas e britânicas, Sir Stafford Cripps (1889 -
1950), um antigo amigo de Nehru e futuro embaixador britânico na União Soviética de 1940 a 1942, foi enviado à
Índia a partir de dezembro de 1939 com o propósito de negociar uma conciliação diante dos esforços de guerra. Sua
ambiciosa missão, de convencer o CNI a se juntar à posição do Reino Unido na guerra, provou ser inovadora demais
para os membros conservadores do governo britânico, entre eles Winston Churchill (que ocupou o cargo de
primeiro-ministro britânico de 1940 a 1945) e o próprio vice-rei Lord Lilithgow, pois ofereceu em troca a plena
independência indiana, com o status de “domínio”, tal como as ex-colônias britânicas do Canadá, Austrália e África
do Sul [461].
Gandhi e outras lideranças indianas do CNI tinham percebido essa inconsistência política, no descompasso
político entre os influentes membros do parlamento, da Coroa britânica e da visão liberal de Cripps. Para tanto,
frustrados com as infrutíferas promessas, a missão de Cripps falhou em seus objetivos de manter unificado o cenário
político indiano no período de guerra. Como resultado, o CNI passou a tomar dianteira e propôs uma réplica diante
do fracasso diplomático, no que ficou conhecida como a Resolução “Deixem a Índia”, tomada depois de um duro
discurso de Gandhi em reunião do CNI e aliados em 8 de agosto de 1942 em Bombaim, que demandou a retirada
imediata dos britânicos da Índia, poupando o país dos conflitos bélicos ameaçado na fronteira leste com o avanço
das tropas imperiais japonesas.
A resposta de Lilinthgow foi ainda mais implacável, mandando prender todos os envolvidos e até mesmo
sugerindo deportá-los para a África durante a guerra. A detenção, como consequência, não impediu uma ampla
campanha de boicote e protestos pelo país. Fios telegráficos foram cortados, trilhos ferroviários desmantelados,
delegacias de polícia invadidas e hastearam-se bandeiras do CNI pelos locais ocupados em prédios públicos. Em
Bihar, os camponeses rebeldes conseguiram ocupar o poder governamental. Mas essas revoltas, no entanto, em
agosto de 1942, não perduraram por muito mais tempo.
O ano de 1943 foi crítico para o futuro do governo britânico na Índia, pois o estado tinha se tornado cada vez
mais intervencionista, a controlar as rebeliões, mas também a coordenar os esforços de guerra e conter as pressões
inflacionárias dos produtos alimentícios decorrente da queda do comércio internacional e das incertezas da guerra.
Para piorar, a safra desse ano foi desastrosa resultando em uma grande fome na Bengala que matou cerca de três
milhões de indianos, e muitos outros decorrentes da desnutrição e doenças relacionadas [462]. Visando aplacar a
desordem em Bengala, o novo vice-rei, Lord Wavell (g. 1943 - 1947) ordenou a mobilização de unidades do
exército imperial para guardar e distribuir os estoques de grãos para a população bengali, mas o flagelo da fome já
tinha feito o seu devastador efeito.
Diante da crise em Bengala, Subhas Bose, viajou para a Alemanha nazista e buscou negociar com Hitler a futura
independência indiana. Depois foi ao Japão, e lá organizou o Exército Nacional Indiano, recrutando ex-prisioneiros
indianos no sudeste asiático. A unidade militar, com o apoio japonês, chegou a avançar até a fronteira indiana com a
Birmânia, na região de Imphal em Manipur, em março de 1944, mas já no momento em que o Japão tinha iniciado
uma gradativa retração de suas operações de guerra no confronto com as forças dos EUA vindos do Pacífico e das
Filipinas.
Nos últimos anos da guerra, ao constatar as perspectivas de vitória dos Aliados, os britânicos na Índia
mantiveram sob controle os nacionalistas. Gandhi, novamente em prisão, decidiu fazer uma greve de fome como
forma de protesto contra as acusações de ele ter liderado as revoltas de agosto de 1942. Em maio de 1944, ele foi
solto e sua atenção voltou-se mais para a Jinnah, figura que despontava na política indiana ao final da Segunda
Guerra Mundial, e as suas demandas de partição da Índia. Além disso, muitos soldados indianos, conhecedores das
durezas e do manejo das armas de combate, voltaram do teatro de operações de guerra.
A participação indiana na Segunda Guerra Mundial, em essência, representou o envio de cerca de dois milhões
de homens a servir no Exército Imperial Britânico em vários combates na Ásia, África e Europa. Foram
fundamentais em deter o avanço japonês a partir da Birmânia, e foram proeminentes nas vitórias na Itália, com a
morte de seis mil homens. Ao todo, 87 mil indianos faleceram ao longo da guerra. Além desses sacrifícios, a Índia
contribuiu consideravelmente com seus recursos e fundos para o esforço de guerra britânico. A economia indiana
sofreu com as imposições da guerra, o preço e a produção de grãos para suprir a demanda bélica resultaram em um
elevado custo humano de milhões de mortos pela fome, como o ocorrido em Bengala em 1943. Cessadas as
hostilidades da guerra, o Reino Unido saiu arruinado economicamente. Com relação à Índia apenas, suas dívidas
somaram cerca de 1, 200 bilhões de libras esterlinas [463].
Ademais, o clima político no Reino Unido mudou após a Segunda Guerra Mundial. O primeiro-ministro,
Winston Churchill, não conseguiu manter o seu cargo, perdendo-o para Clement Attlee (g. 1945 - 1951), do Partido
Trabalhista de linha mais esquerdista. Tal mudança dos ventos políticos decorreu dos enormes custos e dívidas da
guerra, com o governo britânico mais preocupado em sanar as finanças domésticas, reduzindo dessa forma os
envolvimentos externos do império britânico.
Na Índia, as dissidências com os custos da guerra foram logo evidenciados. Em 1946, uma grande greve tomou
as ruas de Bombaim. O CNI, curiosamente, não se juntou às manifestações, talvez receosos de porem em risco as
negociações com relação ao futuro político indiano. Para tal fim, o governo de Attlee sinalizou com o aval do vice-
rei Lord Wavell mudanças com a organização de novas eleições provinciais na Índia no ano, fundamentais para a
futura formação de uma Assembleia Constituinte da Índia independente [464]. As eleições mais uma vez confirmaram
a força do CNI com 923 vagas, mas a Liga Muçulmana também angariou votos substanciais, 423 cadeiras, que o
tornaram no principal representante da comunidade muçulmana indiana [465].
As divergências entre esses dois grandes partidos indianos começaram a ficar bem claros com o envio de uma
missão, em abril de 1946, por parte do governo britânico a definir a futura constituinte e independência indiana.
Resumidamente, interessava à Liga Muçulmana a separação de regiões indianas com clara maioria islâmica, algo
que contrariava o desejo de manter o país unido conforme declarou Nehru, na condição de presidente do CNI na
ocasião. Após tal enunciado feito, Jinnah ficou furioso e convocou grandes manifestações muçulmanas pelo país.
Como resultado, em Calcutá no dia 16 de agosto de 1945, ocorreram violentos embates entre a comunidade hindu e
muçulmana na cidade com mais de cinco mil mortos [466]. Similares agressões inter-religiosas ocorreram no estado de
Bihar. As alternativas após esses eventos foram claros, ou o CNI negociava a partição com a Liga Muçulmana ou
haveria o risco de uma longa e sangrenta guerra civil.
Em fins de 1946, como parte de sua desmobilização no pós-guerra, o governo britânico manteve um número
insuficiente de militares na Índia, pouco mais de 10 mil homens, sinalizando a fragilidade e desinteresse de Londres
em manter a sua estrutura colonial no país. Ademais, foi escolhido um novo vice-rei para a Índia Britânica, Lord
Mountbatten, em fevereiro de 1947 com o objetivo especifico de entregar o poder para os indianos até junho de
1948. Mountbatten logo percebeu as dificuldades de negociar com uma liderança unificada sobre o futuro da Índia.
Mas soube, junto com Nehru, que sem atender às demandas da Liga Muçulmana para a criação do Paquistão, seria
inviabilizado um mínimo de ordem política futura. Além dessa questão, os sikhs, percebendo as condições históricas
de que sua região, o Punjab, seria repartida em duas partes, também se rebelaram e buscaram a independência de seu
país como o Khalistão, assim como também ansiaram outras minorias expressivas na Índia entre os nagas,
caxemirenses, pathans e bengalis. A violenta fragmentação assombrava as perspectivas de uma Índia independente.
Nehru, ciente da urgência dos tempos, concluiu as negociações com Jinnah em 3 de junho de 1947 para a formação
de um estado independente do Paquistão a noroeste e nordeste indiano, almejando assim acalmar os ânimos da
numerosa comunidade muçulmana. Mountbatten, por sua vez, após endossar as negociações entre as partes,
sinalizou a completa retirada britânica até 15 de agosto de 1947.
A Partição e a Independência
Com o objetivo de mapear e delimitar as novas fronteiras entre o Paquistão e a Índia, o governo britânico formou
uma Comissão de Fronteira sob a presidência de um funcionário público e advogado, Cyril Radcliffe (1899 - 1977).
Sua meta com a comissão era estudar em cinco semanas a composição religiosa das comunidades nas regiões de
fronteira e definir os locais de maioria hindu e sikh contra aquelas de maioria muçulmana. Assim, seria delimitada a
linha de separação entre os novos estados independentes. Diante de tal impetuosidade histórica, milhões de pessoas
abandonaram suas casas e negócios, temendo as represálias comunitárias religiosas entre agosto e dezembro de
1947. Hindus e sikhs fugiram das áreas definidas como de maioria muçulmana, e estes abandonaram áreas julgadas
contrárias. Uma grande tragédia estava sendo anunciada. Ao final das migrações forçadas, principalmente nas
regiões do Punjab e Bengala, estimados 15 milhões foram deslocados, com até dois milhões de mortos [467]. A maior
migração forçada da história da humanidade, com a omissão e inatividade das tropas britânicas na Índia (mapa).

Mapa - Migrações da Partição de 1947. Setas azuis são de muçulmanos e vermelho, hindus e sikhs.

Na iminência dessa crise humanitária, Mountbatten convocou tardiamente uma conferência com os regentes dos
estados principescos em meados de 1947. Foram informados de que seriam os novos governadores (rajpramukhs)
[468]
, e que teriam que optar por uma integração ou acessão à Índia ou ao Paquistão. De fato, o encontro foi fruto de
uma série de negociações anteriores que tinham antes sugerido o direito à separação e autonomia, o que
efetivamente não ocorreu, pois a maioria dos estados principescos decidiu se juntar à Índia, incluindo com certa
relutância da Caxemira e Jammu que era governada por um regente (marajá) de dinastia hindu, Hari Singh (r. 1925 -
1961), sobre uma população de maioria muçulmana [469].
Em último momento, a Comissão de Fronteiras finalizou suas atividades e definiu as fronteiras paquistanesas
com a Índia. Estabeleceu um Paquistão composta pelas províncias do Baluchistão, Fronteira Noroeste, Sind, parte
ocidental do Punjab (para grande desgosto dos sikhs que tiveram sua região fraturada em dois) e, apartado a mais de
1500 km para o leste, a Bengala Oriental, transformado efetivamente no Paquistão Oriental. Nesses termos, Nehru e
Mountbatten entre outros líderes indianos acreditaram na própria insustentabilidade política futura do Paquistão,
talvez esperando uma futura integração.
A independência do Paquistão foi declarada em 14 de agosto de 1947, com Muhammad Ali Jinnah tornando-se o
primeiro governante paquistanês, que permaneceu com o status de “domínio” [470] dentro dos países que pertenceram
ao império britânico até a constituição de 1956. E visando diferenciar-se do seu vizinho apartado, declarou o urdu
como uma de suas línguas oficiais em escrita perso-árabe (estilo nastal’iq). Em 15 de agosto do mesmo ano, um dia
após o Paquistão, a Índia declarou sua nova vida política sob comando de Nehru. Enquanto Carachi e Delhi
celebravam as festividades de independência, violentos conflitos e manifestações sikhs tomaram as ruas no Punjab e
em outras regiões indianas insatisfeitas com o processo de emancipação. Uma cicatriz que o novo país teria que lidar
nas décadas seguintes.
O nascimento das duas nações se deu de maneira trágica e nervosa, em boa parte pela irresolução e desinteresse
das autoridades britânicas envolvidas depois da Segunda Guerra Mundial. A demarcação e divisão feita pela
Comissão de Fronteiras concretizou a desunião política entre hindus, sikhs e muçulmanos explorada durante o
crescente nacionalismo indiano desde fins do século 19. E nesse sentido, visando conservar os direitos dos
muçulmanos, Jinnah e a Liga Muçulmana exacerbaram ainda mais a desagregação indiana, algo irreconhecível
diante dos tempos do reinado de tolerância e pluralidade do imperador mogol Akbar no século 16.
Um ano depois, em 1948, outro potencial explosivo étnico se deu com a independência da ilha de Sri Lanka, ex-
Ceilão, ao sul indiano. Ilha que decidiu, tal como o Paquistão, permanecer como “domínio” do império britânico até
1972, após o qual se declarou como República. A questão mais sensível que permaneceu foi a grande comunidade
tâmil que habita regiões do norte e leste da ilha [471], algo que será motivo posterior de conflitos étnicos a partir da
década de 1950 em diante.

Mapa político atual da Índia independente e de seus estados e capitais.

Índia e Sul da Ásia (De Nehru a Modi – 1947 – Início do Século 21)
Ao assumir o cargo de primeiro-ministro e declarar o nascimento da República da Índia em 15 de agosto de
1947, Jawaharlal Nehru proferiu um histórico discurso sobre a singularidade dos eventos (fig.) [472]:
Há muitos anos fizemos um encontro com o destino, e agora chegou o momento em que devemos resgatar o nosso compromisso (...). Ao bater da
hora em meia-noite, quando o mundo dorme, a Índia despertará para a vida e a liberdade. Chega-se um momento, raro na história, quando partimos
do antigo para o novo, quando uma era termina, e quando a alma de uma nação, por muito tempo reprimida, encontra a sua plena expressão.
Pertinente para este momento solene em que assumimos o compromisso de dedicação ao serviço da Índia e seu povo e para a causa maior da
humanidade (tradução nossa).

Fig. – Nehru no discurso de independência indiana de 15 de agosto de 1947.

A grandiloquência das palavras de Nehru, todavia, tinha que se defrontar com uma vontade titânica frente aos
desafios de consolidar uma democracia indiana. Deveriam as novas lideranças propor um novo projeto de
desenvolvimento nacional conjugando a inclusão de uma sociedade estratificada e desigual, diversificada em termos
étnicos, linguísticos e religiosos. Haveriam de buscar um delicado processo de consenso e unidade política num país
perigosamente propenso a múltiplas lealdades regionais com base histórica.
Os Estados Principescos e a Adesão
Entre os primeiros desafios políticos do governo de Nehru foi de integrar ao novo país os mais de 500 estados
principescos. Alguns autores apontam para um total de 521, outros em 565. Mas o fato é que a escala é monumental,
uns do tamanho de grandes países europeus como a Caxemira e Hyderabad. Outras, meras aglomerações de uma
dúzia de vilarejos [473].
Em 1946 e 1947, nos momentos anteriores à independência, o CNI sob Nehru organizou uma série de
conferências visando negociar com os regentes desses estados principescos. Foi graças à tenacidade e pragmatismo
de Vallabhbhai Patel (1875 – 1950), nomeado como um dos principais ministros de Nehru, o do Interior, que as
diversas lideranças indianas foram convencidas a negociarem com o nascente estado indiano. Um dos primeiros
regentes a ser integrado à Índia foi o marajá de Bikaner, Sadul Singh (1902 – 1950), que serviu de guia e exemplo
para os outros líderes rajputs da região norte indiana. A pronta lealdade se deveu por razões históricas, pois eram
tradicionais aliados aos indianos e rivais das ameaças muçulmanas advindos do Afeganistão e regiões a noroeste da
Índia.
Um hábil funcionário de carreira foi designado ao projeto de integração política e de costurar as novas alianças
na transição indiana, Vappala P. Menon (1893 - 1965) (fig.). Menon foi essencial ao intermediar as vaidades dos
regentes indianos, a serem mimados com generosas ofertas de títulos e fundos, e as necessidades prementes de Patel
e do governo. Como mecanismo jurídico, Patel e sua equipe elaboraram o chamado Instrumento de Adesão, em que
era dada a possibilidade dos estados regentes a transferirem seu controle sobre os assuntos de defesa, relações
exteriores e comunicações para o novo governo em Delhi.

Fig. – Vappala P. Menon, figura chave para as negociações da Índia independente.

Em 15 de agosto de 1947, à época do discurso de Nehru, a maioria dos estados principescos havia concluído as
assinaturas de adesão. Tal quadro resultou, em grande parte, de uma sutil e sagaz manobra de Patel e Menon em
convencer os regentes apresentando-lhes as perspectivas de ajuda econômica e assistência militar, além dos
honorários (privy purse, uma espécie de abono concedido para os gastos do regente) e títulos. Em caso de negativa
de adesão, os negociadores do CNI indicavam a eles as possibilidades de iminentes revoltas populares por maiores
demandas democráticas questionadoras do tradicional status régio da região [474].
Mas nem todos aderiram prontamente ao pacto proposto pelo novo governo. Travancore, no extremo sul indiano,
foi um dos primeiros estados a questionar os termos da adesão. Era uma importante e estratégica unidade política,
com longa tradição marítima e com importantes reservas minerais de monazita, essencial para a extração do
elemento tório usado na produção de energia e armamento atômico.
O governante de Travancore, o primeiro-ministro do reino, o diwan C. P. Ramaswami Iyer (1879 - 1966) jogou e
barganhou com as contrapropostas de relações privilegiadas feitas por Jinnah do Paquistão caso fosse independente.
A sorte do destino aos interesses de Delhi somente veio após a tentativa de assassinato de Iyer em 25 de julho de
1947. Após o evento, Iyer foi afastado do poder pelo marajá de Travancore que foi convencido a conciliar e ceder
aos termos de adesão, decisão tomada em 30 de julho [475].
Um segundo estado que rejeitou em primeiro momento a adesão foi Bhopal. Localizado na região central
indiana, esse estado combinava uma maioria de sua população hindu sob um regente muçulmano. Desde 1944, o
nababo Hamidullah Khan (1894 - 1960) era um feroz oponente do CNI e próximo aos ideais islamistas da Liga
Muçulmana. A mudança política veio em 30 de abril de 1949 após insistentes pedidos por parte de Lord
Mountbatten, o ex-vice-rei indiano, um velho amigo seu de juventude de polo [476].
Caso mais curioso foi o de Jodhpur, em que um regente hindu reinava sobre uma larga população de mesmo
credo. O jovem marajá Hanwat Singh (1923 - 1952) inicialmente tinha sinalizado favoravelmente à adesão indiana,
mas depois resolveu buscar melhores ofertas políticas pelo lado paquistanês, a barganhar os termos de Delhi e
Carachi. Após alguns atos de destempero juvenil e rompantes (em um deles foi buscar um revólver e apontou para a
cabeça de um representante indiano do CNI), o marajá decidiu assinar os termos de adesão à Índia [477].
O caso de Junagadh, na região ocidental indiana, foi um mais sério de contestação. O nababo Mahabat Khan III
(1900 - 1959) era um muçulmano que regia sobre uma maioria hindu e tinha três fronteiras com estados hinduístas
no Gujarate. Apenas a quarta fronteira, a oeste dava acesso amplo ao Mar Arábico através de seu porto principal,
Veraval. E dentro de seu território encontravam-se importantes santuários e templos hindus, como o em Somnath, e
jainistas em Girnar, locais de atração de milhares de peregrinos de todas as partes da Índia.
Em 14 de agosto de 1947, o nababo de Junagadh foi convencido por um de seus ministros, o diwan Shah Nawaz
Bhutto, um partidário da Liga Muçulmana, a se manter afastado da união indiana e a aceder ao Paquistão. O que não
fazia sentido geográfico e religioso, pois Junagadh não guardava fronteiras com as terras paquistanesas e 82 % de
sua população eram hindus. Sendo assim, num primeiro momento o nababo decidiu juntar-se ao Paquistão,
enfurecendo Patel que vinha da mesma região e assim buscou aliados tributários do nababo visando rever a decisão
política tomada pelo regente. Menon, por sua parte, articulou lideranças locais para organizar um plebiscito a
respeito. O nababo, diante da ameaça militar indiana e de ser deposto por vontade popular de maioria hindu, decidiu
voltar atrás e assinou contrato com a Índia em 9 de novembro de 1947 [478].
Hyderabad tinha um regente também muçulmano sobre uma maioria hindu. Mas esse estado, ao contrário de
Bhopal e Junagadh, era uma enorme entidade política que, se perdida, efetivamente bloquearia o acesso do norte
indiano ao sul. O nizam de Hyderabad, Osman Ali Khan (1886 - 1967), alimentava grande ambições em ter relações
próximas com o Paquistão muçulmano, a contrabalançar a influência indiana próxima ao seu reino. Sendo assim, o
regente decidiu por bem não aderir aos termos apresentados até 15 de agosto de 1947. O que gerou um ambiente de
impasse e de iminentes mobilizações militares do estado indiano diante do exército local organizado pelo nizam, os
chamados razakars [479]. Diante de tal situação, Patel decidiu mandar tropas militares para a região antes que a
situação se tornasse ainda mais crítica, e derrotaram em confronto as forças rebeldes e militares de Hyderabad, com
estimado dezenas de milhares de mortos [480].
A Questão da Caxemira e Jammu
O caso mais grave de todos nesse cenário de transição política indiana foi o do estado de Jammu e Caxemira
(mapa). Um estado maior em extensão que Hyderabad, com uma população de quase quatro milhões à época e com
uma heterogeneidade geográfica e cultural. No fértil vale da Caxemira, predominava-se a população muçulmana, ao
contrário da premência hindu no Jammu, mais ao sul. Ademais, o regente, o marajá Hari Singh (1895 - 1961),
advinha de uma dinastia rajput hindu, o dos Dogras, que somente conseguiu assegurar-se da região em meados do
século 19 negociando com as autoridades britânicas de então, sob o Tratado de Amritsar de 1846.
Mapa religioso da região da Caxemira (verde, com maioria muçulmana) e Jammu (azul, maioria hindu) no norte da Índia.

A localização desse estado guardava uma singularidade estratégica preocupante para as autoridades em Delhi.
Pois era amplamente contígua ao Paquistão ao oeste e tinha grandes fronteiras com as altas montanhas de Ladakh,
no Tibete budista ao leste. Sua menor fronteira, de fato, era ao sul com a Índia. Para agravar a situação, o marajá
tinha antipatia com Nehru que vinha de uma abastada e poderosa família da região de brâmanes caxemirenses
pandits [481], pois o premiê indiano era aliado a um popular político local de cunho socialista, Sheikh Abdullah (1905
- 1982), que tinha organizado em 1946 um amplo movimento popular (o “Deixem a Caxemira”) visando o fim da
anacrônica Dinastia Dogra [482]. Mas isso não tornava o marajá propenso a Jinnah, pois também não simpatizava com
os anseios islamistas da Liga Muçulmana.
Em junho de 1947, diante da dual alternativa de se juntar ao Paquistão ou à Índia, Hari Singh decidiu por
nenhum, após de ter sido visitado por Lord Mountbatten em Srinagar, buscando manter sua plena independência.
Então, em 15 de agosto de 1947, Jammu e Caxemira decidiu por não aceder à Índia, mas propor um acordo de status
quo (standstill agreement), mantendo a liberdade de transporte, comércio e de pessoas através das suas fronteiras. O
Paquistão assinou tal acordo, mas a Índia decidiu aguardar para negociar outras propostas políticas. As relações com
os paquistaneses logo se deterioram, por desentendimentos nas fronteiras. Diante dos impasses, o impaciente marajá
demitiu seu primeiro-ministro, Ram Chandra Kak, (1893 - 1983) que buscava uma maior independência do seu
estado e nomeou para seu ministério principal o juiz do Punjab, Mehr Chand Mahajan, que era favorável às
lideranças do CNI e Nehru [483].
O governo de Carachi naturalmente esperava a adesão, com o tempo, da Caxemira com sua maioria populacional
muçulmana. Delhi, por sua vez, pensava que os fatores religiosos eram irrelevantes, pois o projeto político indiano
era essencialmente laico e diversificado religiosamente.
Os eventos na Caxemira começaram a ganhar ares dramáticos em 22 de outubro de 1947, quando uma força de
milhares de homens invadiu o estado da Caxemira a partir do norte, e se dirigiram para a capital, Srinagar. A maioria
desses invasores eram Pathans, etnia advinda da Província Noroeste em parte incorporada ao Paquistão. A questão
crucial era quem os ajudou e organizou e quais foram os motivos dessa invasão, algo que sempre permaneceu no
fulcro das discussões sobre a disputa da Caxemira.
O fato é que já havia descontentamentos populares na Caxemira antes dessa invasão, principalmente entre
muçulmanos do distrito de Poonch, a oeste de Srinagar, contra o marajá devido ao aumento de impostos sobre seus
habitantes. Para agravar, a maior parte dos soldados caxemirenses que serviram ao comando britânico na Segunda
Guerra Mundial era de Poonch, que na volta de suas campanhas de guerra trouxeram um perigoso elemento de
disciplina e experiência de combate. E foi em Poonch que, em 14 de agosto de 1947, várias bandeiras na região do
Paquistão foram hasteadas, provocando diversos embates entre os habitantes armados locais, com armas e munições
aparentemente fornecidos por fontes paquistanesas, e as tropas do marajá Hari Singh [484].
Diante da crise e com as tropas rebeldes já próximos a Srinagar, o marajá mandou Sheik Abdullah como seu
representante a Delhi. Nehru, diante dos pedidos, decidiu mandar tropas militares para a Caxemira a partir de 27 de
outubro. Os conflitos se estenderam por alguns meses, resultando numa vitória inconclusiva para o lado indiano no
fim de 1948, pois o marajá Hari Singh decidiu aceder à Índia em acordo assinado em 26 de outubro de 1947 visando
assegurar seu trono e proteção contra ameaças muçulmanas. Assim foi encerrado o primeiro conflito armado na
Caxemira.
No plano diplomático, Jinnah ficou furioso com a intervenção indiana na Caxemira. Mountbatten então sugeriu a
realização de um plebiscito popular organizado pelas Nações Unidas a decidir sobre o futuro político da região.
Nehru endossou tal decisão, seguro de que muitas comunidades muçulmanas decidiriam permanecer sob governo
indiano. Assim, aprovada a Resolução 47 em 21 de abril de 1948, o Conselho de Segurança da ONU exigiu a
retirada das tropas militares indianas e rebeldes armados visando um clima adequado para a votação, algo que
permaneceu contencioso entre Carachi e Delhi pelas décadas vindouras e casus belli de subsequentes conflitos
armados entre os dois países independentes. O argumento defendido pelo governo paquistanês se pauta no acordo de
status quo assinado com o marajá em agosto de 1947, e sobre a vontade da maioria da população muçulmana. O
lado indiano, por sua vez, entendeu que houve acordo de acessão assinado pelo marajá Hari Singh em 26 de outubro
de 1947 e de que as invasões ocorridas foram financiadas e organizadas por fontes paquistanesas em 22 de outubro
de 1947 [485]. Ao concluir sobre as rivalidades sobre a Caxemira, Korbel escreveu: “uma luta intransigente e talvez
inconciliável de dois modos de vida, dois conceitos de organização política, duas escalas de valores, duas atitudes
espirituais” (tradução nossa) [486].
A Assembleia Constituinte
As deliberações para a elaboração de uma nova constituição indiana foram inauguradas em dezembro de 1946 e
foram até fins de 1949. A nova constituição entrou em vigor a partir de janeiro de 1950. A Carta Magna resultou em
395 artigos, uma das mais extensas do mundo. Sua elaboração foi resultado de diferentes visões filosóficas,
religiosas, econômicas e políticas, a demonstrar a pluralidade e o espírito coletivo do ambiente indiano de então.
Os primeiros encontros da Assembleia Constituinte se deram a partir de fins de 1946, com grande expectativa
dos membros presentes. Dominado pelas figuras de Nehru, Patel e dos membros do CNI, foi dada também voz e
participação a todo o espectro da sociedade e política indiana, desde Sarat Chandra Bose (1889 - 1950) da Bengala,
irmão mais velho de Subhas Chandra Bose, aos representantes dos estados principescos, ateístas, lideranças
religiosas, socialistas, representantes de todas as castas sociais e das mulheres.
A demanda primordial dos radicais hinduístas do partido político de Calcutá, o Varnashastra Swarajya Sangh
(VSS), foi em torno de conceber um estado em torno dos princípios hindus, proibindo o abate de bovinos e o
expresso fechamento na Índia de todos os abatedouros. Os deputados das castas mais marginalizadas exigiram fim
das discriminações das castas mais altas, e cotas reservadas no legislativo e no funcionalismo público. As minorias
linguísticas e religiosas pediram salvaguardas especiais. Essas demandas atestaram a diversidade heterogênea da
Índia.
A atuação de Patel foi a mais determinante nas negociações na Constituinte. Um homem de paciência política e
negociador nato que intermediou os pontos de vista conflitantes nos encontros, a equilibrar a demanda da maioria do
CNI, das visões secularistas de Nehru, contra as numerosas minorias indianas, cada qual a reivindicar seus direitos.
Talvez disso tenha sido seu maior trunfo, a de que nenhuma minoria foi privilegiada na constituição indiana. Junto
com Patel, foi nomeado como presidente da Assembleia Constituinte, Rajendra Prasad, cuja serenidade foi
fundamental a presidir as diversas sessões a conciliar os interesses diversificados.
Mas o maior brilho adveio do Dr. B. R. Ambedkar (fig.), um advogado da casta dos dalits, que se tornou no
Presidente do Comitê para a Elaboração da Constituição Indiana. Ambedkar, no comitê, foi auxiliado por uma
notável equipe, um polímata de Gujarate, K. M. Munshi (1887 - 1971), e um advogado tâmil experiente da região de
Madras, Alladi Krishnaswami Aiyar (1883 - 1953). Além desses, destacou-se a atuação de B. N. Rau (1887 - 1953),
que foi estudar e buscar outras constituições pelo mundo a fundamentar a nova carta política fundamental [487].

Fig. - Bhimrao Ramji Ambedkar.


Foram dois eixos principais a serem conciliados na escrita da constituição. O aspecto nacional, de fundamentar a
união política, a democracia e a liberdade dos indianos. Outro vetor foram as questões sociais, a resguardar os
direitos de emancipação, inclusão e igualdade social, voltados às minorias étnicas, mulheres e as da baixa casta,
historicamente desprovidos de participação política.
Nesse sentido, Ambedkar enfatizou de que os direitos políticos indianos deveriam ser, antes de tudo, baseados no
indivíduo, e não em grupos e categorias coletivas. Em suma, a nova constituição expressou que o estado indiano não
deveria privilegiar nenhuma crença sobre as demais, o que resultou em conflitos contra grupos religiosos mais
articulados como os hinduístas. Acima disso, o estado teria prerrogativas de planejar sobre todos os recursos e da
arrecadação fiscal de toda a nação, e de intervir e distribuir de acordo com seus planos, a não depender das vontades
políticas de cada localidade, o que conferiu à Carta ênfase na unidade acima das suas partes constituintes. Foram
aprovadas cláusulas que garantiram ao estado sobre assuntos de segurança e ordem pública que, em casos de crise e
decretado Estado de Emergência, os direitos constitucionais poderiam ser suspensos para tal fim [488].
Apesar da centralidade unitária afirmada na nova constituição, houve considerável atenção aos direitos das
minorias, dando teor ao aspecto social da carta política. Para tanto, um deputado de Madras continuou a defender as
vagas políticas reservadas às minorias, em especial à numerosa comunidade muçulmana indiana que temia ser
dominado por um eleitorado de maioria hindu [489]. Essas demandas desagradaram Patel, que concebia as cotas como
sinal das divisões indianas do passado colonial.
A vulnerabilidade dos direito das mulheres foi também assunto de considerável debate na Constituinte. Os
membros femininos na Assembleia, como Hansa Jivraj Mehta (1897 - 1995) de Bombaim, defenderam os plenos
direitos iguais, políticos e jurídicos, sem cotas e reservas. Naturalmente, houve viva oposição dos conservadores
indianos, principalmente aqueles advindos de partidos hinduístas mais radicais como o Rashtriya Swayamsevak
Sangh (RSS) (Organização Patriótica Nacional).
Os direitos políticos e sociais da casta dos intocáveis (dalits), contudo, foi considerado à parte, como
peculiarmente grave diante dos séculos de discriminação. Seguindo os ideais de Gandhi que considerava que a plena
autonomia indiana, swaraj, só viria após assegurar os direitos de todos da sociedade indiana, Ambedkar negociou
para assegurar assentos legislativos, assim como lugares no funcionalismo e nos cargos públicos, dos intocáveis. Ou
como se expressou no assunto um deputado de Madras:
A justa reputação da Índia foi insultada e manchada por ter a intocabilidade (...) [G]randes santos tentaram o seu melhor para abolir a intocabilidade
mas é dada a esta augusta Assembleia e a nova Constituição a possibilidade de expressar em alto tom que não deverá haver mais intocabilidade em
nosso país (tradução nossa) [490].

Outras minorias não foram contempladas com a mesma consideração que os intocáveis. Como os adivasis,
membros de grupos étnicos de regiões de difícil acesso, como florestas e montanhas, que foram representados na
Assembleia por Jaipal Singh, de Chotanagpur do sul do estado de Bihar [491]. Na perspectiva desse grupo, a união
indiana expressou mais a unidade dos grandes grupos políticos tradicionais, hindus, muçulmanos e setores da
sociedade urbana e latifundiários contra as nações indígenas tradicionalmente ignoradas pela Índia.
O assunto mais polêmico e delicado tratado nos encontros da Assembleia Constituinte foi a questão das línguas,
fruto da diversidade histórica e cultural indiana [492]. Qual seria a língua usada nas instâncias políticas e públicas na
Índia independente? Em qual língua nova constituição seria escrita? O certo é de que o meio de comunicação, a ser
considerada “nacional”, teria que ser uma língua amplamente falada e compreendida pelo governo e território
indiano.
Em algumas sessões da Assembleia, alguns membros pressionaram para que o hindustani [493] fosse considerada
como a oficial do governo, algo que foi rejeitada pelo Comitê de Elaboração, alegando que o inglês, por ora, seria
mais adequado pois ofereceria os termos técnicos e legais mais precisos para a elaboração do novo documento
constitucional. Ademais, o inglês foi usado por séculos pela administração colonial britânica como a língua do
governo e da educação superior na Índia.
A maioria dos membros do norte indiano, contudo, alguns dos quais visando favorecer as supostas raízes
históricas indianas livres da influência islâmica, e contrariados com a partição do Paquistão, pleitearam a língua
hindi, em alfabeto derivado do sânscrito, como a língua oficial da Índia. O que gerou amplos protestos da
comunidade muçulmana e daqueles políticos do sul indiano, que viram no hindi uma forma de dominação nortista
indiana. Para estes, melhor seria o uso do inglês do que alguma forma de expressão advinda de certas regiões
indianas.
A Assembleia, em último momento, chegou a uma solução temporária. O hindi em forma sanscrizada, foi
considerado oficial, mas seria assim considerada como oficial após um prazo de quinze anos, depois de 1965. Até lá,
o inglês serviria de expressão burocrática e base para as instâncias governamentais e jurídicas, e para o tempo
necessário de efetivação da nova constituição [494].
Ao final, a constituição indiana deu à Índia um governo republicano parlamentarista, a ser governado por um
primeiro-ministro a ser nomeado pela maioria do parlamento, a Câmara Baixa ou Lok Sabha. Para ser chefe de
governo, o primeiro-ministro teria que garantir a maioria, e poderia ser removido em caso de falta de maioria
parlamentar ou ingovernabilidade. As eleições nacionais indianas ocorreriam de cinco em cinco anos apenas quando
houvesse falta de governabilidade parlamentar. Em casos extremos de impasse político, o presidente, uma figura
com poucos poderes efetivos políticos a representar os interesses da Índia no exterior, mas sem poderes executivos,
poderia indicar um novo primeiro-ministro [495].
Governo de Nehru
A nova constituição entrou em vigor em 26 de janeiro de 1950. Nela foram manifestadas todas as contradições e
vontades políticas do espectro indiano. Ao final, prevaleceram as ambições de Nehru, ao almejar uma nova unidade
indiana, laica, secular, tolerante e com poderes centralizados num estado planejador a delinear estratégias
desenvolvimentista. Patel foi o homem crucial nas ligações políticas e negociador entre as desavenças. Esse grande
talento político veio a morrer em 15 de dezembro de 1950.
Mas o que deixou órfão toda a nascente nação indiana, ou boa parte dela ao menos, foi a morte por assassinato de
Mohandas Gandhi, o Bapu (“pai” em gujarati, referido também como Gandhiji pelos indianos) em 30 de janeiro de
1948, em pleno andamento da constituinte. Foi morto por um extremista hindu que agiu convicto de que a Índia
tinha cedido demais para a partição do Paquistão e da comunidade muçulmana. Eis que tinha revelado um lado
latente e sombrio da Índia, a força de grupos e interesses extremistas e negar o contexto tolerante e diversificado que
acompanhou a história indiana. A popularidade e força carismática de Gandhi, muito além dos círculos políticos,
foram demonstradas no seu funeral em Delhi, no comparecimento de mais de dois milhões de indianos em luto no
caminho do cortejo pela cidade. Os restos cremados desse homem foram espalhados pelos inúmeros rios e
localidades sagradas da Índia [496].
Nehru consolidou-se no cargo de primeiro-ministro da Índia independente em cima de uma constituição
aprovada por ele, Patel e de seus acólitos no CNI. Seu mais sério oponente político em 1950, o conservador
Purushottam Das Tandon (1882 -1962) e seguidor de Patel, havia sido desbancado pela liderança no CNI nas
eleições partidárias de 1951 e 1952. O CNI era maioria parlamentar e o poder de Nehru estava inconteste e livre para
seu sonho político. Poucos partidos e líderes do mundo após a independência colonial no século 20 tinham tal
predomínio político. A Liga Muçulmana, por sua vez, ocupou o poder do nascente Paquistão, mas esse país depois
da morte de Jinnah em setembro de 1948 entrou num período de disputas pelo poder e instabilidades.
Diante do poder Nehru passou, a partir de 1950, a definir sua estratégia de desenvolvimento econômico e político
da nova nação. Durante os últimos anos da Segunda Guerra Mundial, líderes do CNI tinham já esboçado alguns
planos com industrialistas indianos, entre eles amigos de Gandhi, como Ghanshyam Das Birla (1894 - 1983) e
Jehangir R. D. Tata (1904 – 1993), num prazo de quinze anos, conhecido como o Plano de Bombaim. O plano
enfatizou os investimentos públicos em setores da infraestrutura e da indústria pesada visando criar uma base para o
futuro desenvolvimento indiano. O setor privado, por sua vez, foi relegado a setores da economia de baixo
investimento que teriam um retorno do investimento mais rápido. Um quadro econômico misto, portanto, emergiu
na Índia nos anos após a independência. Almejava assim Nehru tornar a Índia numa economia industrial sustentável.
Mas isso não foi tão fácil. Houve resistências da velha classe latifundiária indiana, além da numerosa classe
camponesa cuja pobreza não a tornou com poder aquisitivo suficiente para se tornar num amplo mercado de
produtos industriais. A reforma agrária, que tinha uma prioridade alta na agenda de Nehru desde suas campanhas
iniciais da década de 1930, não resultou em grande mudança na estrutura fundiária desigual desde os tempos da
Índia Britânica. As reformas no campo provaram ser mais complexas e resistentes a mudanças do que se imaginava,
pois dependia de uma rede de dependências e servidão difíceis de romper, apesar de ter sido propostas reformas
agrárias mas sem grande impacto rural, como as do movimento popular liderado por Vinoba Bhave (1985 – 1982),
considerado como o sucessor espiritual de Mohandas Gandhi diante dos olhos populares.
A imobilidade das reformas agrárias tornou Nehru impaciente nos seus planos de redistribuição de terras
agrícolas. Diante disso, radicalizou em discurso que proferiu em 1955 no Congresso, na chamada Resolução Avadi.
Neste foi proposto um novo programa mais radical de justiça rural, visando atender à numerosa classe camponesa
indiana que tinha votado em peso para os delegados do CNI. Assustados, alguns camponeses e proprietários rurais
mais conservadores começaram a migrar seus votos para um partido fundado em 1959 em Madras por um ex-
membro desiludido do CNI, Chakavarti Rajagopalachari (1878 - 1972), o Partido Swatantra [497]. Uma perigosa
iniciativa política de dissidência conservadora entre o eleitorado rural indiano.
Mas talvez o maior perigo longe do controle político do CNI na Índia se deu no estado de Kerala com a eleição
de Elamkulam M. S. Namboodiripad (1909 - 1989) do Partido Comunista Indiano. Este político, eleito em 1957
como primeiro-ministro de Kerala, se tornou num dos mais populares políticos indianos decorrente de suas reformas
agrárias e educacionais, resultando nos melhores indicadores sociais indianos [498]. Além de Kerala, os comunistas
indianos tinham conseguido proeminência na região ocidental de Bengala, e entre sindicatos e alguns setores afins
em grandes centros industriais.
Do outro lado do espectro político a ameaçar o domínio do CNI de Nehru, situava-se o Partido Bharatiya Jana
Sangh (Associação do Povo Indiano) que defendia uma abordagem mais hinduísta para a Índia. Sua ênfase no hindi
como língua nacional deixou esse partido impopular entre os indianos do sul e restrito a regiões setentrionais
indianas falantes do hindi. Sua base social consistia basicamente de comerciantes urbanos e de punjabis refugiados
depois da partição. Boa parte de seus militantes advieram do Partido Rashtriya Swayamsevak Sangh, associação a
qual o assassino de Mohandas Gandhi, Nathuram Godse, pertenceu. O Bharatiya Jana Sangh, fundado por membros
proeminentes de brâmanes bengalis em 1951, se tornou na mais séria ameaça à direita ao governo de Nehru, partido
que depois se tornará no Partido Bharatiya Janata (doravante BJP) em 1977. Mas mesmo diante das ameaças vindos
do espectro da esquerda e da direita, a CNI conseguiu assegurar maioria parlamentar na Câmara Baixa Indiana (Lok
Sabha) nas eleições indianas de 1952, 1957 e de 1962, e Nehru manteve-se como primeiro-ministro por quase 17
anos.
Nas reformas administrativas, o governo indiano em 1956 visou, a atender e conter as insatisfações de indianos
das regiões centrais e meridionais, reformar as fronteiras dos estados indianos. Diante disso, foi proposta uma
revisão das unidades do país visando atender as especificidades históricas e linguísticas de cada região, na Lei de
Reorganização dos Estados de 1956.
A primeira mudança se deu na fragmentação do estado de Madras, que agrupava quatro grandes línguas de
origem dravidiana. Os falantes do telugo de Andhra reivindicaram uma unidade própria na federação desde os
primeiros tempos políticos de Mohandas Gandhi, e Nehru buscou evitar o assunto com medo de balcanizar a união
indiana. Mas o fato veio à tona na década de 1950, quando foi formada uma Comissão de Reorganização dos
Estados em 1953. Outro estado que tinha se manifestado pela revisão das fronteiras estaduais foi o de Kerala, pois
além de ter tido um popular governo comunista local, era composto em boa parte por falantes do malaiala,
comunidade linguística que também tinha numerosa comunidade nos estados vizinhos como na região meridional de
Madras.
O problema mais evidente a ser equacionado pela Comissão de Reorganização foi a divisão da região de
Bombaim, que era uma antiga província presidencial na Índia Britânica. Havia nesse estado uma clara distinção
entre dois grandes grupos linguísticos, os falantes do gujarati ao norte e os maratas ao sul. As dificuldades de cisão
desse estado se deram em cima da cidade de Bombaim, pois boa parte de sua indústria e comércio pertenciam a
empresários gujaratis, apesar da cidade se situar no meio de uma região de maioria falante do marata. Nesse sentido,
Mohandas Gandhi tinha proposto um status especial para a cidade de Bombaim, mas que não contou com a simpatia
de Nehru. As reformas em Bombaim somente se deram depois da crescente atuação de um partido regional, o
Samyukta Mahashtra Samiti (Sociedade pela União de Maarastra), que ameaçou a maioria do CNI no estado. A
solução somente se deu em 1960, com Bombaim se tornando a capital do novo estado de Maarastra.
No plano externo, Nehru conduziu a Índia de acordo com seus ideais de autonomia e pacifismo no contexto
nascente da Guerra Fria. Apesar das suspeitas geradas aos olhos do governo dos EUA, Nehru não se alinhou
ideologicamente aos desígnios da União Soviética, apesar de na sua juventude ter alimentado viva admiração pelas
lutas bolchevistas por maior igualdade social. E fez questão de mandar como embaixadora em Moscou sua irmã,
Vijayalakshmi Pandit, em abril de 1947.
As relações vizinhas com o Paquistão revelaram-se mais prementes para a agenda internacional indiana. O fato
do Paquistão independente e dividido em duas partes, uma a noroeste da Índia e outra próxima a Bengala no leste,
juntamente dividia fronteira com a Índia em mais de 1600 km. Pela ótica paquistanesa, a vulnerabilidade diante de
Delhi era evidente demais e, com isso, buscou aliança militar juntos aos EUA já em 1954. Nesse sentido, o problema
da Caxemira, ponto de maior tensão entre os dois países asiáticos, foi internacionalizado no contexto da Guerra Fria.
O que desagradou as autoridades indianas que sempre consideraram a questão como algo doméstico e regional.
Nehru buscou se afirmar no plano internacional como um líder mediador, e manifestou-se assim ao mandar
mensagem ao Secretário de Estado dos EUA, Dean Acheson, à época da Guerra da Coreia (1950 – 1953). Também
agiu dessa maneira nos momentos que deram fim aos conflitos entre vietnamitas comunistas (Vietminh) e os
franceses na Conferência de Genebra de 1954.
O ponto mais alto da diplomacia de Nehru adveio em abril de 1955, com a Conferência de Bandung (fig.), em
que vários líderes afro-asiáticos se reuniram e propuseram um novo espírito de solidariedade. Ideais que se
conjugaram bem com a filosofia de Nehru de criar um ambiente afro-asiático de paz e cooperação [499]. Sua
visibilidade e postura de liderança mundial estiveram no seu auge, rendendo-lhe visita de estado por parte do
Primeiro Secretário Soviético, Nikita Khrushchev, e do premiê soviético da época, Bulganin, no referido ano a
proporem maior proteção e aliança contra ameaças vizinhas e internas [500].
Fig. – Um sonho a ser conquistado, a liberdade dos países recém-independentes no contexto da Guerra Fria. Nehru (esq.) com chefes de estado de
Gana (Nkrumah), Egito (Nasser), Indonésia (Sukarno) e Tito (Iugoslávia) na Conferência de Bandung de 1955.

O maior desafio internacional ao governo indiano se deu nos anos subsequentes a 1955. Nehru tinha vociferado
contra a injusta intervenção ocidental contra o Egito na Crise de Suez, em 1956, mas adotou uma estranha postura de
omissão com relação às intromissões soviética na Hungria no mesmo ano. Seu posicionamento de neutralidade
mundial parecia estar se comprometendo. Em 1957, alguns desentendimentos de fronteira com a China começaram a
ganhar a atenção do governo indiano. A atenção pública maior adveio, no entanto, somente dois anos depois, com a
fuga em busca do asilo político do maior líder espiritual dos budistas tibetanos, o Dalai Lama, para a Índia. Nehru,
diante desses fatos, foi obrigado a dar explicações em 1959 para a Câmara (Lok Sabha), em que relatou a crescente
tensão político entre Delhi e Pequim. Alguns anos depois, os conflitos de fronteira foram inevitáveis.
O que revelou ser um profundo desgosto para Nehru que tinha grande estima pelos acontecimentos na China
desde a ascensão comunista nesse país em 1949. Esperava com isso criar uma grande zona de paz e cooperação
asiática independente das interferências americanas e soviéticas. Em 1950, os chineses ocuparam o Tibete, que tinha
até então sido uma região semi-independente desde os tempos do império britânico. E diante disso, não houve
nenhuma atenção de Nehru com relação a isso, feito somente alguns acordos com relação à livre movimentação de
peregrinos e comerciantes na fronteira assinados com o Tibete em 1954. Mas não houve nenhuma referência à
definição de fronteiras entre a China e a Índia. Tudo pareceu caminhar para uma boa convivência entre os dois
países asiáticos com relação a regiões remotas de divisa.
Contudo, o crescente interesse estratégico da China no Tibete, a ocupação da região a partir de 1959 e o asilo
concedido ao 14º Dalai Lama que se instalou na cidade indiana de Dharamsala mudaram o teor da convivência. As
autoridades chinesas começaram a construir uma série de estradas de acesso ao Tibete, e daí para a região remota da
Cordilheira de Karakorum (região de fronteira com a Caxemira e Jammu) até Sinkiang (Xinjiang) e Mongólia mais
ao norte. Nesse intento estratégico chinês, o acesso deveria passar pela região de fronteira com a Índia, em Aksai
Chin (mapa), gerando a decisão dos dirigentes em Pequim de edificar as estradas em território indiano sem prévia
consulta.
Nesse intuito, os chineses provocaram incidentes em outra fronteira com a Índia mais a leste, ao norte do estado
indiano de Assam, questionando as demarcações feitas por uma comissão de fronteira à época da Índia Britânica e a
China pré-comunista, ao longo da chamada Linha McMahon em 1914. A demarcação feita pela comissão, alegou o
governo de Mao Zedong, não tinha sido propriamente ratificado pelo delegado chinês. A bem da verdade, o assunto
pouco interesse despertou em Delhi e Pequim. Tibete naquele momento ainda estava indefinido em seu status como
uma região autônoma dentro da China. Somente em 1959, a questão do Tibete foi, com efeito, definitivamente
resolvida com o envio de forças ocupantes chinesas.
Mapa das regiões contestadas entre a Índia e China.

A questão de Aksai Chin era bem diferente, era território definido indiano e visto como parte da região das
montanhas Ladakh por séculos, e ao ser publicado um mapa chinês incorporando a região em 1958, causou grande
indignação nas autoridades e público indiano [501]. Assim, Nehru se encontrou numa delicada situação política
exposta a amplas críticas nacionais. Em dado momento, diante da resistência de Nehru em proceder aos conflitos
com os chineses, esgotando todas as medidas diplomáticas anteriores, as autoridades chinesas resolveram atacar
guarnições militares indianas ao norte de Assam em Arunachal Pradesh, em outubro de 1962, gerando perplexidade
do lado indiano. Nessa manobra, os chineses pensaram em causar distração aos indianos diante da ocupação que
estavam realizando mais a oeste, em Aksai Chin, passagem estratégica de ligação do planalto tibetano com o
Sinkiang e Mongólia chinesa. Nesses embates em Arunachal, os indianos tiveram que se retirar diante das ofensivas
chinesas e com as dificuldades de manter uma linha de mantimentos para região de remoto acesso.
Uma grande derrota política para Nehru, que foi considerado como inepto e ingênuo diante da ofensiva chinesa.
O dirigente indiano, em 1962, encontrava-se no momento mais baixo de sua carreira política. Um ano antes, seu
prestígio internacional ainda estava na ascendente, pois tinha decidido forçar a expulsão dos portugueses da parte
velha da cidade de Goa [502], para grande admiração dos líderes afro-asiáticos nos seus esforços anticoloniais. Mas
isso foi o último ato de sucesso de Nehru antes da humilhação diante dos chineses em 1962. Sua saúde a partir de
então se agravou e, passados alguns meses, veio a falecer em maio de 1964. Seu sucessor no poder, provou ser
muito mais incapaz e inexperiente em assuntos internacionais do que ele.
Depois da morte de Nehru, foi escolhido como primeiro-ministro da Índia outro líder do CNI, Lal Bahadur
Shastri (g. 1964 - 1966) que teve uma vida curta no ofício. O que não tornou sua vida política insignificante, pois foi
durante seu governo que a Índia enfrentou mais um conflito bélico de abril a setembro de 1965, resultado de uma
infrutífera operação de invasão paquistanesa, a Operação Gibraltar, que visou gerar uma insurreição armada na
Caxemira e Jammu [503]. A aparente vitória indiana foi um golpe de sorte do novo líder indiano, selada no acordo de
paz assinada em Tashkent em janeiro de 1966 [504]. Mas a tragédia adveio logo nos momentos finais da conferência,
em que Shastri morreu decorrente de um infarto cardíaco.
Indira Gandhi
Indira Nehru Gandhi (1917 - 1984) (fig.), filha de Jawarharlal Nehru, foi escolhida como sucessora política de
Shastri pela maioria dos eleitos no Lok Sabha no início de 1966. Seus primeiros anos de governo, no entanto,
pareceram não ser a ela favoráveis, pois muitos parlamentares ameaçaram debandar para outras lealdades e partidos.
Um dos líderes rivais dentro do CNI que mais ameaçou sua posição foi o gujarati Morarji Desai (1896 - 1995),
adversário que foi derrotado por Indira por uma estreita margem de votos em 1966 [505]. Diante disso, Indira, uma
vez no poder e visando apaziguar os seus críticos dentro do CNI, decidiu nomeá-lo por alguns anos como Ministro
das Finanças. O seu primeiro ano de governo, em suma, foi de duras provações e instabilidades políticas partidárias.
Fig. – Indira Gandhi.

Ano seguinte, em 1967, Indira enfrentou desafios em outras áreas. Partes da Índia foram assoladas por secas que
acarretou em revés agrícola, e também uma recessão industrial, gerando um quadro preocupante de desemprego
entre a juventude indiana. Um quadro que desandou para crescentes protestos sociais contra o governo indiano.
Diante das ameaças políticas e de adversários no parlamento que se articularam para derrubá-la do poder, Indira
procedeu arriscadamente em dividir o CNI buscando marginalizar os seus membros mais conservadores e críticos a
ela, liderados por Desai. Em outro momento, decidiu disjuntar as eleições indianas para o Lok Sabha das eleições
estaduais.
Pretendendo angariar maiores votos populares contra os seus opositores políticos, organizou sua campanha para
as eleições nacionais em 1971 em torno do slogan Garibi Hatao (Abolir a Pobreza), angariando-lhe grande
visibilidade e carisma nacional e desarticulando seus opositores. Ademais, propôs nacionalizar os bancos e rever
todo o sistema de abonos e privilégios (privy purse) concedidos aos ex-regentes dos estados principescos que foram
incorporados ao estado indiano. E foi bem sucedida no amplo programa de distribuição de sementes, projetos de
irrigação, créditos agrícolas, uso de nova tecnologia e fertilizantes visando a numerosa classe de agricultores
indianos, na chamada Revolução Verde [506]. Foi talvez seu maior momento político. Mas, com isso, selou seu
destino político contra as camadas mais conservadoras da sociedade indiana.
No âmbito externo, Indira testemunhou progressivas manifestações sociais na parte oriental do Paquistão, que
tinha perdido nas eleições paquistanesas em 1970 para uma ala política mais favorável aos interesses dos
paquistaneses ocidentais. Nesse sentido, a partir de março de 1971, a comunidade bihari, que tinham apoiado os
ocidentais, começou a sofrer uma série de perseguições e mortes no Paquistão Oriental, provocando uma dura
reação de Carachi ao enviar militares para a região que agravaram ainda mais a instabilidade da região, resultando
em milhares de mortos na comunidade hindu local e milhões de refugiados para os estados indianos vizinhos,
especialmente no estado de Bengala Ocidental [507].
Diante de um quadro preocupante de refugiados em solo indiano, Indira passou a expressar para o público e
organismos internacionais sua solidariedade pelos perseguidos no Paquistão Oriental e aconselhando uma solução
política definitiva para a situação, a independência da região em um novo país. Nesse sentido, conseguiu articular-se
com o General Manekshaw, conhecido à época como “Sam Bahadur”, Chefe do Estado Maior do Exército Indiano,
e apoiou e treinou cerca de 80 mil membros de uma guerrilha rebelde, o Mukti Bahini visando um amplo plano de
invasão. Assim, em três de dezembro de 1971, foi concretizada a ofensiva militar com apoio da marinha e
aeronáutica indiana. A rendição dos comandantes militares paquistaneses se deu em 16 de dezembro [508]. Apesar da
enorme propaganda internacional, não houve significativa interferência nessa curta guerra, apenas manifestada
algum apoio dos soviéticos com relação aos rebeldes bengalis e ao governo indiano. Os EUA, em contrapartida, sob
a presidência de Richard Nixon, que se encontrava em delicada situação nos anos finais da Guerra do Vietnã,
manifestou apenas apoio retórico ao seu aliado nos conflitos, o Paquistão. Ao final das agressões, milhões de
refugiados atravessaram de volta a fronteira para um novo país na região, o Bangladesh. A relativa rapidez e bem
sucedida intervenção indiana na chamada Guerra de Independência de Bangladesh resultou em grande popularidade
de Indira e uma grande perda para o governo paquistanês, que ficou restrito em seu território ocidental [509].
A popularidade de Indira durou até 1973 quando houve uma grande crise energética no país. Consequente do
aumento do preço do barril do petróleo, resultado de uma articulação dos países exportadores de petróleo, houve
significativo aumento do combustível na Índia, provocando um aumento inflacionário pela economia nacional,
encarecendo os fertilizantes no campo e agravando a atividade industrial. Dependente de recursos energéticos
importados, a Índia não tinha investido em fontes próprias de energia, e assim o governo de Indira enfrentou grave
quadro de crise e de greves, especialmente no setor ferroviário, em 1974. O bem sucedido teste de explosão nuclear
no deserto do Rajastão em maio do mesmo ano [510], tornando a Índia como um dos poucos países do mundo a ter o
controle de produção de armamento nuclear, não conseguiu desviar a atenção pública da crise nacional. Ano
seguinte veio uma série de crises políticas a assomar as econômicas. Momento em que a oposição à Indira
organizou-se alegando fraudes eleitorais em 1971, respaldado por uma decisão jurídica da Alta Corte de Justiça de
Allahabad. Nesse sentido, ameaçada no seu cargo de primeira-ministra indiana eleita pela maioria da população
indiana, Indira recorreu dentro das possibilidades constitucionais, e decretou Estado de Emergência Nacional em 25
de junho de 1975, alegando que a crise econômica nacional demandava medidas extraordinárias [511]. A democracia
indiana entrava num dos seus períodos mais controversos.
As medidas de emergência decretadas por Indira, de certa maneira, possibilitou a seu governo contornar os
impedimentos da oposição e de ter livre planejamento econômico da Índia. Por outro lado, foram gravemente
coibidas liberdades civis fundamentais garantidas na constituição indiana, como manifestações de greve e
paralisações. Ademais, o filho de Indira, Sanjay Gandhi (1946 - 1980) começou a organizar politicamente uma ala
jovem do partido do CNI, com o fim de angariar os elementos mais jovens politicamente conscientes da sociedade e
de conter possíveis futuros opositores ao partido [512].
Apesar de suprimidas, as manifestações contra o regime de emergência começaram a ganhar força pela Índia, um
dos mais destacados foi liderado por um político socialista, Jayaprakash Narayan (1902 - 1979), que clamou à
multidão reunida numa praça da cidade de Patna no estado de Bihar em 5 de junho de 1975, por uma mudança
radical na política indiana, movimento este que depois ficou conhecido como o Movimento de Bihar [513].
Diante dos seus poderes de estado de emergência, Indira procedeu em deter preventivamente inúmeras figuras
políticas de oposição pelo país. Em 1976, diante desse delicado cenário político, as eleições previstas no ano foram
adiadas, anunciadas para o ano seguinte, tentando ganhar capital político. Poucas semanas antes das votações
nacionais em 1977, Indira soltou os líderes de oposição, esperando que, ao fazer isso, não teriam tempo para
angariar os votos necessários do campo opositor. Em último momento, um dos aliados a Indira, líder representante
dos intocáveis no Lok Sabha, anunciou a formação de um novo partido político, o Congresso para a Democracia,
agregando o campo opositor de Indira e de seu filho, Sanjay. Foi a primeira vez na história indiana em que foi
reunida boa parte do espectro político opositor do CNI a apoiar um único candidato, Morarji Desai. O CNI nas
eleições do ano perdeu quase 200 assentos no parlamento, 92 dos quais perdidos para o eleitorado do sul da Índia.
Era visível a impopularidade de Indira e de seus aliados na política indiana.
Morarji Desai (g. 1977 - 1979) ascendeu ao poder com base numa ampla e instável aliança de oposição que
depois se congregou em torno de um partido novo, o Partido Janata. Seus anos de governo foram marcados por
graves desuniões internas decorrentes da ampla aliança política feita, entre os quais membros do influente e
conservador movimento Bharatiya Jana Sangh que foram vistos com desconfiança e suspeita pelos outros membros
da aliança política. Além disso, Desai começou a ser considerado como demasiado favorável e próximo ao Jana
Sangh e cada vez mais longe da lealdade ao Partido Janata. Apesar de ter uma impecável reputação pessoal e
histórica, Desai não conseguiu ser um bom líder de partido e foi incapaz de prevenir as crescentes dissensões
políticas entre seus aliados, causando desunião no Partido Janata.
Um dos mais articulados e populares líderes aliados a Desai foi o representante das classes dos empresários
agrícolas, Charan Singh (1902 - 1987), que passou a derivar cada vez mais distante dos compromissos com o novo
governo. Foram organizados amplos protestos no meio rural que, em meados de 1979, resultou na queda política de
Desai e o fim do governo opositor ao CNI. Em 15 de julho, Morarji Desai pediu renúncia como primeiro-ministro. E
nenhum outro líder da aliança opositora, a não ser Charan Singh (g. 1979- 1980), foi capaz de formar um tênue
consenso governamental. Mas a fragilidade e desunião da oposição política ao CNI, orbitando em torno do Partido
Janata, foram claramente evidenciadas.
Nas eleições de 1980, o Partido Janata foi despedaçado em várias correntes e alas diferentes, resultando numa
imobilidade política diante do novo retorno do CNI e de Indira Gandhi nas eleições. Somente Indira conseguiu ter a
proeminência nacional suficiente para garantir a volta do CNI ao poder, uma campanha muito mais de projeção
pessoal da líder indiana, em cima dos escombros da oposição, do que propriamente um triunfo do CNI [514].
Uma vez no poder, Indira obstinou-se em enfraquecer seus rivais políticos em suas campanhas e
pronunciamentos, dispondo das mudanças eleitorais modificadas por ela em 1971 e 1972 que desagregou as eleições
estaduais das nacionais [515]. Em alguns casos, Indira conseguiu seu intento político e fortalecer seus aliados do
partido. Mas em outros estados ela ficou resignada com a derrota eleitoral, como em Karnataka governado por um
político do Partido Janata, Dr. B. M. Hegde, ou no populoso estado de Bengala Ocidental sob governo estadual do
Partido Comunista. Em outros espectros políticos, nas eleições de 1982, houve a ascensão de um novo partido
político, o Telugu Desam, sob a liderança de um popular ator de cinema indiano, Rama Rao.
Preocupava-lhe as perspectivas das eleições nacionais de 1985 para o Lok Sabha, que poderiam ter resultado
desastrosamente como em 1977 para o seu partido e aliados, e Indira tinha entendido que teria que lidar com os
problemas nacionais sem o uso do estado de emergência dessa vez. Ademais, houve crescentes protestos e
inquietações regionais em Assam e Punjab. Em Assam, defrontou-se com o problema de fluxo de refugiados
advindos do Bangladesh, considerado um risco para a percepção popular bengali e assamesa que passaram a
considerar esses novos imigrantes como indesejados e um risco para seus empregos e propriedades, no que depois
foi denominado de Movimento de Assam. Para solucionar tal situação, o governo de Indira propôs realizar um censo
na região e conceder aos recém-chegados o direito de voto, o que granjeou ao seu governo amplo apoio entre a
comunidade de imigrantes nas eleições de 1983 na região [516].
No Punjab, Indira enfrentou um problema ainda mais grave. Sua carreira política iniciou-se em 1966 como
primeira-ministra concedendo alguns direitos políticos às comunidades sikhs da região. Para tanto, ela apoiou a
separação da região mais ao sul do Punjab, de maioria falantes do hindi no estado de Haryana, do restante ao norte
em que os sikhs falantes do punjabi que perfaziam 60% da população. Um dos partidos políticos dos sikhs, o Akali
Dal, decidiu então adotar uma postura mais radical visando maiores concessões de autonomia para a nação sikh, o
Khalistão. Visando conter o radicalismo político, Indira decidiu dividir o movimento político sikh, apoiando o
jovem Jarnail Singh Bhindranwale (1947 - 1984), que depois se revoltou e fugiu do seu controle político. Nesse
sentido, Bhindranwale congregou todos os elementos mais radicais sikhs e tomou rumo ao Templo Dourado na
cidade de Amritsar, um dos locais mais sagrados para a comunidade sikh [517]. E nesse local, em outubro de 1983, os
rebeldes decidiram erguer uma estrutura política independente do governo indiano e passou a edificar com seus
partidários uma fortaleza armada no acesso ao Templo Dourado. Indira, indignada e diante do delicado impasse
político de risco de secessão e insubmissão política, deu então ordens para o exército indiano em reintegrar a posse
do templo a partir de 1º de junho de 1984, na chamada Operação Estrela Azul [518]. Nos confrontos com os militares,
Bhindranwale morreu e foi logo considerado como um mártir. Decorrente dos eventos, Indira Gandhi, após alguns
meses, foi baleada e morta por dois de seus seguranças pessoais, ambos sikhs, em 31 de outubro de 1984.
Rajiv Gandhi
A consequência imediata do assassinato de Indira foi uma ensandecida perseguição aos sikhs como nos mercados
de Bhogal e Ashram em Delhi e em outras grandes cidades indianas [519]. E restou ao sucessor político de Indira, seu
filho Rajiv Nehru Gandhi (g. 1984 - 1989) (fig.), a buscar uma linha moderadora para os ânimos exaltados dos
radicais sikhs e de seus antagonistas. Rajiv não tinha sido a escolha óbvia de sua mãe, Indira, pois ela já vinha
encorajando a carreira política de seu filho mais novo, Sanjay. Mas um trágico acidente tirou-lhe a vida em 23 de
junho de 1980 enquanto fazia acrobacias aéreas em uma aeronave particular. Rajiv, também um piloto, mas a
serviço da companhia comercial Indian Airlines, nunca tinha demonstrado nenhum talento e interesse na política em
princípio. Foi, portanto, relutante a assumir os negócios assumidos pela sua mãe, e convencido pelo presidente da
Índia, Zail Singh, um sikh, pois somente assim seria garantida certa ordem e estabilidade política dentro dos quadros
do CNI.

Fig. – Rajiv Gandhi.

