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O GÊNERO QUE REGISTROU O FATO: TRAGÉDIA.

Vanilda dos Reis*


Resumo:
Temos como objetivo realizar um estudo sob uma perspectiva histórica da obra Gota
d’Água de Chico Buarque e Paulo Pontes, focando a omissão e opressão da nação
brasileira durante duas décadas de silêncio após meado do Século XX, quando o Brasil
viveu momentos de tensão marcada por conflitos sendo considerado, um dos períodos
mais atrozes de sua história. Perseguições, seqüestros, torturas, exílios, assassinatos,
censura à imprensa e à produção intelectual, eliminação do processo eleitoral direto,
possibilidade de qualquer um sofrer retaliações arbitrárias sufocaram e passaram a fazer
parte do cotidiano da nação. Este período foi reconhecido e historicamente registrado
como período da Ditadura militar. Tornou-se também o cenário ideal para a estréia da
tragédia nas obras literárias brasileiras, registrando de maneira “sutil” o sofrimento da
sociedade brasileira nas cenas da peça Gota d’Água.
Palavras-chave: Gota d’água, Chico Buarque, Regime Militar.
“Vezes sem número a mulher é temerosa,
Covarde para a luta e fraca para as armas;
Se, todavia, vê lesados os direitos
Do leito conjugal, ela se torna, então,
De todas as criaturas a mais sanguinária!”
Eurípedes (Medéia)

Introdução:
A motivação de realizar este estudo sobre a peça teatral de Chico Buarque e
Paulo Pontes nasceu do interesse que sempre nutri pela forma do primeiro abordar
problemas sociais através de metáforas dentro de suas obras e também, pela
possibilidade de mais uma vez, colocar em evidencia a luta diária dos brasileiros em
busca de seus sonhos, que mesmo durante o período da Ditadura Militar (que silenciou
muitas vozes) não impediu nossa gente de sonhar e acreditar em mundo melhor.
Músico, poeta, dramaturgo e escritor, Chico Buarque em parceria com Paulo
Pontes (1975), partindo do texto Medéia do teledramatúrgico Oduvaldo Vianna Filho,
(morto no ano anterior), re-elaboram o texto surgindo então à peça Gota d’Água, que
marca e estréia da tragédia na literatura brasileira.
A peça, conforme expõem seus autores no prefácio, reflete três preocupações
básicas: i) a busca da reflexão sobre o processo de concentração de riquezas e
*Acadêmica do 6º semestre do curso de Letras da Universidade Estadual de Mato Grosso-UNEMAT,
Núcleo Pedagógico de Juína.
marginalização política no Brasil; ii) a necessidade de fazer com que o povo volte a ser
o centro da cultura brasileira; iii) a revalorização da palavra como fundamento da
expressão teatral.
Uma das características de Chico Buarque é a sutileza ao abordar um assunto
polemico de maneira menos agressiva em relação a outros autores de seu tempo, e ao
mesmo tempo, sem abrir mão do caráter crítico sócio-político-cultural. Isso fez com que
o autor fosse um dos artistas mais visados pela censura nas duas décadas de Ditadura
Militar.
Gota d’Água é uma forma inteligente de expressão da resistência democrática
durante a ditadura militar no Brasil. No entanto, naquele período a obra não encontrou
maiores problemas, passando despercebida pela censura e pôde estrear em dezembro de
1975.
Diante do legado que contribui e enriquece a cultura nacional, Chico Buarque
faz uso de metáforas e adquire a imagem de artesão da linguagem como afirma
(MENESES, 1982, p. 17): “As palavras, com ele adquirem, na sua fluidez, algo de
alquímico. Algo mágico...” e utilizando-se da arte da escrita, o autor faz desta obra uma
única fonte de concretude, substância e originalidade capaz de resgatar a identidade
cultural brasileira no contexto dos anos de chumbo regidos pela Ditadura Militar, que
espalhava terror, reduzindo o direito à liberdade e à crítica a quase zero.
Por outro lado à economia do país que já não funcionava em sua totalidade,
passava por problemas gravíssimos, resultando no crescimento acelerado da
desigualdade social na medida em que os anos se arrastavam. Desta forma o rico ficava
cada vez mais rico e o pobre cada vez mais pobre, enquanto a TV em cores camuflava e
anestesiava a crise com programas de entretenimento que nem de longe lembrava a
realidade do país.
A obra Gota d’Água relata a vida de pessoas simples que viviam em conjuntos
habitacionais que eram muito comuns nos centros urbanos brasileiros. A vila do Meio
Dia, situada no subúrbio do Rio de Janeiro chamado e o plano perfeito para o drama de
um jovem infiel chamado Jasão e de dona Joana, uma senhora abandonada, traída e em
péssimas condições financeiras.
Para alcançar o objetivo proposto pelo estudo foi realizada a leitura preliminar
da obra Gota d’água de Chico Buarque e Paulo Pontes, e de outras fontes na internet
com a intenção se ter um melhor entendimento do discurso literário dos referidos
autores. Depois de realizada a leitura deu-se um breve resumo da história onde foram
escolhidos alguns trechos, que em linguagem coloquial evidencia alguns pontos críticos
do governo militar que serão analisados neste artigo.

