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SANTO TOMÁS

OS DOIS

fazendo era corroborar a assombrosa doutri_


elesestavam temporariamente num como que guardanapo descartável.
que para os céticos é a mais dificilde
na da Encarnação, cristã é mais difícil de Até nesse sentido eles foram menos ortodoxos ao serem
divindade engolir que
crer.Nada na mais espirituais. As vezes pairavam sobre a fronteira da-
de Cristo.
a divindade queles desertos orientais que se estendem até a terra da
cerne da questão: esses homens se
Eis, portanto, o transmigração,25onde a alma essencial pode passar por
ortodoxos justamente quando se tornaram
tornaram mais centenas de corpos não-essenciais, reencarnando até em
naturais. Somente sendo ortodoxos de
mais racionais ou feras e pássaros. Santo Tomás defendia com vigor o fato de
podiam ser racionais e naturais. Em ou-
tal maneiraé que que o corpo de um homem é seu corpo, e seu espírito é seu
que merece o nome de teologia libcra123
tras palavras,isso espírito, e de que ele só pode ser o que resulta do equilfrio
dentro para fora, a partir dos mistérios
se desenvolveude e união entre os dois. Ora, de certa maneira essa é uma
Mas essa liberalidade nada
originaisda religiãocatólica. noção naturalista, muito afeita ao respeito moderno pelas
de fato, não pode sequer
teve a ver com o liberalismo; coisas materiais; uma ode ao corpo digna de ser cantada
0 assunto é tão importante
coexistircom o liberalismo.24 por Walt Whitman 26ou justificada por D. H. Lawrence,27
duas noções de Santo Tomás
que me servireide uma ou algo passível de ser chamado de humanismoou mesmo
parailustraro que quero dizer. Sem antecipar o esboço reivindicado pelo modernismo. Na verdade, pode até se
elementardo tomismo que será feito mais adiante, essas tratar de materialismo, mas é algo totalmente contrário ao
noções podem ser expostas aqui. modernismo. Está intimamente ligado, na visão moderna,
Por exemplo,é central em Santo Tomás a noção de ao mais monstruoso, ao mais material e, portanto, ao mais
que o homem deve ser estudado em toda sua humani- miraculoso dos milagres. E algo vinculado sobretudo ao
dade:o homemnão é um homem sem seu corpo, assim tipo mais assombrosode dogma, que o modernista mais
comonão é um homem sem sua alma. Um cadáver não é tem dificuldade em aceitar: a Ressurreiçãodo Corpo.
um homem; mas um fantasma também não. A escola an- Ademais, o seu argumento em favor da Revelaçãoé
terior de Agostinho e até de Anselmo negligenciara isso, também bastante racionalista e, por outro lado, decidida-
tratando a alma como o único tesouro necessário, envolta mente popular e democrático.Não é nem de longe um
argumento contra a razão. Pelo contrário, Santo Tomás

23.O autor esclareceo seu uso do termo "liberal" logo adiante, mas não
noscusta reforçar: "teologia liberal" nada tem a ver aqui com a perniciosa
25.Alusão ao hinduísmo, nascido na região da Índia. (N.E.)
ideologiaprogressistaque contaminou a Igreja no século XX. (N.E.)
24.Uso o termo "liberalismo" aqui no sentido rigorosamente
26.Walt Whitman (1819-1892), poeta e escritor americano, acusado em sua
teológico em-
pregadopor [JohnHenry] Newman e outros teólogos. Em seu sentido poli- época pelos poemas supostamente obscenos que escrevia. (N.E.)
tico mais corriqueiro, como destaco mais adiante, Santo Tomás tendia an- 27.D. H. Lawrence (1885—1930),escritor e poeta inglês, conhecido pelos te-
tes ao liberalismo, especialmente levando-se em conta a sua época. (N.A.) mas sexuais e viscerais de suas obras. (N.E.)

