Você está na página 1de 20

Projeto Urbano

Multidisciplinaridade e Cidades

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Rodrigo Vitorino Assumpção

Revisão Textual:
Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro
Multidisciplinaridade e Cidades

• Introdução;
• Cultura e Identidade;
• Antropologia Urbana;
• Cidades Sustentáveis do Século XXI;
• Cidades Compactas e a Sustentabilidade;
• Cidade do Medo.


OBJETIVO

DE APRENDIZADO
• Apresentar diversas possibilidades de leituras sobre a cidade, a fim de aumentar o repertório
conceitual sobre o tema, bem como possibilitar novas análises sobre o espaço urbano.
UNIDADE Multidisciplinaridade e Cidades

Introdução
As grandes metrópoles subdesenvolvidas são hoje a expressão do anta-
gonismo e da desigualdade anteriormente descritos. Em primeiro lugar,
porque o fenômeno de urbanização acelerada observado no mundo nos
últimos 40 anos ocorreu, em grande parte, nos países da periferia do
sistema. Em segundo lugar, porque, uma vez isto posto, observa-se que
são justamente as cidades os instrumentos de excelência do fenômeno de
expansão da economia-mundo capitalista que se convencionou a chamar
de globalização. Sedes de grandes corporações transnacionais e de insti-
tuições financeiras, redes de informação, teleportos e sistemas de telefo-
nia celular e de comunicação por cabo, bens de consumo sofisticados e
atividades de serviços são elementos da modernidade associada à globali-
zação. Elementos de caráter essencialmente urbano, a tal ponto que ser-
vem de parâmetro de definição das cidades-globais para os autores que
se empenham nesse tipo de caracterização. (FERREIRA, 2000, p. 13)

No trecho acima, João Sette Whitaker Ferreira aponta a rápida urbanização, principal-
mente nos países subdesenvolvidos, ou emergentes, em função da globalização. Ao mesmo
tempo, o autor menciona algumas das características que fazem uma cidade estar inseridas
em lógicas globais de produção e consumo. Para ele, elementos como sedes de corporações
transnacionais, instituições financeiras, redes de informação e comunicação, aeroportos são
essenciais para estruturar uma cidade global.

Saskia Sassen (2008) complementa o pensamento do Whitaker Ferreira ao colocar


que a cidade global é uma plataforma para produção de capacidades, como comercia-
lizar, investir, financiar e prestar serviços a nível global. Essas capacidades são geradas
pelo poder das empresas multinacionais, bem como pelo avanço das telecomunicações.

Ferreira ainda indica que essa urbanização acelerada nos países subdesenvolvidos colo-
ca de um lado o poder público omisso para resolver problemas como infraestrutura e habi-
tacional, e de outro lado o interesse das elites dominantes em manter salários baixos para
maior lucratividade. A consequência desse fato gera uma urbanização desigual (p. 13).

Essas grandes aglomerações urbanas da periferia, justamente em virtude dessa ur-


banização desigual, apresentam hoje, invariavelmente, um absoluto quadro de pobreza.
Ermínia Maricato mostra, em artigo nessa mesma revista, que o processo de urbani-
zação permitiu, é verdade, melhorias significativas em alguns indicadores sociais, prin-
cipalmente nos demográficos. A América Latina, e em especial o Brasil, apresentou
melhorias nos índices de esperança de vida ao nascer, ou ainda na taxa de mortalidade
infantil, em grande parte consequência do aumento da infraestrutura urbana básica ofer-
tada (saneamento, água tratada etc.). Dados da Cepal mostram que, na América Latina,
em virtude de sua alta taxa de urbanização, predomina a pobreza econômica (devido aos
baixos salários) sobre aquela por falta de infraestrutura básica adequada. Se em 1980
as carências físicas (necessidades básicas não satisfeitas) superavam em porcentagem a
incidência de pobreza (54% e 35%, respectivamente), já em 1997 essa relação havia se
invertido, com o índice de pobreza somando 36%, contra 32% da população sem sane-
amento básico (ARRIAGADA, 2000, p. 11). Em contrapartida, Maricato mostra que a

8
urbanização desigual provocou também uma piora nos índices socioeconômicos (cres-
cimento, renda, desemprego e violência) e urbanísticos (crescimento urbano e aumento
de favelas). O que se verifica é que a urbanização é, de fato, concentradora da pobreza
(FERREIRA, 2000, p. 14).

