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INTRODUÇÃO
As reflexões apresentadas neste trabalho partem do meu lugar de estudante
do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Uberlândia
e professora de sociologia da Rede Pública Estadual. Considero a antropologia um campo
fundamental para minha atuação como pesquisadora e educadora. De modo que concordo
com Clifford (p.18, 2002), a observação participante obriga seus praticantes a experimentar
tanto em termos físicos quanto intelectuais as vicissitudes da tradução. É a partir do meu
relato etnográfico que estou acompanhando de perto a reprodução das desigualdades
raciais no âmbito da educação no interior de uma escola pública da qual leciono aulas de
sociologia. É importante ressaltar que esta é uma primeira aproximação de uma pesquisa,
com caráter exploratório, no cumprimento de algumas fases de uma abordagem
qualitativa.
Como Florestan Fernandes96, ao término da graduação sentia uma profunda crise
moral. Neste tempo ainda me perguntava: O que é a sociologia? Antropologia? O que são
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Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de
Uberlândia. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais.
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Mariana Faria Scandar é professora do Conservatório Estadual de Música Renato Frateschi em
Uberaba- MG e possui mestrado em Educação Musical pela Universidade Federal de Uberlândia.
as ciências sociais? Sei o suficiente para ser uma antropóloga? Enfim, era uma estudante
que ao final do curso de graduação apresentava muitas angústias.
Além disto, ao contrário de muitos estudantes, meu processo de formação não foi
contínuo, meus estudos foram interrompidos diversas vezes, ora por conta das condições
materiais, ora por problemas de saúde e no último ano do curso estava gestante.
Profissionalmente tinha uma curta experiência na educação, já havia lecionado aulas de
sociologia em outras escolas e esperava ansiosamente a publicação do meu nome no diário
oficial para, enfim, me tornar docente efetiva do quadro de professores do estado de
Minas Gerais. Eu tinha pressa, afinal, precisava me estruturar financeiramente para
garantir o sustento da minha filha. Neste tempo ocorreu uma greve importante na
Universidade e o término do curso foi mais uma vez adiado. Com o fim da greve,
finalmente apresentei minha monografia e conclui a graduação. Algum tempo depois
também alcancei a tão sonhada nomeação para professora de sociologia na rede pública
estadual.
A escola na qual comecei a lecionar tem uma estrutura boa, apesar de estar
localizada em um dos bairros mais pobres de Uberaba. Irei descrever algumas das
características desse local: em seu entorno existem casas populares, algumas se destacam
por suas estruturas precárias. No bairro da escola está localizado o Centro Socioeducativo
de Uberaba, que é a instituição responsável pelo atendimento ao menor infrator. Os
bairros próximos são denominados pela população como vilas e alguns se localizam nas
proximidades da rodovia.
O governo estadual vem realizando pesquisas tipo censo por meio do que
denomina itinerário avaliativo, documento que visa, através de questionários realizados
nas escolas estaduais, fazer um diagnóstico das características gerais do território e do
sujeito para pensar o ensino aprendizagem de acordo com o contexto social e econômico
de cada localidade. No último censo os dados encontrados revelaram uma distorção da
realidade importante de ser observada. De acordo com os números retratados o total de
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Entrevista de Florestan Fernandes concedida ao museu de imagem e do som em junho de 1981
disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31732011000300004 acesso
em 02/12/2019.
alunos frequentes na escola era de 915 em 2019. Em relação ao sexo 52% eram homens,
47% mulheres e 1% não respondeu.
Até aqui os dados correspondem ao que posso testemunhar no meu dia-a-dia de
professora nesta instituição, mas os dados que irei apontar a seguir retratam uma
disparidade em relação ao que tenho observado. No âmbito da questão racial 54% dos
alunos dessa escola se classificaram como sendo brancos, 36% pardos, 6% negros e 4% não
informou. Quanto à questão socioeconômica a maior parte dos alunos se considerou como
sendo de classe alta. Evidentemente os alunos desta escola não são na maioria brancos
nem tampouco pertencentes às classes de alto nível econômico. As dúvidas que ficam são:
por qual motivo os alunos não assumem sua própria condição? Ou por que responderam o
questionário desta forma?