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a admitir que é possível se alcançara


pareceinclinado racional, ao menos contra a razão; é precisamenteum argumento a favor da
processo se for um
verdadepor um Revelação. A conclusão que ele tira daí é que as verdades
e longo o bastante. De fato, algo em seu
processoracional morais mais elevadas devem ser recebidas de forma mira-
outra ocasião chamei de otimismo e para
caráter,que em culosa, ou a maioria dos homens não as receberia de modo
achar nenhum outro termo adequado
o qual não consigo algum. Os argumentos do santo são racionais e naturais;
a probabilidade de que todas as pesso-
levou-o a exagerar mas sua própria dedução é toda pelo sobrenatural.E, como
ouvidos à razão. Em suas controvér-
as acabariamdando de costume no caso de sua argumentação, não é fácil des-
isso, acreditando enfaticamente
sias,ele sempre assume cobrir alguma outra dedução além daquela mesma que nos
ser convencidos por argumentos
que os homens podem apresenta. Ademais, quando chegamos a ela, vemos que se
fim da argumentação. Mas seu
no caso de chegarem ao trata de algo tão simplesquanto o próprio São Francisco
também lhe disse que a argu-
bom senso,por outro lado, gostaria que fosse —uma mensagem do Paraíso,uma histó-
mentaçãonunca termina. Posso convencer um homem de ria contada pelo Céu, um conto de fadas real.
queé absurdotomar a matéria como a origem da mente Isso fica ainda mais claro em problemas filosóficos
—desdeque tenhamos um enorme apreço um pelo outro de maior popularidade, como a questão do livre-arbítrio.
e debatamostodas as noite ao longo de 40 anos. E ain- Se Santo Tomás se destaca por alguma coisa, é pelo que
da assim,antes que ele se deixasse convencer no leito de podemos chamar de soberaniasou autonomias subordi-
morte,poderiam nascer mil outros materialistas, e nin- nadas. Ele era, se o leitor me perdoa a irreverência,um
guémpoderá explicartudo a todo mundo. Santo Tomás forte partidário do Home Rule.30Podemos até dizer que
é da opinião de que as almas das pessoas simples e traba- estava sempre a defender a independência das coisas de-
lhadorassão tão importantes quanto as almas dos pensa- pendentes. Ele insistia em que cada coisa pode ter seus
dorese amantesda verdade;28e se pergunta como essas próprios direitos em seus próprios domínios.Era assim
pessoaspoderiam ter tempo suficiente para se dedicar à que lidava com o Home Rule da razão e até dos sentidos:
longa cadeiaargumentativa que se exige na busca da ver- "Sou filha na casa de meu pai, mas em minha casa sou
dade. O trecho inteir029exala um respeito pela investigação senhora". E exatamente nesse sentido ele enfatizava certa
científicae grande simpatia para com o homem comum. dignidade no homem, que às vezes sumia nas generaliza-
Seu argumento a favor da Revelação não é um argumento ções puramente teístas sobre Deus. Ninguém o acusaria
de querer separar o homem de Deus; o que ele queria era
distingui-los. Em tão sólido senso de dignidade e liber-
28.Amantesda verdade:uma alusão ao tradicional sentido etimológico da
palavra grega philosophia. (N.T.)
29.A passagem a que Chesterton se refere está em
Suma Teológica, IP IPC,q. 30.Homerule, expressão inglesa que denota o sistema de governo onde a co-
2, a. 4. (N.E.) lônia, pais anexado ou região é governada por seus próprios cidadãos. (N.T.)

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há muito o que se admirar —e de fato hoje


