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Multidisciplinaridade e Cidades
Revisão Textual:
Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro
Multidisciplinaridade e Cidades
• Introdução;
• Cultura e Identidade;
• Antropologia Urbana;
• Cidades Sustentáveis do Século XXI;
• Cidades Compactas e a Sustentabilidade;
• Cidade do Medo.
OBJETIVO
DE APRENDIZADO
• Apresentar diversas possibilidades de leituras sobre a cidade, a fim de aumentar o repertório
conceitual sobre o tema, bem como possibilitar novas análises sobre o espaço urbano.
UNIDADE Multidisciplinaridade e Cidades
Introdução
As grandes metrópoles subdesenvolvidas são hoje a expressão do anta-
gonismo e da desigualdade anteriormente descritos. Em primeiro lugar,
porque o fenômeno de urbanização acelerada observado no mundo nos
últimos 40 anos ocorreu, em grande parte, nos países da periferia do
sistema. Em segundo lugar, porque, uma vez isto posto, observa-se que
são justamente as cidades os instrumentos de excelência do fenômeno de
expansão da economia-mundo capitalista que se convencionou a chamar
de globalização. Sedes de grandes corporações transnacionais e de insti-
tuições financeiras, redes de informação, teleportos e sistemas de telefo-
nia celular e de comunicação por cabo, bens de consumo sofisticados e
atividades de serviços são elementos da modernidade associada à globali-
zação. Elementos de caráter essencialmente urbano, a tal ponto que ser-
vem de parâmetro de definição das cidades-globais para os autores que
se empenham nesse tipo de caracterização. (FERREIRA, 2000, p. 13)
No trecho acima, João Sette Whitaker Ferreira aponta a rápida urbanização, principal-
mente nos países subdesenvolvidos, ou emergentes, em função da globalização. Ao mesmo
tempo, o autor menciona algumas das características que fazem uma cidade estar inseridas
em lógicas globais de produção e consumo. Para ele, elementos como sedes de corporações
transnacionais, instituições financeiras, redes de informação e comunicação, aeroportos são
essenciais para estruturar uma cidade global.
Ferreira ainda indica que essa urbanização acelerada nos países subdesenvolvidos colo-
ca de um lado o poder público omisso para resolver problemas como infraestrutura e habi-
tacional, e de outro lado o interesse das elites dominantes em manter salários baixos para
maior lucratividade. A consequência desse fato gera uma urbanização desigual (p. 13).
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urbanização desigual provocou também uma piora nos índices socioeconômicos (cres-
cimento, renda, desemprego e violência) e urbanísticos (crescimento urbano e aumento
de favelas). O que se verifica é que a urbanização é, de fato, concentradora da pobreza
(FERREIRA, 2000, p. 14).
Fato é que essa condição de urbanização excludente nos permite realizar vários tipos
de analises distintas. É o que faremos nesta unidade. Vamos estudar as cidades por meio
da multidisciplinaridade levantando questionamentos como: cultura e identidade, estudos
de antropologia urbana, cidade sustentável e cidade do medo.
Cultura e Identidade
Para começarmos a pensar na multidisciplinaridade e cidade, partimos do princípio
que a cidade é um artefato humano. Em nosso trabalho de doutorado, dedicamos algumas
páginas para essa discussão, e retomaremos brevemente aqui.
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UNIDADE Multidisciplinaridade e Cidades
Contudo, cada cidade tem suas características particulares. Por exemplo, muitas ci-
dades de Portugal têm suas arquiteturas construídas com pedras. Isso acontece princi-
palmente nas aldeias portuguesas. Mas algumas outras cidades têm paisagens urbanas
totalmente distintas das aldeias. É o caso de Porto ou Lisboa. São cidades diferentes, são
contextos históricos diferentes e, consequentemente, contextos sociais também distintos.
O resultado são paisagens urbanas diametralmente opostas.
Aqui no Brasil, essas diferenças se tornam bem evidentes. Por ser um país de dimen-
sões continentais, uma cidade como Olinda, no nordeste brasileiro tem características
distintas de Blumenau. A forma de construir, os materiais aplicados, a topografia e os
aspectos climáticos influenciam diretamente no resultado formal da paisagem urbana.
