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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

RAFAEL DOMINGUES ADAIME

CLÍNICA EXPERIMENTAL:

PROGRAMAS PARA MÁQUINAS DESEJANTES

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

NÚCLEO DE ESTUDOS DA SUBJETIVIDADE

SÃO PAULO

2007
2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

RAFAEL DOMINGUES ADAIME

CLÍNICA EXPERIMENTAL:

PROGRAMAS PARA MÁQUINAS DESEJANTES

MESTRADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA

NÚCLEO DE ESTUDOS DA SUBJETIVIDADE

Dissertação apresentada à Banca


Examinadora da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Psicologia
Clínica sob orientação do Prof. Doutor
Luiz Benedicto Lacerda Orlandi.

SÃO PAULO

2007
3

Banca Examinadora

________________________________

________________________________

________________________________

São Paulo, ____ , ____________ de 2008


4

Agradecimentos

Maria Alice Domingues Adaime e Silsomar Adaime.

Fabiana Faleiros.

Anderson Borba.

Luiz B. L. Orlandi.

Peter Pelbart, Suely Rolnik, Marilia Muylaert, Alexandre Henz.

Fabiane Borges, Felipe Ribeiro, Veridiana Zurita, Alessandra Galasso, Bruno

Bernardi, Rodrigo Araújo, Eduardo Fernandes, Juny Kraiczyk, Giuliano Obici,

Júlio York, Juliana Dorneles, Damian Kraus, Silvia Mecozzi, Cristiane Mesquita,

Anita Malufe, Edson Barrus, Mariana Marcassa, Lucélia Zamborlini, Lorene

Soares, Cecília Galletti, Aledyson Marques, Isabel Vieira, John Laudenberger,

Rosa Blanco, Eduardo Aragon, Bruno Vasconcelos, Audrey Landell, Milene

Gouget, Rosalina Santacruz, Patrícia Camelato, Geandre Tomazoni, Fabiana

Prado, Alex Kazuo, Gabriel Kolyniak, Flávio Fraschetti, Daniel Ávila, Daniel

Fagundes, Eduardo Moraes, Vitor Freire, Guilherme Oliveira, César Rosa, Luiz

Fuganti, Marcos Medeiros, Kaloan, Igor, Aline, Tati, Mari, Hugo, Juliano Reis,

Luiz Ramos, Moizés Vasconcelos, Túlio Tavares, Flávia Samarone, Tatiana

Scherer, Anderson Barbosa, Renata Bessi, Milena Durante, João Vitor, Alice,

Mariane Sobrosa, Marcelo Peccioli, Mariah Leick e Zig.


5

Resum o

Esta disse r tação é um e studo so br e pr o ce dime nto s e xpe r ime ntais

e m psico te r apia, em que pr o curo dar visibil ida de , atr avé s de

alguns caso s e e le me nto s te ó r ico s, par a o mo do co mo te nho

tr abalhado na clínica pe la via da expe r ime ntação , po r influê nc ia

da o br a de G ille s De le uz e e Fé lix G uattar i, a esquiz o análise .


6

Abstract

T his disse r tatio n is a study of e xpe r ime ntal pro ce dur e s in

psycho the r apy, in w hich I inte nd to give visib il ity thr o ugh so me

case s and the or e tical e le me nts, to the w ay I have w or ke d at the

clinic thr o ugh expe r ime ntatio n , by the influe nce of the wo r k o f

G ille s De le uze and Fe lix Guattar i, the schiz o analysi s.


7

Sumário

Parte I: Partir {08}


Esquizos {10}
Uma nova saúde {14}
Esquizoterapia {18}
Caso Diego {24}
Replicantes {46}

Parte II: Viajar {56}


A espreita dos guerreiros {58}
Um corpo para brincar {60}
A literatura é uma saúde {66}
Um corpo para falar {76}

Parte III: Manter {91}


Um corpo para viajar {93}

Bibliografia {113}
8

PARTE I

PARTIR
9

Programa

Não considerar o desejo uma superestrutura subjetiva que fica pisca-


piscando. Fazer o desejo passar para o lado da infra-estrutura, e a família o
ego, a pessoa para o lado da antiprodução. Abandonar uma abordagem do
inconsciente pela neurose e a família, para adotar aquela, mais específica,
dos processos esquizofrênicos, das máquinas desejantes.
Desfazer-se do significante. Deixar-se deslizar pelos caminhos das
multiplicidades concretas. Parar de ficar opondo o homem à máquina: sua
relação é constitutiva do próprio desejo. Promover uma outra lógica, uma
lógica do desejo real. Promover uma outra análise, isenta do simbolismo e da
interpretação, e um outro militantismo, arranjando meios para libertar-se por
si mesmo das significações da ordem dominante. Conceber agenciamentos
coletivos de enunciação que superem o corte entre sujeito da enunciação e
sujeito do enunciado. Ao fascismo do poder opor as linhas de fuga ativas e
positivas que mobilizam o desejo, as máquinas de desejo e a organização do
campo social inconsciente. Não é fugir, você próprio, “pessoalmente”, dar o
fora, se mandar, mas afugentar, fazer fugir, fazer vazar, como se fura um
cano ou um abscesso. Fazer os fluxos passarem sob os códigos sociais que
querem canalizá-los, barrá-los. A partir das posições de desejo locais e
minúsculas, pôr em xeque, passo a passo, o conjunto do sistema capitalista.
Liberar os fluxos, ir longe no artifício, cada vez mais.

{ Félix Gua tt a r i 1 }

1
Revolução Molecular, Brasiliense, p. 142.
10

Esquizos

Esta disse r tação é um e studo so br e pr o ce dime nto s e xpe r ime ntais


e m psico te r apia, em que pr o curo dar visibil ida de , atr avé s de
alguns caso s e e le me nto s te ó r ico s, par a o mo do co mo te nho
tr abalhado na clínica pe la via da expe r ime ntação , po r influê nc ia
da o br a de De le uz e e G uattar i, a e squiz o análise . O pr ime ir o
mo vime nto de uma clínica que visa à e xpe r ime ntação co mo
po ssíve l so lução em é po cas de cr ise , co nsiste em le var
pr ude nte me nte o indiv íduo par a fo r a do se u te rr itó r io do minante
atual, to mado po r impasse s. Esse pr ime ir o de slo came nto , atr avé s
do qual um te rr itó r io é apr e e ndido co mo um do mínio do qual se
está e m vias de sair , De le uz e e G uattar i chamar am de par tir , o
mo vime nto típico de uma de ste rr ito r ializ ação , se ja r e lativa o u
abso luta, que implic a pe gar uma linha de fuga que ar r asta par a
for a. O e squiz o , co mo pe r so nage m co nce itual, e não co mo
per so nage m catatô nico ho spital iz ado , é pe nsado e m função de
um pr o ce sso esquiz o fr ê nico . Esse pr o ce sso co r re spo nde nte a
fluxo s mo le cular e s de máquinas de se jante s que car acte r iz am o
inco nscie nte co nside r ado em sua po tê ncia pr o dutiva ,
me tamo r fo se ante . A expe r ime ntação impl ica a apr ee nsão de ssas
máquinas te ndo e m vista o aume nto da po tê ncia de libe r ar ne las
me smas a po ssibili dade de co ne ctar e m a qualq ue r o utr a máquina,
té cnicas, so ciais, o u me smo de de se jo . Se me lhante ao que faz
B ur r o ughs, pro cur ando um mo do e m que fo sse po ssíve l captar a
po tê ncia das dr o gas se m to r nar -se um far r apo num bur aco ne gr o ,
De le uz e e Guattar i inve ntam a esquiz o análise co mo um mo do de
to r nar po ssíve l captar a po tê ncia co ne ctiva do esquiz o , que de lir a
to do o campo so cial, se m cair num estado hipe r co ne ctivo
ale ató r io que nada pr o duz a. Par tindo em mo vime nto s
e xpe r ime ntais de ster r ito r ializ ante s, o esqu izo le va co ns igo os
fluxo s de sco d ifica do s e faz co m que e le s atrave sse m o de se r to do
11

cor po se m ó r gão s, o nde insta la suas máq uinas de se jan te s e


pro d uz um pe r pé tuo e sco ame nto de for ças at ivas. O e squizo sabe
par tir, e po de me smo que se ja se m sair do lu gar. E le não é de
o utro mun do, não fala de o utr o mu ndo e não pro d uz de lír io s
ir re ais , é do cao s que e le traça se us p lano s. Se ja no me smo l ugar
ou de slo can do -se no e spaço, trata- se de uma via ge m em
inte ns idade , de mo do que as máqu inas de se ja nte s i mpõ e m a
var iação do se u re gime de funcio na me nto ne ste o u naq ue le pla no
de ativ ida de 2 . O s e squ izo s são o s cavale ir o s do de se jo :

“ 3 Este s ho me ns do de se jo (o u talve z ainda não e xista m) são


co mo Zaratustra : co nhe ce m i ncr íve is so fr i me nto s.. .

{“ . .. ale gr ia não tinha e u sab ido nun ca o que e ra, nunca na


minh a vi da e u t inha ti do se nsação que não fo sse de an gúst ia o u
ir re miss íve l de se spe ro ; não sabia de o utr o esta do que não fo sse
esta do r fe ndi lhada que to das as no i te s me pe r se gu ia 4 . }

“ ver t ige ns. ..

{“ E po r um insta nte alcance i o está gio de êxtase que se mpr e qu is


atin gir, que é a passa ge m co mp le ta atravé s do te mpo cro no ló g ico
num me r gulh ar e m dir e ção às so mbras in te mpo rais , e il umi nação
na co mp le ta de so lação do re ino mo r tal e a se nsação de mo r te
mor d iscando me us calca nhar e s e me im pe lin do para fr e nte co mo
um fan tasma pe r se gu indo se us pr ó pr io s calcan hare s, e e u me smo
cor re n do e m busca de uma tá bua de salvação de o nde to do s o s
anjo s alçaram vô o em dir e ção ao vácuo sagrado do vaz io
pr imo r dia l, o fu lgo r po te nte e inco nce bí ve l re luz in do na radian te
Essê ncia da Me nte , inco n táve is ter ras- ló tus de sabr o chando na
mágic a te pi dez do cé u 5 .”}

2
Conf. Deleuze, Gilles; Guattari., Félix. O Anti édipo: capitalismo e esquizofrenia, Subcapítulo
“O processo”, item “Partir”, Assirio e Alvim, p. 136.
3
Idem. Experimentação em colagem. Os textos em colchete são intersecções de outros autores,
em conexão maquínica com o Anti Édipo, também da passagem sobre Partir.
4
Antonin Artaud, Tarahumaras, Relógio d'água, p.38. 1985.
5
Jack Kerouac. On the road, L&PM, pp. 216-217
12

“e do e nças.

{Es to u re sfr iado há duas se manas . Impo ssí ve l curar um re sfr iado
numa si tuação de cao s ps ico ló gico, de alime nt ação paupé rr i ma,
de co nfl ito fr ívo lo co m L ila; e o e sfo r ço físico so b este so l to r na
qual que r me dicame n to ine ficaz . As per spe ct ivas eco nô micas
co ntin uam ine xiste n te s .} 6

{Es tranha se nsação de não e star vivo. C ansaço e fad iga ge ral .
Exce ssiva me nte fraco para qua lque r de se jo. E pr o ssi go ne sta
cor r ida pe la ta ça.. . O co r po vai se guin do a sua vida
inde pe nde n te . E e u vo u se guin do minha vida de pe nde nte do
cor po . }
7

“T ê m se us e spe ctr o s. Ele s de ve m r e inve ntar cada ge sto.

{N ão so mo s r ãs pe nsa nte s, ne m apar e lho s de o bje t ivação e


máqu inas r e gistra do ras de vísce ras co nge lada s – te mo s
co nstan te me n te de par ir no sso s pe nsame n to s de no ssa do r e
mate r nalme n te tran smi tir- lhe s tudo o que te mo s em nó s de
sangue , co ração, fo go, praze r, pa ixão, to r me nto, co nsciê nc ia,
de stino, fatal idade . Vi ver – assi m se chama para nó s, tran smudar
co nstan te me n te tudo o que nó s so mo s em luz e chama ; e
també m t udo o que no s atin ge ; não po de mo s fazer de o utro
mo do 8 .”}

“ Mas um tal ho me m se pr o duz co mo um ho me m livr e ,


ir re spo nsáve l , so lit ár io e ale gre , cap az afi nal de fazer e dize r
algo sim ple s e m se u pr ó pr io no me , se m pe dir per mi ssão, de se jo
a que na da fal ta, fluxo que atrave ssa as bar rage ns e os có d igo s,
no me que não mai s de sig na e u al gum”.

{“ Mas d ize i, me us ir mão s, de que ainda é capaz a cr iança , de q ue


ne m me smo o le ão fo i capaz? Em que o le ão rapina nte te m ainda
de se tor nar cr iança? Ino cê ncia é a cr iança , e e sque cime nto, um
co me çar- de -novo, um jo go, um a ro da r o dando por si me sma, um
6
José Agrippino de Paula, Lugar público, Papagaio, p. 116.
7
Idem, p. 79.
8
Friedrich Nietzsche, A Gaia Ciência, em Obras Incompletas, Abril, p. 190-191.
13

pr ime ir o movime n to, um sagrado d izer- sim 9 }

“ Ele sim ple sme nte de ixo u de te r me do do de vir lo uco.

{“ Ele quer co n tinu ar, e para is to e le pe de a lo ucura . ( .. .) Ele não


supo r ta faci lme nte o pe so da exis tê ncia , e sabe que qual que r
co isa que aco n te ça, aco nte ce co m e le . O o utro e stá se m pre ao
lado, mas so me nte ao lado. E le r e spo nde para e le me smo o so m
que ve m de fo ra. (. ..) Ele sabe que a luc idez é o que causa maio r
me do. 1 0 ” }

Ele vi ve sua vi da co mo su bli me doe nça que não mais o at ing ir á”.

* * *

9
Idem. Zaratustra. p. 230.
10
José Agrippino de Paula, Lugar Público, Papagaio, p. 32.
14

Uma nova saúde

“ A psico lo gia que se e mpe nha e m re duz ir o de sco nhe cido ao


co nhe cido , o u se ja, ao co tidia no e ao co mum, é a causa de ssa
diminu ição e de sse de spe r dício assustado r de e ner gia, que me
pare ce ter che gado ao último gr au. E me par e ce que tanto o
te atr o co mo nó s me smo s de ve mo s acabar co m a psico lo gia”

{Anto nin Ar taud – Par a acabar co m as o br as pr imas}

Em sua pe r fo r mance Par a acabar co m o juíz o de De us 1 1 , Ar taud


pro põ e m uma po ssibil ida de par a e scapar da ação do s siste mas de
co ntr o le , atr avé s da de sco be r ta do que chamo u de co r po se m
ór gão s. O juíz o de de us, inimigo múlti plo e de po te ncial vir ó tico ,
fo i apr e se ntado ali por Ar taud em se us dife r e nte s disfar ce s - o
Estado ame r icano co le tando o sê me n das cr iancinhas par a
pro duz ir so ldado s e tr abalhado r e s, músculo s se m de se jo , siste ma
ao qual Ar taud o põe m o r ito do pe io te e ntr e os índio s
Tar ahumar as: “ pr e fir o o po vo que co me da pr ó pr ia ter r a o de lír io
do qual nasce r am ” . O se gundo juíz o é a C r uz , que no r itual ser á
der r ubada pe la che gada do pr ime ir o ho me m , abso lutame nte nu e
vir ge m e m cima de um cavalo ne gr o . O te r ce iro é o Se r : “ o nde
che ir a a me r da che ir a a ser . < a busca da fe calidade > (...) o
ho me m te ve me do de pe r de r a me r da, o u ante s de se jo u a me r da,
e par a e la sacr ifico u o sangue . (... ) Do is caminho s e stavam
diante de le , o infin ito de fo r a e o ínfimo de de ntr o . E e le
esco lhe u o ínfimo de de ntr o ...” . O último inim igo do ho me m, par a
Ar taud, é o O r ganismo , o nde o juíz o co nstr ó i a mo r ada de De us.
Então Ar taud e nco ntr a o cor po que há po r baixo do o r ganismo ,
e le de sco br e o cor po se m ór gão s, o de sco nhe cido siste ma
ino r gânico do cor po , único me io de se te ntar nasce r de no vo -

11
Antonin Artaud, Escritos de Antonin Artaud, L&PM.
15

inve nção e xpe r ime ntal r adio fô nica. Par a Ar taud, o ho me m é


e nfe r mo po r que é mal co nstr uído , é ne ce ssár io nasce r de no vo -
quando tive r e m co nse guido um co r po se m ó r gão s, e ntão te r ão
libe r tado o co r po do s se us auto matismo s e de vo lvido sua
libe r dade . A per fo r mance de Ar taud é uma inve nção de saúde ,
uma clínica , de nunciando o que r e pr ime e indicando o caminho do
que libe r a.

“ Nó s, os no vo s, se m no me , de dif íci l co m pre e nsão , nó s os


re be nto s pr e matur o s de um futur o ainda não pr o vado , nó s
ne ce ssi tamo s, par a um no vo fim , ta mbé m de um no vo me io , o u
se ja , de uma no va saúde , mai s for te ale r ta ale gre fir me audaz
que to das as saúde s até ago r a. ( ... ) Uma ta l que não ape nas se
te m, mas co nsta nte me nte se ad quir e e é pre ciso adqu ir ir , po is
se m pre de no vo se aba ndo na e é pr e ciso aban do nar ” .

N ie tz sche - G aia C iê nc ia

Par a N ie tz sche , fo i atr avé s de um lo ngo tr abalho so br e a


me mór ia que o ho me m fe z do ho me m o se u me lho r animal de
estimação , to r nando - o , até cer to po nto ne ce ssár io , unifo r me ,
igual e ntr e iguais, co nstante , e po r tanto co nfiáve l... co m a ajuda
da mo r alidade do co stume e da camisa- de -fo r ça so cial 1 2 . Esse
tr abalho N ie tz sche chamo u de mne mo té cnica - uma co mple xa
maquinar ia de impr imir na me mór ia (maté r ia 1 3 ) um siste ma de
cr ue ldade , auto r iz ado e o r ganiz ado pe la co nstr ução de uma
justiça base ada na re lação “ dano e do r” , “ culpa e dívida 1 4 ” .
N ie tz sche , assim co mo Ar taud, de sco bre um antído to , uma
clínica, o e sque cime nto . “ Esque ce r não é uma simple s fo r ça
12
Genalogia da Moral, II. 2, Companhia das Letras, p. 48.
13
Henri Bergson, Matéria e Memória, Martins Fontes, pp.01-02: “A matéria, para nós, é um
conjunto de 'imagens'. E por 'imagem' entendemos uma certa existência que é mais do que
aquilo que o idealista chama umarepresentação, porém menos do que aquilo que o realista
chama uma coisa – uma existência situada a meio caminho entre a 'coisa' e a 'representação'”.
14
Genealogia da Moral, II. 4., Companhia das Letras, p. 53.
16

ine r cial, mas uma fo r ça inib ido r a ativa 1 5 ” . Par e ce uma de sco be r ta
muito simple s – co ntr a a me mó r ia da mor al, o e sque cime nto . Mas
co mo esque ce r? É cer to que não basta ape nas que re r . Se há no
cor po e ssa me mó r ia da mo r al co mo “ pano de fundo ” , co mo
ace ssá-la e co mo dilu í- la? Essa me mó r ia não te m uma for ma,
assim co mo as le mbr anças do no sso passado e mpír ico , e la está
dir e tame nte co lada no cor po . É e xatame nte po r isso que Ar taud
diz que de ve mo s de ixar de se r autô mato s , po r que a me mó r ia do
juíz o atua muito mais do que r e pre se nta , e la faz o co r po
re spo nde r ime diatame nte co m um sim ao s se us co mando s - o sim
do came lo e do asno , e m Zar atustr a 1 6 . Par a N ie tz sche , a fim de
se cr iar uma saúde num co r po mar cado pe lo s tr aço s de ssa
me mór ia, pr ime ir o se r ia ne ce ssár io e nco ntr ar um mo do de
“ fe char te mpo r ar iame nte as po r tas e jane las da co nsciê ncia;
per mane ce r impe r tur bado pe lo bar ulho e a luta do no sso
submundo de ó r gão s se r viçais a co o pe r ar e dive r gir ” ; dar um
pe que no passo par a fo r a das zo nas de se r vidão ; dize r não ao s
auto matismo s instala do s no co r po – o não afir mativo do le ão que
inte r ro mpe a e missão do s fluxo s de co mando . Co m isso , já dar ia
par a se ntir “ um po uco de so sse go , um po uco de tábula r asa da
co nsciê ncia, par a que no vame nte haja lugar par a o no vo (... ), e is
a utili dade do esque cime nto , ativo , co mo disse , e spé cie de
guar dião da po r ta, de z e lador da o r de m psíqu ica( .. .) 1 7 ” . Mas
ainda se r ia pr e ciso re aliz ar um o utr o mo vime nto , to r nar -se
cr iança: “ Ino cê ncia é a cr iança, e e sque cime nto , um co me çar -de -
no vo , um jo go , uma r o da r o dando po r si me sma, um pr ime ir o
mo vime nto , um sagr ado dize r - sim” (Z ar atustr a). E o que faz a
cr iança e m sua ino cê ncia ? Se de ixada livr e , e la não faz o utr a
co isa que não se ja to mar o mundo numa e xper ime ntação , se ntir
até onde po de andar , ve r co mo as co isas funcio nam , to car o
ro sto do s adulto s, se ntir o s o bje to s co m a bo ca. Po de r ia- se diz er

15
F. NIETZSCHE, Ecce Homo, Companhia das Letras, P. 47.
16
F. NIETZSCHE, Assim Falou Zaratustra, Civilização Brasileira, p. 51.
17
F. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo. São Paulo: Ed. Companhia das Letras. 1998. P. 47.
17

que há uma clinica das me tamo r fo se s e m N ie tz sche , apo ntando


no se ntido da pr o dução de um de vir - cr iança , co mo um mo to r ,
uma pe que na máquina cuja função é se mpr e acio nar um pr ime ir o
mo vime nto , mas um mo vime nto que se r e pe te co mo ar ticulaçõ e s
se mpr e r e no vadas.

W innico tt 1 8 e xpe r ime nto u a inve nção de uma máquina de sse tipo
e m psico te r apia, chamo u- a de br incar . Ele inve nto u o br incar
co mo dispo sit ivo clínico e , e m to r no disso , co nstr uiu sua idé ia de
saúde e de singular idade .

“ É no br incar , e so me nte no br incar , que o indiv íduo , cr iança o u


adulto , po de se r cr iativo e utiliz ar sua per so nalida de inte gr al: e
é so me nte se ndo cr iativo que o indiví duo de sco br e o e u (se lf) 1 9 ” .

“D e se jo afastar a ate nção da se quê ncia psicanálise , psico te r apia ,


mate r ial de br incade ir a, br incar , e pr o po r tudo isso no vame nte ,
ao inve r so . Em o utro s ter mo s, é a br incade ir a que é unive r sal e
que é pr ó pr ia da saúde ... 20
”.

“O nde o br incar não é po ssíve l, o tr abalho e fe tuado pe lo


ter ape uta é dir igido no se ntido de tr az e r o pacie nte de um e stado
e m que não é capaz de br incar par a um e stado em que o é , e se
é o te r ape uta que não po de br incar , e ntão e le não se ade qua ao
tr abalho 2 1 ” .

18
Donald W. Winnicott, O brincar e a realidade, Imago.
19
Idem. P. 80.
20
Idem. P. 63.
21
Idem. P. 80.
18

Esquizoterapia

C ada um de nó s també m tê m os se us co nce ito s par a o que no s


blo que ia e o que po de r ia no s libe r tar . Q uase to do s que co me çam
psico te r apia, de alguma for ma sabe m diz e r do que lhe s faz so fre r
e de ixam escapar suas idé ias a re spe ito do que po de ajudar ,
me smo que não pe r ce bam.

“ Se fal ta e nxo fr e a no ssa vi da, o u se ja, se lhe fa lta uma magia


co nstan te , é po r que no s apraz co n te mplar no sso s ato s e no s
per de r em co nside raçõ e s so br e as fo r mas so nhadas de no sso s
ato s, em ve z de se r mo s impu lsio na do s po r e le s 2 2 ” ( Ar taud ).

A par t ir do trab alho de Guat tar i e De le uze em to r no da


esq uizo anál ise , ve nho se n tin do e pe nsando a po tê ncia cl ínica da
e xpe r ime n tação na pr ática psico te r ápi ca. A par t ir de suas
per ce pçõ e s e idé ias do que se ja m o de se jo e o inco nsc ie nte ,
esse s au tor e s suge r e m que uma ação cl íni ca po de se r dis parada
por me io de e xpe r ime ntaç õ e s. C o mo e star ate nto ao que blo q ue ia
e ao q ue libe ra, para daí inve ntar as e xper i me ntaçõ e s ade qua das
a cada caso? Um cami nho po ssíve l , por o nde co me çar, é a
inve nção de uma e spr e ita clín ica a par tir da qua l, e co nta ndo co m
um var ia do e sto que de le i turas, po de -se inve ntar pr o ce dime nto s
de e xper i me ntação que po ssam ser vir para, em cada caso,
prati car uma so n dage m do s de slo came nto s que po ssam fu ncio nar.

A e xpe r ime ntação co nside r ada ne ssa per spe ctiva no s co nduz às
po ssibili dade s de pr o dução de inco nscie nte , de pr o dução de
subje tivação , de mo vime nto s cr iativo s. Estamo s nas viz inhanças
22
A. Artaud, O teatro e seu duplo, Martins Fontes.
19

de co mo e la é inve stida pe lo s ar tistas e xpe r ime ntais , co mo Jo hn


C age 2 3 . Par a e le , o te r mo e xpe r ime ntal que r diz e r “ pr o duz ir ato s
cujo s e fe ito s se de sco nhe ce ” . Fr e qüe ntar um co njunto de estr ato s
quaisque r , de funcio name n to to nal , co mo por exe mplo : as
histó r ias familiar e s, o s e nre do s das r e laçõe s de tr abalho , as
co njugali dade s padr o niz adas, os blo que ame nto s do cor po , os
pro ble mas par a falar , as no r matiz açõ e s e sco lar e s... per ce ber
co mo isso funcio na e que co nse quê ncias te m par a um indiví duo
o u co njunto so cial. A par tir daí, e xper ime ntar as o po r tunidade s
que cada or ganiz ação no s o fe r e ce par a fle xibil iz á- la, e ve ntuais
mo vime nto s de de ster r ito r ializ ação , linhas de fuga po ssíve is e tc.
Ficar à e spre ita. Inve ntar dispo si tivo s 2 4 o u ato s de cujo e fe ito
nada se sabe , o u se ja, pr o duz ir avar ias nas máquinas to nais , nas
estr utur as re pr e se ntat ivas, par a daí e xtr air um o utr o tipo de
funcio name nto .