dadehumanas, uma nobre liberalidade humanística. senso comum humano e pagão. Mas note-se que tam-
admira-se como bém aqui os extremos da terra e do céu se tocam, pois
devemosnos esquecer que ele teve como con-
Mas não isso também se relaciona com a noção cristã do dogma da
mesmo livre-arbítrio, ou responsabilidade
sequênciaeste Criação —de um Criador que criou porcos, e não de um
que tantos liberais modernos negam
moraldo homem, liberdade dependem cosmo que meramente os fez evoluir.
e perigosa o Céu, o
Dessa sublime Em todos esses casos, vemos repetir-se o tema men-
misterioso drama da alma. Trata-se de
Inferno e todo o
e, no
cionado no início. O movimento tomista na metafísica,
não de uma separação; entanto, um
uma distinção,e como o movimento franciscano na moral e nos costumes,
se separar de Deus, o que sob certo
homem pode mesmo foi uma expansão e uma libertação; foi decididamente um
todas as separações.
aspectoé a maior de crescimento da teologia cristã desde o seu âmago; não foi
questão mais metafisica, a
Embora se trate de uma de modo algum seu encolhimento sob a influênciapagã
adiante, e apenas de forma superfi-
ser mencionadamais ou meramente humana. O franciscano se viu livre para ser
caso da velha disputa filosófica
cial,ocorreo mesmo no um frei, em vez de estar obrigado a ser monge. Ele se tor-
coisas tão diferentes
sobreo Uno e o Múltiplo. Serão as nou, porém, mais cristão, mais católico, até mais ascético.
entre si a ponto de nunca poderem ser classificadas,ou Da mesma forma, o tomista se viu livre para ser aristoté-
tão unificadasque não possam ser diferenciadas? Sem lico, em vez de obrigado a ser agostiniano. Ele se tornou,
quererrespondera tais indagações aqui, podemos dizer porém, mais teólogo, e um teólogo mais ortodoxo e mais
que Santo Tomás, de forma geral, se posiciona definitiva- dogmático, ao recuperar, por meio de Aristóteles, o mais
mente do lado da Multiplicidade, considerando-a como desafiador de todos os dogmas: o casamento do Deus com
algotão real quanto a Unidade. Nisso, e em questões si- o homem e, portanto, com a matéria. Ninguém poderá
milares,ele frequentemente se afasta dos grandes filóso- compreender a grandeza do século XIII se não compre-
fos gregos,que às vezes lhe serviam de modelo. E se afasta ender que foi uma época de enorme crescimento de coisas
totalmentedos grandes filósofos orientais, que, de certa novas produzidas por uma coisa viva. Nesse sentido, reve-
forma,são seusrivais. Ele parece estar bastante certo de lou-se um período realmente mais ousado e mais livre do
que a diferençaentre o giz e o queijo, entre porcos e pe- que aquilo que chamamos Renascença, a qual tão somente
licanos,não é mera ilusão, ou um ofuscamento de nossa ressuscitou coisas velhas descobertas em algo morto. Nes-
menteaturdida,cegada por uma luz única; mas que se se mesmo sentido,o medievalismonão foi uma Renas-
trata de uma diferença real, tal como a sentimos. Pode-se cença, mas uma Nascença. Não modelou seus templos em
dizer que é simples senso comum, o senso comum de que túmulos, tampouco convocou do Hades31deuses mortos.
porcossão porcos—e nesse sentido, vinculado ao senso
comumaristotélico,com seus pés cravados na terra, um
31.O mundo dos mortos na mitologia grega. (N.E.)

