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Evolução das Ciências II


TÓPICO
HISTÓRIA DA GEOLOGIA I:
DA GRÉCIA AO INÍCIO DO SÉCULO XIX

Silvia F. de M. Figuerôa

1.1 Da Grécia ao início do século XIX

Licenciatura em Ciências · USP/ Univesp


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1.1 Da Grécia ao início do século XIX


Desde quando podemos falar em Geologia? Como ciência moderna, há cerca de dois sé-
culos. Mas, como conhecimento da Terra (Geo + Logos), existe desde os primórdios da hu-
manidade, pois a utilização dos recursos naturais e a observação e controle da natureza são tão
antigos quanto os seres humanos. Ao longo dos tempos, como veremos neste curso, os saberes
e a pesquisa sobre o planeta caminharam juntos e se imbricaram, por meio das cosmovisões
e da extração mineral. Esse conjunto de ideias organizou-se e evoluiu em torno de três eixos
básicos, interligados: o tempo, a composição material e as estruturas. Dessa forma, no estudo do
planeta conectaram-se ciências como a Cosmologia, a Cosmogonia e a Filosofia Natural; ciên-
cias dos elementos e da matéria, como a Alquimia e a Química; ciências das estruturas, como
a Mineralogia, a Gemologia e a Cristalografia; ciências do ambiente, como a Meteorologia,
a Geografia Física, a Topografia/Geomorfologia e a Oceanografia; e as ciências das criaturas
viventes, mortas ou vivas, como a Paleontologia e a Biologia.
Como boa parte da cultura ocidental, em particular da europeia, as Ciências da Terra são
tributárias de tradições de pensamento desenvolvidas por sociedades do Norte da África e
Oriente Próximo (Egito, Suméria, Assíria, Babilônia, p. ex.) ou do Mediterrâneo (Grécia e
Roma, basicamente) – sociedades essas agrárias ou pastoris e largamente dependentes dos re-
cursos da terra. Por um lado, esse constante contato com as forças da natureza levou os humanos
a reconhecer, no curso da labuta incessante, a necessidade de se adequar ao ritmo das estações,
à inquestionável força de vulcões e terremotos, de enchentes e secas, de furacões e tsunamis,
de desertos, pântanos e montanhas. Por outro, além dos limites da Europa e de parte da Ásia, o
mundo era uma terra desconhecida.Todos esses aspectos conjugados favoreceram o surgimento
de explicações, que hoje são classificadas na categoria de mitos – trópicos ferventes, continentes
perdidos e monstros de todo tipo –, alguns dos quais seriam derrubados apenas no século XV,
em decorrência das grandes navegações que atingiram a Índia contornando o sul da África ou
que cruzaram o Atlântico.
Comecemos por mencionar as ideias relativas a algo bastante palpável para os antigos: as
formas da superfície. Sendo um povo ligado ao mar, os gregos, já no século V a.C., observaram
“jazidas de pedra com forma de conchas” num local bastante distante do litoral daquela época.
O autor que fez essa interessante e surpreendente observação concluiu que esse lugar outrora

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havia sido mar. O famoso historiador e geógrafo grego Heródoto (c.484 a.C. – c.420 a.C)
retomou essas observações e afirmou que o Egito havia sido um golfo no passado. Outras
observações importantes de autores gregos dizem respeito à ação da água, que eles admitem
entalhar a superfície e aplainar o relevo.
Vale destacar brevemente as ideias de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.), não por serem únicas,
mas pela importância e influência desse filósofo até a época medieval, no caso da Cosmologia
e Astronomia, e até o século XVIII, no caso da Geologia. Estudou em Atenas com Platão e foi
professor de Alexandre, o Grande. Fundou o Lyceum como um centro de ensino e de investigação.
Para Aristóteles, a Terra era composta de quatro elementos – a terra, a água, o fogo e o ar – e
localizava-se no centro do universo. Os terremotos e vulcões foram por ele comparados a trovões
e relâmpagos terrestres, e os fenômenos climáticos como tempestades eram produto do encontro
da umidade da chuva com ventos subterrâneos, em diferentes intensidades. Ele pensava que os ob-
jetos mais “terrosos” se deviam a exalações da Terra: os fósseis e minerais resultantes de exalações
secas, e os metais, de exalações úmidas. A forma animal ou vegetal dos fósseis, hoje prova inques-
tionável de sua origem orgânica, foi por Aristóteles atribuída a uma virtude plástica da Terra, que
tinha o poder de imitar a natureza viva. Esse filósofo também se preocupou com a origem das
fontes e dos rios, e pareceu aceitar que as águas das chuvas não eram as únicas abastecedoras das
fontes, visto que propunha que a Terra, devido à sua ‘frieza’, era capaz de produzir água.
Outro autor relevante para a Geologia entre os antigos foi Plínio, o Velho (23 d.C. – 79
d.C.), oficial da Marinha romana que deixou vasta obra sobre História Natural, na qual fala de
fósseis e minerais e de seus usos diversos. Como bom observador da natureza, morreu devido
às inalações de gases tóxicos durante a erupção do Vesúvio, que arrasou as cidades de Pompeia
e Herculano, pois foi testemunha ocular e bem próxima do vulcão.
De modo geral, até o Renascimento (século XV), praticamente todas as escolas de pensa-
mento partilhavam de uma visão bastante integrada e unificada de todo o Cosmos.A cristandade
e a poderosa Igreja católica foram herdeiras de boa parte do conhecimento clássico (greco-ro-
mano), adaptando-o e reinterpretando-o conforme suas concepções e suas necessidades. Nesse
quadro, a Terra só poderia ser plenamente compreendida em termos de seu lugar e função
no conjunto de corpos que integravam o universo estando ela no centro. Sendo o mundo
geocêntrico, a Terra sofria a influência dos demais planetas e estrelas e, assim, tudo que nela se
encontrava, fosse humano, animal, vegetal ou mineral. Os minerais metálicos originavam-se e
aumentavam por influência dos planetas: o ferro por ação de Marte; o chumbo, de Saturno;