Outros problemas referentes a essa urbanização desigual é sua característica de ser


excludente. Cada vez mais o que temos nas grandes cidades são ilhas de uma elite do-
minante, ao redor de uma classe baixa predominante, polarizando uma cidade formal
e outra informal. As favelas, ocupações invadidas em áreas de risco, sob ausência de
infraestrutura urbana, são corriqueiras nas cidades globais.

As invasões de edifícios abandonados, ou até mesmo as apropriações dos espaços pú-


blicos de forma irregular (como atividades de camelôs em áreas comerciais) são cada vez
mais comuns. Entretanto, esse é um forte indício da pobreza e busca de sobrevivência
das pessoas com menor poder aquisitivo na cidade formal. Em contrapartida, é também
uma resistência da classe mais pobre querendo ocupar seu espaço nas cidades formais,
que muitas vezes se titulam como democráticas, mas são extremamente segregadoras.

Fato é que essa condição de urbanização excludente nos permite realizar vários tipos
de analises distintas. É o que faremos nesta unidade. Vamos estudar as cidades por meio
da multidisciplinaridade levantando questionamentos como: cultura e identidade, estudos
de antropologia urbana, cidade sustentável e cidade do medo.

Cultura e Identidade
Para começarmos a pensar na multidisciplinaridade e cidade, partimos do princípio
que a cidade é um artefato humano. Em nosso trabalho de doutorado, dedicamos algumas
páginas para essa discussão, e retomaremos brevemente aqui.

Sendo um artefato, a cidade carrega em si sempre uma intencionalidade. Ao mesmo


tempo, é uma construção espaço temporal. Portanto, o ser humano é o principal agente
modificador do território, sempre com uma intenção final. Essas intenções também estão
carregadas de experiências acumulativas de conhecimentos, acertos e erros no decorrer
da história.

[...] a cidade é um artefato humano, no qual o ser humano molda e cons-


titui seus espaços de convívio. Ele é o agente que constrói as arquiteturas,
estabelece suas relações métricas, seus espaços urbanos, suas ruas, becos,
largos e praças. É ele quem limita o fluxo dos passos de quem caminha,
cria barreiras físicas e visuais; outrora ultrapassa essas barreiras com novos
espaços criados por ele mesmo. É o ser humano que destrói para depois
reconstruir espaços urbanos, possibilitando novos sentidos e significados
a eles. E por ser um artefato, a cidade é sempre uma intenção humana.
Como suporte de sua existência, o ser humano molda a cidade sempre
com alguma finalidade. Se há sobras na cidade, aquele espaço urbano ain-
da não foi pensado necessariamente para um fim, ou justamente represen-
tam as lógicas desconexas citadas. Portanto, a cidade é pautada por uma
intencionalidade. Enquanto artefato humano, a cidade física, já constituída,
foi outrora decorrente da intencionalidade. (ASSUMPÇÃO, 2017, p. 17)

9
9
UNIDADE Multidisciplinaridade e Cidades

É exatamente esse acúmulo de conhecimentos e a construção espaço temporal que faz


da cidade ser um produto direto da cultura humana. Não é incomum, quando passeamos
por cidades, como turistas, nós nos encantarmos como paisagens urbanas totalmente di-
ferentes daquelas vividas em nossa cidade. As paisagens urbanas das nossas cidades estão
tão arraigadas na nossa consciência e subconsciência a ponto de esquecermos que nossas
cidades sofreram também processos acumulativos no binômio espaço temporal.