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criou uma arquitetura tão nova quanto a
Pelo contrário,
e que na verdade permanece como a estivera o corpo de Cristo, porque, com ou sem razão, acre-
engenhariamoderna,
das arquiteturas. O que houve é que a esta se ditavam se tratar de um lugar cristão. Santo Tomás queria
mais moderna
mais antiquada da Renascença. Nes- recuperar o que em essência era o próprio corpo de Cristo:
seguiua arquitetura
Renascença pode ser chamada de "Recaída". o corpo santificado do Filho do Homem que se tornara
se sentido,a um mediador miraculoso entre o Céu e a Terra. E queria o
quiser sobre o estilo gótico e sobre os
Pode-se dizer o que
aos Evangelhos; não, porém corpo, bem como todos os seus sentidos, por acreditar, com
comentáriosde Santo Tomás
—foram um novo ímpeto, como ou sem razão, que se tratava de algo cristão. Talvez se trate
que tenham sido recaídas
engenharia gótica. E sua força veio de de algo humilde, até simplório em comparaçãocom o es-
o titânico ímpeto da pírito platónico —e por isso mesmo é cristão. Santo Tomás
todas as coisas (cf. Ap 21,5).
um Deus que faz novas
preferiu a estrada de chão batido, por assim dizer, quando
Resumindo,Santo Tomás tornava o cristianismo mais
seguiu os passos de Aristóteles —como fez o próprio Deus,
cristãoao torná-lo mais aristotélico. Isso não é um parado- quando trabalhou na oficina de José.
xo, mas um simples truísmo, ignorado somente por quem Por fim, esses dois grandes homens não apenas es-
talvez até saiba o significa de "aristotélico", mas simples- tavam unidos um ao outro, como também separadosda
mente esqueceu o significado de "cristão". Quando com- maioria de seus camaradas e contemporâneos pelo próprio
parado com um judeu, um muçulmano, um budista, um caráter revolucionário de sua revolução.Em 1215, o cas-
deístaou com alternativasmais óbvias, um cristão é um telhano Domingos de Gusmão fundou uma ordem bem
homem que acredita que a divindade ou a santidade se similar à de Francisco e, por uma dessas curiosas coinci-
vinculouà matéria ou penetrou no mundo dos sentidos. dências históricas, quase ao mesmo tempo que Francisco.
Algunsescritoresmodernos, ao ignorar algo tão simples, Seu objetivo principal era pregar a filosofia católica para
deram a entender que a aceitação de Aristóteles foi algum os hereges albigenses, 33cujo pensamento assumia uma das
tipo de concessão aos árabes —como um vigário modernis- muitas formas do maniqueísmo de que este ensaio ainda
ta que fizesse alguma concessão aos agnósticos. E como se se ocupará, e que tinha suas raízes no longínquo misticis-
dissessem que as Cruzadas foram uma concessão aos ára- mo e indiferentismo moral do Oriente; e assim era ine-
bes tanto quanto o fato de Aquino ter resgatado Aristóteles vitável que os dominicanos se constituíssem mais como
de Averróis!32Os cruzados queriam recuperar o local onde uma irmandade de filósofos, e os franciscanosmais como

32.Averróis(1126-1198),
célebre filósofo, polimata e médico muçulmano, 33.Seita cátara e gnóstica (maniqueista) que dominou o sul da França até
popularizadona escolásticapor seus comentários a Aristóteles. Foi pivó meados do século XIII, quando foi finalmente extinta graças ao heroico
de uma grande discussão entre teólogos e filósofos católicos, levando à apostolado de São Domingos e às investidas militares ordenadas pelo Papa
condenaçãoformal de muitas de suas teses de teor mais panteísta. (N.E.) Inocêncio III (N.E.)

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Por esse e outros motivos, São
uma imandade de poetas.
seguidores são pouco conhecidos ou lendas de nosso país, eles são tão próximos quanto São
Domingose seus
na Inglaterra moderna. Eles acabaram
compreendidos
Jorge e o dragão.34Domingos ainda é percebido como
guerra religiosa que se seguiu a uma um inquisidor a conceber instrumentosde tortura, en-
envolvidosem uma
E algo na atmosfera de nosso país quanto Francisco é prontamente aceito como um ser
discussãoteológica. humanitário que abomina até as ratoeiras.Por exemplo,
último século fez com que a discussão teo-
por volta do parece-nos bastante natural, e repleto das mesmas asso-
ainda mais incompreensível que a guer-
lógicaparecesse ciações com flores e fantasias estreladas,que o nome de
resultadofinal é de certa forma curioso,
ra religiosa.O Francisco pertença também ao de Francis [Francisco]
até mais que São Francisco, dis-
porque São Domingos, lhompson. 35Mas suponho que pareceria menos natural
independência intelectual e pa-
tinguiu-sepor aquela chamá-lo de Domingos lhompson, ou descobrir que um
e veracidade que as culturas
drõesrigorososde virtude homem com um longo histórico de simpatias populares
protestantes costumam considerar como especificamen- e carinho para com os pobres pudesse ter um nome como
que trata' aquela antiga anedota
te protestantes. E dele Dominic [Domingos] Plater.36Seria como se o chamas-
a qual certamente seria mais conhecida entre nós caso se sem de Torquemada lhompson. 37
referissea algum puritano —em que o Papa, apontando Deve haver algo de errado nessa contradição, que
para seu magnífico palácio papal, dizia: "Pedro já não transforma em antagonistas no estrangeiro aqueles que
pode dizer 'Não tenho ouro nem prata'". A que o frei foram aliados dentro do mesmo país. Em qualquerou-
espanholrespondia:"Não, e tampouco pode dizer agora tra questão, esse fato seria evidente para o senso comum.
'levanta-te e anda'". Suponha que os liberais ou partidários do livre-comércio
Assim,há um outro modo pelo qual a história popu- ingleses descobrissem que, em alguns recônditos da Chi-
lar de São Franciscopode servir como uma ponte entre
o mundomoderno e o medieval. E baseia-se no simples
fato,já mencionado,de que São Francisco e São Domin-
gos aparecemna história lado a lado, tendo realizado a 34.São Jorge é o santo padroeiro da Inglaterra. (N.E.)

