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Reminiscências. 

Foi  por  volta  de  setembro  de  2002  que  o  Dr.  Caligari  chegou  à  cidade.  Para  sem 
mais  exato,  ele  cruzou  a  entrada  de  Pirenópolis  no  mesmo  dia do incêndio que destruiu 
a  Igreja  Matriz  Nossa  Senhora  do  Rosário  e  que  consumiu  o  telhado  e  quase  por 
completo  o  interior  em  estilo  barroco-rococó  daquele  monumento.  Lembro  que  ele 
viera  passar  férias  em  uma  casa  de  descanso  ou  chalé,  e  durante  a  estadia  acabou  por 
conhecer  uma  nativa.  A  professora  Adélia  Veiga  era  diretora  da  escolinha  municipal, 
empreendimento  voltado  para  o  maternal  e  pré-escolar,  mas  que  posteriormente,  após 
algum  período  de  expansão,  converteu-se  em  um  certo  Centro  de  Referência  de 
Educação Materno-Infantil, conhecido como CEREMATI.  

Na  primavera  do  ano  posterior  o  Dr.  Caligari  e  a  professora  Adélia  se  casaram. 
Apesar  de  tal  empreitada  o  casal  nunca  oficializou  a  união  em  âmbito  civil,  apenas 
moravam  juntos.  No  entanto,  conforme  manda  a  tradição  de  diletantismos  bucólicos 
dos  porquês  nesta  parte  do  estado,  circularam  boatos  de  que  o  casal,  não muito afeito a 
extravagâncias,  praticavam,  juntos,  em  comunhão,  algum  tipo  de  experiência  religiosa 
ou  frequentava  alguma  seita  neo-pagã,  ou  ainda,  murmuravam  os  pirenopolinos  em 
êxtase,  que  eles  eram  adeptos  de  uma  religião  de  fato  impraticável  para  a  maioria  dos 
integrantes  daquela  massa  civilizatória.  No  entanto  nenhum  rumor  se  provou 
verdadeiro  até  então;  ao  contrário, ultrapassava antes os limites de uma suposta mentira, 
por se tratar, obviamente, de um burburinho interiorano. 

Curiosamente  o  Dr.  Caligari  iniciou  uma  obra  grandiosa,  concomitante  ao  seu 
casamento. Assim que conseguiu se instalar na cidade ele mexeu no terreno da escolinha, 
atraindo  mais  ainda  olhares  animados  da  população  de  Pirenópolis  para  si. Primeiro foi 
construído  um  anexo  simples,  funcionando  primariamente  como  uma 
farmácia/enfermaria,  apta  a  atender  crianças  até  os  cinco  anos  de  idade  –  as  que 
estudavam  na  escolinha  municipal  –  depois  o  que  viria  a  ser  o  Centro  de  Referência de 
Educação Materno-Infantil, o CEREMATI/GO, e que se instalou na Rua do Bonfim,  
 

próximo  ao  restaurante  do  Ricardo,  após  uma  compra  milionária  de  um  dos 
vaqueiros  mais  ricos  da  cidade  (e  que  vivia  longe  dali),  passando  assim  a  atender  em 
definitivo todas as crianças da comunidade ao redor do local.  

13 de fevereiro de 2004 

O  Doutor  Caligari,  ainda  condenado  a  névoas  de  sono,  atravessa  a  rua  de 
paralelepípedos  e  pedras  antigas,  caminha  tentando  apressar  o  passo  por  entre  ruas 
adornadas  com  residências  de  janelas  coloridas,  pontos  de  arquitetura  colonial  do  séc. 
XVIII  e  calçadas  com  lampiões  a  gás  que  foram  transformados  em  postes.  Ele  se  dirige 
até a Rua do Bonfim, retorna à esquerda e penetra silenciosamente os portões do Centro 
de  Referência  de  Educação  Materno-Infantil, o CEREMATI, sem desejar bom-dia para 
quem  cruza  com  a  figura  magra  e  felpuda  do  médico.  Ele  caminha  por  corredores 
labirínticos  até  desembocar  na  cozinha;  despeja  o  café  sem  açúcar  em  uma  caneca (uma 
imitação  de  porcelana  portuguesa),  de  tamanho  mediano  e  captura  um  sachê  de  onde 
verte  açúcar,  enquanto  abre  o  jornal,  absorto  pela  notícia.  Segue  fac-símile  com  o 
conteúdo da manchete datada à época: 

CRIANÇA-MONSTRO DE PIRI ASSUSTA MORADORES! 