Contudo, cada cidade tem suas características particulares. Por exemplo, muitas ci-
dades de Portugal têm suas arquiteturas construídas com pedras. Isso acontece princi-
palmente nas aldeias portuguesas. Mas algumas outras cidades têm paisagens urbanas
totalmente distintas das aldeias. É o caso de Porto ou Lisboa. São cidades diferentes, são
contextos históricos diferentes e, consequentemente, contextos sociais também distintos.
O resultado são paisagens urbanas diametralmente opostas.

Aqui no Brasil, essas diferenças se tornam bem evidentes. Por ser um país de dimen-
sões continentais, uma cidade como Olinda, no nordeste brasileiro tem características
distintas de Blumenau. A forma de construir, os materiais aplicados, a topografia e os
aspectos climáticos influenciam diretamente no resultado formal da paisagem urbana.
O curioso é que muitas cidades coloniais brasileiras têm elementos arquitetônicos que re-
metem arquitetura árabe, como o muxarabi, por exemplo. Entretanto, esse elemento tam-
bém pode ser encontrado em algumas cidades portuguesas. Isso é uma pequena amostra
de que os conhecimentos adquiridos na miscigenação na formação entre Portugal e os
árabes, também foram trazidos e aplicados aqui no Brasil. Esse apontamento reforça a
ideia de que cidade é um produto da cultura humana.

As características culturais encontradas nas cidades podem ser observadas em bairros


de uma mesma cidade. São Paulo, Rio de Janeiro, que se inserem no contexto de cidades
globais, possuem bairros com características culturais absolutamente distintas e evidentes.
Por exemplo, se perguntarmos para algum morador da Mooca, onde ele mora, logo dirá
com um leve sotaque italiano “Eu sou da Mooca”. Se repetirmos a pergunta para algum
morador do Tatuapé, a resposta possivelmente será “Eu moro no Anália Franco”. Contudo,
se essa pergunta for feita em São Mateus, provavelmente a resposta será “Eu sou da ZL
(zona leste)”. Curiosamente, tanto a Mooca, como o Tatuapé, o Anália Franco e São Mateus
pertencem à Zona Leste de São Paulo. Mas por que as respostas são tão distintas?

Em primeiro lugar, por que algumas fronteiras ou limites de bairros não são tão cla-
ramente definidos. É o caso da confusão entre Anália Franco e Tatuapé. Teoricamente,
o primeiro é um bairro mais nobre, o que de certa forma valorizaria muito o lugar onde
essa pessoa mora. Outra razão é porque alguns bairros possuem uma identidade tão
forte com os moradores, que é praticamente impossível desvincular a história de vida
– pessoal ou familiar – com a história do bairro. É o caso da Mooca, onde famílias de
imigrantes italianos se instalaram e vivem suas tradições até hoje.

Por fim, vale lembrar que não só os bairros possuem a identidade forte como seus
moradores, mas até mesmo uma região. É o caso de São Mateus, São Miguel, Engenheiro
Goulart. Pessoas que moram nesses bairros se identificam muito mais com o conjunto da
região inteira do que com um bairro específico. Por isso, respondem que são da “ZL”, ou
seja, zona leste. Essa sigla é tão forte, que não há nenhuma outra região em São Paulo
que diga, sou da ZN (zona norte) ou ZO (zona oeste).

10
Essas identificações acontecem devido ao sentido de pertencimento que as pessoas têm
com o lugar. É exatamente esse sentido que aponta a identidade e caracteriza uma cultura
local. Vale a pena refletir sobre o que Bauman diz sobre identidade, cultura e pertencimento.

A identidade pessoal confere significado ao “eu”. A identidade social garante esse signi-
ficado e, além disso, permite que se fale de um “nós” em que o “eu”, precário e inseguro,
possa se abrigar, descansar em segurança e até se livrar de suas ansiedades.