Jo hn C age co me ça suas e xper ime ntaçõ e s a par tir do te rr itó r io da


música to nal; por e xe mplo , e le subve r te o piano , apar e lho
supr e mo da música ocide ntal , inse r indo pe que nas pe ças e m suas
cor das (mar te lo s, pr e go s, par afuso s, e tc.), o bje to s que pr o duz e m
que br as no siste ma or igina l, ao me smo te mpo que co nstitue m a
inve nção de um no vo dispo sit ivo musical ( piano s pr e par ado s);
pe que no s mo vime nto s par a e nco ntr ar e fe ito s impr e visíve is ;
po der ia- se diz e r que o gr ande “ bar ato ” de C age , e talve z de to do
“e xpe r ime ntado r ” , se ja enco ntr ar - se co m esse s e fe ito s
inusita do s, sur pre e nde r -se diante do o ce ano ilimi tado das
po ssibili dade s, abr indo no cor po plano s de co mpo sição par a a
pro dução de mo vime nto s cr iativo s.

N uma clí nica fun cio nan do a par t ir da e squ izo análi se , po der ia -se

23
Músico americano, que criou o termo música experimental.
24
“Um dispositivo é qualquer conjunto de peças e mesmo de ações e também de normas
destinados a determinado fim; por isso, um dispositivo é sempre um dispositivo de algo, para
algo... São combinações tendo em vista tal ou qual finalidade, mesmo que a finalidade seja
apenas a de abrir a vida para melhores encontros “ (Luiz Orlandi).
20

fazer co mo na ar te expe r ime nta l, e star se mpre ate nto ao ti po de


maqu inar ia que e stá o peran do para blo que ar o ind iví duo nas
dife r e nte s sit uaçõ e s que e le vive nc ia. Q ue linha s se gme ntár ia s
pre nde m suas aber tura s de saí das, q ue máq uina s mo lare s
to maram co mp le tame nte para si o p lano de o r ganiz ação e co mo
e las impe de m que o C sO 2 5 se de slo que ao pla no de ima nê ncia. A
par tir daí, co mo diz R icar do B asbaun 2 6 , “ é pr e ciso ino cu lar o
ger me da dife r e nça na estr u tura da co isa”, po is , me smo que se
afe te ape nas um e le me nto numa mu lt ipl ici dade , já te r e mo s fe ito
o sufic ie nte para mudar t udo. Inve ntar pro gra mas e xpe r ime nta is
jun to co m o pac ie nte para a cr ia ção de novas te r r ito r ial idade s
e xiste ncia is, de ix ando - lhe clar o que a clín ica é um enco ntr o a se r
co mpar ti lhado, que não e xiste m curas mi lagr o sas e que o ana lis ta
não é uma e spé cie de i nte r me diár io o u atrave ssado r que sabe
algo so bre e le que e le não sabe , algo que só po de ser
de sco dific ado por um r e gime de si gno s ao qua l ape nas o ana lis ta
ter ia ace sso.

Vimo s que Ar taud apo sta na inve nção de um cor po se m ór gão s ,


N ie tz sche no s pr o ce sso s de e sque cime nto ativo dispar ado s pe la
po tê ncia e xpe r ime ntal do de vir -cr iança e que W innico t t faz to da
sua o br a gir ar em tor no do br incar . Mas é atr avé s da
esquiz o análise , de G uattar i e De le uz e , que ir e mo s e nco ntr ar
co ne xõ e s ampliad as e ntr e e sse s co nce ito s e e le me nto s, no
se ntido de faze r mo s a psico te r apia aco nte ce r a par tir de
suce ssivas e xpe r ime ntaçõ e s . A que stão pr incip al de ssa pe squisa
é justame nte e sta: co mo inve stir numa clínica psico te r ápica
esquiz o analí tica , co mo inve stir numa esq uiz o t er a p ia , que
pr ivile gie a expe r ime ntação co mo se u pr incipa l dispo sit ivo de
inte r ve nção?

25
Abreviação para Corpo sem Órgãos
26
Artista plástico brasileiro.
21

“O C or po se m Ór gão s gr ita : fize ram- me um o r ganismo !


do braram- me inde vi dame nte ! ro ubara m me u co r po ! O j uízo de
De us ar ranca -o de sua ima nê ncia, e lhe co ns tr ó i um or gan ismo,
uma sig nif icação, um suje i to. É e le o e strat ifica do. Assi m, e le
o scila e ntre os do is pó lo s: de um la do, as su per fíc ie s de
estra tif icação so br e as qua is e le é r e baixado e su bme ti do ao
juízo, e , por outr o la do, o plano de co nsistê nc ia no q ual e le se
de se nr o la e se abr e a e xpe r ime ntação. E se e le é um l imi te , se
não se ter m ina nunca de che gar a e le , é po r que há se mpr e um
estra to atr ás de o utr o estra to. (. ..)C o mb ate per pé tuo e v io le nto
e ntre o p lano de co nsis tê ncia , que libe ra o C sO, atrave ssa e
de sfaz to do s o s e strato s , e as supe r fície s de estra tif icação que o
blo que ia m e r e baixam 2 7 ”.

Mas o que quer e mo s diz e r quando falamo s e m e xpe r ime ntação ?

A ps ico te rapia é ape nas um mo do, um est ilo, uma co nfig uração
de clí nica , assi m co mo tan tas o utras co isas po de m ser – l istá -las
se r ia uma tare fa se m fim . Q uando a psico te rap ia é in je tada de
o utro s mo do s de cl ín ica, atravé s do s pr o ce sso s e xpe r ime ntai s,
e la é le vada a um li mi te em que a fu nção de inve ntar
e xpe r ime n taçõe s faz co m que a pr ó pr ia psico te rap ia se ja
re inve s tida ince ssante me nte pe lo s dis po sit ivo s que cr ia . Po r
exe mplo, Guat tar i diz ia, isso é mu ito co nhe ci do, que e m ce r to s
caso s de ver - se - ia r e ce i tar po e sias 2 8 . Te mo s aí do is mo do s de
clín ica func io nando e m inte r se cção – psico te rapi a/po e sia , duas
co nfigura çõe s clí nicas acio nando um pr o ce sso e xper i me ntal .
Imagi ne mo s e ntão, que o te rape uta não ape nas re ce ite a poe sia
para se r li da pe lo pac ie nte e m o utr o mo me nto, mas que pr o po nha
que a le i tura se ja fe ita dura nte uma se ssão, se ja pe lo pacie nte ,
por e le pr ó pr io, o u po r ambo s num sis te ma de r e ve same n to. O s
27
DELEUZE, Giles & GUATTARI, Félix. Mil Platôs. V.3, Ed. 34, P. 22.
28
Conf. Félix Guattari e Suely Rolnik, Micropolitica: Cartografias do desejo, Vozes.
22

e fe ito s de ssa e xpe r iê ncia po de r iam afe tar, de mo do impr e visí ve l


e irr e ver sí ve l, tanto o pacie nte e o te rape uta , co mo a
psico te rap ia e m to do s o s se us te r r itó r io s. A clí nica não é assu nto
pr ivado das ciê nc ias da saúde , da psico te rapi a o u das ps ico -
anál ise s, assim co mo as e xpe r ime ntaçõ e s não o são de cie nti stas
e ar tis tas. A po e sia po de estar atrave ssada po r uma po tê ncia
clín ica, tanto qua nto a psico te rapia . No mo me nto em q ue
faze mo s a que stão da e xper i me ntação to mar maio r e spaço no
campo da psico te rap ia, e stamo s mu lt ipl icando a in ter ve nção de
dife r e nte s co nf iguraçõ e s clín icas no s pr o ce sso s de i nve nção de
saúde do cam po psico ló gi co. Há se mpr e invas ão de do mín io s uns
pe lo s o utr o s po r que do mín io alg um te m o mo no pó lio do s fluxo s
mo le cular e s.

O s pro ce sso s e squiz o s (o u maquínico s ) po de m este nde r -se po r


do is caminho s dife re nte s, e ao me smo te mpo muito pró ximo s um
do o utr o - o pr ime ir o diz re spe ito ao s de sabame nto s
(br e ak dow n ), as catástr o fe s, ao pe r igo da que da e m um bur aco
ne gro , e o se gundo é o das abe r tur as de saída ( bre ak thr o ugh ),
da co mpo sição de plano s que suste nte m a pro dução de se jante
(co mpo sição de platô s), “ isso po r que o Co r po se m Ó r gão s (C sO )
não pár a de o scilar e ntre as supe r fície s que o e str atifica m e o
plano que o libe r a 2 9 ” . Pe la pr ática da e xpe r ime ntação , co mo
o pe r ação no plano de imanê ncia , e do no madismo , co mo
mo vime nto po r e sse plano , o C sO faz funcio nar a de sar ticulação
co mo o po sição ao co njun to do s e str ato s r e lacio nado s a nó s – o
or ganismo , a signif icânc ia e a subje tiv ação 3 0 .

O s blo co s que co mpõ e m este tr abalho pr e te nde m co mpr o var o


quanto ve m se ndo viáve l e ssa pr ática de uma e xpe r ime ntação e ,
por co nse guinte , o quanto é co nsiste nte a per spe ctiva de uma

29
Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs v. 3, Ed. 34, p. 23.
30
Idem. p. 22.
23

esquiz o te r apia.

* * *
24

Caso Diego

O caso que apre se ntar e i a se g uir, de um me nino de de z ano s que


pr atica ps ico te rapia co mi go há se is me se s, é e xe mplo de co mo o
disp arado r de cr iação de e xpe r ime ntaçõ e s cl ínica s po de vir do
pró pr io caso.

Pare ce que e le vive e m um mundo à par te , mas de re pe nte ,


quando que stio nado , e le re spo nde co mo se estive sse
par ticipan do da aula 3 1 .

Essa fr ase , pre se nte no R e lató r io so bre o aluno D ie go , re sume o


que a e sco la te ve co mo mo tivo par a suge r ir à mãe do gar o to que
pro cur asse um psicó lo go par a te ntar ajudá- lo . Se gundo o
re lató r io , Die go (1 0 ano s) estava co m pr o ble mas de distr ação , e
por causa disso diz iam que havia o co r r ido uma que da e m se u
de se mpe nho co mpo r tame ntal e acadê mico . N a visão da mãe o
me nino també m par e cia muito tímido e distr aí do , mo tivo pe lo
qual e la falava que não ficar ia tr anqüila em pe r mitir que e le
saísse soz inho ; e la tinha me do , pr incip alme nte , de que e le se
per de sse o u fo sse atr o pe lado .

A e sco la te m ape nas uma tur ma , que no iníc io t inha 35 e ago ra


25 alu no s. Trata -se de um pro je to de um ho me m que e le s
chamam de “ Dir e to r ”, mas que quase nunca está na esco la; faz
visi tas duas ve ze s ao ano e mo ra no C anadá . Há se te ano s o
Dir e tor e sco l he u 35 cr ianç as de fam íl ias de baixa r e nda e
o fe re ce u bo lsas de e stu do s in te grais para to das e las,
co nsti tui ndo -se co mo uma inst it uição de car áte r fi lan tró p ico . As

31
Relatório sobre o aluno Diego , produzido por suas professoras.
25

palavras do Dire to r para as mãe s, quando do in ício do pro je to,


eram mui to pr o me te do ras, mas po uco claras: Nó s te mo s plano s
par a o fut uro do s se us f ilho s . N e nhuma famíl ia paga me nsa lid ade
e a esco la or gan iz a o ano das cr ia nças: se gunda a se xta das 7 .3 0
as 16 hs; fre que n te s v iage ns a um sít io que pe r te nce ao Dir e tor,
o cupando - lhe s o s fer ia do s e uma se mana das fé r ias de um mê s
e m ja ne iro ; ma is o ja ntar no d ia 25 de de ze mbr o. N ão e xiste
ne nhuma e spé cie de co ntra to e ntr e as fam íl ias e a ins ti tuição. A
mãe de Die go, assi m co mo quase to das as o utras, trabal ha co mo
e mpre gad a do mé stica e não acr e dita ter o utra po ssib il idade de
ver o fi lho e stu dando em uma e sco la par t icu lar, alé m de ssa. A
idé ia de te r o filho expu lso e , lo go, passando a fre que n tar a r e de
púb lica , é vis ta co m muito de sagrado po r to das e las. Por e ssa
raz ão, o disc ur so da mãe de Die go e xpr e ssa o s se ntime n to s de
que m se nte -se re fé m de uma in sti tui ção q ue não lhe passa um
mín imo de po de r de in ter v ir no fut uro esco lar do se u filho, se m
passar pe lo r isco de se r e m e xpulso s do pr o je to.

A mãe de Die go disse - me que te m um e stilo mais co nte stado r e


cr ítico do que as outras , e que por is so, mui tas ve ze s acaba
assumi ndo o lu gar de r e pr e se ntan te do gr upo de mãe s qua ndo
e las que r e m fazer pe d ido s, cr ític as e in ter ve nçõ e s jun to a
dir e ção. A casa e m que e la traba lha de se gu nda a se xta, div ide
mur o co m a Esco la , e isso mo str o u- se mui to sig nif icat ivo para
e nte nder a sit uação do me ni no, alé m do s enfr e ntame n to s e
que stõ e s p urame nte psico pe da gó gicas de mo nstra do s pe las
pro fe sso ras no r e lató r io. Se gun do a mãe de Die go, o fa to do s
se us pa trõ e s ser e m me mbr o s do Par tido do s Trabalha do re s,
e nquanto que o Dir e tor te m ali anças num par tido adve r sár io
de sse , po de r ia e star pro d uz indo um aume nto de te nsão entr e e la
e a esco la e isso po de r ia te r infl ue nciado o pe d ido de
e ncaminh ame nto de Die go ao psicó lo go, co mo co nd ição para e le
per mane ce r na esco la. Se g undo e la, a Dir e to ra fi co u muito
26

sur pre sa e um po uco se m je i to quan do em po uco s d ias e la


anunc io u que havia e nco ntrado um psicó lo go para o fi lho. Ela
pe nso u que is so po der ia sig nif icar que a esco la tin ha um
espe cta ti va de que e le s não co nse gu isse m dar co nta do
e ncaminh ame nto, me smo po r que , e m o utras situ açõe s, a e sco la
havi a e ncaminha ndo aluno s ao s pro f issio na is co m q ue m po ssuía
re laçõ e s. A Dir e to ra - mul her do Dire to r – po de r ia de sco nfiar
que e la e scutas se se gre do s atravé s do mur o e po der ia e star far ta
de man te r uma re be lde e m sua esco la. Essa luta de fo r ças entr e
a mãe e a Dir e to ra po der ia se r um dispo si tivo que e star ia
faze ndo Die go inve ntar um mun do para si , habi tado co m mu ita
tim ide z e silê ncio. Die go par e ce u co nco r dar co m is so qu ando e u
disse para a sua mãe , e m uma de no ssas se ssõ e s, que via no
atr ito e ntr e e la e a Dir e to ra um do s po ss íve is mo ti vo s para o
impas se que e le e stava vive ndo – ate n to a co nve r sa, e le e sbo ço u
um so r r iso e vibr o u co m os do is braço s, quase
impe r ce pti ve lme nte , se m que a mãe pe r ce be sse .

Die go e stava fican do se m ação e as pr o fe sso ras per ce be ram q ue


havi a al go de e stranho, co mo e xpõe m em o utra frase do
re lató r io : “ N o ta- se que duran te a e xpla nação de um assu nto
re le van te ao co n te údo a se r de se nvo lvido, sua po st ura é se mpre
de d istração, se mpr e man ipu lando se us mate r iais , co mo
de se nha ndo, br incan do co m se u láp is e bo r racha co mo se fo sse m
br inq ue do s (s ic)” 3 2 . E las co nside rava m que durante to do o te mpo
de suas aulas, o gar o to e stive sse dis traí do br inca ndo co m se u
láp is e sua bor racha , co mo se e stive sse de se nhando . A ce na
de scr ita pe la pr o fe sso ra co lo ca o fo co do pro ble ma na que stão da
dis tração, no fato do garo to não e star co m sua ate nção no
co nte údo que está se ndo dado. Por e sse mo tivo, se gu ndo o
re lató r io, e le não e star ia apr e nde ndo e se u r e ndime n to havia
caído. Mas por o utr o la do, a me sma frase po ssu i um se nti do

32
Relatório sobre o aluno Diego
27

dife r e nte , po is mo stra que Die go, ape sar de tu do, co nse guiu
inve nt ar um mundo para si atravé s do br incar co m o lá pis e a
bor racha e do de se nho ; aí ve mo s co mo e le pro duz iu sua clín ica e
te mo s o ind icado r de po r o nde co me çar as e xper i me ntaçõ e s.
Talvez , alé m das in te r fe r ê ncias que a lu ta que a sua mãe e a
dir e to ra pro ta go niz avam , e le e stive sse te ntan do faze r uma
ne go ciação e ntr e o mundo que pr e fe r ia, br inca ndo e de se nhando,
e o mu ndo que a pr o fe sso ra lhe apre se nt ava co mo se ndo
re le vante . Pe lo que dize m e m o utro mo me nto do re lató r io, as
pro fe sso ras sabia m que Die go go st ava e spe cialme n te das
ativ ida de s pr o po stas nas au las de Ar te : “é mui to cr ia tivo qua ndo
se trat a de de se nvo lve r algo co mo : de se nho s, o bje to s co m sucata
e outr o s. (. ..) Apr e se nta muit a vo nta de de par ti cipar e f ica
apar e nte me nte ale gre quan do são pr o po sto s de se nho s li vre s e /o u
co m t int a” (sic ). A lé m de se r mu ito in ter e ssado ne ssas ativ idade s,
pare ce que Die go po ssu i algu mas vir tu de s e faci lida de s: “ Q uando
é pro po sto um de se nho o aluno é cuida do so no s de talhe s, co m
traço s suave s e fir me s. Faz le i turas de ilus traçõ e s, o bse r van do
de talhe s e m que as ve ze s a sala não pe r ce be . Sua per ce pção é
be m eficaz , no que se tra ta de de se nho s abstra to s e
geo mé tr ico s” (s ic) .

Die go te ve as suas po ssib il idade s de br incar re duz idas a ho ra do


re cre io, as aulas de nataç ão e as ati vida de s de ar te .. . um “ diag -
nó stico ” par e cia mui to claro, o gar o to e stava ado e ce ndo por que a
situ ação que e stava vive ndo li mi tava as suas po ssi bi lida de s de
e xpre ssar-se cr iat ivame n te atravé s do br incar. Era o caso de uma
cr iança de ixando de se r cr iança , o u me l hor, per de ndo se u de vir-
cr iança, para ter de cumpr ir co m as e xigê ncias do mun do adu lto,
do nde o se u mundo à par te func io nava co mo uma fo r ma de re sis -
tê ncia e te ntat iva de mante r um mín imo da sua capa cida de de
br incar, me smo que fo sse co m o láp is e a bor racha nas aulas de
mate mát ica, co mo co nsta no re lató r io.
28

A par tir de sse s e le me nto s, po r o nde po de r íamo s co me çar a cr iar


e xpe r ime ntaçõ e s que ajudasse m Die go a sair do impasse que e s -
tava vive ndo ? Pr ime ir o , não re sta dúvidas, er a ne ce ssár io o bte r
das suas po stur as e palavr as o s indicado r e s de sua pr ó pr ia dispo -
sição de sair de ssa situação e de que mo do ; er a ne ce ssár io sa -
ber , po r e xe mplo , se Die go go star ia de pe r mane ce r naque la e sco -
la, o u me smo , se e le de se java co ntinuar estudan do , se de algum
mo do e le co nside r ava isso impo r tante o u inte r e ssante . Fo r am ne -
ce ssár ias po ucas co nver sas par a que ficasse clar o que e le go sta -
r ia de co ntinuar na me sma e sco la, caso a situação me lho r asse .
Essa sér ie de co nve r sas co m e le , so br e o que go star ia de faz er ,
do nde algumas for am r e aliz adas junto co m sua mãe , fo r am um
pr ime ir o mo vime nto no se ntido de gar antir a Die go que na psico -
ter apia haver ia e spaço e te mpo par a que e le falasse o que acha -
va se r me lho r pr a si. As ve ze s, po r causa da sua timide z inicia l,
er a ne ce ssár io e sper ar por um lo ngo te mpo até que e le re spo n -
de sse uma pe r gunta que e u faz ia, e ne sse te mpo de espe r a, não
r ar o er a pre ciso que e u inte r vie sse par a e vitar que sua mãe re s -
po nde sse po r e le . Esse tipo de inte r fe rê ncia da mãe favo re cia
co m que Die go mantive sse sua po sição de po uca ação e m no me
pró pr io , situação que pre cisava se r mo dificada par a que e le co -
me çasse a pr o duz ir alguns espaço s de singular id ade . Po r causa
disso , as se ssõe s de psico te r apia funcio navam co mo e nco ntr o s
e m que e le pude sse e xpr e ssar -se mais livr e me nte , o nde e le ser ia
escutado , me smo que de mo r asse a falar . De po is de gar antido o
se u e spaço , numa re lação de co nfiança co m o psico te r ape uta e ,
ficando clar o que o o bje tivo de no sso s enco ntr o s er a e nco ntr ar
um mo do de ajudá- lo a vive r me lho r , e r a pre ciso cr iar dispo sit i -
vo s po r o nde Die go pude sse inve stir em mo do s de sair daque la
situação co mplica da, e r a pr e ciso inve ntar as br incade ir as e e xpe -
r ime ntaçõ e s ade quadas ao se u caso .

No caso de Die go , uma sér ie de e le me nto s, do s quais citamo s


29

ape nas alguns, e stavam funcio nando agre gadame nte par a impe dir
que sua po tê ncia expe r ime ntal típica de cr iança, se u de vir - cr ian -
ça, vie sse a re aliz ar - se ple name nte . O utr o s dispo sit ivo s blo que a -
dor e s po der iam se r inse r ido s ne sse s mapas, po ré m, se jam quais
o u quanto s e le s fo sse m, não o to mar íamo s no se ntido de de sco -
br ir uma or ige m o u causa par a o s impasse s do me nino , par a daí
co nstr uir uma ar que o lo gia mo nume ntal /me mo r ial a ser analisada
e e labor ada. A e squiz o análise , a par tir da qual e stamo s pe squi -
sando mo do s e e fe ito s de uma psico te r apia e xper ime ntal , apo nta
no utr o se ntido . N o tr abalho car to gr áfico de um caso , se gundo
De le uz e , de ve -se faz er co m que o s mapas se supe r po nham de tal
mane ir a que cada um e nco ntr e no se guinte um re mane jame nto ,
e m ve z de e nco ntr ar no s pre ce de nte s uma o r ige m: de um mapa a
o utro , não se tr ata da busca de uma o r ige m, mas de uma avalia -
ção do s de slo came nto s 3 3 . De sse mo do , o s mapas na clínica são
co nstr uído s co mo distr ibu ição de impasse s e de aber tur as, se ndo
a função do psico te r ape uta, subsum indo - se ao caso 3 4 , ativar uma
espé cie de espr e ita clínica par a co br ir ambo s o s flanco s. N ão é
só uma inve r são de se ntido , mas uma mudança pr agmática. No
mo me nto em que co nstr uímo s o s mapas de um caso apo ntando
no se ntido do s de slo came nto s, to do s o s no vo s tr aje to s e as no vas
e xplo r açõ e s de me io s ir ão o pe r ar uma r e distr ibu ição co mple ta
do s plano s que co mpõe m o s ter r itó r io s e xiste nciais do indiv íduo
num dado mo me nto – numa multi plic ida de , basta inse r ir um e le -
me nto par a que tudo mude . A par tir disso , a e squiz o análise pro -
põe m o utro s me io s de inte r ve nção clínic a:

“O nde a Psicanál ise diz : Par e , r ee nco ntr e o se u e u, se r ia pr e ciso


diz er : vamo s mais lo nge , não e nco ntr amo s ainda no sso Co r po
se m Ó r gão s, não de sfize mo s ainda suficie nte me nte no sso e u.
Substi tuir a anamne se pe lo e sque cime nto , a inte r pr e tação pe la
e xpe r ime ntação . Enco ntr e se u co r po se m ó r gão s, saiba faz ê -lo , é

33
Cf. Gilles Deleuze, Critica e clínica, Ed. 34, p. 75.
34
Cf. Gilles Deleuze, O metodo de dramatização, Em A Ilha deserta, Iluminuras.
30

uma que stão de vida o u de mor te , de juve ntude e de ve lhice , de


tr iste z a e de ale gr ia. É aí que tudo se de cide 3 5 ”

Essa inve r são de se ntido na clínica só é po ssíve l por que De le uz e


e Guattar i libe r tam o de se jo da r e lação suje ito - o bje to , o nde
havia sido institu ído em to r no do Édipo psicanal ít ico , e o
de sco bre m co mo fluxo , ino mináve l e assignif ican te . Par a e le s
de se jo é fluxo e cor te de fluxo , e o inco nscie nte é um co mple xo
de máquinas de se jante s – daí a de no minação inco nscie nte
maquínico . Máquina é qualque r siste ma de fluxo e co r te de fluxo ,
se ja uma máquina té cnica, so cial o u de se jante - e ssa última , que
supe r a simulta ne ame nte o me canismo da té cnica e a o r ganiz ação
do or ganismo 3 6 . Se ndo o inco nscie nte maquíni co , mo le cular ,
ave sso às e str utur as e r e pre se ntaçõ e s que o re pr ime m e
re calcam, e le e stá vo ltado par a a cr iação – o inco nscie nte e ntão
é co nce bido co mo fábr ica 3 7 , po vo ame nto de máquinas de se jante s
funcio nando po r aco plame nto r izo mático , fluindo num plano de
co nsistê ncia que auto r iz a to das as tr ave ssias po ssíve is 3 8 . Dito de
o utro mo do , par a a esquiz o análise a que stão se r ia “ (.. .) passar o
de se jo par a o lado da infr a- estr utur a, par a o lado da pr o dução ,
e nquanto se far á passar a família , o Eu, a pe sso a par a o lado da
anti- pr o dução 3 9 ” . N ão se ndo o caso de uma supe r ação dialé tica
o u e vo lutiva, que e stá aí co lo cada, já que a dife r e nça e ntr e as
máquinas de se jante s e as o utr as é de re gime de funcio name nto s,
o u se ja, enquanto as máquinas de se jante s funcio nam de mo do
mo le cular num plano de co nsistê ncia , as máquinas té cnicas e
so ciais funcio nam de mo do mo lar num plano de or ganiz ação . O s
do is plano s co e xistindo num me smo co r po , enquanto que o cor po
se m ó r gão s , co mo um pê ndulo , o scila e ntre o s do is, cor r e ndo o
per pé tuo r isco de se r captur ado e e str atifica do pe lo plano de

35
Gilles Deleuze e Félix Guattari. Mil Platôs: Capitalsimo e Esquizofrenia. V. 3, Ed. 34, p. 11.
36
Conf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-édipo, Assírio e Alvim, pp. 280-281.
37
Conf. O Anti-Édipo.
38
Félix Guattari, Inconsciente maquínico: ensaios de esquizoanálise, Papirus. P. 11.
39
Idem. P. 279.
31

or ganiz ação e suas maquinaçõ e s mo lar e s, assim co mo de


sucumbir às fo r ças disjunt ivas do plano de co nsistê ncia e
esvaz iar - se numa ale ato r ie dade caó tica impr o dutiv a, do nde faz -
se ne ce ssár ia uma pr udê ncia co mo ar te das do se s , par a que o
C sO se ja libe r ado suave me nte par a o lado do plano de imanê ncia
do de se jo , to r nando - se ple no e cr iativo . N unca inte r pr e te ,
e xpe r ime nte ! À té cnica inte r pr e tativa psicanalí tica a
esquiz o análise pro põ e m a expe r ime ntação r izo mática co mo
dispo siti vo de fle xibil iz ação , se r á po r suce ssivas e xper ime ntaçõ e s
que se po de r á e fe tivame nte vive nciar pr o ce sso s de cr iação de
inco nscie nte , a par tir de um r e mane jame nto da me mór ia e da
ampliação do s ter r itó r io s indivi dua is singular iz ado s. “ O nde o
inco nscie nte fo i vo ltado par a o futur o , cuja tr ama não ser ia
se não o pr ó pr io po ssíve l, o po ssíve l à flo r da linguage m , mas
també m o po ssíve l à flo r da pe le , à flo r do só cius, à flo r do
co smo ... 4 0 ” .