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o ouro dependia do Sol. As gemas (minerais transparentes ou mesmo preciosos) refletiam a


luz cósmica. Coerentemente, a Terra era vista não somente como um planeta, mas como um
elemento que perpassava toda a matéria nas regiões corruptíveis do Cosmos. Por sua vez, o
planeta não seria composto somente pelo seu próprio elemento, mas também por fogo, água e
ar, como já dissera Aristóteles.
A coerência da visão que enxergava a Terra como parte intrínseca do universo se manifestava
em relação aos humanos: o destino do planeta era inseparável do destino do Cosmos e, do mesmo
modo, o dos homens era inseparável do destino do planeta. O universo, assim, era mais do que
geocêntrico, era antropocêntrico. A Terra havia sido criada para ser o habitat do homem, criatura
superior, cuja inteligência lhe permitiu arar o solo, extrair riquezas minerais, mapear os territórios
e usufruí-los. Em seu funcionamento e operacionalidade, o ser humano e o planeta eram da
mesma natureza, correspondiam-se e refletiam um ao outro. Por exemplo, na tradição clássica da
Medicina grega, os humores dos seres humanos, seus sintomas de doenças, seu temperamento e
disposição, eram entendidos como os equivalentes, no microcósmico corpo humano, da com-
binação de secura e umidade, de calor e frio, dos elementos macrocósmicos terra, água, fogo e
ar que compunham o corpo da Terra. A tradição médica hipocrática explicava muitas doenças
como ocasionadas por desbalanceamentos climáticos e ambientais: eflúvios expelidos pela Terra,
umidade excessiva causada por rios ou áreas inundadas, ou ares envenenados no entorno de
minas. As catástrofes naturais, como cometas, tempestades e terremotos, constituíam presságios
de catástrofes humanas. Por conta dessa correspondência, os minerais e os fósseis possuíam valor
medicinal, em sentido amplo, e eram utilizados como remédios. Assim, por exemplo, a ametista
protegeria contra intoxicações; os cristais de rocha seriam indicados para as enfermeiras e aqueles
que curam, aumentando suas capacidades; o ônix estimularia o ódio, as visões malignas e os
sangramentos; já o berilo preservaria e aumentaria o amor e a paz conjugal; a hematita seria
indicada para tratar as doenças relacionadas ao sangue, e assim por diante. Esse saber, bem como
as funções heráldicas e simbólicas dos minerais, rochas e fósseis, etimologia e mesmo anedotas
a eles relacionadas, foi preservado e transmitido através de grandes livros chamados Lapidários,
perpetuando-se e transformando-se pelos séculos, sobretudo pelos acréscimos introduzidos por
sábios cristãos (chamados Padres da Igreja) como Santo Agostinho (354 – 430) e Isidoro de
Sevilha (560 – 636), árabes como Avicena (980 – 1037) e Averroës (1126 – 1198), ou escolásticos
como Alberto Magno (1193 – 1280).