O “nós” feito de inclusão, aceitação e confirmação é o domínio da segurança gratificante,


desligada [...] do apavorante deserto do lá fora habitado por “eles”. A segurança só é obtida
quando se confia que “nós” temos o poder da aceitação e a força para proteger aqueles que
já foram aceitos. A identidade é percebida como segurança se os poderes que a certificaram
parecem prevalecer sobre “eles” – os estranhos, os adversários, os outros hostis, construídos
simultaneamente ao “nós” no processo de autoafirmação. “Nós” devemos ser poderosos, ou
a identidade social não será gratificante (BAUMAN, 2012, p. 46).

Na prática, as afirmações de Bauman reforçam a ideia de que as identidades sociais


desses bairros sempre tentam prevalecer sobre os outros, afirmando assim suas carac-
terísticas particulares e estabelecendo relações singulares entre os habitantes e o lugar.

Entretanto, quando falamos de cidade global, muitas vezes o que é perdido são es-
sas identidades locais. Se todo o território faz parte de um processo de produção para
lucros absurdos e acúmulos de capital, quanto houver menor a identidade local, melhor
para acelerar esse processo de lucros. A especulação imobiliária, bem como a mudança
significativa da paisagem urbana que está atualmente ocorrendo na Mooca se relaciona
diretamente com essa ideia de uma cidade global.

Trocando Ideias...
Vale a pena procurar mais referências sobre Bauman. Seus textos e reflexões são verda-
deiros expoentes sobre a cidade e sociedade contemporâneas.

Antropologia Urbana
A visão multidisciplinar da cidade nos permite construir uma reflexão mais profunda
sobre o tema. Consideramos a antropologia urbana uma ferramenta fundamental para
ampliar nosso estudo. Em primeiro lugar, porque a antropologia urbana não apenas se
preocupa com a construção física do espaço urbano, mas também das suas relações
simbólicas entre espaço e ser humano. Em segundo lugar, essa ciência social é capaz de
analisar e apontar as formas de utilização da cidade como por exemplo nos espaços pú-
blicos, bem como expor as tradições, os costumes, enfim, a vida cotidiana da sociedade.

Se, por um lado, o arquiteto e urbanista projeta a cidade como espaço físico, o antropó-
logo urbano promove um debate sobre as relações implícitas na utilização do espaço público
e privado. Ter a visão do antropólogo agrega valores a discussão sobre a cidade global.

11
11
UNIDADE Multidisciplinaridade e Cidades

Nesse contexto, vale destacar a obra de Marc Augé intitulada “Não Lugares: intro-
dução a uma antropologia da supermodernidade” (2010). Dois pontos valem destaques.
O primeiro refere-se ao conceito cunhado por ele sobre não lugares. Como o próprio
autor menciona, os “não lugares” remete à “oposição à noção sociológica de lugar”, tra-
balhada por Mauss. Partimos do princípio que o lugar carrega valores simbólicos a um
grupo social, ao mesmo tempo em quem esse grupo tem o sentido de pertencimento e
identidade com aquele espaço urbano. Augé coloca que os “não lugares”:

[...] são tanto instalações necessárias à circulação acelerada das pessoas e


bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos) quanto os próprios
meios de transporte ou os grandes centros comerciais, ou ainda os campos
de transito prolongado onde são alojados os refugiados do planeta. (AUGÉ,
2010, p. 37)

Isso significa que os não lugares são apenas locais de passagens rápidas, sem muita
ou nenhuma possibilidade de relações simbólicas com o espaço. Se recordamos o que já
mencionamos anteriormente, espaços urbanos como aeroportos e portos são essenciais
para que uma cidade seja considerada global.