* * *

Te nho no tado que to do caso tr az indíc io s o u signo s que faz e m


pe nsar e m saídas po ssíve is. Par a o co me ço de um pro ce sso e xpe -
r ime ntal em psico te r apia isso é fundame nta l e e stá dir e tame nte
ligado ao que diz De le uz e , que de ve mo s no s subme te r ao caso ,
ficar e mbaixo , não so bre co dificá - lo co m inte r pre taçõ e s, ficar ,
co mo disse mo s, à e spr e ita do que o caso po de indicar - no s co mo
saída po ssíve l pe la via da e xper ime ntação . O caso de Die go co n -
fir ma isso . Me smo que e le não te nha dito nada so br e o se u so fr i -
me nto a ningué m , a esco la pe r ce be u que algo não ia be m, o que
chamar am de distr ação . Die go não diz o que e stá aco nte ce ndo ,
não fala que te m um pr o ble ma par a a mãe , ne m par a a pro fe sso -
r a, ne m par a mim. Se não fo sse pe la fala da mãe e pe lo re lató -
r io , a julgar ape nas pe lo se u mo do tímido , não se r ia po ssíve l di -
40
Idem, p. 10.
32

ze r que lhe ho uve sse um pr o ble ma. Se e u pe r guntava a e le se ir


mal de no tas er a bo m o u r uim o u o utr a co isa, e le ape nas co ncor -
dava o u disco r dava co m a cabe ça. Então , de o nde par tir ? É o
caso que diz – Die go se nte -se fe liz co m as ativida de s de ar te e
go sta de br incar ; te mo s aí a indicação de uma saída po ssíve l pe la
via da e xpe r ime ntação , o u me lho r , te mo s a indica ção de uma e x-
per ime ntação po ssíve l, que po ssa vir a ser pro dutiva no se ntido
da inve nção de saídas. No caso de Die go , e m de se nhar há algo
que faz par tir ! É assim que De le uz e e G uattar i diz e m do s mo vi -
me nto s que dispar am de ste r r ito r ializ açõ e s abso lutas 4 1 . Co m Die -
go e ntão , co me çamo s e xpe r ime ntando de se nhar .

O jo go do rabisco fo i inve ntado po r W innico tt co mo expe r ime nta -


ção clínica e o co rr e e ntre o psico te r ape uta e o pacie nte , ge r al -
me nte uma cr iança. Eis o pro gr ama: um do s do is faz um pr ime ir o
tr aço no pape l e o o utr o co mple me nta o de se nho ; e assim suce s -
sivame nte e alte r nadame nte . Eu fiz uma pe que na mo dificação no
pro gr ama do jo go , não faze ndo a tr o ca do pape l de po is de do is
r abisco , de ixando , assim, o de se nho pr o duz ir - se e xte nsivame nte
pe lo pape l, e m se ssõe s que dur avam e m mé dia uma ho r a e me ia.
Pro pus a Die go que de se nhásse mo s junto s e expliq ue i o jo go do
r abisco . Ele ace ito u a pr o po sta co m e ntusiasmo , po r tr atar - se de
de se nhar .

Desenho 1

41
Cf. capítulo “O processo”, em O Anti-édipo, Assirio e Alvim.
33

A pro po sta er a de se nhar mo s livr e me nte , o u se ja, se m faze r có pi -


as, por é m, duas image ns de ro sto s fo r am co piadas de livr o s que
estavam por pe r to . Ao ce ntr o , o ro sto de um po r co que e stava
de se nhado na capa de uma e dição do livr o A R evo lução do s B i-
cho s 4 2 , de Ge or ge Or w e ll, que estávamo s le ndo junto s, co m o
pro pó sito de pe squisar , ve r co mo funcio nava a sua re lação co m a
le itur a - o por co ancião de óculo s e r a o líde r do s bicho s r e vo luci -
o nár io s. Ao lado , a esque r da, o r osto de um so ldado pinta do no
quadr o A re ndição de B re nda o u As lanças , de Die go Ve láz que z ,
que estava e m um livr o na me sa que usávamo s par a de se nhar .
O s do is r o sto s for am inco r po r ado s. Apr o ve ite i o inte r e sse de le no
livr o co m có pias das o br as de Ve láz que z e suger i que e le e sco -
lhe sse alguma de las par a que nó s do is te ntásse mo s co piar , no
me smo e stilo do jo go do rabisco , um de se nhando apó s o o utr o .
Ele fo lhe o u o libr e to e esco lhe u A Vê nus ao espe lho , que de se -

42
Editora globo. 1980. 12 ed. Porto alegre.
34

nhamo s dur ante duas se ssõe s, cer ca de trê s hor as de tr abalho .

Desenho 2

O r e sultado da có pia no s sur pr e e nde u, havíamo s ido alé m das


no ssas e xpe ctativas . Fique i cur io so po r sabe r po r que e le havia
esco lhido justame nte e sse , e m que há uma mo ça nua e uma cr i -
ança ange lical e , de ce pcio nando minhas po ssíve is co nfabulaçõ e s
inte r pr e tativas, e le disse que “e sse e ra mais fácil de de se nhar ” .
Ente ndi que o je ito e r a co ntinuar mo s de se nhando e ampliar mo s
o s dispo siti vo s que po de r íamo s ter a dispo sição . De se nhar havia
mo str ado suas vir tude s.

“ ...uma psico te r apia de tipo pr o fundo po de se r e fe tuada se m tr a -


balho inte r pr e tativo ( ... ). O mo me nto significa tivo é aque le e m
que a cr iança se sur pr ee nde a si me sma, e não o mo me nto de
minha ar guta inte r pr e tação 4 3 ” .

43
Donald Winnicott, O brincar e a realidade, Imago, p. 75.
35

Em um de no sso s e nco ntr o s, co nvide i- o par a passe ar co migo pe lo


bair r o e filmar mo s nas r uas co m a câme r a de víde o . Em no ssa
se ssão ante r io r , havíamo s me xido um po uco co m a câme r a, de
mo do que e le já sabia co mo manuse á- la minimame nte . Suge r i
que e le le vasse a câme r a co nsigo e que filmasse o que quise sse ,
e nquanto caminháva mo s. Andamo s algumas quadr as e e le filmo u
muito po uco , pare ce ndo pre o cupado co m a re ação do s tr anse un -
te s que o bse r vavam o que faz íamo s. Entr amo s numa padar ia par a
co mpr ar água e de po is se ntamo s e m fr e nte , numa pe que na e sca -
dar ia. Pe r gunte i se e le pre fe r ia filmar o u de se nhar , e e le disse ,
se m titube ar : de se nhar !

Ao me smo te mpo e m que e le co mia le ntame nte o salgadin ho que


co mpr ar a na padar ia, o bse r vava ate nto a mo vime ntação de car -
ro s e pe sso as no cr uz ame nto . Pe r gunte i o que e le e stava ve ndo
naque la e squina, o que lhe chamava a ate nção - as pe sso as!, e le
disse . Suge r i par a Die go que cada um de nó s filmasse alguma
co isa naque le cr uz ame nto po r dez se gundo s e de po is passasse a
câmer a ao o utro , par a que fiz e sse o me smo , e assim suce ssiva -
me nte , co mo no jo go do r abisco . Fiz e mo s isso dur ante uns tr inta
minuto s e na se mana se guinte assistimo s o r e sultado junto s na
te le visão .

Saímo s da padar ia e fo mo s até um se bo par a co mpr ar livr o s de


ar te , do s quais po der íamo s faze r no vas có pias de pint ur as, já que
A vê nus ao e spe lho tinha no s e stimula do a co ntinuar co m o tr a -
balho . Ao sair mo s da livr ar ia, e ntr amo s numa lo ja de ar tigo s re li -
gio so s, po is e u que r ia co mpr ar ince nso s. Ve ndo -me e sco lhe ndo
ince nso s, Die go fico u inte r e ssado po r aque le s o do re s que nunca
tinha se ntido . Ao me smo te mpo que co nve r sava co m as mo ças
que tr abalhavam na lo ja, che ir ava um a um o s ince nso s que e n -
co ntr ava na e stante , faz e ndo uma e spé cie de mapa o nde dispu -
nha suas pr e fer ê ncias, e nquanto co me ntava so br e cada che iro .
36

Lo go e le pe r gunto u par a mim o que e u achava de le le var um in -


ce nso par a dar a mãe . R e spo ndi que sim, achava uma ó tima
idé ia, não ape nas po r tr atar - se de um pr e se nte , mas pr incipal -
me nte par a de ixá- lo faz e r a e xper iê ncia até o final , co m o ato da
co mpr a. C o m ajuda da mo ça e le e sco lhe u um ince nso de mor ango
e outr o de sândalo , pago u e então saímo s caminha ndo e m dir e ção
a minha casa, o nde sua mãe e star ia e sper ando . Mas no caminho ,
per ce be ndo que estávamo s adiantado s, le ve i- o ao bar do Z é , que
te m e m suas par e de s gaio las co m canar inho s e aquár io s co m pe i -
xe s e car amujo s. Ali, Die go expe r ime nto u água mine r al co m gás,
pe la pr ime ir a vez , e acho u amar ga e pe diu limão e açúcar ao se u
Zé . C he gamo s e m casa e e le e ntre go u o pr e se nte a mãe , que na
se mana se guin te disse - me , r indo e achando a situação e ngr aça -
da, que o s viz inho s “ cre nte s” estive r am pr eo cupado s co m o che i -
ro de macumba e xalando da casa.

“ A cr iança não pár a de diz e r o que faz : e xplo r ar os me io s, po r


tr aje to s dinâmico s, e tr açar o mapa co rr e spo nde nte . Os mapas
do s tr aje to s são esse nciais à atividade psíqu ica. O que o pe que -
no Hans re ivindica é sair do apar tame nto familiar par a passar a
no ite na viz inha e re gre ssar na manhã se guinte .. . 4 4 ”

No e nco ntr o se guinte , pe squisando e m minha estante de livr o s,


Die go inte r e sso u-se pe la image m de N ie tz sche na capa de um
e dição da O br as Inco mple tas, ao que passamo s a faze r o utro de -
se nho . Ao final , e le fico u muito sur pr e so co m o re sultado e mo s -
tr o u e ufór ico par a a sua mãe , quando e la che go u par a buscá- lo :

Desenho 3

44
Gilles Deleuze, O que as crianças dizem, em Crítica e Clínica, Ed. 34, p. 73
37

Em no sso pr ó ximo e nco ntr o , a fim de inte r fer ir na r e lação e ntr e


Die go e sua mãe , no se ntido de que e la pude sse co ntr ibuir e m li -
ber ar maio r e s po ssibil ida de par a e le to mar o mundo numa expe -
r ime ntação , e també m par a que e le e xpe r ime ntasse de se nhar ,
suge r i ao gar o to que co nvidásse mo s sua mãe par a de se nhar co -
no sco . Ele go sto u da idé ia. Pe di par a que e le pró pr io a co nvidas -
se e e xplicasse co mo funcio nava o jo go do r abisco . Inicialme n te ,
e la te ve re ce io s e m br incar co no sco , mas acabo u ace itando o
co nvite , quando Die go disse - lhe que er a par a usar a cr iativi dade .
Co me çamo s cada um de se nhando de po is do o utr o , e de po is pas -
samo s a de se nhar to do s ao me smo te mpo .
Desenho 4
38

Esse de se nho , cr iado e m duas hor as de tr abalho inspir ado pe la


música de Jo hn C o ltr ane , co nté m muito s mo vime nto s, ce nas
aco nte ce ndo e m to do s o s e spaço s. São pe que nas histó r ias e m
navio s, pár a-que das, guar da- chuva, jane las, jar dins e a
mo vime ntação do s inse to s, uma ce nto pé ia, uma bar ata, uma
le sma co m car aco l, e tc. O so l e a lua o bser vando a agitação do s
pe que no s ser e s humano s em dive r sas situaçõ e s. Então
co mpre e ndi que e le havia se ntido o e spír ito da co isa, usar a
cr iativida de . O jo go do rabisco co lo ca o s par tici pante s numa
estado de e xpe ctativa e inte r fe r ê ncia mútua, o nde um linha que
um faz dispar a um pe nsame nto no o utr o , faz e ndo do de se nho
uma mapa de histó r ias pro duz idas co le tivame nte , do nde ao final ,
já não sabe -se mais que m re aliz o u cada tr aço .
39

Q uando já e stávamo s no ter ce ir o mê s de e nco ntr o s, a Dire to r a


pe diu par a a mãe de Die go per guntar - me “ qual fo i o milagr e ? ” .
Die go havia se de slo cado daque la cr ise . R espo ndi que não sabia,
que ape nas tinha te ntado não atr apalhá- lo . Co mo dir ia Guattar i:
“ N ão atr apalhar . Em o utr as palavr as, de ixar co mo e stá. Ficar
be m no limi te , adjacê ncia do de vir e m cur so , e de sapar e ce r o
mais ce do po ssíve l 4 5 ” . Sua mãe també m no to u suas
tr ansfo r maçõe s, assim co mo e le pró pr io . Então , quase no final do
ano le tivo , mar camo s uma r e união na e sco la, da qual
par ticipar am e u, Die go e sua mãe , a dir e tor a e as pro fe sso r as
que escr e ve r am o r e lató r io . De um mo do ge r al, a e sco la per ce be u
que Die go te ve uma signif icat iva me lho r a, po r é m, e le não
co nse guiu re cupe r ar as no tas baixas e ainda mo str ava- se muito
tímido par a falar co m e las. Te ndo uma avaliação ger al po sitiva do
aluno , gar antir am que e le co ntinuar ia na esco la no pr ó ximo ano e
fize r am vo to s par a que e le me lho r asse ainda mais. As
pro fe sso r as pe dir am minha o pinião so br e algumas car acte r ísticas
do aluno , co mo por e xe mplo , o que eu achava do me nino
fre qüe nte me nte não r espo nde r a e las quando que stio nado . Isso
pare cia- me muito significa tivo , já que Die go , de po is de
estabe le ce r mo s a co nfiança ne ce ssár ia par a o tr abalho clínico ,
mo str o u-se muito co municat ivo e m no sso e nco ntr o s. Disse - lhe s
que talve z isso tive sse a ve r co m o fato de nó s, adulto s ,
ger alme nte não te r mo s dispo sição par a sabe r do mundo da
cr iança a par tir de las pr ó pr ias - o que e la pe nsa e faz – e que
por causa disso , suas açõ e s acabavam se ndo sufo cadas pe las
inte r pr e taçõ e s que faz íamo s a par tir do s no sso s re fer e nciais. Um
e xe mplo de ssa situação , fo i um de se nho que pe di par a Die go
faze r quando e le não que r ia co me ntar um caso que lhe
aco nte cer a na e sco la, lo go no pr ime ir o mê s de te r apia. Por te r
bagunçado o u co nve r sado dur ante uma aula, a Dire to r a fo i a sala
par a r e pr e e ndê -lo , o que fo i mo tivo , na é po ca, de pr e o cupaçõ e s
da sua mãe em r e lação a uma po ssíve l expulsão . C o mo e le não
45
Félix Guattari, Revolução Molecular, Brasiliense, p. 139.
40

que r ia falar co migo so bre isso , pe di- lhe que de se nhasse so z inho
esse e nco ntr o e ntr e e le e a dir e to r a:

Desenho 5

Co nside r e i, a par tir daí, que havia impe dime nto s na r e lação que
Die go tinha co m algumas pr o fe ssor as e que po de r ia ser
inte r e ssante cr iar um no vo tipo de e xper ime ntação par a que e le
e xpe r ime ntasse o falar . Assim, quando no s e nco ntr amo s no ano
se guin te , co mbine i co m e le alguns ho r ár io s em que e le
te le fo nar ia par a mim, de sua casa. Asso ciado a e ssas se ssõ e s
te le fô nicas, Die go ganho u de sua mãe um te le fo ne ce lular o que
inte nsifico u o ato da fala em sua expe r iê ncia diár ia
tr ansfo r mando significa tiva me nte a po ssibi lida de de se co municar
co m as pr o fe ssor as, se gundo disse r am- me .

No se gundo mê s de aulas do ano no vo , a dir e to r a disse a mãe de


41

Die go que e le não pr e cisar ia mais fre qüe ntar a psico te r apia,
se gundo avaliação da e sco la, o me nino e stava muito be m. Já
estavam quase pe dindo par a que o tr abalho to do fo sse de sfe ito ,
po is o me nino to r nar a-se quase hipe r ativo ; mas isso fo i co lo cado
e m to m de br incade ir a, de um mo do ge r al, a e sco la mo stro u- se
muito satisfe i ta co m a tr ansfo r mação . Se gundo a mãe , Die go
passe ava fre qüe nte me nte se m a sua co mpanhia, o que ante s e la
não pe r mitia, expe r ime ntava r o upas e mo chilas do s co le gas,
tinha me lho r ado sua ate nção nas aulas, e alé m disso , co me çar a a
namo r ar co m uma co le ga de e sco la.

Er a che gada a ho r a de de sapar e cer o mais r ápido po ssíve l ? Co mo


sabe r quando é a hor a de par ar co m os e nco ntr o s em
psico te r apia? Se to másse mo s co mo me dida a r e so lução do s
pro ble mas apo ntado s pe la e sco la, sim, talve z fo sse a ho r a. Mas
aque le s er am o s pr o ble mas da esco la e m re lação ao aluno . De sde
o início da te r apia, co nside r amo s que a par tir do mo me nto e m
que fiz e mo s um aco r do e ntr e nó s do is, e sua mãe , a e sco la te r ia
sido co lo cada em o utr o plano , o que que r ia diz er que eu
tr abalhava par a Die go , e não par a esco la, co mo e u se mpr e faz ia
que stão de diz e r . Pe r gunte i ao s do is o que achavam, se
de ve r íamo s co ntinuar o u não . A mãe de ixo u que Die go de sse sua
o pinião - e le disse que quer ia co ntinu ar e nco ntr ando - me , e e u
disse que co ncor dava, ao que a mãe , vir ando par a e le , inte r fer iu:
Viu? Po de ficar tr anqüilo agor a . Ainda não e r a o mo me nto de
par ar co m os no sso s e nco ntr o s, Die go ainda apr e se ntava
o scilaçõ e s em suas r e ce nte s me tamo r fo se s e po der ia co rr e r o
r isco de uma r e caída; e le havia mo difica do - se , mas quanto a
esco la não po de r íamo s sabe r .

Co mo me io de pro cur ar pe r ce be r co mo te r iam pro ce ssado - se as


mo dificaçõ e s de Die go , pe di par a que e le re pe tisse um de se nho .
42

Em um do s no sso s pr ime ir o s e nco ntr o s, e m julho de 20 07 , e u


havia pe dido que e le fiz e sse um de se nho da sua famíli a. Ele
de se nho u se u ir mão , a mãe e e le , re spe ctivame nte :

Desenho 6

Se is me se s de po is, e m jane ir o , pe di a me sma co isa: faça um


de se nho da tua famíl ia . Die go de se nho u, o ir mão , e le e a mãe .
De po is que o de se nho e stava pro nto , co nve r samo s so bre as
dife r e nças:
43

Desenho 7

* * *
44

Desenha nd o co m um jo v em

Em cer to mo me nto da psico te r apia, um jo ve m disse - me que e sta -


va co m me do de vive r o ine spe r ado , co m me do de so ltar o co n -
tr o le imaginár io que tinha so br e o s aco nte cime nto s vivido s no
pre se nte e pe nsava que isso lhe atr apalhava de mais; que r ia te r
uma so ltur a maio r par a vive r mais dispo níve l ao s impr o viso s que
a vida to mada no instan tâne o pr o vo cava. Em o utro caso , quando
apar e ce u uma que stão muito par e cida, re ce ite i Água Viva, de
C lar ice L ispe ctor , par a pr o vo car o pacie nte a se ntir o s e fe ito s da
escr ita na po nta do pe nsame nto , co mo diz a e scr ito r a. Te nte i o
me smo co m e sse jo ve m, mas não funcio no u, e le ne m pr o curo u o
livr o . Então , po r causa do s e fe ito s que as expe r ime ntaçõ e s co m o
jo go do r abisco co m Die go tive r am par a e le e par a mim, pr o pus
ao jo ve m uma se ssão de de se nho , utiliz ando o jo go do r abisco .
Par a mim, de se nhar co m Die go tinha sido uma e xper iê ncia de
bor da, o nde e u se mpre e stava à e spre ita do tr aço que e le faz ia,
das r e açõe s que e le tinha , o u da histó r ia que estava se ndo de se -
nhada, par a daí re aliz ar me us mo vime nto s, lo go de po is que e le
co ncluía o de le .

Explique i par a o jo ve m o pr o gr ama de e xpe r ime ntação , o jo go do


r abisco . Ele disse que não sabia de se nhar muito be m e , de po is
disso , lanço u um pr ime ir o tr aço no ce ntr o do pape l – um o lho .
De se nhamo s po r duas hor as, se mpre um de po is do o utr o .
45

* * *
46

Replicantes

Em uma e ntr e vista de 1 97 2 , De le uze sinte tiz a a que stão das


máquinas , diz e ndo “o que no s inte r e ssa é a pr e se nça das
máquinas de de se jo , micr o máquin as mo le cular e s, nas gr ande s
máquinas so cial mo lare s 4 6 ” . Do nde a que stão da inve nção de
dispo siti vo s e xper ime ntais e m psico te r apia, passa pe la inve nção
de algo ao que aco plar as máquinas de se jante s do indivíd uo –
cr iar pro gr amas par a máqui nas de se jante s .

B lade R unne r , filme de R idle y Sco tt base ado na no ve la de Phili p


Dick “ Do andr o ids dr e am o f e le tr ic shee p 4 7 ” , fo i lançado e m 1 98 2 ,
mas sua ver são de finiti va só ir ia apar e ce r ano s mais tar de . B lade
R unner e xplicita a luta de for ças e ntr e o s siste mas de co ntr o le e
as máquinas de se jante s. O e nr e do aco nte ce e m L o s Ange le s,
numa pr o je ção ao ano 20 19 , e mo str a o siste ma de
funcio name nto de uma so cie dade de co ntr o le muito de se nvo lvida ,
cuja te cno lo gia de e nge nhar ia ge né tica che go u ao po nto de
inve ntar máquinas andr ó ge nas fe itas de maté r ia or gânica, que
er am chamadas de re plica n te s . O s B lade R unne r e r am age nte s de
po lícia, e spe cializ ado s em caçar e e liminar qualque r r e plicante
que puse sse o s pé s na T er r a, já que e le s viviam no o ff wo r ld ,
o nde e r am utiliz ado s co mo e scr avo s na co lo niz ação de o utr o s
plane tas – máquinas de tr abalho e co mbate . A pr incipa l e
impo r tantíss ima dife r e nça e ntr e as duas ver sõ e s do filme é a
co mpo sição do pe r so nage m De ckar d, o age nte B lade R unne r
de signado par a e nco ntr ar e e liminar os quatr o re plicante s
fugitivo s . N a pr ime ir a ve r são , De ckar d é um humano alco ó lo tr a
passando po r cr ise s de co nsciê ncia po r te r de matar r e plicante s,
e na se gunda, ao fim do filme , de sco br imo s co m De ckar d, que e le
46
Ilha deserta, Iluminuras, p. 281.
47
http://en.wikipedia.org/wiki/Blade_Runner
47

també m é um re plican te . Um co nce ito impo r tante do filme gir a


em to r no disso : se ndo De ckar d um re plicante , po r que os
humano s o de ixam escapar ? A se quê ncia final, na “ ver são do
dir e to r” , a se gunda, é ple na de se ntido s que mar cam as
dife r e nças e ntre o s do is filme s. Q uando R achae l caminha e m
dir e ção ao e le vado r , pisa ao lado de um o r igami, De ckar d
per ce be e re co lhe o pe que no o bje to de pape l, que fo i de ixado
pe lo po licial chicano que o supe r visio nava , e r e par a que tr ata- se
da image m de um unicó r nio . O po licia l havia estado no
apar tame nto mas não mato u ne m Rache al ne m De ckar d, co mo
de ve r ia ter fe ito po r tr atar e m-se de do is r e plicante s. A image m
do pe que no unicó r nio liga- se ao so nho de De ckar d, que o co rr e
lo go de po is da e ntre vista em que R ache al de sco bre - se uma
re plican te , no co me ço do filme . De ckar d to ca co m um único de do
o se u piano , cabe ça pr ó xima ao te clado mo str ando se u cansaço e
e mbr iague z quase so nambula e e ntão ve mo s a image m que lhe
o co r re , co mo num so nho , a cavalgada de um unicó r nio
e xuber ante . São do is pe que no s de talhe s insta lado s no filme que
to cam suti lme nte o e nre do e que diz e m, ao me smo te mpo , da
natur e z a andr ó ge na de De ckar d e do po r que lhe s per mitir am
escapar . De ckar d e R ache al se r iam re plicante s mais humano s que
um humano , a Tyr e ll C o . ter ia che gado a r e aliz ação do se u
pro pó sito .