A  enfermeira  assistente,  terninho  alinhado  e  cabelos  castanhos  presos  em  coque, 


arrasta  seu  traseiro  até  a  soleira  da  porta  da  cozinha,  assomando  com  um  bebê  de  cerca 
de  nove  meses  a  tira  colo  –  a  expressão  vazia  da  enfermeira  apaga  qualquer  traço  de 
legítima  contemplação  –  enquanto  o  Dr.  Caligari se aconchega próximo a ela, depois de 
abandonar  a  xícara  portuguesa  falsa  em  cima  do  balcão,  apalpando  a  enfermeira 
firmemente  nos  ombros.  Parece  que  hoje  é  seu  dia  de  sorte,  diz  o  Dr.  Caligari, 
atravessando  o  caminho  da  moça  de  terninho  alinhado  e  arrastando  as  mãos  pelos 
cabelos da dela, que num susto o segue até uma espécie de escotilha que termina em uma 
sala. É o sinal indicativo para o procedimento.  

 
 

O  Quarto-Escuro  ou  Quarto  do  Desespero  consiste  em  um  local  não  muito 
espaçoso  e  um  tanto  abafado,  com  paredes  pintadas  de  preto  e  um  teto  muito  baixo. 
Nenhum  móvel  residencial  ou  comercial  decora  o  espaço.  Apenas  um  tapete  caseiro 
decora  o  chão,  um  tapete  multicolorido,  feito  em  um  tear  manual  por  tecelãs  dos 
arredores  da  cidade.  Do  outro  lado  de  uma  das  paredes  negras,  à  esquerda,  uma  janela 
gigante  de  vidro  emoldura  a  professora  Adélia  do  outro  lado,  que  observa  com 
curiosidade  e  apreço  os  passos  de  seu  marido,  que  num  arroubo  despe  seu  jaleco.  A 
enfermeira  o  imita,  depois  de  deixar  o  bebê  no  chão,  ela  tira  parte  da  roupa 
dependurando  a  primeira  peça  de seu uniforme em um dos ganchos dispostos próximos 
a um baú, em um dos cantos do quarto escuro. 

  Hoje  é  seu  dia  de  sorte,  brada  mais  uma  vez  o  Dr.  Caligari,  perguntando  em 
seguida  para  a  enfermeira  se  o  bebê  está  muito  bem  alimentado.  Do  outro  lado,  a 
professora Adélia parece soltar um esgar de volúpia. 

Certificado  sobre  todos  na  sala,  Dr.  Caligari  observa  a  enfermeira  e  a  criança.  As 
mãos  cruzadas  do  homem  dão  um  tom  muito  sério enquanto seu cenho robusto parece 
guardar  algo  mais misterioso do que deveria até então. Sentado, o bebê bate as palmas de 
suas  mãos  no  tapete doméstico, como se quisesse chamar a atenção para si. A enfermeira 
de  cabelos  castanhos  presos  em  coque,  terno  alinhado  e  batom  vermelho,  olha  de 
esguelha  a  vivacidade  da  criança  com  certo  receio. Ela caminha até o outro lado da sala e 
retira  de  dentro  de  um  baú  antigo  um  filhote  de  gato  que  estava  dormindo  até  então, 
levando-o  em  seguida  ao  Dr.  Caligari.  Estava  dormindo,  gatinho?,  questiona  ele  para  o 
bichano,  porém  quem  responde  é  o  bebê,  urrando  coisas  incompreensíveis  como  é 
típico  das  crianças  muito  novas,  sentado  no  chão,  batendo  mais  forte  as  mãos  no 
assoalho,  como  se  estivesse  redescobrindo  novamente  sua  voz,  desta  vez  em  doses  mais 
aguçadas de tom.  

Agachando  lentamente  Doutor  Caligari  deposita  o  bicho  próximo  aos  pés  do 
bebê  e  puxa  um  dos  cigarros  de  seu  bolso.  Acende  o  Hell’s  Light  com  fósforos  que 
iluminam  seu  rosto  como  um  flash  e  então  convida  a  enfermeira  a  se  retirar  do  quarto 
negro com ele. 
A  sala  ao  lado  do  Quarto  do  Desespero funciona como se fosse um periscópio. A 
janela  de  vidro  recebe  o  Dr.  Caligari  a  enfermeira  de  cabelos  castanhos  que  se  juntam  a 
professora Adélia que agora, emoldurados, observam com diligência os movimentos  

indecisos dos protagonistas do Quarto-Escuro. Do outro lado, após uma pausa de 
suas  brincadeiras  a esmo, o bebê parece declarar algum fascínio pelo felino, ele resmunga 
agora  com  o  bichano,  porém  sem  bater  as  mãos  no  chão.  O  gato,  em  resposta,  se 
espreguiça  espichando  as  patas  dianteiras  fazendo  suas  garras aparecerem por completo, 
depois  sacode  o  corpo,  encrespando  sobre  si  mesmo,  fazendo  cair  ao  chão  alguns  pelos 
cinzentos.  Satisfazendo  sua  curiosidade,  num  ímpeto  quase  subconsciente,  o  bebê 
menciona  agarrar  o  bichano,  levantando  em  linha  reta  as  duas  mãos  para  tocar o crânio 
do  gato,  e  é  então  que  um  barulho  metálico  e  forte  explode  alto  dentro  do  quarto  do 
desespero, fazendo o bebê recuar assustado. 