Outro aspecto importante na Antropologia Urbana são as observações de utilização


dos espaços públicos. Sobre isso, José Guilherme Cantor Magnani coloca:

Proponho a hipótese de que a antropologia tem uma contribuição espe-


cífica para a compreensão do fenômeno urbano, mais especificamente
para a pesquisa da dinâmica cultural e das formas de sociabilidade nas
grandes cidades contemporâneas e que, para cumprir esse objetivo, tem
à sua disposição um legado teórico-metodológico que, não obstante as
inúmeras releituras e revisões, constitui um repertório capaz de dotá-la
dos instrumentos necessários para enfrentar novos objetos de estudo e
questões mais atuais. (MAGNANI, 2003, p. 84)

É com essa hipótese que o autor vai expor sua experiência na concepção do seu
trabalho de doutorado. Ele argumenta que em seu trabalho – voltado para o estudo das
modalidades de lazer, cultura popular e entretenimento na periferia de São Paulo – bus-
cava as relações entre ideologia e cultura. A priori, ele questionava se a cultura popular
era um fator de libertação ou mero reflexo de ideologia dominante. Suas conclusões
foram surpreendentes.

[...] não é o conteúdo da cultura popular, do entretenimento ou do lazer


o que importa, mas os lugares onde são desfrutados, as relações que
instauram, os contatos que propiciam. Mais do que a suposta capacidade
de liberação da cultura popular ou o poder da ideologia dominante so-
bre tradições culturais populares, surgia uma questão nova: a da própria
existência de uma rica rede de lazer e entretenimento – e suas modalida-
des de fruição – na periferia urbana da cidade de São Paulo, paisagem
habitualmente descrita como uma realidade cinzenta, indiferenciada (hoje
se diria o território da exclusão, que é uma outra forma de reduzir as
diferenças a um denominador comum, a um fator de homogeneização).
(MAGNANI, 2003, p. 85)

12
Magnani descobriu que, apesar de um espaço monótono, típico da periferia de São
Paulo, havia uma extensa rede de lazer e da forma de praticá-los. Nesse contexto, surge o
conceito de “pedaço”: “enquanto a casa é o domínio dos parentes e a rua, o dos estranhos,
o pedaço evidencia outro plano, o dos ‘chegados’ que, entre a casa e a rua, instaura um
espaço de sociabilidade de outra ordem” (MAGNANI, 2003, p. 86).

Esse é um exemplo interessante para os urbanistas discutirem espaços públicos,


apropriando-se de discussões da antropologia urbana. Refletir sobre projetos urbanos
para uma periferia de cidades globais a partir da reflexão sobre áreas de lazer e entrete-
nimento pode resultar em uma rica produção de espaço público.

Trocando Ideias...
Em outro texto Magnani apresenta um estudo sobre a rua como espaço de sociabilização.
Vale a pena olhar.

Cidades Sustentáveis do Século XXI


Nossa vida mudou de escala com a globalização dos intercâmbios e da
comunicação, e com a tomada de consciência dos riscos ecológicos que
ameaçam o planeta e seus habitantes. Além de novas estratégias ener-
géticas e da introdução de uma abordagem ambiental no planejamento e
no projeto das construções, nesse início do século XXI nos vemos dian-
te de uma verdadeira escolha sobre o tipo de sociedade que queremos.
(GAUZIN-MÜLLER, 2011, p. 48)

Bernardo Secchi (2006) afirma que o projeto da cidade contemporânea possui um


horizonte temático mais vasto, se comparado à cidade moderna. Explora situações mais
variadas rejeitando as generalidades, cruzando temas, escalas e técnicas distintas para
tratar os problemas. Esses projetos pressupõem uma homogeneidade do território “que
subjaz toda estrutura de planejamento ditada pela hierarquia institucional e técnico-admi-
nistrativa” (p. 154). Certamente, o tema da sustentabilidade se apresenta como um dos
paradigmas do século XXI, o que torna essa discussão um tema urgente e emergente.