Os antigos partidários de Sanjay ficaram logo esperançosos com a nomeação de Rajiv como premiê, mas
prontamente se decepcionaram com sua atitude desinteressada com relação aos velhos aliados. Na verdade, Rajiv
buscou o quanto antes convocar eleições indianas, adotando um comportamento comedido e cauteloso. E que rendeu
a ele e ao CNI a maior supremacia parlamentar na história indiana, conquistando 404 dentro dos 533 assentos no
Lok Sabha. Rajiv tornou-se uma figura amplamente popular pelo seu comportamento ético e incorrupto. Os partidos
políticos de oposição quase foram obliterados do cenário parlamentar, com exceção de alguns partidos regionais
como o Telugu Desam ao garantir 30 assentos. O Partido Janata passou para meros 10 parlamentares.
Dominando o cenário político nacional, Rajiv passou a conceber amplas reformas econômicas e tributárias na
Índia. Procedeu em abrir mais a estrutura do país aos investimentos internacionais e tornar a economia indiana mais
liberal, a estimular as forças do mercado [520]. Também lidou com problemas regionais do passado. Em Assam,
assinou acordos com as lideranças estudantis responsáveis pelo Movimento de Assam e foram realizadas eleições no
estado com a vitória do líder estudantil Prafulla Kumar Mahanta (1951 - ?) do partido Asom Gana Parishad em
setembro de 1985. No Punjab, os acordos com Delhi foram concluídos e o partido Akali Dal foi vitorioso no estado
no mesmo período, o que garantiu uma tranquilidade temporária até maio de 1987, pois muitos sikhs ficaram
impacientes com o descumprimento de Rajiv de transformar a cidade de Chandigarh como capital exclusiva do
Punjab e não mais a compartilhá-la com Haryana. Por esse motivo, desagradou tanto aos eleitores de Haryana como
os de Punjab. Assim sendo, em ambiente cada vez mais intolerante no Punjab, em 1987 o governador local eleito,
Barnala, renunciou a seu cargo por causa da crescente desordem social, levando a uma intervenção direta do
governo de Delhi conforme previsto no artigo 356 da Constituição da Índia em caso de grave crise.
Um ano depois, em maio de 1988, Rajiv decidiu lançar mão de uma intervenção armada ao Punjab, na Operação
Trovão Negro, visando desobstruir o acesso Templo Dourado em Amritsar e retirar as armas ali estocadas de sikhs
rebeldes. Para tanto, foi cercado e sitiado o templo sagrado dos sikhs durante 10 dias. Como resultado, a operação
foi um sucesso, pois foram poucos os feridos e mortos e todas as munições confiscadas. Após esta operação, o
governo indiano proibiu o uso de santuários religiosos para fins políticos e militares e agravou as medidas penais
para o porte e uso de armas ilegais, como parte de sua estratégia para combater o extremismo na região do Punjab.
No âmbito regional, a Índia sob Rajiv deu um grande passo integracionista com os países da região meridional
asiática em 1985. Reunidos na capital de Bangladesh, Daca, em dezembro, a delegação indiana tornou-se membro
crucial da Associação Sul-Asiática para a Cooperação Regional (South Asian Association for Regional Cooperation,
SAARC), composto por oito países do sul da Ásia [521]. Em tal organização, reúne-se estimados 21% da população
mundial, e cerca de 9% da economia global [522], que encerra em si um ideal de maior cooperação, ajuda e
coordenação política objetivando a paz, a estabilidade e o desenvolvimento.
No cenário externo ao sul da Índia, em julho de 1987, Rajiv intermediou um acordo com o governo da ilha de Sri
Lanka (ex-Ceilão) e concordou enviar tropas ao país para operação de paz nos conflitos étnicos liderados por
radicais tâmeis, Tigres de Liberação do Tâmil Eelam (LTTE, sigla em inglês de Liberation Tigers of Tamil Eelam),
organização política armada que tem como objetivo a autodeterminação do povo tâmil mediante a criação no
nordeste da ilha do Sri Lanka de um estado independente denominado Tâmil Eelam. A partir de 1987, Rajiv decidiu
fazer cumprir o acordo assinado e desarmou os rebeldes tâmeis, mas a força de paz indiana passou a envolver-se em
recorrentes casos de abuso e violência, em último momento solapando qualquer condição de paz duradoura na ilha
entre os nacionalistas cingaleses [523]. O acordo definitivo de paz somente adveio 22 anos depois, em junho 2009.
O maior escândalo político do governo de Rajiv se deu contra um caso de corrupção com uma empresa sueca de
armamentos, Bofors, em 1986. O caso se resumiu a um esquema de propinas ilícitas pagas num negócio estimado
em mais de US$ 1 bilhão com a fabricante de armas com o governo da Índia na venda de 410 obuses de calibre 155
mm. Um grande volume de dinheiro foi desviado dos cofres públicos indianos visando assegurar este contrato
firmado, desprezando qualquer transparência de boa governança. A empresa sueca tinha desembolsado por volta de
US$ 9,5 milhões em propinas a políticos e pessoas influentes no ministério da defesa do governo indiano [524]. O
caso veio à tona durante as investigações do ministro das finanças, V. P. Singh (1931 - 2008), que foi logo impedido
de prosseguir nas investigações e forçado a resignar como ministro em 1987. Após o evento, Singh voltou-se contra
o governo e o CNI, emergindo como a figura política opositora mais importante da Índia da época.
Rajiv pensou em convocar novas eleições gerais em 1988, mas que foram somente realizadas em novembro de
1989, intentando com isso pegar desprevenido a oposição e assim garantir mais um turno de seu governo. Contudo,
os partidos Janata Dal e Bharatiya Janata, dois dos seus maiores opositores, resolveram suas diferenças e
concordaram em se coligar em torno da figura de V. P. Singh, conseguindo assim um grande número de assentos no
norte indiano, 143 ao todo. O CNI, partido de Rajiv, teve grande perda parlamentar e foi obrigado a ceder o cargo de
primeiro-ministro para a coligação opositora.
V. P. Singh manteve-se como primeiro-ministro indiano por um curto período, de 2 de dezembro de 1989 a 10 de
novembro de 1990, pois a coligação de partidos que o elegeu era plural e dividido demais para sustentar uma base
política. Parecia que as condições políticas da Índia estavam voltando ao que eram em 1977. Mas a figura pessoal de
Singh era poderosa na época, dado que era visto como o grande responsável pelas revelações do caso Bofors. No seu
cargo político, Singh fez um importante gesto ao visitar o santuário do templo sikh, o Templo Dourado em Amritsar,
para apaziguar as feridas do passado. Também aprovou o relatório da Comissão Mandal, em que foram aumentadas
as cotas para os indianos mais marginalizados, fora até da casta dos intocáveis, para o acesso a cargos e funções
públicas. Esse projeto, no entanto, fez com que seus aliados do conservador partido Bharatiya Janata (BJP), em boa
parte apoiado pela casta de brâmanes, protestassem veementemente, resultando num impasse político insustentável
ao mantimento de seu cargo de liderança política no Lok Sabha.
Talvez o caso mais notório e revelador da crise política na coligação de Singh com o BJP se deu a partir de
setembro de 1990, quando o BJP se posicionou a favor das manifestações populares na cidade de Ayodhya, em Uttar
Pradesh, em torno de um suposto local de nascimento do deus hindu Rama, um dos avatares de Vixnu, numa colina
onde foi erguida uma mesquita por Babur, o Babri Masjid, entre 1528 e 1529. Em cima dessa controvérsia histórica,
as multidões hindus foram inflamadas ao terem o endosso dado por Lal Advani (1927 - ?), presidente do BJP e de
partidários de direita do Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), para a demolição da mesquita. V. P. Singh, vendo-se
diante de um preocupante cenário de sectarismo religioso em torno da questão, resolveu dar voz de prisão a Advani
por perturbação da ordem social em 30 de outubro de 1990 [525]. Nesse sentido, Singh preservou a ordem social
indiana, principalmente entre muçulmanos e hindus, salvaguardou a condição da histórica mesquita de Babri em
Ayodhaya, mas perdeu o fundamental apoio partidário do BJP. Singh resignou-se do seu posto em 7 de novembro de
1990.
As condições políticas na Índia permaneceram frágeis, sem uma clara definição de maioria coligada partidária no
Lok Sabha até as campanhas eleitorais a partir de fevereiro de 1991, quando o CNI decidiu apoiar mais uma vez a
candidatura de Rajiv para primeiro-ministro. O momento trágico maior veio quando, em campanha na cidade de
Madras (atual Chennai) em Tamil Nadu, Rajiv foi receber uma guirlanda de uma mulher, provavelmente dos Tigres
Tâmeis (LTTE), que no momento acionou os explosivos a ela atada, assassinando o líder político em 21 de maio de
1991.
Narasimha Rao
Nesse sentido, talvez diante do momento trágico, o CNI conseguiu angariar mais votos nas eleições de junho de
1991, 244 ao todo, contra 120 assentos ocupados pelo BJP de Lal Advani. Porém permaneceu em aberto quem
deveria ser o novo líder do CNI a ser nomeado como primeiro-ministro. Foi pensado por um momento, diante do
carisma histórico da família Nehru-Gandhi, a viúva de Rajiv, Sonia Gandhi (1946 - ?). Mas Sonia era italiana de
nascimento e católica, algo que pesou para que ela mesma desconsiderasse a carreira política indiana. No lugar dela,
foi escolhido então um político veterano dos quadros do CNI que estava prestes a se aposentar, P. V. Narasimha Rao
(g. 1991 - 1996) (fig.).

Fig. – P. V. Narasimha Rao entre Manmohan Singh (esq.) e Sonia Gandhi (dir.).

Rao tinha atuado na região de Andhra Pradesh e depois como foi ministro de gabinete de Indira e Rajiv Gandhi
por mais de uma década. Ao assumir o governo em 1991, foi o primeiro indiano do sul como primeiro-ministro [526].
Ao se ver diante de um quadro adverso econômico em que a Índia se encontrava no início da década de 1990, Rao
nomeou como seu principal homem de confiança o sikh Dr. Manmohan Singh (1932 - ?) como ministro das
finanças, um tecnocrata de brilhante carreira de anos no Banco Mundial e que pudesse assim garantir boas relações e
créditos com o sistema financeiro internacional.
A mudança política teve efeitos imediatos para a economia indiana. Houve sustentado aumento no envio de
divisas internacionais ao país, muito em parte originados da grande comunidade indiana no exterior, e a
desvalorização da moeda indiana, a rúpia, em torno de 18% que encorajou um aumento nas exportações e atraiu
novos investimentos diretos internacionais. Mas, com isso, também provocou a entrada de grande volume de capital
especulativo no mercado financeiro indiano, que ocasionou uma quebra do mercado de ações de Bombaim em 1992.
No dia 6 de dezembro do mesmo ano, ocorreu a trágica destruição da mesquita de Babri (Babir Masjid) em
Ayodhya, em Uttar Pradesh que era governado à época por um partidário do BJP. As reações populares se deram
principalmente em Bombaim, onde entre dezembro e janeiro de 1993 uma multidão de muçulmanos manifestou-se
nas ruas da cidade e gerou, como reação irracional, uma série de hostilidades por parte da comunidade hindu,
resultando em cerca de 900 mortos. Não houve relatório conclusivo a respeito, mas foi evidente o envolvimento de
partidos regionais ultranacionalistas como o Shiv Sena, que defendiam uma ideologia de nação exclusivamente
hindu (hindutva) [527]. Em retaliação a esses conflitos anti-muçulmanos, em 12 de março de 1993 foram detonadas 12
dispositivos explosivos em Bombaim coordenados por um muçulmano e chefe do crime organizado da cidade,
Dawood Ibrahim (1955 - ?), ocasionando em mais de 250 mortos. A Índia parecia caminhar para um quadro de lutas
intestinas intercomunitárias.
Esses eventos tiveram consequências nas eleições regionais em fins de 1994. Rao e o CNI tiveram um
desempenho sofrido. O estado de Andhra, região de origem de Rao, foi dominado pelo partido regional do Telugu
Desam. Karnataka, pelo Partido Janata, e Maarastra por uma coligação de partidos regionais incluindo o BJP e o
Shiv Sena. O quadro não poderia ser pior para o governo federal em Delhi visando as eleições nacionais de abril e
maio de 1996. Como previsto, foram os piores resultados eleitorais para o CNI na história indiana. O velho sistema
de alianças moderadas lideradas por Rao caiu por terra, e houve gradativa polarização partidária por parte de
partidos oposicionistas. Dos 537 assentos, 160 foram para o BJP, restando ao CNI 136 eleitos (em grande parte
vindos de votos de estados populosos do norte indiano), e surpreendentes 155 vagas conquistadas no Lok Sabha por
partidos menores regionais. Ante esse estado parlamentar pulverizado e polarizado em termos regionais, Narasimha
Rao entregou seu ofício em maio de 1996. O presidente da Índia, Dr. Shankar Dayal Sharma (g. 1992 - 1997),
visando contornar futuros impasses no sistema político, decidiu nomear um político do partido BJP, Atal Bihari
Vajpayee (1924 - ?), para fechar um novo governo.
A era das coligações partidárias
O governo inicial de Vajpayee durou apenas 13 dias em fins de 1996, pois o número de parlamentares que
tinham o apoiado era insuficiente. Esperava ele quando no governo que a miríade dos partidos pequenos regionais
chegassem a um consenso e daria a ele o apoio necessário no Lok Sabha, o que não se concretizou decorridos alguns
dias após a sua ascensão ao poder. Assim, o presidente, a quem cabia escolher um chefe de governo em situação de
impasse político no parlamento, escolheu um político do Partido Janata, Deve Gowda (g. 1996 - 1997), governador
de Karnataka, como premiê. Seu partido mal tinha conquistado 43 assentos federais, 15 deles vindos de Karnataka e
21 de Bihar, uma situação política frágil que o fez dependente dos inúmeros partidos pequenos regionais presentes
em grande número no Lok Sabha. O CNI, por sua vez, encontrava-se acuado e relutante em torno de Narasimha Rao
que começou a sofrer inúmeras acusações de corrupção durante o seu governo passado. Assim, o cenário político
indiano encontrava-se imprevisível e pulverizado em fins de 1996.
No entanto, o sistema democrático indiano sobreviveu de maneira resiliente mesmo nas condições instáveis e
desintegradoras no seu parlamento. Em abril de 1997, o governo minoritário de Deve Gowda não se sustentou
politicamente, e foi escolhido como primeiro-ministro Inder Kundar Gujral (g. 1997 - 1998) que escolheu como seu
ministro das finanças, Palaniappan Chidambaram (1945 - ?), tendo uma reação positiva das forças do mercado
financeiro e dos investidores internacionais. Mas Gujral permanecia refém das instáveis coligações partidárias que
os apoiaram no poder. Assim, era premente que novas eleições nacionais fossem convocadas, o que de fato ocorreu
em fevereiro de 1998, resultando numa maioria parlamentar mais evidente, 182 lugares, para o partido BJP, mas
ainda assim muito aquém de uma maioria. E assim, em 20 de Março de 1998, um novo governo de coligação
liderado pelo BJP nomeou novamente Vajpayee (g. 1998 - 2004) como primeiro-ministro.
Vajpayee
A coligação que o partido BJP tinha fechado com outros partidos, na chamada Aliança Nacional Democrática,
provou incialmente ser tênue, pois um dos partidos aliados, o Anna Dravida Munnetra Kazhagam (ADKM,
Federação Pan-Dravidiana Progressista) da região de Tamil Nadu, decidiu abandonar a coligação em meados de
1999, apenas 13 meses após a ascensão de Vajpayee. Diante da ausência de maioria parlamentar coligada, foi
necessária a convocação de novas eleições nacionais, realizadas em setembro de 1999. Como resultado, o BJP
cresceu no Lok Sabha para 270 assentos, somando 303. E assim, em situação de maior folga parlamentar, Vajpayee
foi reassegurado novamente como primeiro-ministro indiano, e dessa vez seu oficio iria perdurar até 2004. Mas o
mais surpreendente nas eleições de 1999 foi o consenso do CNI, agora como o segundo maior partido indiano com
156 assentos, em nomear como seu presidente partidário Sonia Gandhi. Apesar das discordâncias partidárias
internas com relação à Sonia como líder, o CNI permaneceu à espreita de um momento mais propício a voltar ao
poder indiano.
Foram eventos externos que consolidaram a popularidade de Vajpayee e seu governo coligado no poder em 1999
em diante. Em fevereiro do referido ano, para selar a paz entre a Índia e o Paquistão e evitar possível um conflito
nuclear, foi ratificado o Tratado de Lahore. A paz pareceu ser promissora [528]. Entretanto, em maio e junho de 1999,
foram descobertos planos terroristas de infiltração e ocupação da Caxemira, que desvirtuou todo o compromisso de
paz firmado entre a Índia e o Paquistão quando Vajpayee tinha visitado a cidade paquistanesa de Lahore três meses
antes a inaugurar uma linha de ônibus partindo de Delhi. Nos conflitos bélicos subsequentes, as forças indianas
conseguiram dominar forças opositoras infiltradas em torno da cidade de Kargil na Caxemira. A repercussão dessa
intervenção foi um sucesso em termos de popularidade para Vajpayee e sua coligação liderada pelo BJP. Dois anos
depois, em julho de 2001, Vajpayee deu um novo passo diplomático frente ao governo paquistanês, quando
convocou os encontros em Agra com o presidente paquistanês, Pervez Musharraf. Mas foram poucos os avanços
concretos com relação à Caxemira.
A popularidade do governo em torno da sua aliança coligada da Aliança Democrática Nacional foi afetada
depois de uma série de escândalos políticos e subornos por parte do ministro da defesa, George Fernandes (1930 -
?), que teria aceitado vultosos subornos na aquisição de novos equipamentos militares revelados em maio de 2001
pela revista de jornalismo investigativo Tehelka, assim como relatórios de falha de inteligência indiana que poderia
ter evitado os incidentes em Kargil em 1999.
Na sequência dos ataques de 11 de setembro de 2001, o governo dos Estados Unidos de George W. Bush
suspendeu as sanções que tinham sido impostas contra a Índia e o Paquistão em vigor desde 1998, pelos temores de
uma escalada de conflitos com possibilidades de uso nuclear. A mudança política norte-americana foi uma
recompensa pelo apoio jurado dos dois governos à guerra contra o terrorismo.
No âmbito interno, a maior calamidade que o governo de Vajpayee se deu em torno de um suspeito incêndio de
um trem em 27 de fevereiro de 2002 que matou cerca de 60 peregrinos hindus que retornaram de Ayodhya em
Godhra, no estado de Gujarate. Com a estranha omissão do governador do estado à época, Narendra Modi (1950 - ?)
do partido BJP, foi desencadeado uma onda de violência levando à morte mais de 700 muçulmanos e 250 hindus
[529]
.
Vajpayee foi mais bem sucedido nas suas reformas econômicas do país que resultou num crescimento sustentado
do PIB em torno de 6% a 7% ao ano. Decorrente disso, houve notável atração de investimento internacional e
grandes obras de modernização da infraestrutura nacional foram empreendidas a partir de 2002. Destarte, o partido
BJP gradativamente ganhou maior apoio político principalmente entre os setores sociais mais beneficiados com o
novo alento econômico indiano, entre o empresariado, classe média urbana e jovens universitários diante das novas
perspectivas de emprego, em especial nos setores de tecnologia de informação e serviços.
Em 2003, o primeiro-ministro indiano tomou iniciativas mais ousadas para consolidar as boas relações com os
países vizinhos. Visitou a China em julho de 2003, e assinou reconhecimento da China sobre o Tibete, conseguindo
em contrapartida o assentimento oficial de Pequim sobre partes setentrionais do estado de Sikkim reivindicada pela
Índia, algo pendente entre os dois países desde 1953. Como resultado, em julho de 2006, foi inaugurado a primeira
via rodoviária entre a China e a Índia a passar por Nathu La em Sikkim.
Em fins de 2003, diante da idade avançada de Vajpayee e visando angariar maior apoio entre a população
muçulmana indiana, o BJP começou a organizar amplas campanhas publicitárias almejando melhores resultados
eleitorais no ano seguinte. As atenções e polêmicas se voltaram para a escolha do novo líder do partido, Lal Advani,
que tinha sido líder do BJP à época dos conflitos populares em Ayodhya em 1992.
Manmohan Singh
As eleições em maio de 2004 ocorreram em janeiro. Surpreendentemente uma ampla aliança com partidos
regionais e socialistas, a Aliança Progessista Unida, liderada pelo CNI, inicialmente sob a liderança de Sonia Gandhi
ganhou maioria no parlamento, totalizando 335 assentos. Somente o CNI tinha conquistado 218 lugares, contra 181
do Partido BJP. Sonia, no entanto, depois dos resultados eleitorais decidiu não assumir o cargo de primeira-ministra
e nomeou, em seu lugar, um sikh tecnocrata, Manmohan Singh (g. 2004 - 2014) (fig.), tornando-se este no primeiro
indiano não-hindu a ocupar o cargo mais poderoso da Índia. Seu passado apolítico ganhou a confiança da maior
parte da população indiana que considerou ele como pessoa incorruptível e ética.

Fig. – Manmohan Singh, primeiro sikh a governar a Índia.

Já no final de 2004, o governo de Singh começou a negociar com o governo paquistanês mais uma vez e retirou
algumas de suas tropas da Caxemira. Ademais, foi inaugurada uma nova linha de ônibus a fazer o trajeto da capital
caxemirense, Srinagar, com a cidade fronteiriça paquistanesa de Muzaffarabad, primeira linha a operar na Caxemira
com o território paquistanês em mais de 60 anos [530].
No campo econômico, Singh seguiu as reformas preconizadas pelo Fundo Monetário Internacional e liberalizou
ainda mais a economia indiana que resultou em forte desenvolvimento. Singh, juntamente com uma competente
equipe econômica, que incluiu o ex-ministro das finanças, Palaniappan Chidambaram, coordenou um período de
crescimento do PIB nacional em torno de uma taxa anual de 8% a 9%. Em 2009, a Índia tinha se tornado a segunda
economia com maior crescimento no mundo. Boa parte desse crescimento se deu no setor de serviços,
correspondendo a mais de 50% nos anos seguintes de seu governo [531].
As relações com os EUA foram solidificadas em torno de um acordo de cooperação nuclear durante a visita de
George W. Bush à Índia em março de 2006. No acordo assinado, o governo indiano teria acesso a reatores e
combustíveis nucleares norte-americanos em troca de seu compromisso de limitar o seu programa de armamento
nuclear. Em outubro do mesmo ano, a Índia lançou com sucesso sua primeira missão à Lua, uma sonda não tripulada
chamada de Chandrayaan-1. Um ano antes, o país já tinha lançado seu primeiro foguete espacial de cunho
comercial.
Em novembro de 2008, ocorreram ataques terroristas organizados na cidade de Mumbai (ex-Bombaim assim
renomeado desde 1995), supostamente sob o comando de uma organização paquistanesa, resultando na suspensão
no processo de paz com o país vizinho. Nas eleições gerais realizadas entre 16 de abril e 13 de maio de 2009, a
Aliança Progressiva Unida, liderada pelo CNI de Singh, conseguiu nova maioria parlamentar, com confortáveis 322
membros parlamentares dentro de um total de 543. Foi a primeira vez desde Jawaharlal Nehru em 1962 que um
primeiro-ministro indiano conseguiu ser reeleito após ter completado seu mandato completo de cinco anos. As
eleições indianas de 2009 foram um formidável atestado político da Índia, a maior eleição democrática do mundo
com estimados 714 milhões de eleitores [532].
No cenário externo, a Índia do governo de Singh entrou como membro fundador do grupo dos BRICS
(inicialmente composto por Brasil, Rússia, Índia e China, depois pela África do Sul a partir de 2010) na primeira
reunião de cúpula realizada na cidade russa de Yekaterinburg em 16 de junho de 2009. O objetivo do grupo desde
então tem sido uma maior coordenação e cooperação e dos países em desenvolvimento e fundamentar um novo
espaço no meio internacional em busca de alternativas e reformas da situação política e econômica global [533].
Diante do desempenho político e econômico do governo de Singh, tudo parecia estar sob completo controle pelo
CNI e aliados coligados. Mas a oposição organizada em torno do partido BJP começou a esboçar uma nova
contraofensiva política a partir de 2013. Em nove de junho de 2013, foi nomeado um novo líder do BJP, Narendra
Modi, para representar o partido nas eleições gerais de 2014, depois da renúncia de Lal Adavani, considerado por
muitos da sociedade indiana como o responsável maior dos conflitos em Ayodhya em 1992. As eleições de 2014
transcorreram com uma ordem impressionante, desde 7 de abril a 12 de maio do mesmo ano. Foi a mais longa
eleição da história indiana e, de acordo com a Comissão Eleitoral da Índia, mais de 814 milhões de eleitores votaram
nas eleições, corfirmando o país como a maior democracia do mundo [534].
O resultado eleitoral de 2014 favoreceu a ampla aliança formada pelo BJP, a Aliança Democrática Nacional,
com 336 assentos parlamentares conquistados. Somente o partido BJP ganhou 282 vagas no parlamento. No campo
oposto, o CNI tinha conseguido apenas 44 assentos, e sua aliança apenas 58 assentos ao todo. Foi uma grande
reviravolta política indiana. Muito se deu em torno dos casos de corrupção que membros do governo de Singh tinha
se envolvido, notoriamente no setor de carvão, telecomunicações e até mesmo na organização dos 19º Jogos da
Commonwealth [535] (Comunidade das Nações) sediado em Delhi em outubro de 2010. Ademais, a economia indiana
vinha apresentando uma tendência de alta inflacionária nos preços de produtos básicos alimentícios, como a cebola e
o sal, e de bens de consumo desde fevereiro de 2012 [536].
Nesse sentido, Singh deixou o cargo de primeiro-ministro em 25 de maio de 2014, quando assumiu em seu lugar
o ex-governador de Gujarate e a nova face da maior coligação conservadora do espectro político indiano, Narendra
Modi, do partido BJP. Cuja coligação conseguiu assegurar 282 lugares no Lok Sabha. O CNI e sua coligação, por
sua vez, organizaram-se em torno de Rahul Gandhi (1970 - ?), filho de Sonia Gandhi, mas conseguiram apenas 44
assentos parlamentares.
***
A Índia é um país vasto em todos os termos. Guarda uma história complexa e diversificada de inúmeros reinos,
principados e impérios desde o vale do Rio Indo, até mais ao leste em direção às amplas e férteis planícies do rio
Ganges e Yamuna, e costeando mais ao sul, se estabelecendo ao longo dos rios Krishna e Godaveri. Reinos e
potentados que por vezes se expandiram e se tornaram em impérios desde a antiguidade, desde os guptas até os
mogóis, os britânicos e depois, numa forma unificada republicana que vigorou de forma democrática ininterrupta
desde 1947. Algo espantoso, pois a Índia tem em sua diversidade todos os fatores para fragmentação e desunião.
Esse país foi, em grande parte de sua história, composto de unidades políticas que voltavam suas fidelidades a
chefes e regentes locais, com certa unidade étnica, linguística e religiosa própria, desde o hinduísmo até o
islamismo, budismo, jainismo, zoroastrismo, cristianismo e outras crenças tradicionais cultuadas desde os
primórdios dos tempos. Na Índia, nada nunca foi simples.
O quadro cultural e religioso indiano resultou de séculos de contatos, amalgamações e sincretismos entre
diversas etnias. Os textos védicos e purânicos firmaram-se com as crenças populares indianas que depois forneceu o
material para os épicos hindus como o Maabárata e o Ramaiana. Assim foram compiladas as mitologias, as
divindades, os valores e ideais de toda uma nação. E cada divindade local cultuada foi sendo gradativamente
incorporada ao numeroso panteão hindu. Dissidências diante da ortodoxia hindu deram fôlego para novas crenças,
como o fez nas andanças do príncipe Sidarta, o Buda, em Bihar. E, passados alguns séculos, através das suas
fronteiras montanhosas ao norte e noroeste, entraram as crenças islâmicas, e das costas ocidentais vieram alguns
cristãos. A partir das ideias reformadoras de Guru Nanak, nasceu o siquismo no século 16. A Índia, através dos
tempos, criou, abrigou e assimilou as ideias do mundo.
As fronteiras e a unificação da Índia resultaram de um fenômeno relativamente recente, estabelecidos desde os
tempos dos mogóis a partir do século 16 e depois sendo estruturado em termos civis, jurídicos e burocráticos pelas
autoridades britânicas nos séculos 18 e 19. O momento culminante se deu em seus momentos iniciais republicanos
durante as negociações de adesão com os incontáveis regentes dos estados principescos em 1947, obra de políticos
como Menon, Patel e Ambedkar sob o comando de Nehru e inspirados por Mohandas Gandhi, este talvez uma das
maiores figuras históricas do século 20. E não menos importante, de 1947 até 1950, foi elaborada uma constituição
laica, secular, republicana e inclusivista que até os dias de hoje serve de mestre guia para a nação. E que
asseguraram uma Índia plural, diversificada e cosmopolita.
Em tempos presentes, decorrente dessa rica e vasta herança de seu passado, alguns vetores [537] poderão, caso
exacerbados em tempos de crise, pôr em risco o que atualmente é a maior democracia do mundo, com estimados 814
milhões de votantes contabilizados nas eleições gerais de 2014. Um primeiro eixo é o seu sistema de castas (varnas)
herdados do passado, que permanece como forma identitária primária de muitos indianos, principalmente no meio
rural, que pode obstaculizar a plena participação política e igualdade numa sociedade democrática. O segundo eixo é
a linguagem. A língua híndi consiste na língua mais falada no país, com 400 milhões de falantes. Mas há uma
pletora de outras, como telugo, tâmil, malaiala, bengali etc., que contam com alfabeto próprio e uma longa tradição
literária. Resulta num desafio enorme e frágil manter coesão cultural diante de tal diversidade. O terceiro eixo é a
religião, sendo que a 80% da população indiana declaram-se como hindus e têm a segunda maior comunidade
muçulmana do mundo, por volta de 140 milhões, 13% da população, ficando atrás apenas da Indonésia [538].
Ademais, há significativa comunidade de cristãos, sikhs, budistas e jainistas. Como a fé consiste num dos pilares
fundamentais de identidade humana, permanecem latentes as diferenças nesses termos em situações de crise no país.
Outro eixo consiste nas diferenças socioeconômicas. Há imensa disparidade nesse sentido na Índia, com alguns
empresários fabulosamente ricos em contraste com 26% da população, 300 milhões de pessoas, vivendo abaixo da
linha de pobreza, um potencial perigoso que pode servir de conflitos e mudanças políticas futuras. Por último, temos
a questão do gênero em que o país apresenta grandes obstáculos. Se por um lado a Índia já teve uma grande
liderança feminina na figura de Indira Nehru Gandhi, por outro lado há recorrentes casos de agressões a mulheres
pelo país. A condição das mulheres, principalmente no meio rural, são como as de Ofélia, personagem de Hamlet de
Shakespeare [539], insuportavelmente julgadas e delimitadas pelos costumes e tradições que as relegam a um papel
conservador de submissão dentro do âmbito de suas famílias e afazeres domésticos, muitas vezes estigmatizadas
depois que perdem os seus maridos ou quando permanecem sem casamento. Para as situações matrimoniais,
meninas muitas vezes nem em idade puberal já são definidas pelas famílias envolvidas no casamento. E decorrente
disso, em casos de conflitos e desentendimentos conjugais, são as mulheres as maiores vítimas de agressão física e
discriminação social.
Para as perspectivas futuras, esse país de contradições encerra em si um imenso desafio. São mais de um bilhão e
300 milhões de habitantes no ano de 2016, quase um quinto da humanidade com previsão de ultrapassar a população
chinesa em 2022 [540], com mais de duas mil etnias, mais de 122 línguas e 1500 dialetos, um PIB anual estimado em
US$ 2,29 trilhões, 6º maior do mundo, sendo que 54% de sua economia advém do setor de serviços, e 29% da
indústria. Em termos de paridade de poder de compra, sua economia é a terceira do mundo, com estimados US$ 8,64
trilhões. Sua projeção mundial decorre naturalmente diante da estatura de tais números. E, assim, busca articular
novas inserções no meio internacional novas, conforme atestado na sua proeminência na Associação Sul-Asiática
para a Cooperação Regional (SAARC) desde 1985, e membro fundador do grupo dos BRICS desde 2009.
China e Região

藕断 丝连
(“A raiz do lótus pode até ter sido cortada,
mas os fios de suas fibras ainda permanecem conectados”)
(Provérbio chinês)
Mapa - China atual com suas províncias.

China (50 mil a.C. – século 7 d.C.)


Em 1921, quando os arqueólogos desenterraram um dente humano em uma das cavernas de Zhoukoudian nos
arredores de Pequim, o achado trouxe grande expectativa e consternação. Pois até então a paleontologia humana
ainda remetia as origens do homem moderno à alguma região europeia ou próxima. Mas nunca em regiões tão
afastadas na China. Seguiram-se ao primeiro achado uma profusão de ossos e utensílios, estimados em mais de cem
mil, que depois foram vestígios de toda uma pequena comunidade de Homo erectus, a que deram o nome de Homem
de Pequim. A série de achados abalou todas as premissas da origem do homem, e confirmou os múltiplos achados
em Java, em 1891, além daqueles já achados na Europa, Oriente Médio e África.
Os vestígios anatômicos apontaram para hominídeos de baixa estatura, por volta de 1 metro e 60 centímetros. As
fêmeas não deveriam ter mais de um metro e meio. Eram caçadores, coletores e pescadores, e os sinais nas paredes
apontam o domínio do fogo. Não foram encontrados vestígios de enterros e posições funerárias de esqueletos, mas
alguns crânios apresentaram sinais de trauma, o que indica sinais de violência e, possivelmente em tempos de
escassez de alimento ou a atender rituais sagrados, poderiam ter sido canibais.
Outras descobertas em outros sítios seguiram ao do Homem de Pequim. Em 1964, a China sob regime
comunista, celebrou outro achado de Homo Erectus, mas agora em local mais afastado a oeste de Pequim, em
Shaanxi [541]. Nesse, os achados apontam para um período entre 400 mil e 200 mil anos atrás. Em 1980, outro crânio
da mesma espécie fora encontrado na província de Anhui e outro três anos mais tarde, em Liaoning.
A região das descobertas dos hominídeos antecessores do homem moderno, Homo sapiens sapiens, se estende ao
longo do vale do Rio Amarelo (Huang He) e da cadeia de montanhas ocidentais na China. Os achados foram sempre
em locais e cavernas próximos de montanhas, rios e vales, onde a caça poderia combinar-se com a pesca e coleta de
alimentos. Essa ampla região percorre ao longo do vale do Rio Amarelo, que tem sua nascente no altiplano ocidental
nas montanhas de Bayan Har e deságua a leste, no Mar de Bohai. O interessante é que da sua nascente, o Rio
Amarelo recebe, por vezes de maneira impetuosa, um grande fluxo de água advindo do derretimento das geleiras das
montanhas na sua nascente. Juntamente com isso, sedimentos por via eólica de coloração amarelada, daí o nome do
rio, denominado de “loesse”, dão excepcional fertilidade ao solo aluvial ao longo de toda o vale.
Por volta de 50 mil a 12 mil anos atrás, a nossa espécie, Homo sapiens sapiens, já predominou por toda a região
do Rio Amarelo e outros vales pela China. E a partir de 12 mil a.C. foram encontrados inúmeros assentamentos
permanentes do homem. Ao longo do Rio Yangzi, de excelente navegabilidade e que dá acesso ao interior chinês no
sentido leste-oeste, existiram indícios de um conjunto de pântanos e lagos excepcionalmente férteis para o cultivo e
coleta regular de sementes e, posteriormente, para a domesticação de animais como o cachorro e o porco. Ademais,
o clima nas regiões centrais e setentrionais da China eram mais quentes e úmidas do que se constata atualmente.
Foram, pois, ofertadas todas as condições favoráveis para o assentamento amplo e permanente do homem na China
no referido período.
Assim foi confirmado pelos achados na vila de Banpo, na atual cidade de Xian, na região central da China, no sul
da província de Shaanxi. Os descobrimentos são de por volta de 4 mil a.C. e há evidentes sinais de uso de cânhamo
para o fabrico de roupas e tecidos, pontas de flecha que sugerem a maestria do uso de arco e flecha para a caça e
guerra. Os abrigos estão posicionados agrupados, de maneira ordenada, que demonstra unidades coletivas em forma
de famílias e clãs com alguma liderança. Os vasos e ânforas de cerâmica, usados para depósitos, são decorados com
figuras de animais, peixes, plantas, marcas de corda e símbolos de identidade do clã e grupo. A esse estilo foi dado o
nome de Cultura de Yangshao, que vigorou entre 6 mil e 3 mil a.C. O senso de identidade e estética começaram a
ser expressos na história chinesa.
Concomitante às de Yangshao, outras cerâmicas de estilo diverso, com aspecto mais lustroso, fina e enegrecida,
chamada de Cultura de Longshan (c. 3000 – c. 1900 a.C.), foram achadas por várias regiões da China além do vale
do Rio Amarelo. O que indica o alastramento do Homo sapiens sapiens pela China. Outro aspecto notável desse
período, considerada como Fase Neolítica, de 12 mil a.C. a 2 mil a.C., foi o complexo domínio do cultivo de seda.
Algo extraordinário e singular à China que somente foi depois dominado por outras culturas no século 6 d.C.
As Dinastias Xia e Shang

Mapa – As Três Dinastias Clássicas – Xia, Shang e Zhou na China.

Por tradição, a história chinesa começou cultuando uma série de figuras heroicas e míticas, a incluir os Três
Soberanos que viveram há mais de 5 mil anos atrás: Fu Xi ( 伏羲 ), o fundador da nação e inventor da escrita, da
pesca e caça; Shennong ( 神農 ), o pai da agricultura e da medicina; e o Imperador Amarelo ( 黃帝 ), criador do
calendário e ancestral de todos os chineses, e outros regentes sábios que culminou no período do Grande Yu ( 大禹 )
(c. 2200 – 2101 a.C.). Este último, de acordo com as lendas tradicionais, foi o primeiro que conseguiu domar as
catastróficas enchentes do Rio Amarelo e assim depois fundou a primeira dinastia, a Xia. E esta passou a ser a
primeira das três dinastias chinesas: Xia (2205 – 1766 a.C.), Shang (c. 1766 – 1045 a.C.) e Zhou (1045 – 256 a.C.).
As três formam a idade clássica da antiguidade chinesa. O problema com relação à história desse período foi que ela
foi composta e compilada muito tempo depois dos eventos, pois a escrita não aparece na China antes de 1200 a.C.
As lendas acerca dessa antiguidade são atualmente veneradas pelos chineses em geral que as consideram como
as bases de fundação da China. O campo historiográfico moderno na China, contudo, desde a ascensão do regime
republicano em 1912, tem buscado desmitificar esse período, pois essas histórias serviram de legitimação do regime
imperial durante séculos. E pouco era considerado dessas lendas entre os historiadores até que num achado em 1899,
alguns estudiosos se defrontaram com estranhas escritas parecidas com o chinês antigo em cascos de tartaruga e
ossos, algo que era considerado pela medicina chinesa como “ossos de dragão”.
Esses ossos foram eventualmente rastreados em sua origem até a cidade atual de Anyang, no norte da província
de Henan. O sítio foi sistematicamente escavado a partir de 1928, que provou ser as ruínas de uma das antigas
capitais da Dinastia Shang. Os ossos e cascos achados eram usados antigamente para fins divinatórios. E as
inscrições achadas nesses são os mais antigos vestígios da língua chinesa [542]. Apesar de muitas dúvidas e ceticismo
acerca das lendas históricas desse período, os achados dessas inscrições provaram a existência de uma antiga
dinastia chinesa até então desconhecida até a década de 1920 (fig.).

Fig. – Réplica de escrita num osso divinatório do Período Shang.

Em 1950, as escavações foram retomadas depois dos conflitos da Segunda Guerra Mundial, e uma nova capital
da Dinastia Shang foi descoberta perto da cidade de Zhengzhou, atual capital da província de Henan. Nessas
capitais, foram reveladas as estruturas de grandes residências e palácios, evidenciado uma estrutura hierárquica
centralizada e planejada, algo que é vislumbrado nos dias atuais no complexo da Cidade Proibida de Pequim.
Próximos dessas residências, foram encontrados os quarteirões de serviçais e de artesãos especializados que
produziram magníficas peças de bronze, cerâmica e artesanato. Os trabalhos em bronze da dinastia constituem um
dos tesouros da humanidade. A metalurgia do bronze, por si só, requer acesso a minas de estanho e cobre,
fartamente presentes na região.
Foram encontradas nos túmulos inúmeras obras de bronze, de vasos a serem usadas em rituais, a machados,
armas e capacetes. Além de peças de carruagem que indicam a domesticação do cavalo. Alguns dos mais elaborados
vasos para fins de sacrifício ritual, chamados de ding, são insuperáveis nos seus detalhes (fig.). Parece que a técnica
de fundir e trabalhar o bronze na China veio das regiões mais ao oeste, na província de Gansu [543]. Além dessas
obras, foram encontrados vários corpos humanos e de animais sacrificados ao regente que deveriam servi-lo no
além.

Fig. – Vaso do tipo ding da Dinastia Shang.

Os regentes da Dinastia Shang eram, pelas evidências, fartamente servidos por militares equipados com armas de
bronze e assistidos por sacerdotes que conduziram os serviços rituais de sacrifício e de divinização, conforme
demonstra as escrita e rachaduras criadas a serem interpretadas nos ossos das omoplatas de animais. Essa sociedade
aristocrática se fundamentava na atividade de agricultores que trabalharam e viveram nos arredores das capitais
escavadas. Em suma, a sociedade Shang era uma de evidente estratificação social, a servir um comando
centralizado.
O poder centralizado do regente Shang também foi demonstrado em grandes obras que requereram,
indubitavelmente, vasta mão-de-obra coordenada. A capital em Zhengzhou era envolvida numa muralha de
extensão considerável, mais de 6 km, com uma altura maior que 8 metros, erguidas no uso de terra em camadas que,
quando devidamente compactada e prensada, oferecem uma resistência similar ao do cimento. Essa técnica será
depois largamente usada em outras construções e fortificações chinesas.
Em 1959, foram organizadas novas escavações em Erlitou, atualmente próximos da cidade de Luoyang, ao sul do
rio Amarelo. Nessa empreitada, foi desenterrado um sítio de amplos palácios que indicaram ser o local uma capital
de um reino centralizado na região. Ao que os estudiosos apontam ser o centro da Dinastia Xia, portanto, anterior ao
Shang. A cultura desses achados, chamada de Erlitou, parece ter se alastrado por toda a região, a noroeste de Henan
e sul de Shanxi, e demonstra ser a sucessora das cerâmicas negras de Longshan.
O que esses achados nos dizem a respeito das origens da China? Primeiramente, ficou evidente de que houve
uma transição do período Longshan para uma estrutura mais centralizada, hierarquizada e com claro domínio da
metalurgia do bronze, da escrita e de um sistema religioso. Ademais, parece que houve diferentes capitais ao longo
do vale do Rio Amarelo, em que eles coexistiram em certos períodos no norte da China. Em segundo lugar, os
antigos reinos de Xia e Shang eram sistemas baseados na agricultura no uso sistematizado das águas dos rios. E
parecem ter sido navegadores e comerciantes, pois foram achados búzios originados da costa chinesa e ilha de
Taiwan que indica terem sido mestres na navegação de longa distância.
A Dinastia Zhou
A Dinastia Shang foi sucedida pelo reino Zhou, momento formativo da China. Por volta de 1045 a.C., líderes do
povo Zhou que tem origem mais ao oeste, conquistaram os Shangs, apesar de terem mantido ainda relações
duradouras e comerciais. Foram mantidas as escritas Shang e a produção de bronze ainda seguiu no mesmo estilo. A
ascensão Zhou foi muito mais uma síntese da cultura anterior Shang do que propriamente uma imposição
estrangeira. O reino Zhou inclusive, ao chegar ao poder, manteve a elite e a família real Shang em seu status, e
foram lhes conferidos títulos nobiliárquicos como duques a regerem determinadas regiões. Isso ilustra a dinâmica
híbrida de diferentes tradições culturais na história da China, em que um determinado povo conquista uma posição
de poder e, ao mesmo tempo, absorve seus valores e tradições.
De acordo com as lendas, a primeiro ancestral Zhou foi concebido numa mulher de nome Jiangyuan que tinha
engravidado do Deus Supremo Shangdi (“Soberano do Céu”, 上帝 ) ao seguir suas pisadas. Ao que nasceu o filho
conhecido como Houji (“Senhor dos Milhetes”, 后稷 ). Ao acreditar que seu filho fosse indesejado, Jiangyuan
decidiu abandoná-lo no campo, mas depois Houji foi mantido aquecido por carneiros e bois. Novamente o menino
foi abandonado em uma floresta, mas foi resgatado por lenhadores, e depois no meio glacial, e ali foi abrigado sob
as asas dos pássaros. Após todos esses milagres de proteção na infância, Houji aprendeu as técnicas da agricultura
que passou adiante aos seus descendentes, o povo Zhou.
O povo Zhou começou a se assentar, após deixar para trás a atividade seminômade, numa ampla e fértil planície,
a Planície de Zhou, localizada a uns 80 km a oeste da atual cidade de Xian, em Shaanxi. Foi dessa planície que o
povo foi nomeado, e dele partiram para se estabelecer em toda a região. Momento em que, inicialmente, foram
nomeados como duques vassalos pelo regente Shang. Ainda de acordo com as lendas, os duques de Zhou
ambicionaram o título de rei, e passaram a se nomearem como tal. Após a morte do segundo rei Zhou pelos Shangs e
o terceiro ter sido mantido em cativeiro por sete anos até o seu resgate, os Zhous decidiram revidar e atacar o reino
Shang. Essa ofensiva foi liderada pelo quarto rei Zhou, Rei Wu (r. 1046 – 1043 a.C.), em que acusou os regentes
Shang de provocações, abusos de autoridade, e falha em realizar as cerimônias de maneira adequada a apaziguar os
ancestrais. O regente Shang foi, em último momento, derrotado em batalha, num local chamado de Muye, ao sul da
capital Shang de então, em Anyang, Henan. Evento que depois os estudiosos chineses dataram ser no ano de 1045
a.C., um dos eventos mais importantes da história chinesa.
Após a vitória e ascensão ao trono real, o Rei Wu dos Zhous dedicou sua glória e fortuna ao Céu e anunciou sua
intenção de assumir seu lugar no Reino do Meio (zhongguo, 中國 ), termo que ainda hoje remete ao nome da China
na língua chinesa.
O rei Wu chegou a morrer dois anos após sua vitória sobre Shang, e foi sucedido pelo seu filho mais velho, o rei
Cheng (r. 1042 – 1021 a.C.). No entanto, o sucessor tinha pouca idade e foi regido pelo irmão de Wu, o duque de
Zhou, que gerou intriga e suspeita entre os membros da família real. Decorreram conflitos internos que culminou
com a ascensão ao trono do próprio duque de Zhou. A história procede depois conforme é contada no Livro dos
Documentos, uma das cinco obras clássicas confucianas. Narra-se que o Céu mandou uma grande tempestade que
destruiu as colheitas do reino. Visando mitigar os efeitos catastróficos o jovem rei sucessor, filho de Wu, abriu uma
caixa de metal selada pelo duque de Zhou em que descobriu que o duque de Zhou ofereceu a própria vida a manter a
população em geral a salvo das tragédias. Depois disso o regente, duque de Zhou, continuou a comandar o reino até
sua autoridade de regente acabar com a maioridade do sucessor real. Essa história, de virtude e lealdade aos
princípios gerais como base legítima de boa governança veio depois a se estabelecer como um importante
ensinamento confuciano. Conceito que define que a legitimidade do imperador deve, como filho do Céu, atender aos
princípios de justiça e virtude do Mandato do Céu (tianming, 天命 ). O Céu era a entidade suprema entre os Zhous,
e a ele deviam obedecer e assim reinar sobre a terra abaixo dos céus (tianxia, 天下 ). Diferentemente da doutrina
ocidental em que o rei teria o direito divino de governar, baseado no seu nascimento, os chineses definiram critérios
morais para o uso do poder.
A Dinastia Zhou perdurou por mais oito séculos até meados do terceiro século a.C. As mudanças políticas com
relação à dominação Shang anterior era uma ampliação dos territórios administrados e o volume de recursos e mão-
de-obra reunidos. No entanto, o reino Zhou constituiu-se muito mais de filiações regionais do que um verdadeiro
império centralizado, a depender de senhores e líderes locais aliados aos desígnios da família real na capital. Sem
dúvida, o maior legado Zhou foi a ideologia política consolidada em torno de um Mandato do Céu a legitimar o
regente sobre todos os seus súditos e aliados. Mas a própria integridade Zhou veio a sofrer uma invasão bem-
sucedida vinda do oeste que resultou no saque e ocupação da capital, Fenghao, perto da confluência do Rio Feng
com o Wei, afluentes do Rio Amarelo em Shaanxi, em 771 a.C. Após isso, a capital Zhou foi deslocada para maior
segurança rumo ao leste, em Wangcheng, atual Luoyang, dando início ao chamado período Zhou Oriental (770 –
256 a.C.). No entanto, a desunião e o estrago já estavam evidenciados pela ascensão de poderios locais a contestar
qualquer soberania externa. A esse longo período de guerras e desunião política, os chineses denominaram de
Período dos Estados Combatentes (479 – 221 a.C.) (Zhànguó shídài, 戰國時代 ), em que várias unidades regionais
buscaram se afirmar como o soberano absoluto sobre seus domínios (guó, 国 ).

Mapa- A China no Período dos Estados Combatentes, por volta do século 5 a.C.

Em termos culturais, o período Zhou foi de seminal criatividade e efervescência. Quase todos os clássicos da
literatura chinesa e de grandes escolas de pensamento surgiram durante a hegemonia Zhou. Essas chamadas
“escolas” podem confundir, pois na verdade foram várias correntes filosóficas que incorporaram e influenciaram
umas às outras, em múltiplas obras e pensadores, sem necessariamente terem conjugado em escolas de pensamento.
Ainda assim, pode-se delinear algumas características em comum que podem distinguir uma das outras. A mais
notável e de grande influência na China e no leste asiático foi o confucionismo, seguido pelo taoísmo, legalismo e
alguns escritos clássicos de especialistas militares.
O confucionismo constituiu-se numa das mais influentes tradições chinesas. Contudo, o próprio termo parece ter
sido mais uma categorização ocidental, pois não há nenhum termo em chinês que corresponda à palavra
“confucionismo”, o mais próximo pode ser rú( 儒 ) (ou dos ensinamentos do rú, rújiào, 儒教 ). Termo chinês este
que se refere aos estudos clássicos que foram fundamentais na tradição cultural chinesa. Entre esses clássicos
literários, chamados de Cinco Clássicos, estão obras que foram compiladas e interpretadas somente em sua forma
final canonizada em fins do segundo século a.C.
Entre esses primeiramente consta o “Livro dos Documentos” ou “Livro da História” (Shujing, 书经 , ou
Shangshu, 书经 ) que reúne discursos, anúncios e outros documentos de grandes e sábias figuras da antiguidade do
período Zhou. Em segundo, há a coleção de canções e poemas de considerável beleza literária, no “Livro de Odes”
ou “Livro dos Cânticos” (Shijing, 诗经 ), a mais antiga coleção desse gênero na língua chinesa. O “Livro das
Mutações” (Yiching ou I Ching, 易 经 ) é um manual para fins divinatórios baseados num conjunto de 64
hexagramas em várias combinações de seis caracteres. E também há os “Ritos” (Li, 礼 ), que é o conjunto de três
livros que tratam de variados assuntos referentes aos rituais a serem observados. E por fim, os “Anais da Primavera
e Outono” (Chungqiu, 春秋 ), história dos acontecimentos, eventos e fenômenos do local de nascimento de
Confúcio, no estado de Lu, atualmente em Shandong, entre os anos de 722 a 481 a.C. A tradição atribui a esse
último como obra das mãos de Confúcio.
A esses Cinco Clássicos eventualmente foram acrescidas outras obras ao longo do tempo, ajuntando-se num total
de treze. Muito do prestígio desses clássicos se deveu à percepção de que foram retratos de uma Era de Ouro, de
Zhou, e sob a regência de regentes sábios. A ponto de se tornarem cânones a partir do segundo século a.C. em
diante, formando o núcleo da educação formal da China e de países próximos como na Coreia, Japão e Vietnã. De
tal maneira que a cultura do leste asiático se formou a partir dos escritos, pensamentos e rituais chineses que
constam nessas obras clássicas. Tornaram-se referência ao que era culto e refinado, respeitoso às tradições e aos
sábios ancestrais, a todos aqueles almejaram nesses países uma condição de status na sociedade.
O que nos remete à própria figura de Confúcio (551 – 479 a.C.). Cujo nome é a forma latinizada de Kong Fuzi,
ou Kongzi, “Mestre Kong”, nascido no estado de Lu, na província atual de Shandong. Durante sua vida, Confúcio
permaneceu uma figura misteriosa e muito de seus ensinamentos e pensamentos vêm de coleções de conversas
compiladas pelos seus seguidores após a sua morte, reunidas na obra “Analetos” (Lún Yǔ, 论语 ). A mensagem
central de Confúcio era que a liderança deveria vir do exemplo moral. Aqueles que almejassem governar deveriam
seguir uma força moral, integridade (de, 德 ) e rituais (li, 礼 ) que retificaria o caráter espontaneamente e teria
assim um papel de inspiração e respeito dos súditos. Nesse sentido, o pensador rejeita qualquer governo apoiado
apenas nas leis e punições, pois assim as pessoas sempre buscariam maneiras de evasão e desobediência.
O segredo para uma sociedade harmoniosa e justa deveria ser no auto-cultivo individual dos princípios morais de
um cavalheiro ou pessoa superior (junzi, 君子 ), que teria assim influência sobre outras pessoas ao redor,
eventualmente trazendo a boa convivência e paz na sociedade. Ou como o próprio Confúcio disse “cultive a si
próprio para que haja paz para todos”. O junzi deveria, ademais, observar a piedade filial e lealdade (zhong, 忠 ), o
culto aos familiares e ancestrais, e cultivar o senso de benevolência e caridade à humanidade (rén, 仁 ). Esta última
virtude consiste em ter empatia com os outros seres humanos, independente da condição, crença e origem, a
universalizar o senso de dignidade e justiça para toda a humanidade, reconhecendo-se o próprio ser no outro, ou
como nas palavras de Confúcio: “não deseje aos outros o que não deseja para você mesmo”. Em contraste, há aquele
chamado de pessoa mesquinha ou pequena, xiaoren( 小人 ), que falha em internalizar as virtudes necessárias e
apenas pensa egoisticamente e em ganho próprio, não considerando as consequências de seus atos.
Há, pois, um forte senso de harmonização e hierarquia na sociedade idealizada por Confúcio. A lealdade aos
familiares e ancestrais estende-se, como numa família, aos superiores na sociedade, algo que deveria ser evitado
sempre que não houver um forte senso de injustiça. O que aponta para uma das principais contradições do
pensamento confuciano. Por um lado, há ênfase na ordem e hierarquia. Por outro, o indivíduo auto-cultivado deve
aprimorar-se nas virtudes e buscar a justiça e empatia universal, sem distinções de hierarquia. Em outras palavras,
haveria a possibilidade de qualquer um se aprimorar nos seus potenciais a busca das virtudes de um junzi.
Essa contradição foi resolvida depois ao longo do tempo com a realização de concursos, por mérito, a partir do
terceiro século a.C., para a admissão de cargos oficiais públicos. Algo que se tornou um dos traços mais notáveis ao
longo da história chinesa.
Após quase um século depois de Confúcio, outro grande pensador confuciano surgiu, Mêncio (370 – 289 a.C.),
Mèngzǐ (“Mestre Meng”). Mêncio é conhecido por defender a natureza inerentemente benevolente do ser humano. A
partir disso ele apontou quatro virtudes cardinais do ser humano: benevolência (rén, 仁 ), justiça (yì, 义 ), sabedoria
(zhì, 智 ) e propriedade e etiqueta (lĭ, 禮 ). Cada uma dessas está associada a algum sentimento ou motivação.
Assim, o sentimento de compaixão é relacionado à benevolência. O sentimento de desdém, relaciona-se com justiça.
O sentimento de respeito, à propriedade e etiqueta. O sentimento de aprovação e desaprovação é sabedoria. Entre
estes quatro, Mêncio dedica a maior parte de sua discussão à benevolência e ao senso de justiça. A benevolência
manifesta-se no carinho que alguém tem com os seus parentes e ancestrais, assim como a compaixão e empatia pelo
sofrimento de outros humanos, e até mesmo com os animais.
Em contraste com a visão de Mêncio, Xunzi (c. 310 – c. 219 a.C.) (Hsün Tzu) viveu boa parte de sua vida nos
anos terminais e conturbados do Período dos Estados Combatentes, algo que o marcou profundamente. Xunzi
considerava a natureza humana repleta de desejos e impulsos que, se não controladas, levariam ao caos e destruição.
Para contornar tal tendência há necessidade de esforço e treinamento contínuo do ser, através de rituais apropriados
(li, 礼 ) e cultivado senso moral próprio (de, 德 ). Somente aqueles que assim almejassem e buscassem, através da
educação e auto-cultivo a serem guiados por um mestre, poderão reformar a própria natureza humana. Ou como
Xunzi certa vez comparou à argila bruta que nunca poderia se transformar num belo vaso de cerâmica sem a
adequada intervenção de um mestre.
Além do confucionismo, outra influente escola clássica foi o taoísmo. Se os confucianos enfatizaram as relações
humanas, os taoístas enxergam a relação mística do ser com a natureza. O homem deverá buscar sua ligação inerente
com a natureza, a buscar o seu ritmo, ciclos, a progressão do dia para a noite, vida e morte. A filosofia taoísta, assim,
buscaria apontar o caminho ou princípio (tao ou dao, 道 ) para restabelecer a união do homem a se harmonizar com
o meio natural e cósmico.
As origens do taoísmo remetem à figura de Laozi (Lao Tzu, “Velho Mestre”) (século 6 ou 5 a.C. – 531 a.C.),
cuja vida pouco se sabe a respeito. Seus escritos expressam um estilo leve de aforismos e comparações estimulantes.
Em sua obra clássica, Dao De Jing (Tao Te Ching, “O Livro do Caminho e da Virtude”), o pensador começa
afirmando que o Caminho é inexprimível e compara-o com a natureza, com a água, como ele mesmo escreveu:
A bondade suprema é como a água,
que nutre todas as coisas sem sequer tentar.

Alegra-se com os lugares baixos


que as pessoas desprezam.

Assim é o Tao. [544]


(tradução nossa)

O Caminho é o vazio, que é desprezado mas tem o seu valor essencial e positivo:

Ajuntamos trinta raios e chamamos isso uma roda; mas é no espaço onde não há nada que a utilidade da roda depende.

Transformamos argila para fazer um vaso: mas é no espaço onde não há nada que a utilidade do vaso depende.

Atravessamos portas e janelas para fazer uma casa; e é nesses espaços onde não há nada que a utilidade da casa depende.

Portanto, assim como aproveitamos o que é, devemos reconhecer a utilidade do que não é. [545]
(tradução nossa)

Os taoístas consideram a moralidade humana como artificial e contraprodutiva. Pois é justamente quando a
sociedade valoriza a honra que aparece a competição e disputa. E quando valorizam o ouro, prata ou jade como
pedras preciosas, há a cobiça e o roubo. Na valorização da beleza, aparece a feiura. E do bom, o mal. Sabedoria,
portanto, como concluiu Laozi, é não ir atrás de tais metas e valores.
Outra corrente filosófica da época, menos idealista que o confucionismo, e certamente nada místico como o
taoísmo, foi o legalismo (fa jia, 法家 ). Como se depreende do nome, o legalismo enfatizou técnicas de governo
baseadas em leis escritas, claramente codificadas e rigorosamente aplicadas. Essa corrente filosófica não se
constituiu propriamente numa escola, mas foi antes um conjunto de pensamentos e obras reunidas, notavelmente o
“Livro do Senhor Shang” (Shang jun shu), atribuído a Shang Yang (? – 338 a.C.) e Han Feizi (“Mestre Han Fei”) (?
– 223 a.C.). Esses autores refletiram muito mais sobre procedimentos e tendências administrativas e práticas que
emergiu após os anos de conflitos no Período dos Estados Combatentes.
O Livro do Senhor Shang diz em um dos seus capítulos que a lei é expressão de amor para com as pessoas e o
verdadeiro sábio deverá fortalecer o estado a beneficiar todas as pessoas desse modo, independente da antiguidade
dos modelos e dos ritos estabelecidos. Uma postura claramente anti-confucionista, como no trecho:
O sofisma e a astúcia são auxiliares à ilegalidade; ritos e música são sintomas de dissipação e folga; a bondade e a benevolência são a mãe adotiva
das transgressões; o emprego e a promoção são oportunidades para a rapacidade dos perversos. Se a ilegalidade for auxiliada, ela se torna corrente;
se houver sintomas de dissipação e folga, eles se tornarão a prática; se houver uma mãe adotiva por transgressões, elas surgirão; se houver
oportunidades para a rapacidade dos ímpios, eles nunca cessarão. Se essas oito coisas se juntarem, as pessoas serão mais fortes do que o governo;
mas se essas oito coisas inexistirem em um estado, o governo será mais forte do que as pessoas. Se as pessoas são mais fortes do que o governo, o
estado é fraco; se o governo for mais forte do que o povo, o Exército é forte. Pois, se essas oito coisas existirem, o governante não tem ninguém a
recorrer para a defesa e a guerra, com o resultado de que o estado será desmembrado e virará ruína; mas se não houver estas oito coisas, o governante
tem os meios para a defesa e a guerra, com o resultado de que o estado florescerá e alcançará a supremacia. [546] (tradução nossa)

Os legalistas prezam, portanto, pelo estrito realismo do governo e desconfiam de que a natureza humana seja
inerentemente boa ou das virtudes de um governante. As pessoas são naturalmente movidas por interesses egoísticos
e seus comportamentos podem ser corrigidos e modificados com a elaboração de leis e incentivos por recompensas
ou punições. O bem maior é a consolidação de um estado, forte e unido, para o bem e harmonia de todos. Nesse
sentido, no Período dos Estados Combatentes, o estado de Qin, que foi governado por Shang Yang (390 – 338 a.C.)
como primeiro-ministro no século 4 a.C., começou a se fortalecer e expandir-se sobre todos os outros reinos
próximos. Eventualmente a China seria a partir disso unificada num império.
As conturbações do Período dos Estados Combatentes na China também produziram uma série de pensadores e
estrategistas militares. Um desses grupos surgiu em torno de Mozi (c. 470 – c. 391 a.C.) que defendia o amor
universal a ser atingido por rigoroso treinamento e preparação marcial, a proteger-se de invasões e ofensivas
estrangeiras. Mozi chega a dedicar boa parte de seu livro a detalhar as técnicas e estratégias de defesa militar, como
sítio e escalada de muralhas.
Uma outra obra de estratégia militar do período foi o livro “Arte da Guerra de Sunzi” (Sun Zi Bing Fa) (fig.), de
autoria incerta e provavelmente escrita entre o século 6 e 4 a.C. Esta obra se tornou num tratado sobre como se
preparar e enfrentar o adversário em guerra. Dividido em 13 capítulos, cada qual a tratar de diferentes aspectos
bélicos, o livro discorre sobre as necessidades de preparo material e psicológico de defesa, sítio, ofensivas e recuos,
negociações, manobras em campo, análise do terreno, escolha do tempo adequado, e a inteligência e espionagem.
Todos, reunidos, deverão ser levados em sua devida proporção à cada situação do líder militar e governante. De
todos os conselhos, talvez um trecho seja o mais representativo a respeito da importância do conhecimento próprio e
do inimigo para a batalha:
É dito que, se você conhece seus inimigos e conhece a si mesmo, você entrará em risco nem em cem batalhas.
Se você conhece a si mesmo, mas não o seu oponente, você pode vencer ou perder.
Se você não conhece nem você mesmo nem seu inimigo, você sempre se arriscará a perder tudo. [547]
(tradução nossa)

Ou em outro trecho emblemático:


Guerreiros vitoriosos vencem primeiro e, em seguida, vão para a guerra, enquanto guerreiros derrotados vão à guerra em primeiro lugar para depois
buscarem a vitória. [548]
(tradução nossa)

Fig. – A Arte da Guerra de Sun Tzu (ou Sunzi), em bambu, propriedade do imperador Qianlong (1711 - 1799).

China (Dinastia Qin – 221 – 206 a.C.)


Os soldados encontrados por acidente por irmãos e colegas de Yang Zhifa em março de 1974 eram inéditos e
únicos em detalhe e escala na história da humanidade. O desconhecimento e surpresa do achado foram de tal monta
que as peças de terracota, material com que o exército imperial inteiro [549] fora enterrado a acompanhar e proteger o
primeiro imperador da Dinastia Qin, significado do seu nome póstumo, Qin Shi Huangdi (“Primeiro Imperador
Qin”), foram descartadas e buscaram apenas as peças de bronze das pontas de flecha para a venda no mercado.
Anos depois, as escavações arqueológicas depararam-se com a magnitude e escala do achado (fig.). O mausoléu foi
construído ao longo de 38 anos, de 246 a 208 a.C., com uma altura em torno de 75 metros em forma de pirâmide
truncada, com uma circunferência externa em torno de mais de seis quilômetros e internamente em dois quilômetros
e meio. O mausoléu fora concebido como uma verdadeira cidade com base na capital Qin, Xianyang. Somente o
túmulo imperial, no centro desse complexo, ocupa uma área estimada em 170 mil metros quadrado, ou quase um
quarto da Cidade Proibida de Pequim.
Fig. – Parte do Exército Imperial de Terracota de Qin Shi Huangdi.

Mas quem foi esse imperador e com se deu a construção do primeiro império unificado da China? A ascensão da
Dinastia Qin se deu a partir de 256 a.C. e foi anexando, no seu crescimento de poderio, os reinos locais, seis ao todo,
Yan, Chu, Qi, Zhao, Han e Wei, até 221 a.C. Assim, foi unificada toda a região norte chinesa e deu término ao
Período dos Estados Combatentes. O regente de Qin, Zhao Ying Zheng (r. 247 – 210 a.C.) completou assim a
missão de reunificar todos na China sob o Mandato do Céu.
Zhao Ying Zheng, foi então o primeiro na história da China a ser proclamado como imperador (huangdi, 皇帝 )
da Dinastia Qin que suplantou todos aqueles que tinham sido vassalos da Dinastia Zhou. Além do título imperial, o
regente de Qin considerou seus eventos comparáveis aos primeiros Reis Soberanos da antiguidade, colocando-se o
primeiro (shi, 始 ) entre todos. Ao todo, ficou depois conhecido pelo seu título “Primeiro Imperador Qin”, Qin Shi
Huangdi ( 秦始皇帝 ), uma posição suprema entre a terra e o céu. Algo que todos os imperadores chineses
posteriores foram intitulados até Puyi em 1912.
Qin Shi Huangdi nasceu em meio a família real de Qin, a oeste dos reinos chineses ao norte. Seu pai e avô
tiveram um reinado curto e conturbado, alimentando as intrigas e conspirações ao poder. Qin Shi Huangdi ascendeu
ao trono de Qin com apenas 13 anos de idade e foi regido por um mercador e primeiro-ministro, Lu Buwei (c. 291 –
235 a.C.), com quem depois começou a desconfiar das suas ambições. Após ter assumido plenamente o poder Qin
em 235 a. C, passou a planejar uma ampla reordenação de seu reino e outros da região.
Assim, suas primeiras campanhas militares se deram sobre o reino de Han e ocupou a cidade de Yangdi em 230
a.C. Após seguiu para o reino de Zhao em 228 a.C. e, dois anos depois, conseguiu a rendição do reino de Yan. E
depois de ter controlado o reino de Wei, Qin Shi Huangdi tomou o controle da cidade de Luoyang e os
remanescentes da Dinastia Zhou ali residentes em 225 a.C. As forças do reino de Chu foram derrotadas em 223 a.C.
e, por fim, o estado de Qi, último resistente, foi derrotado e sua capital, Linzi, foi ocupada em 221 a.C.
O sucesso avassalador das ofensivas militares de Qin foram consequências de uma série de reformas políticas e
administrativas feitas nos anos anteriores no reino. Ali, ao contrário dos outros reinos, foi focado uma centralização
do estado, algo que depois irá ser estendida sobre todos os reinos derrotados por Qin Shi Huangdi e descartando a
estrutura de aliança locais como o foi na época de maior proeminência da Dinastia Zhou (1046 – 480 a.C.).
O reino Qin tinha introduzido novos conceitos administrativos, a seguir os preceitos do legalismo, conduzidos
pelo primeiro-ministro Shang Yang e por Han Fei. Criaram um sistema centralizado eficiente e baseado no mérito de
cada administrador, sem qualquer benefício com base de nome de famílias e hereditariedade. O governo Qin buscou
padronizar todo o sistema de pesos, medidas e moedas (até mesmo o tamanho do eixo das carruagens) do reino e
depois pelo império. Culturalmente, o reino Qin buscou também incentivar apenas um sistema de escrita e suprimiu
todas as manifestações e registros do passado dos outros reinos. No campo filosófico, naturalmente, escolheram a
escola legalista como a oficial, e todos os dissidentes foram perseguidos, como o ocorrido na perseguição e morte
aos pensadores chineses em 231 a.C. Livros de medicina, engenharia, guerra, divinização foram os únicos poupados.
Talvez o maior legado histórico do império Qin tenha sido um monumental projeto de engenharia voltado para
fins de defesa a garantir maior ordem e paz na sociedade, conforme busca o ideal legalista. A Grande Muralha na
verdade começou a ser emendada e juntada em suas diversas partes fortificadas dos reinos anteriores, que sempre
buscaram se defender das incursões de povos nômades ao norte da China. Sob o domínio Qin, a muralha começou a
se estender, ininterruptamente, desde Liaodong, na atual província de Liaoning no nordeste chinês, à província de
Gansu, mais ao noroeste, a incluir todo recém conquistado deserto de Ordos. Nos séculos posteriores, o
empreendimento será ainda mais ampliado e melhorado até a Dinastia Ming (1368 - 1644). Nesse sentido, o
império Qin conseguiu consolidar sua dominação em todo o norte chinês, a salvaguardar-se das invasões das estepes
asiáticas ao norte. E estendeu seu domínio também mais ao sul, até a ampla planície de Sichuan, no curso médio do
rio Yangzi e, descendo a jusante do rio em direção à costa, toda a região de Fujian, Guangzhou mais ao sul. As
forças de Qin chegaram até mesmo à região setentrional do atual Vietnã, na região de Hanói.
Mapa do império Qin (Ch’in) (221 – 206 a.C.).