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Na mesma chave teórica, acreditava-se que as porções externas do planeta eram compostas por
quatro grandes classes minerais: as “terras”, os “metais”, os “sais” e as “substâncias betuminosas”.
Eram resultantes das combinações, em diferentes proporções, da água, do fogo, da terra e do
ar. Cada elemento, por sua vez, era caracterizado por um par de suas qualidades – calor, secura,
umidade e frigidez. Assim, a terra era fria e seca; a água, fria e úmida; o ar, quente e úmido; e o
fogo, quente e seco. Todas poderiam ser distinguidas entre si por suas reações ao calor e à água, e
encontravam-se arranjadas em extensas massas como rochas, veios e estratos. Esses minerais haviam
sido fluidos e se teriam solidificado, mais tarde, pela remoção do fogo ou da água. O conjunto
desse saber constituía o acervo de conhecimentos que integrava a Mineralogia. A ‘consolidação’,
como era chamada a transição da fluidez para a solidificação, era tão relevante que significava um
grande – se não o maior – problema enfrentado pelos estudiosos das rochas e minerais até o final
do século XVIII. A Mineralogia, por sua vez, não era uma mera subdisciplina, mas compreendia
a maior parte dos temas do que é atualmente Geologia –Cristalografia, Mineralogia, Petrologia
e Paleontologia – e também interpenetrava muito o que é hoje domínio da Química. As classes
minerais desempenharam um papel-chave nas teorias sobre a estrutura ou História da Terra. Por
um lado, os mineralogistas tiveram de explicar por que a crosta terrestre era diferenciada nessas
classes e, por outro, usaram as classes minerais para explicar as grandes feições da crosta – suas
rochas e, por fim, sua Geografia Física e, desse modo, reconstruir a história da Terra.
Em contrapartida, a Terra era explicada como uma réplica orgânica e viva do corpo
humano e de outros seres. Sua forma redonda sugeria um ovo, com a crosta terrestre como
sendo a casca e uma série de fluidos abaixo dela, no interior, o qual foi, alternadamente, con-
siderado oco, fluido ou sólido. As cadeias de montanhas eram, com frequência, comparadas
aos ossos; os rios, às veias e artérias; e os morros e colinas eram chamados de verrugas da
face da Terra – uma Terra que envelhecia e decaía como os humanos. Em contraste com o
mundo divino, sinônimo de perfeição, permanência e imutabilidade, o planeta era o teatro
da mudança, decadência e imperfeição. Platão (428/427 – 348/347 a.C) via a Terra como
“irreal”, um mero reflexo do mundo das ideias e da Verdade Ideal. No Catolicismo popular
medieval, o centro da Terra era o lugar do Inferno. Apesar de o planeta não ser nada em
comparação ao Deus, ou deuses, que o criara(m), ainda assim exibia as marcas da intervenção
e propósitos divinos. Praticamente todas as culturas – não apenas no continente europeu,
mas também no Havaí, na Mesoamérica ou na Austrália –, os vulcões, terremotos, tempesta-
des, secas e enchentes foram considerados, eles próprios, divindades, ou ações empreendidas
pelas divindades. Determinadas montanhas, rios, fontes, ilhas ou cavernas converteram-se

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em locais sagrados. A Terra era encantada e povoada


por bons e maus espíritos. Numa formulação cristã
de matiz protestante, ela era o Livro dos Trabalhos
de Deus, no qual os sábios poderiam ler e encon-
trar todos os signos e marcas dos propósitos divinos.
Assim, glorificar a Deus através de uma natureza
perfeita também se interligava à ideia de gratidão a
esse Deus, devido à sua benevolência em criar um Figura 1.1: De Lapide Haematite et Aetite
mundo natural perfeito para a sobrevivência de sua mais sublime criação: o homem. A visão
desse período sobre a natureza tinha um caráter utilitarista, já que ela havia sido gerada para
o aproveitamento do homem.
Dentro desse quadro mais geral de ideias, observações e trabalhos de cunho prático foram
desenvolvidos e conduziram a reflexões. A exploração das minas, por exemplo, combinada
à noção de que o planeta era um organismo vivo, colocava a seguinte questão: os metais e
minerais eram gerados e cresciam? E, em caso afirmativo, como isso se dava? Durante muitos sé-
culos, acreditou-se na explicação vitalista, ou seja: pequenos grãos de minerais ou metais seriam
como sementes que, em condições propícias, germinariam, dando origem a novos minerais.
As condições propícias envolviam o fechamento das minas por meio de rituais religiosos por
longo tempo após sua exploração, mas antes de seu esgotamento, de modo que pudessem sobrar
os grãos e que a ação dos planetas correspondentes, como mencionado acima, se encarregaria
de fazer gerar. Tal como o ventre das mulheres
e das fêmeas em geral, os grãos de minerais
ficariam grávidos, como ilustra a figura 1, do
livro de Bausch intitulado De Lapide Haematite
et Aetite, de “uma Aquilina grávida de outra
Aquilina, que também está grávida”.
O interesse pelo que se passava em todo o
planeta conduziu a reflexões sobre as interações
entre a crosta e o restante das esferas terrestres,
como o interior, a hidrosfera e a atmosfera. A
atividade vulcânica, com suas lavas, cinzas e
fumarolas, sugeria, por exemplo, que o inte-
Figura 1.2: imagem extraída da obra Mundus Subterraneus
rior da Terra era pleno de fogo aprisionado,