O curioso é que muitas cidades coloniais brasileiras têm elementos arquitetônicos que re-
metem arquitetura árabe, como o muxarabi, por exemplo. Entretanto, esse elemento tam-
bém pode ser encontrado em algumas cidades portuguesas. Isso é uma pequena amostra
de que os conhecimentos adquiridos na miscigenação na formação entre Portugal e os
árabes, também foram trazidos e aplicados aqui no Brasil. Esse apontamento reforça a
ideia de que cidade é um produto da cultura humana.
Em primeiro lugar, por que algumas fronteiras ou limites de bairros não são tão cla-
ramente definidos. É o caso da confusão entre Anália Franco e Tatuapé. Teoricamente,
o primeiro é um bairro mais nobre, o que de certa forma valorizaria muito o lugar onde
essa pessoa mora. Outra razão é porque alguns bairros possuem uma identidade tão
forte com os moradores, que é praticamente impossível desvincular a história de vida
– pessoal ou familiar – com a história do bairro. É o caso da Mooca, onde famílias de
imigrantes italianos se instalaram e vivem suas tradições até hoje.
Por fim, vale lembrar que não só os bairros possuem a identidade forte como seus
moradores, mas até mesmo uma região. É o caso de São Mateus, São Miguel, Engenheiro
Goulart. Pessoas que moram nesses bairros se identificam muito mais com o conjunto da
região inteira do que com um bairro específico. Por isso, respondem que são da “ZL”, ou
seja, zona leste. Essa sigla é tão forte, que não há nenhuma outra região em São Paulo
que diga, sou da ZN (zona norte) ou ZO (zona oeste).
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Essas identificações acontecem devido ao sentido de pertencimento que as pessoas têm
com o lugar. É exatamente esse sentido que aponta a identidade e caracteriza uma cultura
local. Vale a pena refletir sobre o que Bauman diz sobre identidade, cultura e pertencimento.
A identidade pessoal confere significado ao “eu”. A identidade social garante esse signi-
ficado e, além disso, permite que se fale de um “nós” em que o “eu”, precário e inseguro,
possa se abrigar, descansar em segurança e até se livrar de suas ansiedades.
Entretanto, quando falamos de cidade global, muitas vezes o que é perdido são es-
sas identidades locais. Se todo o território faz parte de um processo de produção para
lucros absurdos e acúmulos de capital, quanto houver menor a identidade local, melhor
para acelerar esse processo de lucros. A especulação imobiliária, bem como a mudança
significativa da paisagem urbana que está atualmente ocorrendo na Mooca se relaciona
diretamente com essa ideia de uma cidade global.
Trocando Ideias...
Vale a pena procurar mais referências sobre Bauman. Seus textos e reflexões são verda-
deiros expoentes sobre a cidade e sociedade contemporâneas.
Antropologia Urbana
A visão multidisciplinar da cidade nos permite construir uma reflexão mais profunda
sobre o tema. Consideramos a antropologia urbana uma ferramenta fundamental para
ampliar nosso estudo. Em primeiro lugar, porque a antropologia urbana não apenas se
preocupa com a construção física do espaço urbano, mas também das suas relações
simbólicas entre espaço e ser humano. Em segundo lugar, essa ciência social é capaz de
analisar e apontar as formas de utilização da cidade como por exemplo nos espaços pú-
blicos, bem como expor as tradições, os costumes, enfim, a vida cotidiana da sociedade.
Se, por um lado, o arquiteto e urbanista projeta a cidade como espaço físico, o antropó-
logo urbano promove um debate sobre as relações implícitas na utilização do espaço público
e privado. Ter a visão do antropólogo agrega valores a discussão sobre a cidade global.
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UNIDADE Multidisciplinaridade e Cidades
Nesse contexto, vale destacar a obra de Marc Augé intitulada “Não Lugares: intro-
dução a uma antropologia da supermodernidade” (2010). Dois pontos valem destaques.