Contudo, a ocupação e dominação efetiva de toda essa ampla região provou ser temporária, pois os militares qins
não se estabeleceram entre os povos locais. Por serem proibidos pelo imperador e leis de estabelecerem vínculos e
comércio, os militares Qin foram muito mais cavaleiros que saquearam e pilharam por onde dominaram. Após o
saque e dominação, partiram logo para outros locais, deixando quase intacta as relações de poder e economia local
[550]
.
Ademais, com as constantes campanhas ao longo dos anos, regiões que foram submetidas inicialmente
apresentaram-se presas fáceis para outros invasores, como no deserto de Ordos, como o fez o povo nômade dos
xiongnus, que passaram dali a expandir-se mais a leste e oeste da região fronteiriça. Para buscar assegurar-se
novamente em Ordos, o general Meng Tian (? – 210 a.C.), sob as ordens de Qin Shi Huangdi, buscou então
colonizar a região com planos de assentamento agrícola de prisioneiros e exilados. O que causou grande
descontentamento e rebeliões posteriores entre as comunidades assentadas, uma das razões para o declínio e fim da
dinastia imperial Qin em 206 a.C. Contribuiu muito para o enfraquecimento imperial o sucessor de Qin Shi
Huangdi, que faleceu em 210 a.C. aos 50 anos de idade em campanha militar, em que foi sucedido pelo seu filho,
Qin Er Shi (“Segundo Imperador Qin”, 秦二世 ) (r. 210 – 207 a.C.), um governante inepto e fraco no comando do
poder imperial, pois fora muito mais influenciado por decisões do conselheiro Li Si e do eunuco Zhao Gao de sua
corte. O fim definitivo do imperador Qin Er Shin veio após ter sido derrotado na batalha de Julu, em 207 a.C.,
contra as forças do estado de Chu. A rendição e destruição da capital Qin, Xianyang, um ano depois ao líder de Chu,
Liu Bang (r. 202 – 195 a.C.), provou ser o toque fúnebre do império Qin, e despontou a ascensão de uma nova
dinastia imperial de Han. Nesse sentido, a dinastia imperial Qin provou ser breve, apenas quinze anos de duração,
mas com efeitos duradouros na história chinesa.
Seus efeitos mais duradouros vieram das reformas políticas e culturais. A escrita chinesa passou a ser
uniformizada, apesar das variações dialetais. A reforma legalista na administração e governo tornaram o império Qin
um sistema eficiente e centralizado, mas também mais propenso a abusos autoritários sobre líderes e comunidades
locais, algo que foi deplorado pelos confucionistas posteriores pela falta de humanidade. O sistema de poder
centralizado revelou ser vulnerável a intrigas e conspirações de membros da corte, como conselheiros e eunucos,
quando não há um governante com liderança, algo que depois será recorrente na história chinesa.
China (Dinastia Han – 202 a.C. – 220 d.C.)
No período conturbado após a queda dos Qins, Liu Bang provou ser o líder proeminente do norte chinês. De
origens humildes, construiu sua carreira no meio policial. Em 207 a.C., rebeldes sob seu comando, inconformados
com a decadência do regime, puseram fim ao período imperial Qin. Apesar das tentações ao poder, Liu Bang
mostrou fidelidade ao seu chefe comandante antes de saquear os tesouros da capital imperial Qin, Xianyang, perto
da atual cidade de Xian. Contudo, posteriormente, Liu Bang sentiu-se insatisfeito por ter sido nomeado apenas como
governante de uma região meridional distante à época, ao longo do vale do rio Han.
O rei de Chu, figura real mais destacada da época e de onde vieram os rebeldes de Liu Bang, chegou a ser
assassinado por um de seus comandantes em 206 a.C., ocasião em que Liu Bang aproveitou para iniciar uma ampla
frente de combates civis. O primeiro ato de Liu foi partir de Han, seu reino, ao norte e atingir a região estratégica de
passes controlada pelos antigos reinos de Zhou e Qin, em que se encontram os rios Wei e Amarelo, chamada de
Guanzhong (“Região dos Passes”, 关中 ), na província de Shaanxi. Após alguns anos de conflitos, em 202 a.C.,
Liu Bang derrotou todos os seus rivais e proclamou-se fundador de uma nova dinastia imperial, a Han (202 a.C. –
220 d.C.).
Como imperador, Liu Bang passou a ser referido como Han Gaozu (“Grande Ancestral dos Hans”, 漢高祖 ), ou
simplesmente Gaozu. Apesar das devastações das guerras nos anos anteriores, o cenário foi propício para as
reformas políticas e administrativas de Gaozu. Os principais aliados e suas famílias foram devidamente
recompensados com terras e títulos de reis, de fato governadores dos reinos submetidos ao império. Essa tendência
centrífuga aparente, contudo, foi revertida após a consolidação da ordem e paz no império Han. Dentre de meio
século, todos os reinos que mantinham alguma autonomia foram efetivamente controlados por uma administração
centralizada imperial.
Uma vez no trono imperial e no poder, Gaozu começou a organizar e ampliar suas forças militares, chegando a
reunir mais de 300 mil homens de infantaria. Tal intento se mostrou necessário diante das crescentes incursões de
povos nômades do norte. Os embates com esses povos das estepes asiáticas, mostrou-se cada vez mais difícil, pois
esses já tinham se organizado em uma espécie de confederação chamada de Xiongnu, reunindo centenas de clãs,
tribos e nações diferentes. Apesar da evidente linha de defesa proporcionada pelos contínuos reforços e construções
da Grande Muralha, a fronteira setentrional da China da época se inseria numa ampla zona de transição de
comunidades e cidades sedentárias ao sul e povos que lidavam com a pecuária e semi-nomadismo ao norte. De fato,
a construção da linha de defesa nas muralhas chegou a avançar e incorporar região de povos nômades no norte
chinês, algo que até os dias atuais diferenciam-se em Mongólia Interior, dentro do território chinês, e a Mongólia
Exterior, além do deserto de Ordos e de Gobi, local de povos considerados como não chineses, ou súditos de Han.
Visando combater Xiongnu e manter a linha de defesa, Gaozu e seus sucessores Han implementaram um sistema
de conscrição e recrutamento obrigatório ao serviço militar a todos os homens em idade hábil, um ano de
treinamento e outro de serviços prestados. O que resultou num engrandecimento do Exército Imperial Han
principalmente na infantaria. Mas ainda assim, mostrou-se incapaz de enfrentar os arqueiros e montaria de Xiongnu,
mais ágil em campo e com alcance superior. Nesses embates problemáticos e duradouros contra a confederação dos
nômades, o próprio imperador, Gaozu, chegou a ser encurralado e preso numa montanha perto da atual cidade de
Datong, próximo à curva do rio Amarelo, no ano de 200 a.C.
Diante das dificuldades em submeter Xiongnu, os imperadores Han decidiram nas próximas décadas no segundo
século a.C. a buscar uma política de apaziguamento e negociação, ofertando aos seus chefes generosos presentes e
membros da família imperial a se casarem com chefes xiongnus. Essa política somente foi revista com a ascensão ao
trono chinês de Wu ( 武 ) ou Wudi (“Imperador Marcial”) (r. 141 – 87 a.C.), que governaria por 45 anos, maior
período de tempo de governo imperial na China até o século 18.
O imperador Wu, assim que subiu ao trono, buscou reformular a política para Xiongnu. O apaziguamento foi
rejeitado pois não impediram as continuadas incursões advindas do norte da Muralha. Ademais, a Dinastia Han
buscou readequar Exército Imperial, além da numerosa infantaria, no uso de melhores cavaleiros e de um poderoso
arco de maior alcance chamado de besta ou balestra. Novas estações e fortificações foram adicionadas à Grande
Muralha. O imperador Wu buscou, em termos estratégicos, contornar a confederação xiongnu, ampliando as bases,
muralhas e fortificações mais a nordeste, na região sul da Manchúria e norte da península coreana. E ao noroeste,
Wu despachou diversas embaixadas a buscar aliados nas regiões ocidentais, empreendimento que resultou nos
primeiros emissários chineses a chegarem além do deserto de Taklamakan e das Montanhas Pamir na Ásia Central,
chegando à cidade de Samarcanda, no Uzbequistão, em 101 a.C. e até mesmo na Pérsia (império parta à época).
Nesse sentido, houve um significativo avanço da presença han nas regiões ocidentais da atual China, em que
foram incorporadas e controladas as províncias de Gansu e Xinjiang (Turquestão Oriental ou Uiguristão). Os efeitos
mais notórios dessa expansão, visando enfraquecer Xiongnu, foi além do maior alcance imperial chinês, o
prolongamento da Grande Muralha rumo ao nordeste e noroeste, assim como, com a construção de estradas,
fortalezas, bases e guarnições, garantir maior ordem e estabilidade da região que se tornará essencial no comércio
com a Ásia Central e regiões mais ao Oeste, no que depois foi chamada de Rota da Seda. Ao final desse processo
durante a Dinastia Han, Xiongnu começou a se desintegrar ao ter seu sistema de alianças e tributos interrompidos
por volta de 73 a.C. Mas os custos desse enorme empreendimento foram lesivos ao tesouro imperial Han. Apesar de
novas rotas comerciais terem sido abertas, a vender a seda e outros produtos chineses ao mundo, em troca de vidros
do Mediterrâneo e uvas da Pérsia, a economia Han começou a mostrar sinais insustentáveis de endividamento. Para
tanto, foram propostos novos impostos de monopólio sobre certos produtos, como o sal, minas, ferro, álcool e
cunhagem de moedas. Um relato singular do debate entre os legalistas dessa nova política econômica sobreviveu à
passagem do tempo, e foram publicados como “Debates sobre o Sal e o Ferro” (yán tiě lùn, 鹽鐵論 ), de 81 a.C. [551]
Mapa – As expansões do império han na China (202 a.C. – 220 d.C.).

O confucionismo ganhou forma canônica conforme decretado pelo imperador Wu em 136 a.C. Nesse sentido,
mestres e professores foram designados a ensinar os Cinco Clássicos confucianos [552], e foram criadas academias
que, ao final do período Han, chegou a reunir cerca de 30 mil estudantes advindos de todo o império, além de
ocasionais coreanos, vietnamitas e japoneses. Para a admissão nesses centros, foi sistematizada uma série de
exames aos candidatos que, se aprovados, ocupariam influentes postos de administração pública imperial. Essa
condição pública acarretaria em elevado status ao funcionário. E tal propósito foi ambicionado pelas tradicionais e
prósperas famílias a terem seus filhos admitidos nessa carreira.
Com o passar do tempo, os valores confucianos foram inseridos como base ideológica do estado e sociedade
chinesa do período Han. No último século a.C., valores dessa corrente foram fixados nas portas de construções
públicas e algumas casas de cada cidade e vilarejo. E seguindo os preceitos de fidelidade familiar e ancestral, todos
aqueles que teriam perdido um familiar, seriam dispensados temporariamente dos trabalhos compulsórios ao estado.
A ideologia confucionista forneceu ao estado Han uma forma de legitimidade, ancorada no passado em torno de
obras clássicas chinesas. Os clássicos, nesse propósito, foram incorporados e reinterpretados, principalmente por
Dong Zhongshu (179 – 104 a.C.) que sistematizou as ideias confucionistas, relacionando-as à um sistema de ordem
cósmica, imperial e social. Em que foi exaltada a estrutura política imperial com a ordem natural. A obediência à
hierarquia que remete ao imperador Han seria reflexo natural da ordem da natureza do universo, garantindo assim,
ao bom andamento dos eventos e estações naturais a evitar imprevistos e catástrofes como enchentes, tempestades e
secas.
Uma das propostas dessa linha de pensamento renovado foi a de que a ordem cósmica, das forças naturais e
mundo dos espíritos estava intimamente ligado apesar de separado em três domínios separados de existência: o do
reino dos céus (acima), o reino da terra (abaixo) e o reino dos homens entre os dois. O céu e a terra possuem ritmos
cíclicos governados pelas forças polares do yin (força escura e feminina) e yang (força brilhante e masculina) e pela
influência das cinco forças materiais: água, fogo, terra, madeira e metal.
Esse reino natural era em grande parte um sistema equilibrado e autocorretivo que se harmonizava em ritmos: o
dia, mês, estações, ano e assim adiante. Nesse jogo de equilíbrio, a humanidade seria uma espécie de governador. A
ação humana, principalmente através de rituais e boa governança, poderia manter essas forças em harmonia. Erros
humanos causariam perturbações e desordens naturais: estrelas cadentes, cometas, terremotos, enchentes. O
regulador central da esfera humana era o imperador chinês. Não poderia ser concebível, portanto, a cada indivíduo
inventar e seguir suas próprias diretrizes e ideias. Caberiam aos sábios, ao longo dos tempos, traçarem as formas
apropriadas de confluência entre padrões humanas e naturais, a assegurar as cerimônias e rituais a manter a ordem e
justiça humana e cósmica. Como dito, o imperador era o pivô de toda a humanidade. Suas ações, respeito e
observância aos rituais, seu caráter e política, deveriam sincronizar com todo o reino dos homens. Se os atos do
imperador fossem desviados, toda a humanidade sofreria com a desordem da natureza e do cosmos.
Esse pensamento de Dong Zhongshu conferiu, pois, ao governante um papel de grande extensão e
responsabilidade. Ao ressaltar a centralidade do imperador, Dong deu-lhe uma importância singular dentro de um
contexto social hierárquico, conservador aos costumes e rituais, a garantir a ordem natural e cósmica, apropriado à
ideologia confucionista. Mas, apesar de exaltar a posição do imperador, também propôs que haveria deveres
cósmicos a serem rigorosamente obedecidos e executados. Qualquer sinal de anomalia natural e cósmica poderia ser
interpretado como sinal de desordem iminente ou erro do regente, possibilitando questionamentos políticos por parte
de seus rivais e ministros.
Essa estrutura ideológica não significou uma adoção, por sua vez, da obediência irrestrita conforme defendia o
legalismo. O confucionismo de Dong considerava, na essência de cada indivíduo, a liberdade inata de escolha e
arbítrio, a refletir suas convicções e princípios. Nesse sentido, o taoísmo conjugou-se ao sistema ideológico
consolidado na época. O indivíduo, assim, poderia buscar harmonizar-se com a natureza e o universo, em estado de
perfeita serenidade e sem tensão, um modo de não-agir, inação (wuwei, 无 为 ), algo que resguardaria aquele que
desejasse não obedecer às obrigações da sociedade e política. Uma aparente contradição com as exigências de
obediência e ordem ao estado e hierarquia preconizada pelo confucionismo e legalismo.
Isso não impediu de surgir desde o 2 século a.C. uma forma ideológica que incorporou elementos do taoísmo e
do legalismo, o sistema Huang-Lao( 黄老 ). Sistema esse que com o tempo foi se tornando a principal ideologia de
governo, pois defendia a obediência e senso hierárquico, com uma certa margem para o indivíduo buscar o caminho
próprio de harmonia com a ordem natural. Uma das mais célebres seguidoras desse sistema foi a imperatriz viúva
Dou (r. 157 - 141 a.C.) , após a morte de seu esposo, o quinto imperador Han, Wen (180 - 157 a.C.) [553]. As tensões
entre a imperadora viúva e Wu começaram a ficar evidentes com base nas discordâncias ideológicas dos dois. Na
morte do pai do imperador Wu em 141 a.C., Wu quis respeitar a tradição fúnebre e ordenou aos seus ministros que
realizassem sacrifícios e oferendas ao Céu no Monte Tai, algo que não era realizado desde os tempos do primeiro
imperador Qin, Shi Huang. A imperatriz Dou nada gostou do ato e mandou um recado ao seu neto, o imperador Wu,
de que os ministros que assim fizessem seriam sumariamente demitidos de seus cargos, julgados e presos. Apesar
das desavenças com sua avó, Wu conseguiu levar adiante seu círculo político e ideológico, ainda mais depois da
morte da imperatriz em 135 a.C.
Com as inquietações crescentes das obrigações a serem respeitadas pelas tradições, o imperador Wu passou a
ficar impaciente com as possíveis acusações de erros e desordens. Com a morte de sua avó, Wu passou a pedir a
Dong Zhongshu a elaborar melhor seu pensamento, ao que o pensador elaborou um longo memorial de frases e
contos confucionistas do passado confucionista. Em determinado momento, Dong passou a se concentrar num
governo de reforma, claramente a persuadir o imperador a fazer uma varredura no governo a afastar funcionários e
ministros corruptos e ineptos. E um dos pilares dessa necessidade de reforma seria a seleção de novos funcionários
para a entrada no governo imperial. Ao que depois se tornou como uma das maiores tradições chinesas (que
perdurou até 1905), o sistema de exames por mérito para a admissão ao funcionalismo público. O imperador, sendo
a figura central da ordem na humanidade, atuaria como examinador chefe nas fases finais.
Com as reformas de Dong, o sistema confucionista ganhou novo fôlego na corte chinesa, possibilitando aos
reformistas e conservadores expressarem suas insatisfações e convicções no estado imperial chinês. As
considerações sobre a antiguidade e o rigor dos ritos passados poderiam ser questionadas com base na ordem e boa
governança do imperador. Dissidentes do pensamento de Huang-Lao e antigos legalistas foram gradativamente
isolados ou perseguidos na China. Com esse novo pensamento, foi provavelmente com base nas ideias de Dong que
a partir de 135 a.C. a Academia Imperial (Taixue, 太學 ) (fig.), responsável pelo pensamento oficial e ideológico do
estado chinês, a partir de seus mais graduados membros selecionados pelo sistema de concursos públicos, passou a
endossar e legitimar a estrutura chinesa de poder. Em suma, o confucionismo reformado de Dong Zhongshu passou
a ser a ideologia ortodoxa do estado da Dinastia Han.

Fig. – Prédio das salas de ensino da Taixue (Academia Imperial), símbolo maior dos exames imperiais e da ideologia confucionista, como se encontrava em
Pequim em foto tirada em 1907.

Uma vez estabelecido como ideologia do estado, o confucionismo passou a se popularizar entre a sociedade
chinesa, indo além da corte e dos altos funcionários e ministros. Jovens de todas as origens sociais que alimentavam
o sonho de mudança e prestígio, passaram a estudar e se familiarizar com as ideias reformadas de Dong, e de alguns
textos clássicos confucionistas requeridos para o sistema de exame de admissão imperial. Para aqueles que
desejaram chegar a cargos mais altos do governo, era necessário o profundo estudo dos textos confucionistas,
daqueles que eram selecionados pelos mestres e professores da academia imperial por vários anos. Esse conjunto de
pensadores que estabeleceram a doutrina confucionistas dos tempos da Dinastia Han não passaram de duzentas
pessoas, mas foram fundamentais para consolidar o confucionismo ao ponto da China imperial de Han ser referida
depois como China confucionista. Existem boas razões para isso, mais do que qualquer outro período da história
chinesa. No sentido de que os textos confucionistas e de seus seguidores passaram a ser a base ideológica que
selecionou aqueles que depois passariam a administrar o estado chinês em todos os níveis.
Isso não significou, contudo, que todos os rigores dos primeiros escritos de Confúcio foram aplicados ao
governo. O pensamento confucionista havia sido reformulado para as práticas burocráticas na Dinastia Qin. E nos
tempos de Han, houve um corpo de administradores e funcionários que passaram a adequar ainda mais a doutrina
confucionista para a aplicação da lei em termos locais e da cobrança de impostos, algo que muitas vezes apontava
para as tradições do legalismo confucionista dos séculos anteriores. Mas ainda mais grave, o ideal confucionista de
plena piedade, lealdade e ética nos negócios públicos acabou degenerando em condutas abusivas e corruptas dos
funcionários, desgastando a legitimidade do estado Han aos olhos da sociedade. Esses degenerados funcionários
públicos, membros privilegiados da sociedade chinesa, acabaram privilegiando cada vez mais os favores familiares e
de amigos nos negócios do estado, tornando a corrupção algo endêmico em todos os níveis políticos da era Han e
sempre à espreita nos séculos posteriores na história chinesa. Os avisos de Dong Zhongshu ao imperador Wu
pareciam ecoar cada vez mais forte diante desse cenário decadente, ao insistir nos conselhos das virtudes de um
imperador contra a natureza corruptível e desordeira do ser humano:
Um regente autêntico deve escutar o Céu e seguir seus decretos. A educar as pessoas para completar sua natureza e defender a lei para manter a
ordem e vigiar os desejos (...) feito isso, o regente garantirá uma fundação sólida para seu império (tradução nossa) [554].

Essa divergência entre os ideais confucionistas reformados de Dong Zhongshu e a realidade do governo
burocrático do período tardio da Dinastia Han marcam a história chinesa nos primeiros séculos de nossa era. Isso em
parte se explica pela própria ideologia confucionista proposta por Dong e como ela legitimou um sistema
centralizado e burocratizado por funcionários aprovados nos exames confucionistas. Nesses exames, cobrava-se os
clássicos e estudos confucionistas, privilegiando aquelas mentes brilhantes para a teoria, mas com pouco veio para
as questões práticas. Gerações de funcionários públicos, portanto, acabavam tendo que defrontar com questões
práticas e de gestão local, desde contabilidade a questões de propriedades e tributos, disputas e desavenças em geral
onde era lotado. Muitos desses funcionários tornaram-se cínicos e interessados apenas nas virtudes pessoais, sem
qualquer compromisso público. Outros temiam em responder às demandas de seu cargo com ortodoxia
confucionista, reforçando ainda mais a rigidez da hierarquia do poder local e do império. Dong, em parte, foi
responsável por essa degeneração. Ao reconfigurar o confucionismo através da teoria dos cinco elementos e das
forças yin e yang, criou uma ideologia centrada na figura do imperador que podia tornar-se num autocrata. Embora
fosse atrativo para o imperador Wu, essas ideias acabaram endossando a ordem e hierarquia a qualquer custo, sem
maiores preocupações com o cultivo das virtudes e da ética dos governantes e funcionários. Enfraqueceu a ênfase na
autotransformação pessoal essenciais para a ética confucionista, fortalecendo o egoísmo e arbitrariedade da política
chinesa.
O reinado do imperador Wu da Dinastia Han durou até sua morte em 87 a.C. Foi sob seu trono que a China
conheceu uma notável expansão territorial ao norte, sobre a nação de Xiongnu, avanços sobre os territórios ao oeste,
controlando as prósperas rotas comerciais terrestres para a Ásia Central e além, e regiões ao sul até o que hoje é o
norte vietnamita. Talvez tenha sido o sonho de Wu emular o Primeiro Imperador Qin, Huangdi, mas os custos de sua
política começaram a fazer efeito nas receitas do estado e no crescente problema administrativo do vasto território
controlado. Após Wu, a Dinastia Han não conseguiu mais recuperar a paz e ordem dos anos anteriores. Pressões de
alguns funcionários e ministros por reformas mais pragmáticas no veio do legalismo confucionista tornaram-se cada
vez mais evidentes, diante do quadro de corrupção e decadência do estado. O mais notável legado desse período foi
a obra inovadora de um literato, Sima Qian (c. 145 ou 135 a.C. – c. 86 a.C.), que escreveu sobre a história chinesa
desde os primórdios míticos da figura do Imperador Amarelo aos seus dias entre 109 a.C. e 91 a.C. A obra, Shiji( 史
记 ) (fig.), é marcada pela clareza histórica e dividida em seções de assuntos específicos como música, cerimônias,
calendários, religião, economia e biografias. Sima Qian irá influenciar toda a posteridade chinesa pela sua qualidade
literária e histórica, comparável no Ocidente à Heródoto e Tucídides.
Fig. – Primeira página da monumental obra de Sima Qian, Shiji.

No final do primeiro século a.C., uma série de imperadores da Dinastia Han mostraram-se incapazes e
inexperientes diante dos desafios que a China se encontrava. Por volta do ano 1 a.C., uma criança subiu ao trono
imperial e um regente, Wang Mang (45 a.C. – 23 d.C.), foi a ele designado. Wang Mang não fora apenas um homem
instruído no conhecimento e virtudes dos seguidores de Confúcio, mas alimentava um ardor por reformas
substantivas. No ano 8 d.C., Wang Mang resolveu tomar o poder e fundar uma nova dinastia revigorada, chamada de
Dinastia Xin (“Nova Dinastia”) que perdurou apenas até sua morte em 23 d.C. Mas foi durante esse período que
foram instituídas diversas reformas destinadas a restaurar as instituições chinesas inspiradas no auge da Dinastia
Zhou (c. 1046 a.C. – 256 a.C.). A curta existência de Xin talvez tenha sido causada pela morte de seu líder, mas
certamente foi impactada pela série de desastres naturais que assolaram a China do norte com o transbordamento do
Rio Amarelo, mudando drasticamente seu curso a desaguar no mar não mais na baía de Bohai ao norte da península
de Shandong, mas ao sul da mesma. O custo humano dessa tragédia foi enorme. Incontáveis vilas e comunidades de
camponeses foram devastados e muitos morreram decorrente da fome gerada em consequência. Milhões migraram
do norte chinês para as terras ao sul, nas planícies de Sichuan e além do vale do Rio Yangzi, em regiões mais
quentes e florestais. O custo desse desastre foi fatal para Wang Mang. As revoltas foram inúmeras, assim como
acusações contra seu desmando imperial apontado pelos sinais naturais. Eventualmente, Wang Mang foi morto em
23 d.C. e sua dinastia chegou ao fim.
Reinos Combatentes na China (século 3 d.C.)
No período de confusão e desordem que a China atravessou nas primeiras décadas de nossa era emergiu um
outro líder, Liu Xiu, que depois ficou conhecido como o imperador Guangwu (r. 25 – 57 d.C.), de uma linhagem
lateral do clã dos Lius, descendentes do fundador da dinastia de Han, Liu Bang. Guangwu resolveu retornar à antiga
dinastia de Han e continuar as tradições de seus antepassados. O imperador, no entanto, por considerações
estratégicas, resolveu mudar a capital de Chang’an mais para o leste, para Luoyuang, local da antiga capital dos
tempos da dinastia de Zhou. Por isso, posteriormente, essa dinastia foi chamada de Han Oriental (25 d.C. – 220
d.C.), a diferenciar dos antigos hans.
O reinado de Gaungwu mostrou-se eficaz no estabelecimento da ordem imperial, mas isso não impediu a lenta e
inexorável ascensão de rebeliões e dissolução política. O mais notável desses movimentos veio de clãs que tinham
acumulado poder sobre decisões governamentais locais e influência na corte imperial, cenário que se assemelhou ao
ocorrido nas regiões orientais durante a Dinastia Zhou oito séculos antes. Entretanto, o golpe mais decisivo contra a
renovada Dinastia Han de Guangwu foi a disputa na própria corte imperial entre grupos de funcionários e ministros
graduados da Academia Imperial confucionista e os eunucos. Estes tinham desempenhado um papel crescente na
política da corte. Eram cultivados pelos imperadores pois, como eram castrados, podiam ser guardiões confiáveis do
harém imperial. Contudo, o papel dos eunucos na corte interna dos imperadores deu-lhes influência decisiva e
singular nos círculos íntimos da corte e da estrutura imperial. E com o tempo, o número de eunucos passou a ser
cada vez mais numeroso. Os confucionistas, por sua vez, se viam como candidatos legítimos aos altos cargos de
poder, e ressentiram-se do papel dos eunucos, acusando-os de degenerados e corruptos advindos de sua natureza
castrada e não cultivada nos estudos.
A escalada dessas disputas, entre confucionistas e eunucos, trouxe com o tempo instabilidade na corte imperial
de Han Oriental. No segundo século d.C. foram inúmeras as perseguições contra acusados de conspirar contra o
imperador e a tradicional ordem chinesa. Em torno do ano de 170 d.C., vários estudantes confucionistas da
Academia Imperial foram vítimas. Em 189 d.C., dois mil eunucos foram mortos por vingança. Esse caos político
enfraqueceu o poder em Luoyang, dando ensejo a uma série de rebeliões de clãs e líderes locais nas províncias do
império. Muitos desses movimentos foram inspirados por insatisfações diante da crescente concentração de riqueza
e poder nas mãos de poucas famílias privilegiadas e desilusão diante da falta de moralidade de funcionários
confucionistas. O mais notável desses movimentos foram os chamados Turbantes Amarelos que entre 184 e 205
(mapa) lutaram e defenderam uma renovada crença taoísta que tinha se espalhado pela China. Essa nova forma de
pensamento fundia os ensinamentos derivados dos textos de Laozi, as ideias de Huang-Lao, os rituais aos ancestrais
da antiga Dinastia Han e das artes associadas às tradições do fangshi( 方士 ) [555].

Mapa – Extensão das lutas dos Turbantes Amarelos em 184 d.C.

As rebeliões dos Turbantes Amarelos minaram definitivamente a dominação da Dinastia Han Oriental. A isso se
juntou os outros fatores analisados que contribuíram para o fim da ordem imperial chinesa no início do terceiro
século de nossa era: disputas e desunião na corte entre confucionistas e eunucos, rebeliões populares como a dos
Turbantes Amarelos, líderes e clãs regionais que passaram a concentrar o poder local, a insatisfação popular contra a
concentração fundiária e a decadência dos valores e costumes dos funcionários do governo imperial. Em 191 d.C.,
um líder militar chegou à capital imperial, Luoyang, saqueou e queimou suas riquezas e acervos da biblioteca
imperial. Sedas, mapas e livros foram usados como cortinas e sacos pelos seus soldados. Em outras regiões da
China, exércitos rebeldes carregaram cabeças de homens e levaram as mulheres nos cavalos como presas de guerra
[556]
. Essa narrativa veio de linhas escritas de testemunhas horrorizadas e prisioneiros feitos, como o caso de uma
mulher da corte imperial que acabou sendo vendida para viver com um príncipe de Xiongnu. Depois de seu resgate,
essa escritora nos narrou que toda a biblioteca particular de seu pai, de mais de quatro mil rolos de livros foi perdida.
A queda final dos hans, eventualmente, veio no ano de 220 d.C., levando a um período de desagregação e
desunião na China. Mas o caos político já estava evidente na China nos anos finais do segundo século de nossa era.
Em 196, havia treze poderes independentes que disputaram entre si as ruínas do que restava do império chinês.
Alguns desses poderios eram apenas temporárias associações de exércitos que buscavam saquear e pilhar na medida
que avançavam pelo interior da China. Mas houve entre outros líderes com notável senso de estratégia e liderança.
Um deles, talvez um dos mais famosos da história chinesa, foi Cao Cao (155 – 220) (fig.), cujo pai fora um filho
adotivo de um importante e influente eunuco na corte Han. Cao Cao usou desses contatos para influenciar membros
restantes da corte imperial e de outros líderes regionais para impor sua dominação sobre todo o norte da China
(mapa). Em 207, chegou a controlar possivelmente metade da população chinesa. Foi somente depois da morte de
Cao Cao em 220 que seu filho, Cao Pi, teve a audácia de destronar finalmente o último imperador Han e se
proclamar como imperador fundador de uma nova dinastia, chamada de Wei (Uei, 魏 , ou Cao Wei, 曹魏 , 220 -
266, para distingui-la de outra dinastia anterior chamada também de Wei).

Fig. – Cao Cao recitando poesia logo antes da Batalha dos Penhascos Vermelhos. Grande Corredor do Palácio de Verão, Pequim.
Mapa – As extensões da Dinastia Cao Wei (Wei) (amarelo) no norte em meio aos outros reinos chineses, Shu Han e Wu, em 262 d.C.

À medida que o tempo passou, o reino de Cao Wei se estabilizou juntamente com outros reinos mais ao sul da
China, esses referidos como o de Shu Han e de Wu, mais ao litoral. Foi, portanto, diante disso que a história chinesa
passou a chamar esse tempo de Período dos Três Reinos ( 三国 )(220 – 280). O reino de Wu havia se estabelecido
ao longo do rio Yangzi, com sua capital em Nanjing (ou Nanquim); e o reino de Shu Han (221 – 263) no sudoeste,
atual região de Sichuan. Shu Han era uma clara referência à antiga Dinastia Han, uma vez que seus reis
reivindicaram serem descendentes da antiga linhagem imperial. Mas esse período da história chinesa ficou
imortalizada na ficção e literatura como a era de guerras heroicas e estratégias militares, numa das obras mais
conhecidas dos chineses, o Romance dos Três Reinos ( 三国演 义 ) (fig.). Embora a obra tenha sido escrita séculos
mais tarde, sendo a primeira edição do romance datando do início do século 16, o livro é uma releitura fictícia da
história do período, com a figura de Cao Cao se destacando como líder ardiloso e hábil na movimentação
estratégica, militar e política, como ocorreu na famosa Batalha dos Penhascos Vermelhos (ou Batalha de Chibi) no
ano de 208 e 209. Outras obras do Período dos Três Reinos também foram destaques no campo da filosofia,
literatura e artes. Um dos filhos de Cao Cao, Cao Zhi (Zijan), foi um notável poeta que marcou o estilo de literatura
chinesa, o estilo de Jian’an.

Fig. – Ilustração da Dinastia Ming do Romance dos Três Reinos de 1591.

Outra figura de destaque da época foi Ruan Ji (210 – 263), um dos célebres personagens históricos da China
dos chamados “Sete Sábios do Bambu”. Ruan Ji escreveu e levou uma vida de abstração das convulsões sociais do
mundo em que vivia. As explicações acerca do mundo passaram a focar mais a metafísica invés da ordem política e
social como o confucionismo. O taoísmo passou a ser mais popular, com ênfase nas explicações acerca da
transitoriedade das coisas, do efêmero, da finitude da vida. Um certo cinismo passou a ser voga, quando se dizia à
época de que tanto o tirano quanto o sábio iriam morrer por igual. A libertinagem, a bebedeira, o hedonismo e as
drogas passaram a ser parte do cotidiano de pensadores e artistas. Era comum o desrespeito às tradições e decoro
confuciano (presentes no conceito ideal do li, 禮 [557]). Outra anedota da época contava sobre os devaneios de um
personagem a refletir sobre o mundo num carrinho de mão com um jarro de vinho e um servo com uma pá, instruído
a enterrá-lo onde quer que morresse. Ao mesmo tempo, criou-se um clima de hipocrisia para aqueles que almejaram
ser aprovados nos exames imperiais, a estudar e refletir sobre o pensamento ideal confucionista. Ruan Ji, como tal,
representou bem essa figura contraditória, ao pretender atacar a falta de valores e falsidade entre os estudiosos e
funcionários do governo.
Em 266, o reino de Cao Wei foi usurpado por um líder militar, Sima Yan (236 - 290), que fundou uma nova
dinastia chamada de Jin Ocidental (266 – 316). Em 280, esse reino passou a expandir suas fronteiras e invadiu os
outros reinos chineses, com a subjugação final de Wu no sudeste. O império chinês parecia ter sido reunificado mais
uma vez, mas isso provou ser efêmero, durando pouco mais de uma década antes de se fragmentar novamente. O
próprio Sima Yan tinha aprendido com a facilidade com o seu golpe palaciano e após subir ao trono - como
imperador Wu de Jin - começou a apontar diversos parentes próximos como herdeiros e príncipes. Eventualmente,
em vez de solidificar a dinastia, criou-se as condições para lutas e disputas dentro da própria família imperial de Jin
Ocidental depois que o fundador da dinastia morreu em 290. A unidade imperial de Jin logo se fragmentou entre
príncipes que almejaram o trono imperial e muito da força militar desses disputantes advinha de mercenários e
cavaleiros de regiões de seminômades ao oeste e norte da China.
O exército chinês, desde os tempos da Dinastia Han, era composto por fileiras de soldados conscritos. Mas
desde então, a partir do primeiro século de nossa era, o alistamento havia deixado de ser praticado em favor de
exércitos profissionais muitas vezes de povos de minorias étnicas nas margens das extensões chinesas. Grande parte
da defesa da fronteira norte chinesa era responsabilidade de aliados nômades, que haviam se estabelecido dentro das
fronteiras do império han num cinturão que estendia desde a Manchúria ao leste até o norte do Rio Amarelo ao
oeste. No fim do terceiro século d.C., com a implosão da unidade imperial chinesa em meio às guerras civis
prolongadas, esses guerreiros não-chineses começaram a tomar controle dos campos de batalha. Em 304, um líder de
Xiongnu proclamou-se governante de um estado independente no norte da China. Em 311, a capital de Jin Ocidental
em Luoyang caiu e, cinco anos depois, a histórica cidade de Chang’an foi também capturada. Em pânico, a corte de
Jin fugiu e mudou-se para Nanjing [558]. Algumas décadas depois, em meio ao caos que a China se encontrava, o
renomado poeta chinês da época, Xie Lingyun (385 – 433), em seu típico estilo austero e rapsódico chamado de fu,
expressou certo desespero e busca na natureza:
quanto às minhas
casas no norte e no sul,
inacessíveis exceto através da água:

olhe profundamente no vento e nuvem


e você conhecerá o seu reino totalmente.
(tradução nossa) [559].

A essa altura da história, eventos dramáticos ocorreram em outras partes do mundo. Nômades da Ásia Central
haviam se expandido pelas estepes ao oeste, como os godos, fugindo das depredações dos hunos, atravessaram o Rio
Danúbio na Europa e fustigaram as fronteiras do império romano. No caso da China, embora não tivesse sofrido
maiores invasões muito além de suas fronteiras, esses povos nômades fizeram sentir seu impacto na história. A partir
do terceiro até o sétimo século, a unidade e ordem imperial chinesa foi destruída. Haveria mais de trinta dinastias na
China entre o período, vinte e dois dos quais com governantes não-chineses.
China (265 - 618)
A China estava, portanto, dividida em três estados no século 3 de nossa era, cada um governado por um poderoso
senhor da guerra e batizado com o nome de um estado que existia na área cerca de quinhentos anos antes. Norte do
rio Yangzi foi o maior estado, o reino de Wei, que reivindicou o trono da Dinastia Han porque Xiandi (r. 189 – 220),
o último imperador han, legou seu título ao filho do primeiro senhor da guerra de Wei. No sudoeste, centrado na
província de Sichuan, ficava o reino de Shu, governado por outro ramo da família han. O terceiro reino, um estado
chamado Wu no sudeste, não tinha nenhuma reivindicação histórica para governar a China, mas agiu assim de
qualquer maneira apenas pelo poder. Por sessenta anos esses três reinos disputaram entre si o controle de toda a
China. Aventureiros militares ganharam reputação como heróis e desenvolveram um código de cavalheirismo entre
si.
O fim da desse período chamado de Três Reinos chegou a partir de 263 quando o exército de Wei subjugou Shu.
No entanto, o triunfo de Wei teve vida curta porque seus governantes nunca conseguiram conter o poder dos
aristocratas do norte. Um deles, Sima Yan, derrubou o monarca Wei em 265 e fundou a Dinastia Jin. Quinze anos
depois, em 280, ele conquistou Wu e trouxe toda a China de volta sob um único governante. Os próximos dez anos
trouxeram paz e prosperidade à terra, mas após a morte de Sima Yan, em 290, três de seus filhos e vários outros
parentes começaram uma luta pelo poder para o trono que mergulhou novamente a China na guerra civil.
A China se encontrava no caos em fins do terceiro século de nossa era. Nações de nômades e seminômades de
não-chineses, chamados de Hu ( 胡 ), tradicionalmente categorizados em cinco - Xiongnu, Jie, Xianbei, Di e Qiang
– agora passaram a atuar cada vez mais nas fronteiras e onde era oportuna a possibilidade de riqueza e poder. Mas
referir a isso como invasão poder ser exagero, pois muitos desses povos já tinham imigrado séculos antes,
convidados por oficiais à procura de mercenários e mão-de-obra. Em 304, uma comunidade de Xiongnu que vivia
em Shanxi atravessou a Grande Muralha e estabelecerem seu próprio estado, chamado de Dinastia Zhao (ou Chao,
304 - 329). Durante os 150 anos seguintes, cinco tribos bárbaras - três da Mongólia e duas do Tibete - invadiram
regularmente, saquearam e ocuparam a planície do norte da China. Dezesseis reinos governados por chineses e não-
chineses prosperaram e decaíram em diferentes partes do norte da China durante esse período, cada um deles
durando apenas alguns anos antes de ser derrubado por um rival.
No meio da confusão e desunião que a China se encontrava, fragmentada em dezesseis reinos, um general se
destacou. Ele era um tibetano de formação chinesa, Fu Jian (338 – 385). Em 357, ele assumiu o comando do
exército em seu estado, chamado de Qin Tardio (351-394), e começou a gradativa conquista de seus vizinhos. Um
excelente organizador e estrategista, Fu Jian reuniu tibetanos, chineses nativos, remanescentes dos xiongnus e outra
tribo mongol, os xianbeis, resultando numa formidável força militar. Ele também rompeu com a tradição criando
uma infantaria; essa ideia era um anátema para os mongóis que sempre lutavam montados, mas fazia sentido para os
chineses e tibetanos que estavam acostumados a viajar a pé. Esta infantaria provou ser mais eficaz do que a cavalaria
quando se tratava de tomar cidades fortificadas.
Em 376, o exército de Fu Jian havia conquistado todo o norte da China. Ele governou as duas capitais
tradicionais, Luoyang e Chang'an, e controlou as lucrativas rotas comerciais ao Ocidente. Mas isso não lhe foi
suficiente; como Sima Yan, Fu Jian teve um sonho de restaurar o esplendor do império han, com ele no trono. Em
383, ele marchou para o sul com um exército que supostamente contava com quase um milhão de homens - muito
mais do que os governantes Jin podiam reunir. Mas seus cavaleiros, acostumados com as montanhas e as terras das
estepes do norte, enfraqueceram-se no calor subtropical e a expedição atolou nas planícies encharcadas ao longo do
Yangzi. Então os sulistas, muitos sob comando da Dinastia Jin Oriental (266 - 420), em menor número começaram a
atacar unidades isoladas do exército do norte e subornaram outras unidades para desertar. Esses também espalharam
rumores falsos sobre o tamanho deles que fizeram com que grande parte do exército do norte entrasse em pânico. Na
batalha do rio Fei em novembro de 383, na província de Anhui, os sulistas ganharam usando a guerra psicológica
tanto quanto usando a força. Fu Jian bateu em retirada. Quando viram que esse líder fugia, inimigos dele no norte
pegaram em armas. Em um ano, o norte dividiu-se em cinco pequenos reinos e Fu Jian foi vítima de um assassino
organizado por um traidor tibetano em 385.
Em 397, os tuobas, um clã pertencente aos xianbeis, fundaram um reino em Shanxi, chamado de Wei do Norte.
Nos quarenta anos seguintes, esses conquistaram outros seis estados, reunindo todo o norte chinês no processo.
Então passaram a avançar para o sul, chegando às margens do rio Yangzi, mas dali não conseguiram ultrapassar. Os
tuobas deixaram sua marca na cultura chinesa. Deles veio o grande chapéu mais tarde usado pelos aristocratas
chineses, decorado com rabo de zibelina e penas de faisão. Cavaleiros chineses substituíram suas roupas com tecidos
folgados, saias compridas e sapatos baixos (fig.) (o hanfu( 漢服 ), “roupas de Han”) pelas túnicas, calças e botas dos
intrusos. Outra invenção dos nômades que provou ser muito útil foi o estribo, que deu aos cavaleiros uma
estabilidade muito mais firme na sela.

Fig. – As tradicionais vestimentas de Han, o hanfu, de Sima Yan (236 - 290). Pintura do século 7.

Entretanto, no sentido inverso, o impacto da cultura chinesa nos tuobas foi ainda mais dramático. Desde o início,
os tuobas sabiam que estavam em uma situação bastante precária, governando um estado onde a população era 99%
chinesa, 1% mongol. Eles haviam conquistado o trono através do uso superior de armas, mas para que não
precisassem depender apenas da força, praticaram uma política de sinicização. Os tuobas adotaram tão
completamente os costumes, a língua, a escrita, o governo, o budismo da China que, em uma geração, não se podia
dizer a diferença entre os tuobas e os chineses. Os últimos passos na conversão do povo tuoba veio do imperador
Xiaowen (r. 471 – 499, cujo nome original era Tuoba Hong). Em 493, Xiaowen mudou a capital para quase mil km
ao sul de seu local original em Datong, para Luoyang. Em 496, o imperador decretou que o nome "Tuoba" não seria
mais usado, e tomou para sua família o sobrenome chinês de "Yuan".
Ao sul do rio Yangzi, a Dinastia Jin sobreviveu até 420, governando de uma cidade que mais tarde seria chamada
de Nanjing (literalmente "Capital do Sul"). O sul da China permaneceu unido, mas uma dinastia seguiu outra em
rápida sucessão. A reunificação do norte sob o Wei dos tuobas não pôs fim à turbulência. O norte e o sul tinham sido
divididos o tempo suficiente para que culturas e dialetos separados se desenvolvessem. Os governantes do sul
tinham o sonho de restaurar o império Han - até mesmo chefes de Xiongnu alegaram ascendência dos Hans,
lembrando que uma princesa chinesa havia sido dada ao seu líder Modu Chanyu por volta de 200 a.C. - e isso os
levaram a inúmeras guerras e conflitos internos. Em 347, o sul reconquistou a prospera província de Sichuan. Em
529, um exército do sul capturou brevemente a capital do norte, Luoyang.
Devido aos conflitos no norte, conta-nos a tradição chinesa de que um milhão de chineses do norte emigraram
para o sul entre 300 e 600 d.C. [560] Em eras anteriores, o sul tinha sido uma região de fronteira, onde os chineses se
acotovelavam com vietnamitas, tailandeses e outros não-chineses. Agora o sul tornou-se epicentro cultural da China.
Foi aqui que a literatura, especialmente a poesia, continuou a se desenvolver com o vigor que tinha na era Han. Foi
no sul que os chineses aprenderam a cultivar arroz, em vez do trigo e do painço que eram básicos no norte mais frio,
e foi no sul que o chá, futura bebida nacional, foi descoberto durante esse período.
Os aristocratas, membros de cortes e funcionários que se mudaram para o sul logo passaram logo a dominar o
governo como no norte. Sob eles, o status familiar tornou-se tão importante que a genealogia era crítica. As famílias
precisaram de uma ascendência adequada se seus membros almejassem serem elegíveis para altos cargos ou a se
casar com alguém de uma família importante. Livros de registro de linhagem de sangue apareceram como
“Registros dos Cem Clãs”, e arquivos relacionados eram mantidos com a mesma cautela. Por exemplo, os registros
fiscais usaram páginas em branco para casos que envolveram pessoas do norte como residentes originais no sul.
Dinastias diversas que governaram no sul da China entre 420 a 589 até chegaram a montar departamentos de
genealogia, empregando estudiosos para estudar árvores genealógicas e eliminar reivindicações fraudulentas.
A mudança cultural mais importante no sul chinês foi no campo religioso. Como o confucionismo não conseguiu
fornecer resposta para a desordem contínua e mudanças dinásticas frequentes, muitos chineses procuraram outras
maneiras a escapar de seus problemas. Sob essas condições, o taoísmo floresceu como nunca [561], mas o maior
beneficiário desse caos foi o budismo. O budismo fora introduzido na Índia durante a Dinastia Han no primeiro
século de nossa era (mapa), mas sua perspectiva sobrenatural, ensinando a evitar o sofrimento terreno através da
meditação, soou impraticável para os seguidores de Confúcio que estavam mais interessados nos aspectos
mundanos. E a ideia de que a salvação é mais rápida para aqueles que recusam o casamento e vivem segregados da
sociedade era estranha (e antissocial) aos chineses que valorizavam a família. Até mesmo a prática de raspar a
cabeça do monge budista violava o ensinamento confucionista, que afirmava que alterar o corpo de tal maneira era
desrespeitoso para com os pais que assim o faziam nos tempos passados.
Mapa – O alastramento do budismo pela Ásia nos primeiros séculos de nossa era.

Diante disso, o confucionismo demorou um longo período para declinar antes que o budismo pudesse tomar seu
lugar na China. Conta-se que o último rei de Wu, Sun Hao (264 – 280) detestava tanto o budismo que ele teve que
ser convencido a não destruir os poucos templos que a seita conseguiu construir em seu reino. Quando ele se
defrontou com uma imagem budista em um de seus parques, ele a levou para um mictório. Então ele chamou seus
cortesãos e os divertiu executando o que ele ironicamente chamou de "a lavagem de Buda". Mas logo em seguida ele
foi imediatamente abatido por uma doença misteriosa e dolorosa. Após se recuperar, o rei passou a aceitar a nova
crença e ordenou a todos em sua corte que cultivassem o Buda [562].
O budismo teve alguns aspectos que atraíram os chineses. Primeiro de tudo, os mosteiros eram ilhas de
tranquilidade naqueles tempos turbulentos para aqueles que buscavam refúgio. Os mercadores usavam os mosteiros
como bancos e armazéns para seus valores e bens comerciais. A religião teve apelo também para os nômades
sinicizados, como os tuobas, que buscaram algo além das crenças pagãs de seus ancestrais. Sendo eles mesmos
estrangeiros, as origens não-chinesas da religião não os incomodaram, e podem de fato ter sido um incentivo a mais.
Ademais, os ensinamentos budistas sobre caridade para as pessoas e a natureza fizeram sentido para os taoístas.
Monges famosos que eram adivinhos ou magos ganharam conversos entre as pessoas comuns, e grande quantidade
de escrituras budistas escritas na Índia nos últimos mil anos atraíram o interesse dos bem-educados.
Na China a conversão ao budismo começou entre a elite da sociedade e depois se popularizou. Tudo começou
quando alguns estudiosos se uniram a monges em mosteiros fundados pela China. Assim, intelectuais, membros de
familiares tradicionais, estudantes e monges podiam se abrigar nas propriedades das grandes famílias e manter
conversas intelectuais com seus colegas confucionistas e taoístas. O primeiro imperador da Dinastia Jin Oriental
empregou um monge da família Wang como capelão da corte, e o próximo imperador, Ming Di (r. 323 – 325),
converteu-se e tornou-se o primeiro monarca chinês a defender abertamente a nova fé budista. Logo as cabeças
raspadas e as vestes de monges de açafrão tornaram-se uma visão comum na corte de Nanjing.
Monges e sacerdotes tornaram-se assim espécie de conselheiros dos monarcas, pelo prestígio e proximidade, mas
ainda tentaram manter certa independência. Esse era um conceito incomum para os chineses, que não separavam
assuntos religiosos do estado e sempre haviam visto funções religiosas como parte do dever de um imperador. E a
junção das duas esferas poderia ser arriscado. Certa vez, um governador ordenou a um monge que voltasse à vida
secular como um de seus ministros e, quando o monge se recusou, o governador ordenou que fosse chicoteado até a
morte. Em 403, o imperador de Jin Oriental foi ao seu monge mais respeitado, Huiyuan (334 – 416), fundador do
templo de Donglin e um dos sábios da ordem budista da Terra Pura ( 淨土宗 ), e perguntou-lhe se os clérigos
podiam se curvar diante do trono como outras pessoas. O idoso sacerdote respondeu alguns meses depois em 404
com um corajoso tratado que o imperador aceitou, intitulado “Os Monges não se Curvam Diante de um Rei” ( 沙門
不敬王者論 ).
Em 420, já havia mais de 1700 mosteiros e mais de 24 mil monges e freiras no sul da China. O último imperador
de Jin Oriental, Gong Di (r. 419 – 420), era um budista devoto. Quando deposto por um general chamado Liu Yu,
Gong Di foi condenado a ser morto da maneira consagrada pelo tempo: "voluntariamente" tomando veneno. Gong
se recusou a fazê-lo, porém, dizendo: "O Buda ensina que aquele que comete suicídio não pode retornar a um corpo
humano". Os guardas o sufocaram com uma colcha em vez disso. A morte de Gong acabou com a Dinastia Jin
Oriental, e enquanto o poder passava para os militares, esses não conseguiram trazer estabilidade para o sul da
China. Depois da Dinastia Jin vieram a dinastia de Liu Song (420 - 479), de Chi (479 - 502), de Liang (502 - 557) e
de Chen (557 - 589). Todas sucederam-se e foram governadas a partir da venerável cidade de Nanjing. E cada um
foi iniciada por um general de fundo obscuro que se apossou do trono através de intrigas sangrentas, e cada um
terminou da mesma maneira.
Enquanto os intelectuais promoveram o budismo no sul chinês, no norte os monges que mais se converteram
foram conhecidos adivinhos e mágicos da classe sacerdotal local. Nessa região, o primeiro monge a ser aceito como
membro da corte imperial foi um com origens da Ásia Central, chamado de Fo Tudeng, que surpreendeu no século 4
um imperador xiongnu da Dinastia Zhao, Shi Le (r. 330 – 333), ao fazer flores de lótus brotarem de um vaso que
parecia conter apenas água [563]. Outro imigrante notável da Ásia Central foi um monge chamado Kumarajiva (344 -
413), filho de um pai indiano e a princesa de Kucha (cidade no oeste de Xinjiang, no oeste chinês), que se dedicara a
servir o Buda desde os sete anos de idade. Em 382, Kumarajiva foi capturado por uma das expedições do exército de
Fu Jian e levado de volta a Chang'an. Agora em seus trinta e poucos anos, ele ganhou reputação por seu senso de
humor e seu fracasso em permanecer celibatário. Ele também era especialista em traduzir o sânscrito para o chinês
(fig.) de modo que, em 402, o governante tibetano e o colocou no comando de uma equipe de estudiosos e juntos
traduziram nada menos que 98 longas escrituras budistas do sânscrito original. Kumarajiva não achou que os textos
pudessem ser traduzidos com perfeição. Certa vez declarou que traduzir o sânscrito para o chinês é como alimentar
um homem com arroz mastigado por outro. Os textos indianos originais foram perdidos com o tempo, mas 52 das
traduções de Kumarajiva sobreviveram e ainda são usadas pelos budistas chineses nos dias atuais.

Fig. – Parte do sutra do Diamante escrito pelo famoso calígrafo Zhang Jizhi (1186 - 1266), baseado nas traduções feitas por Kumarajiva.

Muitos dos textos usados pelos tradutores foram trazidos para a China por monges chineses que fizeram a
perigosa viagem ao exterior para locais sagrados budistas. Em 399, outro monge chamado de Faxian (337 – c. 422)
viajou para a Índia e passou os quinze anos seguintes coletando literatura budista das fontes originais, traduzindo-as
do sânscrito para o chinês à medida que avançava. Depois, outros monges eruditos seguiram os passos de Faxian.
Curiosamente, as descrições do que testemunharam fornecem a melhor informação histórica que temos da Índia
entre 399 e 412
O reino de Wei do Norte, controlado pelos tuobas foi o primeiro no norte da China a fazer do budismo a religião
oficial. Um imperador, Tuoba Hung (ou Xiaowen, r. 471 - 499), achou o budismo tão fascinante que abdicou em
471 para poder passar todo o tempo estudando-o retirado em mosteiro. Ao contrário do sul, onde os monges
mantinham certa independência após a conversão do governo, os monges do norte aderiram à administração com
pouca hesitação. O imperador de Wei do Norte deu-lhes inclusive o seu próprio departamento - chamado “Escritório
de Iluminação dos Mistérios” - e os monges retribuíram a reverência à autoridade imperial, alegando que o
imperador era um bodisatva, ser iluminado que abdicou da plena iluminação espiritual.
Um observador no século 6 contou cerca de 1367 mosteiros somente na capital de Wei do Norte, Luoyang [564].
Um príncipe imperial reclamou que um terço da cidade pertencia aos templos, transbordando em mercados de carne
e vinho, de modo que "cantos em sânscrito e gritos de açougueiros unem seus ecos sob beirais contíguos" e os
templos "são envolvidos pelos odores da carne". Um dos maiores templos, o Jingming, se estendia como um palácio
em volta de colinas e lagoas e continha mais de mil cômodos. Fora da capital, magníficas esculturas retratavam
cenas das escrituras e imagens do Buda foram esculpidas nos penhascos das províncias de Henan e Shanxi. No
geral, o imperador pagou por este trabalho, e muito do que foi feito à época é impossível ter precisão nos dias atuais,
mas estima-se que foram entre 90 a 150 mil imagens comissionadas de Buda pelo reino de Wei Norte.
Como tudo na história, nenhum sistema político estabelecido pelo homem dura para sempre, e aproximadamente
um século depois de ter sido fundado, o reino de Wei do Norte foi derrubado, em parte pelo budismo que tão
vigorosamente patrocinou. Em 515, uma imperatriz recentemente viúva, Ling (r. 515 - 528), tomou o poder em
nome de seu filho, que ainda era criança. Uma mulher de energia extraordinária, a imperatriz viúva era uma atleta
com nervos de aço e objetivo infalível que a tornava a melhor arqueira da corte. Também era uma devota budista,
conta-se que ofereceu um banquete vegetariano para 10 mil monges no funeral de seu pai. Então ela construiu o
extravagante Templo Yongning (fig.), a estrutura mais alta de toda a China de sua época. Sua torre principal tinha
sinos de ouro e era tão alta que podia ser vista a cinquenta quilômetros de distância. Eventualmente, seus gastos
esvaziaram o tesouro imperial, e em 523 uma revolta foi desencadeada na fronteira norte por tuobas descontentes e
outros soldados não-chineses que haviam mantido os costumes de seus ancestrais e se ressentiam da aceitação da
corte dos costumes chineses, bem como de seu comportamento perdulário. Em 528, a imperatriz Ling decidiu que
não queria renunciar. Ela matou o filho herdeiro e entronizou o seu mais novo. Luoyang começou a arder em
revoltas e confusões. Um general descendente em parte dos tuobas, Erzhu Rong (493 - 530), liderou um golpe que
afogou Ling e o pequeno imperador no rio Amarelo e matou dois mil cortesãos. Seis anos depois, em 534, o Templo
Yongning foi destruído pelo fogo, aparentemente por um agourento raio, e o reino Wei do Norte se dividiu em dois
estados rivais, chamados de Wei Oriental e Ocidental - ambos reivindicaram serem líderes de todos os tuobas, assim
como o da Dinastia Wei anterior.

Fig. - Desenho do imponente templo Yongning, de Luoyang, o mais alto de seu tempo e destruído por fogo em 534.

Dinastia Sui (589 – 618)


Depois de 534, os reinos restantes de Wei, o Oriental e Ocidental, lutaram constantemente. Uma vez exaustos,
foram derrubados pelos senhores de guerra de chineses nativos, que passaram a chamar seus reinos de Qi Norte (no
nordeste) e de Zhou Norte (no noroeste). Em 577 os Zhous conquistaram Qi e o norte foi reunificado por um
exército comandado por um general de ascendência chinesa e Xianbei, Yang Jian (r. 581 – 604). O triunfo de Zhou
Norte foi de curta duração, contudo. Pois um ano depois, o imperador de Yang Jian, o Imperador Wu, morreu de
uma doença súbita, e o próximo rei, Yuwen Yun (r. 578 - 579) de apenas 19 anos, também conhecido como Xuan
Di, provou ser errático, inepto e cruel. Menos de um ano depois de se tornar imperador, este anunciou sua
aposentadoria, mas porque seu filho era apenas uma criança pequena, ele não abdicou de nenhum de seus poderes.
Como ex-imperador, Yun tinha estuprado a esposa de um parente, promoveu duas concubinas para se tornarem
imperatrizes adicionais - um movimento muito incomum – constantemente aterrorizava membros da corte e chegou
a ameaçar sua primeira esposa, a imperatriz Yang, de morte assim como seu clã inteiro. Em 580 ele chamou o
general Yang Jian, pai da imperatriz, para o tribunal e instruiu seus guardas a matar este no local caso ele mostrasse
qualquer sinal de emoção. Então Yun lançou os piores insultos sobre Yang Jian, mas o general havia sido avisado
por seus amigos e sobreviveu. Logo depois disso, a imperatriz desagradou Yun novamente, e ele ordenou que ela
cometesse suicídio, apenas para ser convencida a tempo a mudar de ideia.
Não havia dúvida de que havia algo errado na corte imperial com esse tipo de comportamento. O destino parece
ter favorecido o general Yang Jian. Ele secretamente fez um pedido com o melhor amigo de Yuwen Yun para ser
nomeado para um posto distante, longe do temperamento do ex-imperador, e um amigo influente providenciou para
que ele comandasse a campanhas contra a Dinastia Chen no sul. Antes que as tropas pudessem começar a marchar,
Yuwen Yun ficou doente e morreu em 580. Yang Jian assumiu o trono em um golpe, tornando-se o imperador Wen
(r. 581 – 604), ordenou a execução do filho de oito anos de Yun e outros 59 membros da família Zhou e renomeou a
dinastia para Sui. Ao contrário de seus antecessores, Yang Jian provou ser competente o suficiente para manter-se
no trono e estabilizar uma sucessão dinástica. Em 589, ele destruiu Nanjing, derrubando o reino de Chen e pela
primeira vez em três séculos a China teve apenas um imperador novamente. Chang'an foi restaurada para servir
como a capital imperial, assim como Luoyang. Como budista devoto, Yang Jian foi assombrado pelo assassinato da
família governante de Zhou do Norte, talvez por isso buscou residir na sagrada cidade de Luoyang como meio de
escapar de seu passado violento. A eficiência da burocracia civil do tempo dos Hans foi restabelecida e o
confucionismo tornou-se novamente a religião do estado, embora o taoísmo, o budismo e outros credos fossem
aceitos.
A Dinastia Sui, como a Dinastia Qin anterior, foi um breve período de vigorosa atividade. Expedições militares
foram enviadas para conquista de Yunnan no sudoeste e as ilhas Ryukyu da região meridional das ilhas japonesas.
Os chineses de Sui também reprimiram rebeliões no Vietnã, derrotaram os turcos (nação nômade da Ásia Central e
Mongólia) e chegaram à fronteira de Xinjiang, no noroeste (mapa). No âmbito interno, milhares de camponeses
foram recrutados para reconstruir a Grande Muralha, uma série de fortificações a vigiar e conter as invasões de
povos de mais ao norte da China.

Mapa – A China da Dinastia Sui, em 609.

Uma coisa era unir e trazer justiça aos mais de dois mil xi (condados) da China. Outra era manter os militares
ocupados e satisfeitos. A China à época de Sui ainda não tinha uma economia monetária, e era notavelmente lento e
dispendioso transportar os grãos e roupas que compunham a folha de pagamento do exército por meio terrestre. A
única maneira de entregá-lo era por rio ou canal. Como o principal inimigo estava sempre no norte, o exército tinha
de sempre estar estacionado por lá, dependendo, portanto, das regiões mais férteis ao sul para os suprimentos
necessários na fronteira norte. A solução para esse pesadelo logístico foi cavar um canal que ligasse o rio Yangzi ao
sul ao rio Amarelo no norte. Usando impiedosamente o trabalho forçado de mais de cinco milhões de homens, dos
quais dois milhões pereceram, o governo de Sui completou o Grande Canal em quatro anos (mapa). Agora, o
excedente de trigo e arroz do Yangzi poderia ser enviado por barcaças até o Rio Amarelo para a capital em Luoyang
ou para os exércitos na Grande Muralha.
Mapa – O Grande Canal nas dinastias Sui (589 – 618) e Tang (618 – 907).

Mas assim com a Dinastia Qin, a de Sui perdurou pouco e por motivos semelhantes. Ambas dinastias fizeram
uso de milhares de trabalhadores que sofreram em grandiosos projetos de construção. O governo que Yang Jian
estabeleceu era tão autoritário que revoltas eclodiram assim que seu sucessor, o culto Yang (também conhecido
como Yangdi ou Yang Guang, r. 604 - 618), mostrou qualquer sinal de fraqueza. Isso aconteceu entre 611 e 614,
quando três expedições enviadas para conquistar a Coreia (no reino de Koguryo) terminaram em derrota. Como
resposta, centenas de revoltas ocorreram em várias partes do país durante os próximos sete anos. Então os turcos
fizeram um ataque surpresa sobre a Grande Muralha e cercaram Yang numa cidade fronteiriça. O imperador foi
resgatado por um oficial de quinze anos chamado Li Shimin. Isso foi o suficiente; em 616, Yang abandonou o norte
e estabeleceu-se em Yangzhou, na província de Jiangsu, no litoral mais ao sul. Dois anos depois ele foi assassinado
por estrangulamento por um de seus generais, Yuwen Huaji, em 618. A Dinastia Sui tinha durado apenas 29 anos,
mas como a de Qin, deixou marcas permanentes na história da China.

Tibete (século 7)
Há uma antiga lenda tibetana [565] que diz que em tempos recuados e imemoriais, um macaco teve com uma ogra
seis pequenos filhos. E todos esses foram depois levados para uma floresta para viverem dos frutos. Passados alguns
anos, os genitores retornaram para o local e, para a surpresa deles, viram que dos seis originais somaram-se mais de
quinhentos descendentes e que a floresta estava exaurida. Desesperados, as centenas de criaturas passaram a
reclamar por mais comida. Angustiado, o patriarca visando atender os insistentes pedidos rezou pela compaixão de
uma divindade budista, Avalokiteshvara [566] ou em tibetano, Chenrezig, que espalhou grãos pela imensidão da terra
e frutificou em colheitas a serem diligentemente cuidadas, ano após ano.
Nesse sentido, a lenda mostra como a colheita de grãos se tornou a base da alimentação dos tibetanos. E dessa
condição, com o longo passar das gerações, os descendentes desse atrevido grupo passaram a perder os pelos, os
rabos encurtaram, e passaram a aprender a falar. E dessa lenda ensina-se que há dentro de todos um lado mais
impetuoso, competitivo e poderoso que remete à matriarca ogra, e outro lado mais curioso, tolerante, empático,
trabalhador e suave do patriarca macaco. Essas dualidades sempre ficam à espreita, em cada um dos seus
descendentes.
Foi um trunfo da curiosidade e aprendizado que um dos seus maiores regentes, Songtsen Gampo (569 – 649? ou
605 – 649?) (fig.), 33º rei dos tibetanos, quando foi a ele atribuído a criação do alfabeto e língua tibetana. E não
somente isso, pois foi com Songtsen que os tibetanos começaram a expandir seus domínios além do altiplano.
Chegaram mesmo, no inverno de 763, a ocupar a capital chinesa da Dinastia Tang (618 - 907), Chang’an. Cidade
próspera, rica e cosmopolita pela sua crucial posição no caminho da rota comercial que levava à Ásia Central e mais
ao oeste e sul asiático. A Rota da Seda [567].

Fig. - Songtsen Gampo.