Neste contexto, eu, também educadora deste local, me questiono se a educação
que estamos oferecendo está sendo suficiente para emancipar os alunos a tal ponto que
eles se reconheçam como pertencentes a uma comunidade, a uma cultura, na sua
identidade étnica e social.
Minha trajetória como educadora desta escola se iniciou em 2016 num contexto
de turbulências econômicas, políticas e sociais já muito agravado no Brasil. Estávamos às
vésperas do golpe contra a Dilma Rousseff. Eu, desde jovem, me colocava nos movimentos
sociais, sindicatos, e me posicionava no campo político da esquerda e era declaradamente
contrária ao golpe que seria instituído. Nessa conjuntura, a escola Santa Terezinha não
constituía uma instituição que aceitava meus posicionamentos políticos. Desde o início a
minha carreira nesta escola foi marcada por dificuldades e coerção das minhas ideias, sem
contar que a institucionalização da sociologia como disciplina obrigatória era recente, de
2008. Por isso, nós professores de sociologia do ensino básico ainda não tínhamos contato
com profissionais de referência anteriores para podermos nos espelhar. Outro ponto
importante é que desde a institucionalização como disciplina obrigatória no ensino médio a
sociologia sofre processos tensos e complexos no Brasil. Inclusive, recentemente, a
reforma do ensino médio possibilitou que os governantes retirassem a obrigatoriedade da
disciplina do currículo básico.
Há de se ressaltar, também e em tempo, que a sociedade brasileira, em todas as
suas camadas sociais ainda regurgita discursos estereotipados - muitos deles “pesados” do
ponto de vista moral – introjetados nas próprias relações societárias, curiosamente
reproduzidos pelos próprios negros97. A pergunta que fica é: qual a contribuição da escola
para o desmonte de tal herança? Até que ponto a escola se utiliza de materiais que
debatem a questão racial e realiza programas, projetos sociais, artísticos, literários,
cinematográficos, rodas de conversa, entre outros recursos, no espaço da educação
escolar, nos livros didáticos, nos currículos etc.?
LEI 10.639
O tráfico negreiro foi uma das maiores calamidades da história da
humanidade. Durante séculos os europeus sequestraram e arrancaram das suas raízes
culturais milhões de homens e mulheres de diversas partes do continente africano
trazendo para o Brasil uma diversidade de culturas distintas vindas de muitas regiões, tais
como, Golfo de Benim, Litoral da Angola, Litoral de Moçambique (MUNANGA, 2006, p.
19).
No intuito de resgatar a contribuição dos negros nas áreas sociais, artísticas,
econômica, política e na história do Brasil, foi criada Lei n° 10.639/2003, posteriormente
alterada para 11.645/2008. A legislação que modificou a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei 9.394/96) obrigou as escolas a incluir nos currículos o ensino da
história e culturas afro-brasileira e africana no ensino fundamental e médio nas escolas
públicas, como observado no excerto abaixo (BRASIL, 2003):
art. 26 – A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio,
oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-
Brasileira.
§ 1ª – O Conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo
incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil,
a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à História do Brasil.
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É muito comum ainda ouvirmos expressões chulas como essas: “Preto quando não “faz” na
entrada, “faz” na saída”, “Isso é serviço de preto”, “A coisa aqui tá preta”, “Mulata”, “Você está denegrindo
minha imagem”, “Inveja branca”, “Negro de traços finos”, “Não sou tuas negas”, ou dizeres menos pesados e
aparentemente “inocentes”, mas de uma sutileza que denota um “preconceito consentido”, tais como:
“Fulano não toma café porque já é preto”, “Fulano é boa gente: um negro de alma branca“. Além de outras
expressões que remetem a palavra negro a algo pejorativo, ilegal ou maléfico: “Magia negra”, “lista negra” e
“ovelha negra”.
Da parte dos professores, por exemplo, não se nota um esforço incisivo para
combater o preconceito racial sofrido pelos seus alunos, - e a escola assim o expressa -
mesmo diante de situações explícitas de discriminação:
Na maioria dos casos, praticam a política de avestruz ou sentem pena
dos “coitadinhos”, em vez de uma atitude responsável que consistiria, por um
lado, que a diversidade não constitui um fator de superioridade ou inferioridade
entre grupos humanos, mas sim ao contrário, um fator de complementaridade e
enriquecimento da humanidade em geral; e por outro lado ajudar o aluno
discriminado para que ele possa assumir com orgulho e dignidade os atributos da
sua diferença, sobretudo quando esta foi negativamente introjetada em
detrimento de sua própria natureza humana. (MUNANGA, 2005, p.15).
que apresente várias facetas da realidade escolar que podem ser analisadas do ponto de
vista da antropologia, mais especificamente por meio da etnografia.