De fato, não se pensa mais a cidade como um território isolado, na qual as ações ocor-
ridas dentro de seus limites não influenciariam outros tantos territórios. É preciso refletir
sobre a cidade como um fenômeno de causas e consequências sistemáticas em toda por-
ção territorial. A poluição fluvial promovida em uma cidade, não afeta unicamente aquela
gleba territorial, mas – dentro de uma cadeia sistêmica – atinge territórios mais longínquos.
A produção de lixo de uma cidade não é, obrigatoriamente, descartada no seu território.
Diversos aterros sanitários são o entroncamento de todos os resíduos produzidos por uma
série de cidades. Para Richard Rogers (2015), os recursos consumidos por uma cidade são
medidos em termos de rastros ecológicos, isto é, “uma área, espalhada por todo mundo e
muito maior que suas fronteiras físicas, da qual a cidade depende” (p. 30).

13
13
UNIDADE Multidisciplinaridade e Cidades

Contudo, o maior problema enfrentado no século XXI será o crescimento exponen-


cial da população mundial. Na década de 1950, aproximadamente um terço da popula-
ção morava nas cidades. Estima-se que, em 2030, 60% da população estejam morando
nas áreas urbanas e, em 2050, 70% da população mundial viverá nas cidades. O que
isso significa? Primeiramente, a raça humana terá que dividir o mesmo espaço territorial
com um número maior de pessoas. Outra consequência do aumento da população é
que o consumo também intensificará. Estima-se que o aumento no consumo de energia
seja 57% e o de água atinja 50% em 2030. Os resíduos sólidos produzidos nas cidades
atingirão, em 2025, cerca de 2,2 bilhões de toneladas.

Explore a reportagem de capa “O futuro das cidades” na revista Exame CEO.

Diante de dados tão significantes e também assustadores, ratifica-se a necessidade de


refletir sobre as questões de sustentabilidade para as cidades contemporâneas. Para Ro-
gers (2015), as cidades devem ser vistas como sistema ecológico, que reflete todo o pensa-
mento no planejamento urbano e gerenciamento do uso e recursos. O que o autor propõe
é uma visão baseada nas concepções do ecologista Herbert Girardet, que concebe­a ideia
do “metabolismo circular nas cidades”. Na concepção de Girardet, o consumo é reduzido
pela implementação de eficiências, com a máxima reutilização de recursos. Nesse sentido,
prioriza-se a reciclagem de materiais, a redução do lixo, conservação dos recursos não re-
nováveis e incentivar o consumo de recursos renováveis. O ecologista defende que, como
a produção e o consumo ocorrem nas cidades, causando de forma linear a poluição (lixos
orgânicos ou inorgânicos, emissões de gases tóxicos), o sistema de produção deve ser
substituído por um sistema circular de uso e reutilização, aumentando a eficiência global e
reduzindo o impacto no meio ambiente (p. 30).

Cidades Compactas e a Sustentabilidade


O espraiamento das cidades no território é uma das práticas mais comuns no fim do
século XIX e quase todo século XX. Essa solução na maioria das vezes é adotada para ex-
pandir o território, sem se preocupar com as questões ambientais. Está vinculada também
com a possibilidade de otimização de lucros, visto que glebas com pouco ou nenhuma
infraestrutura urbana têm um valor econômico menor, se comparadas às áreas já urba-
nizadas. Ocorre que esse espraiamento tem um custo, que é pago pela população. Dis-
tâncias maiores significam também deslocamentos maiores, seja por meio de transportes
públicos ou privados. A implementação de ruas, avenidas, sistema de capitação de águas
pluviais e esgotos, sistema de energia elétrica entram nesse cálculo de custos. O próprio
zoneamento urbano que fragmenta a cidade em usos têm suas consequências econômicas.

Ao contrário desse raciocínio, Rogers (2015) defende a ideia de uma cidade compacta e
densa. Segundo o autor, através de um planejamento integrado, é possível prever um au-
mento da eficiência energética, minimizando o consumo de recursos naturais e a poluição,
freando a expansão sobre a área rural (p. 33).