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esforçando-se para escapar. Ao mesmo tempo, o fato de rios se originarem de nascentes que
brotavam das rochas fez pensar na existência de grandes reservatórios conectados aos oceanos,
num sistema que fluía continuamente. Para o jesuíta Athanasius Kircher (1601/1602 – 1680),
o interior do planeta, assim como o corpo humano, seria atravessado por veias, que transpor-
tariam fogo e água, como na figura 2, extraída de sua obra Mundus Subterraneus. O contato do
fogo interior com a superfície daria origem a vulcões, o da água, a nascentes, e o contato entre
o sistema aquoso com o sistema de transporte do fogo geraria as fontes quentes.
Ver a Terra como um teatro de mudanças também conduziu, desde os primórdios, ao in-
teresse nas transformações superficiais: a mudança dos cursos dos rios, dos estuários e deltas,
como o Nilo; os deslizamentos das encostas, a criação e destruição de terras, pela deposição
de sedimentos e assoreamento ou pela erosão. As filosofias Pitagórica e Estoica, expressas por
naturalistas como Estrabão e Plínio, ou por poetas como Ovídio, apoiavam a ideia de que
continentes, oceanos, montanhas e vales estavam em constante revolução, baseados em peda-
ços de conchas e ossos achados embutidos em rochas e petrificados. No entanto, o debate
sobre os fósseis serem realmente, ou não, restos orgânicos só será resolvido no final do século
XVIII, como veremos adiante. Até o Renascimento, a ciência antiga e medieval acumulou
conhecimento sobre o planeta tanto no que concerne aos aspectos permanentes quanto aos
mutáveis da natureza terrestre. A partir do Renascimento (séculos XV e XVI), com a redes-
coberta de obras e autores clássicos gregos e romanos, anteriormente expurgados pela Igreja,
o estudo da Terra, assim como o dos céus e dos seres vivos, teve novo impulso e se transfor-
mou profundamente. Resultado, sem dúvida, de uma “revolução intelectual e científica” que
incluiu: a invenção da imprensa e maior distribuição das obras; aumento do número de esco-
las, monásticas ou civis, com impacto direto no nível educacional; abalos na autoridade da
Igreja Católica pelas denúncias e escândalos que resultaram em divisões internas à Cristandade,
como o Protestantismo; grande desenvolvimento das técnicas e ciências náuticas, em particu-
lar em Portugal, o que resultou em viagens ultramarinas e na descoberta de novos mundos,
que não apenas não se encaixavam nas antigas descrições, mas que também demandavam, por
sua novidade, novas descrições e definições (adequar ‘os nomes’ às ‘coisas’), impactando enor-
memente a visão de mundo da época e, por conseguinte, os saberes e as técnicas. Esses mate-
riais, assim como os vegetais e animais, eram utilizados na Medicina e Farmácia, por exemplo,
além da importância do uso dos metais no sistema mercantil emergente. Além disso, em
consequência da possibilidade de testemunhar com os próprios olhos, as viagens

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contribuíram para derrubar mitos estabelecidos há séculos, como o de que as águas dos
oceanos ferviam nos trópicos devido à elevada temperatura e à presença do fogo constante.
Como já afirmou o historiador italiano Paolo Rossi (1992, p. 53), “o maior obstáculo com que se
defrontam os defensores da ortodoxia bíblica é a descoberta da América [...] De fato, o continente ame-
ricano não é contíguo a nenhuma parte da Ásia, da Europa, da África, e é povoado por homens e por
toda espécie de animais. No aspecto, na linguagem, nos costumes, esses homens são diferentes dos asiáti-
cos, dos europeus e dos africanos. Os animais são diferentes dos que povoam os outros três continentes.
Essas dificuldades deram novo vigor às teses sacrílegas que advogavam a eternidade do mundo e a ideia
da vida originar-se da matéria. [...] Deduziu-se que ou o Dilúvio Bíblico não foi universal ou depois
dele se verificou na América uma nova criação de animais.” Mas a explicação mais aceita sobre a
formação e composição da superfície terrestre permanecia imbricada no relato cristão –
nesse caso, ao dilúvio bíblico. De acordo com essa narrativa, a água havia encoberto a super-
fície terrestre e, após sua evaporação, a crosta descoberta apresentava-se com suas irregularidades.
Essa explicação, fundamentada pelas Escrituras, era comprovada empiricamente pelos fósseis
marinhos encontrados em montanhas. Apenas com o desenvolvimento de novas teorias sobre
os fósseis, nos séculos XVII e XVIII, foi possível romper com essa tradição cristã.
Nesse contexto de profundas mudanças e descobertas, o conhecimento sobre a Terra foi revisto
conceitualmente. Por um lado, a Astronomia redefinida
por Copérnico negou à Terra seu lugar central no sis-
tema planetário, sendo substituída pelo Sol. Ao mesmo
tempo, a construção e o uso do telescópio demonstra-
ram que o mundo era quase infinitamente grande, e que
a Terra e o Sistema Solar não ocupavam um sítio espe-
cial. A dicotomia da interdependência entre o macro
e o microcosmo foi abandonada e, progressivamente, a
redução da matéria aos quatro elementos, que perdura-
va desde Aristóteles. Tornaram-se possíveis observações
mais detalhadas dos processos superficiais, que se ma-
nifestaram inclusive na pintura, como se pode verificar
na figura 3, em que as camadas das rochas sedimentares
que compõem a paisagem do entorno da Madona são
claramente representadas.

Figura 1.3: Madona de Yarnwinder (1501)

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O caso de Leonardo da Vinci (1452-1519), considerado o “Homem Universal” por seus


trabalhos em diferentes áreas do conhecimento, como arte, engenharia, mecânica, geociências,
entre outras, é exemplar. Nesse período, a Cartografia e pintura da paisagem estavam conectadas
pelo fato de que seus praticantes mantinham concepções em comum sobre a Terra e dividiam
os mesmos problemas de selecionar fenômenos e representá-los corretamente em uma super-
fície plana. Devido ao avanço do capitalismo mercantil nas cidades-Estado europeias, as deman-
das técnicas e científicas estavam em alta. Assim, as capitais da arte renascentista eram ao mesmo
tempo centros proeminentes de publicação e confecção de mapas – Veneza e Antuérpia são
exemplos notáveis. Acrescente-se que em Florença foram feitas, em 1406, as primeiras tradu-
ções e impressões para o italiano da Geografia de Ptolomeu (90 – 168), a qual foi uma obra de
grande relevância na representação do mundo conhecido, junto às leis de perspectiva criadas
pelo artista Brunelleschi (1377 – 1446). Leonardo trabalhou, junto com Nicolau Maquiavel
(1469 – 1527), num projeto (fracassado) de desvio do rio Arno, que visava a permitir a Florença
acesso ao mar, fechado por Pisa em razão da guerra. Nesse mesmo ano, Leonardo produz o