A Tragédia que Sufocou uma Nação por Duas Décadas.


A protagonista Joana abandona seu marido para juntar-se a Jasão, um jovem
dez anos mais novo que ela e após alguns anos de convivência em que viveu
praticamente à custa da esposa o malandro Jasão escreve um samba que faz sucesso no
rádio com a música, tendo como título “Gota d’água”.
"Já lhe dei meu corpo, minha alegria / Já estanquei meu sangue quando fervia
/ Olha a voz que me resta / Olha a veia que salta / Olha a gota que falta pro
desfecho da festa / Por favor / Deixe em paz meu coração / Que ele é um pote
até aqui de mágoa / E qualquer desatenção, faça não / “Pode ser a gota
d’água.”
O samba se torna o instrumento, a estratégia de Jasão para alcançar a
prosperidade e a riqueza. A letra desta canção se torna ambígua dentro da obra, e
durante os anos de chumbo foi interpretada como o “desencanto” do malandro pela
esposa, pelo casamento e pela situação financeira. Porém se relacionarmos a obra com o
seu período podemos interpretar de outra forma, visto que esta gota d’água pode ser os
sentimentos, as condições do povo brasileiro que já não suportava mais a pressão
provocada pelo militarismo, durante os dez anos já passados em que o mesmo estava no
poder.
Jasão e Joana tiveram dois filhos, e um casamento marcado pela miséria e
mágoas de ambas as partes, porém ele apaixona-se por Alma, filha de Creonte, o dono
do conjunto habitacional em que moravam no Rio de Janeiro e abandona a família para
viver seu novo amor e uma nova posição social também.
Ao ser abandonada com duas crianças, começa a peregrinação de Joana que
não tem condições financeiras e nem psicológicas para encarar a nova realidade
provocada pela perca do esposo, contando apenas com a ajuda do casal de amigos,
confidentes e vizinhos Corina e Egeu.
Indignados com os juros abusivos cobrados por Creonte começa a formar entre
os moradores do conjunto habitacional, um grupo chamado “coro dos descontentes”,
liderado por Egeu que tinha um objetivo único: protestarem contra o explorador
(Creonte). Ao ser avisado de tal movimento, Creonte encontra “utilidade” para se futuro
genro Jasão, que ainda mantinha uma relação amigável com quase todos os moradores
da vila (com exceção a Joana). Jasão tinha à sua frente à primeira tarefa imposta pela
sua nova posição social: transformar o conflito em consenso, como mostra o trecho do
dialogo entre futuro sogro e genro:
“[...] já que vamos dividir o este assento, um trabalhinho já apareceu para
você demonstrar o seu talento. Aquele Egeu parece até que é seu compadre ...
[...] Você vai conversar com ele, então você me conhece e pode explicar que
trabalhei suado, honestamente e fiz essas casas para melhorar as condições de
vida dessa gente agora quem compra tem que pagar, senão não há santo que
sustente... [...] então vai como amigo fala manso pra evitar confusão.” (p. 53
a 55):
Nesta cena seu Creonte convida Jasão para conhecer o escritório e a cadeira
que ambos irão dividir e que futuramente pertencerá a Jasão, visto que Alma é filha
única e dividirá a herança apenas com o esposo. Neste momento Chico Buarque
evidencia como funcionava o comércio imobiliário que foi um dos negócios mais
lucrativo durante um longo período no Brasil, incluindo o período da Ditadura Militar,
quando muitos enriqueciam a custa do sonho da casa própria.
Enquanto isso a saga de Joana continuava lá na Vila do Meio Dia e após
muitas atitudes precipitadas seguida de frustrações, como a tentativa inútil de
reconquistar o esposo, começa as provocações e afronte a Creonte e família, entre elas,
a recusa ao pagamento das prestações da casa onde morava e provocações a nível
verbal. Diante de relatos feitos por moradores que denunciavam os insultos diariamente,
Creonte decide expulsar Joana do conjunto habitacional, impossibilitando Jasão até
mesmo de defender seus próprios filhos.
Mestre Egeu e os “descontentes” resolvem juntar forças e ir até a casa de
Creonte para que resolvessem de uma vez o problema dos moradores em relação às
prestações atrasadas e especialmente, o problema de Joana que estava ameaçada de
despejo juntamente com seus dois filhos. Ao ser questionado quanto aos aumentos