O exército tibetano, quando na capital Tang, fora objeto de profunda admiração e estupefação dos seus
habitantes, pois muitos nunca os tinham visto. Ademais, havia certa atitude de superioridade de seus mercadores,
artistas, cortesãos e funcionários imperiais que, por tradição, olhavam com desdém todos aqueles povos além dos
alcances do império chinês.
Mas a conquista de Chang’an não foi simplesmente um episódio de invasão e saque de bárbaros. Pois os
tibetanos não tinham esse objetivo, nem mesmo pretendiam governar a cidade imperial. Assim o fizeram ao
convencer um príncipe rebelde chinês aliado aos interesses de Songtsen, e partiram mais adiante para consolidar sua
hegemonia nas regiões mais a oeste e sul de Chang’an. A partir de então, o trono chinês fora ocupado por novos
governantes aliados aos tibetanos. Para a humilhação do exército imperial chinês e do imperador deposto, Daizong
(r. 762 - 779), que decidiu permanecer afastado mais ao leste na cidade de Luoyang. Toda a região ao leste do
Tibete, atual região de Yunnan, caiu sob controle direto de Songtsen até 794. Restou ao império chinês negociar
tratados de limites com os tibetanos, e nisso perderam boa parte do controle das regiões ocidentais, essenciais para
as prósperas rotas comerciais asiáticas.
Resta então saber de onde vieram esses tibetanos, essa força magnífica que ocupou a capital chinesa e cortou-lhe
os acessos ocidentais? Parte das respostas remete a séculos anteriores, quando um líder dos tibetanos, chamado de
Filho Divino destacou-se entre os clãs de nômades em disputa no impiedoso altiplano tibetano. E entre esses, com o
passar do tempo, destacou-se um soberano que levou a extensão tibetana muito além de suas origens, Songtsen
Gampo.
Quando ainda príncipe, Songtsen cresceu num ambiente cercado de augúrios favoráveis ao seu destino.
Destacou-se na infância pela sua curiosidade insaciável e desejo de aprender. Seu pai, Namri (570? – 618/629?),
fora um grande rei, um tsenpo, uma encarnação do divino na terra. Tal título decorreu depois que Namri consolidou
amplas alianças entre os chefes dos clãs tibetanas, estabelecendo-se como o destacado líder de todos.
O título tsenpo carrega grandes significados. Não apenas aponta a singularidade de um soberano entre vários
líderes de clã, mas também denota um sentido divino, como um Filho Divino, representante da ordem cósmica, uma
figura divina entre os homens. A conexão do tsenpo com os céus era representada por uma espécie de “cordão do
céu” feito de luz que ligava a cabeça do soberano aos céus acima. Essa tradição, aparentemente, remete ao primeiro
dos tsenpos, a Nyatri, que regeu no segundo século a.C. e que desceu dos céus para uma montanha sagrada, Yarlha
Shampo, no vale de Yarlung [568]. Para celebrar esse primeiro regente, a mitologia tibetana conta-nos de que o
magnífico palácio e forte de Yungbulakang fora erguido.
Não cabia ao tsenpo a indignidade da morte. Ao invés disso, no tempo certo, voltavam aos céus através de seu
cordão celeste. Mas, aparentemente, um dos antecedentes de Songtsen, Drigum, fora falho em tempos mais recentes
e, assim, enfraqueceu a condição divina e imortal dos tsenpos e a ligação com os céus. Pois Drigum, de acordo com
as antigas crônicas, era afeito a confusões e duelos, saindo sempre favorecido pela sua espada divina forjada nos
céus. Eventualmente, Drigum defrontou-se com alguém à sua altura. Um cortesão astucioso desafiou o soberano
sem o uso de sua arma mágica, e tirou proveito das cinzas levantadas por centenas de bois no local do confronto. Ao
final, Drigum fora morto e a conexão do cordão celeste fora perdida.
Songtsen cresceu sabendo, pois, dos tempos imortais e divinos idos dos seus ancestrais. O que não tirou a
coragem no campo de batalha de seu pai que lhe conferiu grande estima e temor entre os líderes dos clãs. Assim, os
domínios do tsenpo foram estendidos muito além da região do vale de Yarlung, no sul do Tibete. Esses clãs
tibetanos consistiam em boa parte de nômades que tinham migrado da Ásia Central para os férteis vales meridionais
do Tibete, antes habitados por indefesas comunidades de fazendeiros.
O fim do reinado do pai de Songtsen, Namri, fora trágico, sendo envenenado numa tentativa de usurparem-lhe o
poder. Mas Songtsen moveu-se antecipadamente e conseguiu desarticular todos os envolvidos no golpe. A morte de
Namri, em essência, mostrou os limites da obediência à figura do tsenpo, nem sempre feita por todos os líderes e por
conta de interesses e alianças feitas, e conspirações quando oportunas. Restou aos rebeldes a fuga ou o embate em
fortalezas construídas como a imponente Yunku Lhakang. O príncipe Songtsen, ao final, herdou todas as conquistas
e alianças feitas pelo seu pai, na maior extensão imperial que o Tibete já teve. Aos treze anos apenas, e os rebeldes
contidos, restou ao Songtsen buscar seus aliados e perseguir os insurgentes. Quando pacificou seu reino, o jovem
tsenpo partiu depois para o oeste para assegurar as problemáticas fronteiras. Estava evidente que o Filho Divino
tinha voltado ao comando tibetano.
Figurava como capital e centro do reino de Songtsen a cidade de Rasa, que traduzindo significa “cidade murada”,
algo adequado para um local que tinha fundamentos de defesa. A cidade estava às margens do rio Kyichu e ficava à
espreita, empoleirada, na cordilheira de Nyenchen Tranglha ao norte, que separava a região das amplas planícies do
norte. Com o tempo, Rasa ganhou maior importância e significado com o aumento do poder do tsenpo, e passou a
ser referida com um nome mais digno, Lhasa (ou Lassa), “Cidade Divina”. E nessa foram se assentando as estruturas
administrativas, militares e jurídicas do reino, deixando para trás o aspecto nômade dos antepassados da elite
tibetana.
Lhasa se situa em uma das regiões mais extraordinárias da Ásia. É envolvida pelas montanhas mais altas do
mundo. Ao oeste, há algumas poucas passagens para o transporte e comércio para o Afeganistão e Ladakh. Ao norte,
o deserto de Kunlun Shan consta como um dos mais hostis do mundo. E para o sul e leste, situam-se os imponentes
Himalaias (mapa). Nessa cordilheira, mais ao sul de Lhasa, o rei do Nepal governava o próspero vale de Katmandu,
beneficiando-se da prosperidade de comerciantes e missionários que transitavam do norte indiano das planícies dos
rios Yamuna e Ganges (local onde o Buda, príncipe Sidarta, viveu) para o norte e no sentido contrário. Ao oeste,
havia outro antigo reino mencionado nos textos tibetanos, Zhangzhung (ou Shangshung), cujo povo guardava
algumas origens em comum com os tibetanos. Tinham desenvolvido sua língua própria e mantinham ligações com
os persas ainda mais ao oeste. Em direção à China, havia uma espécie de confederação de comunidades e clãs que
eram conhecidos como Azha (ou Tuyuhun), que periodicamente organizavam e fustigavam os chineses [569].

Mapa - Tibete e arredores. Ladakh ao oeste, Kunlun Shan ao norte/noroeste e os Himalaias, Nepal, Butão e Índia ao sul.

E fora com esses reinos vizinhos ao Tibete que Songtsen projetou sua ambição imperial. Havia também algo
muito além desses poderios, pois a Índia, mais ao sul além do reino do Nepal, era em suas regiões setentrionais entre
os rios Yamuna e Ganges, governada por Harsha (r. c. 606 – c. 647) [570]. Os persas além dos domínios de
Zhangzhung, e os chineses atrás de Azha, que estavam se consolidando após as turbulências sob uma nova fase
dinástica.
Não demorou muito para Songtsen dar rédeas às suas ambições sobre as vizinhanças. Sobre Zhangzhung, ele
primeiramente sinalizou de que pretendia continuar com as alianças feitas pelo seu pai, e mandou uma de suas
filhas, princesas, a casar-se com o rei de Zhangzhung, Ligmikya. Parece que o matrimônio não foi duradouro, e a
princesa enviada começou a servir de espiã. No momento oportuno, em cima dos relatos de sua filha, Songtsen
enviou um destacamento militar para emboscar o rei vizinho enquanto ele esteve afastado de seu castelo na capital
em Kyunglung. Assim, o rei foi morto e Zhangzhung foi absorvido por Songtsen [571].
Além da conquista, Songtsen também articulou com novos aliados estrangeiros. Uma nova oportunidade
apareceu com o reino do Nepal quando o rei Narendradeva (643 - 679) foi destronado e pediu exílio em Lhasa,
permanecendo lá durante a década de 630. A corte e elite tibetana aprenderam muito com os nepaleses refugiados. O
budismo entrou com vigor, e o templo mais antigo do Tibete, o de Jokhang (fig.), fora erguido com base nos templos
do Nepal, realizado e esculpidos por artesãos nepaleses. No retorno à sua terra natal, por volta do ano de 670, o
soberano nepalês foi à frente de um numeroso e disciplinado exército tibetano, tornando-o efetivamente, ao
recuperar o trono, um vassalo do império tibetano.

Fig. - Templo de Jokhang, Lhasa.

Ao leste do Tibete, a China da Dinastia Tang, recentemente restabelecida, estava ocupada em apaziguar suas
fronteiras ocidentais, com destaque para a problemática Azha na década de 630. Fora nesse contexto que Songtsen
enviou um embaixador aos chineses em 634, para tentar negociar alianças. Com pouco efeito. Quatro anos depois,
de maneira mais ousada, Songtsen mandou outra legação, a pedir a mão em casamento de uma princesa chinesa. E
apontou como embaixador dessa missão um descendente do antigo clã de Gar, Gar Tongtsen Yulsung (590 - 667). E
este, quando em Chang’an, fez seus pleitos de matrimônio assim como tinha feito um príncipe de Azha. Depois de
delongas, Gar voltou com a negativa da corte chinesa, que favoreceu ao partido de Azha. O retorno a Lhasa com as
notícias foi considerado como uma afronta ao senso de Songtsen. E o tsenpo decidiu então enviar contingentes
bélicos, agora com o apoio de Zhangzhung, em direção à Azha.
A vitória apareceu rapidamente, e toda a região ao nordeste do Tibete, Amdo, foi incorporado pelo império
(mapa). Com as tropas estacionadas na fronteira com a China, o poder de barganha de Songtsen aumentou
consideravelmente, e o tsenpo passou a exigir mais do trono chinês. Ao final das ameaças, o imperador Daizong
resolveu dar uma lição definitiva aos tibetanos considerados como bárbaros insolentes. E o resultado, para a surpresa
de todos em Chang’an e da corte chinesa, fora favorável aos desígnios do nascente poderio tibetano, pois as tropas
chinesas foram fragorosamente derrotadas em campo.

Mapa - Tibete com destaque para a região de Amdo ao norte e Kham ao leste. Os chineses depois renomearam Amdo como Qinhai, e as províncias da
China de Sichuan e Gansu ficam na fronteira ao leste e Yunnan ao sudeste.

Coube, pois, à Daizong assumir uma postura de negociação se visasse garantir alguma ordem em suas fronteiras.
Mesmo porque, o próprio imperador chinês não era avesso aos povos limítrofes da China. Ele mesmo era filho de
uma mulher de origens turcas ao oeste, e um de seus filhos, empolgou-se com a moda turcófila da época da corte
chinesa [572], passando a residir em tendas e a consumir carnes de carneiro. Teimosamente, a corte tibetana mandou
seu mais talentoso embaixador novamente para Chang’an. Quando este chegou para nova audiência com o
imperador Filho do Céu, respeitou todo o elaborado protocolo e cerimônia dos Tangs. Recitando respeitosamente as
linhas de oferta de tributo ao imperador, impressionou vivamente a corte chinesa presente. E assim pôde prosseguir
com seu pleito primordial de solicitar a mão de outra princesa chinesa, Wencheng (628 – 680/2), para Songtsen com
todas as implicações políticas disso. Ou seja, sendo assim, o Império do Meio reconheceria de fato um poderio
estabelecido e aliado por casamento em suas fronteiras meridionais.
Após a bem-sucedida embaixada na capital chinesa, Gar e sua entourage escoltaram a princesa de volta ao
Tibete. O casamento com o tsenpo inaugurou décadas de paz entre os tibetanos e chineses, e seguiu-se um período
de intenso intercâmbio cultural. Em que muitos jovens tibetanos viajaram para Chang’an para estudar nas escolas e
academias da capital chinesa, assim como houve a chegada de artesãos chineses no Tibete, ocasião em que
demonstraram novas técnicas e tecnologias, como a caligrafia, o fabrico e uso do papel, da tinta e da seda. A
chegada da princesa chinesa também foi crucial para a corte tibetana, apresentando o uso de vestimentas de seda ao
invés do uso de peles e feltro, assim como o abandono da pintura do rosto em pigmentos vermelhos, prática
considerada como bárbaro demais aos olhos chineses.
Segundo os historiadores tibetanos, a maior contribuição que a princesa trouxe foi o budismo. A regente trouxe
para Lhasa uma estátua de Buda, o primeiro a chegar ao reino e foi colocado num templo especial a ele dedicado, o
de Ramoche. Posteriormente, a estátua foi movida para outro templo, o de Jokhang, onde permanece até os dias
atuais. Esse evento, portanto, do casamento da princesa chinesa com Songtsen e a introdução do budismo em Lhasa
marcaram um momento de transformação histórica no Tibete. Pelo significado histórico desse momento, há diversas
pinturas e esculturas do tsenpo, Songtsen, ladeado por uma princesa nepalesa de incerta existência histórica,
Bhrikuti Devi, e da princesa chinesa Wencheng [573] (fig.). O significado não poderia ser mais claro: o Tibete surgia
confidente e relacionado com o reino nepalês ao sul e os chineses ao norte no século 7.

Fig. - Songtsen Gampo com as princesas Wencheng (esq.) e Bhrikuti (dir.).

Em meados do referido século, em meio a tantas mudanças no Tibete, ocorreu outro notável evento. A
introdução da escrita chinesa e, com isso, a criação de uma escrita tibetana. As suas origens estão repletas de lendas,
de acordo com as antigas crônicas tibetanas, e muitos desses apontam para a figura de Gar, o talentoso embaixador,
que trouxe as novidades de Chang’an e estimulando assim os mais curiosos da corte em Lhasa, incluindo Songtsen.
Perturbados com a novidade, a corte tibetana decidiu então formular uma língua própria e assim tinham mandado
alguns emissários para a Índia. Nessa empreitada, acharam um jovem tibetano de inteligência e curiosidade
extraordinárias, Thonmi Sambhota (fig.), para ir para as terras indianas para buscar elementos para uma nova escrita
do reino [574]. Após alguns anos, depois de ter aprendido com um brâmane local, Thonmi voltou ao Tibete com o
louvor de ter se letrado em mais de uma dezena de línguas. E foi ele que deu início, com seu amplo conhecimento a
combinar diversos elementos das línguas aprendidas, ao alfabeto tibetano que foi formulado e ensinado para
Songtsen e membros da família real. E a lenda continua narrando o grande afinco e entusiasmo que Songtsen aplicou
nos seus estudos, fechando-se em reclusão por anos a fio. Pela sua atitude e curiosidade em aprender, Songtsen
depois ganhou o nome de Gampo, “Sábio”.

Fig. - A invenção da escrita tibetana, pelas mãos de Thonmi Sambhota.


Saindo das brumas das lendas, o fato é que já em meados do século 7 o Tibete já demonstrava ter consolidado,
com uma boa dose de orgulho, uma escrita e língua própria, à altura das realizações de seus reinos vizinhos. E foi
sobre essa língua que os escritores e estudiosos budistas compilaram e cuidadosamente zelaram as lendas, crônicas,
ensinamentos e história do Tibete. E com a consolidação de uma escrita, foi depois possível fazer uma ampla
reforma administrativa e burocrática do império. Assim, as terras e domínios foram divididos em cinco grandes
“chifres” (ru), cada qual com dez mil distritos, e cada uma dessas composta por mil famílias. E foram sobre essas
unidades menores que a fonte de receitas para impostos e alistamento militar forçado seria baseada.
Entre os postos de alto escalão no império, foi organizada uma rígida hierarquia, visando controlar e apaziguar as
ambições de nobres e chefes de clã. O primeiro-ministro seria nomeado pelo tsenpo, e ele ocuparia o cargo
administrativo máximo, com a ajuda de quatro ministros-chefes e outros ministros menores. Cada ministro seria
designado com insígnias reais, turquesa para o mais importante, seguido de ouro, ouro branco, prata, latão e cobre.
Esses oficiais nomeados pelo tsenpo seriam retirados de seus clãs, para não organizarem rebeliões contra o império.
No fundo da hierarquia havia a imensa maioria dos tibetanos, camponeses e nômades cujas vidas permaneceram em
grande parte inalteradas até meados do século 20. Os camponeses deveriam permanecer nas propriedades dos
grandes proprietários até a morte, com raras concessões de viagem sendo concedidas apenas para peregrinações. Os
nômades (drogpas) poderiam ser mais livres, conduzindo seus rebanhos de ovelhas, cabras e iaques em busca de
pastagens. A sociedade tibetana fora, portanto, estratificada nessas linhas. Songtsen, no ápice dessa pirâmide foi
depois considerado como governante modelo, a que todos os subsequentes soberanos aspiravam.
À época da sucessão ao seu trono, Songtsen obedeceu à tradição dos velhos rituais que indicavam que o espírito
do tsenpo começava a passar para o corpo do filho dele, Gungsong Gungtsen (605 ou 617 – 649), a partir dos 13
anos de idade. Mas o príncipe herdeiro morreu pouco cinco anos depois, assumindo Songtsen de novo o trono. Além
dessas tribulações, havia mudanças políticas importantes para ocupar sua mente. Eventos nas regiões ao redor do
Tibete começaram a desestruturar tudo o que ele e seu pai arduamente construíram. A China começou a cultivar
relações mais próximas com a Índia na década de 640, sob a liderança de Harsha, outro ambicioso construtor de
impérios. Em 648, uma importante embaixada chinesa chegou à Índia e descobriram que Harsha havia morrido. Um
dos novos líderes indianos resolveu atacar os enviados, matando todos exceto dois que escaparam para o Tibete. Um
desses era o diplomata Wang Xuance, político experiente que tinha cultivado bons contatos com Songtsen. O tsenpo
então resolveu atender aos seus pedidos e concedeu-lhe um destacamento de soldados tibetanos e cavalaria de
combate nepalês para acompanhá-lo de volta à Índia. Depois de alguns dias, as tropas indianas foram rendidas e o
líder militar deles foi enviado para a China como prisioneiro de guerra. Nesse sentido, parte da região norte da Índia
entrou na esfera de controle dos tibetanos, para a glória dos últimos momentos do reinado de Songtsen. Que chegou
a falecer em 649, mesmo ano do fato ocorrido ao imperador chinês, Daizong. O império tibetano estava consolidado
e respeitado, mas Songtsen não tinha deixado um claro herdeiro ao seu trono.
O único candidato imperial ao trono seria o pequeno neto de Songtsen, mas ele precisaria de um tutor regente até
completar uma idade adequada ao poder imperial. E assim o poder passou para as mãos do primeiro-ministro, o ex-
embaixador enviado aos chineses, Gar Tongtsen Yulsun. O qual atendeu a todos os rituais fúnebres esperados de um
tsenpo falecido. O corpo de Songtsen fora levado numa grande procissão ao seu tumulo, uma vasta estrutura de terra
de 13 metros de altura e 130 de comprimento projetando-se do solo até os dias atuais visível, no vale de Yarlung,
local onde seus ancestrais primeiro desceram dos céus ao plano terrestre. E junto com o soberano morto,
acompanharam cavalos, servos e tesouros no seu túmulo, com a ideia de que seu repouso final na terra fosse o mais
confortável e seguro possível. Para selar o túmulo, uma pilha de pedras foi erguida, não apenas para marcar a tumba
real, mas também a servir de marco para aqueles de passagem através dos tempos, que poderiam, por sinal de
reverência e respeito, empilhar mais umas pedras no local designado.
À frente do poder como regente, Gar Tongtsen mostrou-se à altura de seu antecessor soberano e foi capaz de
conduzir o império criado enquanto o sucessor imperial ainda estava em tenra idade. Sua ambição fora demonstrada
já em 663, quando ele esmagou o reino de Azha diante de uma ampla revolta. Ademais, foi atrás de alguns povos
seminômades da Mongólia que haviam fustigado os chineses e tibetanos nos últimos anos. Gar Tongtsen depois
ampliou nessas áreas o uso e ensino do alfabeto e escrita tibetana, e realizou um amplo recenseamento dos territórios
controlados, a aumentar os impostos e recrutamento civil e militar. O Tibete começava a se firmar como um grande
império pan-asiático na segunda metade do século 7.
Um dos maiores trunfos e orgulho do exército tibetano foi a resiliência e motivação disciplinar de seus soldados
em campo. Mesmo em menor número, poderiam apresentar feitos superiores. Suas armaduras consistiam em couro
em escalas, feitos de resistentes retângulos cobertos com laca vermelha ou preta brilhante decorada com círculos
pintados. Os soldados usavam plumas em cima de seus capacetes e carregavam compridas bandeiras de reverência
aos ensinamentos de Buda.
Os maiores êxitos desse exército se deram num dos locais mais hostis do planeta: no deserto de Taklamakan, ao
norte tibetano. Essa região tinha especial significado estratégico, pois era por essa que passavam as lucrativas rotas
comerciais que iam desde Chang’an ao extremo oeste da Ásia e mundo mediterrâneo. Os chineses durante muito
tempo controlaram essa região, mas por volta de 660, os turcos [575] estavam começando a se rebelar e almejar
controlar a região. E nisso Gar Tongtsen viu a oportunidade de ampliar o império ainda mais. Planejou então, nesse
intento, atravessar rapidamente as montanhas para a região atual da Caxemira, furtivamente aos olhos chineses, e
aliado a alguns clãs turcos, conquistou a cidade de Kashgar, cortando de vez a ligação da China com a Rota da Seda.
Após esse feito, foram para cima da antiga cidade de Khotan (Hotan) (mapa). Essa última cidade era venerada
por antigos cronistas como sendo de um ambiente próspero, vibrante, cosmopolita e tolerante. Local onde cedo
floresceu o budismo até a conversão ao Islã no início do século 11. O fervor budista na cidade foi constatado na
coleção de escrituras budistas, entre elas algumas profecias e iminentes situações de invasores, como os textos de
Vimalaprabha, compiladas na década de 670. Nesses textos, narra-se sobre uma princesa budista de Khotan,
determinada a salvar o budismo das depredações de guerreiros bárbaros, a quem ela se refere como “caras
vermelhas”, costume o qual alguns guerreiros tibetanos faziam antes de ir ao campo de batalha.

Mapa - Ao norte do Tibete, situa-se a cidade de Khotan (Hotan) na Rota da Seda ao sul do deserto de Taklamakan, indo terminar ao oeste em Kashgar.
Ao leste da rota, destaca-se a cidade de Dunhuang.

Voltando ao momento histórico da época, Khotan acabou sendo invadida e dominada por tibetanos, e muitos dos
novos invasores tornaram a vida mais complicada de budistas locais. Nenhum respeito fora apresentado diante de
veneráveis estupas [576] e monumentos budistas, por acreditarem que se tratava de um credo alienígena ou mesmo
heresia diante do incipiente budismo que estava se alastrando a partir da elite tibetana.
Com essa conquista consolidada, os tibetanos passaram a controlar um imenso império asiático que se situava
nas encostas da China da Dinastia Tang. Gar Tongtsen, após essas campanhas, voltou-se exausto ao Tibete Central
em 666 e teve uma série de importantes audiências com o jovem tsenpo, que começou a manifestar seu desinteresse
de manter um império tão vasto e nos assuntos políticos e militares. Quando Gar Tongtsen morreu, no ano seguinte,
o império foi dividido efetivamente entre os vários filhos de Gar, em várias regiões que trouxe o espectro de
conflitos e divisões inevitáveis. Após alguns anos, foi o bisneto de Songtsen como tsenpo, Dusong, ou Tridu
Songtsen (r. 676 - 704), que assumiu o comando de tentar acabar com as brigas entre os filhos de Gar Tongtsen,
tirando vantagem de estar na corte enquanto eles estavam longe governando territórios distantes.
Na década de 690, a sorte dos filhos de Gar começava a mudar. O governador Gar de Khotan, Gar Tsenyen, fora
derrotado pelos chineses. O tsenpo, Dusong, capturou-o e julgou-o militarmente e foi executado. Em seguida, Gar
Tagu, outro governador Gar, fora preso. E assim também ocorreu a Gar Tridring, depois de anos de campanhas com
a inquietação exaustiva de seus soldados. Boa parte desses últimos advinha de povos não propriamente tibetanos, o
que fez com que muitos mudassem de lado, transferindo suas lealdades para o inimigo, no caso, para o exército
chinês. E foi assim que a Imperatriz Regente Wu, ou Wu Zetian (r. 690 - 705), da China, ofereceu um acordo de paz,
não ao próprio comandante Gar Tridring, mas ao tsenpo. Dusong e a corte tibetana, ao aceitar tal proposta, iriam
consolidar sua posição junto aos chineses e desarticular o chefe Gar Tridring. Em momento posterior, todos os
membros proeminentes do clã Gar foram reunidos em uma festa de caça e, em dado momento, foram encurralados e
executados. Antes que Gar Tridring ficasse ciente do massacre, o tsenpo, com a anuência da China, partiu para cima
de suas tropas exaustas e de lealdade duvidosa, derrotando-os finalmente em batalha [577]. Dusong, assim, reafirmou-
se novamente como o tsenpo, o verdadeiro governante divino do Tibete. Mas os problemas com os chineses foram
retomados logo depois. A Imperatriz Wu começou a tentar expandir suas fronteiras na Ásia Central, isso no ano de
692.
Em suma, os tibetanos no final do século 7 já tinham consolidado seu império, sua cultura, escrita e crença. Sua
capital, Lhasa, era uma cidade vibrante e diversificada, alimentada por pessoas de várias regiões asiáticas, desde
indianos, nepaleses, chineses e toda variedade de estrangeiros que estavam ali para estudar e comerciar. A
prosperidade do controle da Rota da Seda trouxe abundância sem precedentes, assim como novas ideias e culturas.
Seda, chá, jade, escravos e especiarias eram anunciados nos seus mercados.

China (618 – 907)

Dinastia Tang (618 – 907)


Em 617, Li Shimin (598 - 649), aquele que havia salvo o imperador Yang, ambicionou marchar sobre a cidade
imperial de Chang'an, dar termo à Dinastia Sui, e proclamar-se imperador. No entanto, ele não estava qualificado
para liderar uma rebelião por causa de sua idade, então ele convenceu seu pai, Li Yuan, a fazê-lo. A princípio, Li
Yuan recusou-se a se revoltar porque, como Wen Wang, patriarca da Dinastia Zhou, ele achava que a lealdade era
uma virtude maior. Li Shimin então mudou de ideia com uma artimanha: ele e alguns amigos entrariam
sorrateiramente numa casa nas proximidades da cidade onde o governo mantinha algumas concubinas imperiais,
raptou uma delas e a trouxe-a para o seu pai. Li Yuan aceitou-a como um presente de um filho obediente, apenas
para descobrir no dia seguinte que ele levara um membro da casa do imperador para a cama. Agora Li Yuan
descobriu-se condenado e morto se o imperador o pegasse, então ele, relutantemente, se tornou um líder rebelde.
Como Li Yuan vinha de uma família que muitas vezes havia tomado esposas turcas no passado, incluindo a mãe de
Li Shimin, o exército que ele convocou tinha tropas chinesas e turcas. Eles esperaram nas montanhas por um ano,
enquanto os outros rebeldes lutavam um contra o outro, antes de se mudarem para a capital, Chang’an. Li Yuan ali
proclamou a Dinastia Tang em 618, tomou o nome imperial de Gaozu (r. 618 - 626) e iniciou o trabalho de
pacificação das cidades e interior. Por volta de 624, toda a China estava em paz e sob seu domínio.
Como imperador, Gaozu agiu com notável tolerância e perspicácia. Aristocratas leais de toda a China, não
apenas da antiga família e amigos de Gaozu, receberam importantes posições governamentais. Em um movimento
astuto, ele dobrou o número de prefeituras e condados. Isso não apenas forneceu o dobro de vagas a nomear, mas
também dificultou a revolta de eventuais governadores rebeldes. Muitas vezes o imperador ofereceu esses cargos
para os líderes rebeldes como incentivo para depor as armas. No entanto, seu reinado foi interrompido porque seu
filho, Li Shimin, tinha ambições ainda maiores. Em 626, Li Shimin assassinou dois de seus irmãos, um deles o
príncipe herdeiro, e forçou seu pai idoso a abdicar. Apesar deste começo turbulento, Li Shimin, que depois passou a
se chamar pelo nome imperial de Taizong, revelou-se um gênio político e militar que se tornou um dos maiores
imperadores da China (r. 626 - 649) (fig.). Sob este "Filho do Céu", filho de turcos e chineses, foi criado um
segundo império unificado chinês que teve sucesso por quatro elementos culturais foram combinados: pelo respeito
à cultura chinesa clássica, pelo budismo, pela atuação dos povos do norte chinês e pela política de tolerância de
Taizong.
Fig. – Imperador Taizong da Dinastia Tang, uma das maiores figuras históricas da China. Pintura no Museu do Palácio Nacional em Taipei, Taiwan.

Taizong nunca se cansou de procurar novas maneiras de melhorar o governo e passou muitas noites sem dormir
revisando suas políticas e compromissos. Restaurou o processo de exames para admissão ao serviço civil a
promover o funcionalismo do estado de acordo com o mérito invés do status familiar. Desta vez, todos que
almejasse os cargos públicos tiveram que fazer os exames o que significou que o poder dos aristocratas
latifundiários foi reduzido a um nível administrável. E, embora qualquer camponês pudesse se candidatar e fazer os
exames, os de nível básico eram extremamente duros e competitivos. Apenas 2 a 10% dos candidatos de cada ano
eram aprovados e uma nota satisfatória apenas colocaria o candidato numa lista de pessoas qualificadas para
preencher futuras vagas. Em nome da eficiência, Taizong não permitiu mais do que 13 mil oficiais do governo a
administrar uma população que era de pouco mais de 50 milhões na época [578]. Por isso, a Dinastia Tang e a
subsequente dinastia de Song são, até os dias atuais, consideradas como parte de uma Idade de Ouro que se
aproximou dos ideais confucionistas.
No cenário internacional, Taizong enviou expedições militares que estabeleceram o controle chinês sobre uma
área nunca antes dominada pelo império chinês. O canato dos turcos orientais na Mongólia foi esmagado e
substituído por um reino de uma tribo mais amistosa, os uigures. A Coreia, dividida em três reinos em conflito por
mais de seiscentos anos, estava unida sob um governo pró-chinês, o de Silla, depois da aliança feita entre 645 e 668
[579]
. A bacia de Tarim em Xinjiang, no noroeste, foi integralmente conquistada e até a Ásia Central caiu na esfera de
influência chinesa. Para administrar as áreas não-chinesas, quatro governos militares foram estabelecidos em
distritos com os seguintes nomes: An Xi ("O Oeste Pacificado") em Xinjiang, An Bei ("O Norte Pacificado") na
Mongólia, An Dong ("O Oriente Pacificado"), na Manchúria, e An Nam ("O Sul Pacificado") no norte do Vietnã.
Oitenta e oito nações não-chinesas, do Tibete ao Japão, reconheceram a supremacia Tang e foram influenciados pela
cultura e instituições Tang [580]. Taizong recebeu presentes e tributos de lugares tão distantes como a Arábia, o reino
dos cazares na Rússia e até o império bizantino [581].
Embora Taizong tenha conseguido se consolidar como imperador de vasta sociedade e território, sua mente
permaneceu inquieta a ouvir e experimentar novidades. No budismo, ele contestou as suas ideias centrais na medida
em que a doutrina não reconhecia nenhum “Filho do Céu” como ser iluminado a atingir o nirvana. Ademais,
Taizong desconfiava dos monges vestidos de açafrão, que evitavam o serviço público e pagamento de impostos.
Consequentemente ele sempre buscou por doutrinas e ideais alternativas. Em 629 ele recebeu uma embaixada
muçulmana de Maomé, o profeta fundador do Islã. Depois de ouvir os argumentos dos árabes recém-convertidos, ele
mandou construiu uma mesquita para eles em Guangzhou (Cantão, no litoral sul chinês) e os encorajou a negociar
regularmente com a China. Da Pérsia veio uma companhia de cristãos nestorianos em 635. Ele também ouviu o que
eles tinham a dizer e ordenou tradução das escrituras cristãs para o chinês para que ele mesmo pudesse estudá-las.
Três anos depois, ele declarou o cristianismo satisfatório para ensino no império e permitiu a construção de uma
igreja e mosteiro. Hoje, em Xian, existe uma pedra esculpida (o Monumento Nestoriano) datada de 781 (fig.), com o
decreto autorizando tudo isso escrito em chinês e em siríaco.

Fig. – O Monumento Nestoriano ou a Estela Nestoriana, erguido como símbolo de amizade entre o império chinês e os cristãos nestorianos. Em
chinês, 大秦景教流行中國碑 , o nome completo tradicional é Estela à Propagação na China da Jingjiao (Religião Luminosa) de Daqin (império romano,
ou Grande Império do Oeste). Hoje se encontra no Museu de Beilin em Xian.

Em 629, no mesmo ano da embaixada muçulmana, foi o começo da viagem de Xuanzang (602 - 664),
explorador e peregrino budista. Como Faxian, ele foi visitar na Índia atravessando as terras da Ásia Central em
busca de locais e literatura sagrada assim como relíquias budistas. Ficou em viagem por dezesseis anos e depois
escreveu seus relatos no que depois se tornou um clássico da literatura chinesa, “Grandes Registros Tang sobre as
Regiões Ocidentais”, que depois irá inspirar o romance histórico da Dinastia Ming, “Jornada ao Oeste”, de Wu
Cheng’em de 1592. Naquela época, havia um decreto imperial proibindo as viagens estrangeiras. Então quando
Xuanzang partiu de Chang'an, ele partiu como um criminoso fugitivo e as patrulhas de fronteira foram ordenadas a
pegá-lo antes que ele pudesse realizar seu projeto. Ele conta em seu diário de viagem como ele comprou de um
estranho um cavalo vermelho que conhecia os caminhos do deserto, como ele se esquivou de um forte no ponto de
travessia principal sobre um rio com a ajuda de uma "pessoa estrangeira" que construiu para ele uma ponte de mato
a jusante, como ele atravessou o deserto de Gobi guiado pelos ossos de homens e gado, como ele viu uma miragem,
e como ele quase foi atingido duas vezes por flechas quando estava pegando água perto das torres de vigilância no
deserto. Depois disso, ele perdeu o caminho, passou cinco dias e quatro noites no deserto sem água, e então alcançou
a região da cordilheira de Pamir, na Ásia Central, onde doze de seus membros congelaram até a morte. Quanto dessa
dificuldade realmente aconteceu e quanto dela foram contos fantasiosos adicionados por escritores posteriores não
podem ser esclarecidos nos dias atuais.
Após essa série de desventuras, Xuanzang chegou ao lago azul de águas profundas de Issyk Kul, no atual
Quirguistão, que era a local de residência de inverno do Khan (ou Cã) dos turcos ocidentais. O Khan, recentemente
convertido por um missionário budista indiano, vestiu um belo manto de cetim verde e deu a Xuanzang uma
recepção grandiosa que costumava ser reservada a chefes de estado visitantes. Xuanzang fez uma descrição
detalhada da reunião e fez o mesmo em suas duas próximas paradas, as cidades comerciais de Tashkent e
Samarcanda. Uma vez na Índia, a variedade caleidoscópica da multidão indiana teve seu efeito sobre ele,
contrastando fortemente com a uniformidade monótona das "formigas azuis" que andavam em uma típica rua
chinesa. Ele passou boa parte do tempo nas cidades universitárias de Nalanda e Taxila e seu relato da corte de
Harsha, o principal rei do norte da Índia, é singular. Mas assim como a excelência de seus relatos detalhados, ele
também acrescentou histórias de origem duvidosa que são contos de ficção: histórias de intermináveis budas e outras
manifestações budistas, elefantes de seis presas, príncipes tão gentis com os animais que se deixaram ser comidos
por tigresas famintas, enormes templos construídos com uso de unhas sagradas e assim por diante. Na época, até
mesmo os ensinamentos originais do Buda depois de séculos passados passaram a ser deturpados por superstições,
mitos e tradições locais. Na verdade, estava se extinguindo na Índia e a religião mais antiga do hinduísmo estava
renascendo, como Xuanzang notou e lamentou.
No retorno, Xuanzang se defrontaria com mais dificuldades. O peregrino chinês caiu numa cilada de ladrões e,
em certo momento, o grande elefante carregando a maior parte de suas posses afogou-se, diminuindo bastante o seu
progresso. No entanto, sua comitiva conseguiu alcançar a região da Ásia Central para chegar à cidade fronteiriça
chinesa de Kashgar (hoje referido como Kashi) e de lá viraram para o leste a caminho de Chang'an. Quando
chegaram à capital em 645 houve um feriado público, e os viajantes foram recebidos com grande pompa e
cerimônia. Foram necessários vinte cavalos para transportar os budas, os livros em sânscrito, as imagens sagradas e
150 "relíquias autênticas" que Xuanzang trouxe da Índia. Taizong o recebeu como um amigo há muito perdido, e
pensando que as informações de Xuanzang sobre o mundo exterior seriam valiosas para os corpos de inteligência,
questionou-o por dias sobre os lugares e pessoas que viu. Mas quando o imperador perguntou sobre a Índia, o
estudioso só relatou sobre o budismo. Sua Majestade então propôs que Xuanzang desistisse da vida religiosa e
aceitasse um emprego num órgão correspondente a um Ministério das Relações Exteriores, mas Xuanzang não
aceitou essa proposta por um momento. Em seguida, o imperador pediu um relato escrito da sua história e assim
obteve o clássico dos seus relatos. Finalmente Taizong pensou que os escritos de Laozi eram pelo menos tão grandes
quanto os do Buda e que seriam recebidos entusiasticamente se os brâmanes indianos pudessem lê-los. Então
pareceu natural ao imperador requisitar a Xuanzang a tradução das escrituras taoístas em sânscrito. Mas a sugestão
de promover a religião de outra pessoa foi prontamente rejeitada pelo piedoso Xuanzang. O restante de seus anos o
viajante passou num mosteiro budista, traduzindo as escrituras em sânscrito que ele trouxe de volta à elegante escrita
chinesa.
A Dinastia Tang foi também época de outros notáveis avanços e descobertas. Em 723, um monge budista
inventou o primeiro relógio mecânico que usava água fluindo em baldes montados em uma roda para girar um
conjunto de engrenagens. A literatura histórica menciona primorosas pinturas chinesas de épocas anteriores, mas foi
sob os Tangs que as mais antigas pinturas chinesas preservadas nos dias atuais foram feitas (fig.). O estilo
impressionista de pintura Tang impressiona o olhar e os artistas da época foram assunto de lendas e contos nos
séculos posteriores entre os chineses. Diz-se que um artista chamado Wu Daozi (ou Wu Daoxuan, 680 – c. 760)
pintou um peixe de forma tão realista que eles nadaram para longe quando acidentalmente jogaram a pintura num
riacho. Escultura também foi outra área artística notável, mas infelizmente só temos alguns exemplos de pintura e
escultura de Tang hoje. Muitos dos artistas da Dinastia Tang foram inspirados pelo budismo e, no século 9, houve
ampla perseguição budista. Como consequência, grande parte da arte religiosa produzida na época foi destruída
quando os templos e mosteiros foram queimados ou demolidos.

Fig. – Oitenta e Sete Celestiais ( 八十七神仙卷 ) de Wu Daozi da era Tang, considerado um dos mestres da pintura chinesa do século 8.

Na produção de porcelanas, a excelência da China vinha desde evidências de fornos dessa natureza que remonta
às dinastias Shang e Zhou, antes de nossa era, mas as amostras mais antigas existentes de porcelana vêm da
província de Zhejiang e datam da Dinastia Han Oriental. Na época de Tang, esmaltes multicoloridos estavam
disponíveis e a porcelana começou a ser produzida em massa, agora que a fabricação se tornara uma excelente arte.
Nos tecidos, o segredo da fabricação de seda, mantido por séculos como segredo entre os chineses, foi depois
contrabandeado para o Ocidente por mercadores persas em meados do século 6, mas não demorou muito para que a
porcelana se tornasse o novo produto chinês em demanda em todos os lugares.
A Dinastia Tang foi uma época de comércio extensivo entre a China e o resto do mundo conhecido e muitos
estrangeiros, especialmente os persas, vieram para a China em busca de fortunas. Alguns deles tiveram fortuna.
Conta-se que um comerciante de pedras preciosas de Omã foi para casa com um vaso de porcelana preta presente de
um mercador judeu, Ishaq, que tinha ido à China, com tampa de ouro que continha um peixe dourado com olhos de
rubi [582]. Cheirava a almíscar e foi vendido por cinquenta mil dinares, uma quantia fabulosa para a época. Um outro
visitante muçulmano no século 9 aprendeu cultura chinesa suficiente para se destacar nos prestigiados exames
imperiais e ganhou um destacado posto oficial. Outro comerciante de Samarcanda, na Ásia Central, tornou-se
governador do distrito militar de An Nam e mais tarde esse posto foi preenchido por um aventureiro japonês. E
havia An Lushan, um obeso mercenário turco que subiu nas fileiras do exército Tang para se tornar um dos
comandantes gerais. Poucas vezes os estrangeiros que visitaram a China encontram tanta aceitação como nos tempos
de Tang.
Os feitos no campo da literatura da era Tang não ficam para trás das outras áreas, graças ao amplo apoio do
governo imperial à educação. Persistem até os dias atuais mais de 48 mil poemas de mais de dois mil poetas da
época. Os dois poetas mais famosos foram Li Bo (ou Li Bai, 701 - 762) (fig.), um rebelde romântico e bebedor
contumaz, e seu amigo Du Fu (712 - 770), de caráter mais sóbrio que usou sua poesia para protestar contra as
injustiças políticas. As primeiras enciclopédias também foram compostas nesse momento da história chinesa. Para
produzir em massa todas essas obras, bem como as escrituras budistas, foi inventada a impressão, usando blocos de
madeira com uma página inteira esculpida em cada bloco.

Fig. – Representação da Dinastia Ming do poeta Li Bo.

A força econômica e militar do império Tang veio de um sistema de distribuição igualitária de terras para a
população. O imposto agrícola pago pelos detentores de propriedades era a maior fonte de renda do governo e o
serviço periódico de milícias exigido deles era a fonte do poder militar de Tang. Dificuldades surgiram, no entanto,
porque o governo deu propriedades livres de impostos para aqueles favorecidos com a condição de hereditariedade
aos sucessores, todos isentos de impostos. Devido ao crescimento populacional, cada geração herdou parcelas cada
vez menores de terra, mas os impostos sobre a propriedade permaneceram os mesmos. Muitos camponeses
acabaram se endividando, enquanto outros fugiram para se tornarem bandidos. De qualquer forma, isso causou um
declínio nas receitas do governo num momento em que os gastos aumentaram com as despesas de campanhas de
guerras. Por causa disso, quando as guerras terminaram, a maioria dos soldados foram retirados dos distritos do
norte e nordeste, de An Bei e An Dong. Nos últimos anos do século 7, os sobreviventes do derrotado reino coreano
(conhecido como Balhae) e uma tribo mongol chamada de khitans (ou kitais, 契丹 ) se mudaram para An Dong
para ocupar o vácuo de poder. Os khitans imediatamente passaram a fustigar e invadir o território chinês no
nordeste, na Manchúria. Em vez de paz, a política de redução de custos deslocou a zona de guerra para as fronteiras
do império chinês.
Até então, os camponeses haviam constituído a maior parte das fileiras do exército chinês. Mas, com o tempo e
desgaste, muito desses passaram a ficar cada vez mais relutantes. Os nômades e nações não-chinesas, por sua vez,
mostraram-se excelentes guerreiros e cavaleiros e assim o governo Tang passou a contratar uigures, turcos e outros
mercenários. Ao ponto em que em meados do século 8, os exércitos imperiais eram compostos mais de turcos do
que chineses, algo que, como no império romano, deixou vulnerável a possibilidade de revoltas e decisões de
comando nas mãos de nações não-chinesas. O desafio, a partir de meados do século 8, era como manter a lealdade
desses nómades nas fileiras dos exércitos chineses, de soldados a generais, a refrear a tentação de rebelião. Em 751,
apenas um dos nove exércitos imperiais, o de Sichuan, o menos importante, tinha como comandantes um chinês
nativo. An Lushan, citado anteriormente, tornou-se figura militar destacada que chegou a liderar três exércitos
contra os khitans no nordeste chinês.
Os reis de Tang que sucederam Taizong foram em geral competentes e capazes de manter a ordem dinástica. A
mais notável foi a imperatriz Wu Zhao (ou Wu Zetian, r. 624 - 705), uma das poucas governantes femininas da
história chinesa. Sua vida na corte tinha começado como uma concubina de Taizong em 639, com apenas 14 anos de
idade. Mas sua esperteza e vivacidade chamaram logo a atenção do filho do imperador, Gaozong. Isso provou ser
oportuno, pois quando este sucedeu ao seu pai em 649 e manteve Wu Zetian para sua companhia, mandando a
maioria das outras concubinas para mosteiros e retiros. Com o tempo, a chinesa aprendeu as sutilezas da política e
da diplomacia. Em pouco tempo, ela deu nascimento a um filho do imperador, algo que a imperatriz, Wang, não
conseguira. Em 655, Wang e a primeira concubina conspiraram contra juntas, eventualmente sendo descobertas e
mortas. Nomeada como nova imperatriz, Wu passou a perseguir outras concubinas rivais e opositores que
contestaram a uma amante comum assumir o trono imperial.
Em 660, Gaozong pegou pólio e passou a ter continuados problemas de saúde depois disso. Diante disso, Wu
Zetian passou a assumir muitas das responsabilidades de seu marido e, quando ela não estava ocupada perseguindo
os rivais, governou com eficácia. Foram os generais que ela nomeou, por exemplo, que finalmente conquistaram a
Coreia. Em 683 Gaozong morreu, e o trono foi para seu filho, Zhongzong (r. 684 – 684, 705 – 710), mas Wu Zetian
se sentiu ameaçado pelo novo imperador e imperatriz, então no ano seguinte ela o depôs e instalou outro filho,
Ruizong (r. 684 – 705). Sob Ruizong, Wu continuou a manter o poder nos bastidores, até que em 690 ela se cansou
da situação e depôs também Ruizong. Nos quinze anos seguintes, Wu governou sozinha. O nome da Dinastia Tang
foi mudado para "Segundo Zhou" enquanto ela estava no comando. Finalmente, em 705 os amigos de Zhongzong
fizeram um contragolpe para trazer o antigo imperador de volta. Aos oitenta anos de idade, Wu Zetian decidiu se
aposentar de vez, e morreu em seu palácio de verão alguns meses depois, terminando assim a carreira de uma das
lideranças mais implacáveis da história chinesa. Zhongzong, por sua vez, foi envenenado por sua imperatriz em 710,
e seu irmão Ruizong teve outra chance para governar.
Ruizong voltou ao trono imperial por um golpe liderado por seu brilhante filho, Li Longji. Dois anos depois, o
imperador abdicou depois de outro golpe fracassado. Desse momento em diante, Li Longji assumiu o trono e passou
a se chamar de Xuanzong (r. 712 – 756). Foi durante seu governo que a China Tang testemunhou seu auge. Esse foi
um período de estabilidade, prosperidade e excepcionais realizações culturais. A China passou por um período de tal
maneira pacífica e ordeira que escritores da época afirmavam que podia-se deixar qualquer objeto sem vigilância e
as portas não trancadas à noite. Eventualmente, o imperador de visão progressista aboliu até mesmo a pena de morte,
porque viu pouca necessidade para isso. Com o passar do tempo, porém, ele se tornou mais nobre e extravagante,
usando a aparência esplêndida de sua corte para esconder problemas crescentes de corrupção.
O momento de virada histórica veio quando Xuanzong se apaixonou por uma linda cortesã, chamada Yang
Guifei, e passou a negligenciar seus deveres. Yang foi autorizada a nomear seus amigos e parentes em cargos
importantes do governo. O resultado desse nepotismo foi que os turcos aliados aos árabes infligiram uma derrota
decisiva aos turcos pró-chineses em Talas (atual Taraz no sul do Cazaquistão) em 751, e assim a Ásia Central
passou a integrar o mundo islâmico. Não muito tempo depois, outro dos favoritos de Yang Guifei, o general An
Lushan, brigou com um primo de Yang sobre quem se tornaria o próximo primeiro-ministro. Esse primo conquistou
o lugar desejado e o enfurecido An Lushan passou então a organizar rebeliões. Em 756, An Lushan marchou para o
oeste, saqueou as duas capitais imperiais e se proclamou imperador. O verdadeiro imperador fugiu para Sichuan. A
capital imperial, Chang'an, foi submetido a constantes ataques de lealistas imperiais e rebeldes. Em determinado
ponto, invasores tibetanos aproveitaram a confusão e ocuparam a cidade por duas semanas. An Lushan foi
assassinado em 757, mas ainda haveria mais seis anos até o fim das rebeliões. No final, o imperador Suzong (r. 756 -
762), sucessor de Xuanzong, ocupou o trono com a ajuda e uso de mais tropas e cavaleiros estrangeiros e
mercenários, muitos deles uigures. Ao final de todos os conflitos, foram estimados mais de 36 milhões de mortes,
pela guerra, perseguições do governo e fome. O poeta Du Fu (712 - 770) escreveu sobre campos abandonados
invadidos por urtigas, crianças de 15 anos enviadas para a guerra e que voltaram como velhos e ossos brancos
descorando ao sol em terras ao oeste [583]. Num dos poemas mais comoventes do talentoso Du Fu, há expressão de
desespero e reclusão:
O papagaio fica
No seu poleiro,
Envolvido em pensamento sombrio,
E sonhos
De sua casa distante.
Suas asas do azul mais brilhante
São cortadas;
De seu bico vermelho
Vem palavras de sabedoria.
Será que eles nunca, nunca
Destravarão sua gaiola
E libertá-lo uma vez mais?
Impaciente, com raiva,
Ele agarra e chora em seu poleiro,
Para o qual ele se prendeu
Tanto tempo.
O mundo dos homens
Não tenha pena dele,
E a liberdade que ele perdeu?
De que uso para ele na prisão
Sua capa de maravilhoso tom?
(tradução nossa) [584]

Após a rebelião de An Lushan, o império de Tang nunca mais foi o mesmo. De fato, com inumeráveis mortos,
turcos e tibetanos correndo soltos e todo general realizando suas próprias ambições, a esperança por ordem imperial
permaneceu como lembrança do passado. Alguns governadores e funcionários de Tang conseguiram recuperar
algum tipo de controle antes do final do século 8. Mas isso se deu num cenário em que jogaram um general contra o
outro e colocando soldados em unidades menores do exército, de modo que nenhum general pudesse se tornar
poderoso demais. Em 810, dois grandes exércitos foram desmantelados, incluindo a da guarnição de An Xi, no
oeste, e trinta pequenos exércitos substituíram outros sete. O governo de Tang conseguiu controlar cerca de metade
desses - os mais próximos da província de Shaanxi - enquanto o restante se tornou forças locais das províncias que
deixaram de pagar impostos e a obedecer aos decretos imperiais, transformando a China num grupo de "estados de
guerra". Como a China ainda tinha dificuldade em criar cavalos, elemento vital na mobilidade e na guerra, dependia
o reino cada vez mais dos uigures que detinham o controle e ambiente necessário para isso. A dependência chinesa,
fundamentalmente, sujeitava ao seu estado da economia.
Durante os últimos anos da sua existência, a Dinastia Tang era apenas uma sombra do seu antigo estado. No
século 9, enfrentou novos problemas: revoltas de camponeses descontentes com o governo central e os senhores da
guerra. A administração Tang ainda fez um valente esforço para lidar com as revoltas e em 878 os generais leais ao
imperador conseguiram perseguir o maior dos líderes camponeses, Huang Chao (835 - 884), para longe do Rio
Amarelo. Huang Chao assim fugiu para uma longa marcha para o sul, tomou Cantão e massacrou todos os
resistentes da região, muitos desses estrangeiros que eram comerciantes e foram considerados como bode expiatório
para os problemas. Então, em 880, ele retornou ao norte, e o exército imperial foi derrotado diante dele (mapa). Mais
uma vez, a Dinastia Tang acabou sendo salva pela ajuda crucial de nômades e mercenários de além da Grande
Muralha. Mas nessa ocasião o governo chinês ganhou muito pouco tempo. Em 907, o governador militar de Kaifeng
- na província de Henan - depôs o imperador Ai (r. 904 – 907) e pôs fim à prolongada decadência do império Tang.
Mapa - As rebeliões organizadas por Huang Chao na China da Dinastia Tang, resultando num período de guerra civil de dez anos (874 – 884).

Tibete (Século 8)
Lhasa no início do século 8 parecia ser um local promissor. Nesse tempo, outra princesa chinesa, Jincheng, e sua
comitiva chegaram para se casar com o tsenpo, Me Agtsom (r. 705 - 755), assim esperando inaugurar uma nova era
de paz entre os dois impérios. Apesar de todos os privilégios concedidos na sua nova estadia, a nova princesa parece
não ter se acomodado bem na sua nova casa. O seu marido, o tsenpo, era apenas uma criança, e o verdadeiro
exercício do poder não estava em suas mãos. Mas na pessoa da mãe do tsenpo, Tri Malo, que conduziu o Tibete que
maneira implacável contra qualquer ameaça estrangeira, inclusive com relação a qualquer influência que pudesse vir
da princesa e sua comitiva chinesa. Quando Tri Malo faleceu, em 723, o tsenpo foi devidamente entronado como
Tride Tsugtsen. Mas mesmo esses novos fatos parecem não ter aplacado o descontentamento da princesa chinesa,
ainda mais depois de ter recebido a notícia da morte de seu querido pai adotivo, o imperador chinês Zhongzong (r.
684 – 684; r. 705 - 710). Apesar de toda a sua tristeza numa terra que considerava como um exílio, contentou-se em
Lhasa e passou, talvez como compensação da distância de sua terra natal, em ativamente promover o budismo. E
assim, foi patrona de construção e restauração de templos pelo reino e buscou honrar com todos os rituais
apropriados a estátua de Buda trazida pela princesa chinesa anterior. E como uma fiel confuciana, promoveu
serviços para os ancestrais mesmo entre povos considerados pelos chineses como bárbaros. Lhasa, no seu intento,
acabou tornando-se um centro budista e acolheu muitos monges e peregrinos refugiados que chegaram das
redondezas, da Índia, da Ásia Central, da Caxemira e da China que tinham sido expulsos pela intolerância do seu
novo imperador, Xuanzong (r. 713 - 756) [585].
Mas a desconfiança de muitos tibetanos com relação a essa crescente comunidade de refugiados foi aumentando.
O ponto crítico apareceu quando irrompeu um surto, provavelmente de varíola, em Lhasa. Que chegou inclusive a
atingir e matar a própria princesa chinesa. Nesse momento, muitos se ressentiram dos refugiados no reino e
passaram a acusá-los como fomentadores dessa nova desgraça. E assim muitos desses foram expulsos ou mortos, e a
calmaria somente veio na década de 750, quando a comunidade budista estrangeira e tibetana novamente
encontraram um ambiente hospitaleiro no novo tsenpo, Trisong Detsen (r. 755 - 794) [586].
Essas relações tensas entre o budismo e os estrangeiros com relação aos tibetanos apontam para a delicada
assimilação e hibridismo cultural que o Tibete apresentou nos séculos 7 e 8. A religiosidade tibetana anterior à
chegada do budismo era repleta de culto de espíritos, demônios de divindades menores que continuam sendo
cultuados até os dias atuais: o lha nos céus, o nyen no ar e no alto das montanhas, e o lu nos rios e no mundo
subterrâneo. As divindades das montanhas eram veneradas pelos clãs e assim esses se consideravam descendentes
daqueles, a clamar pela guarda da montanha ou local em questão. E das entidades das montanhas, a mais poderosa
era a da montanha de Yarlha Shampo, de onde os antepassados dos tsenpos desceram ao plano terrestre. Outros
espíritos também eram cultuados na religiosidade tibetana, antes do advento do budismo. Havia os espíritos da caça,
da guerra e da família, que, se não respeitados, poderiam trazer doenças e morte. Favorecendo-os, a família e o clã
poderiam ter um bom destino, saúde e prosperidade.
Para fazer a intermediação (e o afastamento de malignidades) com essas entidades havia os sacerdotes e xamãs
(bon-po) [587]. Para satisfazer os espíritos, eram ofertadas comidas ou queimava-se incenso ou ramos de árvores
perfumadas. Esses sacerdotes também poderiam ter poderes oraculares, dizendo o futuro através de práticas de
adivinhação ou permitindo a fala dos espíritos através deles. Para rituais mais cruciais, um sacrifício animal talvez
fosse necessário. Em suma, os rituais atendiam às necessidades cotidianas dos tibetanos, desde a elite ao popular,
curando as doenças, eliminando os mortos, mantendo as influências malignas afastadas e garantindo melhor sorte
através da adivinhação. Toda pessoa acreditava ter uma alma, la, e poderia sobreviver à morte, ou permanecer no
túmulo para receber as oferendas, assim como eram feitos com as almas dos tsenpos. Caso não fossem respeitados
ou cultuados devidamente, essas almas poderiam vagar e causar problemas e sofrimentos aos vivos. Para evitar o
vagueio da alma, muitos acreditavam que poderiam dar um lar a essas em árvores, lagos ou pedras turquesas. Todas
essas práticas e crenças compunham um amplo cenário que depois foi nomeado como Bon (ou Bonpo) [588], apesar
desse conceito não se encaixar como religião, mas muito mais um conjunto de práticas e rituais acumulados e
diversos praticados pelas regiões tibetanas.
Além das relações com as divindades, havia outros aspectos mais mundanos na religiosidade tibetana. O dos
contadores de histórias, dos bardos e poetas. São esses que cultivavam a memória e feitos dos homens, de contar a
origem divina dos clãs, assim justificando a liderança de líderes. De fato, todas as ocasiões históricas do Tibete
foram manifestadas por recitações poéticas desses contadores. A narrativa do passado era uma maneira não somente
de guardar a memória dos antepassados, mas de passar a sabedoria e moral de uma geração à outra.
Quando o budismo começou a se alastrar no Tibete, teve que acomodar-se a esse cenário anterior. Assim, alguns
elementos pré-budistas tibetanos foram adaptados e preservados na nova ordem religiosa: a condição divina do
tsenpo, o papel dos clãs e a relação com os espíritos e divindades. Naturalmente, houve ocasiões em que os tibetanos
consideraram a chegada dos monges e práticas budistas como uma ameaça aos velhos costumes, ilustrado no caso
apresentado da perseguição aos estrangeiros no surto de uma praga antes da década de 750 em Lhasa. Mas o
budismo, com o tempo, tornou-se parte fundamental do estado e da sociedade tibetana, que a ela se adaptou e
acolheu suas práticas e rituais para se tornar um dos pilares da identidade tibetana.
No aspecto mais mundano na corte tibetana, as perspectivas pareceram mais instáveis. O império chinês dos
Tangs avançou e retomou o controle das terras ao norte e de todo o lucrativo comércio da Rota da Seda em meados
do século 8. Com isso, a prosperidade e renda diante das tarifas e exportações de produtos tais como almíscar, mel e
produtos do iaque, caíram vertiginosamente. Diante de tal realidade, os tibetanos voltaram-se para um novo poderio
que estava em franca ascensão ao oeste: os árabes. Com eles forjaram uma aliança e ampliaram sua presença na Ásia
Central, em terras hoje do Uzbequistão, Tajiquistão e Quirguistão, abrindo assim um caminho alternativo para
comerciar com o ocidente do continente. Mesmo assim, no início dos anos 750, os chineses ameaçaram fechar essa
nova conquista tibetana. No inverno de 755, no entanto, o império Tang recebeu um duro golpe de um dos generais
mais brilhantes de sua geração, e nunca mais se recuperaram na região. O nome dele era An Lushan (c. 703 - 757).
Embora tivesse jurado lealdade ao imperador chinês inicialmente, ele surpreendeu a todos quando decidiu dar um
golpe contra os Tangs, e criou seu próprio exército particular. Acabou reunindo uma ampla frente militar
disciplinada e leal e passou a atacar os chineses a partir das regiões ocidentais até chegar à capital chinesa,
Chang’an. Nessa cidade, uma vez ocupada, proclamou-se imperador de uma nova dinastia em 756. Estava claro que
o equilíbrio de poderes na Ásia mudou nesse momento.
No ano anterior, em 755, Trisong Detsen foi entronado no Tibete como o novo tsenpo. E assim assistiu a China
descer ao caos. Em 757, militares leais aos Tangs assassinaram An Lushan e nisso, pediram ajuda dos uigures, um
temido povo turco ao noroeste, para tentar recuperar o trono imperial da China. Em 763, a rebelião acabou e um
novo imperador Tang voltou ao poder novamente. Milhões tinham morrido em combate ou de fome e o império
chinês nunca mais se recuperaria decorrente dessas consequências. Os uigures, animados, invadiram e levaram tudo
o que foi desejado na China. Em territórios mais distantes, os governantes locais se rebelaram contra Chang’an. E
nesse contexto de crise chinesa, Trisong Detsen fez sua investida como líder do exército tibetano, enviando seus
homens a controlar a Rota da Seda, resultando num sucesso nada menos que espetacular. Apesar de ter durado
apenas semanas, os tibetanos chegaram a ocupar a capital chinesa depois, em 764. Isso estabeleceu um novo
patamar de relações sino-tibetanas. Os chineses, a partir de então, tiveram que tratar os tibetanos como iguais, apesar
de muitos ainda o fizessem com certa relutância. E a fronteira entre os dois impérios ficou demarcada a poucas
centenas de quilômetros da capital chinesa. Todas as cidades chinesas ao oeste, que davam acesso da China para a
Rota da Seda, foram ocupadas pelas forças tibetanas, e a riqueza desse comércio começou a fluir para Lhasa.
Mas houve uma cidade chinesa que apresentou notável resistência contra a ofensiva tibetana: Dunhuang. Depois
de sete anos de cerco, o comandante da cidade conseguiu vender seus estoques de seda por comida dos tibetanos. E
depois de mais alguns anos, com a comida toda consumida, o comandante dirigiu-se para as muralhas da cidade e se
rendeu com a promessa cumprida dos tibetanos em deixar a cidade intacta e os habitantes em paz. A nova
administração da cidade fora toda mudada, novos impostos, repartição das propriedades, e uma nova língua oficial a
redigir os contratos e correspondências do governo, das leis e dos negócios. As datas agora não deveriam mais a
corresponder ao imperador chinês, mas de acordo com a astrologia tibetana que segue um ciclo de doze anos. Feitas
as reformas, a cultura tibetana na cidade floresceu [589]. Houve casamentos entre as etnias da cidade e as novas
gerações cresceram aprendendo a língua chinesa e tibetana. Assim a cidade, para a posteridade, serviu como um
papel fundamental para a preservação da língua tibetana, pois no final do século 10, milhares de manuscritos foram
escondidos numas cavernas próximas da cidade, conhecidas como Mogao, e foram devidamente selados e
esquecidos até a sua redescoberta no século 20 por um explorador húngaro-britânico chamado Sir Marc Aurel Stein
em 1907. Esses documentos tibetanos foram considerados os mais antigos registros tibetanos do mundo.
Em 783, depois de anos de negociações e troca de prisioneiros de guerra, Trisong Detsen formalizou com a
China os acordos de paz. Para marcar a nova fronteira, entre o Tibete e a China, foi erguida uma fortificação na
cidade de Qingshui, na região oriental atual da província de Gansu, e perigosamente perto da então capital chinesa.
E foram muitas as vezes nas décadas finais do século em que os tibetanos tomaram controle efetivamente de toda a
região central, norte e oeste chinesa. Ao que restou aos chineses, encontrando-se em situação frágil na época, em
buscar novos aliados poderosos ainda mais ao oeste, com os árabes sob o Califado Abássida de Harun al-Rashid (r.
786 - 809) e os uigures turcos [590]. Foi um movimento ousado, que ameaçou os tibetanos em várias frentes de seus
domínios, inclusive, fatalmente ao longo da Rota da Seda. A vitória decisiva dessa aliança chinesa contra os
tibetanos se deu em 791, mas o pleno controle das regiões ocidentais pelos chineses ainda demoraria quase mil anos,
no que hoje é conhecida como a província de Xinjiang.
Enquanto isso, Trisong Detsen estava propondo uma renovação na sociedade tibetana, ao adotar oficialmente o
budismo como religião de estado [591]. Durante sua infância, Trisong tinha vivido e experimentado um clima
prevalecente anti-budista na corte e capital. Para revitalizar o budismo na nação, Trisong, em 762, decidiu atacar os
anti-budistas e declarou as doutrinas de Buda como religião oficial do Tibete em um édito imperial, ousadamente
minando toda a tradição tibetana que inclusive legitimava sua própria posição de tsenpo, de divindade no trono.
Nenhum dos seus antecessores no trono tibetano tinha realizado algo tão ousado, apesar de alguns, como Songtsen,
terem apoiado a construção de templos budistas pelo reino. E esse precedente ajudou a presença de algumas
comunidades budistas no Tibete, alguns chineses inclusive, a estabelecerem-se no reino que foram gradativamente
sendo incorporados ao sistema burocrático e, assim, promover nos documentos oficiais e sacros a língua tibetana.
Mas outros, mais ligados à tradição, sentiram-se traídos com a decisão imperial, considerando como corrompida a
identidade cultural tibetana, conforme nos informa os anais chineses da Dinastia Tang [592]. Outras fontes apontam
para a desconfiança de alguns tibetanos, relacionando o budismo com a presença de chineses vistos como
estrangeiros.
A adoção do budismo no Tibete fora crucial para o futuro da cultura tibetana. E nisso, pela tradição tibetana, foi
obra mais das convicções do próprio Trisong que reconheceu a importância dos ensinamentos de Buda. Estudiosos
modernos, atualmente, buscam entender as motivações políticas de tal conversão do monarca. Muitos de seus
opositores à sua ascensão ao trono eram ligados às regiões e clãs anti-budistas e a adoção oficial do budismo,
portanto, foi uma maneira de limitá-los no estado e poder. No contexto mais amplo, a decisão de Trisong favoreceu
contatos e redes internacionais, ligados ao budismo, entre regentes, monges e mosteiros na Índia, Nepal e China.
Nesse sentido, se os tibetanos almejaram ter um império a incluir inúmeros povos e culturas, o budismo foi mais
adequado a essa pluralidade do que as crenças tradicionais tibetanas vistas por estrangeiros como paroquiais. E o
budismo pôde proporcionar uma unidade coesiva cultural ao nascente império na Ásia da época [593].
Havia outra religião internacional que os tibetanos com que os tibetanos tiveram contato. Em 715, a corte
tibetana decidiu enviar uma embaixada a um governador árabe solicitando-lhe um professor a ensinar as doutrinas
do Islã. E, conforme nos narra um escritor árabe do século 9 [594], houve até certa simpatia de um regente tibetano da
época em adotar o Islã e mandou ao califa em Bagdá uma estátua dourada de Buda para ser enviada para Meca! [595]
Aparentemente a estátua não chegou a sobreviver por muito tempo por acusações muçulmanas de adoração a ídolos
e imagens. Ainda não se sabe a veracidade desses curiosos relatos que poderiam ser fruto da imaginação e desejo do
escritor árabe.
A Igreja cristã teve algum alento de esperança com os tibetanos. O patriarca da Igreja Nestoriana, Timóteo I
(727-8 – 823), chegou a redigir uma carta na década de 790 endereçada ao tsenpo, exortando-o a incluir os domínios
tibetanos na cristandade. E ofereceu inclusive a nomear um bispo e mandar ao reino asiático, conforme tinha feito
com os turcos [596]. Mas, apesar das expectativas do patriarca, os tibetanos não pareceram interessados no
cristianismo. Nem aos maniqueístas da Pérsia, pois houve um édito condenatório de Trisong que considerou o
profeta Mani como um mentiroso.
Com relação às diferenças de práticas e doutrinas, a ideia de que nossas ações e atitudes em encarnações
passadas, carma, e as atuais a influenciar as futuras, foi de encontro com as maneiras tradicionais tibetanas de evitar
os sofrimentos e misérias aplacando os deuses e espíritos. Os missionários budistas enfatizaram os ensinamentos de
renascimento, de que nossa alma renasce em forma de seres considerados inferiores, sejam como fantasmas ou
animais, ou superiores como humanos e divindades. Possibilidades essas abertas a todos, sem exceção, conferindo a
essa doutrina um forte apelo universal independente da condição social, de gênero ou étnica. Ou como o próprio
ensinamento de Buda [597] expressa que ele é compassivo (karuna) a todos os seres humanos e vivos por igual, e
protege a todos sem distinções e limites [598]. Além do carma como agente de felicidade e tristeza, os missionários
budistas ensinaram sobre um estado completamente além dos ciclos de renascimentos. Esse estado, o do próprio
Buda, é livre de conceitos como “eu” e “outro”, “meu” e “seu”. É repleto de compaixão absoluta e infinita.
O budismo, pois, gradativamente mesclou-se com as práticas e crenças tibetanas. Os espíritos tradicionais do
Bon ainda eram cultuados, assim como foi mantida a divindade do tsenpo. Mas o budismo ofereceu ao Tibete,
entrando em sua fase imperial, uma nova identidade e possibilidades políticas nas regiões vizinhas. E foi o papel de
Trisong que fez com que essa religião se tornasse oficial do estado e fosse ativamente promovida, indo muito além
da corte, a propagar o budismo para todo o império.
O estabelecimento do budismo no Tibete por Trisong Detsen tornou-se mito para os budistas tibetanos nos
séculos posteriores, idealizando-o como uma espécie de regente exemplar budista que seguiu o caminho certo, de
virtude e qualidades, o darma [599]. Mas as origens anteriores apontam para um começo mais conturbado e incerto.
Uma das principais histórias tibetanas sobre a introdução do budismo no país explica que quando uma estátua de
Buda fora trazida da China pela noiva de Songtsen Gampo, ela foi posteriormente tirada do templo e enterrada.
Esses foram os tempos de perseguição e denúncias contra o budismo no Tibete [600]. E os templos foram fechados em
Lhasa, alguns inclusive foram transformados em abatedouros de animais. Os rituais religiosos e fúnebres budistas
foram igualmente desprezados e banidos.
Mas o budismo não fora completamente suprimido. Houve um nobre tibetano em Lhasa, Ba Selnang, que tinha
perdido seu filho e filha, que ordenou que um ritual tibetano tradicional fosse executado fora de sua casa. Mas
dentro de seus aposentos domésticos chamou discretamente um monge chinês a realizar os ritos budistas. Após essas
cerimônias, o monge perguntou ao pai desconsolado se queria o renascimento dos filhos em forma humana ou
divina, ao que Selnang escolheu como deuses, e a mãe, apegada emotivamente, escolheu como humanos. O monge
então colocou uma pérola, parte dela pintada de vermelho no lado esquerdo, na boca de cada criança falecida. E
apontou que o menino nasceria divino e a menina como uma criança dotada de todas as virtudes. Passado algum
tempo, nasceu uma criança na família, uma menina com uma pérola avermelhada em seu dente [601]. E assim,
impressionado, Ba Selnang converteu-se plenamente ao budismo, praticando-o em segredo.
Na época do mandato de Trisong Detsen, houve uma política de promoção do budismo pelo Tibete, e o tsenpo
procurou um sábio e professor budista pelo reino. Ba Selnang voluntariou-se em buscar tal pessoa, indo ao reino do
Nepal, onde conheceu um eminente religioso budista de origens bramânicas, Shantarakshita (725 – 788) [602], e
convidou-o ao Tibete. Ao chegar ao Tibete, Trisong começou a estranhar alguns ensinamentos e ritos preconizados
pelo novo hóspede, desconfiando de que estivesse se desviando do verdadeiro darma budista. Shantarakshita foi,
então, aprisionado no templo de Jokhang em Lhasa para ser melhor observado e interrogado. Mas como ninguém
conseguia se comunicar proficientemente com o nepalês, foram então encontrar um tradutor. Ao final, encontraram
outro brâmane chamado Ananta, homem culto e educado que habitava no Tibete desde o exílio de seu pai. Ananta
foi para Jokhang e submeteu Shantarakshita a um extenso interrogatório. E assim, Trisong ficou depois convencido
do zelo budista do custodiado.
Nos anos seguintes, o tsenpo passou a efusivamente promover o budismo pelo Tibete, e a perseguir e aniquilar
todas as crenças tradicionais tibetanas anteriores. Mas uma série de catástrofes atingiu o Tibete, incluindo alguns
templos budistas e o palácio real em Lhasa. Preocupadas, as pessoas na corte começaram a questionar se as decisões
do tsenpo provocaram a ira dos deuses locais. Vendo isso, Trisong decidiu enviar de volta ao Nepal Shantarakshita
até que as coisas se acalmassem. Decorridos alguns anos, o monge nepalês foi chamado de volta ao Tibete, trazendo
consigo um adepto budista tântrico [603] chamado Padmasambhava (fig.). E foi este que finalmente abrandou a ira dos
deuses tibetanos locais, impressionando a todos os sacerdotes e mundanos. Juntamente com Shantarakshita e com a
aprovação de Trisong começaram a construir um magnífico novo templo budista de Samye [604]. E assim concluído, o
budismo passou a florescer no Tibete a partir do século 8.
Fig. - Padmasambhava ou Guru Rinpoche.