Figura 1.4: Mapa


de Ímola (1502)

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mapa de Ímola, cidade que era o ponto situado na parte mais setentrional do território contro-
lado por Cesar Bórgia. É uma obra precisa, como se pode observar na figura, com metodologia
de observação e representação do espaço, que utilizou recursos de agrimensura e abstração
geométrica. Destaca-se a representação do rio Santerno, que demonstra clara noção da dinâmi-
ca de erosão, formação de bancos de areia, transporte de material (seixos) e movimento da água
– temas esses caros aos chamados “mestres de água” do período em que Leonardo trabalhou, e
que se manifestam, igualmente, no desenho “Paisagem do Arno”, também aqui reproduzido.

Figura 1.5: Paisagem do Arno, por Leonardo da Vinci (1473)

À medida que as mudanças trazidas pela “Revolução Científica” se consolidavam, os saberes e


a investigação da Terra conheciam grande incremento. Os fósseis, como já adiantamos, terão seu
significado e importância drasticamente alterados. Até finais do século XVIII, a expressão ‘fóssil’
tinha um significado muito mais amplo do que apenas a referência a restos orgânicos petrifica-
dos, sendo sinônimo de qualquer material que tivesse sido escavado do solo. Mas as evidentes
semelhanças com os seres vivos, ou a total discrepância com o que se conhecia, e a presença

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de conchas e ossos em camadas rochosas no topo de montanhas colocava uma questão difícil.
Como se manifestava, em 1705, Robert Plot, supervisor do Ashmolean Museum:“as pedras que
têm forma de concha são lapides sui generis, produzidas naturalmente por uma virtude plástica
qualquer, latente na Terra ou na cavidade em que são encontradas? Ou devem sua forma e
aspecto externo às conchas e aos peixes que elas representam e que foram transportados para
os lugares do descobrimento por um dilúvio, um terremoto ou outras causas?” Basicamente,
dois tipos de explicação estavam em jogo. De um lado, a tese da origem orgânica partia da
constatação de semelhanças e de diferenças notáveis, o que trazia problema em reconhecer
espécies extintas. Isto era interpretado como ruptura na “Grande Cadeia do Ser” e consequente
imperfeição na obra do Criador, tornando-se risco de estímulo ao ateísmo. As explicações
alternativas argumentavam que não se tratava de espécies extintas, mas sim de espécies atuais,
embora desconhecidas, presentes em partes remotas do globo ainda não descobertas. Aqui,
invocava-se a descoberta da América como argumento para a existência de objetos naturais
que permaneciam desconhecidos. De outro lado, a tese da origem inorgânica partia da ideia de
que a Natureza possui virtudes plásticas que moldam esses objetos. No entanto, argumentava-se
que havia formas que não teriam função alguma e, assim, as semelhanças entre os seres vivos
e mortos eram casuais. De igual modo, essa hipótese levava à imperfeição da Natureza, que
para muitos não criava nada em vão. A alternativa para explicar, então, a presença desses seres
bizarros, sem correspondentes na atualidade, seria a extinção pelo Dilúvio. A presença de fósseis
no alto das montanhas seria, inclusive, uma prova científica de sua ocorrência.
De fato, duas alternativas epistemológicas estavam em jogo:
a) Aceitar a Natureza como série de formas imutáveis e ordem de estruturas permanentes,
o que implicava que os fósseis seriam pedras e objetos naturais mais estranhos do que os outros
e, portanto, seriam apenas observados;
b) Aceitar a Natureza como processo que se desenrola no tempo, como um conjunto de
estruturas só aparentemente constantes, o que implicava que os fósseis eram documentos ou
vestígios do passado, sinais de processos que se desenvolveram e, portanto, poderiam ser lidos;
ou seja, a própria Natureza tem história.

A solução do debate se deu a partir do trabalho do dinamarquês Nicolau Steno (1638 –


1686), o qual, após se formar na Universidade de Leiden e passar algum tempo em Paris,
trabalhou como médico anatomista e naturalista na corte do duque Fernando II de Médici,
em Florença. Em 1666, foi surpreendido pela similaridade entre os dentes de um tubarão, que