O início do filme dá a situação to da em to r no de duas


e ntre vistas. Pr ime ir o é L eo n, um r e plicante do gr upo que fugiu
das co lô nias e xtr a- ter r e stre s par a te ntar e nco ntr ar um me io de
ganhar mais te mpo de vida, que e stá e m e ntr e vista, na ve r dade
um te ste , co m Ho lde n, um age nte B lade R unne r que te m o
o bje tivo de de sco br ir se o gr upo de sgar r ado está te ntando
infiltr ar - se co mo funcio nár io na e mpre sa que o s pr o duz , a fim de
e nco ntr ar e m uma fo r ma de aume ntar e m se us te mpo s de dur ação .
O te ste par a de te ctar se o indiv íduo é r e plicante co nsiste numa
48

sé r ie de situaçõ e s hipo té ticas e na ve r ificação de alte r açõ e s


e mo cio nais atr avé s de o scilaçõ e s na pupila do suje ito . O age nte
se ntado e m um lado da me sa e Le o n do o utr o , e xtre mame nte
te nso . Ho lde n faz a pr ime ir a pe r gunta - “ vo cê caminha pe lo
de se r to , so br e a ar e ia, quando , de r e pe nte , o lha par a baixo .. .”
Le o n inte r ro mpe , “Q ual de se r to? ” Ele cr ia um z ona de tur bulê ncia
e ntre o s do is, co lo cando e m xe que a estr utur a do te ste . Ho lde n
diz que isso não impo r ta, “é só uma hipó te se ” , mas L eo n insiste ,
“ co mo fui par ar lá? ” , e le que r mais info r maçõ e s, que r sabe r qual
é o clima , co mo é esse pe r so nage m co m o qual de ve ide ntif icar -
se , mas o age nte faz po uco caso - “ tanto faz , po de e star far to ,
po de que r er e star só . Q ue m sabe ? O lha par a baixo e vê um
cágado , Le o n. Raste ja na sua dir e ção ... Abaixa e vir a o cágado
de co stas.. .” Le o n inte r r o mpe no vame nte , amplif ican do a cr ise já
instalada - “ É vo cê que faz o que stio nár io , sr . Ho lde n? O u é
pre viame nte e scr ito ? ” Ho lde n não lhe dá ouvido s mais uma vez e
co ntinua - “ O cágado está de itado de co stas, de bar r iga par a o
ar , ao so l, espe r ne ando - se , te ntando vir ar -se . Mas não co nse gue .
Só co m a sua ajuda. Mas vo cê não e stá ajudan do - o ” . A que stão é
ter r íve l, uma ce na per ve r sa a qual L eo n re age agitadame n te -
“Q ue que r diz e r co m isso ? ” Ho lde n: “ Q ue não e stá o ajudando .
Q ual é o pro ble ma? São ape nas per guntas , Le o n. R espo nde ndo à
sua per gunta , o te ste é pr e viame nte e scr ito . É um te ste
co nce bido par a pro vo car uma re ação e mo cio nal. Po de mo s
co ntinuar ? ” Le o n co ncor da co m um ge sto de cabe ça e co ntinu a
muito te nso . O e ntre vistado r de siste de dar se guime nto a essa
que stão , passando par a a pr ó xima e de finiti va: “ Em po ucas
palavr as, de scr e va ape nas o que lhe o cor r e de bo m so br e a sua
mãe ” . “ A minha mãe ? Já lhe falo da minha mãe ” - e Le o n te m
uma re ação e mo cio nal sur pr ee nde nte , dispar ando co ntr a Ho lde n a
pisto la que tr az ia e sco ndida .

O s r e plicante s são incr iado s, não tê m pai ne m mãe , co mo dir ia


49

Ar taud. N asce m adulto s e se m me mór ia, pr o gr amado s par a


e xe r ce r e m funçõ e s e spe cíficas; co mbate , tr abalho , pr az er . Er am
co mo animais se r vis, cumpr ido r e s de suas funçõ e s, co mo os cãe s,
mas de r e pe nte , se m ne nhum mo tivo apar e nte , co me çar am a ter
e mo çõ e s pr ó pr ias , co me çar am a de se jar . O que aco nte ce u? Ele s
to r nar am-se humano s? Co me çar a de se jar é to r nar -se humano ?
Talve z , e m ce r ta pe r spe ctiva. Mas se acr e ditamo s que o caso se ja
esse , ter íamo s co mo pe nsar que o ataque de L eo n não ter ia
passado de uma ação re sse ntida de um se r que to r no u- se
humano e vive a falta da mãe . Mas isso não po der ia se r po ssíve l
no co nte xto de sse filme . É ne ce ssár io ao co nce ito mo tr iz do
e nr e do que o s re plican te s se jam máqui nas que apo nte m par a o
futur o a se r vivido , nada lhe s falta, te r o u não te r mãe não lhe s
faz o me no r se ntido , e le s não tê m me mó r ia e po r isso o s fluxo s
de de se jo que co me çam a maqui nar e m se us co r po s não que re m
o utr a co isa que não se ja libe r dade . De se jar po de se r pe nsado de
o utro mo do , o nde co me çar a de se jar não se r á visto co mo to r nar -
se humano , muito pe lo co ntr ár io , co mo oco rr e entr e os
esquiz o analis tas. O de se jo fo r a da r e lação suje ito - o bje to e se m
uma me mó r ia que po ssa de te r miná- lo , flui e que r fluir mais.
Ne ssa pe r spe ctiva, não de se ja- se a falta de um o bje to , co mo uma
mãe , por e xe mplo , e també m não se de se ja pe sso alme nte , o
de se jo não é do suje ito , ao co ntr ár io , é o de se jo que po de cr iar
um suje ito . O de se jo está so lto , e le po de passar pe lo s co r po s,
vagando e m co ne xõ e s se m limi te , e le flui ligando - se a qualque r
co isa. O s re plicante s , quando libe r tam- se do me do que se nte o
escr avo , cão submisso ao po de r do do no , quer e m mais é vive r e
vive r mais, co isa que to do animal que r faz e r , exce to o s cãe s, que
e m se u ser vilismo , po de m até mo r re r pe lo do no . O s humano s são
animais dife re nte s do s o utr o s po r vár io s mo tivo s, e ntr e e sse s,
por ter e m pe r dido a vir tude da espr e ita e m tr o ca da cr e nça
auto matiz ada numa or ganiz ação da vida que pro cur a gar antir
atr avé s da institu ição de le is e nor mas so ciais uma dur ação
cro no ló gica imaginár ia quase ilim ita da. O s humano s não sabe m
50

que vão mo rr e r o u se sabe m, vê e m a mor te situa da e m alguma


zo na muito distante do pre se nte vivido - o s humano s inve ntar am
a sua ve lhice . O s animais, pr incipa lme nte o s que não vive m pe r to
do s humano s há tanto te mpo , co mo o s cãe s, pare ce m te r uma
e xpe r iê ncia da mor te muito dife re nte , co mo se pe r ce be sse m a
mor te o te mpo inte ir o . Os animais espr e itado r e s são
co nte mpo r âneo s de si me smo , estão se mpr e na bo r da do te mpo
inve ntando suas vidas. C o m os r e plicante s, que libe r tar am- se da
situação de e scr avo s que e ra não de se jar , aco nte ce o me smo ,
inclusive no se ntido da e spre ita, já que par a se re m máquinas de
co mbate era ine vitáve l que e ssa qualida de lhe s fo sse
pr ivile giad a. Mas o que lhe s distan cia do s humano s é,
pr incipal me nte , a me mó r ia. O s r e plicante s são máquina s que
co me çam a de se jar e que tê m to das as po ssibili dade s de
co ne ctar e m- se às e str utur as da cultur a humana, mas e le s não
te m uma me mór ia que o s mar que co mo suje ito s de uma histó r ia.
Ele s pe r ce be m r apidame nte que a vida de e scr avo não é nada
inte r e ssante e se nte m que há ne le s uma fo r ça que po de se r
me lho r apr o ve itada . Q uando co me çam a de se jar , o u se ja, quando
o de se jo e nco ntr a ne le s um cor po se m ór gão s, um te r re no o nde
po ssa maquinar e pr o duz ir , o que e le s de se jam é co ntinu ar vivo s,
e le s são os gue r re ir o s do de vir , po is vive m a o po r tunida de de
faze r se u maquin ismo té cnico funcio nar dir e tame nte em r e gime
inte nsivo de máquina s de se jante s, alé m de vive re m o
co mpro misso ple no co m o pre se nte e o futur o . N ão po de m
de se jar nada que não se ja go z ar de sua libe r dade po r mais
te mpo . Te r ou não te r mãe não faz o me no r se ntido , são
máquinas de pro dução , não há ne nhum r e fe re ncial histó r ico em
se us cor po s de o nde pude sse m r e pre se ntar um dr ama. A
maquinar ia e dípica não lhe s captur a a po tê ncia de vida. Phil ip
Dick, R idle y Sco tt e W illiam B urr o ughs, que tanto fala mal do s
cãe s, não tê m o utro pro pó sito que não se ja e xaltar a vida livr e
do de se jo . Ele s faz e m co mo fize r am Ar taud, N ie tz sche , De le uze e
G uattar i, num mo me nto mo str am um siste ma de co ntr o le que
51

escr aviz a e no o utr o instal am bo mbas nas par e de s invisíve is par a


que r e plicante s e e squiz o s po ssam passar .

A se gunda e ntr e vista co lo ca o pro ble ma da me mór ia, o co nce ito


mo tor do e nr e do do filme , ligada dir e tame nte ao s me canismo s de
co ntr o le das máquin as mo lar e s e ao s mo vime nto s
de ster r ito r ializ ante s das máquin as de se jante s. Assim co mo ante s,
a entr e vista o co r re na T yr e ll C o r por atio n, e mpr e sa cr iado r a e
fabr icante do s r e plicante s. Mas a situação é muito dife r e nte da
ante r io r , ago r a te re mo s o e nco ntr o e ntr e De ckar d e Rache l.
T yr e ll, o gê nio , inve nto r do s re plicante s , cr iado r de se us
cé r e bro s, e stá pr e se nte , é e le que m pe de a De ckar d que faça o
te ste em R ache l, que re ndo te r um ne gativo do te ste , já que até
aque le mo me nto pe nsamo s que R ache l é uma humana. Tyr e ll
sabe de tudo , inclus ive que De ckar d també m é um r e plicante . Ela
re spo nde a to das as per guntas co mo uma humana de ntr o da le i.
De po is de mais de ce m per guntas Rache l não co nse gue r e spo nder
uma que stão , que lhe pe dia uma re ação quando e m um jantar
co m amigo s lhe o fer e ciam “ coz ido de cão , co mo pr ato pr incip al” .
Ela tr ava. Tyr e ll pe de par a e la sair por um instan te . R ache l e r a
uma r e plicante e não sabia. De uma ge r ação po ste r io r ao s Ne xus
6 , e la havia sido cr iada co m uma impo r tante dife r e nça e m sua
co mpo sição , Tyr e ll explica a De ckar d: “ Co me çamo s a de te ctar
ne le s uma estr anha o bse ssão . Afina l, são emo cio nalme nte
ine xpe r ie nte s, co m ape nas alguns ano s par a ar maz e nar as
e xpe r iê ncias que , par a nó s, são dado s adquir ido s. Se lhe s
inje tar mo s um passado , cr iamo s uma e spé cie de almo fada par a
as suas e mo çõ e s, po de ndo assim co ntr o lá- lo s me lho r” . A
o bse ssão a que Tyr e ll r e fe re - se é o que há co m L eo n, R o y e Pr is,
o s re plicante s Ne xus 6 , que que r e m o bse ssivame nte um te mpo
vivo s que lhe s se ja suficie n te . Em r e lação ao le ma da e mpre sa
“ mais humano que um humano ” , o s Ne xus 6 fo r am um fr acasso
co mple to , po is quando to r nar am- se ser e s de se jante s tor nar am- se
52

també m anti- humano s. Fo i e m re spo sta a isso que a T yre ll Co .


pro gr amo u em se us cor po s um me canismo de auto -
de ge ne r e cê ncia, que lhe s matar ia ao final de quatr o ano s.
De po is, a so lução do s cie ntis tas fo i inje tar no s no vo s mo de lo s
um fundo r e fe r e ncial de me mór ia, uma me mó r ia humana, uma
subje tivi dade . A no va e xpe r iê ncia de T yre ll, Rachae l, fo i cr iada
co m me mó r ia humana, e le s inve ntar am uma mne mo té cnica
aplicada ao s re plican te s, que faz ia de le s suje ito s co m pai e mãe ,
co m le mbr anças, e tc.

Rache l e ntr a e m cr ise co m a sua de sco be r ta e de sapar e ce . Ao


co ntr ár io do s N e xus 6 , r adicalme nte anti- humano s, Rache l te m
uma cr ise de r e plicante - humana que pe r de u se u e statuto
pr ivile giado , mar ginal iz ada e m um se gundo co mo fo r a da le i, for a
da o r de m humana. À no ite , e la vai até a casa de De ckar d e
co nte sta o r e sultado do te ste mo str ando as fo to s de infância em
que está ao lado da mãe . N e sse mo me nto sabe mo s po r De ckar d,
que as me mó r ias de Rachae l e r am fato s que tinham o co r r ido a
so br inha de T yr e ll - Vo cê le mbr a de br incar de mé dico co m se u
ir mão , e le mo str o u o apar e lho de le , mas na ho r a de vo cê mo str ar
o se u saíste co r re ndo ? E quando vo cê passo u um ve r ão inte ir o
aco mpanhando uma ar anha que faz ia te ia na jane la da casa... Ela
inte r ro mpe - o co ntinuando - nasce r am de la ce m ar anhinhas que a
co me r am . “ Implante s!” , diz De ckar d, co m asper ez a, mas lo go
arr e pe nde -se , pe de -lhe de sculpas e o fer e ce -lhe um dr ink, mas
e la vai e mbor a, se m diz e r nada. L o go de po is, ve mo s De ckar d ao
piano , junto as suas pr ó pr ias fo to s de famíl ia e é aí que e le
so nha co m o e xube r ante unicó r nio .

Ao final da caçada e m que a mo ça é assassinada e nquanto


atr ave ssa uma sér ie de vidr o s de vitr ina, numa se quê ncia
for tíssim a, Rache l salva De ckar d de ser mo r to po r L eo n, e
53

instaur a, pe la é tica do gue r re ir o , uma dívid a de vida. De ckar d, o


B lade R unner , não po de r ia matá- la, po is de via- lhe a pr ó pr ia vida.
O me io do filme , o mo me nto e m que to da a for ça co nce ntr a- se
par a de po is expandir - se no vame nte , é um inte r valo e m te mpo
le nto , vagando e ntre as ce nas de amo r e ntr e os do is casais de
re plican te s – De ckar d e Rache l, R oy e Pr is. Em se u apar tame nto ,
de po is de te r sido salvo po r R ache l, De ckar d te nta be ijá- la, mas
e la escapa e co r re e m dir e ção a por ta. Ele a impe de de fugir e
avança par a be ijá- la no vame nte , e la r ecua um po uco e diz : “ e u
não po sso co nfiar na minha me mó r ia, não se i se so u e u o u a
so br inha de T yr e ll” . Mas De ckar d, co mo um caçado r implacáve l ,
co ntinua avançando e r o mpe a r e sistê ncia de R ache l, pe dindo que
e la diga que o de se ja; e la diz e os do is be ijam- se . O fluxo
amor o so r o mpe a cr ise de ide ntida de da mo ça e e le s apaixo nam -
se . Do o utr o lado , Ro y e Pr is e nco ntr am- se na casa de Se bastian ,
o enge nhe ir o ge né tico que le var á R o y a e nco ntr ar -se co m o
cr iado r , T yre ll. A o bse ssão de te r mais te mpo de vida apare ce
co mo a vo ntade de ter te mpo suficie nte par a o amo r . O filme
e xpande - se ne sse inte r stício e inte nsi fica se u co nce ito atr avé s da
luta entr e De ckar d e Ro y, ambo s r e plicante s, da qual ape nas o
B lade R unner so br e vive r á. Então vo ltamo s a no ssa que stão
inicial , se De ckar d é um re plican te , assim co mo R ache l, por que
o s de ixam vive r?

Na co nce pção de T yr e ll, R achae l e De ckar d, os re plican te s


subje tivado s , se r iam mais humano s que um humano e , por tanto ,
mais facilme nte co ntr o láve is. Mas é aí que o me io do filme faz a
dife r e nça, o nde “ Dick- Sco tt” apo stam to das as suas fichas. T yre ll
sabe que ne nhuma fo r ma de co ntr o le po de se r to tal, e le não cr ê
se r po ssíve l co ntr o lar se gur ame nte um r e plicante , assim co mo
não po de ser co m humano s, po is o co ntr o le nunca é suficie n te
quando o funcio name nto é de se jo so . Assim co mo R ache l é
de slo cada de se u impasse de sabe r que m é, pe la po tê ncia
54

disjunt iva do amo r , De ckar d é de slo cado pe la me sma fo r ça, mas


també m po r causa da luta de vida e mo r te que tr ava co m R o y, o
mais po de r o so e ntre os re plicante s. Ambo s de slo came nto s
co nstitue m- se co mo uma espe r ança de que há uma po ssibili dade
de e scapar , de fugir ao co ntr o le , me smo par a o s r e plicante s
co nstituí do s par a se r vir do cilme nte . É o de se jo que r o mpe o muro
da subje tivi dade e instala uma dife r e nça dife re nciante , uma
inte nsidade na e str utur ação te cno ló gica da co isa; e le é o que
po de r aspar o juíz o , co mo o cor r e no e nco ntr o e ntr e R o y e se u
cr iado r , T yre ll. Ro y sacr ifica a Rainha, mor ta pe lo cavalo ; e m
se guida dá um be ijo na bo ca do re i e e smaga o se u cr ânio . Abr e -
se um futur o impr e visíve l.

Be r gso n, em A Evo lução Cr iado r a, co lo ca o pr o ble ma da dur ação


da se guinte mane ir a: “ Se um estado de alma de ixasse de var iar ,
a sua dur ação de ixar ia de e xistir 4 8 ” . É simulta ne ame nte que a
me mór ia intr o duz alguma co isa do passado no pr e se nte vivido e
que aco mo da o de vir no se io de se us blo co s, dife r e nciando a
co mpo sição do indi víd uo , que me smo se ndo po ssuido r de uma
subje tivi dade po de do br ar e m si as linhas de fo r ça do fo r a. Se ndo
se r e s de se jante s, o s re plican te s, assim co mo o s humano s, estão
ace ssíve is ao s fluxo s de de se jo e a instalação de de vire s. O nde
vibr a o co nce ito do filme . Há uma e spé cie de co nfiança às
ave ssas, quando os ho me ns do co ntr o le de ixam De ckar d e
Rachae l vive r e m suas vidas. Um cer to e ngano , de po sitado nas
vir tude s da sua mne mo té cnica mile nar . N a ve r dade e sto u se ndo
o timista. O e le vado r fe cha suas por tas, não sabe mo s o que
have r á. Mas fica uma e spe r ança na vida. O s aco nte cime nto s
pe lo s quais passar am De ckar d e R achae l te r iam mudado suas
co mpo siçõ e s em dir e ção a abe r tur a de to das as co ne xõ e s
po ssíve is? Par e ce que o filme apo nta e m do is se ntido s. Pr ime ir o
no s for ça a uma inte nsa ide ntif icação co m De ckar d, o humano ,

48
Henri Bergson, A evolução criadora, Delta, p. 42.
55

par a de po is tir ar -no s o chão – e le não é humano . E nó s, o que


so mo s? Humano s se m luta, o u re plicante s e m fuga? Do nde o
se gundo impu lso br o ta. Se passamo s a te r a me sma cr ise de
Rachae l, po r não no s so br ar ne m De ckar d a que m se ide ntif icar ,
co mo se r e s pr ivile giado s num mundo de mor to s, ao que
po der e r íamo s no s agar r ar ? “N ão po sso co nfiar na me mó r ia” , disse
Rachae l. Mas o amor é algo e m que e la não po de sabe r . O amo r
é uma e xpe r ime ntação , um de vir , uma cr iação de inco nscie nte ,
de futur o , de e fe ito s ine spe r ado s, ar r o mbado r e s da me mó r ia se ja
de que m fo r . Me smo a me mó r ia humana, no ssas le mbr anças
pe sso ais, se r iam e las indiv idua is, par ticular e s? Fe cha- se a por ta
do e le vador !

* * *
56

PARTE II

VIAJAR
57

“ O ce ano s, si m! Te nhamo s mais o ce ano s, no vo s oce ano s que


apag ue m o passa do , o ce ano s que cr ie m no vas fo r maçõ e s
ge o ló gicas , no vas vistas to po gr áfi cas e co nti ne nte s estr an ho s,
ate r ro r iz ado re s, o ce ano s que de str ua m e pr e se r ve m ao me smo
te mpo , o ce ano s no s qua is po ssamo s nave gar , par t ir par a no vas
de sco be r tas, no vo s hor iz o nte s 4 9 ” (He nr y Mil ler. Tr ó pico de
C ânce r )

49
p. 243.
58

A espreita dos guerreiros

“ Vo cê te m je ito para caçar – disse e le . - E é isso que de v ia


apr e nde r, a caçar. N ão vamo s mais falar de plan tas. - Inflo u as
bo che chas e de po is acr e sce n to u, francame nte : - E cre io que
nu nca fa lamo s, não é? - E r iu 50
.”

Duran te uma se ma na, Do m Juan le vo u C asta ñe da a suce ssivas


si tuaçõ e s de caçada s de d ifer e nte s anima is. Esse s pr o ce d ime nto s
e xpe r ime nta is mar cam do is mo me nto s dife r e nte s do que para o
ín dio ser ia o pr o ce sso de to r nar-se um “ grande caçado r ”, de
an imais ou de po der . A pre nde r a espr e itar é uma das base s do s
e nsina me nto s so br e o nagua l 5 1 . Pr i me iro era ne ce ssár io co nstr uir
os dispo s iti vo s, as ar madi lhas, e pr inci pal me nte , co nhe ce r a
r o tina da caça que se que r ia apanhar. Em o utras pa lavras , o
pr ime ir o mo me nto era o da e spr e ita do to nal de cada an imal : “ as
co isa s que o s anima is faze m; o s l ugar e s o nde co me m; o lugar, o
mo do e o te mpo que dor me m; o nde faze m se us n inho s; co mo
cam inham ; (. .. ) de que mane ira de ix am se us rastro s; na ve r dade ,
tu do o que faze m po de se r pr e visto ou re co nstr uí do po r um bo m
caçado r 5 2 ”.

Ele s passara m mui to te mpo cam inha ndo para to do s os lado s ,


e nqua nto Do m J uan dava um exp licação incr ive lme n te de tal hada
a re spe ito das cascavé i s - “ co mo faze m se us nin ho s, co mo se
mov ime ntam , se us hábi to s pe r ió di co s, e squis itice s no se u
co mpo r tame nto . ( ... ) e po r fim , pe go u e mato u um co bra gran de ;
co r to u-l he a cabe ça, l impo u suas vísce ras, tir o u- lhe a pe le e
asso u a car ne 5 3 ”. Mas na hora de co me r, o o r ganis mo de
C asta ñe da re agi u, co mo e le co n ta: “ Se nt i náuse as quan do
50
Carlos Castañeda, Viagem a Ixtlan, Record, p. 65.
51
Carlos Castañeda, Porta para o infinito, Record, e O fogo interior, Record.
52
Carlos Castañeda, Viagem a Ixtlan, Record, pp. 84 – 85.
53
Idem. p. 65.
59

co me ce i a mas tig ar um bo cado de car ne de co bra. Era uma


r e pugnâ ncia infu ndada , po is a car ne e ra de lic io sa, mas me u
e stô mago par e cia uma un idade in de pe nde nte . Eu ma l po dia
e ngo lir. Ache i que Do m J uan ia te r uma cr ise car díaca , de ta nto
r ir 5 4 ”.

O se gun do movime n to do caçado r par e cia se r um po uco mais


d ifíc il e de saf iado r, po r in dicar uma vir t ude no r o mpime n to co m
to do tipo de maqui nismo ro ti ne ir o na vi da:

“ Se r um caçado r não é ape nas apa nhar a caça na ar mad ilh a –


pr o sse guiu . - Um caçado r dig no de sse no me não apanh a a caça
po r que pre para as ar mad ilhas , o u por que co nhe ce a r o tina de sua
pr e sa, e si m por q ue e le me smo não te m ro ti na. É e sta a
van tage m que e le le va. N ão é e m abso l uto co mo o s ani mais que
pe r se gue , fixado po r ro ti nas pe sadas e e squ isit ice s fixas ; é li vre ,
fl uido, impr e visí ve l 5 5 .”