Os problemas haveriam de aparecer outras vezes, muito em parte causados por desconfiança de cortesãos,
sacerdotes e nobres tibetanos sobre os recém-chegados. Mas o poder e a popularidade de Padmasambhava não
cessaram de crescer e sua fama indo de boca em boca pelo reino. Chegou, empregando seus métodos tântricos e
mágicos, a descobrir novas fontes de água, e propôs novos métodos de irrigação em torno de Lhasa. Os rumores,
entretanto, dos seus opositores cresceram em igual medida à sua popularização, resultando em momento derradeiro
na sua expulsão do Tibete por ordem dada de Trisong Detsen. O legado desse extraordinário homem ficou evidente
nos séculos posteriores, e virou um herói da cultura tibetana, referido como o “Precioso Professor”, Guru Rinpoche.
Como testamento desses tempos, o templo de Samye (fig.) erguido no sul tibetano em Lhoka, apresenta os
elementos inspirados no templo indiano de Odantapuri, no estado de Bihar. O plano do templo que fica no vale do
rio Tsanpo apresenta uma nítida influência indiana, mas também com elementos chineses e de Khotan. O mosteiro
do templo demonstra a concepção indiana do mundo, na manifestação do imponente Monte Meru no centro e os
quatro continentes ao seu redor nos pontos cardinais [605]. Samye representa, em essência, a combinação de
influências que o Tibete tinha à época de sua construção e atesta pela sua magnitude o fervor da nova religião
adotada. Apesar de ter sofrido com as calamidades naturais e políticas nos séculos posteriores, ainda se pode ler na
entrada principal num pilar o juramento do tsenpo em proteger o budismo no Tibete.

Fig. - O atual templo de Samye, em Lhoka, Tibete.

Outra vertente do budismo também floresceu no Tibete. O budismo maaiano, significando “grande veículo”, teve
grande aceitação entre os professores e sacerdotes em Lhasa e no Tibete. Seus princípios básicos apontam para a
superação das insatisfações mundanas (dukkha), e transcender o círculo vicioso do sofrimento e renascimentos
(samsara), objetivando a todos a alcançar o estado da iluminação (nirvana). A disputa com relação a outras escolas
do budismo como a teravada, defendida por muitos indianos à época, diz respeito a como conseguir tal iluminação,
que transcende e fica além de toda a dependência das coisas no mundo (pratitya-samutpada). Os budistas não-
maaianos insistem na necessidade de combinação rigorosa de meditação, análise e práticas de boa conduta ética.
Para os adeptos do “grande veículo”, essa combinação resume-se às Seis Perfeições: generosidade, moralidade,
paciência, energia, meditação e sabedoria.
Essas disputas começaram a reverberar no Tibete, ameaçando explodir em conflitos religiosos em grande escala.
Os adeptos indianos começaram a apontar para os equívocos dos chineses maaianos no Tibete e passaram a tentar
convencer o regente tibetano disso. E disso irromperam atos de extremismo entre a comunidade maaiana, como a
autoimolação, suicídio e até mesmo ameaças contra a vida dos adeptos indianos. Trisong, angustiado, resolveu
buscar conselhos no templo de Samye e decidiu por um debate entre as partes budistas. Para representar ambos os
lados, foi chamado um brilhante estudante de Shantarakshita, Kamalashila (740 - 795), da Índia. E do lado chinês,
Moheyan.
No dia do debate, no complexo de templos de Samye, ambas as partes concordaram com a ilusão e
impermanência inerentes ao conceito de samsara, e de que não havia coisas permanentes e independentes, pois tudo
fazia parte de um todo interdependente, existindo apenas de maneira relativa aos outros. Os dois lados discordaram
como a percepção das coisas se davam. Moheyan colocou de forma sucinta sua posição, afirmando que deveria ser
cessado o pensamento corrente que distingue em dualidades as ações virtuosas e corrompidas, que fazia parte do
problema do pensamento comum que impedia o rompimento do samsara. Esses pensamentos eram como
obstáculos, como nuvens brancas ou negras, a impedir a passagem da luz solar. Seria possível, pois, aos discípulos
chegarem à iluminação evitando as armadilhas e limitações desses pensamentos comuns, corriqueiros.
Para Kamalashila, a abordagem de Moheyan ia de encontro à necessidade de um pensamento acurado e analítico
da realidade para se chegar à sabedoria. Apenas pela mente analítica poderia ser superada os conceitos errôneos do
cotidiano. Pela sofisticação dos argumentos posteriores apresentados pelo lado indiano, este foi considerado mais
convincente aos olhos do tsenpo. E este passou então a favorecer mais os adeptos indianos, que pregavam um
processo mais gradual de sabedoria e iluminação espiritual, e, portanto, rejeitando a abordagem instantânea dos
budistas maaianos chineses. E, por extensão, as escrituras budistas indianas foram preferidas sobre aquelas da escola
chinesa no Tibete. Assim é a forma como nos diz a versão tibetana da história. A versão chinesa apresenta uma
versão mais matizada e historiadores em tempos atuais chegam a questionar se o evento realmente aconteceu, ou se
foram mesmo uma série de discussões e encontros [606]. Mas o fato é que a versão contada pelos tibetanos se tornou a
narrativa predominante e ajudou a moldar a consciência do budismo no Tibete. E o caminho graduado defendido
pelos budistas indianos veio a caracterizar o budismo tibetano nos próximos séculos.
Assim sendo, Trisong na segunda metade do século 8 passou a enviar convites para sábios e professores budistas
indianos e nepaleses, que uma vez na capital tibetana, passaram a traduzir do sânscrito boa parte das escrituras
budistas para o tibetano. Esse imenso projeto de tradução e compilação faz parte de um dos maiores cânones
religiosos do mundo. Quando reunidos séculos depois, a coleção chegou a cerca de 300 volumes. E deu um novo
fôlego e forma para a língua e cultura tibetana, com novos conceitos e vocábulos. O Tibete agora já contava com
uma sofisticada cultura e literatura em língua própria, fundamentado num império coeso em torno do budismo. E foi
pelo império tibetano que o budismo tibetano se espalhou para algumas regiões da China, para a Mongólia e partes
da Ásia Central.

China (907 – 1279)


Dinastia Song
Após a dissolução da Dinastia Tang, houve um período de 53 anos de caos e desunião. O sul chinês se dividiu
em dez pequenos reinos. O norte permaneceu unido, mas cinco dinastias (Liang Posterior, Tang Posterior, Jin
Posterior, Han Posterior e Zhou Posterior) sucederam-se em rapidamente. Finalmente, em 960, a guarnição do
exército baseada em torno de Kaifeng seguiu o exemplo de seu antecessor. Depôs o último imperador Zhou local e
ofereceu o trono ao seu comandante, o general Zhao Kuangyin. Zhao aceitou com a condição de que a vida do ex-
imperador fosse poupada. Então ele mudou seu nome para Taizu (r. 960 - 976) proclamou a fundação da Dinastia
Song e usou sua diplomacia para persuadir os estados do sul a se juntarem a ele. Em todos os sentidos, ele se
destacou como o exemplo ideal de um governante confucionista virtuoso.
Com a China novamente reunificada em 979, Taizu passou a priorizar a redução do poder detido pelos generais
que causaram tantos problemas desde os anos Tang. Ele teria dito que não conseguia dormir tranquilamente à noite
porque ficava pensando que o manto amarelo do imperador poderia algum dia ser colocado em um de seus
camaradas da maneira como foi colocado nele. O tamanho de cada divisão no exército foi cortado, especialmente se
seus soldados mostrassem sua lealdade a qualquer pessoa além do imperador, e o turno de serviço militar para
unidades longe de Kaifeng foi encurtado para três anos. Os primeiros imperadores Song também centralizaram
fortemente o governo para tornar a burocracia mais eficiente e mais leal. Em outros aspectos, o expressivo
crescimento do comércio marítimo durante os anos Tang significou que o controle da fronteira noroeste não era mais
tão essencial para a economia chinesa. O pagamento de tributos aos povos nômades custou apenas uma fração do
que um grande exército permanente exigia e assim foram evitadas as incertezas das guerras e invasões das fronteiras.
Além disso, a população das terras ao sul do rio Yangzi havia triplicado durante a era Tang, aumentando
consideravelmente a renda imperial através de impostos e dando ao governo imperial uma orientação cada vez mais
voltada para o sul.
Esse pacifismo não perdurou por muito tempo, no entanto. O primeiro desafio adveio de acontecimentos
históricos anteriores. Durante o período das "cinco dinastias" os khitans substituíram os uigures como a tribo
dominante na Mongólia e na Manchúria. Nos primeiros anos do século 9 esses povos começaram a romper a Grande
Muralha e conquistar a província de Hebei no nordeste da China. A capital de Hebei, Yan (atual Pequim), tornou-se
a nova capital de um reino vigoroso e independente, o de Liao. Em 1004, após vinte e cinco anos de combates, os
chineses não conseguiram colocar os khitans em seu lugar e o imperador assinou um tratado que firmou a paz com o
pagamento de um tributo anual aos khitans (fig.). Isso funcionou, mas encorajou outros bárbaros a tentar o mesmo
jogo. Quarenta anos depois, uma tribo chamada de tanguts migrou do planalto tibetano e fundou um reino chamado
de Xi Xia nas províncias de Gansu e Ningxia (mapa). Os chineses agora se viram pagando tributo a duas nações
nômades, e embora o tributo nunca tenha ultrapassado 2% do orçamento do governo de Song, o governo logo sentiu
o aperto financeiro pelos altos custos de defesa e administração das linhas de fronteira.

Fig. – Pintura do século 11 da Dinastia Song, de senhoras processando a seda. Como parte do acordo no Tratado de Shanyuan, o reino de Song tinha
que enviar um tributo anual de 200 mil peças de seda aos khitans de Liao.

Mapa – Os reinos de Song, Liao (norte) e de Xi Xia (noroeste), no século 10.

Houve tentativas de drásticas reformas administrativas, fundiárias e tributárias no reino de Song, implementadas
por um talentoso ministro chamado Wang Anshi (1021 - 1086) no século 11, mas o clamor contra essa nova política
foi intenso. Não apenas dos membros da classe alta que tinham interesses na manutenção do sistema da época, mas
também de acadêmicos conservadores confucionistas que defendiam que apenas pensamento correto deveria guiar
os homens e não uma regulamentação governamental na vida cotidiana. O ministro conseguiu testar seu plano,
conhecido como “Novas Políticas”, de 1079 a 1085, mas após a morte de seu patrono, o imperador Shenzong (r.
1067 - 1085), os conservadores logo voltaram ao poder e desfizeram a maior parte de seu trabalho. Então o próximo
imperador, Zhezong (r. 1085 - 1100), deu nova chance às reformas em 1093. Não se chegou ao consenso se as
políticas de Wang Anshi foram de fato úteis ou prejudiciais ao reino de Song, mas houve considerável aumento de
gastos e desgaste político na China que depois haveria de lhe custar caro.
Em 1122, o oitavo imperador Song, Huizong (r. 1100 - 1126), tentou se livrar dos khitans pagando tributos a
outra tribo manchuriana, os jurchens, a atacá-los. Não funcionou como planejado e isso raramente encontra sucesso,
ecoando Maquiavel que advertiu que os mercenários são sempre uma péssima barganha, porque arruinarão seu
patrono se forem soldados pobres e destruirão seu patrão se forem afortunados [607]. Neste caso, o último cenário
aconteceu na China de Song. Os jurchens expulsaram os khitans da China, mas depois atravessaram o rio Amarelo e
atacaram a capital Song, Kaifeng que foi saqueada em 1127. O limite dos avanços e saques dos jurchens se deu
apenas no o rio Yangzi. A partir disso, os jurchens estabeleceram um reino próprio na Manchúria e na planície do
norte da China que chamaram de Jin, que significa ouro, porque, como eles dizem, "o ferro enferruja, mas o ouro
dura para sempre". Os Songs estabeleceram sua corte mais para o sul, em Hangzhou, no extremo sul do Grande
Canal, e lá tentaram continuar o status imperial de antes de 1127. Por essa razão, chamamos os anos de 960 a 1127
de Período de Song do Norte, e de 1127 a 1279, Período de Song do Sul.
Song durou mais 152 anos a partir de 1127, pagando mais tributos do que antes. Embora Song do Sul fosse
militarmente limitada, foi expressiva na área cultural. A boa administração financeira do governo da Song do Sul
rendeu-lhes mais prosperidade e riqueza do seu antecessor no norte [608]. Os imperadores do sul levaram os
ensinamentos de Confúcio a sério, de todas suas regras estabelecidas para a vida cotidiana, pois implementaram
departamentos próprios de inspetores a monitorar o governo e funcionários a evitar a corrupção. E até tinham
inspetores observar o próprio imperador, para detectar rapidamente qualquer desvio de comportamento que podia
levá-lo a perder o Mandato do Céu. Consequentemente, poucas vezes Song do Sul esteve em perigo de rebelião,
nem de atividades corruptas de funcionários, eunucos e concubinas. A dinastia decaiu devido a décadas de conflitos
de uma nova e formidável força bélica difícil de lutar advindas, mais uma vez, das estepes asiáticas do norte chinês.
Essa nova potência do norte eram os mongóis, um grupo de tribos que se uniram por Gêngis Khan em 1206.
Uma vez ordenada a unidade de sua nação, os mongóis iniciaram uma série de guerras para conquistar o resto da
Ásia e além (mapa). Como a China é o vizinho mais próximo da Mongólia, o novo conquistador foi logo atrás das
riquezas da China. O reino de Xi Xia foi atingido pela primeira vez por ataques mongóis em 1209. Jin foi
sistematicamente invadido a partir de 1211. O reino Liao caiu em 1215 e os jurchens fugiram para Kaifen. A cidade
de Yan foi depois renomeada pelos mongóis como Yan Khanbaligh, "Cidade dos Khans" - Marco Polo a chamou de
Cambalique (ou Cambaluque, atual Beijing ou Pequim). Xi Xia foi destruída em 1227, o ano em que Gêngis Khan
morreu. A última parte do império dos jurchens, nas províncias de Henan e Shandong, foi conquistada em 1234.

Mapa – As ofensivas mongóis sobre a Ásia e sobre a Dinastia Song (Sung no mapa) no século 13.

Passou agora a ser a vez de Song do Sul, mas eles tiveram certo alívio enquanto os mongóis se concentravam
mais sobre as terras da Coreia, Rússia e Oriente Médio. Isso terminou em 1251, quando Kublai Khan (r. 1260 -
1294), neto de Gêngis, iniciou a invasão do sul chinês. Isso levou mais tempo do que a conquista do norte, porque o
terreno subtropical úmido não era adequado para a cavalaria que compunha a maior parte do exército mongol. Os
militares de Song do Sul também eram mais numerosos e tecnologicamente mais avançados do que qualquer outra
nação que os mongóis haviam defrontado até então. No final, foi provavelmente a deserção dos comandantes das
frotas Song que acabaram com a guerra, pois sem eles o controle do litoral e os canais teriam sido impossíveis. Mas
Kublai nunca pareceu duvidar de sua vitória. Em 1271 ele se proclamou o primeiro imperador chinês da dinastia
mongol de Yuan. Hangzhou foi capturada em 1276 e, em 1279, toda a China estava sob o domínio mongol.

Tibete (Séculos 9 - 13)


Em 797, as incertezas da sucessão do grande tsenpo, Trisong Detsen, estavam cada vez mais evidentes. No
referido ano, o tsenpo havia abdicado em favor de seu filho mais velho. Mas algo inesperado aconteceu, pois, esse
seu herdeiro morreu depois de governar por apenas alguns meses. Após essa morte suspeita, outro filho foi colocado
no trono. Selang, no entanto, mostrou-se despreparado para o poder, e Trisong Detsen teve que voltar ao trono por
certo período. Restavam apenas mais alguns anos de vida ao velho tsenpo e depois que ele veio a falecer, os
conflitos pela sucessão ganharam força no Tibete. Pois havia outro filho de Trisong a reivindicar o trono imperial.
Senaleg (r. 804 – 816) então recuperou o trono e o seu desafiante chegou a morrer provavelmente assassinado em
804.
Senaleg, apesar das suspeitas envolvidas na morte de seu rival ao trono, permaneceu um convicto budista como
seu pai. E durante seu mandato, o budismo floresceu como nunca no Tibete. Dois de seus mais influentes e
próximos conselheiros eram monges budistas, chamados pelo título de Bandé, que operaram na mais alta esfera
política, garantindo a permanência budista dos tempos de Trisong Detsen [609]. Nisso, houve generosos
financiamentos de tradução e compilação ao tibetano da literatura budista indiana. Que com o tempo garantiu uma
notável consistência do cânone budista no país.
Nas fronteiras ao oeste, os tibetanos intensificaram seus esforços de garantir as fronteiras de seu império. O
califa abássida Harun al-Rashid (763 - 809) desprezou os acordos feitos com os tibetanos e começou a fustigar as
regiões com a ajuda de aliados persas da região de Khorasan (Coração) e de turcomenos de Fergana, na Ásia Central
[610]
. Há relatos de uma contraofensiva tibetana na repressão desses avanços muçulmanos que progrediu até a cidade
de Samarcanda. Quanto aos chineses, a Dinastia Tang havia enfraquecido desde as rebeliões do século 8 e o último
dos tratados sino-tibetanos foi firmado somente em 822, a estabelecer uma fronteira entre os dois impérios. Essa
fronteira resultou em celebrados pilares espalhados pelo império tibetano, um deles em Lhasa, outro em Chang’an e
o terceiro em Qingshui. E nesses pilares, escritos em tibetano e chinês, consta juramentos de respeito e lealdade
entre as partes, a respeitarem os termos do budismo invocando as Três Joias: o Buda, seus ensinamentos e ideais
(darma) e a comunidade universal de seguidores (sanga).
À época da assinatura desse tratado, outro tsenpo já estava entronado, Trisug Detsen (r. 815 - 836), mais
conhecido como Tri Ralpachen ou Ralpacan. Seu nome veio de seus longos cabelos trançados, e firmou-se na
história tibetana como o mais fervoroso dos imperadores budistas. Isso se deve em boa parte pela influência decisiva
de monges influentes em seu gabinete dominado por Palgyi Yonten. Foi durante o seu reinado que um amplo e
extenso programa de construção de templos e mosteiros foi promovido, cada qual a ser dotado de certo lote de terra
e famílias locais a sustentarem o plantio. Essa foi uma das características fundiárias marcantes do Tibete, os
mosteiros como maiores proprietários de terras no país. Com o fervor de Ralpacan, grandes lotes do império foram
controlados pelas instituições budistas.
O tsenpo também ordenou a publicação de uma vasta quantidade de obras budistas. Pela extensão do império, as
virtudes budistas foram copiadas visando incutir a ética em todos os cantos [611]. Essas virtudes incluíam a proibição
de matar, roubar, sexo inapropriado, mentir, difamar, fofocar, cobiçar, odiar. Ao mesmo tempo, centenas de cópias
de escrituras budistas, como as sutras da Perfeição da Sabedoria Transcendente (Prajnaparamita) [612], foram
empreendidas. Deve-se entender que essas políticas e ações, na cultura budista, trazem em si um mérito ao fazer
doações para monges, construção de templos, copiar e traduzir as escrituras e erguer estátuas do Buda, aprimora-se
pelo sistema de causa e efeito, o carma, a sua condição nesta vida e nos próximos renascimentos.
A disseminação do budismo pelo Tibete trouxe também resistência e ressentimento. Alguns monges foram
insultados e agredidos, templos eram, por vezes, depredados. Ralpacan, visando coibir tais atos, anunciou uma série
de castigos e penas severas. Foi dito que sua consideração pelos monges era tamanha que tinha sempre amarrado a
uma trança de seu cabelo um pedaço de pano em que o religioso tinha se sentado, simbolicamente, colocando a sua
cabeça abaixo do monge. Mas, aparentemente, o tsenpo era uma figura política fraca e muito impressionada pelos
seus ministros e conselheiros de monges mais próximos. Explica-se, nesse sentido, sua generosa política budista. E
foi Palgyi Yonten que presidiu a assinatura do tratado de paz e fronteiras com os chineses. Mas o descontentamento
de adversários estava assomando-se contra essa predominância monacal.
A atividade rebelde cresceu contra essa influência de monges ministros em torno da figura do imperador
tibetano. E a figura central a que objetivaram era a de Palgyi Yonten, e passaram a difamar sua imagem espalhando
rumores de que o monge não atendia aos princípios do darma, nem às virtudes budistas, e mesmo acusando-o de ter
casos amorosos com personalidades da corte imperial. Nesse sentido, parecem ter conseguido a vontade do tsenpo
que o enviou ao exílio quando depois foi perseguido e morto, demonstrando a fraqueza e inépcia do imperador em
coibir tais rebeldias e insubordinações. Nos últimos anos de sua vida, Ralpacan passou a ocupar muito mais uma
posição simbólica a delegar as funções políticas vitais em mãos de seus ministros e de seu irmão, U Dutsen (c. 799 -
841), depois conhecido como Langdarma, que alimentavam convicções anti-budistas.
Langdarma era, em comparação com seu irmão, uma figura totalmente diferente. Ganhou o apelido de Lang,
“boi”, e apreciava em excesso as festas, as bebidas alcoólicas e a caça. Era, a princípio, um candidato improvável ao
trono imperial, mas era uma figura imponente e impositiva que satisfazia às ambições daqueles que desejavam
afastar a influência dos monges budistas na corte real. Muitos desses contestadores eram líderes e nobres dos clãs Ba
e Chogro, que tinham há tempos planejado assassinar Ralpacan. A ocasião surgiu em 836, e conta-se de que estava
sozinho num templo em Maldro e morreu devido a um descuido e queda. Outras versões contam que Ralpacan
esteve desmedidamente embriagado e foi depois morto pelo pescoço por dois conspiradores [613]. Foi o prenúncio dos
tempos conturbados e desagregadores do império do Tibete.
Com pouca contestação e muitos aliados, Langdarma foi colocado no trono em 836, abrindo um novo aspecto da
figura do tsenpo, apresentando-se numa vida de bebidas, caças, festas, e com uma ampla redução no orçamento do
governo com projetos budistas. Fecharam-se as instituições e escolas de tradutores e escritores de escrituras
budistas. O último templo encomendado pelo fervor de Ralpacan, o de Onchangdo, fora deixado sem inauguração
pelos ritos consacratórios apropriados. A corte tibetana foi purgada de monges budistas e os mosteiros pelo país
foram perdendo todos os seus privilégios, propriedades e força de trabalho. Muitos monges, nesse cenário, entraram
numa vida de clandestinidade e fuga para o exterior em busca de exílio.
E mais uma vez, as paixões políticas resultaram num plano para assassinar o novo tsenpo. Dessa vez pelas mãos
de um monge, Lhalung Palgyi Dorje, abade do templo de Samye. O religioso realizou seu intento em 842, quando
invadiu o palácio real, defrontou-se com o imperador e o matou com o uso do arco e flecha [614]. O abade,
naturalmente, sabia que a matança era contra os ensinamentos de Buda, e de que assim procedendo iria afetar seu
carma e renasceria como um ser inferior ou até mesmo nos domínios do inferno nos próximos renascimentos.
Angustiado depois do atentado, o monge fugiu a galope para longe de Lhasa, para as regiões mais afastadas do
império a leste, em Kham, levando consigo alguns livros budistas para buscar futura redenção. As crônicas
tibetanas, posteriormente, tratam o episódio de maneira mais delicada. Cientes da gravidade do assassinato, as
páginas consideram o abade como um mal necessário para resgatar o budismo e preservar os ensinamentos de Buda
no Tibete. Lhalung fora considerado um espírito benevolente a realizar um mal para salvar a vida de muitos outros
budistas no futuro.
O ano de 842 fora de muitas incertezas no horizonte futuro do Tibete. Pois Langdarma não deixou nenhum
herdeiro inconteste. Havia um filho seu de uma princesa de linhagem menor, mas a rainha viúva não aceitava tal
sucessão e buscou então convencer a todos na corte de que tinha um bebê legítimo ao trono. O nome dele era
Yumten, e o de seu concorrente ao trono, Osung. Foi em torno dessas duas figuras que as tensões no Tibete forçaram
a unidade do império a ponto de ruptura. Até então, durante quase dois séculos, os clãs tibetanos eram aliados e
submetidos à autoridade do tsenpo. Agora, havia dois candidatos ao tsenpo apoiados por clãs hostis prestes a entrar
numa guerra civil.
Além do mais, o império era vasto demais para ser deixado sem uma clara autoridade central, ainda mais após as
convulsões depois do assassinato de Langdarma. Para agravar ainda mais a situação, houve uma série de colheitas
desastrosas no Tibete após 842, esvaziando os cofres públicos e incontáveis pessoas em penúria e miséria, um clima
ideal para revoluções.
Não somente o Tibete estava em condições difíceis. A China da Dinastia Tang estava lutando para acabar com
rebeldias sucessivas pelo seu império. Os mosteiros e escolas budistas pela China foram fechados e suas
propriedades confiscadas. Os turcos nas regiões centrais da Ásia esforçaram-se contra as invasões de povos nômades
das estepes no século 9. E os uigures começaram a invadir e dominar os domínios antes tibetanos na Ásia Central.
O golpe fatal contra a integridade imperial tibetana foi causado internamente. Os dois príncipes postulantes ao
trono digladiaram entre si e isso polarizou o país. Os partidários de Osung tentaram reverter a política de Langdarma
e passaram a promover o budismo novamente nas regiões mais periféricas do reino. Enquanto os apoiadores de
Yumten consolidaram seu poder nas regiões centrais do Tibete. Dunhuang, cidade próspera e parte essencial da Rota
da Seda, foi capturada em 848 por um líder de guerra chinês, à frente de um exército leal e motivado. Essa mudança
acarretou uma série de outros eventos que se espalharam pelo Tibete. Alguns pensaram que o espírito do monge
assassinado, Palgyi Yonten, tinha voltado para fazer sua vingança pela terra. A lenda diz que esse monge ia de um
lugar ao outro, a matar todos os nobres e aliados da causa anti-budista, tornando-se um símbolo de medo e confusão
dos tempos no Tibete.
No início do século 10 estava nítida a desagregação tibetana. Qualquer aparência de uma autoridade centralizada
caiu em ruínas depois de uma grandiosa revolta. Vários líderes de clãs que antes tinham se submetido e se aliado ao
tsenpo agora abertamente denunciavam tal autoridade e passaram a consolidar seus poderes em níveis regionais. O
fim definitivo do culto do tsenpo veio quando vários nobres de clãs se uniram para invadir e saquear as tumbas reais
antes consideradas sagradas. E não demorou muito para que os templos e escolas budistas sofressem o mesmo
destino, causando a dispersão de monges e estudiosos budistas. O império tibetano estava se despedaçando, sua
coesão ideológica contestada e seus símbolos saqueados. E não haveria mais um império nos moldes que foram
construídos desde os tempos de Songtsen Gampo. Os exércitos tibetanos tinham se fragmentado em diversas
lealdades a depender da região tibetana. E não poderiam assim apresentar uma frente unida forte o suficiente contra
a invasão estrangeira. A esse tempo de confusão os tibetanos se referem como “A Era da Fragmentação” [615]. Os
monges viviam amedrontados e muitos fugiram para o exílio, onde pudessem achar um templo ou escola, a
preservar ou propagar a mensagem de Buda.

Mapa - Tibete com as regiões destacadas de U-Tsang, Amdo e Kham.

Alguns desses corajosos monges foram emigrar mais para o oeste, em Amdo (mapa), e ali encontraram um
refúgio dos turbilhões no Tibete Central e puderem se assentar em templos e mosteiros erguidos na época de
Ralpacan. Amdo acabou tornando-se região de refugiados budistas tibetanos, e prosperou fornecendo-lhes abrigo,
proteção e apoio, essenciais nas transações culturais e comerciais necessárias para as rotas comerciais internacionais
da Rota da Seda. Outras partes antes integrantes do império tibetano, como Azha ao norte, tornaram-se foco de
preservação da língua e cultura tibetana. De fato, a língua tibetana, depois de séculos de império em toda a região
central asiática, tornou-se uma das línguas francas, e muitos budistas, monges, comerciantes, chineses, turcos e
khotaneses entre outros falaram fluentemente o tibetano a tratar dos assuntos cotidianos e espirituais. Foram essas
comunidades de refugiados tibetanos, a encontrar um lugar de proteção, que a cultura e língua, a história e memória
tibetana foi preservada que séculos depois seria resgatada de volta para uma época de renascimento budista no
Tibete.
Mas havia ainda a necessidade dessa comunidade budista tibetana achar um líder espiritual que pudesse, de
maneira enérgica e criativa, preservar e manter a identidade dessa cultura em dispersão. E foi na figura de um jovem,
conhecido por Heshan Gebak, que passou um tempo a aprender entre monges refugiados o budismo. O menino
apresentou um interesse e inteligência notáveis, e foi recompensado, pelo que a tradição nos conta, com uma visão
divina de um boditsava de compaixão. Inflamado com essa mensagem, de proteção e orientação a todos os seres
para a iluminação, o menino procedeu em estudar para ser ordenado monge. Esse novato recebeu o nome budista de
Gewasel ou Gongpa-sel, “Luz da Virtude”. No afã de sua nova condição, e impaciente com a condição dos tempos,
passou a percorrer todas as regiões possíveis onde pudesse encontrar mais ensinamentos do Buda. Após muitos anos
de andança, desde as regiões dos turcos ao norte, em Kham e Amdo, além do Tibete Central, o jovem monge decidiu
refugiar-se para aprendizado e meditação numa região remota na montanha de Dentig. Sua fama espalhou-se pela
região, e muitos nesses tempos turbulentos começaram a fazer a custosa jornada para conhecer o afamado monge,
criando assim, com o tempo, uma numerosa comunidade de seguidores. Com o tempo, muito desses se tornaram,
com sua ajuda e instrução, monges e passaram a espalhar seus ensinamentos. Agora, rico e famoso, Gewasel
começou a financiar projetos de templos e estupas em Amdo [616].
A dispersão de budistas fez com que muitos seguidores de Gewasel chegassem a se inserir e ganhar status e
poder nos países da região asiática. No fim do século 10, a China sob a Dinastia Song (960 - 1276) tratou de elevar e
empoderar os monges budistas na sua sociedade [617]. Assim passaram a influenciar a condução política chinesa com
relação ao budismo e política tibetana inclusive na região de Amdo, local de origem dos seguidores de Gewasel. No
Tibete Central, diante do colapso da autoridade central e da decadência da sociedade budista, a tendência percorreu
um curioso caminho em que os antigos templos e estátuas começaram a ser cultuados pelos novos regentes e líderes
tibetanos, a partir do século 10, sem a compreensão ortodoxa do budismo. Assim, as estátuas do Buda eram referidas
como “O Grande Careca” ou “O Grande Cabeçudo” [618]. Os cultos e doutrinas budistas pareciam ecoar mais o
distante e glorioso passado tibetano, e aqueles que tinham algum conhecimento da religião eram considerados em
grande estima na sociedade tibetana.
Dois primos, descendentes da família real tibetana, resolveram mudar a política tibetana e buscaram resgatar o
budismo no país. Nesse intento, enviaram a Amdo jovens para estudar com Gewasel, e aprenderam novamente os
textos budistas e os preceitos éticos e filosóficos da Vinaia [619]. Após o período de aprendizagem, esses enviados
voltaram ao Tibete Central e foi atribuído a cada um deles papel de responsabilidade de revitalizar ordens
monásticas tibetanas, a começar pelo complexo monástico de Samye que se encontrava abandonado entre arbustos e
matas. A árdua tarefa atribuída a esses monges resultou numa gradativa criação e restauração dos monásticos pelo
Tibete Central.
No oeste do Tibete, outro renascimento estava acontecendo no antigo reino de Zhangzhung. Em 958, uma
criança havia nascido e com sinais de divindade budista. Aos treze anos de idade, esse menino começou seus
estudos do budismo, e recebeu o nome religioso de Rinchen Zangpo (958 - 1055). Logo sua curiosidade o levou para
estudar as escrituras na Índia, local de nascimento do budismo. No caminho, passando pela Caxemira, defrontou-se,
com seu companheiro de viagem, com bandidos que os reduziram à miséria. Foi quando foi encontrado mendigando
por um brâmane local, cujo nome era Shraddha Karavarman, que depois se tornaria seu guru espiritual. E foi esse
que o introduziu nas doutrinas mais avançadas do budismo tântrico de textos em sânscrito e o profetizou como um
futuro ser iluminado [620]. Depois de mais alguns anos de estudo na Índia, Rinchen Zangpo retornou ao Tibete e,
desconsolado pela morte de seu pai durante sua ausência, encomendou incontáveis mandalas [621] a servir de guia
para aqueles evitaram renascimentos infelizes e um caminho sereno no processo da morte.
Sua maior popularidade veio depois que decidiu, após um período de profunda meditação, denunciar um líder
budista no Tibete ocidental, conhecido como “Estrela do Rei Buda”. Em confronto, Rinchen Zangpo conseguiu
desmascará-lo e assim voltou a Lhasa, a pedido do rei Yeshe-O (c. 959–1040), a quem designou a supervisionar o
budismo no Tibete. Esse regente ardorosamente desejou implementar no seu reino a restauração das glórias passadas
do budismo tibetano, e a denunciar quaisquer práticas desviadas que pudessem vir da China, Nepal, Índia e regiões
adjacentes, principalmente as crenças tântricas que estavam se popularizando no Tibete. Era aos tantras que o rei
atribuía a decadência e degenerescência dos costumes e valores da sociedade no século 10, como a libertinagem
sexual e a matança de animais e humanos. De fato, o budismo tântrico passou a se popularizar no Tibete a partir dos
ensinamentos dos tantras de Mahayoga [622], e nessas propunha-se a plena libertação espiritual indo além das
convenções morais e sociais, em busca da perfeita união e libertação nas práticas sociais e sexuais. Esses cultos
perduraram por anos e prosperaram após a fase imperial tibetana, e ficaram ocultos aos olhos do público e dos
regentes, pois temiam ser perseguidos pelos costumes budistas ortodoxos. E uma das mensagens mais
revolucionárias dos tantras era a plena libertação da condição humana de gêneros, classes sociais e hierarquias da
sociedade.
Esse potencial desestabilizador do budismo tântrico popular fez com que o rei Yeshe-O buscasse revigorar o
budista ortodoxo novamente, a respeitar o tradicional darma das escrituras. E para guiar nessa empreitada, Rinchen
Zangpo foi chamado para ocupar o cargo de preceptor espiritual e do tribunal a julgar o budismo pelo país, inclusive
a regenerar as práticas tântricas no Tibete. Nisso, Rinchen Zangpo juntou-se com outros mestres indianos para trazer
à tona novas traduções de escrituras budistas do sânscrito, e mandou construir um grandioso novo templo e mosteiro
em Tholing (fig.), o de Tabo em Ladakh e o de Khochar [623]. Não satisfeito, Rinchen Zangpo buscou mais artistas na
Caxemira a decorar os murais dos novos templos (fig.) e a buscar novas escrituras budistas nas regiões mais centrais
da Índia. Essas obras depois constarão entre os tesouros artísticos do budismo tibetano. Parecia, pois, ao novo
tsenpo, Yeshe-O, que os tempos áureos dos seus antepassados estavam voltando. Os novos estudos e escrituras
budistas indianas e a generosa política do tsenpo resultaram numa revitalização budista pelo Tibete, indo muito além
da simples supressão dos antigos tantras (nyingma) e criou uma série de novos tantras (sarma) no Tibete. No início
do século 11, o Tibete, revitalizado por essas obras e políticas, tornou-se centro do budismo, em todas as suas
vertentes e manifestações.
Fig. - Templo e mosteiro de Tholing.

Fig. – O fervor tibetano nas artes. Pintura em Tholing de um pescador durante uma tempestade clamando pela benevolência do bodisatva
Avalokiteshvara.

A vida do tsenpo Yeshe-O serviu de inspiração a seus descendentes no trono em Lhasa. Essa dinastia de novos
regentes tibetanos é mais lembrada por um de seus descendentes, no final do século 10. Foi durante a regência
imperial sob aquele que depois seria conhecido como Jangchup, “Luz do Iluminismo”, que foram achadas fabulosas
minas de ouro no Tibete. De posse disso, o príncipe Jangchup resolveu chamar os mais prestigiados mestres budistas
das universidades indianas. Da universidade de Vikramashila, um professor conhecido por Atisha (982 - 1054),
famoso pela sua vasta erudição e acuidade filosófica e tântrica, resolveu atender ao convite feito a ensinar no Tibete.
No caminho para Tibete, o rei do Nepal resolveu convencer o mestre a ficar em Katmandu por um ano inteiro.
Depois da longa viagem, Atisha foi recebido com todas as honrarias por Jangchup em Lhasa. Consternado com as
vigentes práticas tântricas populares, o mestre indiano passou a estudar as doutrinas e explicá-las ao príncipe
Jangchup. Ao final de seus estudos e meditações, Atisha entendeu que as práticas populares eram legítimas, mas
todos deveriam buscar o conselho de um guru para não se perder nos excessos do tantrismo. E recomendou aos
monges uma vida de celibato, tal como havia sido estabelecido na sua universidade em Vikramashila. A vida e os
ensinamentos de Atisha no Tibete deixaram um grande e respeitado legado, e uma numerosa comunidade de
estudantes tibetanos foram influenciados pelo mestre indiano. Sua insistência em não condenar e tratar a todos com
gentileza, compaixão e humildade, tornou-o uma das figuras mais cultuadas no budismo tibetano e foi fundador da
“nova” escola tântrica (sarma). Morreu em 1054, e ficou depois venerado no Tibete como Jowo Je, “Senhor” [624].
***
Após a morte do grande mestre indiano no Tibete, Atisha, em 1054, um de seus discípulos mais talentosos,
Dromton (1005 - 1064) decidiu erguer um mosteiro em homenagem aos ensinamentos de seu professor, em
Radreng, ao norte de Lhasa. E coerente com a filosofia de Atisha, enfatizou-se no mosteiro os ensinamentos de Buda
a serem propagados em linguagem simples a ensinar com tolerância e a buscar entender os exemplos diários de cada
um. Esses pregadores se tornaram conhecidos como os kadampas (“ka”, em tibetano, seguidores, e “dam”, “pa”,
pessoas, conselhos, seguidores dos conselhos de Atisha). Suas atividades e filosofia de forte comprometimento
espiritual fizeram com que formassem um corpo coeso e disciplinado num Tibete em efervescência religiosa, cada
grupo e líder espiritual a competir entre si pelos favores do governo. Os kadampas levaram mais adiante suas
mensagens e foram além do Tibete Central, alguns indo até Amdo, entre os povos tanguts, um novo poderio a se
estabelecer na Ásia Central.
A força da mensagem dos kadampas se pautava na ideia de que as instruções e ensino deveriam ir além dos
impulsos egoístas da compaixão instantânea. O monge deveria buscar um árduo e disciplinado treinamento mental
(lojong em tibetano) a buscar entender e compreender a realidade de quem está ouvindo a mensagem e seu contexto
e se expressar em aforismos e parábolas [625]. Devia-se também considerar o ouvinte como o mais respeitado, diante
da sua trajetória única de vida. Em caso de calúnias e abusos, o monge deveria assumir uma posição de humildade e
aprendizado. Assim, a postura deveria servir de lição a todos os envolvidos. Todo o apego ao “eu” deveria ser
suprimido, de acordo com os ensinamentos de Buda, pois esse é a causa maior de todo o sofrimento no ciclo infinito
do samsara. Raiz de todas as aflições mentais como ansiedade, insatisfação, desejo, ódio, ciúme, orgulho e
ignorância. Outra técnica dos kadampas foi a de tentar, por um ato de empatia, de assumir o lugar da pessoa em
sofrimento e dar-lhes, diante dessa postura mental, o alívio e felicidade, método esse chamado de tonglen em
tibetano.
Mas os adeptos dos tantras continuaram vicejando pelo Tibete. Há uma antiga lenda que diz que Langdarma,
durante seu reinado em meados do século 9, mandou chamar um conhecido adepto tântrico ao que esse respondeu ao
imperador demonstrando todos os seus poderes. Nisso, o adepto recitou um antigo mantra [626] que fez com que um
enorme escorpião preto pairasse nos céus e, não satisfeito, ainda fez com que uma montanha próxima fosse rachada
em seu pico por um raio fulminante, para a consternação de Langdarma [627]. A história remete como ilustração o fato
de que o Tibete jamais conseguiu expurgar o tantrismo durante suas políticas budistas, mesmo com amplos projetos
monásticos. Os praticantes do tantrismo, referidos como ngagpas, “praticantes do mantra”, além de preservarem
suas crenças, práticas e doutrinas, assumiram o papel de sacerdotes e guias espirituais das aldeias, atendendo as
necessidades cotidianas locais, seja através de adivinhações, prática médica e cura, ou a aplacar os deuses e espíritos
[628]
.
Os ngagpas mantinham suas tradições geralmente transmitidos de pai para filho. Essa situação muitas vezes
resultou numa convivência delicada com as ordens monásticas budistas endossadas pelas autoridades centrais no
Tibete. Uma dessas redes de tântricos que floresceu no Tibete ao longo do século 11 foi decorrente de Zur que
depois fez sua fama e passou os ensinamentos para seu sobrinho [629]. Esses ensinamentos focaram mais na busca
pela libertação para levar todos os seres, em último momento, para a iluminação. Essa seita, conhecida como “Rede
Mágica”, depois passou a popularizar-se inclusive entre famílias prósperas. E com o maior envolvimento do
sobrinho de Zur em aprimorar os fundamentos filosóficos da seita, passou a concentrar-se mais na meditação em
busca do estado primordial e não-dualista do ser, inaugurando uma tradição de ensino no budismo tibetano chamado
de Dzogchen (“Grande Perfeição”) [630].
Alguns outros tibetanos, inquietos, resolveram buscar novos mestres tântricos e estudar na Índia. Um desses
jovens, Marpa Chokyi Lodro ou Marpa Lotsawa (1012 - 1097), foi enviado aos quinze anos de idade para estudar
sânscrito com um famoso professor e tradutor (lotsawa), Drogmi (993 – 1050), que fora antes mestre de Zur. Ao
decidir ir para Índia para aprofundar seus estudos, passou pelo vale de Katmandu e por lá resolveu ficar uns três
anos, em parte para estudar com mestres locais e ir se adaptando ao clima indiano mais úmido e quente ao sul. Na
Índia, dirigiu-se para Bihar, para a famosa universidade budista de Nalanda, uma das maiores instituições de estudo
no mundo asiático que floresceu nos séculos 5 e 6 d.C. [631]. Marpa estava interessado em estudar com o famoso
mestre Naropa (? – c. 1040), que vivia recluso num eremitério perto da grande universidade. Após alguns anos
estudando com o mestre e retornando ao Tibete, Marpa começou a oferecer seus ensinamentos tântricos a quem
pudesse pagar, assim como tinha feito seu mestre, Drogmi. Somente nobres locais puderam arcar com tais custos.
Um de seus alunos foi Goyak, homem muito rico que tinha recentemente descoberto grandes minas de ouro em suas
propriedades. Sugerindo que a descoberta de ouro no Tibete no século 11 foi primordial para a atração de mestres
tântricos indianos contribuindo, assim, para o florescimento budista no país. Depois de enriquecido e afamado,
Marpa viajou extensamente para outras terras, e sentou-se com muitos mestres budistas, como o heterodoxo grande
mestre tântrico (mahasiddha) Kukkuripa que vivia na simplicidade absoluta tal como um cachorro, pois os tinham
em grande estima e valor [632]. Marpa, nos anos seguintes, passou a compor poemas baseadas na musicalidade
indiana conhecidos como dohas, compondo-os e traduzindo-os para o tibetano. São composições líricas com grande
expressão espiritual e mística. Posteriormente, Marpa se estabeleceu no Tibete e se tornou um grande proprietário e
conhecido adepto tântrico na região de Lhodrag. Teve muitos filhos, mas nenhum aparentemente seguiu as
inclinações de seu pai.
No entanto, Marpa atraiu muitos estudantes. Entre esses, um iria se tornar uma das figuras mais excepcionais da
devoção religiosa do Tibete: Jetsun Milarepa (1040 - 1123) (fig.). Nascido numa tradicional família aristocrática
tibetana, seu nome original era Mila Thopa Ga, “Alegria de Ouvir”. Seu pai era um grande proprietário de terras, o
que proporcionou ao jovem Milarepa um sustento tranquilo e abundante para seus estudos e aprendizado na infância.
De acordo com as lendas tibetanas compiladas no século 15, quando seu pai morreu, as disputas familiares
começaram em torno do novo casamento de sua mãe viúva a manter as propriedades e tradições da família.
Aparentemente, sua mãe recusou todas as propostas, inclusive, como ditava a tradição, a se casar com um dos
sobrinhos de seu falecido marido. O que gerou a ira da família, causando a expulsão dela. Milarepa, com isso, foi
enviado pela mãe, visando sua segurança e futuro, a estudar ritos mágicos para buscar vingar tal desgraça familiar.
Milarepa passou anos a buscar uma forma destrutiva à altura para se vingar dos oponentes de sua mãe. E somente se
contentou com o aprendizado das tempestades de granizo. Ao praticar tais magias, por quinze dias, Milarepa depois
descobriu que uma grande tempestade tinha destruído a propriedade de sua extensa família, matando 35 pessoas.
Milarepa sentiu-se insuportavelmente culpado por isso, mas sua mãe insistia em maiores destruições na família.
Atormentado depois de tudo isso, Milarepa buscou então uma verdadeira religião para expiar seus pecados [633].

Fig. – O sábio e a natureza. Milarepa, retirado no rigor do inverno tibetano com seus trajes de algodão.

Nessa nova busca, Milarepa buscou um professor da tradição Dzogchen, mas as instruções e ritos não o
satisfizeram devido ao estado turbulento de sua mente. Milarepa depois foi à busca de um fortalecimento maior no
caminho tântrico, e foi assim que conheceu Marpa. Inicialmente, Milarepa não foi aceito como discípulo por Marpa,
mas apenas a realizar alguns trabalhos manuais na propriedade do mestre. Apesar das tarefas indignas, Milarepa
continuou insistindo em ter aulas com o mestre, mesmo que, por vezes, tivesse recebido apenas mais tarefas manuais
e recusas de ensinamento espiritual. Essas provações de Milarepa são uma evocação poética da necessidade de uma
busca insistente da iluminação, e do desapego das vicissitudes do “eu” em busca de uma devoção a um mestre. Pois
o budismo nos ensina que não há diferenças fundamentais entre o Buda e as pessoas comuns, apenas que as últimas
devem vencer suas próprias limitações e sofrimentos pelo apego ao “eu”. A aparente crueldade de Marpa com
relação à Milarepa, então, deve ser considerada como um árduo caminho de superar os obstáculos e limitações do
carma resultado dos erros das vidas anteriores.
Com pena de Milarepa, a esposa de Marpa começou a convencer o mestre de buscar treinar o jovem aprendiz.
Mas Milarepa não obteve êxito inicial nas meditações e, eventualmente, voltou sua frustração contra o mestre. Com
o tempo, Marpa compreendeu que o carma de Milarepa tinha que ser reparado depois de tantas feridas passadas. E
assim o novo discípulo de Marpa passou a florescer como poucos. Para praticar com afinco, Milarepa passou a
praticar sem distração em cavernas e locais de difícil acesso. Esta é a imagem mais conhecida de Milarepa nos dias
atuais, como um eremita emaciado, com uma pela verde decorrente de uma dieta apenas de sopa de urtiga. E
vestindo apenas um manto de algodão, mesmo no rigoroso inverno tibetano, Milarepa passou a ser admiravelmente
conhecido como o iogue “Revestido de Algodão” [634]. Embora visto por muitos como um rigoroso asceta, as
experiências espirituais de Milarepa estão descritas como de grandes façanhas e descobertas. E nos seus escritos é
narrado o encanto da natureza, das colinas e florestas. Dos prados das montanhas e das flores, dos bichos e dos
pássaros, das abelhas, moscas e da chuva. E da mudança sutil dos céus ao longo das estações do ano. Milarepa,
assim, expressou uma união espiritual com a natureza e ordem cósmica, atingindo o estado em que a mente não mais
se onera com as preocupações corriqueiras e falíveis que pesam no samsara, no ciclo infindável dos sofrimentos e
renascimentos. A mente, plena, vazia e luminosa, é o estado que foi atingido. As expressões poéticas de Milarepa
remetem à maneira dos dohas indianos e da forma direta e dramática dos versos tibetanos. E esses versos
permanecem como um dos maiores tesouros da poética tibetana.
A popularidade de Milarepa, obviamente, cresceu conforme seus feitos iam passando de boca em boca, aldeia a
aldeia. E isso atraiu, ainda mais em tempos turbulentos como o que o Tibete atravessou nos séculos 11 e 12, séquitos
de pessoas e estudantes em busca de curas, alívios e ensinamentos. Um desses curiosos e ávidos a aprender com o
mestre iogue era Rechungpa (“Pequeno Repa”), que viveu sua vida prestando todo o apoio necessário ao mestre,
inclusive foi fundamental para depois reunir seus ensinamentos para futura transmissão. Outro dos estudantes foi
Gampopa, que depois se tornou um dos maiores expoentes dos ensinamentos de Marpa via os ensinamentos de
Milarepa. E foi através de Gampopa que os preceitos dos dois mestres foram reunidos em forma de uma escola, o
Kagyu [635].
Outra escola também iria se consolidar nas tradições budistas no Tibete à mesma época. A escola Sakya talvez
seja a única e predominante de todas do budismo tibetano que se consolidou nos altos e restritos círculos sociais e
políticos de um único clã. Os pertencentes ao grupo Khon, rastreiam seus antecedentes aos deuses, e a sua tradição
nota que o primeiro deles nasceu depois que seu pai derrotou um espírito maligno chamado de Kyareng, talvez a
representar as forças sanguinárias da ignorância. Seus descendentes posteriores se envolveram nos assuntos
mundanos e da corte imperial tibetana. As tradições e práticas tântricas eram passadas de pai para filho, dentro do
clã, e as coisas começaram a mudar com Khon Konchok Gyalpo (1034 - 1102), contemporâneo de Milarepa. Um dia
este teve uma visão desanimadora, de rituais e músicas tântricas sendo realizadas sem a menor cerimônia e
importância no meio da rua e das pessoas envolvidas em compra e venda. Visando revigorar sua tradição tântrica, a
mantê-la mais exclusiva e restrita, Konchok Gyalpo buscou o mestre Drogmi, e com este aprofundou-se em outros
tantras, a de Hevajra, e mesclou suas doutrinas com as práticas de meditação da família, a de Vajrakilaya e de
Heruka, dando assim uma nova configuração aos tantras de seus antepassados. Assim nasceu a renovada escola dos
Khons. Depois, Konchok foi buscar fundar um centro de ensino e retiro dessa nova escola em 1073, e assim achou
num local num vale no sudoeste do Tibete perto dos Montes Ponpori, local este designado como Sakya (“terra
pálida”, devido às cinzas do monte próximo).
Um dos estudantes mais brilhantes desse retiro nos anos posteriores seria um filho de Konchok com uma mulher
de uma aldeia próxima. Com o tempo, foi admitido ao seio da família e clã, e se tornaria conhecido como Sachen,
“O Grande Sakyapa” (1092 – 1158). Esse, quando jovem, costumava meditar bastante e chegou através de visões
que teve com um boditsava da sabedoria, Manjushri, no conceito de abdicar e deixar as causas ilusórias e efêmeras
desse mundo para melhor renascimento nas futuras vidas. Mas um de seus ensinamentos mais respeitados entre os
seguidores sakyapas (“seguidores de Sakya”) é o do Lam Dre (“O Caminho da Perfeição”). Na sua velhice, Sachen
adoeceu e buscou elaborar suas doutrinas para preservá-las para a posteridade. E nisso precisou confiar suas
instruções a um aluno competente e à altura. Sua busca incessante o levou a uma personalidade de duvidoso valor
espiritual chamado Zhangton, que, à primeira vista, não apresentava nenhum aspecto de ser um grande espiritualista.
Mas este, com o tempo, e ao saber que Sachen carregava consigo a tradição de Sakya e que seu pai fora discípulo do
grande Drogmi, mudou de atitude e passou a se dedicar a preservar o conhecimento e ensino do Lam Dre. Sachen,
antes de morrer, teve muitos filhos, e dois deles, Sonam Tsemo e Drakpa Gyaltsen, seguiram os rumos de seu pai,
aprendendo as tradições de Sakya e trabalhando para preservar as tradições da família e do clã Khon. Outro filho de
Sachen foi ser médico que teve um filho que tornariam os sakyapas os primeiros governantes de todo o Tibete
unificado desde a era imperial [636].
No aspecto político, o Tibete depois que entrou em colapso no século 10 deixou um vácuo de poder na região
leste da Ásia Central. Foi sucedido por inúmeros reinos e poderios regionais liderados por tibetanos, chineses e
turcos que lutaram pela supremacia entre si. Até que os tanguts, povo de mesma origem étnica dos tibetanos,
começaram a se impor no começo do século 11. E assim passaram a preservar e transmitir a língua e cultura tibetana
aos povos e regiões controladas pelo seu império. Embora tivessem criado um alfabeto mais a partir do chinês, eles
empreenderam a gigantesca tarefa de traduzir a literatura budista que pudesse ter acesso, seja em chinês, sânscrito ou
tibetano. Esse projeto, que perdurou por quase dois séculos, envolveu a tradução e preservação crucial de toda a
herança escrita dos confucianos, além de terem elaborado em escrito novas obras como a compilação de sua
literatura e tradição oral e de um dicionário tangut e chinês. Como parte de seu império incluiu as partes mais ao
norte do Tibete, os tanguts logo se familiarizaram com as tradições tibetanas.
Mas o poderio dos tanguts não perdurou por muito tempo. A notável compilação e preservação literária
empreendida por eles foi interrompida por uma magnífica força advinda das estepes da Ásia Central, os mongóis.
Como os tanguts se recusaram a se submeter, o próprio Temujin Khan (Gêngis Khan) liderou seu implacável
exército contra a capital dos tanguts, Xingzhou, em 1225. Após um ano de cerco, a capital foi completamente
obliterada e seus habitantes mortos ou escravizados. Ao final de tudo, a civilização dos tanguts perdurou pouco mais
de dois séculos, mas sua cultura e preservação literária foram preservadas e achadas ao longo da Rota da Seda.
Outros aspectos que os mongóis apreciaram e incorporaram das práticas dos tanguts foram os patrocínios que eles
concederam aos tibetanos. Após a morte de Gêngis Khan em 1227, o seu império fora dividido entre seus
sucessores, e as regiões tibetanas em Amdo ficaram sob o domínio de Godan, um dos netos de Temujin. E Godan,
não familiarizado com os tibetanos, decidiu delegar a região de Amdo para vários pequenos líderes, todos
aparentemente unidos apenas na devoção ao budismo. E nisso que Godan percebeu a importância de se ter um líder
budista tibetano a representar as várias lideranças locais, tais como os tanguts tinham identificado em Amdo.
Assim, Godan enviou um destacamento mongol para o Tibete em 1240, liderado por um general descendente dos
tanguts. Quando esse exército chegou ao mosteiro de Radreng, e quando foi ameaçado de massacre, o abade local se
rendeu e disse que quem melhor poderia representar os interesses tibetanos na corte mongol seria Kunga Gyeltsen
(1182 – 1251), descendente dos khons à frente da escola Sakya. Também conhecido por Sakya Pandita, tinha um
enorme e erudito conhecimento da língua sânscrita e do budismo indiano. A vastidão de sua influência foi tamanha
que, até hoje, as obras dele são parte do currículo monástico tibetano. Sendo assim, o general tangut a serviço dos
mongóis levou o nome de Sakya Pandita para Godan que, em 1244, nomeou-o como maior representante dos
tibetanos na sua corte. Dois anos depois, mesmo com a avançada idade de sessenta anos, Sakya Pandita chegou ao
encontro do governante mongol. E a partir desse ponto, os tibetanos seriam administrados via um preceptor imperial,
de profunda formação budista, a representar os interesses junto aos mongóis até meados do século 14. Não vendo
nenhuma alternativa ao poderio mongol, os líderes dos clãs tibetanos não apresentaram resistência e assim se
submeteram ao representante imperial designado. E foram os funcionários de Sakya que supervisionaram e
administraram todo o Tibete.
Sakya Pandita nunca mais retornou ao Tibete, pois passou a residir num templo que Godan mandou construir
para ele até sua morte em 1251. Após isso, não havia mais ninguém indicado a representar todos os interesses
tibetanos para a administração mongol, e o Tibete foi dividido em inúmeros distritos administrativos, com cada
membro da família imperial mongol a ser responsável por um clã tibetano. A escola Sakya, provavelmente, não
tinha mais tanta projeção sobre todos os líderes de clã, e assim fragmentou-se o Tibete novamente às unidades
clânicas.
Com a ascensão de Kublai Khan (r. 1260 - 1294) à frente dos mongóis, inaugurando a Dinastia Yuan dos
chineses, o interesse mongol voltou-se definitivamente ao budismo. Em 1258, dois anos antes de ascender ao poder,
o Kublai pediu a um dos sobrinhos de Sakya Pandita presentes na corte imperial, Phagpa ou Drogon Chogyal
Phagpa (1235 – 1280) (fig.), que ganhou os favores do líder mongol, os seus serviços tântricos. A admiração era
tamanha que Kublai nomeou Phagpa como seu guru tântrico, uma ligação que iria perdurar por muitos anos. Em
1264, Mongke Khan morreu de repente e, após algum tempo de conflitos civis entre os diferentes príncipes
mongóis, desmembrou-se a unidade imperial conquistada por Temujin. O império mongol fora dividido entre o
canato da Horda de Ouro na Rússia, o de Il-Khans (ou Ilcanato) na Pérsia, o canato de Chagatai na Ásia Central e
Kublai no Oriente. A resolver o problema de administrar o Tibete dentro de seus novos domínios, Kublai decidiu
que as diversas unidades tibetanas seriam mais bem administradas por um preceptor, e deu a Phagpa dos Sakyas o
encargo. Contra tal decisão, as autoridades do canato vizinho ao oeste, dos Il-Khans na Pérsia, se recusaram a aceitar
tal decisão e passaram a apoiar outros líderes tibetanos no Tibete ocidental, como os clãs Pagmodrus e Drigungs.

Fig. - Phagpa, o grande preceptor imperial da dinastia chinesa Yuan.

Phagpa, ao retornar ao Tibete como preceptor de Kublai, foi visitar o templo de Sakya para prestar as suas
devidas homenagens. E passou a se instalar no mosteiro, administrando os interesses de estado e a elaborar tratados
e estudos budistas. Negociou com o representante tibetano apontado pelos Il-Khans da Pérsia, do clã de Drigung,
buscando com esse negociar um pequeno território ao sul de Lhasa. Após os fracassos nas negociações, Phagpa,
passados alguns anos, foi chamado de volta à capital de Kublai, Cambalique (atual Pequim). E nesse meio tempo,
Kublai mandou uma força para punir aqueles rebeldes no Tibete ocidental a serviço dos interesses persas ao oeste.
As lutas foram inconclusivas, e restou ao Phagpa na corte de Kublai a árdua tarefa de elaborar um novo sistema de
escrita para todo o seu império, a servir de língua franca entre a China, Tibete e do que restava dos antigos territórios
originários dos mongóis. Nessa magnífica obra, Phagpa, que era um homem culto à altura do desafio, e conhecedor
de várias línguas, desenvolveu um alfabeto que tomou boa parte de suas características do tibetano, mas com a
incorporação de elementos chineses e mongóis, como a direção da escrita de cima para baixo e não da esquerda para
direita [637]. Sua obra ficou pronta em 1269, gerando grande satisfação no Grande Khan, que o apontou como
preceptor imperial do Tibete e maior autoridade religiosa em todo o império de Kublai, incluindo a China. E os
novos documentos e correspondências foram todos incorporados ao novo alfabeto e escrita.
Apesar de muito respeitado pelo Grande Khan, Phagpa preferiu se manter afastado da vida política o quanto
pôde, e mudou-se para Amdo, para se dedicar aos assuntos espirituais. Passados alguns anos, solicitou a Kublai para
que pudesse voltar ao Tibete Central com a intenção de voltar ao mosteiro de Sakya. Quando ele chegou ao mosteiro
em 1276, os problemas no Tibete ocidental só tinham aumentado. Drigungs e Pagmodrus, apontados pelos mongóis
na Pérsia, ainda estavam tentando reivindicar mais territórios tibetanos, representando uma ameaça cada vez maior
para a estabilidade tibetana. Para tentar sanar tal situação, Phagpa convocou uma grande conferência religiosa entre
todos os tibetanos, pois todos tinham a devoção budista. Como resultado da conferência, a paz prevaleceu durante
alguns anos depois em todo o Tibete. Em 1280, anos depois da conferência, Phagpa faleceu no mosteiro de Sakya, e
com ele um dos mais talentosos estadistas e diplomatas tibetanos, além de profundo conhecedor das línguas e
culturas asiáticas.
A morte de Phagpa desestabilizou a ordem tibetana novamente. Houve acusações de que fora envenenado. E
Kublai, inconsolado com a morte de seu guru, mandou uma expedição punitiva ao Tibete para castigar todos os
oponentes de Phagpa e dos Sakyas. Quem assumiu o cargo de preceptor foi o sobrinho de Phagpa. Mas as agitações
no Tibete ocidental não cessaram, ao contrário, ganharam renovado fôlego com as novas investidas imperiais de
Kublai. Em 1285, as forças tibetanas aliadas aos Pagmodrus e Drigungs invadiram o Tibete Central e destruíram
completamente o mosteiro de Sakya e mataram o abade. Cinco anos depois, Kublai mandou um numeroso exército
combinado de chineses e tibetanos, marchando sobre o Tibete ocidental e matando milhares na campanha. O líder
dos Drigungs fora capturado e fora levado a responder pelos seus crimes até Sakya, andando todo o trajeto a pé
puxado por um cavalo e com um saco amarrado sobre sua cabeça. Depois de condenado e morto, o domínio de
Kublai e de Sakya predominou sobre todo o Tibete.
Os mongóis haviam administrado o Tibete de maneira bastante peculiar e com grande autonomia. Isso fazia parte
do sistema mongol, em que as regiões fronteiriças eram governadas por representantes, muitas vezes locais para
manter a ordem e estabilidade, desde que os tributos fossem pagos e enviados para a capital imperial. No caso do
Tibete, foi dada larga autonomia na escolha de um membro proeminente e unânime entre a ordem de Sakya.
Primeiro por Sakya Pandita e, depois de algum tempo, por Phagpa. Em contraste com a China, que Kublai buscou
assimilar e ocupar diretamente via sua capital no norte chinês. E reformulou toda a sua ordem social, colocando os
mongóis acima dos chineses, e, abaixo desses, os persas, turcos, russos e tibetanos. O que provocou a ira de muitos
chineses que trataram logo de mudar tal status e estrutura social após a queda da Dinastia Yuan (1271 -1368) e
ascensão dos chineses Ming em 1368.
A popularidade do budismo tibetano entre a elite mongol da Dinastia Yuan chinesa criou um vínculo cultural
entre a China e o Tibete, apesar de ter gerado uma grande resistência chinesa com relação ao budismo tibetano em
seu país. O próprio Grande Khan, Kublai, era um ardoroso adepto tântrico e admirava Phagpa, nomeando-o como a
maior autoridade religiosa de seu império. O que deu grande autonomia e prestígio à cultura tibetana. Assim, o
Tibete foi por muitos anos, durante o século 13, tratado como uma província autônoma e associado ao budismo.
Havia até mesmo um departamento na capital próprio para lidar com a região, o Departamento de Assuntos Budistas
e Tibetanos, com o preceptor imperial no topo dessa divisão residindo na capital, Cambalique. O Tibete, ao contrário
da China, nunca foi, portanto, uma mera província administrativa do império de Kublai. Era mais uma região
autônoma com representante e departamento próprios (mapa).

Mapa - O Tibete no contexto do império chinês sob a Dinastia Yuan.

A relação entre Cambalique e Lhasa, contudo, não era apenas religiosa. Deve-se lembrar que o preceptor
responsável pelos tibetanos residia na capital dos Yuans, distante do Tibete. E quem efetivamente lidava com os
problemas tibetanos locais era o administrador e o abade de Sakya, novamente demonstrando o prestígio da escola
diante dos governantes mongóis. E não podemos afirmar, tampouco, que houve um período de inconteste ordem e
estabilidade no Tibete sob os mongóis, pois as províncias ocidentais tibetanas sempre buscaram uma oportunidade
para fazer seus avanços e reivindicações com o apoio das tropas persas do canato de Il-Khans, ao oeste, sob a
liderança de Drigung e de Pagmodru. Bem que houve um período de trégua, esse seria o melhor termo, após a
grande conferência tibetana promovida por Phagpa em 1290. Mas já na década de 1320, os Pagmodrus já estavam
liderando novas revoltas contra as lideranças de Sakya e o imperador mongol da Dinastia Yuan. Isso conflagrou uma
guerra civil que, em 1353, causou a queda da aliança feita entre os mongóis e a casa de Sakya.
Mas talvez o maior legado que os tibetanos ofereceram aos mongóis foi seu legado cultural sob o budismo
tibetano que se tornou a principal religião da corte mongol a partir de Kublai Khan. Junto com as tradições tântricas
e a herança budista indiana, foi por meio de eruditos como Phagpa que foi transmitida a cultura tibetana para o
centro nevrálgico do império chinês sob a Dinastia Yuan. Na contramão, a contribuição mongol ao Tibete foi
igualmente notável. Foi montada uma estrutura de serviço postal, de transporte e de tributação que, de uma vez por
todas, unificou todo o Tibete para uma autoridade centralizada. Que solapou qualquer tendência de fragmentação
tibetana como entre poderios regionais baseadas em clãs. E a figura central sob os mongóis, a identificarem um líder
espiritual budista como aquele acima dos outros conferiu ao futuro do Tibete uma característica única, colocando
nas mãos de uma elite budista a condução e sucessão daqueles a governar o país.