mesma obra e, todavia, na tradição popular inglesa se en- 35.Francis Thompson (1859-1907),poeta e mistico católico inglês. A tra-
duçào de "Francisco" nessa lingua se diz Francis.Ao mencionar as "flores
contramapartadosda maneira mais estranha e espanto- e fantasias estreladas", Chesterton está aludindo a duas imagens famosas
sa. Em seus próprios países eles são como gémeos celes- dos poemas de Thompson, e que se assemelham ao tipo de imagem natu-
ral costumeiramente associada a São Francisco. (N E)
tiais, irradiando a mesma luz no céu, às vezes parecendo
36.Charles Dominic Plater (1875—1894), padre jesuíta e ativista pelos di-
dois santos com uma só auréola, como a representação reitos da classe trabalhadora. "Domingos" se diz Dominicem inglês. (N.T.)
da Santa Pobrezajá feita por outra ordem: a imagem 37.Referência a Tomás de Torquemada (1420-1498), dominicano que fi-
cou estigmatizado na cultura popular moderna como implacável inqui-
de dois cavaleirosem um só cavalo. Servindo-nos das sidor. (N.E.)

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que Cobden3S era um monstro
seja opinião corrente São Domingos. Os que conhecem um pouco a seu respei-
na,
um santo sem mácula. Eles achariam que
cruel,e Bright39 to sabem que ele era um missionário e não um persegui-
errado aí. Suponha que os evangélicos ame-
há algo de dor militante; que sua contribuiçãopara a religião foi o
de que na França ou na Itália, ou
ricanosse inteirassem Rosário, e não o cavalete;42que toda sua carreira perderá o
impenetráveispara Moody e Sankey,40
outrascivilizações sentido se não compreendermos que suas famosas vitórias
popular de que Moody era um anjo,
houvesseuma crença foram vitórias da persuasão e não da perseguição. É certo
demónio; eles pensariam haver aí algu-
mas Sankeyum que ele acreditava na justificativa da perseguição, no sen-
Alguma outra distinção acidental deve ter
ma confusão. tido de que o braço secular tem a prerrogativa de reprimir
de uma tendência que, antes
embaraçadoo curso natural desordens religiosas. Porém, todo mundo acreditava na
histórica. Esses paralelos não são
disso,era simplesmente perseguição, e ninguém mais que o elegante blasfemador
podem parecer. Cobden e Bright já
tão absurdos quanto Frederico II, que só acreditava nisso e em nada mais. Di-
chamados de "torturadores de
chegaram mesmo a serem zem alguns que ele foi o primeiro a queimar hereges; de
crianças",em um impulso de ódio frente à sua alegada qualquer maneira, ele acreditava ser um de seus privilé-
insensibilidadequanto aos males remediados pela Lei gios e deveres imperiais perseguir hereges.No entanto,
das Fábricas;41e alguns chamariam o sermão de Moo- referir-se a São Domingos como se ele não tivesse feito
dy e Sankeysobre o Inferno de uma exibição infernal. nada além de perseguir hereges,é como culpar o Padre
Tudo isso são questões de opinião. Mas ambos os homens Matthew —responsável por persuadir milhões de bêbados
tinham a mesma opinião, e a opinião que os aparta tão a se tornarem abstémios—porque a lei às vezes permitia
completamenteum do outro deve conter alguma asneira. que um bêbado fosse preso. Isso é ignorar completamente
E, claro,ultrapassa o nível da asneira a lenda em torno de a realidade, e a realidade é que aquele homem tinha o gê—
nio da conversão, e não da compulsão.A verdadeira dife-
rença entre Francisco e Domingos, e que não é demérito
38.Richard Cobden (1804—1865),estadista e industrial progressista inglês para nenhum deles, é que Domingos foi confrontado com
associadocom importantes campanhas pelo livre-comércio. (N.T.)
uma imensa campanha de conversão de hereges, enquan-
estadista inglês, orador e defensor do livre-
39.John Bright (1811-1889),
-comércio.Ambos os personagens históricos citados advogavam a mesma to Francisco teve a tarefa mais sutil de converter outros
causa. (N.T.) seres humanos. Todo mundo sabe que, embora precise-
40,Refere-se a Dwight Lyman Moody (1837-1899), evangelista e editor nor- mos de alguém como Domingos para converter os pagãos
te-americano, e Ira David Sankey (1840-1908), cantor e compositor. Am-
bos trabalharamjuntos para promover a música evangélica nos EUAe na ao cristianismo, precisamos ainda mais de alguém como
Inglaterra. Foram muito populares no final do século XIX. (N .T.)
41.Lei inglesa criada em 1833com vistas a frear os abusos de trabalho in-
fantil que ocorriam nas fábricas do pais, em pleno fervor da Revolução
Industrial. (N.E.) 42.Instrumento de tortura muito utilizado no passado. (N.E.)