“ C o mo já l he disse , a me us o lho s vo cê se co mpo r ta co mo sua


pr e sa. Uma ve z e m minh a vi da al gué m me d isse a me sma co isa,
de mo do q ue vo cê não é o ún ico. Nó s to do s no s co mpor ta mo s
co mo a pr e sa que per se gui mo s. Isso, na tural me nte , no s tor na
pr e sa para algu ma co isa o u alg ué m. O ra, o cuida do do caçado r,
que sabe de t udo isso, é de ixar de se r uma pre sa e le me smo.
En te nde o que que r o dize r 5 6 ”.

* * *

Um corpo para brincar

54
Idem. p. 65.
55
Idem. p. 84.
56
Idem. p. 85.
60

A po sição da e spr e ita cl ínica é se me lha nte a do Ze n – me nte


vaz ia , algo dis par a 5 7 . Se r ia inte r e ssante se pude sse se r assim . A
ar te caval he ire sca do ar que ir o ze n só atin ge sua pe r fe ição
quan do o ind iví duo ze ra a infl uê ncia do 'e u' so bre si. É q uando
e le pára de pe nsar que a fle cha é d ispara da. Mas co mo ne sse
mo me nto e le não e stá al i e nqua nto su je ito, po is afasto u o e u, o
que é que di spara?

“ Co mo o dis par o po de o co r re r, se não fo r eu que o fize r


aco nte cer ? ”

“Algo d ispara”, re spo nde u -me o me str e .

“ Já o uvi e ssa r espo st a o utras ve ze s. Mo dif ico, po is, a pe r gun ta:


co mo po sso espe rar pe lo di sparo, e sque ci do de mim me smo, se
e u não po sso e star pr e se n te? ”

“Algo pe r mane ce na te nsão máxim a”.

“ E o que é e sse algo ? ”

“Q ua ndo o se nho r so u ber a re spo sta , não pr e cisar á mais de mim.


E se e u lhe de r algu ma pis ta, po upa ndo - o da e xper iê nc ia pe sso al,
se r e i o pio r do s me str e s. Po r isso, não fale mo s mais!
Prati que mo s!” 5 8

Para não sub jugar um caso, tal vez se ja pre ciso inco r po rar algo
co mo a não - me nte Ze n, um e stado de te nsão máx ima t ípico da
espr e ita anima l, uma d imi nuição de si para não so bre po r-se ao
caso, assi m, ta lve z , algo disp arasse no se nti do de uma nova
pr ática , de uma nova e xper ime n tação.

No caso de Die go, atravé s do re lató r io da e sco la no te i que


po der ía mo s co me çar pe lo de se nho. Mas no caso de um adu lto,

57
Eugen Herrigel, A arte cavalheiresca do arqueiro zen, Pensamento, p. 63.
58
Idem. p. 63
61

ge ralme nte é pe la fala que po de mo s pe r ce be r o u in tuir algu m


dispo s iti vo, algo ao que li gá- la para que e le po ssa move r-se no
se n tido de uma re inve nção de si. um se nt ido po ssí ve l para sair
da cr ise . Uma pacie n te d isse -me que quando e stava tr iste ia para
o chuve ir o to mar ban ho, era um in dica do r de saúde . Então, f iz
uma e spé cie de e ntre v ista co m e la, uma co nve r sa so br e banho
para co nhe ce r a sua inve nção. Per gu nte i se era chuve ir o o u
banhe ira , po r e xe mp lo, que t ipo de su bstân cias para ba nho e la
usava , o que e la faz ia, a fim de co mpo r uma ce na e am pli ar o s
e fe ito s do banho pe la fa la e pe la inte r fer ê ncia do de se jo no ato
da fala , abr indo para novas i nve nçõ e s, le vando o ban ho no
se n tido de uma expe r ime ntaç ão clí nica .

No utr o caso, um jove m e m cr ise , co m o que lhe disse ram se r


síndr o me do pâ nico , falo u- me que se nti a-se be m pratica ndo
natação, mas que há mui to te mpo não nad ava. Novame n te , era o
caso de uma pe sso a que diz o que po de lhe aju dar a sair da
cr ise , do nde uma e ntr e vista po de func io nar co mo a
e xpe r ime n tação de um as su nto, abr indo o indi víd uo ao s de vir e s.
de ma pe ame nto : “ Q uando vo cê co me ço u a nadar ? Q ue e stilo s de
nado pra tica? Es tá pe nsan do e m vo ltar a nadar ? C o mo apre nde ste
a nadar ? Etc .” Uma e ntre vis ta:

− Pre ciso vo ltar a nadar , go sto mui to de nadar .

− E co mo fo i que isso co me ço u?

− Le mbr o de qua ndo e u t inha 3 ano s. Me u pai diz ia que pr ime ir o


e u fi que i o lhan do o mar um po uco assu stado , mas que lo go
e ntre i . Eu le mbr o que e u e ntr ava no mar e cami nhava adian te
se m que re r par ar , até que me u pai ia me bus car .

A ce na é fo r tíss ima! Um me n ino de 3 ano s que vai e m d ire ção ao


o ce ano pro fu ndo. O pai o r e sgata , lhe diz do s l imi te s e do s r isco s
atravé s de um ge sto. Há uma so ltura , um de ixar- se ir ao
62

il imi tado. “Q ue r o vo ltar a nadar, em pisci na”. Isso se par e ce co m


uma via de sa ída, e vár ias que stõ e s sur ge m daí . Uma pe sso a que
che ga ' travada' à clín ica e q ue sabe , pe lo me no s, de um mo do
para so ltar- se um po uco. Ne sse s caso s, par e ce que um cor po
e mbaixo do o r ganis mo ainda co nse gue visl umbrar uma saí da, e
e le dispara - o co r po se m ó r gão s é algo . Do nde a espr e ita clí nica
é també m uma ate nção ao s movime nto s do co r po se m ó r gão s, o
ino r gânico no cor po. Mas ne m se mpr e a cr ise per mi te que a
pe sso a faça o movi me nto e m d ire ção ao que lhe po de li ber tar,
pe lo sim ple s fato de que re r, ne ssas ocas iõe s te mo s de ajudá -la a
che gar lá . Por que o pac ie nte não po de de pe nde r do te rape uta
para o r e sto da vi da, e le te m que r e to mar a sua po tê nc ia
e xpe r ime n tal, até se l ibe r tar inc lusi ve do te rape uta . Sua
capaci dade de br i ncar, co mo diz W inn ico tt , te m que se r le vada ao
lim ite das suas po ssi bi lida de s, co m as pr e cauçõ e s de uma
pr udê ncia i nve nta da por co nta pr ó pr ia na me tae stab il idade da
pró pr ia e xper i me ntação.

Sua cr ise fo ra e nte ndi da e m no sso s e nco ntr o s, no pr i me iro mê s


de psico te rap ia, co mo um pr o ce sso de bur o cr at iz ação pe lo qua l
sua vi da fo ra to mada, ins talan do -se no p lano amo r o so, pass ando
pe lo tra balho e pe la cr iaç ão até e nr ije cer quase que a to tal idade
do campo vita l. Na pr ime ira se ssão, e le me havi a pe di do
ind icaçõ e s de te xto s e scr i to s pe lo s au to re s que infl ue nciam me u
mo do de traba lhar na clí nica e por causa das suas r e laçõ e s de
traba lho, indi que i um te xto de G uattar i i nti tul ado “ So mo s to do s
gr upe lho s 5 9 ”. De sse te xto e le cr io u uma palavra para dize r do que
lhe oco rr ia : “ acho que acabe i bur o cr atiz ando a min ha vida ”, e
co nclui u: “ se eu pude sse br incar mais , tal vez acabasse m as
cr ise s”.

O di agnó st ico pare ce ra-me per fe i to ! Insta le i gancho s na par e de


59
Félix Guattari, Revolução molecuar, Brasiliense, p. 12.
63

da clí nica pe nsan do que pu de sse m se r uti liz ado s por e sse
pacie nte , no se nti do do br in car de que fa lava , que para mi m
est ava na viz in hança do br incar W inni co tti ano. Pe nse i que a
cr iação de uma r e de de lin has, co r dõe s, fitas , po der ia ajudar a
mover o se u co r po para fora do maqu inis mo bur o cr ático que o
havi a to mado, faze n do -o co me çar a fugir para uma r e inve nção de
si. O cor po da cr ise de ver ia ser esq ue cido e m pr o l de um novo
que pre cisar i a se r cr ia do. Inic ial me nte , eu não sab ia co mo
po der ia uti liz ar o s gancho s, e e ntão, d urante as trê s se manas
po ste r ior e s à fi xação do s me smo s nas par e de s, eram do ze
gancho s, fiz al guns te ste s . Pe r ce bi que inst alar as lin has
for man do uma espé cie de te ia e de po is se gu í- las co m os o lho s
ve ndado s, e scapando da in te r pre tação visua l, pro duz ia , no
mín imo, a se nsação de se e star jo ga do no ine spe rado, pe la via do
tát il e do se nsíve l , inte r r o mpe ndo -se o fluxo in inte r r upto do
pe nsame nto. Alé m disso, pe nse i que lançar -se ao ine spe rado
de sse mo do, po der ia pr o duz ir se nsaçõe s mui to pare ci das co m o
pânico , que se gu ndo e le diz ia , pr e cisava se r vig iado a to do
inst a nte , po is a “ cr ise ine spe rada” po de r ia “ apare ce r a qua lque r
mo me nto ”. Esse e stado de vig ília co nstan te , ate nta a ir r upção
das cr ise s, po de r ia se r suti lme nte avar iado co m a
e xpe r ime n tação da insta la ção das li nhas .

Ele passo u pe la e xper iê nc ia duas ve ze s. N a pr ime ira , ins talo u as


lin has e nquan to e u lia em voz al ta A passage m das ho r as 6 0 , de
Fe r nan do Pe sso a: “ Mul tip li que i- me para me se nt ir / para me
se n tir, fo i pr e ciso se nt ir tudo ”. Q uando e le acabo u co m um
carr e te l e me io de l inha e disse que est ava pr o nto, per gu nte i
co mo achava que po der ia e xpe r ime ntar a ins talação. Co mo não
te ve idé ia algu ma, suge r i que lhe pusé sse mo s uma ve nda e que
e le cami nhasse pe lo lugar se m enxe r gar. Ne sse mo me nto, pe r ce b i
que a si tuação est ava inte r fer in do num po nto de amar ração da
cr ise , po is e le fico u co m “ me do ” de po r a ve nda , e lo go de po is

60
Fernando Pessoa, O eu profundo e os outros eus, Nova Fronteira.
64

de cidi u e nfr e ntar o de safio. A par t ir da í, caminho u po r cer ca de


uma ho ra, e ntr e o s fio s da sua re de , e nquan to eu lia o e xte nso
poe ma e m voz al ta.

Alg umas se man as de po is , nu m mo me nto e m q ue a co nve r sa fo i


to cada pe lo assunto do me do de so ltar- se à vida vivi da no
pre se nte , su ger i que e le pas sasse novame nte pe la e xper iê nci a de
inst a lação das l inhas . Fiz algu mas mo dif icaçõ e s no pr o grama, por
exe mplo, não li te xto al gum dura nte o pr o ce sso to do, fique i e m
silê nc io, aco mpanha ndo co m o s o lho s.

De po is que a re de de li nhas est ava insta lada , co lo que i -lhe a


ve nda ao s o lho s e e le co me ço u a movi me ntar- se pe lo lugar.
De ssa vez e le não te ve me do de co lo car a ve nda , o que par e ce u
se r uma dife r e nça si gni fica tiva . Passado s algu ns m inu to s,
co me ce i a so ltar bo las de pi ngue - po ngue pe la sala , ao s se us pé s,
te ntan do pr o duz ir- lhe uma se nsação de inse gura nça ao cam inhar,
pr ovo cando o cor po a inve n tar um o utro ti po de movi me nto para
lo co mover- se pe lo espaço de sco nhe c ido. As bo las dis parava m um
so m i nte re ssan te pe lo amb ie nte e o e fe ito ge ral era de r iso po r
par te do pac ie nte ; co mo nu ma br i ncade ira de sco n traída , eu
també m r ia e m silê ncio, sat isfe ito co m o que via – e le te ntava
pe gar as bo l inhas pe lo so m e e sque cia de cuidar das l inhas ,
esbar ran do ne las distra idame n te .

Pe r cor r e u suas lin has e o e spaço po r ce r ca de tr inta min uto s, até


e nco n trar-se em um impasse impo r tan te . Ele disse ba ixi nho :
“ Pe r di a no ção do e spaço ”. Po r lo ngo te mpo e le havi a se
de slo cado pe las lin has no ce ntr o da sala , se m e nco star- se e m
pare de s e mó ve is , qua ndo de r e pe nte bate u na po l tro na que
ficava ao la do da ja ne la. Na ho ra não pe r ce b i o que ti nha
aco nte cido, e le co nt inuo u anda ndo pe la sala po r mais me ia ho ra,
65

quan do e ntão lhe pe d i que enco ntras se um mo do de final iz ar a


e xpe r iê ncia . De ixo u a jane la o nde ficara no s úl timo s minu to s e
re tir o u a ve nda. Então, co n to u-me o que oco rr e ra.

“ Eu ach ava que e stava na po r ta e q uando bati na po l tr o na


per ce bi q ue e stava ao lado da ja ne la”. To ma do pe lo pe nsame nto
de te r pe r dido a no ção do e spaço , fo i invad ido pe las me smas
se nsaçõ e s que pre ce dia m suas cr ise s, e te ve me do de so fr e r um
ataque de pânico naque le ins tan te . Se u pr ime ir o im pulso, di sse ,
fo i o de que r er r e tirar ime d iata me nte a ve nda que l he co br ia o s
o lho s para situar- se e spacia lme nte e e vit ar a po ssíve l cr ise . Mas
e le de ci diu po r não r e tir á-la e co ntin uo u a cam inhar, se ntin do o
me do diss ipar- se le n tame nte até de sapare ce r.

Duas se manas mais tar de , sur giu um ó timo in dica dor do s e fe ito s
disp arado s po r e ssa e xper i me ntação. Ele me d isse que e stava
per ce be ndo que o alar me ant i- cr ise , ante s in inte r r uptame n te
lig ado, ti nha passado lo ngo s pe r ío do s de sli gado no s últ imo s d ias.
66

A literatura é uma saúde

“ E assi m, ce r ta manhã, de ixan do me u gr o sso


manuscr i to inco m ple to so br e a e scr ivani nha e
do brando pe la úl tima ve z me us co nfo r táve is
le nçó is case ir o s, par ti co m me u saco de vi age m
no qual po ucas co isas fu ndame nt ais foram
e nfiadas , e caí fo ra em dir e ção ao o ce ano
Pacífico co m cin que nta dó lar e s no bo lso 61
”.

Jack Ke r o uac – O n T he Road

A lite r atur a te m se us e xper ime ntado r e s. Ele s escr e ve m, co mo


dir ia De le uze , na e xtr e midade de se u pró pr io sabe r , na po nta
e xtre ma que se par a no sso sabe r de no ssa igno r ância e que
tr ansfo r ma um no o utr o 62
; e le s e scre ve m se us pró pr io s
mo vime nto s, tr ansfo r mam o s aco nte cime nto s de suas vidas e m
maté r ia e scr ita, se mpr e na bor da de uma quase insupo r táve l
suste ntabi lida de da inte gr idade física; situação que os faz
pro duz ir par a mante r e m- se vivo s e ainda acr e ditando no mundo –
a lite r atur a é uma saúde 6 3 . Algun s de sse s e scr ito re s vive m numa
situação muito par e cida, e m co ndiçõ e s pre cár ias, r e sistindo à
pre ssão de um mundo co m o qual não quer e m co mpactuar , um
mundo que não lhe s faz se ntido .

Par a muito s Se nho r e s, e sse s ho me ns po der iam pare ce r -se co m


mer o s vagabun do s, e o o lhar fr io so br e e le s, se us tr aje s, suas
ro upas, os far ia co ncluir r apidame nte que não passam de

61
On the road. Jack Kerouac. ed. L&PM. p. 29. 2004. 1ª ed. Norte americana: 1955.
62
Gilles Deleuze, Diferença e repetição, ed. Graal, 2ª ed., p. 18

63
Conf. Gilles Deleuze, Critica e Clínica, ed. 34, p. 9.
67

pre guiço so s que não go stam de tr abalhar . Em sua estr e ita


per spe ctiva, tais Se nho r e s te r iam to da raz ão , a não ser pe lo
e quívo co do e nquadr ame nto . Esse s ho me ns que le vam suas
escr itas par a tão lo nge , que subve r te m a do utr ina do s có digo s,
tudo que e le s mais de se jam é tr abalhar e ssa co nstante libe r ação
do s fluxo s que cor re m pe lo s se us cor po s e são de spe jado s e m
páginas cr iadas na suce s são de dias ininte r r upto s , alinhavadas
pe las cane tas, lápis, máquinas de e scr e ver , se m ne m me smo
ter e m te mpo par a ir a uma po ssíve l ge lade ir a vaz ia de alime nto s.
Or a, me us car o s Se nho r e s, tudo que e sse s ho me ns mais que r e m
na vida é tr abalhar , só que e m suas pró pr ias o br as, que são o
pr incipal alime nto do qual se nte m fo me . Par a e le s, nada po de r ia
se r mais tr iste que vive r uma vida se par ada do s se us pr ó pr io s
ge sto s. De ce r to mo do , e le s são vagabun do s sim, e o que mais
que re m é faz er co m que to do s o s có digo s vagabunde ie m e se
e mbar alhe m atr avé s de se us cor po s de scar nado s.

Eu me smo não saber ia co mo chamá- lo s: be ats, mar ginais,


vagabundo s e tc... Eu po de r ia citar alguns de sse s no me s: J.D.
Salinge r , Jo hn Fante , C har le s B uko w ski, He nr y Mille r , Jack
Ker o uac, W ill iam B urr o ughs, Ale n G insbe r g, Jo sé Agr ippino ,
Ro be r to Piva. Esse s que fiz er am da lite r atur a uma e scr ita de cada
e nco ntr o inte nsivo vivido , que e scr e ver am e m no me pr ó pr io , e
em no me de muito s , que cr iar am campo s lite r ár io s
auto bio gr áfico s muito dife r e nte s de qualque r tipo de diár io
re lató r io de fato s co tidiano s , que co lo car am a pr ó pr ia vida à
dispo sição do s e nco ntr o s co m tudo que lhe s atr ave ssava, de tudo
aquilo que lhe s pr o vo cavam mo vime nto s, se nsaçõ e s, o lhare s
singular e s no mundo e atr avé s do mundo , das maté r ias visíve is e
ó bvias o per adas pe lo s gr ande s co njunto s de co ntr o le , co mo das
maté r ias invisíve i s, pe r ce bidas ape nas co m uma mo dificação do
cor po , uma que br a da máquina o r ganismo , pe la inve nção de um
no vo mo do de e star vivo .
68

“ Esto u vive ndo na Villa Bo r ghe se . N ão há um re squício de suje ir a


em par te alguma, ne nhuma cade ir a fo r a do lugar . Estamo s
co mple tame nte soz inho s aqui e e stamo s mo r to s 64
.” Assim co me ça
Tr ó pico de C ânce r , de He nr y Mille r ;

“ N ão te nho dinhe ir o , ne m r e cur so s, ne m e sper anças. So u o mais


fe liz do s ho me ns vivo s. Há um ano , há se is me se s, e u pe nsava
se r um ar tista. N ão pe nso mais nisso . Eu so u. T udo quanto e ra
lite r atur a se de spre nde u de mim. N ão há mais livr o s a escr e ve r ,
gr aças a De us. E isto e ntão? Isto não é um livr o . Isto é injúr ia,
calúnia, difamação de car áte r . Isto não é um livr o no se ntido
co mum da palavr a. N ão , isto é um pro lo ngado insul to , uma
cuspar ada na car a da Ar te , um po ntapé no tr ase ir o de De us, do
Ho me m, do De stino , do Te mpo , do Amo r , da Be le z a... e do que
mais quise r e m. Vo u cantar par a vo cê , um po uco de safinado
talve z , mas vo u cantar . Cantar e i e nquanto vo cê co axa, dançar e i
so bre se u cadáve r sujo ... 6 5 ”

W alte r Fr anco , músico paulista no , cr iado r de uma o br a


e xce pcio nal na dé cada de se te nta, te m uma música co m o ito
se gundo s de dur ação co m a se guinte fr ase : “ Ape sar de tudo ,
muito le ve 6 6 ” . Em uma e ntr e vista re ce nte , e le co nta que cr io u a
música de po is de assistir a implo são de um e difício no ce ntr o de
São Paulo , que dur o u e xatame nte o ito se gundo s. É co mo se , par a
e le , uma estr utur a r ígida co mo a de um pré dio , de um co njunto
mo lar , pude sse ser fle xibil iz ada “ ape sar de tudo ” , de sde que
instalásse mo s os dispo si tivo s ade quado s á pro dução de um
de slo came nto do s se us alice r ce s. E o que po de r ia faz er funcio nar
esse tipo de de slo came nto quando não se ja o caso do enco ntr o
e ntre pr é dio e e xplo sivo s? De um mo do ger al, po der íamo s dize r

64
Henry Miller. Trópico de Câncer, Círculo do Livro, p. 7.
65
Idem.
66
Walter Franco. Apesar de tudo é leve. Álbum: Revolver.1976.
69

que são os aco nte cime nto s dispar ado s pe las e xper ime ntaçõ e s
inte nsivas que , po r e xe mplo , e m He nr y Mille r são acio nadas pe la
pro dução lite r ár ia.

Pr ime ir o , e le vive uma co nstante situação de per ce pção de uma


re alidade que não co mbina co m o que ne le se agita. O lo cal e m
que está, limpo e or ganiz ado pe r fe itame nte , a falta de dinhe ir o ,
re cur so s e espe r anças. Mas esse s e le me nto s que Mille r co lo ca e m
sua mir a, não estão ne ce ssar iame nte no ambie nte que o r o de ia,
no e xter io r e mpír ico , o que le var ia a pe nsar numa r e lação e ntr e
cor po s se par ado s, indivi duado s . Mille r e nco ntr a e sse s e le me nto s
co mpo ndo a pr ó pr ia multip lic idade que o po vo a. A Villa Bo r ghe se
é algo e m Mille r , De us é algo e m Mille r , a Ar te é algo e m Mille r , o
Ho me m é algo e m Mille r e até me smo Mille r é algo e m Mille r ; e le
o pe r a uma r e inve nção de si a par tir de um de spr e ndime nto
daquilo tudo que o r e pr ime – er a ne ce ssár io r aspar o juíz o de
de us, co mo na luta de Ar taud. Das se nsaçõ e s limi tado r as que
to do e sse entulho r ígido pro duz , e le che gar á à po ssibil ida de de
ger ar le vez a, de sacudir o que lhe inco mo da, atr avé s da e scr ita e
da vida le vadas co mo pr o ce sso s de e xpe r ime ntação . A e scr ita é
o nde Mille r co nstr ó i, ao me smo te mpo que a e scr ita é que
co nstr ó i e m Mille r , uma maquinar ia de faz er par tir .

Mas a lite r atur a não é só uma saúde par a aque le s que cr iam suas
o br as co mo única for ma de se mante r e m vivo s, sua po tê ncia
clínica també m afe ta aque le s que co m e la e nco ntr am- se atr avé s
da le itur a – um livr o po de mudar uma vida, co mo sabe mo s. Essa
maquinar ia lite r ár ia de faz er par tir e m pro ce sso s expe r ime ntais
de r e inve nção de si, també m pro duz algo e m que m ne la se
banhe , do nde um re ce ituá r io lite r ár io de sse tipo po de se r to mado
co mo dispo sit ivo de inte r ve nção e m psico te r apia, funcio nando
co mo po ssíve l expe r ime ntação pr o vo cado r a de disso luçõ e s do s
e difício s instala do s no co r po pe lo s pr o ce sso s de subje tivação
ho mo ge ne iz ante s, po de ndo co m isso de slo car um indiv íduo de
70

se us te rr itó r io s e nr ije cido s, que o impe de m de inve ntar no vas


esté ticas existe ncia is.

A par tir de sse pe nsame nto , e co ne ctado ao pe nsame nto de


re ce ituár io poé tico de G uattar i 6 7 , te nho pr o cur ado e xper ime ntar
o s efe ito s da inse r ção da lite r atur a co mo dispo sit ivo clínico em
psico te r apia. Na clínica é muito co mum o uvir mo s pe sso as
diz er e m de um tipo de cr ise muito se me lhante a de Mille r ,
pro duz ida por uma inco mpat ibi lid ade co m o mundo le gitima do da
so cie dade . Pacie nte s que diz e m não ve r se ntido no e stado das
co isas, que pe r der am a co nfiança nas pe sso as, e que pr o cur am
uma saída de ssas z o nas e xiste nciais re pre sso r as, po de m muito
be m se be ne ficiar e m num e nco ntr o co m a o br a de He nr y Mille r ,
por exe mplo , assim co mo de tanto s o utr o s, co nfo r me cada caso .

Em situaçõ e s muito var iadas utiliz e i fr agme nto s lite r ár io s co mo


dispo siti vo de e xper ime ntação e m psico te r apia, de sde le itur as
o nde a dupla re vez ava- se diz e ndo po e mas e tr e cho s de livr o s em
voz alta, até caso s em que eu suge r ia le itur as, se mpr e
aco mpanhadas de um pr o pó sito , ao me no s, mini mame nte
de line ado , te ndo a ve r co m o se ntido da inte r ve nção que e u
pre te ndia. Po r e xe mplo , um pacie nte que diz ter dificul dade s e m
re lação a pe sso as e m po siçõ e s hie r ár quicas e le vadas, r e ce be u
co mo suge stão de le itur a e xpe r ime ntal C ar ta ao Pai, de Kafka, e
co mo co mple me nto , se mpr e tr aze r o livr o par a tr abalhar mo s e m
no sso s e nco ntr o s, a par tir do s pe nsame nto s que a le itur a
dispar asse .