abusivos das prestações das casas Creonte se toma uma atitude que surpreende aos
moradores, como mostra o trecho a seguir:
“[...] na verdade... eu... bem, de uns tempos para cá eu tenho pensado muito
no assunto e estava mesmo com vontade de procurar vocês, mas estive
ocupado... é que mandei fazer um balanço geral de minha empresa... [...]
chegou a hora de nossa Empresa desempenhar a sua função social [...] então
faço, de maneira informal, o anúncio, com modéstia, sem estardalhaços, das
seguintes medidas de ordem social de minha empresa. Remodelar o terraço
do nosso prédio para acomodar um pequeno parque infantil [...] no fundo do
terreno pretendo fazer um campo de futebol [...] vou instalar um orelhão no
sul e um orelhão no norte, vou aterrar aquele buraco ali junto ao cemitério
[...] todo aquele prédio, a Vila do Meio Dia inteira já tem que ser repintada
[...] bem, agora pessoal eu tenho prazer de comunicar a praça, mas sem
estardalhaço, a noticia final: aqui ninguém tem mais prestação atrasada [...]
Quem estiver atrasado e tal, passe no meu escritório que o meu advogado
cuida de caso por caso [...]” (p.143 a 145).
Em meio aos aplausos mestre Egeu questiona o segundo problema que os levou
ate ali, Creonte foi direto a sua decisão (p.146):
“acabei de tomar, segundo me parece, medidas de profundo alcance social
[...] sempre lutei pelo bem geral da coletividade. Tem algo, porem, que para
mim é coisa fundamental Reservo-me o direito de escolher quem são meus
amigos ou meus inimigos. Assim, pra poder gozar dessa bonificação tem um
só requisito essencial para mim: ser meu amigo...”
Creonte, mesmo diante da desagradável surpresa da visita dos “descontentes”,
tomou uma decisão previamente estudada, pois a estratégia surgiu a partir de uma
conversa com o futuro genro, quando este solicita melhorias nas instalações do conjunto
habitacional que na ocasião foi recebida como gozação por Creonte.
As promessas de Creonte representam o “milagre econômico” prometido pelo
governo e a condição de aceitarem a expulsão de Joana do conjunto habitacional,
representa a “ordem” que acabou se tornando justificativa, em nome do progresso.
Desta maneira os governantes conseguiram mesclar durante longos anos autoritarismo e
desenvolvimento econômico no Brasil. No entanto Creonte foi “maleável” para com o
grupo para atingir uma pessoa apenas. Esta era uma das medidas mais freqüentes no
governo militar, pois era importante conquistar a maior parte do grupo, para em seguida
castigar alguns, tolhendo-os de chances de defesa.
Mestre Egeu retorna para a vila e dá a noticia à Joana que desesperada e sem
condições psicológicas de pensar numa saída, prepara um bolo envenenado e então
manda os filhos irem até a festa de casamento de Jasão e Alma levando um presente
para esta última em sinal de que não havia mais ressentimento. Porém ao entregarem o
embrulho para Alma, Creonte, não permitiu que abrisse, julgando ser feitiço pelo fato de
Joana ser macumbeira e expulsa os filhos de Jasão e Joana da festa. Com os seus planos
de matar seus inimigos fracassados, Joana desabafa dentro daquela casa que na verdade
nunca lhe pertencera, sem esperanças e cansada de lutar.
“Meu senhor, olhe para mim, tenha dó, Pai, por que, meu Pai? Você não
deixou? Como foi que Creonte farejou meu Ganga? Responde, aponta uma
estrada pra quem padece como eu não há nada que ajude mais do que o
padecimento de quem me oprime. Foi só um momento de alivio que eu pedi.
Não pode ser? É possível que o pai quis proteger Jasão, que larga os filhos
nas esquina e que se entrega ao canto das ondinas? Quis defender Creonte,
esse ladrão do rosto humano e a cauda de escorpião? [...] salvou meus
inimigos por que motivo? De que serve a vida deles? Eu tenho que sair
ferida, abandonada, doida, sem abrigo
[...] Meu Ganga, meu Pai Xangô, o senhor quer dizer que há sofrimento
maior do que morrer com veneno cortando as entranhas [...] Não, senhor... É
isso? Afasta de mim essa idéia, meu Pai... Mas não, meu Ganga, é pior...
Pior, tem razão esse é o caminho que o senhor me aponta... aí em cima você
toma conta das crianças?... (Grita) Não!...” (p. 171 a )