China (1279 - 1895)


Dinastia Yuan (1279 – 1368)
O reinado de Kublai Khan (r. 1260 – 1294) foi o ponto alto do império mongol. Kublai dominou um enorme
reino que se estendia pela maior parte da Eurásia, da Coreia, no leste, até o Iraque, e Ucrânia, no oeste. A nordeste,
Kublai estendeu sua autoridade para além da Mongólia até as partes mais próximas da Sibéria, estabelecendo fortes
de coleta de tributos perto do lago Baikal, na foz do rio Amur e até mesmo na ilha de Sacalina (Sakhalin). Estradas e
comunicações melhoradas encorajaram o comércio e a atividade missionária entre o Oriente e o Ocidente. O
estrangeiro mais famoso a aproveitar essas condições foi o comerciante veneziano Marco Polo, cujos escritos
retratavam vividamente os esplendores da Ásia. No entanto, o império havia crescido tanto que não podia mais ser
governado de um só lugar. Isso significava que, embora Kublai pudesse reivindicar o governo de todo o império,
uma vez que ele escolheu Cambalique (Beijing ou Pequim) como sua capital, ele só teria controle sobre o terço
oriental de seus domínios. Seus primos governaram as outras áreas em seu nome e fizeram livremente quase sem
impedimentos, seja por acordos feitos, seja pela enorme distância entre os domínios. Nas décadas de 1280 e 90,
Kublai lançou expedições militares contra as regiões ao sul da China, contra o que hoje conhecemos como a
Birmânia (Mianmar), o Vietnã e Java, mas elas não resultaram em nada permanente mesmo quando tiveram sucesso
militar e diplomático. Os mongóis tinham pouco desejo de conquistar terras tão diferentes e tão distantes das estepes
de seu meio nativo. Mais humilhante foi o desastroso resultado quando Kublai enviou duas expedições navais para
conquistar as ilhas do Japão. Ambas as frotas foram destruídas por tufões e os samurais acabaram com os azarentos
mongóis que chegaram à costa.
Nos seus domínios, Kublai resolveu racionalizar e dividir as terras em doze províncias e sua vasta população nas
seguintes quatro classes:
1. mongóis (aristocratas e proprietários de terras isentos de impostos);
2. asiáticos centrais, turcos e europeus (comerciantes e administradores. Marco Polo se enquadrou nessa
categoria);
3. coreanos e chineses do norte (classe média baixa);
4. chineses que viveram sob a Dinastia Song do Sul ("bárbaros", sem nenhum direito ou permissão para
negociar).
Como a maioria dos estudiosos da China eram privilegiados na antiga escala social de acordo com os preceitos
confucianos, os sentimentos sediciosos foram generalizados e o risco de rebelião entre esses foi uma ameaça sempre
presente, como relatou Marco Polo. Para conter esse problema, as guarnições mongóis foram mantidas nas
principais cidades para desencorajar surtos. Estudiosos e funcionários, membro da antiga elite chinesa, eram
realocados regularmente antes que os luxos da vida urbana local pudessem enfraquecer sua força. Estudiosos
chineses desempregados foram forçados a recorrer a atividades culturais, e fizeram duas contribuições significativas
para a literatura chinesa, o drama e o romance. Ambas as formas literárias existiram pelo menos desde a Dinastia
Tang, mas só agora elas se tornaram populares. O governo encorajou o desenvolvimento do teatro chinês, pois essa
era uma arte que os mongóis semiletrados podiam entender. Uma dessas artes dramáticas chinesas da época foi o
teatro zaju( 雜劇 ), composto de muitos cantos, recitações e atos acrobáticos, com um breve prelúdio seguido de
quatro atos. Os temas de zaju geralmente eram de antigos mitos e histórias populares de chineses e povos da região
recitados em língua vernácula (fig.) [638]. Os atos cômicos (chou, 丑 ) e improvisados davam às peças um caráter
mais popular, influenciados pela antiga ópera canjun( 參軍戲 ) da Dinastia Zhao Tardia (319 – 351), em que os
personagens eram sempre de um impostor, um corrupto ou bobo da corte a incomodar os protagonistas inocentes.

Fig. – Pintura da Dinastia Ming de uma peça de teatro zaju.

Tolerante a todas as religiões, Kublai permitiu que o Islã fizesse muitos convertidos nas províncias ocidentais -
Gansu, Ningxia, Xinjiang e Yunnan ao sul. Ele também pediu à família de Marco Polo para trazer monges para que
ele pudesse aprender sobre o cristianismo. O papa, Inocêncio III, no entanto, estava mais preocupado com os
assuntos internos, e só enviou dois clérigos em 1245, o italiano Giovanni da Pian del Carpine e o frei polonês
Benedykt Polak que viajaram com a família Polo até a Armênia, antes que o mau tempo os persuadiram a voltar
atrás [639].
Após a morte de Kublai, em 1294, a dinastia mongol de Yuan decaiu rapidamente. Tão repentinamente, de fato,
que o tempo de governo sobre a China perdurou menos tempo do que a sua conquista. Embora todos os imperadores
da Dinastia Yuan usassem capacetes nos retratos oficiais, aqueles que vieram depois de Kublai não tinham nada de
guerreiros - a maioria nem sequer entrou num campo de batalha - e deixaram a ordem do país negligenciada
enquanto lutavam entre si pelo poder. Entre 1294 e 1333, dez imperadores subiram e desceram do trono imperial.
Depois disso, ascendeu um menino de 13 anos, Toghon Temur (r. 1333 – 1368), que governou tanto quanto Kublai
Khan, embora não tão eficazmente. A crescente inflação e altos impostos descontentaram os camponeses. Os
eruditos, a classe do mandarinato, sempre vigiados e marginalizados pela elite mongol, continuaram a criticar e
buscar causar problemas sempre que possível. Estranhos rumores começaram a circular sobre as reais intenções dos
mongóis: eles não apenas proibiriam armas de ferro, mas todas as ferramentas feitas de ferro; todos os rapazes e
moças solteiros seriam presos a servir o governo. O mais assustador foi uma proposta para matar todos os chamados
de Zhao, Zhang, Li, Liu ou Wang, nomes bastante comuns até os dias atuais na China. Depois advieram as pragas de
grande devastação populacional. A fome e epidemias como a notória peste bubônica, inundações severas do Rio
Amarelo e inadequado manejo da terra levaram a população a cair de 100 milhões no século 13 a 60 milhões em fins
do século 14 [640].
Na década de 1330, várias fraternidades religiosas secretas tornaram-se cada vez mais politizadas. A mais
significativa delas foi a Sociedade do Lótus Branco ( 白 莲教 ) (fig.) que acreditava que a expulsão dos mongóis
traria uma era budista de paz e prosperidade. Seus membros se reuniam à noite em segredo, juravam irmandade de
sangue, recebiam nomes rituais e recrutavam um exército de tropas que usavam turbantes vermelhos. Quando as
inundações do rio Amarelo danificaram gravemente o Grande Canal, 150 mil trabalhadores foram enviados para as
obras. Isso favoreceu o plano dos rebeldes do regime de Yuan. A tradição sustenta que o Lótus Branco espalhou
boatos de que o fim do império do mal viria depois do aparecimento de um gigante de um olho, e então foi enterrada
uma enorme estátua de um olho só onde os trabalhadores escavaram. Em 1351, a maioria da população dos vales
dos rios Huai e Yangzi encontrava-se em revolta. E os chamados Turbantes Vermelhos não estavam sozinhos. Fang
Guozhen (1319 - 1374), um notório pirata, fez com que a costa e rios chineses inseguros com suas incursões,
enquanto um contrabandista de sal chamado Zhang Shicheng (r. 1354 - 1367) proclamou-se imperador e mudou-se
para a cidade de Gaoyu, bloqueando assim o Grande Canal.
Fig. – Retrato de membros da Sociedade do Lótus Branco, movimento budista milenarista que contribuiu para a queda da Dinastia Yuan no século 14.

Para responder a esse quadro de crise, o governo Yuan nomeou um promissor primeiro-ministro mongol,
Togtogha (1314 - 1355), que respondeu heroicamente. Entendendo que o norte chinês dependia essencialmente do
sul para se alimentar pelos canais e costa, o ministro organizou um grande programa para desviar o curso do rio
Yongding para abastecer e fornecer terras cultiváveis para a capital, Cambalique agora renomeada de Dadu (atual
Pequim). Ele também imprimiu enormes quantidades de papel-moeda para aumentar a receita imperial sem
aumentar os impostos. Durante os próximos anos, o governo Yuan ganhou uma série de vitórias no campo de
batalha. No inverno de 1354, Togtogha liderou um exército para sitiar Gaoyu. A vitória contra Zhang Shicheng
estava à vista, até que chegou uma carta de Dadu anunciando que Togtogha havia sido demitido de seu posto. Seu
sucesso havia despertado inveja na corte. Logo depois disso seus inimigos o exilaram e o envenenaram. Sem ele no
comando, o exército imperial começou a se desintegrar e muitos dos soldados se juntaram aos rebeldes. No final de
1356, os mongóis de Yuan já não controlavam nada ao sul do rio Amarelo. Enquanto isso, Zhang Shicheng avançou
mais para o norte e capturou a próspera cidade de Suzhou. De lá, como o governante de dez milhões de súditos no
reino de Dazhou, ele começou a viver uma vida de luxo além do que ele poderia ter sonhado desde seus tempos de
contrabandista de sal.
Nessa altura dos eventos, os Turbantes Vermelhos dividiram-se em quatro facções, cada uma proclamando seu
líder como o próximo imperador. A facção menor, mas mais bem organizada, era liderada por Zhu Yuanzhang, de
28 anos, um camponês de alta estatura cujo semblante lhe rendeu o apelido de "imperador do porco" (fig.). Quando
adolescente, Zhu perdeu a família inteira para a fome e ele sobreviveu apenas se juntando a um mosteiro. Em 1352
ele se alistou nas milícias criadas por um adivinho que previa que o Buda estava prestes a retornar à Terra e
começou a recrutar seu próprio bando de seguidores, começando com 24 amigos de infância de sua aldeia natal. Em
1355 ele comandou 30 mil homens e nesse ano capturou a cidade de Nanjing (Nanquim) que se tornou sua base de
operações depois. Outros líderes das facções foram:
- Ao norte do rio Yangzi: Han Liner, filho do líder original do Lótus Branco que considerava como legítimo
imperador herdeiro de Song;
- Em Hubei: Chen Youliang, um pescador que se chamava imperador descendentes dos regentes de Han. Esse
líder depois se juntou a uma frota pirata cujo líder se armava como um samurai japonês e era, portanto, conhecido
como “Zhao de Duas Espadas”;
- E em Sichuan: num exército isolado de maniqueus, de seguidores de uma antiga religião persa do terceiro
século que combinava elementos do cristianismo e do zoroastrismo.

Fig. - Zhu Yuanzhang, o ex-camponês que depois se tornou imperador fundador da Dinastia Ming como imperador Hongwu em 1368. Retrato oficial
hoje no Museu do Palácio Nacional em Pequim.
Todos os rebeldes progrediram rapidamente em seus planos, tornando-se governantes das regiões que
controlavam em estados organizados. O rei Zhang Shicheng e o pirata Fang Guozhen chegaram a fazer acordo com
o governo mongol e enviaram suprimentos do sul. Os mongóis sobreviveram no norte por mais doze anos pois os
rebeldes agora lutavam mais entre si pela supremacia do que com os mongóis restantes da Dinastia Yuan no norte
chinês. Zhu Yuanzhang lutou com Zhang Shicheng e os rebeldes de Han Liner, finalmente vencendo ambos e
controlando todo vasto vale do Yangzi. De Nanjing, em 1368, Zhu Yuanzhang proclamou-se Hongwu (r. 1368 -
1398), o primeiro imperador da Dinastia Ming.
Um dos amigos de Zhu Yuanzhang, Xu Da, marchou para o norte com um quarto de milhão de homens. O
regime de Yuan tinha pouco para revidar e pagar para seus homens e mercenários. O último imperador Yuan,
Toghon Temur, se escondeu em seu palácio e se dedicou a cerimônias esotéricas que aprendeu com os monges
budistas tibetanos da escola Karma Kagyu que ele apreciava - sacrifícios de corações humanos e fígados e
cerimônias tântricas que se pareciam com orgias. Finalmente, ele desistiu e fugiu para a Mongólia, onde morreu em
1370. Enquanto isso, o almirante pirata Fang Guozhen forneceu os navios para transportar as tropas Ming da costa e
pelos rios. O restante dos Turbantes Vermelhos em Sichuan foram finalmente reprimidos em 1371 quando suas
catapultas foram destruídas por uma nova invenção no campo bélico, o canhão. Em 1382 os Mings fizeram sua
conquista final, derrotando as lideranças mongóis que tinham se estabelecido em Yunnan no extremo sudoeste
chinês.
Dinastia Ming (1368 – 1644)
Sob os imperadores Ming, a China experimentou sua terceira e última grande era de história. A eficiência do
governo das dinastias Tang e Song foram restaurados, embora a burocracia fosse menor e mais centralizada do que
antes. Os exames do funcionalismo público também voltaram, pois tinham sido abolidos durante a Dinastia Yuan,
mas o Hongwu ainda mantinha certo preconceito de seu passado camponês contra o elitismo dos letrados, então
acrescentou testes com tiro com arco e equitação às tradicionais perguntas de ensaio sobre os clássicos
confucionistas. Ademais, o imperador preferiu manter o poder de nomear seus altos funcionários em vez de tê-los
pela carreira.
Embora seu passado tenha sido um fervoroso budista quando era membro do Lótus Branco em sua juventude,
Hongwu passou a tolerar o confucionismo como essencial para o funcionamento estatal da China. No campo legal,
foi criado um novo código tributário mais eficiente e menos corrupto que o do tempo dos mongóis de Yuan. Toda a
China foi dividida em comunidades de 110 famílias, cada uma subdividida em 11 grupos de 10 famílias cada. Em
cada comunidade, o grupo de famílias mais próspero deveria indicar um chefe a representar a comunidade em suas
relações com o governo, enquanto os outros dez grupos se revezavam na prestação de serviços comunitários de
trabalho. Uma escola, um altar e um celeiro foram construídos para cada comunidade e eram realizadas reuniões
mensais para discutir problemas locais.
Agora que ele estava no poder, Hongwu se dissociou dos revolucionários dos Turbantes Vermelhos, ala armada
da Sociedade do Lótus Branco. Hongwu chegou mesmo a confessar depois que subiu ao trono que jamais pensou em
realizar seus sonhos revolucionários de juventude, que se tornara um rebelde para permanecer vivo e que a guerra
para expulsar os mongóis havia feito mais mal do que bem para o reino.
Hongwu sabia das razões do fracasso dos mongóis na China. A administração deles se tornara inepta, lenta e
corrupta preguiçosos, perseguindo os mais pobres e vulneráveis a ponto de muitos partiram para o banditismo e
seitas milenaristas, como a do Lótus Branco. O novo imperador Ming não iria permitir que isso acontecesse
novamente e recorreu a castigos e penalidades brutais que se assemelhavam aos mongóis, cujo legado ele estava
tentando apagar. Apesar disso, Hongwu percebeu que punições cruéis nem sempre funcionam. É como escreveu o
antigo sábio Laozi, aqueles que não temem a morte não podem ser dissuadidos pela pena de morte. Como resultado,
o imperador frequentemente substituiu as execuções capitais pelo trabalho forçado. Mas tal política não poderia
impedir o imperador de suspeitar que alguém seguiria seu exemplo como rebelde no passado. Todas as sociedades
políticas e religiosas secretas foram suprimidas, inclusive a do Lótus Branco, enquanto permanecesse ameaças de
insurreição.
Em 1380, as suspeitas do imperador chegaram a um ponto que gerou crises contra a permanência do regime de
Ming. A essa altura, Hongwu decidiu que todos os problemas de estrangeiros - escaramuças na fronteira com os
mongóis, piratas japoneses (wakô) na costa, mercadores que continuavam a operar no exterior apesar da vontade
contrária do imperador - eram tudo parte de uma conspiração contra o trono liderado pelo seu chanceler, Hu
Weiyong, um velho camarada que o servira desde 1355. Se tal plano existia ou não, Hu foi executado e depois
adveio um expurgo ao estilo stalinista que provocou uma onda de acusações e confissões forçadas. Há relatos de que
mais 30 mil funcionários perderam a vida por causa de sua suposta associação com o chanceler desonrado. Milhões
de pessoas comuns também sofreram com isso. Agentes de vigilância levaram relatos de traição, quer fossem reais
ou não. Um sobrevivente observou que mesmo o Buda sem pecado teria tido sorte de escapar das acusações.
Funcionários da corte foram flagelados por pequenos desvios e escritores foram executados por escrever poemas
sobre calamidades naturais que poderiam ser vistos pelo imperador como alusões ao seu próprio governo severo.
Ministros fizeram despedidas finais para suas famílias antes de responder a convocações para o palácio imperial.
Depois disso, Hongwu passou a não confiar mais em ninguém. Ele acabou com a maior parte do gabinete e
assumiu seus poderes para si ou para sua restrita família imediata. Por exemplo, cada um de seus 26 filhos tornou-se
governador de província, embora Hongwu tenha mantido o controle pessoal sobre todos os exércitos do império [641].
O imperador chinês não seria contido por sua burocracia, como aconteceu em dinastias anteriores. O resultado disso
foi o mesmo que em outras sociedades autocráticas: o sistema funcionou sob um líder forte e determinado como
Hongwu, mas quando houvesse uma liderança não à altura no comando, era uma receita para problemas.
A paranoia de Hongwu encorajou a corrupção e seus esforços para contê-la tiveram sucesso limitado. Um
funcionário chamado Kang Mingyuan foi acusado de apropriação indébita, foi duas vezes marcado, espancado e
perdeu os dois joelhos, mas ainda assim continuou a furtar suprimentos dos celeiros do governo. Outros casos
abundaram e as punições pareceram não ter efeito. O perplexo imperador escreveu que esperava controlar os vilões
com a ideia de que, se um homem fosse punido, cem receberiam a advertência. Mas isso não ocorreu. Hongwu
morreu desiludido em 24 de junho de 1398 aos 69 anos de idade após ter expressado seu profundo desapontamento
diante dos seus esforços imperiais de transformação de seus súditos (fig.).

Fig. - Estela fúnebre no Mausoléu de Hongwu em Nanjing, com a tartaruga gigante de pedra (bixi) na base.

Os próximos imperadores da Dinastia Ming passaram a considerar a defesa do império como prioridade. Assim,
Yongle (1403 - 1425), o terceiro imperador da dinastia, reconstruiu amplamente a Grande Muralha e mudou a
capital de Nanjing (“Capital do Sul”, Nanquim) para Beijing (“Capital do Norte”, Pequim), onde pôde vigiar mais
de perto os mongóis. No entanto, foram os missionários budistas que trouxeram fim mais permanente à ameaça
mongol. Foram os budistas que haviam transformado a maioria dos nômades além das muralhas chinesas em
piedosos pacíficos seguidores dos ensinamentos de Buda. No sul, Yongle aproveitou do caos político que reinava
nas terras vietnamitas para conquistar aquela terra, transformando-as em província chinesa de 1407 a 1428 (mapa).

Mapa – As extensões do império chinês (amarelo) sob Yongle em 1424.


Outro evento notável ocorreu no início do século 15 na China Ming. Entre 1405 e 1433, sete enormes frotas de
navios de guerra, lideradas por um eunuco muçulmano chamado Zheng He (1371 - 1433), partiram da China em
expedições aos oceanos Pacífico e Índico. As frotas transportaram até 20 mil soldados e oito mil marinheiros [642].
Em comparação, a Armada Espanhola transportava menos homens em uma viagem muito mais curta. Essas viagens
foram para o sudeste da Ásia, Índia, Pérsia, Arábia e África Oriental (mapa). Em toda parte, Zheng buscou
apresentar o Império do Meio às outras nações e recebeu tributos como sinal de amizade e possibilidades
comerciais. O almirante trouxe de volta à China embaixadores de 50 estados diferentes, além de presentes exóticos,
como zebras e girafas (fig.).

Mapa – Os chineses de Ming se lançam aos mares. As expedições de Zheng He em linha azul, entre 1405 e 1433.

Fig. – O fantástico e o descobrimento. Uma girafa oriunda de Malindi, costa oriental africana, dada de presente pelo sultão de Bengala em 1415 que se
tornou sensação na corte chinesa de Ming, pois pensava-se que era uma figura mitológica chinesa, o qilin.

Por mais impressionantes que fossem essas expedições, elas não foram organizadas com o propósito de
exploração uma vez que a maioria das terras visitadas era parceira comercial da China há tempos. Tampouco foi o
objetivo de estabelecer colônias ou mesmo de comercializar. A maioria dos comerciantes chineses sentia pouca
necessidade de procurar novos clientes e mercados. Os chineses já negociavam em termos favoráveis todos os
produtos que a Ásia, a Europa e a África podiam oferecer e os seus produtos, desde - seda, chá, laqueados, jade,
porcelanas entre outros - tinham grande demanda mundial. A China era, portanto, quase autossuficiente em tudo o
que era considerado essencial. A principal razão para as expedições era política: a China queria que todas as nações
reconhecessem que o Império do Meio era a nação mais avançada e civilizada do mundo. Uma vez realizado isso
por Zheng He, as expedições e viagens navais foram consideradas onerosas e desnecessárias e decidiu-se em Pequim
pelo termo delas, porque pela mentalidade das autoridades Ming não fazia sentido buscar maiores contatos com o
resto do mundo. As nações europeias, lideradas por Portugal, em meados do século 15 começaram a explorar à
época em que as expedições chinesas terminaram, motivadas por duas coisas que não motivaram os chineses: lucro,
em forma de mercadorias valiosas a ser revendida, como especiarias e tecidos e assim foram investidos em navios
que pudessem garantir a exclusividade de rotas e portos estratégicos ao longo da costa africana e asiática no Oceano
Índico contra rivais e adversários muçulmanos e europeus e; oportunidade de converter número ilimitado de pagãos
ao cristianismo. Nenhum desses fatores motivaram os chineses no século 14.
A elite política da China Ming passou a defender ativamente o fim às expedições de Zheng He. As viagens
tinham fortalecido a posição de eunucos que disputavam com os letrados confucionistas o favor do imperador e os
altos postos governamentais. Além disso, os mandarins confucionistas consideravam as viagens como um desvio
desnecessário de recursos que o império não podia pagar. Eles acreditavam que seria melhor direcionar a riqueza e
os talentos do império para a construção de exércitos e fortificações para impedir a entrada dos temidos mongóis e
outros nômades [643]. A lembrança do domínio estrangeiro era, afinal, bastante recente. O resultado foi que a China se
tornou gradativamente uma sociedade isolacionista. Em 1479, o governo até queimou seus registros das execuções
de Zheng He, porque as memórias deles poderiam ser sediciosas aos olhos dos confucionistas conservadores.
O governo imperial permitiu que o comércio com o mundo exterior continuasse, mas seguiu uma política
mercantilista. Regras estritas foram impostas para regulamentar o comércio, especialmente com relação aos locais
onde os comerciantes poderiam ir e morar. Comerciantes indo e voltando do Japão, por exemplo, só podiam trazer
mercadorias japonesas para o porto de Ningbo. Da mesma forma, o comércio com as Filipinas teve de ser realizado
através do porto de Fuzhou, e o comércio com a Indonésia teve de ser realizado através de Guangzhou (Cantão). A
partir deste momento, há relatos de piratas japoneses (wakô) invadindo a costa chinesa. Alguns dos invasores eram
de fato japoneses, mas parece que a maioria eram de inconformados mercadores chineses que haviam se voltado
para a vida criminal porque não podiam mais negociar legalmente. O mais notável é o fato de que a China não
tentou expulsar esses piratas com sua marinha de primeira classe. Em vez disso, a resposta foi estender o Grande
Canal do Rio Amarelo até Pequim para que os navios chineses não precisassem sair para a costa e o mar. Enquanto
isso, os agressivos europeus começaram a explorar as possibilidades dos mares do leste e sudeste asiático a partir do
século 16.
Pelo seu tamanho e extensão, o império chinês não tinha rival no mundo no século 15. Com mais de cem milhões
de súditos, uma burocracia de tradições com firmes raízes confucionistas, uma classe de letrados aprovados nos
rigorosos exames imperiais e uma história que remonta a quatro mil anos, isso era compreensível. Diante disso, era
natural que o imperador Ming, Filho do Céu, de um império que se considerava como o Império do Meio – algo que
até os dias atuais vemos no nome oficial da China, zhonghuo( 中國 , “País do Meio”) – reconhecessem todos os
outros estados como membros tributários ou rebeldes de um domínio mundial concedido a ele pelos céus. Essa
atitude não era despropositada no que dizia respeito aos asiáticos orientais. A Coreia e o Vietnã estiveram sob
domínio chinês no passado e os reis de ambos ainda rendiam tributos a fim de serem reconhecidos como
governantes legítimos pelo imperador chinês assim como por seu próprio povo. De fato, entre os vizinhos da China
apenas o Japão achava que tinha uma identidade nacional própria. Os demais aceitavam a China como o centro
político do mundo e a única fonte legítima de autoridade. Essa atitude, no entanto, impediu a China de acompanhar
as mudanças que estavam a acontecer na Europa a partir do século 15 em diante.
No entanto, o primeiro e mais imediato impedimento que os imperadores Ming sofreram veio de um inimigo
mais antigo e próximo - os mongóis. Em 1449, os mongóis lançaram um ataque de três frentes que rompeu a Grande
Muralha e ameaçou Datong, a capital da província de Shanxi. Zhengtong (ou Yingzong) (r. 1435 – 1449; 1457 -
1464), o sexto imperador Ming, conduziu pessoalmente o exército imperial de Beijing (Pequim) para acabar com
essa ameaça. Antes de partir, porém, o imperador prudentemente instalou seu irmão Zhu Qiyu como o imperador
Jingtai (r. 1449 - 1457), para permanecer no trono caso ele não voltasse. Toda essa longa campanha foi ideia de um
eunuco chamado Wang Zhen, cujas ideias estratégicas provaram ser desastrosas para o exército chinês. Ao ponto
que o seu exército foi cercado e massacrado por forças avançadas dos mongóis em 1º de setembro de 1449 na
Batalha de Tumu (mapa). Entre os poucos sobreviventes estava o imperador Zhengtong que foi capturado. De início,
os mongóis tentaram extorquir o resgate do imperador. Então eles o libertaram quando perceberam que o governo
chinês não iria pagar o vultoso resgate. Ainda assim, quando Zhengtong retornou a Pequim, seu irmão não ficou
feliz em vê-lo e colocou-o em prisão domiciliar no palácio ao sul da Cidade Proibida. Isso permitiu que Jingtai
governasse como o imperador oficial até 1457, quando Zhengtong o depôs num golpe palaciano e retomou seu
próprio reinado. Enquanto isso, os mongóis não estavam mais apresentando-se como ameaça nas fronteiras, mas o
choque daquela derrota em Tumu fez com que o governo recuasse das fronteiras defensáveis feitas sob mando de
Yongle, no nordeste, para uma linha muito mais curta e recuada, bem em frente à linha da Grande Muralha. Uma
consequência desse movimento foi que os jurchens na Manchúria agora puderam reconquistar sua independência.
Mapa – A desastrosa campanha chinesa contra os mongóis em Tumu em 1449 que resultou no recuo das fortificações chinesas no nordeste.

Foi durante a Dinastia Ming que a arquitetura chinesa atingiu seu auge. Toda a estrutura urbana a seguir os
preceitos do feng shui e a maioria dos edifícios da Cidade Proibida (1406 - 1420) em Pequim foram construídas
durante esse período (fig.). Nas artes, literatura e outras atividades culturais, no entanto, a criatividade foi ofuscada
em comparação. A inovação foi substituída por uma imitação nostálgica do que havia sido feito antes,
principalmente a idealizar o passado dos tempos de Song e Tang. Alguns historiadores acreditam que esse
conservadorismo veio do período do governo mongol, trauma permanente do qual a China não se recuperou.

Fig. – A Cidade Proibida de Pequim, construída seguindo os preceitos harmoniosos do feng shui, montanhas atrás e águas à frente, pintura da Dinastia
Ming.
Fig. – A perfeita proporção e ordem. Templo do Céu de Pequim construído em 1420 sob o imperador Yongle a servir de local para cerimônias
imperiais a garantir a ordem cósmica e boas colheitas.

A ficção curta se popularizou desde a Dinastia Tang e houve alguns notáveis romances históricos em vernáculo,
tais como “Margem da Água” de Shi Nai’an (c. 1296 - 1372) e “Jornada ao Oeste” de Wu Cheng’en (1500 - 1582),
que tiveram amplo público entre aqueles com educação rudimentar fora das elites letradas que valorizavam o chinês
clássico: mulheres ricas, comerciantes e vendedores. A literatura de viagens, como as obras de Xu Xiake (1587 –
1641), satisfez a sede por conhecimento técnicos daqueles curiosos a respeito da geografia e costumes das regiões
chinesas e regiões vizinhas. A vitalidade dessa onda literária se pautou na expansão das publicações. Em Pequim,
houve as primeiras referências à publicação de jornais a partir de 1582 e, após 1682, a impressão lenta em
xilogravuras passou a mudar para o tipo móvel.
No campo da poesia, Yuan Hongdao (1568 – 1610) expressou suas experiências de viagens como meio de
manifestar suas angústias e desejos da sua individualidade, assim como sua frustração com a política da corte
confucionistas. Algo que parece ter ecoado com a geração cada vez mais desiludida da época. Yuan assim como
seus dois irmãos, Yuan Zongdao (1560 – 1600) e Yuan Zhongdao (1570 - 1623) foram fundadores da Escola
Literária de Gong’an que foi influente na crítica ao establishment confucionista na China Ming.
Nas artes plásticas, na pintura, artistas como Ni Zan, Dong Qichang e os mestres Shen Zhou (fig.), Tang Yin,
Wen Zhengming e Qin Ying, basearam-se nas técnicas, estilos e complexidades da pintura dos tempos de Song e
Tang, mas com clientela cada vez mais próspera e demanda crescente. Na cerâmica e porcelana, o foco se deu nos
fornos imperiais de Jingdezhen (fig.), na província de Jiangxi, que produziu as mundialmente apreciadas porcelanas
azuis e brancas assim como outros estilos. A atender o gosto europeu, estabeleceram-se os fornos de Dehua e Fujian
no final do século 16. Ceramistas individuais se destacaram, como He Chaozong, por suas porcelanas brancas. No
comércio asiático, estima-se que 16% das exportações chinesas de cerâmica da era Ming foram enviadas para a
Europa, enquanto o restante foi destinado para o Japão e sudeste asiático [644]. Trabalhos em laca e desenhos
esmaltados em porcelanas apresentaram novos padrões e complexidades semelhantes às pinturas chinesas. Esses
padrões depois iriam encontrar-se nas casas de ricos proprietários ao lado de móveis de pau-rosa, delicadas treliças,
bordados em jade, marfim e cloisonnés. Houve, portanto, juntamente com um clima de decadência, refinamento dos
gostos, apelo estético e certa individualidade rebelde expressada nas artes chinesas dos anos Ming.
Fig. – A refinada arte Ming I. Pintura de Shen Zhou, Sublime Monte Lu, de 1467.

Fig. – A refinada arte Ming II. Porcelana de c. 1335, azul e branco, dos fornos imperiais de Jingdezhen, a atender o gosto de um rico cliente
muçulmano.

No campo religioso, o confucionismo, budismo e taoísmo continuaram dominantes. O lamaísmo tibetano


endossado pelos Yuans passou a ser marginalizado e os primeiros imperadores Ming favoreceram em especial o
taoísmo, concedendo aos seus praticantes importantes cargos no estado. Hongwu buscou conter o cosmopolitismo
da era Yuan, enxergando nisso ameaça à unidade e ordem imperial, e um de seus filhos, o príncipe Zhu Quan (1378
- 1448), escreveu textos atacando os cultos “estrangeiros” que foram considerados nocivos ao império chinês. O Islã
tinha se estabelecido na China desde os tempos de Tang e obteve apoio oficial durante a Dinastia Yuan. Embora os
Mings tenham tido cautela com essa religião, figuras militares se destacaram no período como o general Chang
Yuqun, Ding Dexing, Mu Ying além do famoso almirante Zheng He.
Os primeiros ocidentais que começaram a chegar sistematicamente nas terras chinesas foram os portugueses
que ancoraram no porto de Cantão em 1513. Em 1535, os lusitanos fecharam acordo com autoridades de Ming e
estabeleceram-se na pequena península de Macau ao custo de 500 taels anuais [645], somente na intenção de servir de
base comercial a se separada por uma barreira do restante de Cantão pelas Portas do Cerco. Meio século depois, a
conquista espanhola das Filipinas fez da Espanha cliente próximo dos produtos chineses que, em troca, vendia prata
das suas colônias americanas. Depois vieram os holandeses que foram derrotados na sua intenção de expulsar os
portugueses de Macau em 1622 e se estabeleceram numa base local de operações na ilha de Formosa (Taiwan). Os
chineses não se importaram muito com esses recém-chegados. Ao encontrar esses curiosos estrangeiros de aparência
estranha com olhos redondos, narizes grandes e cabelos coloridos, os chineses se perguntaram se eram homens ou
selvagens demoníacos. As maneiras rudes dos europeus denunciaram sua pouca civilidade [646] e não ajudaram nas
boas relações, e foi causa de incidentes entre chineses e ocidentais. Por fim, o governo imperial percebeu que os
europeus poderiam ser úteis como comerciantes e transportadores de longa distância, a intermediar relações com o
restante do “mundo bárbaro” do além-mar, além das porteiras e fortificações do Império do Meio (fig.).

Fig. – A China como centro do mundo. Mapa mundial chinês de c. 1800, cópia de original de data desconhecida, posicionando a China como o meio
do mundo, rodeado por muralhas, ilhas e marcos periféricos (em vermelho) e tributários assinalados por selos imperiais.

Havia um grupo de ocidentais que não se enquadrava nas restrições (e reprovações) impostas aos mercadores: os
missionários da Companhia de Jesus, ou jesuítas. Um dos primeiros jesuítas, padre Matteo Ricci (1552 - 1610)
(fig.), conquistou o respeito dos chineses se vestindo como um estudioso chinês e estudando os ensinamentos de
Buda e Confúcio até conhecê-los como os letrados chineses. Foi ele que buscou tornar o cristianismo compatível
com a cultura chinesa ao permitir o culto dos ancestrais e a observância dos feriados tradicionais para que os
convertidos pudessem continuar a fazer parte da sociedade que os rodeava. Por fim, o padre Ricci chegou a pregar
ao próprio imperador. Os jesuítas estavam entre as pessoas mais instruídas da Europa, então os últimos imperadores
de Manchu e Ming os empregaram como matemáticos, astrônomos, diplomatas - como os que serviram aos
interesses russos que resultou no Tratado de Nerchinsk em 1689 - e até mesmo fabricantes de armas,
supervisionando a fundição de canhões. Evidentemente, a corte e elite chinesa não se incomodaram com essa
exótica religião que esses clérigos bárbaros ensinavam em suas horas de folga.

Fig. – A erudição ocidental e oriental em pessoa. Matteo Ricci retratado em trajes de seda dos letrados mandarins (rufu, 儒服 ) no início do século 17.

Essa delicada relação entre os jesuítas ocidentais e a corte da China Ming terminou quando o papa descobriu
sobre os jesuítas comprometendo o cristianismo aos ensinamentos heréticos do Oriente. O papa Clemente XI (p.
1700 - 1721) eventualmente declarou, em termos inequívocos, que fazer sacrifícios aos ancestrais ou a Confúcio é
uma forma de idolatria [647]. Assim, os jesuítas puderam permanecer na corte imperial até 1735, mas fizeram poucos
convertidos durante os últimos quarenta anos.
Mas antes disso, a Dinastia Ming já havia demonstrado decadência e fragilidade política. Desde fins do século
16, os Mings enfrentaram uma série de eventos que resultaram na derrubada dinástica chinesa: invasões das
fronteiras, rebeliões e corrupções no meio doméstico. Desses três para os Mings, o último foi o pior. Como na era da
Dinastia Han, os eunucos da corte cresceram e seu poder de influência aumentou consideravelmente ao ponto que se
tornaram os que realmente administraram o país. Gradualmente, os imperadores abdicaram de suas
responsabilidades políticas. Depois de 1582, eles não conduziriam negócios nem compareceriam a reuniões com
ministros do governo. Quando os eunucos vinham com algo que exigia uma decisão de alto nível, a resposta
imperial usual seria de não incomodar o imperador. Logo os eunucos tinham decisões cruciais nas mãos, comando
de exércitos particulares, polícia secreta e outros agentes, com os quais aterrorizavam a administração e as pessoas
comuns que pudessem ser rivais aos seus interesses.
Em determinado momento, o tesouro imperial foi esgotado por surtos de pragas, fome, desemprego generalizado
e uma dispendiosa guerra contra os japoneses de Toyotomi Hideyoshi na Coreia (1592 – 1598), em que o imperador
Wanli (r. 1572 - 1620) enviou mais de 220 mil tropas [648]. Nesse cenário, os eunucos não viram limites às suas
ambições corruptas, oferecendo o comando dos exércitos ao maior lance – diante do desalento do imperador após o
evento coreano. Essa foi uma ação particularmente perigosa, porque em 1616 um líder militar chamado Nurhachi
(1559 - 1626) uniu todos os jurchens da Manchúria num reino unificado. Então ele decidiu ir além e lançou ataques
contra os territórios chinês e coreano. Pela incompetência e despreparo de líderes militares escolhidos pelos eunucos
chineses, Nurhachi passou a acumular vitórias militares em campo.
Eventualmente, em 1625, Nurhachi rompeu a primeira linha de defesa da China na fronteira nordeste, a
“Paliçada Amarela” [649]. Ele tomou a cidade de Shenyang, renomeou-a como Mukden, e fez dela sua nova capital.
Ecoando os seus ancestrais do século 12, Nurhaci declarou o início de uma nova dinastia na região, como um
segundo império Jin (“dourado”). Um ano depois, em 1626, ele morreu de ferimentos sofridos na batalha de
Ningyuan por tiros de canhões fabricados por portugueses.
Os jurchens tinham perdido a batalha porque seu lado não tinha armas de fogo, então seu filho e sucessor,
Abahai (r. 1626 - 1636), conseguiu alguns arcabuzes russos apresentados como tributo de uma tribo mongol. Ele
também percebeu que a China era vasta demais para conquistar, a menos que ele tivesse ajuda substancial de
rebeldes chineses. Foi assim que Abahai decidiu em 1635 mudar o nome de seu povo e reino que poderia provocar
menos indignação entre os chineses. De jurchens, mudou-se para manchus, e do reino de Jin, para Qing (“puro”).
Esse último ato fez o manchus parecerem aos chineses uma alternativa limpa à decadência dos Mings.
O último imperador Ming, Tianqi (r. 1620 – 1627), foi um mero fantoche controlado que tinha se retirado
inteiramente da política para perseguir seu hobby predileto de carpintaria. Em sua ausência, o estado era
administrado pela sua ex-babá, a senhora Ke e um eunuco chamado Wei Zhongxian (1568 - 1627). A grande
influência de Wei e sua predileção por tortura e assassinato silenciaram a maioria dos críticos e rivais, com exceção
de um oficial da corte que apresentou ao indiferente imperador uma lista dos "vinte e quatro grandes crimes" de
Wei. Como resposta, dois anos depois do pleito, o oficial foi torturado por membros leais ao eunuco Wei e morreu
na prisão.
Com a morte de Tianqi em 1627, seu irmão de dezessete anos, Chongzhen, subiu ao trono. Este jovem tentou
restaurar a integridade do regime Ming. O eunuco Wei tinha cometido suicídio a fugir dessas novas reformas. A
senhora Ke sofreu a pena capital dos “mil cortes” (lingchi, 凌遲 ), em que a vítima sofre lenta morte por muitos
dias de cortes e desmembramentos gradativos. Cada ferida era depois cauterizada com ferro quente para se evitar a
morte rápida por perda de sangue. Infelizmente, tudo isso foi feito tarde demais para salvar a Dinastia Ming. Pois
duas grandes rebeliões eclodiram em Shaanxi e Sichuan. Os rebeldes de Shaanxi capturaram Pequim em 1644, e o
imperador Chongzhen se enforcou para evitar cair nas mãos dos rebeldes. Seguiu-se uma orgia de saques e
assassinatos pela capital e reino chinês. Chocado com o que estava acontecendo na capital, o comandante geral das
forças na Grande Muralha parou de lutar contra os manchus e os convidou para ajudá-lo a restaurar a ordem no país.
Admirados com essa inusitada oferta de adentrar no império chinês contra o qual lutaram por uma geração, os
manchus prontamente concordaram. Assim, os manchus eliminaram os rebeldes de Pequim mas, depois de
terminarem, recusaram-se a sair da capital e voltar para casa. Em vez disso, eles se proclamaram herdeiros legítimos
dos Mings. Abahai havia morrido no ano anterior, em 1643, então agora seu filho de cinco anos, Fulin, tornou-se o
primeiro imperador chinês da nova Dinastia Qing, adotando o nome imperial de Shunzhi (r. 1644 - 1661),
"obediência e boa ordem estabelecidas".
Dinastia Qing (1644 – 1911)
O primeiro desafio da nova Dinastia Qing na China a partir de 1644 era consolidar o controle sobre a vastidão
que caíra sob seu controle quase que inevitavelmente. Inicialmente, os manchus da Dinastia Qing tiveram que lidar
com o restante de rebeldes chineses em Sichuan que afirmavam que eles, e não os manchus, que eram os legítimos
herdeiros da Dinastia Ming anterior. Esses rebeldes perderam terreno gradativamente com os conflitos e foram
levados de volta para a região de Sichuan onde tinha se proclamado como sede da Dinastia Ming do Sul. Por pouco
tempo. Lá, o último pretendente sério ao trono imperial chinês, o príncipe de Gui ou imperador Yongli (r. 1646 -
1662), foi perseguido até as regiões meridionais em Yunnan e fugiu para a Birmânia (Mianmar) 1659 de onde foi
extraditado para a China e executado em 1662.
Desafio mais sério aos manchus de Qing adveio da costa chinesa. De um nobre rebelde meio japonês meio
chinês [650] chamado Zheng Chenggong (1624 – 1662), mais conhecido no Ocidente pelo nome de Coxinga. Este
tinha veementemente recusado reconhecer a autoridade manchu mesmo quando lhe foi ofertado generosos termos de
paz, ao que ele respondeu com um exército de 100 mil homens revoltados. Sua frota dominou por anos toda a costa
central e sul chinesa e suas primeiras vitórias fizeram com que o imperador manchu Shunzhi descarregasse sua
frustração ao despedaçar um trono imperial. Mas, como em muitos momentos da história, Coxinga foi derrotado
pela fraqueza humana. Ao se aproximar em 1659 da cidade imperial de Nanjing (Nanquim), os seus soldados,
confiantes na tomada da cidade, resolveram comemorar o aniversário de seu líder a noite toda. As tropas foram tão
descuidadas com o vinho e sono que se surpreenderam com um contra-ataque surpresa dos manchus, ao que fugiram
para o mar em desordem.
Apesar desse revés desmoralizante, Coxinga ainda se manteve nas ilhas de Xiamen e Jinmen. Os manchus
tentaram submetê-lo evacuando uma longa faixa de terra ao longo da costa chinesa, mas isso apenas causou
sofrimento a milhares de chineses desalojados. Em 1661, Coxinga resolveu invadir a ilha de Taiwan, derrotando os
postos holandeses e transformando essa grande ilha em sua base de operações. Um ano depois, Coxinga veio a
morrer e o controle da ilha passou para seu filho [651].
A conquista manchu da China não acarretou em calamidade como aconteceu em invasões anteriores. Antes de
passarem pela Grande Muralha, os manchus já tinham sido influenciados e incorporados para si o governo e valores
modelados segundo o sistema Ming. Depois que eles assumiram o trono em Pequim, a administração chinesa ficou
intocada exceto pelas posições mais altas, metade das quais foram reservadas para os manchus. De fato, logo os
manchus se viram no risco de assimilação total pelos seus súditos chineses a refletir a superioridade numérico do
reino. Para tentar conter isso o quanto possível, foram aprovadas leis que separaram os dois grupos étnicos. Ambos
os idiomas, manchu e chinês, foram aprovados como meios oficiais pelo governo. Manchus foram barrados de
trabalhar no comércio, trabalho comum e proibidos de se casar com chineses. Os cidadãos chineses e manchus eram
obrigados a usar diferentes estilos de vestimentas. O longo rabo de cavalo usado pelos homens chineses apareceu
pela primeira vez como um símbolo de submissão e depois foi imposto a todos a marcar a sua condição étnica e
social. Houve depois notável resistência de chineses pois a eles foi imposta a condição de se raspar a parte frontal da
cabeça – ao que muitos resistiram com base nos ensinamentos de Confúcio que dizia que o que herdamos dos
ancestrais deveria ser prezado como lealdade filial [652]. A maior parte da Manchúria foi reservada como área de caça
para os imperadores e, assim, fechada aos chineses.
O imperador Shunzhi morreu de varíola em 1661, aos vinte e dois anos de idade. Seu terceiro filho, Kangxi, de
sete anos, recebeu a coroa porque havia sobrevivido a um ataque anterior de varíola e, portanto, estava imune à
doença. Ele também era o único dos filhos do falecido imperador que era à altura dos desafios de seu trabalho
imperial, pois revelou-se talentoso líder. Kangxi (r. 1661 – 1722) governou por sessenta e um anos e foi o maior
imperador que a China tinha visto desde os dias de Taizong, mais de mil anos antes.
Como o novo imperador era apenas uma criança, um nobre manchu chamado Oboi tornou-se regente do império.
Sob ele, a política de justiça relativamente branda de Shunzhi em relação à maioria chinesa foi modificada. As
autoridades chinesas agora também foram proibidas de criticar o governo. Suspeitos de alimentar e propagar
sentimentos anti-manchu foram presos e torturados. Por causa das duras regras de Oboi, Kangxi decidiu assumir o
poder em 1667 embora tivesse apenas treze anos. Depois de tomar o trono ele ainda não conseguiu controlar o ex-
regente, então Kangxi mandou executar sua morte dois anos depois. Como isso foi feito ainda é incerto, mas de
acordo com a tradição Oboi foi capturado e preso por um grupo de meninos brincando de esconde-esconde no pátio
do palácio imperial em Pequim. Esses jovens eram treinados nas artes marciais e agentes leais às ordens do
imperador [653].
Kangxi alimentou uma insaciável curiosidade, energia e intelecto ao longo de sua vida. Levantava-se bem antes
do amanhecer para estudar os clássicos confucionistas (fig.). As audiências públicas imperiais começavam às 5
horas da manhã, embora os funcionários que viviam longe do palácio pudessem comparecer um pouco mais tarde.
Ele discutia questões do governo durante essas horas, prestando atenção ao menor problema ou detalhe. Perto do
final da manhã, eram recebidos funcionários domésticos, visitantes importantes das províncias e, finalmente,
diplomatas estrangeiros. O resto do dia era dedicado a assuntos familiares e a seus próprios passatempos -
geralmente escrevendo poemas ou caligrafia. Como ele tinha tutores jesuítas, Kangxi também era interessado no
conhecimento ocidental: ciência, matemática, cartografia, medicina, música - e relógios mecânicos, algo ele sempre
achou fascinante. Dizia-se que Kangxi raramente se deitava antes da meia-noite.
Fig. – O ideal confuciano em pessoa. Kangxi a estudar devotamente os clássicos.

Kangxi passava muito tempo longe da capital. Parte disso foi pelas suas férias de retiro que ele dedicava a
praticar suas habilidades em tiro com arco e equitação. Para o treinamento militar, ele trouxe seus melhores soldados
para a Manchúria e ali eles participavam de enormes expedições de caça que se assemelhavam a campanhas
militares. Como os mongóis haviam feito em tempos anteriores, eles caçavam espalhando-se para formar um círculo
de muitos quilômetros de largura para então se aproximarem a capturar qualquer animal que tivesse o azar de ficar
cercado. Kangxi levou até 100 mil homens de cavalaria e 60 mil de infantaria em uma dessas expedições [654].Outras
viagens do imperador foram passeios pelo reino. Com efeito, Kangxi reviveu a prática arcaica de visitar
pessoalmente o máximo de seus domínios, inspecionando obras públicas, perdoando criminosos, ouvindo queixas,
ajudando aqueles que tinha caído em tempos difíceis e às vezes lendo os exames de candidatos ao funcionalismo
público imperial. Ocasionalmente ele deixava o seu séquito e ia sozinho, vestindo-se como um plebeu para disfarçar
sua identidade tal como o califa abássida Harun al-Rashid o fazia nas ruas de Bagdá de acordo com as “Mil e Uma
Noites”.
Por ser uma pessoa ativa, Kangxi desprezava os funcionários que não estavam dispostos a sujar as mãos para
trabalhar, escandalizando aqueles confucionistas mais ortodoxos que enxergava os ofícios manuais como indigno
dos letrados e elite imperial. Quando um incêndio eclodiu num de Pequim, ele ficou furioso ao observar os
funcionários manchus em pé com as mãos na manga.
Durante a primeira metade de seu longo reinado, Kangxi teve que lutar para manter coeso seu império. O
primeiro desafio militar veio de três generais que haviam esmagado a rebelião de Sichuan. Um deles era Wu Sangui,
o mesmo general que tinha permitido os manchus atravessarem a Grande Muralha. Mas agora esses líderes militares
se recusaram a renunciar a sua autoridade a Pequim dos manchus e governaram seus territórios que tinham
capturado como três estados independentes. Quando Kangxi se moveu contra um deles, o senhor da guerra da
província de Guangdong, em 1674, todos os três líderes, chamados de "Três Feudatórios", levantaram-se em revolta.
O filho de Coxinga enviou um exército de Taiwan para ajudar esses rebeldes. A rebelião quase provocou o fim
prematuro da Dinastia Qing, mas com a ajuda de leais generais chineses Kangxi prevaleceu em 1681. Em 1683, ele
invadiu Taiwan, derrotou o neto de Coxinga e tornou a ilha parte da China pela primeira vez.
Enquanto isso, ao norte, um tipo diferente de problema estava se formando. Por um século, os russos, liderados
por aventureiros cossacos, vinham explorando e colonizando a Sibéria. No rio Amur, eles construíram uma fortaleza
chamada Albazin em 1655. Isso era muito perto da terra dos manchus para ser ignorado e as constantes atrocidades
dos cossacos levaram os habitantes locais a pedir ajuda aos manchus. Kangxi respondeu estabelecendo estradas,
bases, frotas fluviais, celeiros, um serviço postal e guarnições militares, certificando-se de que ele tivesse mais
controle sobre a área disputada do que os russos. Então ele atacou os postos avançados dos cossacos, destruindo-os
um por um até restar Albazin. Sentindo-se seguro para negociar, Kangxi então chegou ao local de fronteira com uma
frota de noventa navios para reforçar a sua posição de negociação. O resultado foi o Tratado de Nerchinsk em 1689,
o primeiro acordo formal da China com um governo ocidental. Os chineses conseguiram o que queriam - todo o
território da bacia do rio Amur (mapa) - e em troca permitiram aos russos irem a negociar em Pequim, uma
concessão que nenhum outro governo europeu desfrutava.
Mapa – A bacia do rio Amur (em amarelo), negociado pelos manchus com os russos e assinado no Tratado de Nerchinsk de 1689.

Alguns anos depois de Nerchinsk, uma invasão dos mongóis ocorreu, na década de 1690, quando as tribos de
khalkha se uniram sob um líder chamado Galdan e avançaram para a cidade chinesa de Jehol, a apenas 320
quilômetros ao norte de Pequim. Kangxi liderou pessoalmente o contra-ataque e considerou a vitória uma das
maiores de sua carreira. De certo modo ele estava certo. Depois que Galdan cometeu suicídio em 1697, a China
ficou segura em suas fronteiras por um século e meio. E as extensões dos mongóis além da Grande Muralha, a
Mongólia Exterior, tornou-se parte do império chinês.
Enquanto a China estava crescendo a dimensões sem precedentes, o Império do Meio também desfrutava de um
período de prosperidade e ordem. Indústrias como a dos têxteis, cerâmica, sal e mineração cresceram a superar os
níveis de produção da Era Ming. A introdução de novas culturas, como milho, batata doce e amendoim trouxe
rendimentos em terras que não se podia cultivar e colher o arroz. O cultivo de culturas lucrativas como tabaco,
algodão e chá, também foi generalizado. Especialmente o chá, a atender a insaciável demanda dos britânicos e
europeus desde meados do século 17 em diante.
No entanto, Kangxi não tinha a mesma sorte de controle familiar como tinha sobre seu império. De seus vinte
filhos que sobreviveram até a idade adulta, o imperador deu mais atenção ao segundo, Yinreng (1674 - 1725),
esperando que ele se tornasse seu herdeiro. O jovem, no entanto, retribuiu a devoção de seu pai com extravagância e
desobediência, além de ter sido um homossexual, algo repulsivo aos valores conservadores chineses. Kangxi não
sabia o que fazer com ele. Primeiro ele dispensou Yinreng como seu herdeiro. Depois com o tempo, passou a
alimentar paranoia crescente e mandou executar alguns dos associados de Yinreng e até prendeu três de seus outros
filhos. A turbulência familiar deixou o imperador tão amargurado que ele se recusou a nomear um sucessor ao final
de sua vida. Quando ele morreu em 1722, o trono imperial passou para seu quarto filho, Yongzheng (r. 1722 - 1735),
que estava ao lado de sua cama durante seus últimos dias.
O reinado de Yongzheng foi curto e tranquilo. Um evento digno de nota foi o Tratado de Kyakhta de 1727 que
abriu o comércio com a Rússia. Uma cidade chamada Kyakhta foi fundada na fronteira da Mongólia para esse fim,
ao sul do Lago Baikal. Ali, caçadores e caçadores russos vinham trocar peles por chá, seda e porcelana chinesa.
Assim como no Tratado de Nerchinsk, os manchus conseguiram a melhor parte do acordo. Embora a fronteira sino-
russa logo tenha crescido para mais de três mil quilômetros, os russos só poderiam negociar ou entrar na China por
esse posto avançado.
Yongzheng foi por sua vez sucedido por Qianlong (r. 1733 - 1796) (fig.), que não apenas governou por tanto
tempo quanto Kangxi, mas foi o último grande imperador da história chinesa. Uma tribo da nação mongol
independente lhe causou problemas em meados do século, e Qianlong partiu e os destruiu após uma série de batalhas
entre 1755 e 1758. Em seguida, os exércitos manchus e chineses marcharam para oeste e quase exterminaram os
dzungars (ou zungaris), nação que atualmente vive no norte de Xinjiang. Em 1760, a autoridade Qing havia sido se
estabelecido em toda a bacia de Tarim. A fronteira ocidental da China foi empurrada para o Lago Balkhash, na Ásia
Central. Os restantes dos canatos da Ásia Central - Kokand, Cazaquistão, Bucara, Badaquistão e Afeganistão -
tornaram-se estados tributários irregulares. O mesmo aconteceu com o montanhoso reino de Nepal, que foi
humilhado por uma expedição Qing após os gurkhas se intrometerem nos assuntos tibetanos que alertaram as
autoridades em Pequim (mapa).
Fig. – O imperador Qianlong em sua juventude, último dos grandes imperadores da China, pintado pelas mãos do jesuíta Giuseppe Castiglione.

Mapa – As conquistas chinesas sobre as regiões periféricas do império na Dinastia Qing.

No aspecto interno, Qianlong superou todos os outros imperadores Qing em seu patrocínio à cultura. Cerca de 15
mil calígrafos foram empregados fazendo cópias manuscritas de 10 mil livros para as seis maiores bibliotecas do
país. O mais famoso deles foi “Obras Completas das Quatro Tesouros” ou “Biblioteca Completa das Quatro Seções”
(Siku Quanshu, 四庫全書 ) (fig.) [655], onde 300 estudiosos editaram e resumiram cerca de 3.500 obras sobre os
clássicos chineses, num total de 36 mil volumes. As ciências ocidentais, astronomia e matemática, também
receberam tratamento favorável. Centenas de poetas e pintores foram subsidiados para exaltar as realizações
chinesas. Nenhum livro ou arte que criticasse os manchus era permitido, contudo, e com boas razões. Como nos dias
da Dinastia Yuan, os eruditos chineses estavam se tornando nostálgicos pelos tempos em que os chineses
governavam. As sociedades secretas, especialmente o movimento do Lótus Branco, fundado na Dinastia Ming,
também estavam ensaiando retornar em popularidade. Qianlong conseguiu conter essa onda de divergência durante
todo o seu reinado, mas os imperadores do século dezenove viram seus problemas crescer exponencialmente diante
dessas pressões.
Fig. – Página da enorme coleção do Siku Quanshu, maior coleção de textos chineses antes do século 20 que teve importante lugar nas histórias dos
textos acadêmicos e culturais na China.

Os manchus herdaram o desdém confucionista dos comerciantes e da atividade comercial [656]. A maior parte do
comércio exterior permitido era feita sob o sistema de tributos que foi meio de expressar a supremacia cultural e
política da China sobre todos os outros países. Os embaixadores vinham à corte imperial em Pequim e mostravam
sua submissão curvando-se (com as mãos e joelhos e tocando a testa no chão) três vezes, ato chamado de
kowtow( 叩頭 ). Então os embaixadores entregavam as mercadorias de suas terras, como presentes. O imperador
reagia permitindo que voltassem para casa com uma quantidade considerável de produtos chineses. Durante o
governo de Qianlong, Birmânia (Mianmar), Sião (Tailândia), Laos, Vietnã, Ásia Central, Nepal, Coreia e as ilhas
Ryukyu (sul do Japão), todos enviaram tributos. A Rússia comercializou de forma semelhante, colocando seus
embaixadores no comando de suas missões comerciais. E enquanto outros europeus estavam ansiosos para negociar,
os chineses continuavam a tratá-los como inferiores e abjetos. Comerciantes ingleses, espanhóis, portugueses,
franceses, holandeses e americanos só eram permitidos fora de Macau durante os meses em que havia chá para
comprar – de abril a setembro - e, mesmo assim, só podiam ir para a vizinha Cantão. Além disso, foram proibidos de
trazer suas esposas com eles. Não lhes foi permitido aprender cantonês, o dialeto chinês local e eles não podiam
viajar muito pelos domínios do reino e sempre precisavam estar acompanhados por um intérprete chinês que era
considerado responsável por seu bom comportamento.
Naturalmente, os europeus se ressentiram de todas essas restrições, mas pouco podiam fazer a respeito desde que
os chineses realmente não quisessem aprofundar os laços comerciais. A principal razão pela qual os chineses
negociavam era porque os europeus pagavam pelo que compravam com prata - geralmente moedas espanholas que
vinham do México via Filipinas. Como a economia chinesa ainda era pobre em metais preciosos, essenciais para a
monetarização de sua economia, essas transferências de prata proporcionaram considerável alívio.
Em fins do século 18, o governo britânico achou que poderia afrouxar as restrições impostas a eles se a Grã-
Bretanha e a China tivessem relações diplomáticas formais de modo que em 1793 eles enviaram uma missão
especial, liderada por Lord George MacCartney, para apresentar uma proposta formal ao estabelecimento de uma
embaixada permanente na China. Como portadores de tributos ao Império do Meio, Lord MacCartney trouxe
numerosos presentes para ajudar sua causa, os produtos mais modernos da tecnologia ocidental e da indústria
britânica da época (fig.). Havia armas de fogo modernas, relógios de carrilhão e porcelanas Derby, candelabros de
cristal, telescópios e um máquina mecânica do sistema solar. Havia até um balão de ar quente completo com piloto.
Quando MacCartney apresentou-se perante o imperador Qianlong ele foi precedido por um funcionário chinês
segurando uma faixa que dizia: "Portador de Tributo dos Bárbaros Vermelhos". O imperador recebeu a missão em
um ambiente informal, no Jardim das Dez Mil Árvores em Jehol, para limitar qualquer violação do protocolo que a
ignorância ocidental pudesse causar.
Fig. – Sinais ominosos ao império. A embaixada de Lord MacCartney enviada pelo governo britânico diante de representantes da corte chinesa em
1793.

Mas Qianlong, agora um astuto octogenário, não se impressionou com o que viu. Ele não estava prestes a assinar
um acordo por conta de algumas lembranças extravagantes estrangeiras. De fato, ele nem sabia onde era a Grã-
Bretanha, nem se importava muito com isso. Ele tratou os visitantes com toda cortesia, mas nunca discutiu com eles
o motivo pelo qual eles vieram. Depois de várias semanas de frustração, MacCartney e seu séquito partiram com
apenas uma carta de Qianlong para o rei Jorge III da Inglaterra para demonstrar seus esforços. E mesmo nessa carta
não houve nada de substantivo, pois Qianlong não havia concedido e negociado nada. "Nossos caminhos não têm
nenhuma semelhança com o seu", como havia sido escrito na carta para Londres. "Como seu embaixador pode ver
por si mesmo, nós possuímos todas as coisas. Eu não atribuo nenhum valor a objetos estranhos ou engenhosos, e não
tenho nenhum uso para as manufaturas de seu país"[657].
Enquanto MacCartney esteve na China, foi notado que ele se recusara a se prostrar diante do imperador, a
realizar o kowtow. A maioria dos ocidentais tinha orgulho demais para realizar um ato tão humilhante. Mas os
arquivistas da corte, temerosos de que esse precedente pudesse ser estabelecido, registraram que ele havia se
escondido. Assim, ficou registrado nos arquivos imperiais em Pequim que a Grã-Bretanha supostamente reconheceu
a supremacia da China, ao menos pelo protocolo do ato. No próximo século, esse lapso custaria caro às relações
entre os dois países.
Nos dias do governo de Qianlong, a China ainda era enorme e próspera em comparação com todas as outras
nações. Não só tinha a maior população do mundo, mas um terço do produto interno bruto do mundo também vinha
de lá. No entanto, as transformações sociais e econômicas dos últimos quinhentos anos, do Renascimento à
Revolução Industrial, levaram algumas economias europeias a um nível de desenvolvimento que se ultrapassou a
China em muitas áreas. Os reinos europeus eram agora mais eficientes em mobilizar seus recursos mais limitados.
As rivalidades entre os estados de uma Europa fragmentada também contribuíram para uma maior agressividade e
senso de competição por parte dos europeus, algo inimaginável diante da paz e ordem imperial dos governantes da
China Qing. Os exércitos da China eram muito maiores que os de qualquer reino europeu, mas os soldados europeus
eram mais treinados nas armas de fogo e disciplinados em campo de batalha. Na área econômica, a agricultura
chinesa de arroz era mais produtiva e menos prejudicial ao meio ambiente do que a agricultura de terras áridas
europeias e os governantes chineses tinham muito mais trabalhadores para cultivar seus campos, construir seus
diques e pontes, trabalhar em minas e fabricar ferramentas, roupas e armas. Mas as máquinas inventadas no
Ocidente mais do que compensaram as deficiências de mão de obra da Europa [658]. A Europa estava
tecnologicamente atrás da China há dois milênios, mas enquanto os chineses não acompanharam essas mudanças, os
europeus os superaram eventualmente numa economia de produção de massa no início do século 19 em diante. E,
como Qianlong havia notado, seus caminhos eram muito diferentes.
Qianlong abdicou em 1796, três anos antes de sua morte. Apesar de todas as suas realizações como imperador,
ele ainda sentia que seu avô Kangxi tinha sido um líder mais capaz e não queria ofuscar Kangxi com um reinado
mais longo. Neste momento histórico, a situação da China parecia estar no seu auge (mapa). Todos os inimigos
foram derrotados - desde rebeldes ligados à causa dos Mings, anti-manchus, aos povos além da Grande Muralha e
muçulmanos no oeste – e a maioria dos países vizinhos pagava tributos, seja reconhecendo as vantagens de manter-
se filiado ao Império do Meio, seja por considerações políticas internas e ganhos comerciais. Como Qianlong havia
dito aos britânicos, a China não precisava de nada do que o mundo oferecia, talvez com exceção de prata e ouro.
Naquela época, havia uma moda sinófila na Europa, inspirados nas novidades da arte chinesa. Se um viajante chinês
visse um modelo de pagode num jardim inglês da época, poderia ter concluído que o Ocidente estava, naturalmente
como nos séculos anteriores com outros povos, adotando a cultura do Império do Meio.

Mapa – A China imperial em seu auge. As extensões dominadas da China sob a Dinastia Qing, em seu auge durante o governo do imperador Jiaqing
em 1820. Nunca a China dominou tanto quanto no final do reinado de Qianlong. Além de toda a China moderna (marcada pela linha pontilhada vermelha),
a Dinastia Qing governou as ilhas Ryukyu, Mongólia, as partes mais próximas da Ásia Central, um terço da Caxemira e pedaços da Sibéria: Altai, Tuva e
toda a bacia hidrográfica do rio Amur.

Mas por trás dos sucessos da era de Qianlong, havia nuvens escuras no horizonte. Em primeiro lugar, houve uma
explosão populacional na China, saltando de 100 milhões em 1650 para cerca de 420 milhões em 1850.
Inicialmente, isso era visto como um sinal de prosperidade, mas começou a afetar o padrão de vida chinês no início
do século 19. No ano em que o reinado de Qianlong terminou, a Sociedade Lótus Branco iniciou uma rebelião anti-
manchu em Hubei, Shaanxi e Sichuan. Bandidos, aventureiros e contrabandistas rapidamente se juntaram a eles. A
revolta foi reprimida em 1804, mas foi um golpe para o prestígio manchu. Pior, onerou toda a receita excedente da
administração de Qianlong e além. E finalmente, no momento em que as ameaças do interior asiático havia cessado,
surgiram novos "bárbaros" do mar: missionários, comerciantes, e frotas navais do Ocidente.
Embora a balança comercial estivesse fortemente a favor da China, os comerciantes ocidentais continuaram a
chegar a Cantão. Isso porque a demanda por seda, porcelana e chá chineses nunca declinaram no mercado
internacional. Desde que os escritos de Marco Polo foram publicados, os europeus não se cansaram de nada do que
vinha do Extremo Oriente. De fato, após a Inglaterra descobrir o chá no século 17, tornou-se necessidade política
para os ingleses continuar comprando a mercadoria, não importando o que fosse cobrado. Mas à medida que o poder
industrial, tecnológico e militar do Ocidente aumentava, os ocidentais ficaram menos dispostos a negociar nos
termos tradicionais da China. Em pouco tempo, os mesmos europeus que outrora admiravam a China iriam
desprezá-lo pelo seu tradicionalismo e conservadorismo.
O problema era que, além do ouro e da prata, o Ocidente não tinha nada que a China desejasse. Isso mudou quando
os chineses descobriram o ópio. O costume de fumar essa droga, praticada há muito tempo na Indonésia, foi
introduzido pela primeira vez por comerciantes holandeses no século 17. A demanda por ópio, que os chineses
chamavam de "lama estrangeira", foi insignificante por um tempo, mas cada vez mais chineses se tornaram viciados.
Por volta de 1729, 200 baús de ópio entravam na China todos os anos (tabela). Um baú pesava pouco mais de 70 kg
e valia tanto quanto 125 libras ou mil dólares de prata para o comerciante que o trazia. A maior parte do ópio vinha
da Índia, onde a Companhia Britânica das Índias Orientais reservava grandes plantações para o cultivo da papoula.
Fonte: SPENCE, Jonathan. The Search for Modern China. Apud FABRE, Guilhem. Criminal Prosperity: Drug Trafficking, Money Laundering and
Financial Crisis after the Cold War. Londres & Nova York: Routledge, 2003, p. 5. (tradução nossa).

Oficialmente, o governo chinês há muito se opunha ao comércio de ópio. Já em 1729, o imperador proibiu a
venda e o uso da droga. Mas havia muitos mandarins corruptos - termo que os ocidentais passaram a se referir aos
funcionários e oficiais chineses, muitas vezes os dois termos juntos - que podiam ser subornados para ignorar as
questões relacionadas ao ópio. Além disso, a Companhia Britânica das Índias Orientais e os pequenos empresários
tinham mais navios do que qualquer frota que os chineses pudessem colocar nas águas, de modo que os
comerciantes puderam contrabandear o ópio destemidos de serem pegos.
Diante disso, o tráfico começou a incrementar no início do século 19. Em 1773, estimados mil baús foram
importados. Em 1800, já eram 4570. Mais de sete mil em 1823; cinco anos depois, mais de 13 mil; e em 1835, 30
mil. A situação do comércio foi agora dramaticamente invertida. Milhões de dólares em prata agora fluíam da China
todos os anos. Estima-se que 12 milhões de chineses eram viciados, incluindo até mesmo membros do corpo da
guarda imperial. As covas de ópio proliferaram, variando de simples quartos a luxuosos recintos. Os antros da classe
alta ofereciam sofás estofados, criados corteses, mulheres, jogos de azar e qualquer outra coisa que se pudesse
encontrar em um clube particular da elite. No outro extremo da escala, havia lugares como aquele visto por um
observador americano, o Reverendo E. B. Squire, que se expressou chocado: "Nunca, talvez, houvesse um lugar
mais próximo do Inferno do que dentro dos recintos dessas vis choupanas" (tradução nossa) [659].
As coisas vieram à tona em meados da década de 1830. Naquela época, os interesses da Grã-Bretanha em Cantão
eram representados por um superintendente comercial chamado Lord William Napier. Ao contrário de seus
predecessores, Napier considerava a honra de sua nação mais importante do que os negócios. Para os chineses, ele
era exemplo perfeito de um "bárbaro" estrangeiro: alto, ruivo de temperamento explosivo e rude. Napier ignorou
todas as regras estabelecidas sobre estrangeiros em Cantão. Seu colega chinês, o vice-rei imperial, mostrou o que
achava de Napier, traduzindo seu nome em caracteres chineses que também podiam ser lidos como "laboriosamente
vil". Em 1835 ele decidiu que não queria mais ver Napier e emitiu um edital ordenando que ele deixasse a China.
Napier recusou. O vice-rei então anunciou que todo o comércio com os ingleses seria interrompido. Napier trouxe
dois navios de guerra de Macau para Cantão. A guerra era uma possibilidade real, já que a honra da Inglaterra e da
China estava em jogo. Mas a natureza forneceu uma solução perfeita para salvar as aparências. Napier desceu com
uma febre violenta e concordou em remover as suas fragatas em troca de uma passagem segura para Macau. Os
navios de guerra que restaram e o inglês "laboriosamente vil" foram levados em embarcações chinesas, enquanto os
chineses comemoravam com tambores, gongos e fogos de artifício. Para alívio de todos, Napier morreu em Macau
alguns dias depois.
Em 1838, o imperador Daoguang (r. 1820 – 1850) nomeou um novo comissário imperial, Lin Zexu (1785 -
1850). Ao contrário de outros mandarins, Lin era tão honesto que tinha o apelido de “Lin Ceús Limpos”. Como
governador geral de Hubei e Hunan, ele havia suprimido impiedosamente o tráfico de drogas dentro dessas duas
províncias e ele tinha toda a intenção de fazer o mesmo por toda a China. Lin deixou claro o quão sério era o vício
do ópio quando calculou que em 1839 os fumantes chineses de ópio consumiriam 100 milhões de taels da droga,
enquanto o gasto total do governo para esse ano seria de 40 milhões de taels. Em 1839, ele foi pessoalmente para
Cantão com duas exigências para os estrangeiros. Primeiro, eles deveriam entregar imediatamente toda a carga de
ópio que tinham. Em segundo, os “bárbaros” devem prometer nunca mais contrabandear ópio, e ele prometeu
decapitar qualquer um pego quebrando essa promessa. Os estrangeiros não o levaram a sério a princípio, até
perceberem que este mandarim não podia ser subornado.
Lin, depois de duas semanas de espera, então decidiu lacrar todo acesso ao quarteirão britânico exigindo a
entrega de todo o estoque ilícito, o que desagradou o superintendente britânico responsável pelo comércio local, o
capitão Charles Elliot. Impaciente com a demora do governo em Londres pela resposta ao impasse, tomou Elliot
iniciativa de entregar a mercadoria exigida, por volta de 20 mil baús, que foram prontamente queimadas (fig.).