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havia encalhado no litoral da Toscana, e alguns objetos ‘fósseis’ (no sentido mais amplo que
mencionamos acima) chamados ‘glossopetras’ – literalmente, ‘línguas de pedra’ – conhecidos
desde Plínio, o Velho (ver figura 6). Analisando deti-
damente esse material e valendo-se de sua expertise
em Anatomia, Steno estabeleceu que as ‘glossopetras’
nada mais eram do que dentes fossilizados de tuba-
rão, e numa obra de 1667 discutiu como poderiam
ter se mineralizado e petrificado. A partir daí, passou
a pensar e refletir sobre como esses objetos puderam
ser incluídos em rochas, e sobre a associação entre o
tipo de organismo fossilizado e o material em que se
encontra inserido, o que indicaria o ambiente em
que as rochas se formaram. O resultado veio à luz
em 1669, no livro Pródromo de uma dissertação sobre o
sólido naturalmente contido no sólido.
As contribuições de Nicolau Steno ocorreram
também na área da Mineralogia e Cristalografia,
pelo estabelecimento do princípio da constância
dos ângulos das faces dos cristais – isto é, para uma
dada espécie mineral, os ângulos formados entre as
faces correspondentes de qualquer amostra seriam
sempre idênticos –, o que abriu caminho para uma Figura 1.6: Ilustração da Metallotheca Vaticana, de
Michele Mercati (1541 - 1593), ultilizada por Steno em
determinação mineral menos subjetiva, mais men- 1667, comparando a cabeça de um tubarão e seus
dentes com as "glossopetras"
surável e invariável. Outra de suas contribuições
fundamentais deu-se no campo da Estratigrafia (empilhamento de camadas/formações
rochosas). Por meio do princípio da superposição, postulou que todas as camadas, exceto
a mais baixa, são contidas em dois planos paralelos ao horizonte. Quanto mais baixa, mais
antiga, mas ainda dentro da cronologia bíblica. Também reconheceu as “deformações” dos
estratos, defendendo que “as camadas que estão inclinadas em relação ao horizonte foram
paralelas a ele em outra época”. Tal explicação diferia de outras, como a de René Descartes
(1596 – 1650), que em seu livro Princípios de Filosofia (1664) defendia que as camadas
inclinadas assim se encontravam devido à posição em que caíram quando se rompeu a

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‘crosta terrestre superior’, pedregosa, sobre a ‘crosta terrestre inferior’, de composição me-
tálica. Steno propôs seis períodos sucessivos em que subdividiu a história da Terra: primeiro,
um período de deposição de rochas não fossilíferas a partir de um oceano; depois, vários
períodos de lenta destruição e colapsos, seguidos de um período de deposição de estratos
– desta vez, fossilíferos –, seguidos por mais destruição e colapsos. Em sua concepção, isso
explicaria por que se encontravam estratos sem qualquer fóssil, sobrepostos, entretanto, por
camadas com fósseis, ao mesmo tempo em que alguns deles se posicionavam perfeitamente
paralelos ao horizonte e outros, não.
Essa proposta de uma história para a Terra, ao mesmo tempo em que se estabelecia uma
origem das formações em certa sequência, associadas a determinadas condições, encontrou
ressonância em diversos mineralogistas do século seguinte, como Johann Gottlob Lehmann
(1719 – 1767) e Abraham Gottlob Werner (1749 – 1817), professores da prestigiada
Academia de Minas de Freiberg (Saxônia), que estabeleceram correlações entre o conteúdo
mineral e a textura de cada tipo de rocha e sua origem no tempo. Werner, também formado
em minas pela escola de Freiberg, concebeu o que foi chamado de Netunismo, teoria de
larga influência no pensamento geológico em seu tempo. Segundo o seu modelo, as rochas
primitivas, as mais antigas, ter-se-iam precipitado num oceano primordial, cuja composição
seria muito diferente da atual. Na verdade, muitos elementos teriam sido retirados pelo
processo de precipitação das rochas e os oceanos teriam, atualmente, a composição rema-
nescente. Na sequência, teria ocorrido a deposição das camadas de rochas de transição e
de flötz. As rochas aluviais e vulcânicas teriam resultado de acontecimentos relativamente
recentes no planeta, também em ambiente aquoso. É nítido o papel capital da água na
formação da crosta terrestre, decorrendo daí o modelo ser chamado Netunista numa refe-
rência ao deus romano dos mares, Netuno. Os netunistas tampouco admitiam que o calor
e a fusão participassem dos processos geológicos e, por conseguinte, rochas como o basalto
e o granito, que hoje sabemos serem de origem ígnea, teriam sido depositadas no oceano
primitivo. Essa sequência de pacotes rochosos seria sempre idêntica, independentemente
da localidade, e teria abrangência universal. Percebe-se também, com clareza, uma noção
de tempo linear nessa proposta.
A origem do basalto, rocha hoje reconhecida como resultante do resfriamento de lavas,
deu início a uma controvérsia entre os netunistas e os que defendiam sua origem vulcânica,
chamados vulcanistas. Nicolas Desmarest (1715-1815), a partir de observações de campo na