Em o utr as situaçõ e s é o pr ó pr io pacie nte que diz que a lite r atur a


funcio na co mo uma clínica par a si; co mo uma garo ta que diz ia
não ver se ntido nas co isas e e star passando po r “ muitas cr ise s” ,
mas que e m se guida falo u de do is livr o s que lhe ajudar am a
supe r ar as cr ise s vividas pe lo fim do namo ro e pe la mo r te de
67
cf. Micropolítica: cartografia do desejo.
71

uma tia. Isso fo i de sco be r to num pr ime ir o e nco ntr o co m e la,


por que , co nfo r me o caso , alé m de faz e r um mape ame nto da
histó r ia de vida e das cr ise s do pacie nte , pr o cur o faz e r uma
espé cie de anamne se de sco ntr aída, ou simple sme n te , uma
co nver sa so br e as suas pre fe rê ncias ar tísti cas em lite r atur a,
cine ma, fo to gr afia, ar te s plásticas , música e tc. Disse -lhe que
pare cia que e la tinha inve ntado uma clín ica par a si atr avé s da
lite r atur a, po is os livr o s lhe ajudar am a super ar cr ise s e
impasse s. Ve ndo que e la co mpr ee nde u e co nco r do u co m o que e u
disse , suge r i que a lite r atur a pude sse se r um campo a se r
e xpe r ime ntado na psico te r apia. A par tir daí, na me sma se ssão ,
e la falo u que go stava muito de e scre ve r , mas que par o u po r falta
de ince ntivo do e x-namo r ado e de co nfiança pr ó pr ia , mas que
tr ar ia se us e scr ito s par a e u ver – o que po de r ia se r um sinal de
que o campo da e xper iê ncia lite r ár ia e stava se ndo r eativado .
Mais adiante , em no ssa c o nver sa, che gamo s a C lar ice L ispe cto r ,
que , se gundo e la, e r a que m lhe faz ia se ntir que não er a a única
de sse je ito no mundo ; a e scr ito r a lhe era uma co mpanh ia
inse par áve l. C or r i e pe gue i Água Viva na estante , nó s do is já
havíamo s lido e sse livr o , mas e la disse que não se le mbr ava.
Se nte i- me no vame nte e li algumas passage ns: vivo à be ir a 6 8 ...
po sso não te r se ntido , mas é a me sma falta de se ntido que te m a
ve ia que pulsa 6 9 ... e ntão e scre ve r é o mo do de que m te m a
palavr a co mo isca: a palavr a pe scando o que não é palavr a 7 0 ...
Passe i- lhe o livr o , e la abr iu e le u o pr ime ir o par ágr afo em
silê ncio e de po is disse : o lha só , é assim que e u tava diz e ndo que
me sinto .. . Eu disse - e ntão le ia e m voz alta par a nó s.

“ É co m uma ale gr ia tão pro funda. É uma tal ale luia. Ale luia, gr ito
e u, ale luia que se funde co m o mais escur o uivo humano da do r
de se par ação mas é gr ito de fe licidade diabó lica (.. .) Mas te nho

68
Henry Miller. Trópico de Câncer, Círculo do Livro, p. 12
69
Idem, p. 14
70
Idem, p. 21
72

ainda um po uco de me do : me do ainda de me e ntr e gar po is o


pró ximo instan te é o de sco nhe cido 7 1 ...”

Utiliz e i Água Viva co m vár io s pacie nte s, e m dife r e nte s situaçõ e s


e pr o gr amas, assim co mo T ró pico de C âncer , de He nr y Mille r .
Este últi mo , po r tr atar - se de uma lo nga expe r iê ncia que vai de
uma vida limita da por to do s o s lado s, passando por uma cr ise
pro vo cado r a de uma po tê ncia de r e vide alucina tó r ia, che gando ao
final co m um inte nso canto de lo uvo r à vida, exaltação de tudo
que flui. No co me ço do livr o , He nr y Mille r e stava so br e vive ndo
e m Par is em situação difíci l, faz e ndo pe que no s se r viço s par a
pe sso as de sinte r e ssante s em tro ca de co mida e lugar par a
dor mir . De po is e le passa a alte r nar suas ce nas de sufo came nto
co m as de implo sõ e s r aivo sas e libe r tado r as.

De po is de uma se qüê ncia de pale str as humanitar is tas e


pacifistas , o hindu filiado a G handi, que He nr y Mille r
aco mpanhava e m tr o ca de alguns tr o cado s, de cide ir à de sfo r r a:
“ Alguns minuto s de po is e le dança co m uma puta nua... po sso ve r
a bunda r e fle tida uma dúz ia de vez e s no s e spe lho s que for r am o
apo se nto . A me sa está che ia de gar r afas de ce r ve ja, a piano la
chia e ar que ja.. . 7 2 ” Mille r está se ntado num so fá e o bser va o
hindu r e aliz ando se us capr icho s num bor dé u pe r ifé r ico . Ao s
po uco s, e le co me ça a no tar que sua pe r ce pção da ce na passa a
ter uma sutile z a inco mum, sua visão mo difica - se numa e spé cie
de de smor o name nto subje tivo , de scar nificação do e spír ito
escalpe lan do o filtr o da me nte e to r nando e xpo sta a
supe r ficiali dade de um de vir de sumaniz ante . .. “ Há uma e spé cie
de pande mô nio abafado no ar , uma no ta de vio lê ncia re pr imida ,
co mo se a espe r ada explo são e xigisse o adve nto de algum
de talhe abso lutame nte insign ifi cante , algo micr o scó pico , mas
inte ir ame nte impr e me ditado , co mple tame nte ine spe r ado ....” Ele

71
Idem, p. 09
72
Idem, p. 96.
73

vê o mo vime nto do s co r po s, re par a de talhadame n te no s o bje to s,


se nte o ar lhe r evir ando os po ro s, fundi ndo se u sangue às
pare de s do bor dé u, numa e spé cie de de vane io que per mite a
algué m par tici par de um aco nte cime nto , e me smo assim,
per mane ce r abso lutame nte ause nte ; o ambie nte ganhando
vo lume , de nsidade , co mo se cada co r po o r gânico o u ino r gânico ,
visíve l ou invis íve l que par ticipava do ce nár io fo sse se ndo
subitame nte macer ado por um pilão de me tal atr avé s de sua
per ce pção .

“T o do o me u se r estava re agindo ao s ditame s de um ambie nte


que nunca ante s e xpe r ime ntar a; aquilo que po dia chamar de ' e u'
pare cia e star se co ntr aindo , co nde nsando , re cuando das ve lhas
co stume ir as fr o nte ir as da car ne , cujo pe r íme tr o co nhe cia ape nas
as mo dulaçõ e s das e xtre midade s do s ner vo s. (... ) E quanto mais
só lido e substanc ial ia se to r nando se u núcle o , mais
e xtr avagante , de licada e palpáve l par e cia a re alidade pr ó xima,
par a a qual e le e stava se ndo lançado 7 3 ” .

Ele che gar a e m um mo me nto de sua vida e m que be ir ava o s


limite s da supo r tabil idade , se ntia que não tinha mais par a o nde
re cuar , e stafado pe lo e sgo tame nto das pe r spe ctivas de mante r
sua vida po ssíve l, mas ainda assim re spir ava um aro ma de
espe r ança, uma se nsação de que algo e stava em cur so , algo que
lhe mo ve sse dali. “T udo se supo r ta: de sgr aça, humil hação ,
po bre z a, gue r r a, cr ime , té dio – na cr e nça de que , da no ite par a o
dia, algo aco nte cer á, um milagr e , que to r nar á a vida to ler áve l 7 4 ” .
Mille r co ne ctado a uma maquinar ia co mpo sta por uma
multip lic idade de e le me nto s que o arr astam par a um estado de
co nsciê ncia inte nsifi cada , co mo dir ia C astañe da, a qual já não
po de mais re spo nde r co m as ve lhas co nfigur açõ e s da alma.
De sumaniz ação que o to ma ao s po uco s, mas inte ir ame nte , que

73
Idem. p. 96.
74
Idem. p. 97.
74

faz co m que e scape m to das as suas po ssibil ida de s de inte r pr e tar


os có digo s da so br e vivê ncia que até e ntão cultivar a,
espr e me ndo - o no s limite s do mundo , agitan do - o num
e mbar alhame nto do s có digo s, atir ando to das as car tas do se u
bar alho par a o alto , e o br igando - o a e ncar ar a fr ia lâmina
me tálica e m sua fro nte ; ante s de um po ssíve l aniqu ilame n to
co mple to , e le re age co mo se aco nte ce sse uma implo são de tudo
que o faz ia calar diante de um mundo impr ó pr io ao s fluxo s
de se jante s que o pr o vo cavam, a to do instante , a saltar e mor de r
a vida co mo se u último ato .

“ A ge nte pre cisa afundar - se de no vo na vida a fim de ganhar


car ne . O ver bo pre cisa faze r -se car ne , a alma te m se de . Q ualque r
migalha e m que me us o lho s po use m, agar r ar e i e de vor ar e i. Se
vive r é a co isa supr e ma, e ntão vive r e i, me smo que pr e cise
to r nar -me canibal . Até agor a e u vinha te ntando salvar o me u
pre cio so co ur o , pr e ser var os po uco s pe daço s de car ne que
esco nde m me us o sso s. Esto u che io disso . Atin gi o s limite s da
re sistê ncia. Minhas co stas estão co ntr a a pare de ; não po sso mais
re cuar . (... ) O mundo que abando ne i é uma jaula. 7 5 ” ...e e le salta
vor az , e stô mago vaz io , cé lulas e magr e cidas pe la e scasse z de
pro te ínas. .. “ A aur or a e stá nasce ndo so bre o no vo mundo , um
mundo de se lva no qual o s espír ito s de scar nado s ro ndam co m
gar r as afiadas. Se so u um hie na, so u uma hie na de scar nada e
faminta: avanço par a e ngor dar - me 7 6 ” .

* * *

75
Idem
76
Idem. p. 99.
75
76

Um corpo para falar

Em no sso pr ime ir o e nco ntr o na clínic a, pr o pus que no ssa


co nver sa fo sse gr avada co m uma câmer a de víde o apo ntada par a
e le . Ele acho u um po uco estr anho e fe z algumas per guntas .
Disse -lhe que minha idé ia er a que tivé sse mo s um re gistr o do que
e le falar ia par a, po ste r ior me nte , po de r mo s assistir . Gar anti par a
e le , e vide nte me nte , que as image ns não ser iam vistas por mais
ningué m a não se r nó s do is. Alé m disso , disse - lhe que achava
que assistir mo s po ster io r me nte a sua per fo r mance no víde o
po der ia ajudar a per ce be r co mo e le lidava co m a fala e co mo se u
cor po funcio nava quando e le falava, já que isso tinha a ve r co m o
pr incipal incô mo do que se ntia . Ele ace ito u.

Co lo que i a câme r a so br e uma te le visão que eu havia de ixado na


sala, pre par ado par a que a pr o po sta fo sse ace ita. A câme r a fo i
co ne ctada à T V de mo do que e le pude sse ve r sua image m, caso
de se jasse . Ele estava se ntado e m fre nte . Fiz o e nquadr ame nto de
for ma que o cor po inte ir o apar e ce sse e se nte i- me num ângulo de
45 gr aus e ntre e le e a te le visão . Co m o co ntr o le re mo to da
câmer a e m mão s disse - lhe : “Q uando vir e s a luz ver me lha sabe r ás
que a câme r a e stá gr avando . Se quise r e s que e u par e de gr avar ,
é só diz e r . Po de mo s co me çar ?” Ele disse - “ N ão se i o que é
pio r ... se é te r uma câme r a o u um e str anho o lhando , assim, pr a
tua car a, par a co nver sar ” . C o me ce i a gr avar e pe r gunte i - po r
quê? . Par e ce ndo ne r vo so , e le disse que achava que a câme r a e r a
pio r , já que um e str anho pe lo me no s tinha um ro sto .

No co me ço , e le disse que go star ia de diz e r por que pro cur o u


pr aticar psico te r apia. Fique i calado o uvindo e o lhando par a e le .
Falo u dur ante alguns minuto s so br e dificul dade s de falar em
público e uma gague ir a que lhe aco mpanhava há muito te mpo .
77

Eu disse que em pr ime ir o s e nco ntr o s go stava que a pe sso a


falasse de si atr avé s da s ua histó r ia, e que isso me pare cia uma
base de par tida inte r e ssante par a pr o ce sso s que funcio nam par a
que a ge nte se mo difi que ; a histó r ia co mo aquilo a que e stamo s
e m vias de dife r ir . A co nve r sa dur o u apr o ximadame nte uma ho r a
e e le falo u a sua histó r ia. Q uando te r minamo s, pe di que e le
tr o uxe sse suas fo to s pe sso ais no pr ó ximo e nco ntr o , po is isso no s
ajudar ia a cr iar um mapa de o nde par tir .

Ver suas fo to s dispar o u vár io s e fe ito s inte r e ssante s e indica do r e s


de e xpe r ime ntaçõ e s a se re m cr iadas par a o se u caso . Pe r ce be mo s
uma var iação e m se us ge sto s e m cada uma de las, o nde e le fo i
mo dificando sua r e lação co m a le nte da câme r a fo to gr áfica, cada
vez mais de sviando o o lhar . Alé m disso , as fo to s abr ir am a
po ssibili dade de que e le co ntasse a histó r ia de uma viage m que
fez , que se gundo disse , havia divi dido sua vida e m ante s e
de po is daque la expe r iê ncia.

N um o utr o e nco ntr o , de po is de do is me se s, e le che go u falando


do livr o que havia adquir ido , um vo lume de co le tâne as das o br as
de Ro be r to Piva, po e ta paulista . Pe di que e le le sse algum poe ma
e, ao me smo te mpo , pe nse i que se r ia inte r e ssante filmar a
le itur a e pe r gunte i o que e le achava – e le co ncor do u. N ão have r ia
um de vir - o utr o quando se lê o utr o? Er a a se gunda vez que
utiliz ar íamo s a câme r a co mo dispo sitivo na clínic a, mas de ssa ve z
não numa situação de e ntr e vista, e sim de le itur as. Me pare ce
ago r a, que essa talve z te nha sido a pr ime ir a situação co m o qual
per ce bi e fe tivame nte que minha ação clín ica havia se mo difica do
mais r adicalme nte , e que o mo tivo disso e stava re lacio nado a
te ntativa que e u co me çar a a inve stir de e xpe r ime ntar co mo se r ia
pro duz ir uma clínica que o co r re sse atr avé s de suce ssivo s
pro ce dime nto s de expe r ime ntação .

Pe la pr ime ir a vez , e u tive co nsciê ncia de que havia me co lo cado


78

à dispo sição de pe r ce be r que tipo de e xpe r ime ntação po de r ia ser


inte r e ssante de co lo car e m funcio name nto num caso e spe cífico –
que pr o gr ama e xpe r ime ntal cr iar par a as máquinas de se jante s de
um indiví duo ? Po r causa de expe r iê ncias que vinham aco nte ce ndo
co m o utr o s pacie nte s, e u sabia que indicaçõ e s par a cr iação de
pro ce dime nto s po de r iam par tir tanto de le co mo de mim, e que o
mais co mum se r ia aco nte ce r uma alte r nância o u co mpo sição de
pro po stas. N o caso de ss e pacie nte , e u per ce ber a que havia
ne ce ssidade de e xpe r ime ntar “ falar ” em dife r e nte s situaçõ e s,
po is e le pe dia- me , a se u mo do , par a ajudá - lo a cr iar um co r po
co m o qual pude sse falar em dife r e nte s situaçõ e s. A par tir daí,
co me çamo s a utiliz ar a câmer a de víde o co mo dispo siti vo
aco plava numa máquina de faze r falar e ve r a si pr ó pr io . Eu
tinha a expe ctativa de que o dispo si tivo não se limitasse ape nas
a efe ito s de auto - re co nhe cime nto , mas que també m abr isse
espaço par a a inve nção de no vo s mo do s de falar , o lhar , mo ve r -
se .

Co me ce i a per ce ber as qualida de s que a câme r a po de r ia te r co mo


dispo siti vo de inte r ve nção ao filmar cr ianças. N a é po ca, e u faz ia
me us pr ime ir o s mo vime nto s co m uma câmer a de víde o . Ao
ver e m-se na te la da câme r a as cr ianças ficavam sur pre sas,
ale gre s e muitas ve ze s e ufó r icas. Alguma s ve z e s e u che gava a
pe nsar e m de sligar a câme r a par a evitar tumulto s pr o vo cado s
pe lo acúmulo de pe que no s te ntando caber na image m tr ansmit ida
pe lo mo nito r de ape nas cinco ce ntíme tr o s, mas e le s r e so lviam
isso e ntr e si. Se e u pe r mitisse , a expe r iê ncia po de r ia dur ar po r
te mpo ilim itado , acabando co m inúme r as fitas, po is e las
e xpe r ime ntavam suas image ns co mo uma br incade ir a,
impr o visando ge sto s umas co ladas nas o utr as. N ão r ar ame nte , a
câmer a er a se ntida co mo a po ssibili dade de apr e se ntar algo do
se u unive r so , ne sse caso , ger alme nte algué m co me çava a cantar
alguma música de que go stava ou diz e r algo par a algué m
imaginár io : “ o i me u amo r , isso aqui é pr a vo cê ” , passando as
79

mão s e m se us pr ó pr io s cabe lo s e co m um o lhar se nsual na


dir e ção da le nte , disse um me nino de 1 2 ano s. Esse s e fe ito s
inte r e ssavam- me , a po ssibili dade lúdica da maquinar ia e o que a
função de re gistr o acio nava - “ vai apar e ce r na T V? ” . A par tir daí,
e m minhas pr ó pr ias se ssõ e s e xper ime ntais , co me ce i a te star e sse
dispo siti vo , até o mo me nto em que pe nse i em util iz á- lo na
clínica.

Um dispo si tivo , quando assim de finido , po de ser util iz ado de


mane ir as muito dive r sificadas, se ndo que e le só funcio na se
aco plado a algo . Se ja a uma outr a máquina o u a um pro pó sito
espe cífico ; e le s ganham ou pr o vo cam uma var iação de se ntido s
co nfor me a var iação do s suas co ne xõ e s co m o s o utr o s; por isso
é que po de mo s diz e r que e le s não são ape nas maté r ias, mas
mate r iais de dispo sit ivo s. Uma câme r a de víde o , por e xe mplo ,
de sco ne ctada da sua função de gr avação de image m e so m
po der ia ser utiliz ada co mo pe ça de co r ativa o u o bje to o fe nsivo a
se jo gar em algué m co mo se fo sse uma pe dr a. Me smo se
co nside r ar mo s uma câmer a em suas funçõ e s áudio - visuais,
de pe nde ndo de co mo a util iz ar mo s, e la pr o duz ir á e fe ito s muito s
dife r e nte s. N o caso de um víde o do cume ntár io , por e xe mplo , e la
funcio nar á de uma mane ir a, no caso da clíni ca, de o utr a. Essa
dife r e nça de uso de uma maquinar ia, o u dispo sit ivo , cr e io que
está na base do que te nho e nte ndido co mo pro gr ama
e xpe r ime ntal. Par a De le uze e G uattar i, o pro gr ama funcio na
co mo mo to r de e xpe r ime ntação 77
, e tanto os dispo sit ivo s co mo o s
pro gr amas, são co nstr uído s a par tir das inte nçõ e s que te nhamo s
e m cada caso o u, co mo dir iam e sse s auto r e s, é pre ciso sabe r
co m que inte nsi dade s vo cê que r po vo ar se u co r po se m ó r gão s 7 8 .

Q uando e xpe r ime ntamo s filmar as suas le itur as, e u o apr o xime i
da câme r a. N ão havia a pr e se nça do te le viso r . A câme r a fo i

77
Mil Platôs, v.3., Ed. 34, p. 11
78
Idem. P. 13.
80

co lo cada num tr ipé na altur a do s se us jo e lho s, quase e m co ntato


co m o cor po . Fale i par a e le so bre a idé ia de pr o gr ama
e xpe r ime ntal que e stava pe squisando e po r que e u pe nsava que
no se u caso a câme r a po de r ia se r um dispo sitivo . Minha idé ia
er a de que o pacie nte , ao me smo te mpo que e xper ime ntasse o
falar atr avé s da câmer a, fo sse abr indo e m sua vida po ssibi lid ade s
de ampliar sua po tê ncia de e xper ime ntação do falar . Então ,
disse - lhe que minha pr o po sta e r a de que e le falasse o lhando par a
sua pr ó pr ia image m na te la da câmer a, par a e xpe r ime ntar o
falar ; e le acho u inte re ssante . O pr ime ir o po e ma fo i lido quase
se m que e le o lhasse par a a câme r a, que estava instalada e m um
tr ipé , à altur a de se us jo e lho s, apo ntada par a se u ro sto e co m a
pe que na te la que lhe é ane xa també m vir ada par a e le ,
tr ansmiti ndo sua image m instanta ne ame nte . Ele co me ço u a le r :

“ A vida me car re ga no ar co mo um gigante sco abutr e . A ver dade


do s de use s car nais co mo nó s, lângu ido s, não pr o vé m do nada,
mas do de se jo tr o ve jante do cor ação par tido pe lo amor , e m sua
dispar ada pe lo ro sto de um ado le sce nte co m sua fúr ia de licada.
Cr uz o ave nidas inso ne s, cor r o ídas de chuva. Minha mão alcança
minha do r pr e se nte , me pr e par a par a um dia dur o , amar go e
pe gajo so . A tar de de saba se u az ul so br e o s te lhado s do mundo .
Vo cê não ve io ao no sso e nco ntr o e e u mo rr o um po uco e me
e nco ntr o só numa cidade de mur o s. Vo cê talve z não saiba do
r itual do amo r co mo um fo nte , a água que co r re não co r re r á,
jamais, a me sma, até o poe nte . Minha do r é um anjo fe r ido de
mor te . Vo cê é um pe que no de us ver de e r igo ro so . Ho r ár io s de
mor te , cidade , ce mité r io . A mor te é a o r de m do dia. A no ite ve m
r aptar o que so br o u de um último so luço ” (R o be r to Piva 7 9 ).

Q uando te r mino u, suge r i que ficasse o lhando par a si dur ante


algum te mpo , o que e le fez , mo ve ndo a cabe ça par a o s lado s,
me xe ndo no cabe lo , var iando a fo r ma de o lhar . Ele e stava
79
Paranóia, Ed. Massao Ohno.
81

co me çando a se familiar iz ar co m a câmer a e ve ndo - se assim pe la


pr ime ir a vez . Q ue m sabe , o fato da câme r a “ não te r ro sto ”
co me çava a te r me no s impo r tância ago r a, quando e le , assim
co mo as cr ianças, co me çava a “ br incar ” co m a máquina. “ A água
que co r re não co r re r á jamais a me sma até o po e nte ” po r que algo
não de ixar á de mistur ar , re co mbinar e multip licar to da a maté r ia
dispo níve l.

Fo mo s pe r ce be ndo que a instal ação da câmer a aco plada a uma


maquinar ia de co municação humana, po der ia mo dificar to do um
siste ma de cr iação e or ganiz ação da fala, da visão , da e xpre ssão
do co r po e da e scuta, fo r çando mudanças de per spe ctivas nas
for mas atuais . Pe di par a que e le lê -se um tr e cho de um livr o que
pe gue i na minha e stante , L ugar Públ ico , de Jo sé Agr ipp ino de
Paula, por achar que se co mpo r ia be m co m o auto r que e le le r a,
e po r tanto , co m algumas que stõ e s que lhe er am impo r tante s, e
par a ve r co mo se r ia sua pe r for mance le ndo algo de sco nhe cido até
aque le mo me nto .

“ Um r uído lo ngínquo que se esvai. Se ntir to da a supe r fície do


cor po . A minha mão passa pe lo limite do s o bje to s. Caminhar num
silê ncio se m to car o so lo , ado r me cido de to do s o s se ntido s” (Jo sé
Agr ippino de Paula 8 0 )

Enquanto e le lia não tinha co mo o lhar par a a te la, o que me


de ixava um po uco inquie to , já que eu pre te ndia cr iar uma
situação e m que e le ficasse o máximo de te mpo po ssíve l o lhando
par a sua pró pr ia image m. Pe di e ntão , par a que e le lê -se uma
fr ase do livr o e de po is disse sse o te xto o lhando par a a te la, e
assim suce ssivame nte . Ao me smo te mpo , pe di par a que e le
te ntasse de slo car - se de si, que te ntasse pro duz ir - se o utr o ,
co nfor me o s afe cto s que e le se ntisse atuante s em cada po e ma o u
par ágr afo , po is par e cia- me que a le itur a, ape sar da dife r e nça
80
Lugar Público, Ed. Papagaio.
82

e ntre os te xto s, mantin ha uma ce r ta r e gular idade de e stilo .


De po is de me ia ho r a a e xpe r iê ncia che go u a um limite , e le havia
cansado . Co me çamo s a co nver sar , ainda e m gr avação , e e le falo u
so bre alguns e fe ito s dispar ado s pe la câmer a.

“ É incr íve l co mo esse ne gó cio de falar o lhando par a a pr ó pr ia


image m dá mais se gur ança par a a fala” . Pe di par a que e le
e xplicasse par a mim o que que r ia diz er co m isso : “ A image m em
minha fre nte fica cha mando a ate nção par a o pr ó pr io
pe nsame nto ; a fala não sai se m ser pe nsada. É co mo quando se
co lo ca o cor po pr a co r re r , e e le fica a mil. .. agor a pare ce que a
cabe ça tá se me xe ndo mais” .