Fig. – O funcionário confucionista exemplar e o desregramento dos europeus. Lin Zexu supervisionando a queima da carga apreendida de ópio dos
estrangeiros em Cantão em 1839.

Não satisfeito, o comissário Lin, em seus atributos, exigiu a promessa por escrito de que tal estoque e comércio
não voltariam a se repetir sob risco de serem julgados com pena capital por uma corte de justiça chinesa. Houve a
recusa dos britânicos diante de tal ultimato a serem submetido a uma justiça vista como “bárbara”. Pouco momentos
depois, tiros foram ouvidos advindos das discussões e uma frota armada foi mobilizada atendendo às demandas dos
comerciantes britânicos. A China e a Grã-Bretanha entraram em guerra.
No que ficou conhecida como a Primeira Guerra do Ópio de 1842, ficou claro o oportunismo britânico em
demonstrar a sua agressão via superioridade bélica naval, contrastando com a inexpressiva frota chinesa à época
(fig.). No decorrer dos eventos do conflito, uma esquadra britânica adentrou o rio Yangzi e bloqueou o Grande
Canal que possibilitava o transporte essencial de grãos demandados pela árida região norte chinesa em torno da
capital imperial. Após o bloqueio, a Dinastia Qing foi obrigada a assinar os termos do Tratado de Nanquim (1842)
em que foram abertos ao acesso comercial a cinco portos chineses, incluindo o da foz do rio Yangzi, Xangai, e a
concessão permanente da ilha de Hong Kong à Coroa Britânica, na foz do Rio das Pérolas, sob leasing de 99 anos, a
ilha e os seus territórios adjacentes a partir de 1898. A Dinastia Qing também foi obrigada a indenizar os custos de
guerra estimados à época em US$ 20 milhões.

Fig. – A dura realidade imperial ocidental sobre os chineses. O navio britânico Nemesis bombardeando juncos chineses na Primeira Guerra do Ópio.
Alguns anos depois, em outubro de 1856, outro pequeno incidente resultou em uma segunda guerra entre franco-
britânicos – após supostos desentendimentos a respeito de um missionário francês – e o Império do Meio. A fagulha
se deu por desentendimentos de um navio, o Arrow, de propriedade e bandeira britânica com tripulação chinesa a
bordo com licença expirada. Todos os tripulantes foram presos pela irregularidade e isso foi considerado um insulto
de maiores proporções pelas autoridades britânicas residentes em Hong Kong. Resultou disso a Segunda Guerra do
Ópio ou a Guerra de Arrow (1856-1860).
As exigências no Tratado de Tientsin de 1858-1860 dessa vez foram, além das exigências de abertura de outros
portos na costa chinesa, liberdade de culto e de ação missionária, a residência diplomática permanente de ocidentais
no coração político e cultural da China imperial, Pequim[660]. Além de mais uma humilhante derrota e fuga do
Imperador Xianfeng (1831-1861) para a Manchúria, onde chegou a falecer, o Palácio Imperial de Verão, a noroeste
de Pequim, um dos maiores patrimônios históricos e culturais da China, foi amplamente incendiado e
sistematicamente saqueado por tropas ocidentais. Algo que jamais os chineses esqueceriam.
O descontentamento social após as Guerras do Ópio foi se ampliando desde 1842. As rebeliões foram motivadas
por múltiplos fatores: humilhação frente aos “bárbaros” ocidentais, exclusão social, desemprego, aumento da
criminalidade e descontentamento de numerosos comerciantes da região de Cantão ao perceberem a ascensão
econômica e comercial da ilha de Hong Kong (britânica) e de Xangai mais ao norte. E foi justamente da região de
Cantão que se manifestou o mais amplo e sério descontentamento social liderado por alguns chineses recém-
convertidos ao cristianismo: a Rebelião dos Taipings (1850-1864). Os embates resultaram em significativas perdas
de tropas imperiais no sul além de perderem o controle de uma importante cidade histórica ao longo do delta do
Yangzi, a cidade de Nanquim (Nanjing), transformada em capital dos rebeldes em 1853.
As potências ocidentais com interesse na China – entre os principais, os britânicos, franceses, russos, alemães e
norte-americanos – inicialmente se posicionaram com neutralidade diante da guerra civil. A partir de 1860, no
entanto, preocupados em lidarem futuramente com um ambiente ainda mais hostil e anárquico aos seus interesses, os
ocidentais passaram a proteger os interesses dos Qings, apesar de não terem participado de maneira decisiva em
nenhum momento dos conflitos.
Em 1864, Nanquim foi recapturada por tropas regionais com lealdades imperiais e todas as medidas foram
tomadas visando erradicar o movimento Taiping. Em suma, a rebelião fracassou em modificar o sistema político
chinês e deixou mais de 20 milhões de mortos e largos tratos de terras cultiváveis devastados. Mais duradouro foi,
além da clara inspiração para movimentos rebeldes no futuro, a enérgica e decisiva ação de milícias e tropas
regionais – e não centralizadas – na repressão dos rebeldes, contribuindo posteriormente para uma descentralização a
longo termo do sistema político chinês.
Outras rebeliões também foram notáveis na contestação do poder imperial Qing à época. Com bases étnicas e
religiosas, muçulmanos nas províncias a norte e noroeste de Xinjiang, Gansu, Shaanxi e Ningxia, em 1864, se
rebelaram contra a sua marginalização e discriminação na chamada Revolta Dungan. Contaram inclusive com
solidariedade e apoio de muçulmanos fora da China. Como os do Canato de Kokand, no atual Uzbequistão, sob o
comando militar de Yakub Beg (1820-1877), este com considerável apoio militar do império otomano do Oriente
Médio, chegando a ser-lhe concedido o título de emir (comandante, em otomano e árabe) em toda a região. Uma
solidariedade pan-islâmica pode ser constatada nesses episódios[661]. A autonomia sob mãos muçulmanas, no
entanto, perdurou apenas até o fim de 1877 com a sistemática repressão de tropas imperiais chinesas. Foi a última
expressiva campanha vitoriosa do Império do Meio.
Após a morte do Imperador Xianfeng, em 1861, sucedeu-o no trono chinês um menino de cinco anos de idade
conhecido como o Imperador Tongzhi (1862-1874) (fig.), à frente de uma dinastia que aparentava, aos olhos da
sociedade, estar à beira de um abismo. Era, pois, urgente e necessário repensar o sistema político visando revitalizar
o reino, o que ficou conhecido como a Restauração Tongzhi.
Fig. – Último imperador manchu que tentou revigorar o Império do Meio. O Imperador Tongzhi.

Nessa estratégia renovada, foram constatadas as debilidades imediatas dos chineses frente aos agressores
estrangeiros. Para sanar tal quadro, estudantes selecionados por concurso público foram enviados a universidades
europeias e norte-americanas, para uma adequada formação moderna em áreas críticas como medicina, engenharias,
cursos técnicos e humanidades. Instrutores e professores estrangeiros foram convidados para palestras, cursos e
instruções nas academias chinesas. Pensava-se, pois, que bastaria a incorporação da techne ocidental e a
modernização do aparato político-militar do império para revigorá-lo no ambiente internacional.
No entanto, a conservadora atuação confuciana do estado e de sua elite burocrática central e regional (os
mandarins) obstruiu a livre iniciativa de inovação e empreendimento da sociedade chinesa em um momento tão
crucial. Projetos e iniciativas renovadoras que eram considerados irrelevantes, ameaçadores ou incompreendidos
foram desestimulados. Ademais, inexistia um sistema de leis comerciais a salvaguardar as propriedades e bens. A
infraestrutura do país não se adequava a uma demanda mais dinâmica de produção em escala industrial.
Houve, além disso, crescentes casos de corrupção e mau gerenciamento dos recursos públicos destinados à
segurança das cidades, vilas, estradas e rios. Não houve sequer uma padronização monetária para todas as regiões da
China. Nem houve um padrão de pesos e medidas para o pleno funcionamento dos mercados. E não menos
importante, o senso de desunião e descrença nas autoridades imperiais após os eventos de meados do século 19
provocaram um cenário descentralizado de lealdades políticas, algo fatal em um momento de almejada renovação
modernizadora do país.
A Revolta dos Boxers (1898-1900) foi talvez o coup de grâce no sistema imperial chinês. Antes disso, as
tentativas de reformas na regência de Tongzhi arrefeceram com sua morte prematura em 1874. Sucedeu-lhe sua mãe,
a Imperatriz Cixi, que atuou como tutora do futuro imperador, seu sobrinho, o Imperador Guangxu (1875-1908).
Cixi alimentava convicções conservadoras contra as tendências reformistas, enxergando a volta às tradições
históricas impolutas como solução da crise dos tempos. A crise seria moral, de ordem social e de respeito às
tradições da família e do poder, conforme pregava Confúcio.
A perda da influência sobre o reino Joseon na Coreia e o controle sobre a ilha de Taiwan, defronte à região de
Fujian na China, para os japoneses em 1895 somente agravou tal recuo conservador da elite. E a presença
internacional em solo chinês era cada vez mais grave. Na região nordeste, na Manchúria, houve o avanço das tropas
russas com a construção de ferrovias em direção ao mar até Porto Arthur (Lünshunkou), na península de Liaodong
em 1898. Na mesma época, os alemães adquiriram o porto de Qingdao, na província de Shandong, local de
nascimento de Confúcio, e a França deteve os direitos de administração em Yunnan a resguardar o seu domínio do
outro lado do Rio Vermelho no norte vietnamita (Tonquim). Os britânicos ocuparam o porto de Weihaiwei, também
em Shandong (mapa).
Mapa – A humilhação chinesa. A China e as esferas de influência estrangeiras em 1900.

Alarmados os sensos chineses a respeito desses avanços e concessões em múltiplas frentes, o jovem imperador
Guangxu orquestrou um plano de reforma, os Cem Dias de Reforma, em 1898. Como o próprio nome indica, a
urgência de reforma tão ampla em tão pouco tempo mostrou-se abortiva. Os conservadores da corte ficaram ainda
mais horrorizados diante da ofensiva reformadora e a Imperatriz Cixi organizou um golpe de poder aprisionando em
domicílio o Imperador Guangxu no recém-construído Novo Palácio Imperial de Verão, declarando-se regente
plenipotenciária da China.
Em 1899, depois de uma severa seca no norte da China, uma sociedade religiosa chamada de Yihequan
(Boxeadores Unidos na Retidão, ou simplesmente boxers) deu explicação à avassaladora catástrofe nacional que
ganhou amplo apoio e repercussão: foram as nefastas influências estrangeiras e suas adorações ao cristianismo, e o
abandono de chineses pelas divindades tradicionais que foram as causas de todas as recentes mazelas.
Além de adotarem uma clara postura antiocidental e anticristã, os boxers eram também potencialmente contra o
status quo político da Dinastia Qing. Todavia, a elite conservadora imperial enxergou neles uma força social aliada a
expulsar os estrangeiros do reino. Foi nesse sentido que a Imperatriz Cixi, aliada a lideranças boxers, declarou
ofensiva aos ocidentais, sitiando todo o quarteirão diplomático em Pequim e a comunidade estrangeira residente na
região, com estimados 900 civis incluindo o futuro presidente dos EUA, Herbert Hoover, na vizinha cidade portuária
de Tientsin (Tianjin).
Os embates pelo lado chinês não se provaram unificados o suficiente, refletindo a frágil aliança entre os
insurgentes e o governo imperial. Em resposta aos sítios e agressões chinesas, as forças ocidentais organizaram-se
em uma expedição punitiva multinacional com notável cólera. Marcharam sobre Pequim e resgataram a comunidade
ocidental sitiada na cidade. Os boxers foram duramente reprimidos e pesadas indenizações previstas no Protocolo
Boxer de 1901 foram impostas ao governo imperial: um pagamento equivalente a duas vezes as receitas anuais do
império[662]. Foi nessa fúria ocidental de represália que declarou o kaiser alemão Guilherme II no seu infame
Discurso Huno sobre a devida repressão aos chineses:
Assim como há mil anos os hunos sob Átila fizeram sua feroz reputação que a tradição ainda nos faz recordar; que o nome da Alemanha assim seja
também temido de tal forma por todos os chineses ao ponto de nenhum deles ousarem sequer olhar para um alemão nos olhos! (tradução nossa) [663].

Foi, então, esse confronto o último ato de afirmação política do Império do Meio. Até mesmo Cixi e seus aliados
conservadores perceberam que a crise era de natureza inédita e transformadora. A própria inserção da China no
mundo deveria ser radicalmente reavaliada. Os “estrangeiros brancos e barbudos”, triunfantes mais uma vez, não
eram apenas bárbaros a serem agraciados por presentes, subornos e alianças temporárias visando a preservação das
fronteiras do reino como ditavam os clássicos estrategistas chineses. As relações deveriam passar por novas regras e
condutas, formuladas por cânones estrangeiros em leis e convenções internacionais. As tributações e seus protocolos
coadunados exigidos de vizinhos e estrangeiros no passado deixaram de ter sentido. O Filho do Céu não era mais o
representante no ápice diante dos olhos dos súditos. O mundo era outro no nascente século 20, e a China deveria
dolorosamente trilhar seu próprio caminho para se inserir nesse contexto.
Tibete (Séculos 14 - 19)
O mosteiro de Sakya, na década de 1330, talvez representasse a própria essência soberana do Tibete. Desde sua
fundação no século 11, o eremitério passou por uma série de reformas e ampliações a ponto de se tornar um
complexo. Em seu interior, estátuas de Buda, coloridos murais e sua coleção de obras tinham poucos comparáveis
no mundo budista. Mas os tempos iriam mudar isso. Quando o representante tibetano na corte mongol, dentro do
Departamento de Assuntos Budistas e Tibetanos, resolveu, com o aval do khan, buscar mais uma vez suprimir as
demandas do clã Pagmodru, apoiados pelos khans rivais dos Il-Khans da Pérsia, defrontou-se com a obstinação e
energia de um jovem dos Pagmodrus chamado Changchub Gyaltsen (1302 - 1364), futuro fundador da Dinastia
Pagmodru no Tibete (1354 – 1618) [664].
Changchub tinha recebido uma promissora educação religiosa em Sakya, apesar de ter sido importunado por ser
membro de um clã rival dos sakyapas. Estudou os tantras, da escola Hevajra, e decidiu, após sua formação
monástica, ir para o campo político conforme indicava suas aptidões. Aos vinte anos de idade, foi a ele ofertado o
cargo de governador de uma região sul tibetana ao ambicioso jovem Pagmodru. E, uma vez no cargo, Changchub
tomou a decisão de restaurar a antiga glória dos tibetanos, com o clã dos Pagmodrus à frente.
Como primeiro passo, Changchub reivindicou, com base em títulos históricos, que a região de Yazang pertencia
aos seus domínios, levando esse caso a ser julgado em Sakya. No julgamento, foram rechaçadas as suas
reivindicações. Não satisfeito, Changchub mandou seu caso a ser considerado na capital mongol. E assim o chefe do
governo mongol no Tibete, Wangtson (g. 1347– 1350), decidiu, de uma vez por todas, dar uma lição exemplar ao
impertinente jovem. Recusando a ser intimidado, Changchub foi convidado a um banquete por Wangtson para
conversas. E assim que a primeira oportunidade surgiu, o jovem Pagmodru foi detido e preso. Após três meses
detido e torturado, Changchub foi libertado e voltou com mais convicção de seu projeto de poder para sua
propriedade. E ali teve que lidar com rebeldes vizinhos da região instigados por Wangtson e seus partidários em
Sakya. O momento decisivo veio com o envio de um numeroso exército coligado anti-Pagmodru. Capturado mais
uma vez, Changchub dessa vez passou por enormes privações e humilhações, que destilou em seu espírito a
resolução de que as penas mongóis eram demasiadamente desumanas. E percebeu que não havia maneira de
conciliar sua ambição com os sakyapas e o regente designado pelos mongóis. Em vez disso, decidiu confrontar as
forças de Sakya no Tibete.
Assim, houve confronto final entre o exército reunido por Changchub Gyaltsen e aqueles, mais numeroso, a
comando das autoridades de Sakya que, efetivamente, administrava o Tibete e era supervisionado por um
representante na corte mongol, no caso: Wangtson. O resultado da batalha foi surpreendente. As forças reunidas à
causa dos Pagmodrus tinham vencido. E o abade de Sakya tentou negociar uma trégua, prometendo rever os pleitos
de Changchub no tribunal. Mas Changchub havia mudado e buscou ir até o fim a mudar todo o sistema de poder no
Tibete. Em 1350, as forças de Changchub tomaram todos os fortes estratégicos do Tibete Central e conquistou
Lhasa. Três anos depois, Sakya tentou em desespero assegurar seus últimos domínios no Tibete. Depois de uma
longa batalha final perto de Lhasa, Changchub emergiu triunfante sobre a paisagem tibetana devastada por anos de
guerra. Em 1354, a paisagem política no Tibete havia mudado a partir de então.
Apesar da vitória acachapante, Changchub era um estrategista e estadista acima de tudo, e deixou os altos
membros de Sakya como autoridades religiosas de sua linhagem, mas agora sem qualquer poder político. Nesse
sentido, deixou de prestar satisfações com as demandas mongóis advindos de Cambalique. Com o enfraquecimento
de Sakya, Changchub buscou reformar o sistema de defesa e fortes destruídos no Tibete após os anos de guerra civil.
Construiu um sistema chamado de dzongs [665], e reformulou o código legal mongol, considerado excessivamente
severo. E todos aqueles mongóis e tibetanos a eles aliados foram afastados da administração superior. Mesmo assim,
o império mongol julgou melhor lidar com o que tinha acontecido, a garantir um aliado, e nomeou, simbolicamente,
Changchub como Tai Situ, “Grande Tutor” [666].
Outra escola do budismo tibetano emergiu com a desagregação de Sakya e a ascensão de Changchub. A escola
Karma Kagyu agora tinha para si as atenções maiores dos mongóis, na medida em que os khans da Dinastia Yuan,
em período de declínio na China [667], buscaram ansiosamente uma autoridade religiosa a representar o Tibete dentro
de seu império. E foi entre os seguidores dessa escola, chamados de karmapas, que fora criada a tradição de apontar
um alto representante dos seus sacerdotes (lamas) a atender às demandas de Cambalique da Dinastia Yuan. Os
karmapas tinham a prática de selecionar seu representante entre aqueles considerados sucessores de lamas
reencarnados no Tibete. O maior lama anterior, nesse sentido, passaria sua consciência renascida (tulku) a uma
criança sucessora após sua morte. Essa curiosa sucessão talvez fosse o método mais eficaz contra a pluralidade
mística das linhagens clânicas. Mas o tulku não era propriamente um ser totalmente iluminado, pois se considerava
que seu antecessor falecido foi capaz de controlar o processo de renascimento após a morte, mas não a passar sua
entidade por inteiro, com todo o aprendizado e experiência acumulada, para o novo ser. O que renasce, na ideia
budista, é mais um fluxo de consciência sempre em mudança e nunca permanente. O tulku sucessor, portanto, era
bem diferente do que era na sua vida anterior e, por isso, todo tulku deveria obedecer a um rigoroso programa de
estudos e meditações.
Em qualquer caso, foi o terceiro lama dos karmapas (3º Karmapa), Rangjung Dorje (1284 - 1339), que se tornou
célebre como erudito e sábio respeitado pelos khans como professor e mestre budista. E quando este veio a falecer,
em 1339, o imperador Yuan, Toghon (Huizong entre os chineses), buscou rapidamente seu tulku, o jovem Rolpe
Dorje (1340–1383), como sucessor e quarto lama karmapa (4º Karmapa), a manter a reputação do seu antecessor
[668]
.
Em 1358, o Tibete já se encontrava, efetivamente, livre do domínio mongol dos Yuans. E Changchub Gyaltsen
soube da função meramente religiosa do quarto lama karmapa designado pelo khan ao Tibete. Na corte Yuan, em
Cambalique, Rolpe cumpriu sua função, com grande dedicação, às instruções budistas demandadas pelo khan e seus
filhos. E quando na queda da Dinastia Yuan, o lama deixou a capital antes que o pior viesse a acontecer. No
caminho ao Tibete, realizou uma cerimônia de batismo a um garotinho chamado de Tsong Khapa que no futuro
deixará um grande legado na história tibetana. Os eventos na China precipitaram numa ampla guerra e disputa entre
líderes bélicos que, ao final, um camponês chinês de nascimento declarou-se imperador de uma nova dinastia em
1368, a Ming. Pela força das circunstâncias, os chineses Ming deixaram de se interessar pelos assuntos tibetanos,
apenas a garantir uma fronteira estável entre as duas nações. Além disso, a assegurar o significativo e lucrativo
comércio de cavalos que eram comprados dos tibetanos, em troca da grande demanda tibetana pelo chá chinês.
Quanto ao budismo, os primeiros imperadores Ming parecem ter sido simpatizantes pela versão tibetana,
considerando que o Tibete tinha se tornado um centro mundial da religião após a emigração da comunidade da Índia.
As relações, no entanto, do Tibete e a China dos Mings parecem ter se distanciado. Pois Changchub e seus
sucessores no poder tibetano não mostraram interesse em visitar a capital Ming, em Nanquim (Nanjing). E o 4º
Karmapa, apontado pelo último dos Yuans, Rolpe Dorje, de forma semelhante, mostrou pouco interesse pela nova
dinastia chinesa. Não foi até o reinado do imperador Ming, Yongle (r. 1402 – 1424). Foi na esperança de recriar a
ligação religiosa histórica de Kublai Khan com Phagpa que o imperador chinês estendeu o convite ao próximo lama
de Karma, o quinto deles, Deshin Shekpa (1384 –1415), a residir na capital em Nanquim.
No norte chinês, em Pequim (Beijing, “Capital do Norte”, ex-Cambalique, assim renomeada desde os Mings no
poder), Yongle, embalado com essa euforia religiosa, mandou construir um imenso complexo de palácios e templos,
a “Cidade Proibida”, um dos maiores símbolos da cidade chinesa. Em 10 de abril de 1407, Deshin Shekpa chegou a
Nanquim, e buscou logo reviver a antiga ligação espiritual com o imperador chinês. Yongle, impressionado com os
ensinamentos budistas recebidos, como um eufórico aluno, encomendou um conjunto de rolos ilustrados da vida de
Buda. E concedeu um título eminente ao lama tibetano apoiando a escola Karma Kagyu. O lama, magnanimamente,
insistiu que o apoio imperial deveria se estender a todas as escolas e ordens tibetanas [669]. Após um ano de estadia, o
eminente sacerdote decidiu regressar ao Tibete.

Fig. - Deshin Shekpa, o 5º Karmapa.

Em termos culturais, a relação da China com os tibetanos foi de grande respeito, conferindo-lhes ampla
autonomia por ser sede de um budismo todo próprio e admirado pelos imperadores. Os tibetanos, de fato, tinham
absorvido uma grande quantidade de textos budistas ao longo dos séculos, e com o declínio dessa religião na Índia,
os tibetanos não se dirigiram mais às terras indianas para as fontes de conhecimento. Na verdade, havia milhares de
escrituras budistas traduzidas para o tibetano do sânscrito e que foram catalogadas e reunidas em coleções
canônicas. O cânone ortodoxo, conhecido como Kangyur, continha as próprias palavras de Buda. E no Tengyur, os
comentários de estudiosos e mestres budistas antigos. Toda essa imensa coleção tibetana havia sido organizada pelo
erudito tibetano da escola Sakya, Buton Rinchen Drub (1290 - 1364) [670]. Outros cânones incluíam a coleção dos
tantras da escola tibetana Nyingma (Nyingma Gyubum) e a coleção das escrituras Bonpo. Essa última não
representava, necessariamente, uma outra religião não-budista, mas foi antes uma religiosidade tibetana que tinha
assimilado boa parte das práticas budistas com as crenças tibetanas anteriores [671].
Foi sem dúvida uma era áurea para a produção cultural tibetana. Mas um dos seus maiores pensadores, em
meados do século 14, foi o erudito tibetano da tradição Nyingma que viveu recluso por anos numa caverna aos pés
dos Himalaias: Longchenpa (1308 – 1364) (fig.), no atual Butão. Seu nome significa “A Vasta Extensão” [672], e
viveu boa parte de sua vida envolvido em rivalidades e despertou desconfianças e ciúmes pela sua excepcional
inteligência que não conheceu limites.

Fig. - Longchenpa.

Decidido a se tornar monge desde os doze anos de idade, e vivido a tragédia de ter perdido ambos os pais antes
em terna infância, Longchenpa sublimou toda a sua energia aos estudos e reflexões meditativas. Aos vinte e seis
anos, tornou-se desgostoso com o que tinha vivenciado nos mosteiros do Tibete Central, e decidiu partir em busca
da iluminação entre os mestres iogues nos locais remotos tibetanos. Nisso, ele encontrou Kumararaja (1266 - 1343)
(Kumaradza), um sábio adepto da tradição Nyingma que tinha sido mestre de Rangjung Dorje, o terceiro lama dos
karmapas. Os ensinamentos com esse mestre iriam marcar o resto da vida de Longchenpa, mas isso não significou
que se retiraria da vida política. Pois era um vivo contestador do status do poder em torno de certos mosteiros e do
clã dos Pagmodrus a comandar o Tibete no século 14. E por isso, exilou-se no Butão, onde até os dias atuais é
cultuado como figura santa e onde viveu seus descendentes [673].
Ao conhecer Kumararaja, Longchenpa conheceu outro aspecto a ser explorado na sua vida. Sua vida de seguidor
do mestre era itinerante, indo de vale a vale nos Himalaias. Por vezes, permanecia isolado, devido ao rigor do
inverno tibetano, e buscou compreender a verdadeira natureza da mente, a transcender os conceitos duais do
pensamento que ele havia estudado nos mosteiros. Mas sua mente iria se incendiar com o contato com um novo
livro trazido por um dos outros discípulos de Kumararaja, intitulado “Coração Fértil das Dakinis” [674]. Longchenpa
leu avidamente e ficou impressionado. A obra foi achada por um terton, um visionário revelador de ensinamentos e
obras, referidos como “tesouros” (terma) espalhados e escondidos nas cavernas, rochas e locais remotos do Tibete e
região. Essas obras entesouradas estavam vindo à tona cada vez mais no Tibete no século 14. E um desses achados
fora o “Coração Fértil das Dakinis” [675], descobertas por um garoto que tinha revelado ter tido visões a respeito dos
ensinamentos de Padmasambhava e Trisong Detsen. O fato é que esse terma caiu nas ávidas mãos de Longchenpa,
que o influenciou nos seus anos de ensinamentos e escritos. Nesses Longchenpa buscou expressar, de forma poética,
as revelações através da meditação e reflexão, que até os dias atuais consistem nas mais belas páginas da literatura
tibetana. À medida que seus escritos foram lidos e apreciados, sua fama cresceu e ficou conhecido nos corredores do
poder. Vários estudiosos do tradicional mosteiro de Sakya, como o lama de Drigung, tornaram-se seus admiradores
e discípulos. Mas os conflitos no Tibete fizeram com que Longchenpa tomasse oposição ao poder consolidado de
Changchub Gyaltsen. Ao se ver adversário e em desvantagem no campo político, achou melhor se retirar ao exílio e
foi mais para o sul, no Butão, onde viveu o resto de sua vida.
Das descobertas das obras ocultas (termas) adveio uma que ficou amplamente conhecida séculos depois pelo
mundo, conhecida como “Livro Tibetano dos Mortos” (Bardo Todrol) [676]. O nome indica que é uma série de
orações a orientar a pessoa em processo de falecimento através das visões nos estágios intermediários (bardo) entre
a morte e o próximo renascimento. A morte, no budismo, é uma oportunidade para a mente se libertar dos limites do
corpo. E o livro busca então a guiar o fluxo de consciência na direção certa no momento oportuno. No momento da
morte, a mente vê sua própria natureza e cabe ao recitador esclarecer que o corpo e os meios materiais devem ser
desapegados, para um gradual aprendizado no rompimento com o ciclo interminável dos renascimentos (samsara).
Esses textos depois foram imensamente populares, transcendendo as escolas e tradições tibetanas, atendendo ao
anseio universal humano diante das incertezas da morte.
Longchenpa foi apenas um entre vários monges que se renovaram com as obras reveladas no século 14. Outro
deles, um terton chamado Loden Nyingpo que era praticante do Bonpo, antiga religião tibetana que mesclou
elementos budistas com as práticas anteriores de adivinhação, intermediação e cultos aos espíritos e cura divina.
Essa crença, embora tivesse raízes antigas na sociedade tibetana, somente ganhou formas com o ressurgimento do
budismo no século 11. E foi com as revelações de textos ocultas, termas, que as escrituras do Bonpo começaram a
ganhar corpo. Loden foi certamente um dos Bonpos mais influentes, e compilou suas termas na sua obra, “O
Brilho”, que conta a história das origens e fundador mítico do Bonpo, Tonpa Shenrab (fig.). Nessa, Loden constata
que a decadência tibetana como obra de impetuosos governantes tibetanos, inclusive dos tsenpos, e da maliciosa
ambição dos mosteiros budistas no Tibete. Curiosamente, o Bonpo pouco difere do budismo, pois conviveu e
incorporou muito de suas práticas, símbolos e crenças. Mas diferia no uso extensivo da suástica, antigo símbolo da
verdade eterna, em vez do símbolo budista da vajra [677]. Ademais, os Bonpos circundavam as estupas no sentido
contrário ao costume budista.

Fig. -Tonpa Sherab, mítico fundador da religião Bon ou Bonpo.

No caminho de volta da corte mongol em Nanquim, em 1359, o quarto lama karmapa (4º Karmapa) tinha parado,
na região de Tsongkha, nordeste de Amdo no Tibete oriental, e uma criança havia sido abençoada. Seu nome depois
ficaria conhecido como Tsong Khapa, “Homem de Tsongkha” (1357 - 1419). Mas seu nome de batismo à época
ainda era Kunga Nyingpo. E quando esta cresceu, decorrente de seu espírito inquieto e curioso, viajou aos dezesseis
anos de idade para estudar nas instituições de ensino monásticas no Tibete Central. Um dos primeiros mosteiros em
que foi admitido foi o de Drigung, reconstruído depois da destruição feita pelo exército enviado por Kublai Khan a
castigar os Drigungs. Mas ali permaneceu apenas um ano e depois decidiu aprofundar nos estudos filosóficos no
mosteiro de Sakya. Ficou claro a todos que o jovem tinha um excepcional talento e dedicação aos estudos. Mas,
inquieto e dotado de um senso de independência, resolveu ir embora do mosteiro, com apenas dezenove anos de
idade. E assim como muitos monges que procuravam aprimorar seu conhecimento a debater com vários mestres,
Tsong Khapa empreendeu uma longa jornada por um maior conhecimento. E pelo seu temperamento, nunca admitiu
ser institucionalizado e instalado em centros de estudos dos mosteiros tibetanos.
A sua busca mudou quando se deparou com Rendawa (1349 - 1412), um pensador rebelde de Sakya com uma
interpretação incomum do Madhyamaka [678]. E foi com Rendawa que Tsong Khapa começou a aprofundar de
maneira própria os seus questionamentos e busca espiritual. Aos trinta e poucos anos, começou a escrever
comentários, ensinar e a atrair uma comunidade crescente de admiradores e estudantes, todos a acompanhar seu
estilo peripatético de vida e meditação. Essas andanças foram fundamentais para a consolidação de seu pensamento,
pois se encontrava com inúmeros mestres e instituições religiosas espalhadas pelo Tibete. Mas com o tempo, Tsong
Khapa percebeu a importância de se retirar da convivência social e se retirar para aprofundar nas suas buscas
intelectuais e contemplativas. Assim, buscou um retiro de quatro anos, acompanhado por oito dos seus melhores
alunos. O retiro foi bem fecundo e consolidou a visão budista própria de Tsong Khapa.
Quando esteve no mosteiro de Radreng, após seus anos de reclusão, compôs a sua grande obra, “Grade
Exposição das Etapas do Caminho” (Lamrim Chenmo), um livro que expunha sobre o caminho espiritual a ser
buscado de maneira gradativa, por etapas, com clara influência dos ensinamentos de Atisha (por quem tinha enorme
estima) e da filosofia de Madhyamaka. Anos depois compôs outra obra sua à estatura do anterior, “Grande
Exposição do Mantra Secreto”. Essas duas obras são hoje consideradas sumamente como clássicas do pensamento
budista. Após esses feitos intelectuais, Tsong Khapa tornou-se uma das maiores celebridades do Tibete, e quando
escolheu retirar-se para um mosteiro, sua fama impediu de ter privacidade diante da demanda de tantos alunos.
Algum tempo depois, recebeu convite do imperador chinês, Yongle, a ocupar o cargo de patrono dos lamas
tibetanos. Convencido de seu propósito espiritual, recusou o convite e mandou um de seus discípulos em seu lugar.
Com o peso da idade, seus alunos e admiradores prósperos começaram a organizar a construção de um mosteiro
para o eminente mestre budista. No ano de 1409, foi então inaugurado o mosteiro de Ganden, “Alegre”. E no mesmo
ano, Tsong Khapa resolveu iniciar uma série de festivais de orações a serem realizados anualmente em Lhasa,
tradição que depois foi mantida por séculos no Tibete [679]. Quando o mestre faleceu aos 62 anos de idade, seu corpo
foi mumificado e colocado numa estupa do terreno de seu mosteiro. A influência desse extraordinário homem ainda
seria sentida na religião, cultura e política tibetana.
Os estudantes do mosteiro de Ganden, após a morte de Tsong Khapa, decidiram por bem fundar uma nova ordem
a partir dos ensinamentos do mestre. Seus seguidores, que passariam a se referir como gandenpas, tiveram nos
momentos iniciais dificuldades em definir a própria escola, sua identidade e doutrina, apesar da vastidão das obras
de Tsong Khapa. Pois o mestre não deixou nenhum intento em fundar uma nova ordem e estava satisfeito em não ter
pertencido a nenhuma instituição em particular. Foi um aluno seu, Khedrup (1385 – 1438) a quem deve-se a
fundação da tradição Ganden. Quando em período formativo, Khedrup buscou meditar e estudar, entre eles no
mosteiro de Palkor Dechen, e desde cedo se maravilhou com as ideias de Tsong Khapa. E foi seu maior defensor,
em vários debates que participou quase sempre a defender brilhantemente (e com igual fúria) seus argumentos,
mesmo com prestigiados professores e pensadores tibetanos. Seu temperamento forte lhe valeu fama, mas foram
várias as ocasiões em que se meteu em encrencas que lhe rendeu a perda de apoio financeiro de patronos ricos pelo
seu espírito orgulhoso e indomado. Por vezes, considerava-se tal como um leão das neves, solitário, em busca de
tranquilidade e caça nas montanhas. Passados alguns anos, foi parar no recém-inaugurado mosteiro de Ganden. E,
devido ao seu enorme potencial, foi convidado a permanecer como parte diretiva do corpo do mosteiro. E assim
Khedrup abraçou a sua nova função de abade do mosteiro dos gandenpas a lhes dar uma distinção entre todos os
mosteiros tibetanos. Apesar de ser inconteste a influência de Sakya e Karma Kagyu, Khedrup não podia remeter a
fundação a veneráveis mestres indianos como as outras escolas fizeram. Buscou ele, ao invés, os fundamentos nas
novas interpretações escritas por Tsong Khapa.
Naturalmente, isso despertou a rivalidade das outras escolas. A de Sakya denunciou os gandenpas como
inovadores heréticos que deturparam as mensagens antigas das fontes indianas antigas. Khedrup respondeu às
acusações afirmando que Tsong Khapa tivera visões em suas sessões de meditação do bodisatva da sabedoria,
Manjushri. E que esta entidade tinha endossado os argumentos de Tsong Khapa. Mas a maior contribuição para a
escola de Ganden foi a nomeação pelo imperador chinês de um monge gandenpa, indicado por Tsong Khapa. Assim,
endossado pelos chineses, houve amplo financiamento de obras impressas dessa corrente budista pelo Tibete e
países vizinhos. Boa parte dessas obras começou a se consolidar em posições ortodoxas, e, via os argumentos em
debate impresso (yigcha), refutavam-se as posições em contrário aos conceitos centrais do Madhyamaka. Tornando-
se este num pilar de identidade do pensamento de Ganden. Com o tempo e os debates entre os mosteiros, a escola de
Ganden começou a crescer, indo além do mosteiro fundador, e passou-se a se referir como Gelug, “Tradição
Vitoriosa”, muito em cima da força dos seus argumentos defendidos contra as acusações de outras tradições
budistas. Como passaram a designar os mais altos cargos de sua escola a designados lamas, o maior deles passou a
ser o representante máximo dessa instituição e que se tornou, com o tempo, o mais difundido e poderoso das escolas
budistas tibetana. Os novos mosteiros Gelug foram fundados perto de Lhasa como os de Drepung, Sera, além do
original Ganden. Esse conjunto formaria o triunvirato no pináculo da hierarquia Gelug que depois dominaria o
Tibete Central por séculos. E pela proximidade a Lhasa, foram sempre presentes na capital política e histórica do
Tibete.
O que nos indica como foram influentes as ordens monásticas na história tibetana. Pois foram dessas ordens, em
tempos de crise, que se formaram notáveis pensadores e líderes, advindos de um corpo estável, protegido e
disciplinado. Muito dessa disciplina vinha de um conjunto de regras (vinaya) trazido da Índia que eram rigorosos
nas suas exigências e limites. E que, com o passar do tempo, e com a maior popularização dos mosteiros, começou a
permitir maior número de estudantes e monges, resultando num abrandamento dos seus códigos. Como exemplo, o
celibato é estritamente observado, mas, com o tempo, foram constatadas algumas práticas homossexuais entre a
população monástica. Monges mais velhos com frequência tinham um jovem monge sob sua proteção (drombo),
inclusive a servir para as intimidades. E havia aqueles que eram designadas as tarefas mais árduas, como
carregamento de água e lenha, chamados de dob-dobs. Estes tinham uma hierarquia própria entre eles, e usavam
como afirmação identitária, trajes e roupas diferentes dos monges restantes.
No geral, assim como na Europa medieval, os mosteiros tornaram-se um centro social e cultural, a abrigar
estudantes e a ajudar a comunidade próxima. Os monges tinham assegurado um local para descanso e refeições.
Alguns monges vinham de famílias ricas e outros se envolveram em atividades fora dos mosteiros como comércio
ou de acordo com a vocação pessoal. Os que tinham ambições intelectuais normalmente eram os mais pobres dos
mosteiros, pois permaneciam afastados das atividades lucrativas e do poder. Muitos monges, objetivando maior
aprofundamento espiritual e intelectual, se organizavam em grupos e partiam por algum tempo em busca de locais
afastados e silenciosos, tal como fizera Longchenpa e Khedrup. Uma das maiores preocupações dos mosteiros era o
próprio sustento financeiro, denotando o apoio errático quando dependiam de ricos patronos e doações. Para tanto,
muito da renda monástica vinha da venda de produtos e serviços para a comunidade [680]. Eram comuns empréstimos
com alguma taxa de juros. Em suma, os mosteiros se tornaram parte integrante da paisagem social e histórica do
Tibete e dificilmente o budismo teria prosperado sem essas organizações.
Anos depois da morte de Tsong Khapa, a casa dominante de Pagmodru dividiu-se em duas facções rivais. Uma,
com sede na província de U, onde ficava Lhasa, foram opostos aos designados líderes desse poderoso clã pelos da
província Tsang. As rivalidades logo começaram a se intensificar, e os de U começaram a patrocinar a escola de
Gelug, e aqueles de Tsang, o de Karma Kagyu. E foi esta escola que passou a ter os favores (e aliança) do imperador
chinês dos Mings. As duas escolas monásticas tinham convivido por anos em paz, mas agora com a rivalidade de
seus patronos, os ânimos e acusações entre os monges e lamas começaram a resultar em conflitos que chegou ao
auge na década de 1480. Foi quando um aliado dos de Tsang, um ministro Rinpung, teve planos de erguer um
mosteiro de Karma Kagyu em Lhasa. Que gerou uma indignação dos partidários de Gelug, entre eles o próprio
governador de Lhasa, que acreditavam ser a região dentro da esfera deles. O mosteiro acabou sido construído fora de
Lhasa, mas, na calada da noite, alguns monges rivais destruíram-no [681]. Isso foi causa para os governantes de Tsang
mandar tropas para Lhasa, confinando os monges Gelug em seus mosteiros. Esse conflito só poderia resultar em
situação de intolerância cada vez mais insustentável para a paz tibetana.
***
Em 1577, um destacado monge com apenas trinta e quatro anos de idade da escola Gelug se dirigiu para se
encontrar com líder do mais poderoso grupo dos mongóis da época, os tumeds, sob a liderança de Altan Khan (1507
– 1582), nas vastas e gélidas estepes perto de Hohhot, na atual província chinesa da Mongólia Interior, no norte
chinês. O nome do monge era Sonam Gyatso (1543 – 1588) (fig.), “Oceano de Méritos”, e este tinha se tornado,
depois de uma vida exemplar de dedicação monástica, no maior lama entre sua ordem religiosa. Desde a sua
infância, os lamas de Gelug viram no menino Sonam sinais de que ele era sucessor espiritual (tuluk) de um eminente
abade recentemente falecido. E foi devido ao seu destaque que o líder mongol insistiu, por diversas vezes, nos
convites feitos para sua corte. Altan Khan almejava, politicamente, imitar o gesto feito no passado por um dos
maiores imperadores mongóis, no século 13, Kublai Khan, quando este enviou convites a Phagpa. E assim garantir
uma aliança entre os mongóis e tibetanos, para melhor contrapor-se aos chineses da Dinastia Ming. Trazendo de
volta um eminente budista traria de volta todo o prestígio e honras reservadas ao período áureo dos mongóis sob
Kublai.

Fig. - Sonam Gyatso, o 3º Dalai Lama.

A recepção dada aos enviados tibetanos foi generosa, entre as incontáveis tendas da nação tumed. E logo foi
estabelecido um relacionamento de respeito entre o líder mongol e o sacerdote. Sonam concedeu ensinamentos e
iniciação tântrica para Altan e, em troca, recebeu promessas de patrocínio, apoio, e um título dos mongóis que, em
versão resumida para a posteridade, ficou conhecido como “Dalai” (“Grande como o Oceano”). Nesse sentido,
Sonam foi o primeiro tibetano a receber esse título que depois se tornaria referência tibetana em todo mundo: o
Dalai Lama. Na verdade, Sonam, como foi o terceiro na linha de renascimentos, foi depois referido como o 3º Dalai
Lama, sendo aos seus dois antecedentes dado o título postumamente.
Alguns anos depois, Altan Khan morreu, em 1582, e Sonam, que sempre se empenhou em tentar ampliar a fé
budista entre os mongóis nas várias regiões, voltou a prestar os devidos votos fúnebres, e a consolidar sua posição
com o filho sucessor do khan [682]. Com esse apoio conquistado, Sonam tornou-se a maior autoridade religiosa entre
os mongóis, quando chegou a converter, entre outros, outra nação dos mongóis, os ordos. Desde então, os mongóis
seguiram os ensinamentos de Buda. O final de sua vida veio ocorrer às margens do lago Jighasutai, na Mongólia, em
1588. Mas a aliança feita por ele, e a conversão de muitas nações mongóis, asseguraram um poderoso aliado militar.
E a questão de escolha de um novo líder de Gelug a ser endossado pelos mongóis como o Dalai Lama ganhou um
significado crucial no poder tibetano a partir do século 16 em diante.
Ficou em aberta a questão de quem seria o sucessor renascido (tuluk) de Sonam na escola Gelug.
Oportunisticamente, foi apontado um menino entre os mongóis. Na verdade, era o próprio neto de Altan Khan. Foi
um movimento surpreendente e ousado. No sentido que assim seria melhor assegurada a aliança e compromisso dos
mongóis com Gelug. Mas ao mesmo tempo, propôs que um não-tibetano fosse a maior autoridade espiritual tibetana
que poderia gerar muitas críticas internas e de outras escolas budistas tibetanas. O menino passaria a se chamar
Yonten Gyatso (1589 - 1617). Yonten, portanto, se tornaria o 4º Dalai Lama. Mas sua ascensão não foi livre de
contestação no Tibete. E, para tanto, uma delegação mongol se dirigiu a Lhasa para se assegurar disso, sendo a
designação confirmada apenas em 1601. Ao assumir o cargo, Yonten teve que lidar com a delicada situação política
do Tibete, especialmente a liderança do líder de Tsang, na província ocidental central tibetana, e sua relação
tradicional com a escola Karma Kagyu, potenciais rivais da ordem de Gelug.
Yonten não viveu o suficiente para se assegurar, efetivamente, como um líder inconteste entre as comunidades
monásticas tibetanas, apesar de ter sido uma figura central para a projeção maior do budismo tibetano de Gelug entre
os mongóis. Em 1617, Yonten após meses de tratamento médico nas águas termais perto de Lhasa, veio a morrer
com apenas vinte e oito anos de idade. E com a morte de Yonten, o governante de Tsang, Karma Phuntsok Namgyal
(1587 -1620), aproveitou a situação de incerteza no Tibete Central e proclamou-se como rei do Tibete (1618 –
1620). E seguiram-se combates entre os monges e guerreiros das facções rivais. Muitos partidários de Gelug foram
mortos, a destacar na batalha nos domínios de Drepung. Mas se não fosse pela aliança com os mongóis, os Gelugs
certamente seriam derrotados pelo líder de Tsang e dos monges karmapas de Karma Kagyu. Este novo rei tibetano,
ao menos, emergiu como a única liderança tibetana da época que conseguiu se impor a todos, se bem que por um
breve período, sem a ajuda de nenhum exército estrangeiro. Pois tinha conseguido o apoio, anteriormente, das
escolas tibetanas Sakya, Nyingma e Jonang, as principais do Tibete (com exceção, naturalmente, de Gelug). Uma
vez no poder como soberano, começou a negociar com a ordem Gelug.
Mas havia muitos entre os Gelugs (chamados de gelugpas) que jamais aceitaram tal submissão. Phuntsok
representaria uma liderança opositora que submeteria os gelugpas a um status de apenas mais uma escola a ser
apoiada entre os tibetanos. E assim, os gelugpas buscaram rapidamente um 5º Dalai Lama a servir como líder dessa
resistência. Pois Phuntsok tinha expressamente proibido esses de nomearem um novo sucessor máximo espiritual
por razões políticas. O clima de tensão estava crescendo nas ruas de Lhasa. Em 1621, uma grande batalha nas ruas
foi evitada apenas com a atuação do Panchen Lama [683]. Este cargo lamaísta consistia no primeiro da linha dos lamas
tibetanos que supervisionaria a educação e ensino do Dalai Lama. Deveria ser um sábio de notável conhecimento e
atuaria como tutor e regente até a maioridade do Dalai. E igualmente seria sucedido por um designado renascido
(tuluk). A busca por um novo Dalai tinha ocorrido em segredo e tinham os gelugpas encontrado um menino de
famílias de aristocratas ricos, a família Zafor, de Tagtse, próximo dos túmulos dos antigos imperadores tibetanos
(tsenpos) ao sul de Lhasa. Convenientemente, o menino era uma grande aposta para maior prestígio e poder de
Gelug.
Aparentemente, quando houve o envio de monges do mosteiro Gelug de Drepung para confirmar se o menino da
família de Zafor era o renascido Dalai Lama, o menino falhou em atender às demandas e sinais determinantes de seu
destino. Mas os testes, seguidamente aplicados ao menino, eram mera formalidade, pois, ao final de repetidos
exames, a reconhecer objetos santos e memórias do lama antecessor, o menino foi eventualmente aprovado [684]. Que
mostrou ser uma decisão acertada, pois o jovem depois se mostrou inteligente e corajoso para sua nova função
espiritual como o 5º Dalai Lama, Lozang Gyatso (ou Lobsang Gyatso) (1617 - 1682). Seu apontamento, contudo,
gerou desconfiança entre os tibetanos rivais. E sua vida somente foi assegurada com a oferta dos mongóis em dar
refúgio a ele para longe de Lhasa, a se esconder numa fortaleza perto do lago Kokonor, embora essa oferta fosse
recusada pelas autoridades gelugpas. Ao final de alguns anos, afastada
a ameaça política de Phuntsok (que tinha adoecido em 1619) e seus partidários, o novo Dalai Lama pôde então se
dirigir ao palácio Ganden em Lhasa [685]. O Panchen Lama decidiu então ensinar ao jovem Lozang. E assim começou
uma tradição segundo o qual o Panchen Lama iria cuidar e ensinar os sucessivos Dalai Lamas, agindo como tutores
e preceptores quando em idade de menoridade. No seu processo de aprendizado, Lozang mostrou ser um voraz e
inquieto estudioso do budismo tibetano, inclusive de outras escolas e tradições além de Gelug advindos das obras de
Tsong Khapa. A tradição Nyingma, particularmente, interessou ao jovem lama pelos seus ensinamentos de magias.
Entre os mongóis, a paisagem política estava se inclinando para a dominação da nação Koshut, no início do
século 17. Tinham recentemente convertido ao budismo de Gelug, e seu líder era Güshi Khan (1582 - 1654) (fig.)
que guardava o ardor de um recém-convertido. Em 1637, Güshi chegou às fronteiras do Tibete, perto do lago
Kokonor, e depois resolveu visitar o Dalai Lama em Lhasa. Lozang ficou impressionado com o líder mongol e sua
obstinada e apaixonada devoção ao budismo. O encontro foi muito bem sucedido e os dois líderes cortejaram-se
com presentes e títulos. Ao khan foi concedido o título de “Rei Darma, Defensor dos Ensinamentos”. E foi
assegurada a lealdade do khan e dos mongóis ao máximo sacerdote budista tibetano.

Fig. - Güshi Khan, pintura no templo de Jokhang.

Lozang desejou guardar distância da vida política o quanto pôde, e decidiu nomear um governador tibetano sobre
quem concedeu o título de “Desi”. O Desi manteria contato e aliança com o khan e os mongóis e buscaria cumprir o
papel de designado político do Dalai Lama. E os contatos que o Desi realizou com o ambicioso Güshi Khan foi
crucial nas campanhas de conquista em nome do budismo de Gelug, nas regiões a leste do Tibete, que consolidou o
domínio sobre regiões rebeldes no Tibete Central, especialmente sobre os partidários de Tsang. O que foi uma
aposta arriscada, pois os mongóis eram temidos pela sua brutalidade e ferocidade em batalha que poderia pôr em
risco toda a sociedade tibetana caso as lealdades fugissem de controle. Mas a história nos mostrou que os mongóis
varreram o Tibete em 1641 em busca dos aliados ao governante de Tsang, que representava a mais evidente ameaça
aos gulegpas no Tibete.
Logo as tropas mongóis conseguiram fazer recuar as forças rebeldes tibetanas até uma fortaleza em Shigatse a
250 km a sudeste de Lhasa. Os pedidos de rendição e misericórdia começaram a chegar aos ouvidos do Desi que
propôs uma mediação do Dalai Lama. Quando os aliados de Tsang se renderam em abril de 1642, havia ficado claro
que a predominância Gelug sobre o Tibete estava assegurada. E assim, como reconhecimento, o 5º Dalai Lama
partiu para o encontro de Güshi [686]. Que resultou numa conjunção de grande significado histórico para selar a
aliança entre as duas nações. Restava como rebeldes no Tibete a essa aliança os monges da escola Karma Kagyu,
que foram sistematicamente massacrados por Güshi Khan. Os que conseguiram fugir foram para as montanhas ao
sul, no atual Butão. Após esses eventos, os mosteiros de Karma Kagyu foram convertidos para a tradição Gelug,
enquanto houve a desarticulação e aprisionamento de todos aqueles que discordassem dos gelugpas, incluindo os
monges da escola Nyingma, Sakya e Jonang. Todas as obras que contestassem os dogmas Gelug foram queimadas e
banidas.
Assim, em 1642, o 5º Dalai Lama se tornou o senhor absoluto, com o decisivo apoio mongol de Güshi Khan, de
todo o Tibete. E para legitimar-se no poder, buscou compilar uma história dos reis tibetanos, desde os tsenpos e a
aliança feita com Kublai Khan e Phagpa. Foi aconselhado ao Dalai Lama construir um novo e magnífico palácio
como residência em Lhasa, a fim de assegurar e impor sua figura sobre o centro político tibetano e que poderia
servir de fortaleza e refúgio aos gelugpas em tempos de crise. Em 1645, o 5º Dalai Lama então deixou sua antiga
residência no Palácio Ganden e mudou-se para o topo da colina Marpori, “Colina Vermelha”, onde estavam as
ruínas do antigo palácio do século 7º do tsenpo Songtsen Gampo. Para inaugurar o novo palácio a ser erguido, foram
feitas todas as devidas cerimônias, e com isso receberam de presente uma estátua do bodisatva Avalokiteshvara que
acabou sendo declarada como divindade patrona do Tibete. Assim foi inaugurado, a sobrepor-se sobre a fortaleza de
Shigatse, o Palácio Branco de Potala, repleto de simbolismos a representar o momento único em que o Tibete se
encontrava [687].
Na China, os eventos pareciam ser menos promissores. A Dinastia Ming tinha sucumbido à atuação de invasores
a partir do norte, os manchus. Em 1644, os cavaleiros dessa nação avançaram sem detenção para os vilarejos e
grandes cidades chinesas, realizando uma série de saques e destruições. Essa nova dinastia, novamente de
estrangeiros, passou a se chamar de Qing e governaria a China até o início do século 20. O Dalai Lama rapidamente
aproveitou a oportunidade e mandou uma mensagem ao novo imperador no trono chinês, Shunzhi (r. 1643 - 1661)
assinado por ele mesmo e seu aliado militar, Güshi Khan. Ficou claro, com isso, que o Dalai Lama buscou novo
relacionamento com os chineses, agora apoiado pela força militar mongol.
Os manchus já eram familiarizados com o budismo tibetano, e como os mongóis, tinham profundo respeito pela
figura dos lamas tibetanos. Em 1621, o fundador da dinastia manchu havia designado um lama para preceptor, e
havia até construído um templo para a divindade budista cultuada por Kublai Khan, Mahakala [688]. Assim, os
manchus buscaram estabelecer boas relações com os tibetanos, pois assim eles poderiam acalmar os mongóis aliados
aos tibetanos que poderiam fustigar as fronteiras chinesas. Em 1652, após vários convites feitos pela corte chinesa, o
5º Dalai Lama resolveu iniciar a longa jornada a Pequim, com uma numerosa e impressionante comitiva.
Ao se aproximar de Pequim, houve pequenos incidentes diplomáticos entre as partes a se encontrarem. Pois o
entusiasmo do imperador chinês, Shunzhi, era tamanho que gerou questionamentos com relação ao protocolo
imperial por parte de seus conselheiros. Em 1654, depois de dois anos de jornada, a comitiva tibetana finalmente
ingressou em Pequim. A cerimônia de recebimento foi profusamente elaborada e organizada, e os dois soberanos
sentaram-se lado a lado como iguais. Alguns meses depois de sua estadia, o Dalai Lama buscou convencer o
imperador e seus conselheiros de que precisava voltar aos assuntos no Tibete, mas retornando com a promessa de
fraternal aliança com as novas autoridades chinesas. A visita, em suma, serviu ao 5º Dalai para assegurar seu
relacionamento em pé de igualdade com a nova dinastia chinesa, ao mesmo tempo para propagar entre os chineses o
budismo de Gelug, assim como representar a aliança coesa estabelecido com os mongóis sob Güshi Khan. Foi um
grande trunfo político, religioso e diplomático do Dalai Lama.
Na volta a Lhasa, o Dalai, Lozang, encontrou-se numa posição de prestígio e poder. Vendo-se no poder e a
consolidar de vez a unidade tibetana, o lama procurou apaziguar antigas dissensões e rivalidades com as outras
ordens monásticas. Trouxe de volta à legalidade a escola Karma Kagyu, e chegou mesmo a nomear dois líderes
deles nas províncias meridionais, ficando esses apenas abaixo do Dalai na hierarquia espiritual. Mas havia alguns
dentro da própria escola Gelug que começaram a questionar a autoridade do mais alto lama no Tibete. Esses
partidários acharam que o verdadeiro 5º Dalai Lama deveria ter sido o abade de Drepung, Drakpa Gyaltsen (1619 -
1656). Na volta da China do Dalai Lama, esse abade havia sido encontrado morto, gerando revolta e suspeita entre
muitos tibetanos contrários ao status lamaísta. Após sua morte, o Desi (governador para assuntos políticos) proibiu a
busca pela sua reencarnação (tuluk). O Dalai Lama também teve que enfrentar as inquietações de outros mosteiros
Guleg pelo país, pois alguns se excederam nas comemorações do Festival da Grande Oração (Monlam), uma das
principais do país [689].
Com o avançar da idade, Lozang Gyatso, o 5º Dalai Lama procurou se dedicar cada vez mais aos assuntos
espirituais e estudos, delegando ao Desi o tratamento das questões mundanas, administrativas e políticas. Escreveu
sobre suas visões e interpretações acerca de figuras tibetanas como Padmasambhava, santo da tradição Nyingma.
Isso era sinal de que o lama passava cada vez mais tempo com adeptos dessa escola (nyingmapas), assim como as
suas obras. Um dos beneficiários dessa nova atitude do Dalai Lama foi a generosa doação para a construção de um
novo mosteiro Nyingma em Mindroling. E passou a encorajar o levantamento das obras e ensinamentos de Nyingma
a evitar que esses pudessem ser perdidos. Foi graças em boa parte aos esforços desse lama que a tradição Nyingma
conserva suas tradições conhecidas até os dias atuais no budismo tibetano.
O Dalai Lama também buscou convidar brâmanes, sacerdotes e estudiosos da Índia, pois tinha domínio do
sânscrito e buscou avidamente e com fascínio os ensinamentos originais de Buda e seus seguidores mais antigos. Os
muçulmanos no Tibete também se beneficiaram com a atitude mais universalista do lama, que chegou a ser
construída uma mesquita perto de Lhasa e essa comunidade poderia ser julgada em tribunal próprio a respeitar a sua
lei da shari’a. Quando veio a falecer em 1682, o 5º Dalai Lama tinha deixado o Tibete consolidado, unido e forte,
aberto - e confiante - às suas diversidades.
A morte do Dalai Lama trouxe certo desalento para o Tibete, e a confusão após sua morte ficou sob
responsabilidade do Desi, Sangye Gyatso (1653 - 1705), um antigo favorecido de Lozang, com apenas trinta anos de
idade. Foi no intento de preservar a ordem e estabilidade do Tibete após a morte do Dalai em 1682 que ele foi
responsável por um dos atos mais notáveis na história do Tibete. Por quinze anos, o Desi manteve a morte do Dalai
Lama em segredo. Por anos ele apenas informava que Lozang estava em retiro, a meditar, e que não desejava ser
perturbado. Ocasionalmente entrava em seus recintos particulares e tocava o sino e tambores, como se o lama
estivesse por lá presente. Em aparições públicas importantes, o Desi obrigou a um figurante atuar com suas vestes,
obrigando os tibetanos a aceitarem a presença discreta e distante do lama nas ocasiões, assim como a atender as
demandas mais diretas dos mongóis visitantes na capital [690].
A busca pelo próximo Dalai Lama continuou, enquanto isso. Perto das fronteiras com o Butão, na região de
Mon, recentemente conquistada pelos tibetanos com a ajuda dos mongóis, parecia oferecer uma ocasião interessante
de sucessor. A escolha de um menino de uma das poucas famílias nobres locais aliadas a Gelug foi estratégica.
Depois de ter sido confirmada a criança como sucessora (tulku) do 5º Dalai Lama, cujo nome dado foi Tsangyang
Gyatso (1683 - 1706) (“Oceano da Canção Divina”), a criança e seus pais foram transferidos para um local secreto e
seguro para o período de ensino e formação do novo Dalai Lama. Em Lhasa, o Desi tinha que governar o país em
período de transição durante o suposto “longo retiro” do 5º Dalai Lama. Seu segredo foi mantido até 1696, um ano
após a conclusão do Palácio Vermelho de Potala. E aos dezesseis anos de idade, foi anunciada a sucessão do 6º
Dalai Lama.
Esse novo lama era bem impressionante. Prometia ter todas as qualidades de um grande líder, e sua chegada a
Lhasa foi ocasião de grandes festas e reverência do povo tibetano. Na cerimônia de sucessão, em 1697, esteve
presente além do Desi, o novo líder dos mongóis aliados da nação Koshut, Lajang Khan (? - 1717), e milhares de
fiéis seguidores e da numerosa comunidade monástica tibetana. As notícias das novidades chegaram a Pequim,
agora sob o comando do imperador Kangxi (r. 1661 - 1722), um dos maiores estadistas da Dinastia Qing. E este não
ficou convencido depois que soube do ato de ocultamento da morte do antigo Dalai Lama e o apontamento tardio de
um novo sucessor [691]. Houve também contestação de algumas lideranças mongóis, que alimentavam o desejo de ter
um lama mongol na sucessão.
Assim, o Desi teve que lidar com o pior dos mundos. O 6º Dalai ainda era jovem, inexperiente e começou a
apresentar um comportamento errático, não condizente com o que se esperava de um Dalai Lama. Mostrou-se
irascível e rebelde nos estudos e era entusiasta do arco e flecha e da montaria a cavalo. Depois de ter sido
pressionado a mudar e buscar uma formação mais adequada com o Panchen Lama, Tsangyang rebelou-se e
renunciou aos votos monásticos e fugiu para o mosteiro de Tashilhunpo. O que foi um desastre, pois todos os lamas
deveriam ser monges, mesmo aqueles à frente da hierarquia de Gelug. O novo Dalai Lama tinha começado a sair à
noite, a ficar bêbado com amigos e mulheres em público. E com esse novo senso de liberdade, já em idade adulta,
Tsangyang começou a se vestir como um nobre rico, com tecidos azuis finos e brocado, anéis, joias e com cabelo
comprido, mesmo dentro dos confinamentos de Potala [692]. Ele também começou a escrever poemas que depois se
tornaram célebres pela sua qualidade dos versos. O relacionamento com o Desi e o Dalai Lama começou a ir de mal
para pior. Depois de uma malsucedida tentativa de matar um de seus amigos o Desi, Sangye Gyatso, decidiu retirar-
se da vida política em 1703 e passou seu cargo para seu filho, Ngawang Rinchen. E começou a se dedicar aos
estudos acadêmicos de sua vasta erudição, inclusive chegando a fundar uma escola de medicina e astrologia em
Chagpori (“Montanha de Ferro”), e a cultuar a memória do 5º Dalai Lama.
Mas Sangye Gyatso ainda permaneceu atrás do jogo de poder tibetano, mesmo com sua aposentadoria anunciada.
Isso acarretou em consequências cada vez mais nefastas para a estabilidade do Tibete no início do século 18. A
sucessão problemática e o comportamento rebelde do 6º Dalai Lama parecem ter esgotado a paciência do líder
mongol, Lajang Khan, que buscou reivindicar maior poder sobre os tibetanos e aos budistas mongóis. As rusgas com
Sangye logo se tornaram manifestas, pois houve até um plano (fracassado) deste para envenenar o líder dos koshuts
mongóis. Para tentar apaziguar os ânimos, o 6º Dalai convocou um conselho. E neste ficou decidido, para o bem do
futuro tibetano, que Sangye se retiraria efetivamente das decisões do poder e que Lajang voltaria para suas terras, na
região do lago Kokonor, embora pudesse manter o simbólico título de “Rei do Tibete”, conforme reivindicava. Mas
parece que os tibetanos subestimaram a ambição de Lajang, pois este se retirou com suas tropas para o norte, e lá
juntou mais de seus soldados e depois marchou em massivo número para ocupar Lhasa. Sangye, desesperado,
buscou reunir o que conseguiu diante do temido exército mongol. Fora inútil, o pânico se alastrou pela cidade e as
tropas da Sangye foram facilmente derrotadas em 1705. Sangye seguiu desmoralizado para o exílio, mas pouco
depois foi convocado de volta por uma das esposas de Lajang, Tsering Tashi, ela mesma uma talentosa comandante
dos batalhões mongóis. Esta alimentava um duradouro ódio pelo antigo Desi tibetano, no que resultou na sua morte
por decapitação em setembro de 1705 [693].
Lajang começou a se tornar senhor absoluto do Tibete, a valer-se de seu título. Mas não houve a lealdade
esperada pelo 6º Dalai Lama, que passou a ser considerado como um rebelde incômodo e rival. Mas Lajang sabia
também da importância de preservar uma figura como o Dalai Lama, para muitos tibetanos e mongóis. Assim,
tentando articular uma nova frente para tentar enfraquecer o Dalai Lama, buscou manifestar por carta, um
compromisso do imperador chinês, Kangxi. E este correspondeu com seu apoio, pois antes se preocupava com as
ameaças mongóis em suas fronteiras. Como segundo passo, Lajang passou então a buscar uma figura aliada de
Gelug, a manter a estrutura dos mosteiros tibetanos. Obteve, talvez por medo e temor, o assentimento de vários
abades tibetanos. Assim, Lajang, com esse aval monástico, revestido de legalidade espiritual, enviou suas tropas
para o Palácio do Potala onde capturaram o Dalai Lama e o fizeram refém num acampamento mongol nos arredores
de Lhasa. Depois de alguns dias, o destacamento mongol responsável pela custódia do Dalai Lama partiu numa dura
viagem a Pequim. Houve resistência por parte da população, de monges e, notavelmente, do mosteiro e fortaleza de
Drepung, mas nada fez frente às ofensivas de canhão dos mongóis. Foi durante a viagem a Pequim que o cativo 6º
Dalai Lama, Tsangyang, adoeceu e desapareceu perto da fronteira com o território mongol, hoje perto da cidade de
Xining [694]. Ele tinha apenas vinte e quatro anos de idade, isso em novembro de 1706. Alguns anos depois, o 7º
Dalai Lama foi reconhecido no distrito tibetano oriental de Litang. Mas muitos tibetanos não se conformaram com a
brutalidade do destino de Tsangyang.
O 7º Dalai Lama serviu às intenções de Lajang de se firmar no poder, que geraram revoltas e insubordinações
entre os tibetanos. A situação política tibetana era frágil e tensa. E Lajang dependia e muito da aliança feito com o
imperador chinês Kangxi. E de Pequim veio um assistente manchu a manter um olho em Lajang e reportar a
situação tibetana. Este conseguiu realizar a sua missão primordial, a de desenhar um mapa do Tibete para futura
reorganização da região a ser inserida no império chinês. Os desenhos feitos depois foram entregues, na corte
manchu, a alguns jesuítas de sua corte (levados em grande estima pelo imperador) que usaram esses desenhos
esboçados para elaborarem um atlas geográfico da Ásia e da China, apresentado ao imperador Kangxi e publicado
em 1718. No mapa, o Tibete já apareceu incluído como parte da China.
As relações entre Tibete e missionários cristãos começaram a ser notadas no início do século 18. Em 1716, uma
missão jesuíta liderada pelo padre italiano Ippolito Desideri (1684 - 1733) chegou à Lhasa. Lajang, aparentemente,
ficou feliz em ter novos contatos na arena política e mostrou-se receptivo e curioso a respeito das doutrinas cristãs.
Houve missões cristãs no Tibete anteriormente, desde o século 17. Mas tiveram poucos convertidos e efeitos
políticos. Desideri foi o mais influente deles, e é dele a melhor descrição do Tibete feito por um europeu da época.
O novo Dalai Lama, o 7º, identificado em Litang, nas regiões a leste do Tibete, animou a comunidade budista
tibetana. Mas Lajang temeu por esse novo sucessor, e foi tentar buscar o menino em Litang. Mas antes, o tuluk havia
fugido em segurança com seus pais para a região de Derge, onde conseguiram garantir-lhe segurança e abrigo até a
sua maioridade. Ficou demonstrado que os monges da escola de Gelug não estavam plenamente confiantes nos
planos de Lajang, e isso também despertou a desconfiança de Kangxi que buscou acompanhar a situação do novo
Dalai Lama de perto para futuras ocasiões políticas. Lajang começou a ser desconsiderado cada vez mais pelas
instituições tibetanas, e alguns começaram a planejar sua queda do poder e mesmo sua morte. Outros aliados
fundamentais para isso seriam outros mongóis, fiéis e dedicados budistas da escola Gelug e apoiadores do 7º Dalai
Lama: o povo junghar ou dzungar.
Foram esses mongóis que, com o apoio de monges treinados nas regiões setentrionais do Tibete, cavalgaram e
ocuparam Lhasa em 1717. Os junghars entraram na capital dizendo trazer o novo Dalai Lama, para o entusiasmo
geral, e propagado pelos mosteiros de Gelug. Em momento derradeiro, cercaram Lajang no Palácio de Potala e, nos
conflitos subsequentes, o velho khan chegou a morrer ao tentar empreender fuga a cavalo. Agora, os junghars
tinham Lhasa sob controle. Que resultou numa decepção aos gelugpas, pois esses mongóis mostraram-se
indecentemente atrozes sobre os tibetanos e suas propriedades em 1718. Somou-se a isso uma intolerância religiosa
contra todos aqueles considerados pelo fervor budista Gelug dos mongóis como hereges, e isso caiu sobre todos
aqueles mosteiros contrários, especialmente os heterodoxos e praticantes de Nyingma e sobre o mosteiro de
Mindroling. As estátuas de Padmasambhava, fundador da ordem, foi alvo bastante visado e destruído quando achado
pelos mongóis junghars na época. E qualquer monge ou lama que se mostrasse inadequado comportamento era
alvejado nessa espécie de inquisição religiosa tibetana.
A ocupação dos junghars de Lhasa, portanto, estava tornando-se insustentável. Em Pequim, Kangxi buscou então
enviar suas tropas contra os junghars, pois o imperador chinês tinha ouvido da morte de Lajang e sobre a temeridade
do 7º Dalai Lama a ser usado como figura espiritual a consolidar sua dominação sobre o Tibete. Nesse sentido,
Kangxi reconheceu o menino, que tinha doze anos à época, como o novo Dalai Lama, e este logo partiu junto com
um destacamento militar manchu em direção a Lhasa. A expulsão dos junghars da capital tibetana em 1720 trouxe,
pois, um alívio para a população em geral, após anos de saques e abusos. Em outubro, uma grande procissão com o
Dalai Lama entrou pelos portões do Palácio de Potala. Após o vergonhoso episódio do ocultamento da morte do 5º
Dalai Lama, as incertezas sobre o 6º e 7º, e as atrocidades cometidas pelos junghars sobre Lhasa e a morte infame de
Lajang em Potala, parecia que havia perspectivas de paz e de nova ordem sobre o Tibete a partir de 1720.
Para buscar inserir o Tibete de vez no império chinês, Kangxi mandou reforços administrativos e financeiros
para reconstruir a nação. O Palácio de Potala foi reformado e ampliado, após os embates que resultaram na morte de
Lajang, e a receber o 7º Dalai. Reorganizaram-se as províncias tibetanas, sendo que as mais ao norte, em Amdo,
passaram a ser parte da província chinesa de Qinghai. E as mais orientais do Tibete, em Kham, foi absorvida pela
província de Sichuan. Nas reformas administrativas, o Dalai Lama ocuparia um cargo a ser supervisionado por um
conselho de três ministros, esvaziando seu poder efetivo político. E um representante do governo chinês, embora não
integrante desse conselho máximo, Pholhane (1689 - 1747), foi figura primordial em tentar reparar os estragos nos
mosteiros Nyingma destruídos pelos junghars.
Uma mudança chinesa adveio com o falecimento de Kangxi em 1722. O novo imperador manchu, Yongzheng (r.
1722 - 1735), apresentou pouco interesse em revitalizar o Tibete, ordenando a redução da guarnição chinesa no país.
E disso ficou evidenciado o papel de Pholhane, que buscou reprimir de vez os rebeldes mongóis no Tibete. Também
foi este que buscou uma política mais tolerante com relação às diversas ordens religiosas tibetanas, ignorando os
apelos de intolerância dos gelugpas endossadas pelo Dalai Lama. Sua habilidade política o impediu de ser
assassinado pelos seus opositores, incluindo alguns ministros do conselho mais poderoso no Tibete. Mas foram anos
difíceis e instáveis, com fartas trocas de acusações e agressões.
Ao Dalai Lama, restou ser apenas uma figura de menor expressão política, inclusive foi sugerido pelas
autoridades chinesas que este deveria residir nas regiões orientais, em Litang, seu local de origem, para fugir das
vicissitudes políticas em Lhasa. A figura do Panchen Lama tornou-se mais poderosa nas regiões de Tsang e
ocidentais, almejando os chineses buscar um contrapeso às regiões dominadas pelo Dalai Lama. E o novo imperador
chinês nomeou dois oficiais manchus, chamados de ambans, para residir em Lhasa e supervisionar essas mudanças
políticas. Esses dois residentes foram depois alvo de numerosos protestos tibetanos, alentados pela morte do filho e
sucessor de Pholhane, Gyurme Namgyal (? - 1750), que tinha questionado a política chinesa com relação à escola
Gelug. Como resultado, os dois ambans morreram, um nas mãos da turba revoltada e outro por suicídio. A
consequência disso foi inevitável e implacável. O imperador chinês mandou um exército para Lhasa e os líderes
rebeldes envolvidos na morte dos representantes manchus foram duramente julgados e executados em público. Foi
proposta, desde 1721, uma nova instância de poder máximo, agora composto pelo 7º Dalai Lama, como chefe de
governo, a acalmar os ânimos tibetanos, mas com um conselho de quatro ministros a cuidar da administração e
poder no país, chamado de Kashag [695].
Em suma, o Tibete estava sendo dividido e administrado cada vez mais no intento imperial chinês em meados do
século 18. As regiões orientais tibetanas se tornaram reinos independentes, como Derge e Nangchen. O domínio do
Dalai Lama se limitou à região central tibetana de U. No aspecto administrativo, o Tibete seria administrado por
membros do Kashag, com a presença do Dalai Lama, que ainda detinha certa autoridade em assuntos religiosos,
culturais e linguísticos, além de terem os tibetanos isenção fiscal aos cofres imperiais chineses. Os ambans
continuariam a atuar na política tibetana como observadores para a corte em Pequim. Mas a soberania plena do
Tibete, nessa nova fase, foi irremediavelmente limitada e desfigurada frente às autoridades imperiais chinesas.
***
O 5º Panchen Lama, Lozang Palden Yeshe (1738 - 1780), passou a reunir para si uma importante função no
Tibete após as reformas administrativas feitas nas primeiras décadas do século 18. Pois o Dalai Lama foi relegado a
um papel mais espiritual, e foi retirado mais para as províncias orientais. O Panchen, ao contrário, seria aquele que
lidaria com as questões de estado e política externa, além de ter certa influência nas decisões políticas juntamente
com um conselho governante, o Kashag, e a ser submetido aos relatórios dos ambans enviados pelas autoridades
chinesas. Foi, pois, nesse contexto que havia despertado o interesse do governador britânico da Companhia das
Índias Orientais Britânicas em Calcutá, Warren Hastings (g. 1774 - 1785), em corresponder com o lama a fim de
sondar as possibilidades de comércio e de boas relações políticas. Os britânicos tinham, recentemente, mandado
tropas para o reino de Butão e estabelecido o controle sobre essa região fronteiriça com o Tibete em 1774 [696].
Como enviados ao reino tibetano, saindo de Calcutá, Hastings mandou um escocês que era seu secretário
particular, George Bogle (1746 - 1781), e com ele iriam acompanhados dois asiáticos, Pema, um tibetano já
habituado às línguas e costumes do Tibete, e um indiano chamado Purangir, um veterano viajante comercial e
religioso. Embora ambos fossem devotos de Xiva, e não budistas, esses poderiam se corresponder com a
comunidade de seus correligionários residentes no mosteiro de Tashilhunpo, perto da residência do Panchen Lama.
Bogle, ao contrário, tinha quase nada de informação e experiência sobre o Tibete, mas era um aventureiro nato,
entusiasta do montanhismo, e ávido leitor dos relatos dos jesuítas feitos sobre o Tibete escritos algumas décadas
antes. Assim, essa comitiva começou a avançar a partir de Calcutá para o norte, ao longo do rio Hugli, até chegar a
ascender às terras altas do Butão.
O Panchen Lama então, via enviados, ficou ciente da missão britânica e buscou informar o 8º Dalai Lama,
Jamphel Gyatso (1758 - 1804), a respeito dos eventos. Esse regente espiritual prontamente rejeitou tal missão, pois
informações tinham chegado a ele de que a Companhia Britânica buscava apenas o enriquecimento e poder, que era
afeito à guerra e conquista. Além do mais, o Tibete deveria respeitar acordo feito com as autoridades chinesas, que
proibiam qualquer presença estrangeira no Tibete, especialmente afegãos, indianos e europeus, sem a devida
autorização prévia imperial. Assim, Bogle, recebendo tal negativa, mandou então seus dois companheiros para ir
adiante como viajantes religiosos a tentar convencer o Panchen Lama da missão britânica. No que parece que foram
bem sucedidos, pois os dois retornaram ao Butão e depois Bogle pôde enfim encontrar-se com o Panchen (fig.).