Constantemente faço uso do meu diário de campo. No momento em que me
deparo com uma situação ou fala que me faça pensar sobre as relações étnico-raciais, logo
faço uma descrição do acontecimento. Como estas situações acontecem no momento em
que estou trabalhando, algumas das vezes não é possível parar para relatar de forma densa
os acontecimentos, entretanto, com a modernidade o celular é um instrumento muito
eficaz para que eu possa fazer pequenos lembretes e posteriormente descrever a situação
com mais detalhes no meu diário de campo. Com isso tenho gravado áudios, tirado fotos,
escrito lembretes e quando posso escrevo diretamente no caderno de campo.
As observações contidas nesta pesquisa vem sendo realizadas desde fevereiro de
2019 e se estenderão até dezembro de 2020. Todos os dados coletados serão analisados
posteriormente. Por enquanto a análise que faço é superficial mas já desperta muitas
indagações. Colocarei neste relato algumas das situações vivenciadas que me trouxeram
reflexões até aqui.
As culturas negadas, estabelecidas historicamente, permanecem revigorando as
desigualdades raciais, posicionando os afro-brasileiros em desvantagem com relação ao
acesso a bens simbólicos e culturais. A política assimilacionista presente nas relações do
Estado com a comunidade negra e a perspectiva eurocêntrica consolidam esse espaço
escolar majoritariamente como sendo um espaço do branco. Pensando nisso, nas
observações realizadas até então, destacamos diversas referências de imagens de
adolescentes, crianças e profissionais, todos brancos, no mural da escola durante todo ano.
Eis alguns do mais significativos:
Esta imagem foi feita no mês de outubro em que se comemora o dia das crianças e
dos professores. No mural deseja-se feliz dia das crianças e dos professores, mas a
representação é apenas para as crianças brancas. É necessário fazermos uma leitura do
que encontramos no campo. A imagem apresentada não está muito distante da realidade.
Sabemos o quanto a invisibilidade da população negra é grande, seja nos livros didáticos,
nas revistas, novelas e até mesmo no mural da escola. Concebe-se a ilusão da não
existência da população negra, mesmo nas regiões onde ele constitui-se maioria.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escola tem um papel social muito importante na vida dos alunos, neste sentido é
dever da escola manifestar-se em favor dos negros, educar a população para reconhecer
que estes participantes da cultura nacional devem auferir seu devido reconhecimento e
respeito. Para que existam alterações efetivas se julga necessário uma mudança nos modos
de pensar, nos discursos e nos modos de agir das pessoas, promovendo uma
conscientização e sensibilização à causa. E se essa sensibilização está, de certa forma,
distante dos docentes, gestores e alunos, então, a mesma deve ocorrer a partir do estudo
sistemático da produção étnico racial de forma individual e coletiva.
Os grupos de estudos afro-brasileiros, núcleos, coletivos e movimentos sociais
negros também são importantes para assessorar os professores a promoverem diferentes
práticas cotidianas, experiências e processos culturais, sem o estigma da desigualdade,
alocando todos os afro-descentes como parte do processo histórico, da tradição, da cultura
e do conhecimento.
Consideramos que a discussão, o diálogo, e convivência entre estes diversos setores
e segmentos sociais citados, entre outros, são importantes para a superação do racismo e
também para uma educação que visa garantir o conhecimento e respeito das relações
étnico-raciais.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Ministério da Educação.
Brasília. Conselho Nacional de Educação, 2004.
CARNEIRO, Sueli. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2011.
FAUSTINO, D M.“Por que Fanon, por que agora?”: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil -
São Carlos : UFSCAR, 2015. 260 f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal de São Carlos,
2015.
MUNANGA, Kabengele e GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. – São Paulo:
Global, 2006. (coleção para entender).
SILVA, Ana Célia da. A desconstrução da discriminação no livro didático. p. 21-38. In:
MUNANGA, Kabengele (org.) Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da
Educação Continuada, alfabetização e diversidade, 2005.