TÓPICO 1  História da Geologia I: da Grécia ao início do século XIX


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França, afirmou que o basalto era uma rocha vulcânica. Contudo, observações de campo em
outras regiões, como a Saxônia de Werner, forneciam evidências de deposição no oceano. O
próprio Desmarest reconheceu que, caso tivesse tido experiências de campo apenas na Saxônia,
tal como Werner, provavelmente teria chegado às mesmas conclusões. Mesmo discordando
quanto à origem do basalto, muitos vulcanistas também aceitavam uma origem sedimentar para
a maioria das rochas, inclusive o granito. Dessa forma, nem vulcanistas nem netunistas admitiam
que o calor e a fusão desempenhassem papéis importantes nos processos geológicos.
Foi o escocês James Hutton (1726 – 1797), médico formado em Leiden, quem, a partir
de estudos na região de Edimburgo, onde tinha suas propriedades agrícolas, propôs uma
nova teoria, destacando o papel do calor e da fusão como elementos centrais nos processos
que conformavam a crosta terrestre, daí o nome Plutonismo (do deus romano das profun-
dezas, Plutão) atribuído à teoria huttoniana. Para Hutton, os terrenos atuais seriam resul-
tantes do soerguimento, em função do calor interno do planeta, de materiais consolidados
no fundo oceânico, contrapondo-se assim aos netunistas. Essa elevação das terras no local
dos antigos mares se deveria à elevação do fundo dos oceanos pela ação do calor interno,
que causaria expansão/dilatação dos corpos, e não ao abaixamento do nível do mar pela
retração dos oceanos. Ao observar que, nos estratos, havia substâncias que a água não seria
capaz de dissolver, concluiu que esses estratos não foram consolidados por meio de solu-
ções aquosas. O calor e a fusão seriam os meios “competentes” para consolidar os estratos,
visto que o calor é capaz de fundir qualquer substância. Para Hutton, a existência dos
vulcões seria a prova do poder do fogo, pois estes seriam “erupções de matéria inflamada”
que funcionariam como válvulas de segurança por onde escapariam os “poderes supérfluos
ou redundantes” – tal e qual uma máquina a vapor. Hutton e os vulcanistas tinham expli-
cações coincidentes sobre a origem do basalto. No entanto, para ele, o granito também era
de origem ígnea, o que não era consenso entre os vulcanistas. A origem ígnea do granito
ficou evidente por meio de trabalhos práticos e observações de campo nos veios graníticos
que cortavam basaltos na hoje famosa localidade de Glen Tilt (Escócia). Os debates entre
netunistas, vulcanistas e plutonistas, que alimentaram controvérsias geológicas na transição
para o século XIX, envolveram protagonistas de vários calibres e nacionalidades, entre os
quais alguns das Américas espanhola e portuguesa: o novo-hispano Andrés Manuel del Río
(1795 – 1805) e os luso-brasileiros João da Silva Feijó (1760 – 1824), Manuel Ferreira da
Câmara (1764 – 1835) e José Bonifácio de Andrada e Silva (1765 – 1838).

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Hutton também deu especial atenção aos processos de erosão e deposição, pois afetavam
suas terras produtivas. Para ele, o solo e as terras emersas se renovam continuamente; o ma-
terial erodido se deposita no mar que, ao ser entulhado, dá lugar à terra firme, que emerge, e
as regiões abatidas passam a ser ocupadas pelo mar. A erosão e as discordâncias entre camadas
têm papel relevante em sua teoria. Esse processo de erosão e sedimentação repetir-se-ia inde-
finidamente, aí embutida uma noção de tempo cíclico, e, na sua formulação bem conhecida,
poderia ser sintetizado como: “Nenhum vestígio do início, nenhuma perspectiva de um
fim”. As obras de James Hutton – a saber, Resumo de uma dissertação concernente ao sistema da
Terra, sua duração e estabilidade (1785), Investigação das leis observáveis na composição, dissolução
e restauração das terras sobre o globo (1788) e os dois volumes de Teoria da Terra, com provas e
ilustrações (1795) –, abriram caminho para a noção de tempo longo, bem mais longo do que
a cronologia bíblica levava a crer.
O tempo da Terra vinha sendo objeto de investigação há tempos. Em meados do século
XVII, o arcebispo da Irlanda, James Ussher, estabeleceu a famosa data de 23 de outubro de
4004 a.C. como o momento da Criação. Mas ele estava longe de ser um protofundamenta-
lista. Na verdade, era um praticante da ciência da Cronologia, apesar de não ter sido dos mais
destacados. A Cronologia baseava-se na rigorosa erudição da história antiga. Na época, não
estava à margem da vida intelectual, mas sim no seu centro: Isaac Newton, por exemplo, foi
um dos que teve profundo interesse nesse tema. Os cronólogos tentaram correlacionar os
registros textuais de todas as civilizações conhecidas por eles — não apenas a dos antigos
judeus — e condensá-los o mais fielmente possível numa única linha do tempo da história
do mundo. Sua principal motivação para fazer isso era geralmente religiosa: eles queriam
traçar o curso da história da salvação, todo o caminho da criação à Encarnação e até ao
presente, da Antiga Aliança com a Nova, no contexto da história mundial total. Mas, ao fazer
isso, desenvolveram padrões bastante elevados e precisos de escolaridade. Os cronólogos não
eram ingênuos, e estavam muito conscientes dos problemas de evidência textual. Por exem-
plo, alguns deles se mostravam céticos sobre as tentativas de recuar a um ponto tão antigo
quanto a criação primordial, como Ussher fazia, porque os registros romanos e gregos desa-
pareciam muito antes desse ponto, e mesmo a evidência bíblica estava reduzida a pouco mais
do que uma lista crua, no Livro do Gênesis, de quem gerou a quem antes dos dias de Noé. E
desde o início, a narrativa da criação foi, em si mesma, controversa, e muitos estudiosos du-
vidavam se alguma datação pudesse derivar dela. Mas, de qualquer forma, todos os cronólogos,