Ele  olha  ao  redor,  mas  nada  vê.  Balança  a  cabeça  leste-oeste,  aturdido,  quase  um 
sopro  de  horror.  O  gato  parece  não  ter  se  incomodado,  ato  contínuo  o  bichano  vai  se 
aconchegando  mais  ainda  nas  pernas  do  bebê,  arrastando  seu  corpo  nos  joelhos  da 
criança,  que,  hipnotizada  pelo  gesto  de seu novo amigo, tenta, mais uma vez, acariciá-lo. 
Um  novo  som, mais alto e estridente, como se uma marreta golpeasse uma robusta barra 
de  ferro  é  ouvida  novamente,  por  duas,  três,  quatro  vezes  seguidas,  fazendo  o  bebê 
recuar  com  mais  rapidez  do  que  pela  primeira  vez  e  em  seguida  berrar  num  choro 
explosivo,  destilando  um  grito  comparável  aos  que  os  que  saiam  das  caixas  de  som  do 
quarto, cuidadosamente preparadas para este tipo de situação, fazendo agora o filhote de 
gato  pular  assustado.  Do  outro  lado  da  sala,  enquadrados  pela  janela  gigante,  o  Dr. 
Caligari  e  a  professora  Adélia  sorriem como cúmplices; contudo a enfermeira de cabelos 
castanhos  presos  em  coque  não  sorri,  ato  contínuo  transfigura-se  estática,  aturdida pela 
reação da criança. 

Naquela  época  acontecimentos  semelhantes  a  este  aconteciam  numa  frequência 


diária.  Não  só os bebês que experimentavam tais condicionamentos. Crianças até seis ou 
sete  anos  de  idade.  Outros  animais  como  filhotes  de  cães  eram  expostos  a  crianças 
maiores, associando ruídos escolhidos a animais domésticos.  

Algum  tempo  depois,  os  responsáveis  pelo  Centro  de  Referência  de  Educação 
Materno-Infantil,  o  CEREMATI,  passaram  a  utilizar  música  clássica,  trilhas  sonoras  e 
sound  effects  para  inibi-los,  como  ”Terror  in  the  cellar”,  de  1972,  de  Bruno  Nicolai, 
para  se  ter  uma  ideia.  Quando  expostas  a  animais  domésticos  para  entretenimento,  as 
crianças  

não  chegavam  próximas  aos  bichos.  As  maiores  já  saiam  a  engatinhar  para  longe  deles, 
chorando inibidas. 

Elas  ouviam  os  ruídos  e  sentiam-se  condicionadas a sentir que algo  terrível estava 


para  acontecer.  Quando  a  canção  era  exposta  por  completo,  elas  começavam  a  chorar 
assustadas  por  algo  que  desconheciam,  mas  que  tinham  certeza em suas cabeças infantis 
que  uma  dor  emocional  profunda,  algo  terrivelmente  ruim  iria  acontecer,  algo  como 
uma música profética para um acontecimento escatológico. 

30 de março de 2004 

No  Centro  de  Referência  de  Educação  Materno-Infantil,  o  CEREMATI,  as 


crianças  condicionadas,  as  que  já  possuem  idade  suficiente,  são  separadas  e  passam  por 
um  novo  estágio.  Em  um  espaço  denominado  Quarto  da  Esperança,  que  obviamente 
possui  paredes  verdes,  verdes-água,  crianças  de  cerca  de  três,  quatro  ou  cinco  anos  são 
expostas  a  slides  eletrônicos  com  imagens  de  seus  pais.  O  Quarto  da  Esperança  é 
consideravelmente  o  maior  de  todos  os  ambientes  do  CEREMATI.  Ele  abriga  a  sala  de 
cinema  e  uma  antessala  incrivelmente  pequena  que  guarda  fotos  de  cada  casal  exposto 
na película. 

No  cinema  cada  criança  assiste  a  fotogramas  de  suas  mães  e  pais  juntos,  em 
silêncio,  depois,  acompanhados  de  trilha  sonora,  os  assiste separados: primeiro a foto de 
seu  pai  e  por  último  de sua mãe. Findo o filme, de cerca de vinte minutos, o Dr. Caligari 
entra  para  a  antessala  de  espaço  exíguo  e  ordena  que  sejam  retiradas  fotografias  sortidas 
de um baú antigo. A enfermeira, de cabelos presos em coque, batom vermelho, unhas da 
mesma  cor  e  terninho  branco  alinhado,  o  obedece  e então começa a espalhar as imagens 
pelas paredes, fixando-as com ansiedade e suspeita.  