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converter os cristãos ao cristianismo. Ain-


Francisco,para apelar diretamente à população sempre arranja uma longa
devemos perder de vista o problema especí-
da assim,não fila de inimigos —a começar entre a própria população.
por São Domingos: o de manter sob seus
ficoenfrentado À medida que os pobres começam a compreender que ele
população, reinos, cidades, províncias
cuidados toda uma quer ajudá-los, e não prejudicá-los, as classes superiores e
tinham se afastado da fé e se petrificado
do interior,que mais sólidas começam a se acercar, resolvidas a criar en-
estranhas e anormais. O fato de ele
em religiões inéditas, traves, e não a ajudar. Os ricos, e mesmo os intelectuais, às
tantos grupos de pessoas iludidas, ape-
ter reconquistado vezes sentem, não sem alguma dose de razão, que aquilo
pela pregação, segue sendo um triunfo
nas pelo diálogo e mudará o mundo, e que a mudança terá reflexos não apenas
colossal. São Francisco
gigantesco,digno de um troféu em seu mundanismo ou sabedoria mundana, mas talvez,em
por ter tentado converter os
é chamado de humanitário alguma medida, até em sua sabedoria verdadeira. Tal sen-
Domingos é chamado de
sarracenossem consegui-lo. São timento era natural nesse caso; quando consideramos, por
preconceituosoe fanático por ter tentado converter os al- exemplo, a atitude realmente irresponsável de São Francis-
porém, de nos en-
bigenses e tê-lo conseguido. Calhamos, co de rejeitar os livros e a erudição, ou a tendência exibida
contrar num recanto das colinas da História de onde po- pelos freis, no período que se seguiu, de apelar ao Papa,
demos avistar Assis e os montes da Umbria, e no entanto passando por cima dos bispos locais e oficiais eclesiásti-
daqui não podemos contemplar o vasto campo de batalha cos. Resumindo: São Domingos e São Francisco criaram
da Cruzada do Sul:430 milagre de Muret e o milagre ain- uma revoluçãotão popular e impopular quanto a Revolu-
da maior de Domingos, quando os sopés dos Pireneus e ção Francesa. Porém, é muito dificil hoje em dia sentirmos
as orlas do Mediterrâneo testemunharam a derrocada dos que mesmo a Revolução Francesa tenha sido algo assim
desesperados asiáticos. tão inédito quanto foi. A Marselhesa44já ressoou como a
Há contudo um vínculo ainda mais antigo e essen- voz de um udcão ou como a música de um terremoto, e os
cial entre Domingos e Francisco, mais ligado ao propósito reis da terra estremeceram, alguns temendo que o céu de-
imediato deste livro. Ambos foram posteriormente alça- sabasse, outros temendo mais ainda que se fizesse justiça. A
dos à glória porque em sua própria época haviam sido re- Marselhesa hoje é tocada em jantares diplomáticos,onde
duzidosà infâmia, ou no mínimo à impopularidade. Pois monarcas estampam sorrisos e bilionários irradiam alegria,
fizerama coisa mais impopular que alguém pode fazer: e tornou-se menos revolucionáriaque a canção"Home
começaramum movimento popular. O homem que ousa
44.Canção de guerra composta pelos revolucionários franceses; é oficial-
mente o hino da França desde o século XIX. Para ilustrar ao leitor o que
43.Refere-seao sul da França, onde se alastrara a heresia albigense, e onde Chesterton diz logo adiante, entre seus versos se encontra: "Ásarmas, ci-
SãoDomingosteve que intervir. Para mais detalhes sobre a história, cf. dadàos/Formai vossos batalhões/Marchemos, marchemos!/Que o sangue
livreto do boxno 22, Vidade São Domingos. (N.E.) impuro/regue nosso solo!". (N .E.)