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concordassem ou não com Ussher, estavam tentando dar precisão ao que era geralmente tido
como certo em seu tempo, isto é: que o mundo tinha tido uma história breve e finita, quase
coexistente com a história humana. Essa hipótese era profundamente antiquada, não apenas
em um aspecto, mas em dois. Não somente a escala de tempo era muito curta, mas também
não havia lugar para qualquer história pré-humana. Este ponto de vista da história cósmica e
humana não foi imposto por uma Igreja repressora: nem precisava ser, porque era quase o
senso comum compartilhado por todos. Não havia nenhuma razão óbvia para se pensar o
contrário. Mesmo quando as rochas e fósseis começaram a ser trazidos para esse debate aca-
dêmico, já no final do século XVII e após a morte de Ussher, foram integrados de forma
natural e fácil no mesmo quadro de uma história breve e finita.
Tentativas de coadunar a
temporalidade e os limites
bíblicos com os dados obtidos
no mundo real fizeram flores-
cer, por cerca de um século, o
gênero científico das chamadas
“Teorias da Terra”, que em
suma procuravam aperfeiço-
ar as Cosmogonias baseadas
nas Sagradas Escrituras e na
Metafísica. Tais teorias de-
sempenhavam a função de
corroborar o status quo, reco-
nhecendo para o planeta um
passado de revoluções, ne-
cessárias e saudáveis, mas que
ao passado se restringiam. Na
Figura 1.7: Coluna Bioestratigráfica de William Smith (1816)
atualidade dos séculos XVII e
XVIII, o planeta seria estável, ordenado, com leis naturais imutáveis, graduais, regulares, unifor-
mes e progressivas. Assim, a formulação do Uniformitarismo geológico com James Hutton, mais
intensamente desenvolvido por Charles Lyell no século XIX, como veremos no próximo tópico,
coroaria esse estado de coisas com um halo filosófico.

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Paralelamente ao ideário Iluminista, a Revolução Industrial da segunda metade do século


XVIII impôs novas e mais intensas demandas para exploração mineral. Para atingir as metas de
diversificar e intensificar a extração, o planeta precisava ser minuciosamente conhecido e inven-
tariado, esquadrinhado em diferentes escalas e profundidades. Em particular, o carvão, recurso
primordial para alimentar as máquinas a vapor das primeiras fábricas, ocorre em meio a am-
bientes sedimentares. A procura de camadas carboníferas gerou também o conhecimento da-
quelas que não eram carboníferas, permitindo o desenvolvimento de um conjunto de métodos
de identificação e correlação de camadas baseados na litologia (isto é, tipos de rocha) e no
conteúdo fossilífero, resultando numa espécie de ‘índice’ para a História da Terra. Esses métodos,
conhecidos por bioestratigráficos, foram especialmente conce-
bidos e aplicados pelo construtor de canais e prospector mine-
ral William Smith (1769 – 1839), na Inglaterra, e por Georges
Cuvier (1769 – 1832) e Alexandre Brongniart (1770 – 1847),
na bacia de Paris. Colunas e tabelas estratigráficas foram produ-
zidas, já apresentando notável precisão na correlação dos terre-
nos, como se vê na figura 7 e na figura 8.
Assim, na virada para o século XIX, poderosas tradições de
pesquisa da crosta terrestre, em superfície e em relativa profundi-
dade, encontravam-se operantes, inquirindo, no campo, as formas
do relevo e as relações entre os pacotes de rochas (a chamada
‘Arquitetura subterrânea’ ou ‘Geografia subterrânea’), bem como
recolhendo coleções de amostras de minerais, fósseis e rochas para 
 Figura 1.8: Seção estratigráfica
posterior análise com mais detalhe, nos gabinetes, dispondo-as a "geral e ideal da Bacia de Paris
(publicada em 1811), de cuvier e
seguir em exibição nos museus, para deleite do público especia- Brongniart. Construída a partir de
diversas seções transversais
lista ou leigo. Já se admitia que a Terra tivesse uma história bem
mais longa do que estabelecia o relato bíblico, marcada por mudanças constantes e mesmo por
‘revoluções’. Em suma, já se pode reconhecer com segurança uma ciência chamada Geologia, que
se desenvolverá intensamente a partir do século XIX, chegando até nossos dias com milhares de
praticantes e instituições dedicados à investigação do planeta, como se verá nos tópicos a seguir.

TÓPICO 1  História da Geologia I: da Grécia ao início do século XIX


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Bibliografia
Alvim, Márcia Helena. Dos Céus e da Terra: conhecimentos sobre o mundo natural nas
histórias missionárias do século XVI novo-hispano. São Paulo, Annablume: Fapesp, 2010.
Gohau, Gabriel. História da Geologia. Portugal: Publicações Europa-América, s/d. [1992]
Gould, Stefen Jay. Seta do tempo, ciclo do tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
Oldroyd, David R. Thinking about the Earth: a history of ideas in Geology. London:
Athlone, 1996.
Ronan, Collin. História ilustrada da ciência. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. 4 vols.
Rossi, Paolo. Os sinais do tempo: história da Terra e história das nações de Hooke a Vico.
São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

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