O primeiro refere-se ao conceito cunhado por ele sobre não lugares. Como o próprio
autor menciona, os “não lugares” remete à “oposição à noção sociológica de lugar”, tra-
balhada por Mauss. Partimos do princípio que o lugar carrega valores simbólicos a um
grupo social, ao mesmo tempo em quem esse grupo tem o sentido de pertencimento e
identidade com aquele espaço urbano. Augé coloca que os “não lugares”:
Isso significa que os não lugares são apenas locais de passagens rápidas, sem muita
ou nenhuma possibilidade de relações simbólicas com o espaço. Se recordamos o que já
mencionamos anteriormente, espaços urbanos como aeroportos e portos são essenciais
para que uma cidade seja considerada global.
É com essa hipótese que o autor vai expor sua experiência na concepção do seu
trabalho de doutorado. Ele argumenta que em seu trabalho – voltado para o estudo das
modalidades de lazer, cultura popular e entretenimento na periferia de São Paulo – bus-
cava as relações entre ideologia e cultura. A priori, ele questionava se a cultura popular
era um fator de libertação ou mero reflexo de ideologia dominante. Suas conclusões
foram surpreendentes.
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Magnani descobriu que, apesar de um espaço monótono, típico da periferia de São
Paulo, havia uma extensa rede de lazer e da forma de praticá-los. Nesse contexto, surge o
conceito de “pedaço”: “enquanto a casa é o domínio dos parentes e a rua, o dos estranhos,
o pedaço evidencia outro plano, o dos ‘chegados’ que, entre a casa e a rua, instaura um
espaço de sociabilidade de outra ordem” (MAGNANI, 2003, p. 86).
Trocando Ideias...
Em outro texto Magnani apresenta um estudo sobre a rua como espaço de sociabilização.
Vale a pena olhar.
De fato, não se pensa mais a cidade como um território isolado, na qual as ações ocor-
ridas dentro de seus limites não influenciariam outros tantos territórios. É preciso refletir
sobre a cidade como um fenômeno de causas e consequências sistemáticas em toda por-
ção territorial. A poluição fluvial promovida em uma cidade, não afeta unicamente aquela
gleba territorial, mas – dentro de uma cadeia sistêmica – atinge territórios mais longínquos.
A produção de lixo de uma cidade não é, obrigatoriamente, descartada no seu território.
Diversos aterros sanitários são o entroncamento de todos os resíduos produzidos por uma
série de cidades. Para Richard Rogers (2015), os recursos consumidos por uma cidade são
medidos em termos de rastros ecológicos, isto é, “uma área, espalhada por todo mundo e
muito maior que suas fronteiras físicas, da qual a cidade depende” (p. 30).
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Ao contrário desse raciocínio, Rogers (2015) defende a ideia de uma cidade compacta e
densa. Segundo o autor, através de um planejamento integrado, é possível prever um au-
mento da eficiência energética, minimizando o consumo de recursos naturais e a poluição,
freando a expansão sobre a área rural (p. 33).
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Uma das características das cidades compactas é presença de espaços de uso misto,
integrando funções diferentes em mesmo espaço, ou nas suas proximidades. Habitar e
trabalhar estariam integrados com áreas de lazer como parques. Consequentemente, o
tempo de deslocamento e os custos financeiros e de energia com transportes também
seriam suprimidos. Caminhar na cidade aproxima os cidadãos construindo um sentido
mais amplo de pertencimento e identidade. Rogers (2015) afirma que os centros de
atividades sociais ou comerciais estariam juntos aos pontos de transporte públicos e
estes, por sua vez, comporiam uma rede de vizinhanças com parques, espaços públicos
e atividades privadas (p. 38).
Explore as experiências de Xangai para alguns dos seus distritos, na década de 1990.
Cidade do Medo
Quantas vezes estamos em nossos carros e alguém nos aborda no farol de trânsito?
Querem nos vender algum produto, como balas, ou mesmo pedir alguma moeda. Em
momentos como esse, muitas vezes, há uma miscigenação de sentimentos entre dó e
medo. Não sabemos bem se a pessoa que nos aborda tem apenas a intenção de uma
simples venda ou até mesmo um assalto. Nas grandes cidades, infelizmente, isso é cada
vez mais comum. Até mesmo crianças mendigando na rua podem se tornar verdadeiras
ameaças para alguns de nós. É bem verdade que já presenciamos assaltos realizados por
crianças, mas isso não significa que todas sejam potenciais ameaças.