14
Uma das características das cidades compactas é presença de espaços de uso misto,
integrando funções diferentes em mesmo espaço, ou nas suas proximidades. Habitar e
trabalhar estariam integrados com áreas de lazer como parques. Consequentemente, o
tempo de deslocamento e os custos financeiros e de energia com transportes também
seriam suprimidos. Caminhar na cidade aproxima os cidadãos construindo um sentido
mais amplo de pertencimento e identidade. Rogers (2015) afirma que os centros de
atividades sociais ou comerciais estariam juntos aos pontos de transporte públicos e
estes, por sua vez, comporiam uma rede de vizinhanças com parques, espaços públicos
e atividades privadas (p. 38).

Explore as experiências de Xangai para alguns dos seus distritos, na década de 1990.

Cidade do Medo
Quantas vezes estamos em nossos carros e alguém nos aborda no farol de trânsito?
Querem nos vender algum produto, como balas, ou mesmo pedir alguma moeda. Em
momentos como esse, muitas vezes, há uma miscigenação de sentimentos entre dó e
medo. Não sabemos bem se a pessoa que nos aborda tem apenas a intenção de uma
simples venda ou até mesmo um assalto. Nas grandes cidades, infelizmente, isso é cada
vez mais comum. Até mesmo crianças mendigando na rua podem se tornar verdadeiras
ameaças para alguns de nós. É bem verdade que já presenciamos assaltos realizados por
crianças, mas isso não significa que todas sejam potenciais ameaças.

A atitude mais comum é ignorar essas pessoas, fechando os vidros dos carros, ou até
mesmo fingir que não os estamos vendo. A segregação urbana também está presente
nesse ato. Isso é, por vezes, o retrato das condições sociais impostas para quem vive
nas cidades globais. Temos medo do outro, daqueles que não conhecemos, daqueles que
consideramos muito diferentes de nós. Assim nos protegemos da cidade dentro de uma
cápsula hermeticamente fechada e climatizada com ar condicionado.

Paulatinamente, os espaços urbanos também se tornam perigosos. Não temos a sen-


sação de segurança suficientemente capaz de andarmos nas ruas de alguns bairros sem
sentir medo. Há, pelo menos, alguns aspectos que devemos destacar: primeiramente vive-
mos uma modernidade líquida, como aponta Bauman em seu livro homônimo. Nessa con-
dição, as relações humanas também são líquidas. Em outra obra “Amor líquido” (2004),
o autor menciona que nós não criamos mais laços afetivos com as pessoas e, quando
criamos, são laços frouxos, fáceis de desatar. É como uma “relação de bolso”, encarnando
a instantaneidade e a disponibilidade (p. 36).

Assista ao filme “O filme Medianeiras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual”. Veja o
trailer disponível em: https://youtu.be/yVUQx99jzHQ

15
15
UNIDADE Multidisciplinaridade e Cidades

Entretanto, Bauman (2009) coloca que o medo contemporâneo não é apenas carac-
terizado pelos crimes ou criminosos. Para ele, a culpa desse medo é consequência de
um individualismo moderno (CASTEL apud BAUMAN, 2009, p. 16). Estamos cada vez
mais individualistas, não nos preocupamos com os outros. Enquanto, na história das
cidades, as praças e as ágoras foram espaços abertos de discussões, manifestações e
encontros, as redes sociais intensificam esse individualismo, ao mesmo tempo em que
protegem aqueles que emitem opiniões. Os encontros são marcados em espaços virtuais
que substituem, paulatinamente, espaços de encontros. O resultado disso é a intensifi-
cação do individualismo.

Cada vez mais, grandes empreendimentos imobiliários oferecem serviços que ex-
cluem os moradores de qualquer tipo de relação com o espaço urbano. A academia, a
praça, o bosque são espaços e serviços que muitos condomínios têm disponível para
os moradores. A aproximação entre as pessoas desses condomínios, de forma pacífica
ou não, criam um grupo social com padrões de comportamento comuns. Esse grupo,
por vezes, é totalmente diferente dos vizinhos de outras ruas ou bairros. Nesse contexto,
quem não faz parte do mesmo grupo social representa uma ameaça ao outro.