No e nco ntr o se guinte , assistimo s as image ns gr avadas. Ao final


de 4 0 minuto s de e xibição , po sicio ne i a câme r a co mo no mo do
ante r io r , ao s jo e lho s, e pe di que e le falasse das suas se nsaçõ e s,
per ce pçõ e s e pe nsame nto s so br e o que acabar a de ver e o uvir .
Sua pr ime ir a fala fo i: “ Esto u cho cado !” E lanço u um sé r ie de
fr ase s so bre as pe r ce pçõ e s que tive r a: “ as camadas de
per ce pçõ e s que eu inve nto ... co mo falo r ápido ... co mo
gague jo ... de sde pe que no falam que eu falo muito r ápido e e u
nunca de i bo la pr a isso ... co mo abstr aio me u pe nsame nto ...
ago r a não se i o que e u tava que r e ndo diz e r naque la ho r a ...e m
algumas par te s eu não re co nhe cia a mim me smo ... algumas
fr ase s ache i mais since r as, o utr as mais r acio naliz adas de uma
mane r ia fo r mal, par e cia que e u não e stava falando nada... co mo
e u mo vime nto as mão s, não par o de to car o me u ro sto ... també m
re par e i na te nsão do s músculo s de me u r o sto , cujo um mé dico
suge r iu de tr atar co m inje çõ e s de uma dr o ga; de po is de per ce be r
isso esto u se ntindo que e sto u falando co m o r o sto mais so lto ...
em alguns mo me nto s, assistindo o víde o , eu não co nse gui
e nte nder que palavr a e u e stava diz e ndo ... e u não po sso de ixar
isso tudo ser tão banal, ficar po r isso me smo , e u pre ciso co me çar
a ar ticular um no va inve nção de fala” .
83

A câme r a de víde o co me çava a e xplicitar algumas das suas


qualida de s co mo dispo siti vo de inte r ve nção . Par a mim, nada se r ia
me lho r do que a expr e ssão de uma vo ntade de “ inve ntar uma
no va fala” , mult ipl icar - se , no e ntanto , to do cuidado me pare cia
se r po uco no que diz ia r e spe ito a e sse s efe ito s e as
me tamo r fo se s que po der iam se r inve stidas a par tir da
e xpe r iê ncia. Aque la fr ase co nclusiva não havia o co rr ido
gr atuitame nte e não fo r a de ixada so lta no ar . A cada co me ntár io
que e le faz ia so br e sua pe r for mance e m fre nte a câme r a, e u
pro cur ava sabe r que valo r e le lhe s atr ibuía, po is nada se r ia pio r
do que um e ntusiasmo e m re lação às “ mar avilhas do dispo sitivo ” ,
que de ixasse o pacie nte agir de mo do a fo r jar uma “ no va fala” a
par tir de uma ide aliz ação do que se r ia uma “ fala cor re ta” , po is
ne sse caso , e m ve z de se apr o ve itar a po tê ncia do br incar , do
e xpe r ime ntar , co mo dispar ado r a da for ça cr iativa ativa, estar ia-
se pro duz indo uma ação co mo a de um or to pe dista co lo cando o
o sso “ no lugar ” , ou co mo a de antigo s pr o fe ssor e s que
amar r avam a mão esque r da de um aluno canho to , par a que e sse
se tor nasse de stro . Se m e sse cuidado , as re ve r be r açõ e s da
e xpe r ime ntação po der iam sair pe la culatr a. Er a fundame nt al que
o de ste rr ito r ializ ação pr o vo cada pe lo dispo si tivo se guisse o
caminho de uma cr iação de si e não de uma de sco be r ta de um
ide al de si fo r matado pe las expe ctativa s mundanas .

Q uando e le disse , e stupe fato : “ N o ssa! C o mo falo rápido !” ; “ Co mo


to co me u r osto ” . As afir maçõ e s par e ce m estar co mpo ndo uma
lista de mo do s per ce bido s co mo de sagr adáve is a par tir de si. Se
e u inte r pr e tasse so me nte po r e ssa pe r spe ctiva, co nco r dando co m
suas o bse r vaçõe s, me smo que se m diz e r a e le , po de r ia estar
per de ndo a o por tunid ade de le var o pacie nte à e xpe r ime ntação
das pe r ce pçõe s que te ve de si atr avé s da fala, do nde e ntr a a
impo r tância das e ntr e vistas r e aliz adas por algué m que manté m
uma po sição não inte r pr e tativa e quiçá, de igno r ância z en so bre
84

o que é dito pe lo o utr o . O u se ja, quando e u co nse guia ficar se m


inte r pr e tar e lhe pe r guntava co isas do tipo “ co mo assim? ” , “ isso
é bo m o u r uim? ” , “ mas po r que isso te sur pre e nde u? ” , “ e o que
te m isso? ” , me smo quando as suas afir maçõ e s par e ciam ó bvias,
no co nte xto ge r al de suas pro ble máti cas, ao po nto de e le não
e nte nder por que eu estava faz e ndo uma per gunta de ssas; pare cia
que isso po ssibili tava a abe r tur a de um no vo campo de
e xpe r ime ntação , co mpo ndo um se gundo mo me nto da util iz ação
do s dispo sitivo s de inte r ve nção , a par tir do s e fe ito s acio nado s
pe la co nve r sa so bre a e xper iê ncia – tr ata- se de se co lo car
dispo níve l ao indivíd uo e de subme te r -se ao se u caso .

De algum mo do , par e cia- me que as duas co isas po de r iam andar


juntas, a ide ntif icação e a multip licaç ão de si diante da câme r a.
Q uando le mo s junto s a base par a e sse te xto , dur ante uma se ssão
clínica, e le disse - me que a po ssibi lida de de ve r -se e falar ve ndo -
se “r e staur o u um pe r ce pção do me u Eu que estava per dia. São
co isas de mim que e u nunca tinha visto ” . C ada vez que e le via
image ns gr avadas no passado re ce nte , e str anhava- se , não mais
no se ntido de uma de sco ne xão co nsigo , ante r io r me nte
inte r pr e tada po r e le me smo co mo pro ble mátic a, mas no se ntido
de pe r ce ber que já não er a mais o me smo , que havia mudado de
so lo e xiste ncial . C ada vez mais e le ativava po tê ncias afir mativa s
e se ntia que e sse s mo vime nto s de dife r e nciaçõ e s po der iam nunca
mais ce ssar .

De cidimo s junto s po r co ntinuar a util iz ar a câme r a co mo


dispo siti vo , a par tir do s efe ito s que e le se ntiu e a par tir da
vo ntade que e le expr e sso u em e xper ime ntar mais ve ze s o
dispo siti vo . Co nclui ndo se us co me ntár io s so br e o que assisti u da
se gunda e xpe r ime ntação co m a câme r a de víde o , e le disse :
“L o go que co me ce i a ve r o víde o e u pe nse i, ' no ssa, te m muito o
que se re inve ntar aí' ” .
85

“O r o sto co nstr ó i o muro do qual o signific ante ne ce ssita par a


r ico che te ar , co nstitui o mur o do signif icante , o quadr o o u a te la.
“O ro sto e scava o bur aco de que a subje tiv ação ne ce ssita par a
atr ave ssar , co nstitui o bur aco ne gr o da subje tivi dade co mo
co nsciê ncia o u paixão , a câmer a, o ter ce ir o o lho 8 1 ” .

No te r ce ir o e nco ntr o co m utiliz ação da câmer a, mo difique i mais


uma ve z a instala ção e a pr o po sta. O s dispo siti vo s e m ce na:
câmer a de vide o , tr ipé , te le viso r , fo ne de o uvido , po ltr o na,
psicó lo go e pacie nte . O pro gr ama: e le se nto u- se na po ltr o na a
um me tr o do te le viso r que e stava be m à sua fr e nte . A câme r a fo i
instalada num tr ipé na altur a da base do te le viso r , ficando be m
no me io de suas per nas. Um fo ne de o uvido ligado na câme r a e
co ne ctado ao s se us o uvido s, pe r mitia que e le tive sse um r e to r no
de áudio . De cer to mo do , e le e stava se ndo duplicado ou
multip lica do . Atr ás, num so fá da me sma co r da po ltr o na, de ite i-
me e sco ndido , o que fo i mo tivo de gr acinhas da par te de le , que
de u r isada da minha situação - “ agor a vo cê é que e stá num
divã!” (ape sar de eu nunca te r utiliz ado divã co m e le , o
co me ntár io fo i e ngr açado ).

81
Mil Platôs, v3, p. 32
86

(R afae l Adaime e m fo to divu lgação de Br uno B er nar di)

A e xpe r iê ncia oco rr e r ia de mo do muito dife re nte das ante r io r e s.


Eu de se java pr o duz ir um de slo came nto em minha po sição
mo dificando minha qualida de e nquanto dispo sit ivo em ce na,
to r nando - me mais um mo tivo par a e le falar , do que um
inte r lo cuto r dir e to , co mo o co rr ia ante s. Mo dificando o pro gr ama
e xpe r ime ntal e u espe r ava uma mo dificação no efe ito s dispar ado s
pe lo s dispo sitivo s no se ntido de per mitir que o pacie nte pude sse
e xplo r ar mais livr e me nte o que a câme r a lhe po ssibili tar ia co mo
inve nção de mo do s de ver , mo ve r e falar . N a pr ime ir a co nve r sa
filmada, fo r mávamo s um tr iângulo e po r mais que ho uve sse a
câmer a inse r ida no e nco ntr o , e le o lhava par a mim, que estava ao
lado , e po uco e xpe r ime ntar a co m a sua pr ó pr ia image m no
te le viso r . N a se gunda, a câme r a ficava e ntr e nó s do is e e le e r a
co nvidado a o lhar ape nas par a a pró pr ia image m na pe que na
te la; e le fo r a filmado le ndo e de po is co nver sando co migo . Ago r a,
87

a pro po sta e r a de que e le falasse o que de se jasse o lhando par a a


sua pr ó pr ia image m na te la da TV, e nquanto e u e star ia fo r a do
se u campo de visão .

De po is de r ir de sco ntr aidame nte de algumas palhaçadas que fiz


lá de tr ás, co nto r nando sua cabe ça co m as mão s, o que e le via
pe lo mo nito r , co me ço u a falar o que que r ia. Inicialme nte e le
o lhava ape nas par a baixo e po de r ia- se diz e r que não estava
o lhando nada. A câme r a captava se u cor po da cintur a até o to po
da cabe ça. Pe di que e le te ntasse falar o lhando par a sua pr ó pr ia
image m e e le se o lho u no mo nito r , mudo u a po sição do cor po e
co me ço u a e xpe r ime ntar e sse mo do , se m co me ntar me u pe dido .
Inicialme n te , a pr o po sta par e cia difíc il de se r re aliz ada. Me u
tr abalho não fo i muito alé m de ficar mante ndo e le a falar e de
pe dir de ve z e m quando que e le te ntasse buscar mais o pr ó pr io
o lhar na TV. O assunto er a uma nar r ação r e lacio nada a
po ssibili dade s de tr abalho que e le não e stava le vando muito à
sé r io . Ele falava r apidame nte e eu não pe r ce bia efe ito s
impo r tante s dispar ado s pe la insta lação . Pe nse i que um do s
mo tivo s po de r ia ser o e nquadr ame nto inicial que fiz ; e mbaixo sua
cintur a e acima de sua cabe ça uns de z ce ntíme tr o s de so br a.
Le vante i- me se m diz e r nada e mo difique i o enquadr ame nto ,
faze ndo co m que ape nas o se u ro sto apar e ce sse na te la de 29
po le gadas. Eu que r ia que e le não tive sse o utr a e sco lha a não se r
o lhar par a o pr ó pr io r o sto . Vo lte i a se ntar e pe r ce bi que e le fico u
um te mpo em silê ncio até re co me çar a falar , ago r a, mais
le ntame nte . Ao s po uco s, e le co me ço u a per mane ce r mais te mpo
falando e o lhando par a sua image m. Par e cia- me que já não lhe
impo r tava muito o co nte údo do que diz ia. A fala fico u
gr adativame nte mais le nta, inte r calada por mo me nto s e m que e le
o lhava mais ate ntame nte par a sua image m. Q uando enco ntr ava
sua image m co m o lhar inte nso , e ra co mo se o cor r e sse um falha,
uma avar ia num siste ma de co municação , co mo uma invasão po r
vír us na lingua ge m. Ele mudava o to m de voz , co mpunha sua fala
88

de o utr o mo do , de mo r ava um po uco mais do que o de co stume


par a so ltar as fr ase s; pe que nas dife r e nças instal adas numa
estr utur a re pe titiva . Expe r ime nto u car e tas e pe r ce be u os
mo vime nto s que faz ia e m dife r e nte s situaçõ e s. De po is de vinte
minuto s pe diu par a dar um te mpo , le vanto u- se , ace nde u um
cigar r o e ando u pe la sala falando se m par ar . A câmer a filmava a
po ltr o na vaz ia.

Em re lação a pr ime ir a se ssão co m câme r a a dife r e nça fo i e no r me


e m to do s o s se ntido s. Enquan to da pr ime ir a vez e le po uco o lho u
par a a te le visão , de ssa ve z e le passo u o te mpo inte ir o ve ndo se u
pró pr io r o sto , de tão pr ó ximo que e stava. Algo o faz ia se ntir que
não e r a e le exatame nte que estava ali no víde o , a pre se nça da
câmer a mo dificava o mo do de co lo cação das fr ase s, assim co mo
alte r ava o mo do de funcio name n to do pe nsame nto . “ Co m a
câmer a é pr e ciso pe nsar ante s de falar ” .

Co m a se nsação de que e sse pr o gr ama havia dispar ado os e fe ito s


mais inte nso s, mantive a me sma co nfigur ação e m mais cinco
se ssõ e s co m a utiliz ação da câmer a de víde o . Se gundo e le me
disse , e ssa sér ie de e xpe r iê ncias re ve r be r o u em um amplo
espe ctr o da sua vida, co mo te r co me çado tr atame nto
fo no audio ló gico , te r par tici pado de um gr upo de te atro e
re aliz ado algumas apr e se ntaçõ e s e ter apre se ntado se u tr abalho
de co nclusão de cur so se m cr ise s inte nsas de ansie dade e
gague ir a pe la e xpo sição pública.

Um co nver sa que tive mo s po r MSN me sse nge r é ilustr ativa do s


e fe ito s que as expe r ime ntaçõ e s co m víde o lhe pr o duz ir am:
“Ele diz:
queria te agradecer por ter topado esse nosso trabalho
Ele diz:
foi fundamental para eu ter topado as experiências que estão me ajudando tanto
89

Ele diz:
tipo teatro, fono, festa, casa, essa coisas todas
Ele diz:
que se moveram em mim graças aos nossos encontros”

* * *

Par a ampliar a pe squisa so bre e sse pr o gr ama e xper ime ntal e


po ssibili tar a de mo nstr ação pública de ssas e xpe r iê ncias
asso ciadas à disse r tação de me str ado , co nvide i alguns amigo s
par a expe r ime ntar e m o pr o gr ama. Re aliz e i se te e ntr e vistas de
o utubr o a de ze mbr o de 20 07 ; em cada uma de las estive mo s
pre se nte s ape nas eu e o par ticipan te . Uma se le ção de ssas
e ntre vistas está no DVD que aco mpanha a publicação de ssa
pe squisa.

Em de ze mbr o de 20 07 , fui co nvidado a par ticipar de uma mo str a


co le tiva de ar te , chamada MIL9 71 8 2 , e le ve i a te le visão e a
câmer a par a a gale r ia, o nde mo nte i a me sma instalação , que
chame i Fale Co nsigo . Em tr ê s dias, 2 0 pe sso as e xper ime ntar am
falar co nsigo . A insta lação estava po sta na sala da e xpo sição ,
de ntr o da casa, co mo mo str a a fo to gr afia abaixo . No pátio ,
per fo r mance s, sho w s, dj´ s, vj´ s, gr afite ir o s, fe sta, be bidas,
cr iavam r itmo s var iado s no e nco ntr o numa co nfigur ação le ve e
fe stiva. Em cada mo me nto da gr avação do Fale C o nsigo as
var iaçõ e s atmo sfé r icas do e ve nto inte r fer ir am dife r e nte me nte na
e xpe r iê ncia de cada par tici pante . Uma se le ção de sse mate r ial e m
víde o aco mpanha e sta disse r tação .

82
http://mil971.wordpress.com/video-instalacao/
90

(Ge andr e T o maz o ni aco mpanhado po r R afae l Adaime , na víde o


instalação Fale C o nsigo – Mo str a MIL9 7 1 . Fo to : Fabiana Pr ado )

* **
91

PARTE III

MANTER
92

“Lembra-se da história que você me contou uma vez a


respeito de uma amiga sua e os gatos dela?83”

Ele a ajudou a levar os dois gatos para serem sacrificados.


O motivo: ela iria viver em outro lugar e não tinha com
quem deixar os bichos. Pediu a ele uma carona. Ela entrou
na clínica veterinária com o gato avermelhado e o outro
ficou no carro com ele. Ele olhou nos olhos do bicho, que
procurava esconder-se embaixo do banco e teve medo de ser
arranhado. O outro gato estava brincando no colo da dona,
na borda do balcão da clínica, à beira da morte. Então, ele
abriu a porta do carro e deixou o gato fugir. O animal,
castrado, obeso e flácido, talvez pela primeira vez na sua
vida, correu por uma sarjeta como um autêntico felino e
entrou num bueiro. Ele ficou feliz, sentiu-se contente,
pensou que o animal tinha se tornado um gato. Ele
considerou que era como esse gato, mimado, acomodado,
mas que em certos momentos podia ser tomado pelo espírito
de homem, assim como o gato teria sido tomado pelo
espírito de gato.

Mas o outro, o índio, pensou que ele não considerou todas


as possibilidades possíveis para o caso, indo logo se
acomodando a que lhe parecia mais vantajosa. Em primeiro
lugar, ele não considerou a hipótese de ser como o gato
avermelhado, alienado em direção à própria morte na clínica
veterinária. Segundo, não bastava ao gato que fugiu ter sido
atravessado por um devir-gato, se logo ao entrar no bueiro
perdesse toda a potência, morrendo de fome ou sendo
devorado pelos ratos; era preciso manter-se gato, construir
a metamorfose com os elementos necessários para uma
certa duração das intensidades.

83
Carlos Castañeda, Porta para o infinito, Record, p. 100.
93

Um corpo para viajar

Do m Jua n, de C astañe da 8 4 , par te do pr incí pio de que o mundo da


vida d iár ia não é r eal co mo acre di tamo s que se ja, que a
re ali dade o u o mu ndo co ti diano que to do s co nhe ce mo s é ape nas
uma de scr ição inse r ida pe la so cie dade quando ainda so mo s
cr ianças: “ (Do m Juan ) mo str o u q ue to do s que e ntram e m co nta to
co m um a cr ia nça são um me stre que lhe de scr e ve o mundo se m
ce ssar, até o mo me nto e m que a cr iança é capaz de per ce be r o
mundo co nfo r me de scr ito. (.. .) a par tir da que le mo me nto, po ré m ,
a cr iança é só cia 8 5 ” .

O te r ce iro livr o de Cast añe da, V iage m à Ixtla n, apr e se nta uma
impo r tan te dife re nça e m re lação ao s do is pr ime ir o s, dis parada
por uma que stão que e le me smo pr o pô s à Do m Juan : um amigo
se u e stava te ndo pr o ble mas co m o fil ho. O me nino de nove ano s
tin ha mo rado co m a mãe no s úl timo s quatr o ano s e ago ra est ava
mo rando co m o pai . O pe que no era de saj usta do na e sco la, não se
co nce n trava e não se inte r e ssava po r na da; e ra da do a cr ise s de
raiva, mal co mpo r tame nto e fu gia de casa. C astañe da apre se nto u
esse caso à Do m Juan e lhe pe diu uma suge stão so br e o que o
amigo po de r ia fazer. O índ io co ncl ui , dize ndo que algué m t inha
que aju dar o gar o to a par ar o mun do .

Pr ime iro, disse Do m Juan , o am igo de ve r ia ir a um antr o de


mar gina is e e sco lhe r um ba ndi do jove m e mal e ncarado, e
mandar o su je ito se guí -lo, o u e spe rar po r e le num lu gar o nde e le
fo sse co m o filho. O ho me m, dian te de uma de ixa pr e viame n te
co mbina da, a ser dada de po is de um mau co m por ta me nto da
cr iança, de ver ia sal tar de se u e sco nder i jo, pe gar o pe que no e

84
Antropólogo e escritor.
85
Carlos Castañeda, Viagem à Ixtlan, Record, p. 08.
94

surr á- lo co m vo nt ade . De po is do susto, o am igo de ve r ia


e nco n trar uma mane ira de aj udar o me ni no a r ecu pe rar a
co nfiança em si. O se gundo pr o ce dime nto suge r ido pe lo índ io era
tão sur pre e nde nte quan to o ante r ior. De po is do susto pr o duz ido
pe la sur ra, o se u amigo de ver ia ar ranjar um me io de fazer o
me nino ver uma cr iança mor ta , num ho spi tal ou cl ínica . Alé m de
ver o cadá ver, o garo to de ve r ia se r ince n tiva do a to cá -lo e m
qual que r par te , me no s na bar r iga . “ De po is q ue o me n ino fizer
isso, ficar á novo. O mu ndo nu nca ma is se r á o me smo para e le 8 6 ”,
disse Do m Juan .

C astañe da fico u cho cado co m a suge st ão de in ter ve nção fe it a po r


Do m Jua n, mas ao me smo te mpo, pe r ce be u que e ra isso que o
índ io vin ha te n tando faze r co m e le pr ó pr io, o te mpo to do, aj udá-
lo a par ar o mundo , ou se ja , at ing ir cer to s esta do s de
co nsciê ncia d urante o s qu ais a re al idade da vi da co tid iana é
mo dif icada po r que o fluxo das i nte r pre taçõ e s, no r malme n te
ini nte rr u pto, fo i de tido por um co njun to de cir cu nstânc ias
estra nhas a e sse f luxo 87
. Atravé s de uma dive r sif icada sé r ie de
e xpe r ime n taçõe s nada co nve nc io nais , o ín dio te n tara o te mpo
to do inte r fer ir no mo do do gmá tico pe lo qual Cast añe da pe r ce bi a
o mundo co nfo r me a de scr ição co nve nc io nal.

Viage m à Ixt lan é a o bra o nde C astañe da de scre ve to das as


o utras e xper ime n taçõ e s que o í ndio lhe fize ra passar para que e le
co nse g uisse par ar o mun do . A pr ime ira inte r ve nção de Do m J uan,
fo i pe dir-l he que e nco ntrasse um po nto, um lu gar na varanda
o nde pude sse se ntar se m se cansar - par ar o mundo , e m pr ime ir o
lugar, era e nco ntrar um l ugar de o nde par t ir.

“Existe qualquer coisa morta dentro de mim. Semelhante à


língua que se mantém inerte entre os dentes”.

86
Idem, p. 11
87
Idem, p. 12
95

{ José Agrippino88 }

Ele me falou que estava com medo de vir a enlouquecer, que


andava sempre gripado e que com freqüência sentia dores
em seus órgãos. Subitamente, era levado a um estado que
chamava de suspensão dos sentidos, onde o corpo parecia
ser descolado do mundo e o pensamento de que não voltaria
atingia seu grau máximo. Ele não sabia o que eram essas
crises, nem porque haviam começado, talvez tivessem a ver
com uma série de experiências a que vinha dedicando-se há
algum tempo. Em decorrência das crises, ele passou a ter
uma série de dificuldades em lidar com coisas da vida, como
produzir, criar, trabalhar, viajar. Ele me contou o seu caso
a fim de que eu pudesse ajudá-lo. Marcamos um encontro e
começamos.

A suspensão de sentidos era um tipo de funcionamento do


corpo em que a consciência não podia mais determinar o que
acontecia. A percepção, ainda com o filtro da subjetividade,
tentava dar sentidos para a falta de poder de ação do corpo
quando suspensos os sentidos e o ato da vontade. Ele
poderia estar em qualquer situação, lavando a louça, por
exemplo. Então, repentinamente, sua capacidade de manter
atuante a interpretação convencional do mundo era
suspensa, e nada mais poderia ser descrito e identificado.
Os objetos perdiam os seus nomes, suas determinações, a
faca deixava de ser a faca, mantendo apenas as suas
formas, a sua matéria. Como em Virgínia Wolf, as coisas
atingiam a condição de objetos sólidos. Entre os
experimentadores como ele, que buscava por diferentes
modos levar-se para longe dos domínios da subjetividade, da
significação e do organismo89, alcançar esse estágio não era
88
Lugar Público, Papagaio, p. 72
89
Conf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil platos v.3, Ed. 34.
96

de todo mal, ao contrário, era muitas vezes desejável.


Porém, isso começou a ocorrer sem que tivesse nenhum
dispositivo atuando na sua condução. Além disso, o processo
ocorria de modo desagradável, e a consciência, ainda em
estado vigilante, entendia que havia perdido o mínimo de
controle necessário para evitar uma ida sem volta, ou um
processo de enlouquecimento doentio.

Seja por utilização de alucinógenos ou de outros


dispositivos, as experimentações de Castañeda pareciam
estar na vizinhança do que esse paciente chamou de
suspensão de sentidos, como nessa passagem, em que o
autor descreve os efeitos de uma ocasião em que lhe
ocorreu o que chama de deslocamento do ponto de
aglutinação em direção ao nagual.

“Não consegui descobrir onde me encontrara. Parecia flutuar


como um balão. Estava sozinho. Senti uma pontada de
terror, e minha razão apressou-se a construir uma
explicação que fizesse sentido para mim naquele
momento 90”
.

Para esses feiticeiros, o nagual não faz parte da mesma


faixa de emanações de energia utilizada pelos homens em
sua vida diária; a consciência do homem comum seria
apenas uma pequena porção selecionada de um todo muito
mais amplo. A consciência normal, o mundo humano, o
conhecido, a realidade, a racionalidade e o senso comum,
seriam somente uma ilha, que os índios chamam de tonal91;
um Plano de Organização: “ele é o organismo e também tudo
o que é organizado e organizador; mas ele é ainda a
significância, tudo o que é significante e significado, tudo
90
Carlos Castañeda, O fogo interior, Record, p. 117.
91
Porta para o infinito, Record, p. 111
97

que é suscetível de interpretação, de explicação, tudo que é


memorizável, sob a forma de algo que lembra outra coisa;
enfim, ele é o Eu, a pessoa, individual, social ou histórica, e
todos os sentimentos correspondentes92”.

Para Castañeda, o que mantém os indivíduos alimentando


incessantemente a percepção homogênea que têm do mundo
e de si, é a fixação da percepção na freqüência do tonal,
realizada ainda quando somos crianças. Para os índios, há
um agente no corpo responsável pela percepção, o ponto de
aglutinação, que através dos processos de iniciação é fixado
no modo tonal. Esse agente, em certos casos, por exemplo
quando o indivíduo consegue parar o mundo, é capaz de
mover-se da faixa tonal em direção à nagual, operando um
processo de desterritorialização absolutamente necessário
para abrir o corpo à passagem do desejo.

Deslocando-se arriscadamente, para muito longe das


fronteiras do “eu”, era como se o meu paciente tivesse
sofrido uma série de avarias em seu sistema tonal, por
assim dizer, que já não mais podia garantir o mínimo
necessário para a continuação da vida. Segundo Castañeda,
o tonal deveria ser lentamente diminuído, mas nunca
abandonado por completo, pois ele é o organizador do
mundo, responsável por dar ordem ao caos, e portanto,
necessário aos processos vitais.