A atitude mais comum é ignorar essas pessoas, fechando os vidros dos carros, ou até
mesmo fingir que não os estamos vendo. A segregação urbana também está presente
nesse ato. Isso é, por vezes, o retrato das condições sociais impostas para quem vive
nas cidades globais. Temos medo do outro, daqueles que não conhecemos, daqueles que
consideramos muito diferentes de nós. Assim nos protegemos da cidade dentro de uma
cápsula hermeticamente fechada e climatizada com ar condicionado.
Assista ao filme “O filme Medianeiras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual”. Veja o
trailer disponível em: https://youtu.be/yVUQx99jzHQ
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Entretanto, Bauman (2009) coloca que o medo contemporâneo não é apenas carac-
terizado pelos crimes ou criminosos. Para ele, a culpa desse medo é consequência de
um individualismo moderno (CASTEL apud BAUMAN, 2009, p. 16). Estamos cada vez
mais individualistas, não nos preocupamos com os outros. Enquanto, na história das
cidades, as praças e as ágoras foram espaços abertos de discussões, manifestações e
encontros, as redes sociais intensificam esse individualismo, ao mesmo tempo em que
protegem aqueles que emitem opiniões. Os encontros são marcados em espaços virtuais
que substituem, paulatinamente, espaços de encontros. O resultado disso é a intensifi-
cação do individualismo.
Cada vez mais, grandes empreendimentos imobiliários oferecem serviços que ex-
cluem os moradores de qualquer tipo de relação com o espaço urbano. A academia, a
praça, o bosque são espaços e serviços que muitos condomínios têm disponível para
os moradores. A aproximação entre as pessoas desses condomínios, de forma pacífica
ou não, criam um grupo social com padrões de comportamento comuns. Esse grupo,
por vezes, é totalmente diferente dos vizinhos de outras ruas ou bairros. Nesse contexto,
quem não faz parte do mesmo grupo social representa uma ameaça ao outro.
Vamos pensar em um fato que aconteceu em São Paulo por volta de 2013. Com o
avanço das redes sociais, muitos jovens da periferia marcavam encontros em shopping
center, ou parques, que ficaram conhecidos como “rolezinhos”. De certa forma, é uma
maneira de se colocar na cidade, ou seja, uma resistência da periferia que reivindica seu
lugar nos espaços urbanos por direito, de qualquer cidadão. Obviamente, ninguém de-
fende o vandalismo, ou a brutalidade, mas muitos desses eventos se apresentavam como
problemas de segurança pública.
Em Síntese
Nesta unidade, mostramos alguns caminhos possíveis para analisar as cidades. São vi-
sões que remetem a metodologias de leitura e compreensão do espaço urbano contem-
porâneo totalmente distintas, mas necessárias para uma concepção completa sobre as
cidades contemporâneas.
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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:
Sites
Vitruvius
https://bit.ly/388j4py
Núcleo de Antropologia Urbana USP
https://bit.ly/30gYhvC
Urbanista às avessas
https://bit.ly/3chgQpt
Filmes
Medianeiras: Buenos Aires da Era do Amor Virtual
Buenos Aires na Era do Amor Virtual, conta a história de Martin, Mariana e seus
desencontros. Eles vivem na mesma cidade, na mesma quadra, em apartamentos
um de frente para o outro mas nunca conseguem se encontrar. Só conseguem se
relacionar via internet. Se conhecem online, mas na vida offline se cruzam sem
saber da existência um do outro.
https://youtu.be/yVUQx99jzHQ
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Referências
ASSUMPÇÃO, R. V. Canto, Vazio e Memória: Ontologia e Território. Campinas: Tese
de doutorado PucCampinas, 2017.
BAUMAN, Z. Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro:
Zahar, 2004.
ROGERS, R. Cidades para um pequeno planeta. São Paulo: Gustavo Gili, 2015.
SASSEN, S. As diferentes espacializações das cidades globais. São Paulo: Vitruvius, 2008.
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