Fig. – O Ocidente entra no reino tibetano. Encontro de George Bogle e o 5º Panchen Lama no templo de Tashilhunpo.

O encontro foi marcado por grande entusiasmo e curiosidades de ambos os lados. O Panchen, estudioso como era
da tradição de seus lamas, conversou extensamente na língua hindi, que Bogle tinha aprendido nos seus anos na
Índia. As perguntas do Panchen foram desde sobre a nação e cultura do país natal de Bogle, até o governo e religião.
Sobre este último aspecto, Bogle respondeu que os britânicos eram em parte parecidos com os padres jesuítas
conhecidos nos anais tibetanos, mas que não eram intolerantes e fervorosos adoradores da cruz e de Cristo (em
tibetano, referiam-se como “criss”). Ao final das discussões, e Bogle ciente da delicadeza do assunto, o Panchen
declarou que todos, em último momento, respeitam e adoram o mesmo Deus, mas sob diferentes nomes e maneiras.
Quanto aos assuntos mais mundanos, Bogle teve pouco sucesso em firmar acordos comerciais com o Tibete.
Panchen Lama era um político perspicaz e não desejava perturbar o conselho governante no Tibete, e muito menos o
imperador em Pequim. A bem da verdade, o encontro serviu mais aos propósitos do Panchen, pois este se interou
depois com as informações colhidas dos dois acompanhantes de Bogle a respeito da Índia e dos britânicos. Além do
mais, conseguiu consagrar um templo budista tibetano às margens do rio Hugli, em Calcutá, o Bhot Bhagan
(“Jardim do Tibete”), a servir de hospedaria para os peregrinos e viajantes tibetanos na Índia.
O Panchen Lama seria importunado mais vezes por dignitários estrangeiros. Mas dessa vez os assuntos iam
muito além de curiosidades. O imperador da China, Qianlong (r. 1735 - 1796), mostrou interesse incomum ao
budismo tibetano, a considerar pela devoção de sua mãe pela religião. Foi pródigo nos estudos tibetanos e
patrocinou a fundação de inúmeros templos Gelug, incluindo o famoso templo Yonghegong, “Templo Lama”, em
Pequim. Financiou um magnífico projeto que resultou na coleção canônica tibetana, conhecida hoje como a “Edição
Qianlong”. Obviamente, o entusiasmo do imperador tinha também conotações políticas. Sabia que ao promover o
budismo tibetano, acabaria apaziguando os ânimos dos mongóis e tibetanos, de uma só vez, e poderia ser
considerado por esses como um “rei darma”, um regente exemplar e defensor das leis e da fé budista. E nesse
espírito o imperador fez um convite para o lama para as celebrações de seus setenta anos. O Panchen sentiu-se
honrado, mas sabia dos custos e riscos da longa viagem até Pequim.
Assim que Qianlong soube da aceitação de Panchen Lama a fazer a jornada, preparou generosamente os
preparativos para a sua visita. A sua estadia seria renovada, no templo em que ficou hospedado o 4º Dalai Lama
quando em Pequim. E também foi erguido em Chengde, a nordeste da capital, uma réplica do mosteiro de
Tashilhunpo, o do próprio Panchen Lama no Tibete [697]. Em 1779, o Panchen Lama e sua comitiva iniciaram a
jornada. Na comitiva foi acompanhado por um séquito de serventes, cozinheiros, soldados, marceneiros, monges,
carregadores, médicos e astrólogos. Um desses era o irmão do lama, Trungpa, ele mesmo um lama de outra ordem
monástica. E toda vez que esse enorme grupo parava, atraía multidões de fiéis a receber as bênçãos. Em Kumbum,
na região de Amdo, o Panchen Lama encontrou-se com um dos acompanhantes de George Bogle, Purangir, e este
pleiteou junto ao lama para defender os interesses de maior abertura comercial chinesa aos britânicos na Índia. E,
passado o rigor do inverno de 1779 a 1780, iniciaram a jornada novamente rumo a Pequim, atravessando os desertos
da Mongólia Interior e das regiões setentrionais chinesas. Nessas regiões, a varíola era especialmente temida pelos
viajantes. Os chineses já tinham a tradição de inoculação para a doença e assim boa parte da comitiva tibetana se
preveniu. Mas o Panchen Lama, considerado como emanação do buda Amitaba [698], foi considerado imune.
Ao chegar perto de Chengde, antes da entrada na capital imperial, Panchen Lama foi efusivamente recebido, com
inúmeros chineses, ao longo de seu caminho, a se prostrarem no chão conforme os costumes tibetanos. Então, o
Panchen chegou, após alguns dias, perto de Pequim. Na ocasião, foi polidamente colocado numa das liteiras do
próprio imperador, a ser carregado dessa maneira pelos portões e pátios da Cidade Proibida. De acordo com os
relatos de Purangir, o imperador, ao recebê-lo, pegou em uma das suas mãos a servir de apoio, e o indicou para
sentar ao seu lado, como igual.
Seguiram-se semanas de festividades, banquetes e apresentações teatrais na capital. E o Panchen recebeu um
fluxo inumerável de visitantes e fiéis budistas, todos curiosos e a venerar a sua figura. A cumprir a promessa feita a
Purangir, mencionou as intenções britânicas de Hastings aos ouvidos do imperador Qianlong. Que prometeu
escrever uma carta imperial ao governador britânico na Índia para ser carregada pessoalmente pelo Panchen Lama
no seu retorno ao Tibete. Mas essa volta nunca ocorreu, pois o lama começou a se sentir doente, fraco e sem fome,
nos meses seguintes em Pequim. Certo dia, exausto e prostrado no seu leito, começou a sentir dores de cabeça e
algumas manchas vermelhas apareceram na sua pele. O Panchen Lama havia contraído varíola.
O imperador Qianlong, tão logo ficou sabendo da enfermidade, mandou seus melhores médicos, e o imperador
chegou mesmo a se sentar ao lado do lama a segurar sua mão. No quarto dia acamado, assolado pela varíola, o
Panchen Lama pediu aos seus atendentes, incluindo Purangir que estava presente e narrou a cena, que orassem em
seu quarto. No próximo dia, encostado na parede e numa posição de meditação, o Panchen Lama morreu em 2 de
novembro de 1780, aos quarenta e dois anos de idade. O imperador chinês, sentindo-se imensamente culpado,
mandou rapidamente colocar o corpo [699] num caixão ricamente decorado e cheio de ervas aromáticas, e ordenou a
construção de uma estupa dourada no Tibete para abrigar seu corpo.
A generosidade de Qianlong com os ritos fúnebres do Panchen Lama foi muito além. E isso teve consequências
de longo alcance das relações entre o Tibete e o reino do Nepal, nos Himalaias. Depois de dois meses de espera e
preparativos, o cortejo fúnebre voltou a se dirigir ao Tibete. A acompanhar essa viagem estavam valiosos presentes
que o imperador tinha dado ao Panchen e à sua família. Quem supervisionou toda a viagem de volta foi o irmão do
Panchen falecido, Trungpa, ele mesmo um tulku de um lama de outra seita budista tibetana. Outros membros da sua
família também eram tulkus de diversos lamas, ou seja, reencarnações. Um desses irmãos, era o 10º Shamarpa,
Mipam Chodrup Gyamtso (1742 – 1793), lama da escola Karma Kagyu, chamado de Lama da Coroa Vermelha,
influente escola tibetana que somente perdia para Gelug. Havia ainda uma sobrinha do Panchen Lama que foi
reconhecida como tulku de Dorje Pagmo, única linha feminina de lamas reencarnados no Tibete, e terceira na
hierarquia espiritual no Tibete, apenas abaixo do Dalai e do Panchen [700].
Quando os presentes foram dados à Trungpa e este tinha chegado ao Tibete em 1780, o irmão do Panchen
falecido decidiu guardar os presentes, como tesoureiro, no mosteiro favorito do irmão, em Tashilhunpo. Mas os
outros irmãos de Panchen, como o Shamarpa, argumentaram que os presentes eram da família, e não do templo e
ordem monástica destinada, passando a reivindicar sua parte. Com a recusa de Trungpa diante das demandas do
Sharmapa, este passou a conclamar os seus monges para apoiá-lo na invasão de Tashilhunpo, a levar sua parte dos
presentes. Ato este que se revelou precipitado, pois muitas das autoridades tibetanas reprovaram sua atitude,
desgastando ainda mais as relações entre a sua ordem religiosa com a da escola Gelug no poder e no comando de
Tashilhunpo. Seguiu-se a detenção e aprisionamento do 10º Shamarpa que foi colocado numa cela de seu mosteiro.
Vendo-se sem maiores opções no Tibete, o prisioneiro fugiu com ajuda de alguns de seus monges para o Nepal,
onde poderia ter melhor recepção, tradicionalmente um reino com governantes patrocinadores da escola Karma
Kagyu do Sharmapa. Recentemente, o Nepal havia sido conquistado pelos temidos gurkhas, que já tinham feito sua
fama e ferocidade sobre a província indiana de Sikkim e ajudado os butaneses numa ofensiva que tinha resultado na
visita de George Bogle ao Tibete. Era apenas uma questão de tempo os gurkhas voltarem-se contra o Tibete, pois
vários incidentes de fronteira já haviam ocorridos nos anos anteriores. Assim em 1788, o 10º Shamarpa apareceu no
Nepal e foi ao governante gurkha relatar seus problemas com relação ao tesouro em Tashilhunpo. Resultou disso
uma carta dos gurkhas ao conselho tibetano (Kashag) em Lhasa, afirmando, astutamente, que o líder tibetano
refugiado na verdade fora sequestrado até a entrega de parte dos presentes dados por Qianlong. O que gerou pouco
efeito no conselho tibetano, pois desconfiaram do Sharmapa e sabiam que este tinha ido ao Nepal de bom grado. As
relações entre o Sharmapa e os nepaleses remetem à desconfiança desses com relação à aliança feita entre os de
Gelug e os chineses e mongóis, que vinha se consolidando há séculos. E havia uma comunidade de budistas
nepaleses da ordem Karma Kagyu, no vale de Katmandu, chamados de bajracharyas que cultuavam em torno do
complexo de templos budistas sagrados de Swayambhu (Swayambhunath).
Na sequência da recusa do conselho tibetano aos termos da carta enviada pelo governo gurkha, o exército desses
avançou ao longo da fronteira com o Tibete através de Kuti em 1788, pilhando e saqueando impiedosamente os
locais. À medida que os gurkhas foram se aproximando de Tashilhunpo, Trungpa, desesperado, foi para Lhasa junto
com um tulku renascido do Panchen Lama, o sétimo deles, de apenas seis anos de idade, a solicitar maior empenho e
força na defesa. Ao mesmo tempo, os ambans em Lhasa reportaram para Qianlong sobre os eventos, que decidiu
enviar seu exército para a fronteira, pois o imperador chinês não tinha interesse na guerra na região, mas sim uma
paz a estabilizar suas fronteiras. Isso encorajou os dois lados oponentes a começarem a negociar acordos que
resultou num pagamento anual como tributo, dos tibetanos aos gurkhas nepaleses, conforme o Tratado de Kerung de
1789 [701]. Mas o acordo durou apenas mais alguns anos, pois depois os tibetanos deixaram de pagar os valores. E
numa tentativa de segundo acordo na fronteira dos dois países, alguns tibetanos foram capturados e os gurkhas
avançaram novamente. Dessa vez chegaram ao mosteiro de Tashilhunpo e saquearam o tesouro ali guardado em
1791. As autoridades em Lhasa começaram a temer pelo futuro. Mas parece que o destino foi favorável aos
tibetanos a partir daqui, pois houve um surto de doenças entre as fileiras nepalesas, e esses não conseguiram avançar
muito além de Tashilhunpo com os tesouros saqueados.
No mesmo instante, começaram a chegar as tropas chinesas. Qianlong tinha enviado um dos seus mais talentosos
generais à frente do batalhão e os gurkhas foram combatidos junto à fronteira tibetana. Assim, os gurkhas pediram
ajuda dos britânicos na Índia, mas de nada adiantou. Os nepaleses foram derrotados em 1792. Todo o tesouro
roubado foi recuperado pelos chineses e carregado de volta para o Tibete nas costas de carregadores através da
passagem de Kuti. Embora a ofensiva gurkha tenha sido notável e desmoralizante para os tibetanos, os chineses de
Qianlong foram impressionantes, e tinham demonstrado claramente a presença imperial na região. Sobre o 10º
Sharmapa, ele fora encontrado morto nos eventos da guerra e o governo tibetano aprovou uma lei que proibiu o
reconhecimento dos sucessores (tulkus) espirituais dos Karma Kagyu dos sharmapas.
Novos acordos foram assinados, sob os auspícios de Qianlong, entre o Nepal e Tibete em 1792. Além do Tibete,
o Nepal passaria a ser vassalo do império chinês. Além do mais, deveriam os nepaleses pagar os prejuízos causados
pela guerra aos tibetanos. E aos tibetanos, Qianlong buscou reformular a política de sucessão e indicação dos lamas
de maior hierarquia, introduzindo a prática de escolha do próximo lama, das diversas escolas monásticas, por meio
de uma urna colocada à frente do templo de Jokhang contendo os nomes dos tulkus (escrito em chinês, tibetano e
manchu) a serem escolhidos pelo acaso. Assim, Qianlong desejava romper favoritismos junto a algumas famílias
tradicionais tibetanas. E todos os lamas deveriam se submeter à autoridade espiritual do Dalai Lama da escola
Gelug. Ademais, de agora em diante, a entrada de estrangeiros e militares no Tibete seriam rigorosamente proibidas
pelas autoridades em Pequim.
Mas nem tudo parecia perdido no Tibete. O século 19 testemunhou um renascimento cultural numa de suas
províncias orientais, na região de Kham, no reino de Derge. A região de Kham (mapa) já tinha uma tradição de
mosteiros e muito dos melhores estudantes do Tibete vieram dessa região, repleta de retiros e locais sagrados em que
grandes mestres espirituais meditaram. O maior herói khampa (pessoa de Kham) foi uma figura guerreira lendária,
chamado de Gesar, e foram suas façanhas que os bardos cantaram, durante séculos. O reino de Derge localizava-se
no centro dessa região, regida por uma linha de governantes que remetia suas origens ao século 7º. No século 13,
durante a era de Kublai Khan, os reis de Derge se converteram ao budismo tibetano da escola de Sakya. Mas Derge
sempre buscou preservar um ambiente de pluralidade e convivência religiosa e cultural, entre as escolas tibetanas de
Sakya, Gelug, Nyingma, Karma Kagyu e Bon. Esse cenário vibrante no reino mudou com as guerras sectárias no
Tibete nos séculos 16 e 17, em que os aderentes de Karma Kagyu combateram os de Gelug, destruindo a unidade e
autoridade central no Tibete. Com a vitória Gelug, os mosteiros dessa ordem passaram a predominar e determinar a
política cultural e religiosa do Tibete Central. Em Derge, contudo, foi preservada a tolerância religiosa entre as
escolas budistas e muitos monges e estudiosos se refugiaram nesse reino tibetano oriental. Com as vitórias dos
mongóis em cima dos adeptos de Karma Kagyu (karmapas), esses seguiram o mesmo rumo, e um grande mosteiro,
Palpung, dessa vertente foi construído em Derge por um tulku do lama da ordem, referido como o 8º Tai Situ.
Mapa - Região de Kham destacada, e a cidade de Derge.

Esse líder acabou se tornando num dos maiores eruditos tibetanos, com múltiplos talentos literários e artísticos.
Pelo seu conhecimento do sânscrito, o lama também era referido como Pandit, “O Grande Pandita”, ou Situ Panchen
(1700 – 1774). Esse sábio acabou se tornando mestre e tutor da corte de Derge e do rei, Tenpa Tsering (1678 -
1738). Foi dessa relação que o regente de Derge buscou estudar todas as grandes tradições budistas tibetanas, e a
reunir e compilar todas as obras em seu reino. Pelo seu ardor e brilho, Tenpa Tsering, muitas vezes foi considerado
como um “Segundo Songtsen Gampo”. Quando os manchus perseguiram os mongóis para fora do Tibete em 1720, a
parte oriental tibetana foi separada das partes ocidentais, e as autoridade chinesas começaram a tratar Derge como
uma zona tampão, entre os tibetanos e os chineses, além de ser uma passagem importante de comércio entre as duas
nações. Os chineses então, a buscar um aliado poderoso e estável na região, nomearam Tenpa Tsering como o mais
alto cargo em Kham, “Guardião da Paz” [702]. E o regente manteve o seu papel, a paz no reino e o fluxo comercial
seguro entre a China e o Tibete.
Isso também se refletiu no campo religioso que foi ameaçado com a intolerância de autoridades tibetanas Gelug e
que tinham ambições de predominar no Tibete oriental. Muito dessa ambição veio de um monge Gelug representado
na corte chinesa em Pequim, chamado Changkya Rolpai Dorje (1717 - 1786) (fig.). Aproveitando-se das suas
estreitas ligações com as autoridades chinesas, Changkya buscou afirmar a autoridade religiosa na região. E assim
boa parte das escolas Bon foi perseguida. Mas os regentes de Derge passaram a proteger essa escola, assim como
foram em defesa da vertente Nyingma, pelo respeito da família real de Derge ao famoso eremita Jigme Lingpa (1729
- 1798). Para manter viva a tradição Nyingma, o eremita concordou em enviar para Derge um de seus melhores
alunos, Dodrupchen (1745 - 1821), tornando-se este tutor da família real Derge.

Fig. - Changkya Rolpai Dorje.

A morte do rei de Derge da época trouxe incertezas sobre a região, e os tradicionalmente favorecidos monges de
Sakya reagiram ao favoritismo apresentado nos últimos anos dado aos Nyingmas. Mas a rainha regente, Tsewang
Lhamo (? - 1812) insistiu em buscar a livre expressão e a defender a diversidade do budismo tibetano, tal como
tinham feito seus antecessores reais em Derge [703]. Ameaçada de vida por seus opositores, políticos e religiosos, a
rainha fugiu em 1789 para o exílio, junto com seu filho e o seu tutor, Dodrupchen e vários lamas Nyingmas. A
rainha morreu em 1812, exilada.
As esperanças de um reino Derge como bastião da vibrante cultura e cenário religioso tibetano pareciam
sombrias no início do século 19. Mas o aparecimento de um grande estudioso, nascido em 1820, e batizado com o
nome religioso de Jamyang Khyentse Wanpo (1820–1892) (fig.), trouxe novo sopro de esperança para o
renascimento cultural tibetano. Quando jovem, Khyentse buscou estudar em vários mosteiros budistas em Derge, a
iniciar nas instruções de Sakya, mas depois indo atender à sua predileção pelos fascínios da seita Nyingma indo
estudar no mosteiro de Mindroling. Depois de alguns anos, partiu em busca de outros sábios pelo Tibete, visitando
vários mosteiros e locais sagrados. Aos vinte e poucos anos, sonhava em estudar e reunir todas as tradições budistas
tibetanas, incluindo as ricas tradições tântricas e da religiosidade popular de Bonpo. Foi depois de treze anos atrás
desse sonho que boa parte da cultura tibetana foi resgatada, através de suas obras publicadas. Quando Khyentse
voltou para Derge, ele tinha trinta e três anos apenas, e se instalou num templo a residir, meditar, estudar, escrever e
ensinar.

Fig. - Khyentse.

Sua meta de vida ganhou renovado vigor quando conheceu alguém à altura de sua ambição, que se tornaria um
leal amigo e companheiro, Jamgon Kongtrul Lodro Thaye (1813–1899). Kongtrul tinha nascido em família
aristocrática de Derge, e tinha precocemente revelado seu fascínio pelas várias escolas tibetanas. O jovem tinha
estudado num mosteiro Kagyu, e foi reconhecido como tulku de Situ Panchen. Em Khyentse ele viu uma pessoa que
ele mesmo estava tentando alcançar, de buscar todos os ensinamentos para tentar compreender a complexidade dos
ensinamentos de Buda, muito além do sectarismo e rivalidade das tradições, escrituras e da arrogância e intolerância
de ordens e mosteiros religiosos. O maior feito de Kongtrul foi ter se empenhado durante sua vida foi a busca
humilde e sem partidarismos pelos estudos e textos budistas. Foi um editor e escritor singular, que compreendeu a
genialidade de Khyentse como detentor de um vasto conhecimento da cultura tibetana do século 19. E a grande
conquista de Kongtrul foi reunir cinco grandes trabalhos em “Os Cinco Grandes Tesouros”, a juntar as principais
correntes do budismo tibetano com base nos estudos feitos por Khyentse. Ademais, Kongtrul buscou publicar outros
livros, a reunir de forma enciclopédica, no “Tesouro de Tudo”, a revelar a essência filosófica e religiosa de todas as
tradições tibetanas conhecidas, muitas quase extintas na época [704].
No entanto, Khyentse e Kongtrul, não estavam imunes das vicissitudes de sua região e época histórica. Kham
começou a entrar numa de suas fases mais cruentas a partir da década de 1830, quando rivais vizinhos começaram a
fustigar suas fronteiras ao leste de Derge. Em 1860, o caminho para Derge estava aberto para o avanço desses rivais,
os nyarongs, chefiados por Gombo Namgye (1799 – 1865). Em 1862, Derge foi invadido e Khyentse e Kongtrul
fugiram para proteção no palácio da família real. Depois de meses de sítio Kongtrul conseguiu fugir e se retirar para
uma vida contemplativa no seu eremitério, em busca de novas obras ocultas pelo interior, os termas.
Em 1863, Derge caiu nas mãos de Gombo Namgye. Khyentse passou o resto de sua vida amedrontado em seu
templo enquanto o caos reinava sobre o que restava de Derge. Assim permaneceu por alguns anos, pois as
autoridades chinesas na década de 1860 tinham entrado em decadência imperial ao entrar em conflito com os
estrangeiros europeus, após as Guerras do Ópio (1839 - 1842 e 1856 - 1860) e das rebeliões populares de Taiping
(1850 - 1864). E pouco tinham para oferecer a conter e expulsar os nyarongs de Derge e de Kham. Assim, coube às
autoridades do Tibete Central buscar retornar a ordem para a região. Kongtrul foi convocado para fazer adivinhações
sobre o destino dessa iminente guerra, e foi feliz ao prever a vitória tibetana. Satisfeito com a glória, o comandante
tibetano perguntou qual recompensa Kongtrul queria e ele pediu para ser poupado o maior número de mosteiros
possíveis em Kham, especialmente o de Palpung, que tinha sido aliado ao chefe dos invasores nyarongs. Em 1865, a
família real de Derge voltou ao poder e o governo central tibetano restaurou parte de seu prestígio, instalando
escritórios representativos em Derge e em Kham.
O imperialismo ocidental adveio sobre o Tibete a partir do final do século 19. A Índia Britânica tinha mudado
sua administração desde as revoltas indianas em 1857, e uma nova geração de dirigentes britânicos começou a
enxergar a Índia e região além dos termos comerciais conforme era na época da Companhia das Índias Orientais
Britânicas. A Índia era valiosa demais para a grandeza imperial britânica e não poderia ser ameaçada por nenhum
país. Um dos mais emblemáticos políticos britânicos dessa mentalidade britânica imperialista foi George Nathaniel
Curzon, Lord Curzon de Kedleston (1859 - 1925), nobre de tradicional educação aristocrática inglesa, que
desenvolveu e escreveu sobre a história e cultura pérsica e do leste asiático. Nas suas obras, Curzon claramente
expressa com veemência a necessidade britânica de resguardar seus domínios coloniais na Ásia, especialmente na
Índia e arredores, e buscou enxergar a ameaça russa, que tinha se expandido ao longo das estepes da Ásia Central no
século 19, como a maior ameaça nesse jogo. Nesse sentido, os britânicos guerrearam no Afeganistão por duas duras
ocasiões, de 1839 a 1842 e 1878 a 1880, com pesadas baixas e pouco efeito político a não ser ter transformado as
terras afegãs em zona tampão a conter a presença russa ao norte.
Em 1898, Curzon foi nomeado como vice-rei da Índia, e passou a executar o possível de seus ideais: manter os
russos a uma distância segura da Índia. O Tibete, nesse contexto estratégico ganhou novos significados, portanto,
aos dirigentes britânicos na Índia. Os britânicos já tinham tido contato com os tibetanos, desde a expedição de
George Bogel e do envolvimento com os butaneses contra a invasão ao reino indiano de Sikkim. Nessa região, em
1860, os britânicos tinham tomado o controle de Darjeeling e, em 1887, foi designado um governante britânico para
a região fronteiriça. Mas como Sikkim tinha uma relação histórica e cultural com os tibetanos, os conflitos foram
inevitáveis contra os britânicos na Índia. Em 1888, pela primeira vez, tropas tibetanas guerrearam contra os
britânicos e foram derrotados. Após a vitória, os britânicos negociaram com os chineses e trataram de delimitar as
fronteiras de Sikkim com o Tibete em 1890 e firmaram acordos comerciais três anos depois. Nenhum tibetano
esteve presente nas negociações.
O que estimulou ainda mais a curiosidade de Curzon com relação às autoridades tibetanas que almejou ter
contato direto com a mais alta autoridade espiritual tibetana, o Dalai Lama. Curzon tinha escrito várias
correspondências com o lama, mas todas tinham retornado sem sucesso de entrega. Mas o que mais preocupou
Curzon foram os relatos de que havia um eminente russo, de origem mongol e budista, chamado Agvan Dorjiev
(1854 - 1938) (fig.), que foi tutor do Dalai e um de seus mais influentes conselheiros. Assim, as possibilidades de
aliança com os russos estavam evidentes, mas que não se concretizou nos anos seguintes, pois o Czar russo mostrou
limitado interesse em investir em tal empreitada que certamente desagradariam os britânicos. Isso pouco importou a
um imperialista como Curzon, que tinha a certeza de que haveria um grande arsenal bélico fornecido pelos russos
em Lhasa. Com a descoberta de espiões a serviço dos britânicos em Lhasa, as atitudes das autoridades tibetanas
foram de crescente suspeita e medo das intenções de Curzon.

Fig. - Agvan Dorjiev.

Assim, Curzon começou a planejar o envio de uma expedição militar ao Tibete, para alcançar Lhasa e o Dalai
Lama. E nomeou um de seus colegas como líder, Francis Younghusband (1863 - 1942), um igualmente contumaz e
convicto defensor da superioridade britânica sobre os considerados “povos inferiores”. As demandas ao governo em
Londres, inicialmente foram rejeitadas, pelo alto custo financeiro, político e diplomático, ainda mais após o
impopular envolvimento britânico nas duas guerras contra os bôeres na Colônia do Cabo (atual África do Sul) de
1880 a 1881 e de 1899 a 1902. Após anos de insistência e com uma atuação política crescente na Câmara dos
Comuns e em Whitehall em Londres, Curzon conseguiu obter verbas e autorização para enviar uma força britânica
para a fronteira tibetana. Younghusband dirigiu-se à fronteira em 18 de julho de 1903 com cinco mil soldados.
Curzon, buscando uma justificativa para declaração de guerra, como casus belli, considerou como tal um
insignificativo caso de furto de iaques nepaleses em Sikkim. E em 6 de novembro de 1903, Curzon convenceu o
Secretário de Estado da Índia a mandar um ultimato para o posterior avanço da expedição de Younghusband para
Lhasa. Assim, os militares britânicos prosseguiram, com o único propósito de “tirar satisfações”.
Younghusband, com isso, obteve o aval e em 13 de dezembro de 1903 avançou sobre o território tibetano com
soldados gurkhas e sikhs indianos, temidos pela sua disciplina e desprendimento diante da morte. O comando militar
coube ao general James MacDonald (1826 - 1927) e acompanhado pelo capitão William F. O’Connor (1870 - 1943).
Juntos com esses, havia cerca de 10 mil carregadores indianos, nepaleses e butaneses, além de um séquito de
aventureiros e jornalistas curiosos a conhecer o reino oculto dos lamas do Tibete. Nas primeiras semanas, chegaram
rapidamente a Gyantse. O conselho (Kashag) novamente apresentou pouco consenso e unidade frente aos planos de
resistência, pois alguns tinham conhecimento da tecnologia militar britânica, enquanto outros consideravam a
santidade dos lamas como suficiente para fazer frente aos estrangeiros.
As primeiras cenas de batalha contra os tibetanos em Lhasa foram aterradoras. De um lado, o lado britânico
portava modernos rifles e metralhadoras Maxim, com capacidade de disparo de seis mil projéteis por minuto. O lado
tibetano contava apenas com o fervor de alguns soldados e monges, abençoados pelo Dalai Lama, com velhos
armamentos de fogo [705]. Durante os primeiros confrontos, Younghusband tentou enviar uma proposta de rendição
aos tibetanos, mas obteve nenhuma resposta do outro lado. Em 31 de março de 1904, um contingente britânico
decidiu avançar para o acampamento tibetano numa das fontes termais em Guru. Enquanto avançavam, viram que
muitos soldados tibetanos simplesmente recusaram o diálogo e alguns começaram a, resignados, entregar suas
armas. Younghusband, descrente da fácil vitória, entendeu isso como uma rendição implícita [706]. Mas o que os
britânicos não entenderam foi a atitude dos tibetanos, que ainda não receberam ordens de fogo, e, inocentemente,
mostravam aos ingleses suas armas com a espera de tê-las de volta quando saciadas as curiosidades. Então uma arma
disparou, e os britânicos, considerando isso o início das hostilidades, abriram fogo sobre os tibetanos. Muitos nisso
pereceram, alguns nem buscaram abrigo evidente nos muros de pedra próximos. Mas o fato demonstra o abismo de
compreensão dos tibetanos diante da avassaladora capacidade destrutiva dos modernos equipamentos de guerra dos
britânicos. Os tibetanos não tinham qualquer referência e experiência diante do que eles estavam enfrentando no
momento, e nenhuma atitude de defesa esperada ocorreu ou foi treinada diante de armas com capacidade ofensiva
tão fulminante. O general tibetano, envolvido na defesa da estação termal perto de Lhasa, tinha consultado os relatos
tibetanos do rei Yeshe-O sobre os armamentos e tática dos estrangeiros do século 10º! [707].
Em julho de 1904, Younghusband já tinha dominado Lhasa e o governo central tibetano. Havia ainda alguns
focos de resistência tibetana, principalmente em fortalezas com a de Gyantse, que foi rendida depois de intensos
bombardeios e a ofensiva de soldados gurkhas. Os tibetanos agora em diante tinham que aprender a lidar com os
novos estrangeiros em suas terras. O Dalai Lama, considerando a segurança de sua própria vida e o futuro do
budismo tibetano, decidiu então se disfarçar de mongol e partiu do mosteiro de Ganden com sua comitiva, incluindo
Dorjiev, para a Mongólia. Não foi encontrado nenhum sinal dos russos em Lhasa, e Younghusband passou a
negociar com o que restou das autoridades tibetanas, sob a responsabilidade do abade de Ganden. Nos termos que se
seguiram, foi proibida a presença de estrangeiros no Tibete sem a devida autorização das autoridades britânicas,
especialmente com os russos, livre acesso comercial com os britânicos da Índia, e a presença de um representante
britânico a residir em Gyantse. Os termos assinados por Younghusband, contudo, não foram sancionados em
Londres, e o que restou do tratado contemplou apenas a presença de agentes comerciais britânicos em Lhasa e um
fio telegráfico que ligaria a capital tibetana à Índia. Muito do que foi tratado por Younghusband depois foi
negociado com as autoridades chinesas, que perceberam que deveriam não deixar tão exposta a soberania sobre o
Tibete nos anos futuros.

Os Turbulentos Anos Chineses (1895 - 1949)


A derrota frente aos japoneses em 1895 devastou a autoconfiança chinesa, e do que restou frente aos ocidentais.
Diante disso, em 1891 e 1897, o reformista Kang Youwei (1858-1927) publicou duas obras controversas
argumentando que os clássicos confucianos foram distorcidos em compilações do século 1 d.C. Essa tentativa de
revigorar o sábio Confúcio revelava um mal-estar da época frente às tradições.
A novidade (xin, 新 ) repentinamente se tornou moda nos anos iniciais do século 20 na sociedade chinesa, a
começar pelas políticas reformadoras da Dinastia Qing e as “novas escolas”, “nova cultura”, movimentos
intelectuais como no Movimento Quatro de Maio e epitomizado no periódico “Nova Juventude”[708]. Como parte das
mudanças, a Imperatriz Cixi decretou o fim da prática de amarrar os pés femininos – prática dolorosa em voga na
corte desde a Dinastia Song (960-1279) – e a abolição do tradicional sistema imperial de exames em 1905, um golpe
fatal a toda a classe dos mandarins. No mesmo ano, uma comissão foi mandada ao Japão, Estados Unidos e Europa
por oito meses para estudar os seus modelos de governo. Ao retornarem, um programa de reforma constitucional foi
anunciado em 1908, incluindo a criação de assembleias representativas provinciais e a promessa de uma transição a
um autogoverno.
Mas essas reformas não foram suficientes. As “novas escolas” se transformaram em templos e academias
confucianas que permaneceram afastados da acessibilidade universal não muito diferente das suas antecessoras
imperiais. O eleitorado nas eleições provinciais de 1909 não abrangeu mais do que 1% da população[709]. O novo
modelo constitucional se inspiraria no do Japão de Meiji e da Alemanha imperial, pois a autoridade era mais
centralizada, condizente com a estrutura de poder dos Qings. Os anseios dos líderes rebeldes eram liberais, mas nos
moldes anglo-americanos. Ademais, o número de nobres e príncipes Qing atuantes no governo à época aumentou,
em vez de incluir maior participação da sociedade sem ligações com a família imperial. E o mais perigoso de tudo, a
percepção política e social na China, na virada do século, começou a enxergar o estado como um antro de
“estrangeiros manchus”, evocando a origem étnica da Dinastia Qing no século 17.
Em detrimento dos “estrangeiros” no poder, a sociedade chinesa gradativamente começou a conceber-se em
termos de nação, em torno de uma suposta essência étnico-histórica han ( 汉 ), algo inconcebível na longa história
chinesa de pluralidade e interações de povos. A China imperial sempre fora muito mais produto de uma estrutura de
estado e poder do que uma expressão nacional. Ficou, então, clara a influência das ideias nacionalistas advindas do
Ocidente que tinha se infiltrado no meio político e intelectual chinês, do qual se destacou o Dr. Sun Yat-sen (1866-
1925).
Sun Yat-sen era um cantonês (de Cantão, Guangzhou), de longe dos centros tradicionais de cultura de língua
chinesa. Falante de dialetos locais, ele decidiu estudar língua inglesa em 1887 nas ilhas havaianas. Completou seus
estudos em Medicina. Diante dos desafios de uma nova China, Sun esperava organizar um estado republicano nos
moldes dos EUA.
Sun buscou organizar sociedades revolucionárias a partir do exterior, indo residir no Japão, mas sempre contando
com massivo apoio de comunidades chinesas nos EUA e países europeus. E foi com esses fundos que Sun começou
a ganhar notoriedade na China a partir de 1905, sob o grupo Aliança Revolucionária (Tongmenghui). Nos próximos
anos, o grupo passou a empreender inúmeros atos terroristas como o ocorrido na cidade industrial chinesa de Wuhan
no curso médio do rio Yangzi em 1911. No caso, todos os envolvidos foram presos após uma explosão
aparentemente acidental e alguns líderes foram executados pelas autoridades locais. O desfecho do incidente foi
extremamente impopular e houve motins de militares locais. Diante das ameaças de instabilidade social, o
governador imperial local decidiu fugir da cidade. Foi o início da Revolução Nacionalista ou Republicana na China.
As rebeliões se alastraram para outras quinze províncias na região, na maioria na China meridional,
historicamente a região mais dinâmica economicamente e ativamente envolvida no comércio internacional. E longe
do centro da corte e das tradições políticas ao norte, em Pequim. Em 1911, essas províncias rebeldes se declararam
independentes da Dinastia Qing. Negociações posteriores entre as partes foram levadas a cabo na cidade de Xangai
(Shanghai). Sun Yat-sen, nesse meio tempo, estava nos EUA, no Colorado, e leu a respeito das rebeliões em um
jornal. Eventualmente conseguiu aportar à China, quando foi apontado como presidente temporário da Nova
República, título que conservou por 45 dias, pois Sun decidiu passar a presidência a outro líder, Yuan Shikai (1859-
1916).
Yuan fora figura crucial no comando e controle das Forças Armadas da China. Nas rebeliões, apesar da
inspiradora figura de Sun, era Yuan quem os militares rebeldes seguiam na lealdade. Em fevereiro de 1912, a
imperatriz Cixi abdicou do trono e Yuan tornou-se o primeiro presidente oficial da República da China, com
promessas de restaurar a grandeza chinesa perdida aos “estrangeiros manchus”.
Não fora apenas a Dinastia Qing que veio ao fim em 1912. Todo um sistema imperial de mais de dois séculos foi
junto. E, com isso, muito da China tradicional. Até a escrita chinesa passou por reformulações para a forma
vernácula atual, mais simplificada. Muitos chineses enfileiraram-se para cortar os rabos de cavalo dos cabelos
impostos pelos Qings, além da adoção de roupas ocidentais. Tudo que vinha da tradição era visto com certo repúdio
por ser reflexo de uma época humilhante na história chinesa. No caso mais ilustrativo, houve adoção do terno mais
ocidental, embora com adaptações ao gosto chinês, usado por Sun e popularizado por Mao Zedong. O calendário
ocidental fora adotado, mas as festividades chinesas ainda deveriam seguir o calendário lunar.
Significativos foram também os protestos sociais nesse período de mudanças na China. O Movimento de Quatro
de Maio foi um protesto estudantil contra as condições injustas impostas à China após a Primeira Guerra Mundial,
mesmo com a sua participação ao lado dos aliados vitoriosos. O descontentamento adveio da concessão da ex-base
alemã em Shandong para os japoneses, ignorando os pleitos da delegação chinesa na Conferência de Paz de
Versalhes de 1919 de reintegrar à província ao estado chinês.
As manifestações consequentes desse movimento foram enormes. Grandes atos patrióticos foram expressados
nas grandes cidades. Um novo entusiasmo e senso de renovação social visando a uma “nova ordem” e “nova
cultura” de uma geração foram os mantras da época. Convites eram feitos a intelectuais ocidentais pelos
departamentos universitários chineses. John Dewey e Bertrand Russell deram palestras na Universidade de Pequim
entre 1919 e 1921. As ideias de individualismo, feminismo, sufrágio universal e anticonfucionismo se tornaram
voga nos meios acadêmicos e midiáticos.
O Japão à época se tornou referência para muitos que o enxergaram como uma solução aos problemas de
adaptação asiática ao mundo moderno ocidental. Muitos estudantes chineses foram estudar em Tóquio. No entanto,
após a Primeira Guerra Mundial e a anexação de Shangdong, o Japão passou a ser visto com desconfiança devido a
suspeitas de expansionismo no leste asiático. O Ocidente começou a ser considerado como traidor depois das
decisões de Versalhes em 1919. Apesar de viva admiração ao republicanismo, líderes estudantis e intelectuais, como
Chen Duxiu (1879-1942), apreciavam mais os ideais revolucionários franceses de 1789 do que o próprio
establishment político francês após 1919. Chen depois se tornaria o primeiro líder do Partido Comunista Chinês
(PCC), fundado em 1921. Mas até então o interesse chinês pelo comunismo permanecia confinado a círculos
intelectuais restritos, somente ganhando maior apelo social após os eventos políticos da década de 1930, como
veremos mais adiante.
Em suma, nas décadas após o advento da República em 1911, a China até 1928 iria atravessar um processo de
intenso debate sobre adaptação e nova ordem política. O desejo generalizado era antes de regenerar a força nacional
e preservar o fervor patriótico. Nesse sentido, forças republicanas, nacionalistas e comunistas tenderam a se
expressar mais em termos de centralização e unidade nacional do que em termos doutrinários conflitantes de
liberdade, igualdade e participação política. Foi emblemática a frase proferida por Sun Yat-sen quando considerou
os chineses como “areia movediça” e que a solução para todos seria mais disciplina do que liberdade. Tal disciplina
seria algo crucial num momento em que a China desandava para uma época de desunião entre 1916 e 1928.
Posteriores à Revolução Republicana, eleições nacionais foram organizadas e uma Assembleia Constituinte foi
formada em 1912. As eleições foram relativamente calmas, e um partido com fortes teores ocidentais, refletindo os
desejos da época, emergiu como o vencedor: o Guomidang (abreviado como KMT) ou o Partido Nacionalista. O
presidente da República, Yuan Shikai, ficou alarmado com o sucesso político do partido e a sua participação foi
suspeita na morte da liderança jovem do partido em 1913. Um ano depois, Yuan ordenou o fim da organização
política e ordenou dissolver a legislatura eleita. Em 1915, Yuan procedeu na centralização do poder, declarando-se
imperador, para criar uma nova dinastia. Manteve o ofício por apenas 83 dias, pois muitos dos seus oficiais militares
objetaram uma ressurreição imperial. Um ano depois, deposto do poder e traído por seus aliados mais próximos no
seu projeto de unificação imperial pós-Qing, Yuan veio a óbito.
A sua morte, efetivamente, deu início a um período de turbulência e focos de poder que competiram pela
hegemonia no país. Até 1928, autoridades locais sustentadas no poder por líderes militares, empresários, gângsteres
do submundo do crime e políticos agiram como soberanas na condução governamental. Câmaras de comércio de
grandes cidades possuíam até mesmo suas próprias forças militares, conduziam obras públicas e negociações
internacionais. Xangai, por exemplo, a maior cidade chinesa à época, era pulverizada em distritos com autoridades
próprias – a dos bairros dos estrangeiros mantinha inclusive autonomia jurídica e fiscal. Outros bairros da cidade
eram comandados por líderes do narcotráfico, como o notório Du Yuesheng (1888-1951), líder da Gangue Verde,
que se elegeu presidente da Câmara Municipal e diretor da Bolsa de Valores de Xangai. No interior do país, houve
incidentes decorrentes da desordem pública que provocaram escândalo na opinião internacional. Na província de
Shangdong, no litoral nordeste da China, em 1923 bandidos descarrilaram um trem de passageiros e mantiveram sob
cativeiro vinte estrangeiros ocidentais, entre eles um membro da família Rockefeller.
Mas o essencial de tudo foi a gradativa desunião de lealdades militares após o colapso da Dinastia Qing e a
morte de Yuan Shikai em 1916. A sua morte demonstrou como ele era figura única entre muitos militares chineses.
E como a rede de alianças feitas por ele se desfez. Passaram à proeminência líderes chamados “senhores da guerra”
em várias regiões. E nenhum entre eles chegou a prevalecer sobre os demais. O cenário conduzia à fragmentada
desordem e a fragilidade nacional.
Entre esses “senhores”, o mais notório foi Zhang Zuolin (1875-1928) da Manchúria, região além da Grande
Muralha no nordeste chinês. O local, rico em ferro e carvão, recursos propícios para se criar indústrias de base, era
alvo de conquista nos planos dos japoneses de expansão e industrialização no leste asiático. Frente a isso, Zhang
começou a negociar com os nipônicos visando preservar sua autonomia, chegando a empregar 50 conselheiros deles
no seu exército. Em 1928, após maiores desentendimentos com oficiais residentes do Exército Japonês, Zhang foi
assassinado. E após um pretexto para invasão num incidente na cidade de Mukden, o Japão passou a ocupar a
Manchúria a partir de 1931.
Nesse meio tempo, no sul da China, Sun Yat-sen, liderou um movimento revolucionário a partir de Cantão
(Guangzhou). Com o apoio de muitos ex-deputados nacionais eleitos, oficiais do Exército e da Marinha, articulou-se
para chegar ao poder do KMT. O partido também passou a receber considerável apoio tático dos comunistas
chineses e, a partir de 1923, de conselheiros vindos da União Soviética, para organizar um governo nacional dotado
de Forças Armadas unificadas e modernas. Entre os jovens líderes comunistas que se coligaram ao KMT, sob
orientação de soviéticos, estavam Mao Zedong (1893-1976) (fig.) e Zhou Enlai (1898-1976).
Fig. - Mao Zedong na sua juventude. Filho de professores e leitor contumaz do Romance dos Três Reinos do século 14 que o inspirou nas táticas de
guerrilha e estratégia política.

O KMT prosseguiu organizando um exército nacionalista para combater as forças centrífugas regionais. Para
tanto, foi criada uma Academia Militar numa região de Cantão conhecida como Whampoa. Essa instituição, com
forte orientação inicial dos soviéticos, foi única na China a integrar à formação militar dos seus oficiais a
doutrinação política. O primeiro comandante dessa academia, após três meses de treinamento em Moscou, foi
Chiang Kai-shek (1887-1975) (fig.), que sucedeu no comando do KMT após o falecimento de Sun Yat-sen em 1925.
Chiang lançou, um ano depois, uma grande ofensiva na direção norte do país e, em 1928, alcançou êxito em
reunificar o país. A era da desunião nacional entre os “senhores da guerra” chegava ao fim.

Fig. - Chiang Kai-shek. Tal como Coxinga do século 17, depois fugiu e se instalou na ilha de Taiwan.

Os comunistas chineses, ainda integrados ao KMT, extraíram boa parte de seu apoio e força social de sindicatos
urbanos e organizações de camponeses. Chegaram mesmo a ter controle de sindicatos e do governo de Xangai antes
da chegada das tropas do KMT. E isso começou a preocupar Chiang que, em abril de 1927, antes mesmo na
reunificação nacional, se desentendeu com lideranças comunistas coligadas e atacou sindicalistas e trabalhadores da
cidade. Estimados 25 mil comunistas foram mortos nos primeiros meses desse expurgo. Chiang Kai-shek, a partir de
então, passou a adotar uma postura cada vez mais anticomunista.
Reunificado o país, o KMT estabeleceu a nova capital em Nanquim (Nanjing), mas a maior parte do país
permanecia, efetivamente, longe do controle efetivo do novo governo central. A China passara a ser um país
unipartidário, e os outros partidos políticos foram declarados ilegais, inclusive os comunistas. Chiang, nesse
propósito, planejava um período de tutela a preparar a sociedade chinesa para formas de autogoverno a adotar, no
futuro, a democracia.
Após a quebra de alianças com o KMT e o expurgo de Xangai, o Partido Comunista Chinês (PCC), ao longo da
década de 1930, deu início a um período introspectivo de reformulação organizacional. Atuando na ilegalidade, era
necessário um comando centralizado para organizar e disciplinar seus membros. Os comunistas identificaram as
suas forças sociais – trabalhadores urbanos e camponeses – e neles passaram a se apoiar, livrando-se de toda a
influência externa que pudesse comprometer a sua unidade partidária. Membros soviéticos atuantes como
conselheiros para supervisionar o partido foram gradativamente sendo afastados, pois cresceram as discordâncias
sobre o momento propício para a tomada do poder pelos comunistas. Um exército próprio e disciplinado sob
comando do partido foi criado, o Exército Vermelho.
As primeiras experiências comunistas sob as novas diretrizes foram dadas em Jiangxi, no sudoeste chinês, onde
Mao, com o apoio do Exército Vermelho, passou a redistribuir as propriedades rurais para favorecer os
empobrecidos camponeses locais. E com o sucesso desse episódio, iniciou um amplo processo de recrutamento de
guerrilheiros e partidários pelo país. Desde então, o interior da China se tornou o bastião primordial do poder do
PCC.
Diante disso, por volta de 1935, a liderança efetiva do PCC passou a orbitar gradativamente em torno de Mao
Zedong, Zhou Enlai e Zhang Wentian. Passaram os comunistas então a angariar maior visibilidade e apoio nacional,
evidenciando a corrupção de aliados locais do KMT e dos seus excessos fiscais e trabalhistas sobre os trabalhadores
e camponeses. Guerrilhas e milícias locais foram organizadas com o Exército Vermelho, visando enfraquecer a
presença militar do Exército Nacionalista. Um cenário de guerra civil estava se formando.
Chiang, ciente do sucesso do PCC no sudoeste interiorano do país, buscou então organizar uma ampla ofensiva
contra os comunistas. Antes de serem achados, contudo, os 86 mil comunistas e soldados do Exército Vermelho, em
outubro de 1934, conseguiram furar o bloqueio do KMT e iniciaram naquela que ficou conhecida na história chinesa
como a Longa Marcha (1934-1935) (fig.). Esta inicialmente consistiu numa marcha para fugir das forças
nacionalistas. Com o passar dos meses e com a resiliência demonstrada, os participantes começaram a ganhar
notoriedade nacional e a atenção de chineses de regiões marginalizadas pelo regime do KMT. O destino final se deu
na província de Shaanxi no árido noroeste chinês, outra base comunista, depois de 370 dias de marcha e nove mil
quilômetros percorridos. Os feitos do PCC começaram a ganhar estaturas heroicas na mentalidade popular chinesa.

Fig. - A Longa Marcha (1934-1935) dos comunistas chineses, a ecoar a árdua travessia de Guan Yi no Romance dos Três Reinos.

O incidente da Ponte Marco Polo (Ponte Lugou)[710], nos arredores de Pequim, deflagrou formalmente as
hostilidades sino-japonesas em 07 de julho de 1937. E as invasões prosseguiram rumo ao sul, para incluir a
devastadora conquista de Nanquim em dezembro de 1937, resultando em milhares de mortos, mutilados e estupros
contra homens, mulheres, idosos e crianças, naquele que ficou conhecido como o Massacre de Nanquim[711].
A reticência de Chiang em se unir em frente comum com os comunistas contra os japoneses era tamanha que foi
necessário armar seu sequestro na sua visita em dezembro de 1936 à cidade de Xian, em Shaanxi. Depois de detido,
sua liberdade foi condicionada à tática colaboração com o Exército Vermelho, visando fortalecer uma frente unida
interna anti-japonesa. O cenário chinês providenciou, pois, um breve interlúdio na luta fratricida entre o KMT e o
PCC, e disso resultou uma frente unida apesar das colaborações precárias e desconfianças mútuas.
Os japoneses, nesse ínterim, avançaram a partir do norte e do litoral. Em 1941, as maiores cidades chinesas,
centros industriais e urbanos, principais portos e aeroportos estavam sob seu controle. O KMT, essencialmente de
base urbana, procurou refúgio em cidades do interior, indo reagrupar-se em 1938 em Chongqing, em Sichuan, na
parte centro-ocidental da China, cidade estrategicamente bem guarnecida de defesa pelos seus entornos
montanhosos. Permaneceram lá quase isolados, mantidos apenas com a tênue linha de suprimentos fornecidos pelos
Aliados na Segunda Guerra Mundial vindos do sudoeste através das selvas da Birmânia britânica (atual Mianmar).
Os comunistas chineses, ao contrário, encontraram ampla base de apoio e suprimento de guerra entre as
comunidades de camponeses, espraiando sua resistência em forma de guerrilhas pela vastidão interiorana chinesa.
Houve espetacular avanço japonês sobre a costa chinesa e o sudeste asiático, humilhantemente derrotando as
forças britânicas, como na tomada da Malásia e Cingapura em 1942, contando com a colaboração rendida de
franceses na Indochina e ocupando as Índias Holandesas. No entanto, o comando japonês começou a se defrontar
com uma frente de batalha cada vez mais ampliada e longas linhas de suprimentos a serem mantidas. E o seu esforço
de guerra começou a se tornar extenuante demais depois da contraofensiva dos EUA a partir das ilhas de Midway no
Pacífico e da batalha de Guadalcanal em 1942. A tendência estratégica japonesa iniciou, então, uma retração das
suas tropas visando a preservação das suas ilhas frente ao avanço dos EUA. A fragilidade da presença nipônica na
China foi sendo evidenciada.
Nessa tendência, as tropas do KMT, com o apoio dos EUA e dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, passaram
a reocupar de volta as grandes cidades litorâneas chinesas a partir de 1943. Junto com isso, os comunistas do PCC
também passaram a ampliar onde possível os seus territórios a partir do interior. As dificuldades maiores do KMT
em estender seu domínio de volta por toda a China adveio de terem sido eles a primeira linha de frente de combate
aos japoneses, com seus efeitos militares devastadores. Além disso, o partido herdou um país desestruturado em
termos urbanos e industriais, um cenário arruinado para reerguimento da sua economia. A China encontrava-se em
forte recessão, com hiperinflação e desemprego, socialmente humilhada e desconfiada do esforço de guerra do KMT
frente aos japoneses. O PCC, em contrapartida, encontrando-se aninhado no interior e com amplo apoio do
campesinato devido à carismática liderança de Mao, lidou com um cenário promissor de renovação e esperança na
percepção de seus apoiadores. Foram vistos por eles como os grandes vencedores da guerra.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1947, já era notável a popularidade do Exército Vermelho, em
comparação com o KMT, na China. Conjugado com isso, Stalin tinha declarado guerra ao Japão nos meses finais da
Segunda Guerra Mundial e passou a ocupar a Manchúria, onde iria sistematicamente pilhar a base industrial
japonesa ali criada e levá-la por vagões de trem para a Sibéria. A região foi depois concedida ao comando comunista
do PCC.
Os atos finais do KMT e do avanço do PCC se deram nos anos seguintes. Até 1949, Mao tinha ampliado sua
presença a partir do interior e engolfou as grandes cidades ao longo do rio Yangzi e o das Pérolas (Zhu Jiang).
Vindos da Manchúria, as tropas do PCC, agora chamadas de Exército de Libertação Popular, tomaram controle de
Pequim. Em 1º de outubro de 1949, Mao proclamou o nascimento da República Popular da China na Praça da Paz
Celestial (Tiananmen) (fig.). As forças do KMT de Chiang, cerceadas em algumas cidades litorâneas, passaram a
bater em retirada organizando um massivo transporte de seus aliados e apoiadores para seu último reduto seguro, a
ilha de Taiwan (ecoando Coxinga em 1661), proclamando ali a República da China em dezembro. Estimados dois
milhões de chineses foram no esteio dessa transferência, carregando consigo o que podiam dos seus investimentos,
reservas cambiais e quase três mil contêineres de tesouros históricos retirados da Cidade Imperial de Pequim[712].

Fig. – A China entrando na sua nova fase revolucionária do século 20. A proclamação da República Popular da China lida por Mao Zedong na Praça
da Paz Celestial (Tiananmen) em Pequim, 1º de outubro de 1949.

Tibete (Início do Século 20 – 1949)


Após três meses de viagem, a comitiva do 13º Dalai Lama, Thubten Gyatso (1876 – 1933), finalmente tinha
chegado a Urga, na Mongólia. E lá o Dalai se encontrou com o maior lama mongol, o 8º Jetsun Dampa. Dorjiev, seu
conselheiro russo, tinha partido para São Petersburgo, a tentar convencer o Czar da importância de ajuda e aliança ao
Dalai agora em fuga do Tibete. Os britânicos, em contrapartida, passaram a tratar como maior autoridade espiritual
tibetana o Panchen Lama, o mesmo cargo com que o escocês George Bogle tinha entretido numa conversa no século
18. Foi a retribuir o favorecimento britânico no Tibete que o Panchen iniciou uma turnê em 1906 pelos locais mais
sagrados do budismo originado na Índia, com todo o respaldo e apoio logístico das autoridades britânicas. Os
chineses manchus também estavam incertos, pois viram como ficou vulnerável o Tibete diante das ofensivas
britânicas em 1904 e assim, Pequim buscou deixar claro ao Dalai Lama que não se envolvessem com nenhuma
nação estrangeira (ou seja, a Rússia) sem antes consultar os manchus. A resposta russa decepcionou o Dalai, pois os
governantes em São Petersburgo tinham atravessado uma difícil e desastrosa guerra contra os japoneses em 1905, e
agora almejaram entrar em acordo com os britânicos sobre as esferas de influência na Ásia.
O 13º Dalai Lama, Thubten Gyatso (1876 - 1933), tinha apresentado um grande talento para os estudos e fora
respeitado na escola Gelug. Mas seus poderes políticos efetivos sempre foram limitados, pelas dificuldades dos
tempos sobre o Tibete. O Dalai era muito mais uma figura inspiradora que propriamente a de um estadista, com
comando efetivo. Havia muitos oponentes políticos e religiosos, outros lamas de outras ordens, como a do mosteiro
Tengyeling. E em Urga, na Mongólia, sua popularidade e presença começou a despertar ciúmes de seu anfitrião, o 8º
Jetsun Dampa. Este passou deliberadamente a desrespeitar e desafiar a santidade do Dalai, portando-se
inadequadamente na sua presença. E os ambans, representantes chineses, não desejaram a longa permanência do
Dalai na Mongólia, pois poderia provocar maiores levantes e confusões na fronteira com o império chinês. Assim,
no início de 1906, o Dalai Lama foi pressionado a deixar a Mongólia e voltar-se para o Tibete, mas antes queria
passar no templo de Kumbum, em Amdo, ao norte do Tibete. Onde o 5º Dalai Lama havia estacionado na sua
viagem para encontrar o imperador chinês no século 17. Ali ele permaneceu, sem aparente pressa, por um ano, na
companhia de vários lamas e estudiosos budistas, onde ele pôde apreciar e argumentar seus estudos.
Enquanto isso, as autoridades chinesas estavam convencidas de que deveria ser evitada de toda maneira uma
nova invasão ao Tibete, seja de britânicos ou russos, via os mongóis coligados. Para tanto, o primeiro passo para
controlar efetivamente o Tibete seria avançar e consolidar a partir das regiões centrais chinesas, em Sichuan, para
então ocupar toda a região de Kham. O líder escolhido para tal tarefa foi Zhao Erfeng (1845 - 1911)[713], um
imperialista manchu convicto, tal como Curzon, de que os khampas (habitantes de Kham) eram nada mais que
selvagens a beneficiarem-se da civilização chinesa. Os adversários mais organizados em Kham foram os mosteiros,
alvo duramente combatido e atacado pelas forças chinesas. Zhao eventualmente venceu toda a resistência maior em
junho de 1906, executando incontáveis soldados e monges no processo, que lhe rendeu o apelido de “O
Açougueiro”. Visando sinicizar a região o mais rápido possível, Zhao organizou grandes levas de migração chinesa,
dando-lhes terras e incentivos colonizadores. Novos regulamentos foram aprovados, e agora em diante, todos
deveriam pagar impostos aos chineses, pois todos eram súditos do imperador chinês. Os mosteiros foram
regulamentados nos horários e locais de encontro e eventos. Os trajes chineses deveriam ser usados, assim como os
cabelos e penteados. Foram adotados sobrenomes chineses por todos, e uma escola chinesa foi aberta em Batang.
Para tentar negociar tais mudanças, a preservar alguma soberania tibetana, o 13º Dalai Lama tomou rumo a Pequim em outono de 1908.
Na capital chinesa, o Dalai foi recebido apenas atendendo aos protocolos, mas sem nenhuma mudança substancial
com relação ao Tibete e sua autoridade sobre os outros líderes e lamas. Em dezembro, inconsolado, mas ainda com o
prestígio a ponto de ter sido acompanhado pessoalmente pelo último imperador manchu, Pu Yi (1906 - 1967), o
lama começou seu caminho de volta para Lhasa. Em seu caminho estava Kham, que estava sendo integrada por
estradas modernas às outras províncias chinesas adjacentes, sob comando de Zhao. Desesperado, o 13º Dalai Lama
ent