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" 45Ademais, e é muito pertinente lembrá-
Sweet Home . os cães estão latindo; os mendigos estão vindo".46Houve
de hoje considerariam insuficiente
-Io, os revolucionários muitas cidades que quase levantaram fortificação contra
franceses, como considerariam insuficiente a
a revolta dos que nenhuma delas foi longe o os mendigos, e muitos cães de guarda de estirpe latiram,
Diriam
revoltados frades. e latiram alto, quando os mendigos passaram; mais alto
muitos, na época, disseram o contrá-
bastante; no entanto, ainda, porém, era o cantarolar dos mendigos que canta-
frades, os postos mais altos do Estado, e
rio. No caso dos vam seu Cântico do Sol, e mais alto ainda o latido dos
até a Igreja, abalaram-se à vista de tantos
em certa medida Cães do Céu —os Domini canesdo trocadilho medieval,
espalhando sem freios por entre
pregadorespopularesse os "Cães de Deus".47E se quisermos medir o quão brutal
fácil ter a real noção de quão descon-
o povo.Não nos é e lacerante parecia aquela revolução, o quanto soava como
se afiguraram esses eventos no
certantes e até reprováveis um rompimento com o passado, poderemos ter uma boa
se transformam em insti-
passadodistante.As revoluções medida disso no primeiro e mais extraordinário evento da
que renovam a juventude
tuições; por sua vez, as revoltas vida de Santo Tomás de Aquino.
elas mesmas envelhecendo.
das velhas sociedades acabam
de coisas novas, de cismas e
E o passado,outrora repleto
inovaçõese insurreições, se nos afigura como a urdidura de
uma única tradição.
Mas se procuramos um fato que nos torne vívido esse
choquede novidade—que mostre o quão tosco, bruto,
quase grosseiro em seu ineditismo irresponsável, quão
afim à sarjeta e alheio ao requinte pareceu esse experi-
mento dos frades à época —existe um fato crucial que
o revela.Este fato mostra como a Cristandade, então já
milenar e estabelecida, experimentou algo semelhante ao
fim de uma era, como se os próprios caminhos da Ter-
ra parecessemtremer aos pés desse novo exército sem
nome: a marcha dos mendigos. Uma mística cantiga in-
fantil nos sugere o ambiente dessa crise: "Escuta, escuta, 46.Trata-se da cantiga popular inglesa "Hark, hark, the dogs do bark", cuja
origem alguns autores atribuem ao século XIII, supostamente inspirada
nos movimentos trovadoresco e mendicante. (NSE.)
47.Domini canes em latim significa "cães de Deus"; aglutinando-se os dois
termos, tem-se o trocadilho com "dominicanos" , os integrantes da Ordem
45.Canção de Sir Henry Bishop e John Howard Payne lançada em 1823. De de São Domingos. "Cães de Deus" é o epíteto tradicional atribuído a esses
teor marcadamente bucólico, seu título se traduz: "Lar, doce lar". (N.E.) monges. (N.E.)

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