“Não é exagero afirmar, como dizem os feiticeiros, que tudo


quanto sabemos ou fazemos como homens é obra do tonal.
Neste momento, por exemplo, aquilo que está empenhado
em fazer sentido dessa nossa conversa é o seu tonal: sem
ele só haveria sons e caretas e você nada compreenderia do

92
Mil Platôs, v.3, p. 25
98

que estou falando93”.

O problema com o tonal, como Dom Juan diz para


Castañeda 94
, é que o processo civilizatório fez com que ele
passasse a agir como um guarda severo e despótico,
controlando todos os movimentos humanos e não deixando
que cesse o fluxo interpretativo que mantém o Eu
produzindo um diálogo interno ininterrupto. Quando o
indivíduo consegue parar o diálogo interno, parar o mundo,
ele desloca o ponto de aglutinação da percepção para o
nagual, que segundo os feiticeiros, “é a única parte de nós
que consegue criar95”. Todos os procedimentos
experimentais por que passa Castañeda inicialmente, vão no
sentido de diminuir o seu tonal, para “transformá-lo de
guarda em um guardião 96
”.

No caso de meu paciente, era necessário agir no sentido


inverso, era prioritário reconstruir o tonal, pois esse havia
sido excessivamente diminuído. Começamos com longas
conversas em que discorríamos em torno da crise, mapeando
exaustivamente o modo como elas aconteciam e que efeitos
acarretavam. Além disso, as conversas em torno da sua
história pessoal e dos seus objetivos, contribuíam para um
nova invenção da subjetividade, mesclando um
remanejamento do passado e a invenção de propósitos para
a vida vivida no presente, assim como para um
vislumbramento de cenas futuras (porvir).

Um outro fator que foi colocado no momento em que


fazíamos nossos primeiros movimentos, era que ele não
queria correr um outro risco, o de ficar impossibilitado de
93
Porta para o infinito, Record, p. 111
94
Idem.
95
Idem, p. 127
96
Idem, p. 111.
99

dar continuidade as experimentações que vinha realizando,


em outras palavras, ele não queria deixar de partir em
processos esquizos. Para contribuir com o desafio que ele
teria de recriar seus procedimentos experimentais,
compartilhei com ele a pesquisa bibliográfica que eu vinha
fazendo sobre a programação de experiências psicodélicas.

O termo experiência psicodélica programada foi inventado


por Timothy Leary97 e consiste em preparar um programa
para as experimentações agenciadas por alucinógenos a
partir de um propósito para utilizá-los. Além de Leary, os
rituais de utilização de plantas alucinógenas dos indígenas e
as indicações de Baudelaire serviram como inspiração para
que ele pudesse inventar seus próprios programas. Charles
Baudelaire dizia, a respeitos dos indivíduos de entrega
excessiva... quis ser anjo, tornou-se besta98. As instruções
do Clube do Haxixe, do qual o poeta era membro,
recomendavam, segundo Theophile Gautier, que o
consumidor da droga tivesse um propósito, estivesse com o
corpo sadio, sem preocupações ou tensões, e ainda, que
fizesse sua experiência em um local aconchegante.

“ Sabe -se , po r tanto , que se algué m de se ja apr o ve itar ao máximo


os e fe ito s mágico s do haxixe , é ne ce ssár io se pre par ar
ante cipadame nte e fo r ne cer de alguma mane ir a o mo tif par a
suas var iaçõ e s e xtr avagante s e fantasias ir re str itas . É impo r tante
estar co m a me nte e o cor po tr anqüilo s , não te r ne sse dia
ne nhuma ansie dade , tar e fa ou ho r ár io , e e star em um
apar tame nto que B aude lair e e Edgar Alan Po e ado r ar iam: um
quar to de de co r ação poé tica e co nfo r táve l, luxo biz arr o e
e le gância miste r io sa; um re tir o pr ivado e e sco ndido 99
”.

97
Em Mandala: A experiência alucinógena, Civilização Brasileira.
98
Charles Baudelaire, Paraísos artificiais, L&PM, p. 23.
99
Tymothy Leary, Flashbacks, Brasiliense, pp 52-53.
100

O e studo das e xpe r iê ncias psico dé licas pr o gr amadas e stá


dir e tame nte co ne ctado as indicaçõ e s do s esquiz o analis tas quanto
a inve nção de pr o gr amas e xper ime ntais par a a cr iação de cor po s
se m ó r gão s po r isso , ser ve m co mo me io a se r estudado e
e xpe r ime ntado em pr o ce dime nto s que não ne ce ssar iame nte
utiliz e m dro gas co mo dispo sit ivo . Um pr o gr ama de sse tipo
funcio na co mo um mo to r de e xpe r ime ntação , co mpre e nde ndo
duas fase s distin tas: a pr ime ir a de fabr icação de um C sO e a
se gunda de faze r algo passar so bre e le . Ao me smo te mpo , o
pro gr ama e stá co nte mplado pe las e str até gias de pr udê ncia que
cada expe r ime ntado r po de cr iar , te ntando e vitar cair no
esvaz iame nto do co r po quando pre te ndia a co mple tude do
pro ce sso 1 0 0 .

* * *

Para tentar contribuir com a reconfiguração do organismo,


inventei um modo de aproximar-me do corpo dele através de
algumas instalações, inspirado pelo trabalho de Lygia Clark
e pelo enfoque que Suely Rolnik lhe dá em sua extensa
pesquisa.

Na sala de minha casa, onde fazíamos nossas sessões, havia


um sofá cama desses que são compostos apenas por dois
blocos de espuma grossa e duas almofadas compridas.
Dispus o dois blocos empilhados no centro da sala e propus
a ele que deitasse, pois eu pretendia fazer uma amarração
total de seu corpo ao colchão com um tecido muito longo e
branco. Ele concordou com a proposta e deitou.

O tecido estava enrolado e tinha dez metros de


100
Sobre programa conf. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Mil Platôs, v.3, ed. 34, p. 12.
101

comprimento. Comecei prendendo o tecido a um de seus pés,


passei por traz da sua cabeça e através do outro pé,
formando um triângulo. A partir daí fui amarrando braços,
mãos e dando a volta com o tecido por baixo do colchão,
sempre deixando que o tecido mantivesse um tensão de
fixação do corpo, até que ele ficou completamente
imobilizado. Então, coloquei sobre os seus olhos um pano
preto e acomodei em seu abdome uma lona preta de
plástico, que estava embrulhada no formato de uma grande
bola e que tinha um peso considerável. Ele ficou nessa
posição por cerca de meia hora, em silêncio. Mantive-me ao
lado, observando sem interferir.

Minha idéia inicial era colocar seu corpo numa situação que
provocasse uma reação da vontade, que ele precisasse de
forças para respirar e de ação própria para querer escapar
de uma situação impeditiva. Isso porque as crises o
pegavam de surpresa, e o medo gerado por elas o deixava
sem reação; ele ficava paralisado e sentia tremenda
impotência em contar com o corpo, tanto para evitar as
crises como para sair delas. Outro pensamento ocorrera-me:
se o corpo está passando por suspensões de sentido,
facilidade em ter flutuações repentinas, o que aconteceria se
o fixássemos ao sofá, numa situação em que não pudesse
escapar, como se lhe fosse produzida uma ancoragem?

A força dos tecidos contra o seu corpo fixo no colchão mais


o peso da bola de plástico no seu abdome faziam o seu
pulmão oscilar muito limitadamente, exigindo um pouco de
esforço para respirar. Não havia como escapar sem a minha
interferência. Eu não sabia o que estava acontecendo
naquele silêncio e imobilidade, mas achava interessante ele
estar aparentemente muito calmo.
102

Depois de trinta minutos perguntei se ele estava bem –


estava. Perguntei se eu poderia começar a desamarrá-lo, ele
disse que sim. Depois avaliei que deveria ter deixado a
instalação por mais tempo, até que ele pedisse para sair,
mas isso não foi possível, eu já não suportava mais a
sensação de vê-lo amarrado. Retirei a bola de plástico,
desamarrei o corpo inteiro e por último retirei o pano que
estava em seus olhos. Ele estava muito tranqüilo, respirava
normalmente e abriu os olhos depois de um certo tempo.

“Eu carregava dentro de mim um silêncio. Algo semelhante a


uma paz. A dor diminui101”.

Perguntei como se sentia e ele disse - tive uma espécie de


visão – era como se eu fosse um gato com a cabeça presa
entre os dentes de um cão, fingindo-se de morto na
expectativa de poder escapar por um vacilo qualquer do
inimigo.

Curiosamente, naquele tempo, eu ganhara recentemente um


jovem gato de um amigo, que fazia suas primeiras incursões
pela rua, sendo que, por causa da configuração do edifício
em que moro, eu sempre tinha de descer junto, co mo
aco mpanha nte humano, e abr ir as por tas para o bic hin ho cr iar
um mu ndo para si que , na tural me nte , se r ia ma io r e d ife re nte do
que e u po de r ia o fer e cer- lhe .

Me u pro pó si to, de sde que pe di para o me u am igo dar-me o bic ho,


era fazer co m que e le passasse po r um pr o ce sso de sair do
apar tame nto para mo rar na r ua. Essa sit uação tinh a suas
co ne xõ e s co m a visão de me u pac ie nte , que e m suas inve st idas
e xpe r ime n tais pr o curava aume ntar se us te r r itó r io s, busc ando um
novo co r po, um novo pe nsa me nto, uma nova se nsib ili dade ,
101
José Agrippino de Paula, Lugar Público, Papagaio, p. 72.
103

dife r e nte da que o mundo co ti diano do s ho me ns pare cia ofe re cer.


Ele s tin ham pr o pó sito s se me lhan te s, e le e o gato, ampl iar se us
ter r itó r io s e xiste nc iais e vive r p le name nte se us mo me nto s . Então
e u ia i nfo r mando para o me u pacie n te , que també m tin ha um
gato, co mo and avam as e xpe r iê ncias do me u gat inho.

Co mo o ga to não te r ia co mo r e tor nar, caso pre cisa sse ou


quise sse , e co mo e u não que r ia sim ple sme nte aban do ná-lo à
pró pr ia so r te , po is , ao me no s para mim , hav ia um pac to e ntr e
nó s, passe i a aco mpa nhá- lo e m suas pr ime iras expe d içõe s pe la
r ua, que aco nte ce ram pr inc ipa lme nte de ma dr ugada . A lé m do
mais , me u o bje t ivo e ra que o ga to ganha sse as r uas e para isso
aco nte cer e u te r ia de cuidar co mo me fo sse po ssí ve l, da sua
migração se m que e le mo rr e sse , po is co mo e le fo ra cr iado e m
casa, de ce r to mo do, t inha si do human iz ado e pre cis ava,
por ta nto, de um pe r ío do de sim ulaçõ e s de r ua para to r nar-se um
gato co mp le to. Fo i numa de ssas ve ze s que o aco mpanhe i , que
pe la pr ime ira ve z co nse gui ve r o que aind a me e ra i nvis íve l, o
lim ite te r r ito r ial que e le hav ia co ns tr uído, a lin ha invis íve l de
o nde e le não passar ia, ao me no s naque l a no ite .

Me de slo que i para alé m da me tade da qua dra, o que sig nif icava
para alé m do s lim ite s do pré dio aban do nado, e co me ce i a chamá -
lo, co m o o bje ti vo de que e le me se guisse até a e squi na o nde
e xiste uma e sco la e m que vi ve m o utr o s gato s . Ele ando u um
te mpo na minha dir e ção e par o u no li mi te do pr é dio da fábr ica de
re fr ige rado re s. N ão se de slo cava ne m ma is um passo. Reso lvi
e ntão faze r uma e xpe r iê ncia . Fu i até e le , pe gue i -o no co lo e
le ve i-o co mi go até a e squ ina. Durante o traje to e le não par o u de
se co n tor ce r te ntan do e sc apar, me smo ass im, le ve i o pla no até o
fim .

C he ga ndo lá, so lte i o anim al no chão e numa di sparada se m


104

ne xo, se m um míni mo de vaci lo e m o lhar ao r e dor, co mo que


puxado por um im ã, e le co rr e u co mo e u nu nca t inha vis to de
vo lta para a fr e nte do pré dio e m que mo ramo s.

Assim como o gato queria mais do que a vida em um


apartamento com um humano, meu paciente também parecia
querer deslocar-se para zonas inumanas. Mas o seu projeto
parecia ter ido bem somente até o momento em que as
crises começaram a tornar sua vida intolerável, como se ele
tivesse esticado demais o fio metamorfoseante da
experimentação, no sentido de um desmoronamento ou
breakdown, como diz Ronald Laing.

A experiência com o gato havia nos mostrado como


funcionava a prudência de um animal espreitador de
território. Ele havia construído seu território até o limite da
fábrica de refrigeradores de ar, onde ele podia ter maiores
possibilidades de garantir a continuidade da própria vida.
Diferentemente dos cães, acostumados à segurança das leis
humanas, que afasta ilusoriamente a presença da morte, o
gato sabe que assim como ele está espreitando uma presa
ou uma saída possível para expandir seu território, também
a morte o espreita a todo instante e que, por isso, basta
qualquer vacilo de sua parte para se capturado.

* * *

Depois de um mês, em que eu e meu paciente passamos


conversando sobre os efeitos da amarração e sobre as
excursões de meu gato à rua, aconteceu uma outra
interferência no corpo, uma nova instalação. Eu estava
estudando elementos que pudessem ser utilizados como
objetos relacionais 102
, juntando material em uma pequena
102
Termo utilizado por Lygia Clark
105

caixa de ferramentas que tinha em casa. Estava preparado,


pode-se dizer, para que algo me desse um sinal de agir com
os objetos no corpo dele em qualquer dia. Ele chegou,
deitou no colchão e ficou longo tempo em silêncio e eu
também não falei nada. Depois perguntei como ele estava e
disse-me que estava com um desconforto no peito e que
estava com rinite e tosse. Geralmente ele era tomado por
sintomas desse tipo, indicando momentos de saúde física
frágil, principalmente no que dizia respeito ao seu sistema
imunológico respiratório, muito vulnerável. Fiquei
caminhando ao redor do sofá em que ele estava e de repente
pedi para que tirasse o casaco, coloquei uma venda em seus
olhos e lhe disse que iria colocar objetos sobre o seu peito.
A venda nos olhos tinha alguns propósitos: deixá-lo mais
sensível aos sentidos do resto do corpo, pela ausência da
visão; deixar-me mais à vontade para trabalhar na
instalação de objetos em contato com o corpo; impedir que a
visão determinasse a forma e a natureza dos objetos, seu
nome inclusive, fazendo o indivíduo perder, desse modo, a
sensação do encontro com as coisas em graus de peso,
densidade, calor, odor etc.

Acomodei um saco de bolas de gude, de mais ou menos um


quilo, sobre o peito; pensei em produzir o efeito de pressão
para no decorrer da experiência transitar para o leve, suave
e delicado. Enchi um saco com água e levei para a clínica,
deixando-o de lado. Envolvi seu braço direito com uma tela
de nylon e o esquerdo com um filme de PVC, desses que se
usa para embalar alimentos. Esperei um tempo... ele disse
que “estava tudo bem”. O deixei assim por alguns minutos e
depois retirei o saco de bolas de gude do peito colocando-o
no encontro entre braço e antebraço esquerdo; aliviando o
peito e tentando fazer o incômodo transmigrar junto com a
diferença de potencial que seria provocada pelas sensações
106

de alívio e pressão em regiões diferentes do mesmo corpo.


Em seguida, coloquei o saco com água sobre o peito e um
pano embebido em álcool na lateral direita do mesmo – o
álcool, por ser muito volátil faz o corpo perder calor,
produzindo sensação de esfriamento. Acomodei uma cebola
com o topo cortado entre o saco com água e o seu queixo,
desejando interferir em seu olfato. Deixei-o assim por mais
um tempo. Eu estava com duas agulhas de tricô e as enfiei,
uma de cada uma vez, no espaço entre o filme de PVC e a
pele do braço esquerdo; por baixo do saco de bolas de gude;
tentando produzir uma sensação de que as agulhas estavam
lhe penetrando o corpo. O PVC funcionava como se fosse
uma segunda pele e o peso das bolinhas de gude
pressionava tudo contra o braço, tornando difícil separar
uma coisa da outra.

Perguntei como estava até ali e ele disse – quando tu tirou


o peso do peito e colocou no braço foi como se tivesse ido
junto o mal-estar que eu sentia. Havia realmente ocorrido
uma transmigração do incômodo, como eu imaginara ser
possível, a partir dos relatos de sessões de Lygia Clark.
Então, pensei - se o incômodo no peito havia se deslocado
até o braço, por que não poderia ser deslocado para fora do
corpo, como numa espécie de cirurgia?

Esquentei água, despejei numa garrafa térmica e voltei para


a clínica. Joguei a água em um tecido e o depositei no
ombro esquerdo, acima do saco com bolas de gude. Em
seguida, desloquei o saco de bolas de gude do braço para o
ante-braço, rasguei o filme de PVC na região onde o saco de
bolas de gude estava anteriormente e coloquei outro pano
quente no local. Puxei as agulhas de tricô, uma a uma,
vagarosamente, por poucos centímetros, como se estivesse
extraindo algo através delas na direção da mão e para fora
107

do corpo. Segui esse processo no braço esquerdo como uma


máquina... desloca o saco de bolitas em direção a mão,
rasga o PVC onde o saco estava, mais um pano quente, puxa
as agulhas mais um pouco. Perguntei como estava, e ele
disse que estava sentindo intensamente a presença do lado
esquerdo do corpo desde a migração das bolitas. Com o saco
de bolitas já no pulso, as agulhas quase totalmente para
fora, deixei o tempo passar, sentado e observando.

Logo mais, fui até o braço esquerdo e retirei as bolitas, as


agulhas e o plástico todo e tapei o braço inteiro com os
panos aquecidos. Deixei o tempo passar e notei que seus
lábios faziam movimentos curiosos, se contraíam e por vezes
paravam em posições inusitadas, como se ele estivesse em
transe ou sonhando.

Em seguida retirei o material que ainda estava instalado no


corpo e perguntei se ele gostaria de dizer alguma coisa. Ele
falou... memórias do corpo e memórias fora do corpo...
vinda à tona de conteúdos bloqueados pelos diques
corporais... o expressivo do corpo e as suas memórias... o
pulmão como órgão diretamente ligado com o exterior... a
singularidade da voz e suas mil facetas... Quanto ao
incômodo que sentia no peito, havia sumido.

À medida que ele foi recuperando o uso do corpo, a vontade


de viajar pelo mundo começou a intensificar-se. Ao mesmo
tempo, ele nunca quis que a crise passasse em troca da
impossibilidade de continuar as suas próprias
experimentações, as que fazia antes da crise. Desse modo,
enquanto fazíamos o possível para recriar o corpo, ele foi
tomado pelo desafio de reinventar o modo como realizava
suas experiências, a fim de que elas apontassem no sentido
da abertura de saídas e não de um novo desabamento. Como
108

diz Laing:

“A loucura não é necessariamente um desabamento


(breakdown); pode ser também uma abertura de saídas
(breakthrough)... O indivíduo que faz a experiência
transcendental da perda do ego pode ou não perder de
diversas maneiras o equilíbrio. Pode, então, ser considerado
louco. Mas ser louco não é necessariamente ser doente,
mesmo se em nosso mundo os dois termos se tornaram
complementares 103
”.

Onde alguém investe suas experimentações sem querer cair


num buraco negro, é que talvez esteja uma das principais
tarefas da esquizoanalise, ou da esquizoterapia. Como se a
nova tarefa fosse cuidar dos processos esquizos de um
indivíduo, para que ele consiga dar consistência às suas
experimentações, indo cada vez mais longe através de terras
virgens e exóticas, abandonando a terra colonial do Édipo,
da neurose, sem que com isso caia numa territorialidade
totalmente desértica, improdutiva, onde toda a produção
desejante pára ou cristaliza: corpos catatônicos que caíram
num rio de chumbo, imensos hipopótamos fixos que não mais
voltarão à superfície104.

“Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo


a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos,
conjunções, superposições e limiares, passagens e
distribuições de intensidade, territórios e
desterritorializações medidas a maneira de um
agrimensor 105
”.

103
“O processo”, em O Anti Édipo, Assírio e Alvim.
104
Idem.
105
Mil Platôs, v. 3, ed. 34, p. 22.
109

“Eu estou aqui... o meu quarto. Seja o que Deus quiser. Eu


vou mesmo. Eu vou mesmo. Prometo. Um medo, um pavor.
(...) Eu estou esperando um milagre. Vai acontecer aqui. O
Cristo que desça e abençoe estes putos. Eu, eu vou para o
céu de helicóptero106”.

Um corpo para poder viajar, era como se ele quisesse me


dizer isso desde o começo. Estando com o corpo em criação,
tornara-se necessário inventar um modo de conseguir
dinheiro para partir. Mas como conseguí-lo, com toda a
dificuldade de lidar com os meios de avaliação da sociedade
quando se quer um emprego? Entrevistas, dinâmicas de
grupo, tempo de experiência. Para isso, investimos juntos
na invenção de um personagem que pudesse,
disfarçadamente, entrar em alguma empresa, trabalhar como
qualquer um e juntar a quantia necessária.

Considerei que era preciso inventar dispositivos de


experimentação do falar que simulassem a situação das
exposições individuais onde se é convocado a falar em
público, numa situação de avaliação, seleção ou julgamento.
Em um livro de José Ângelo Gaiarsa107, encontrei uma série
de exercícios respiratórios que passei a utilizar nas sessões
com ele, fazendo uma pequena modificação, por exemplo,
quando experimentamos o procedimento numa banheira
cheia de água, onde o som da respiração fica mais intenso e
o corpo move-se para cima e para baixo dependendo da
quantidade de ar nos pulmões. O indivíduo respira através
de um cano de plástico, tendo um retorno intenso do seu
modo de respirar, podendo, a partir daí, variar os modos,
inventar uma nova relação com o ar.

106
José Agrippino. Lugar Público. Ed. Papagaio. p. 113.
107
Respiração, angustia e renascimento. José Angelo Gaiarsa. Ed. Ícone. 1994.
110

Junto a isso, a câmera de vídeo começava a ser utilizada na


clínica como dispositivo de experimentação do falar, vendo e
escutando a própria imagem. “O programa: ele sentou-se na
poltrona a um metro do televisor que estava bem à sua
frente. A câmera foi instalada num tripé na altura da base
d o t e l e v i s o r, f i c a n d o b e m n o m e i o d e s u a s p e r n a s . U m f o n e
de ouvido ligado na câmera e conectado aos seus ouvidos,
permitia que ele tivesse um retorno de á u d i o ”. O mesmo
programa experimental foi realizado com outro paciente, do
qual falo em outro bloco dessa dissertação, um corpo para
falar, onde trato especificamente da utilização de câmera de
vídeo em psicoterapia. Aqui, passarei direto aos efeitos...

Depois de uma bateria de testes que incluíram entrevista


individual e em grupo, prova de conhecimentos gerais e
específicos, dinâmicas de grupo, entrevistas com psicólogos,
ele conseguiu ser empregado num lugar onde em seis meses
poderia juntar dinheiro suficiente para partir.

Depois de dois anos em que passamos compartilhando


experiências clínicas, havia chegado um momento em que
nossos encontros se modificariam. Seu corpo ainda sentia
variações desagradáveis em certas situações, como por
exemplo, dificuldade de expirar o ar dos pulmões dentro dos
bancos e do metrô, mas ele próprio já podia inventar
dispositivos que aliviassem o desconforto, o que me parecia
um sinal de que havia recuperado efetivamente sua potência
de invenção de experimentações clínicas – o propósito de
viajar, é claro, corroborava com essa perspectiva. Um dia,
contou-me que ao entrar no metrô colocou um tampão em
cada ouvido, e que com isso havia conseguido respirar
(expirar) naturalmente.

O fato de ter conseguido o emprego, depois de transcorrido


111

o período de experiência e ter sido efetivado como


funcionário, mais os preparativos de viagem que estava
fazendo – estudando línguas, escolhendo câmeras,
estudando mapas e possíveis roteiros a seguir – também
eram indícios de que ele havia recuperado sua saúde e sua
potência de experimentação. A partir daí, deixamos de nos
encontrar semanalmente em minha clínica e passamos a nos
comunicar algumas vezes por e-mail e telefone, num
acompanhamento a certa distância. Depois de seis meses ele
tinha conseguido economizar a quantia necessária e partiu
em sua viagem pelo mundo.

Quanto ao meu gato, agora vive no prédio da fábrica de


refrigeradores de ar, e as vezes nos vemos, eu da minha
janela, ele do alto do edifício.

* * *
112

“Outrora eu pensava que ser humano era o mais alto


objetivo que um homem podia ter, mas vejo agora que isso
se destinava a destruir-me. Hoje sinto orgulho em dizer que
sou inumano, que não pertenço a homens e governos, que
nada tenho a ver com crenças e princípios. Nada tenho a ver
com a maquinaria rangente da humanidade – eu pertenço à
Terra! (...) Hoje estou cônscio de minha linhagem. Se sou
inumano é porque meu mundo transbordou de suas
fronteiras humanas, porque ser humano parece uma coisa
pobre, triste, miserável, limitada pelos sentidos, restringida
pelas moralidades e pelos códigos, definida pelos lugares-
comuns e ismos. (...) Tenhamos um mundo de homens e
mulheres com dínamos entre as pernas, um mundo de fúria
natural, de paixão, ação, drama, sonhos, loucura, um mundo
que produza êxtase e não peidos secos. Creio que hoje mais
do que nunca é preciso procurar um livro, ainda que ele
tenha só uma grande página: precisamos procurar
fragmentos, lascas, unhas dos dedos dos pés, tudo quanto
contenha minério, tudo quanto seja capaz de ressuscitar o
corpo e a alma. (...) É possível que estejamos condenados,
que não haja esperança para nós, para nenhum de nós, mas
se assim for soltemos então um último e torturante uivo
capaz de gelar o sangue nas veias, um berro de desafio, um
grito de guerra! Fora as lamentações! Fora elegias e
réquiens! Fora biografias e histórias, bibliotecas e museus!
Que os mortos comam os mortos. Dancemos nós, os vivos, à
beira da cratera, uma última e agonizante dança. Mas que
seja uma dança!108”.
(He nr i Mille r . Tr ó pico de C ânce r )

* * *

108
Ed. Circulo do Livro, p. 243.
113

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