Vamos pensar em um fato que aconteceu em São Paulo por volta de 2013. Com o
avanço das redes sociais, muitos jovens da periferia marcavam encontros em shopping
center, ou parques, que ficaram conhecidos como “rolezinhos”. De certa forma, é uma
maneira de se colocar na cidade, ou seja, uma resistência da periferia que reivindica seu
lugar nos espaços urbanos por direito, de qualquer cidadão. Obviamente, ninguém de-
fende o vandalismo, ou a brutalidade, mas muitos desses eventos se apresentavam como
problemas de segurança pública.

”Conheça a história dos ‘rolezinhos’ em São Paulo”. Disponível em: https://glo.bo/2ITfuG3

Shopping center é um espaço privado de uso público. A questão que colocamos é:


será que o fechamento das lojas ou a proibição de acesso a algumas pessoas não é o
reflexo do medo daquele que não conhecemos ou não pertence ao mesmo grupo social
que nós? Provavelmente, sim!

Para finalizar o assunto, colocamos um último questionamento. Se esses jovens bus-


cam alternativas de lazer longe de suas residências, isso também não é um indício de
fragilidade de espaços livres públicos de qualidade nas periferias? Com certeza, sim, mas
é também uma reafirmação de resistência da periferia, bem como a demanda de utiliza-
ção de espaços públicos mais democráticos na cidade.

Em Síntese
Nesta unidade, mostramos alguns caminhos possíveis para analisar as cidades. São vi-
sões que remetem a metodologias de leitura e compreensão do espaço urbano contem-
porâneo totalmente distintas, mas necessárias para uma concepção completa sobre as
cidades contemporâneas.

16
Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
Vitruvius
https://bit.ly/388j4py
Núcleo de Antropologia Urbana USP
https://bit.ly/30gYhvC
Urbanista às avessas
https://bit.ly/3chgQpt

Filmes
Medianeiras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual
Buenos Aires na Era do Amor Virtual, conta a história de Martin, Mariana e seus
desencontros. Eles vivem na mesma cidade, na mesma quadra, em apartamentos
um de frente para o outro mas nunca conseguem se encontrar. Só conseguem se
relacionar via internet. Se conhecem online, mas na vida offline se cruzam sem
saber da existência um do outro.
https://youtu.be/yVUQx99jzHQ

17
17
UNIDADE Multidisciplinaridade e Cidades

Referências
ASSUMPÇÃO, R. V. Canto, Vazio e Memória: Ontologia e Território. Campinas: Tese
de doutorado PucCampinas, 2017.

AUGÉ, M. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas:


Papirus, 2010.

BAUMAN, Z. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2004.

________. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

________. Ensaios sobre o conceito de cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

FERREIRA, J. S. W. Globalização e urbanização subdesenvolvida. São Paulo Pers-


pec., São Paulo, v. 14, n. 4, p. 10-20, Oct. 2000. Disponível em: <http://www.scielo.
br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-88392000000400003&lng=en&nrm=i
so>. Acesso em: 17/07/2020.

GAUZIN-MÜLLER, D. Arquitetura Ecológica. São Paulo: Ed. Senac, 2011.

MAGNANI, J. G. C. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana de perto


e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Rev. bras. Ci. Soc., São Paulo, v. 17,
n. 49, p. 11-29, June 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-69092002000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 17/07/2020.

________. Etnografia como prática e experiência. Horiz. antropol., Porto Alegre,


v. 15, n. 32, p. 129-156, dez. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832009000200006&lng=pt&nrm=iso>. Acesso
em: 17/07/2020.

ROGERS, R. Cidades para um pequeno planeta. São Paulo: Gustavo Gili, 2015.

SASSEN, S. As diferentes espacializações das cidades globais. São Paulo: Vitruvius, 2008.

SECCHI, B. Primeira lição de urbanismo. São Paulo: Perspectiva, 2006.

18

Você também pode gostar