Nesta cena os autores evidenciam o desgaste da classe humilde brasileira,


representada no decorrer da obra por Joana, que sofre os maus tratos dentro da sua
pátria que, no entanto deveria protegê-la. A opressão provocada pela classe dominante
fazia com que alguns fugissem da luta, se exilassem, ou perdessem a vida, assim como a
personagem Joana que se vê sitiada e decide fugir da luta, tomando a decisão de partir
com o que restara de sua família, seus dois filhos, para o lugar melhor.
[...] Meus filhos, a mamãe queria dizer uma coisa a vocês. Chegou a hora de
descansar. Fiquem perto de mim que nós três, juntinhos, vamos embora prum
lugar que parece que é assim: é um campo muito macio e suave, tem jogo de
bola e confeitaria, tem circo, música, tem muita ave e tem aniversário todo
dia, lá ninguém briga, lá ninguém espera, ninguém empurra ninguém, meus
amores, não chove nunca é sempre primavera a gente deita em beliche de
flores mas não dorme, fica olhando as estrelas, ninguém fica sozinho. Lá não
dói, lá ninguém vai nunca embora. As janelas vivem cheias de gente dizendo
oi não tem susto, é tudo bem devagar e a gente fica lá tomando sol [...] a
Creonte, à filha, a Jasão e companhia vou deixar este presente de casamento
eu transfiro para vocês a nossa agonia porque, meu Pai, eu compreendi que o
sofrimento de conviver com a tragédia todo dia é pior que a morte por
envenenamento.” (p.171 a 173)
Nesta cena Joana abraça seus filhos, abre o embrulho com o bolo envenenado,
dá ás crianças e depois come do mesmo. Joana mata seus filhos e logo em seguida se
suicida. O ato passional da protagonista demonstra a busca desesperada por justiça e
descanso. Entretanto, essa justiça que não é a dos homens e o descanso optado por
Joana representa a esperança de dias melhores.
No final Egeu leva o corpo de Joana no colo, Corina carrega as crianças e
ambos põem os corpos na frente de Jasão e Creonte na festa de casamento. Creonte, a
filha e o futuro genro Jasão representam a classe dominante ao longo da obra, vencem
na trama saindo ilesos.

Considerações finais
Vale salientar ainda, que uma das características da tragédia é a presença
marcante dos valores referentes ao período em que esta foi escrita, como afirma
SOUZA 2005 “...toda e qualquer produção trágica estará imbuída dos valores de cada
período, mesmo aquelas que se pautaram em uma peça teatral já constituída.” Por isso,
as tragédias são consideradas uma das melhores expressões artísticas sobre as
problemáticas sociais da sociedade pertencente em um determinado hiato temporal.
Assim como a Medeia de Eurípedes que aborda uma nova era vivida pelos
Gregos, a tragédia brasileira Gota d’Água também retratou os conflitos nacionais em
um determinado tempo da história. Enquanto Eurípedes busca evidenciar o novo
espírito do homem da época, que começa a ter consciência de seus atos, provocando
conflitos nas tentativas de libertação em relação às “amarras” dos imortais (os deuses
gregos), Chico Buarque e Paulo Pontes evidencia a luta dos brasileiros contra
“amarras” controladas não por deuses, mas por instituições ou por classes dominantes,
ou seja, por uma “engrenagem” social que encurralou a nação. Desta maneira, as classes
médias e baixas da sociedade brasileira, conviveram no período da ditadura militar, em
um cenário de conflito que refletia a luta pela sobrevivência, por um governo justo e
principalmente, pela liberdade.
O período histórico de Gota D’água (1975) foi um momento de grande
decepção para os intelectuais brasileiros, pois estes perceberam que não acabariam com
o autoritarismo da noite para o dia, afinal dez anos já havia se passado e o regime estava
cada dia mais fortalecido. As representações construídas sob as influências de cada
tempo são significativas dentro da tragédia e o desanimo dos autores/intelectuais da
obra pode ter influenciado no desfecho, quando Joana não consegue matar as figuras
autoritárias simbolizadas por Creonte e “companhia”.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

-BUARQUE, Chico & PONTES, Paulo. Gota d’água. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1981.
-MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque.
São Paulo: HUCITEC, 1982.
-GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia. São Paulo: Loyola,
2001.
-SOUSA, Dolores Puga Alves de. Tradições e apropriações da tragédia: Gota d’Água
nos caminhos da Medéia clássica e da Medéia popular. Uberlândia: Revista Fênix 2005
Disponível em: www.revistafenix.pro.br acessado em: 03/03/2011.

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