No  Quarto  da  Esperança,  ainda  no  cinema,  sentada  em  uma  cadeira,  está  uma 
menina  de cerca de quatro anos de idade que acabara de assistir um filme sobre seus pais. 
A enfermeira retorna ao cine após ter espalhado as fotografias dos pais da espectadora  

pelas  paredes.  Elas  saem  em  direção  à  antessala,  de  mãos  dadas,  e  assim  que  a  criança  se 
senta  em  um  banquinho  disposto  sobre  um  tapete  colorido  fabricado  por  tecelãs 
nativas,  a  enfermeira  abandona  o  local,  rumo  a  uma  sala  idêntica  a  do  quarto  anterior 
onde há uma janela enorme onde se pode visualizar o que ocorre no quarto verde-água.   

Três  minutos  depois  é  solicitado  para  que  a  garotinha  caminhe  até  uma  parede 
qualquer.  A  voz  atravessa  caixas  de  som  estrategicamente  instaladas  nos  quatro  pontos 
das  convergências  geométricas  nas  paredes  do  quarto  verde.  A  voz  que  insiste 
lentamente  por  três vezes seguidas, a voz do Dr. Caligari, é um tanto roufenha, o que lhe 
causa  certo  espanto.  Nós  vamos  brincar?,  interroga  a  menina.  No  entanto  todos 
parecem  ignorá-la,  inclusive  a  enfermeira  do  outro  lado  que  tenta  pronunciar  algo, 
porém  seu  tom  se  abafa,  afônico.  Indecisa,  a  menina  vai  caminhando  em  um  vagar 
silencioso,  como  se  estivesse  flutuando  num  balé  cuja  dança  se  daria  em meio a nuvens. 
Ao  mesmo  tempo  em  que  inclina  a  cabeça  para  as  fotografias  nas  paredes,  sitiada  por 
todos  os  lados,  sentindo-se  primeiramente  desconfortável  e  em  seguida  aturdida,  ela 
suspira  mais  pausadamente  desta  vez  e  segue  a  passos  lentos,  sua respiração mais breve e 
lenta;  pausa  o  rosto  e  fixa  os  olhos  numa  foto  de  seus  pais  na  varanda  colorida  de  sua 
casa  de  arquitetura  colonial,  insinuando-se  a  raciocinar  algo,  e  o  tempo  que  se  mantém 
estática dura cerca de sete minutos.  

Quando  finalmente  desperta  do  transe,  demonstrando  certa  euforia  (quase  um 
êxtase),  ela  passa  as  mãos  sobre  o  vestido,  como  se  quisesse  desamarrotá-lo  e em seguida 
faz  menção  em  retirar  uma  das  inúmeras  fotografias  fixadas  na  parede  e  é  então  que 
percebe,  quando  finalmente  suas  mãos  pequenas  tocam  o  rosto  impassível  de  sua  mãe 
capturada  em  alta  resolução,  um  grito  agudo  e  chocante;  uma  força  articulante  de  voz 
humana,  macabra  e  penetrante,  como  se  alguém  estivesse  andando  pela  rua  e outrem se 
jogasse de um prédio a sua frente espatifando-se a seus pés. Um grito de horror! 
No susto, a garotinha também grita assustada com sua voz frágil e doce, enquanto 
suas  pernas  dançam  num  ímpeto  e  ela  cai ao chão, sentada. Antes de se levantar, porém, 
ela  range  os  dentes  de  leite  com  fúria  e  medo,  enquanto  outro  grito,  desta  vez  mais 
potente,  faz-se  ouvir,  fazendo-a  tapar  os  ouvidos  com  as  mãos,  enquanto  uma  série  de 
novas  vozes  aterrorizantes  é  vomitada  pelas  caixas  de  som cuidadosamente manipuladas 
naquela sala até atingirem cerca de noventa e oito gritos por minuto, de sussurros  

espasmódicos à Wilhelm screams, até ela conseguir tapar os ouvidos com as mãos e fingir 
para si mesma que aquilo não passa de um pesadelo. 

03 de outubro de 2004 

Ninguém  jamais  teve  acesso  à  Sala  do  Amor  a  não  ser  os  poucos  empregados  do 
Centro  de  Referência  de  Educação  Materno-Infantil,  o  CEREMATI.  O  que  se  sabe 
sobre  o  local  é  que  o  Dr.  Caligari  manipulou  geneticamente  as  crianças,  e  o  fim  delas, 
como  apurado  posteriormente  pela  medíocre  imprensa  daqui,  foi  o  extermínio. Os pais 
das  crianças  que  por  lá  ficavam  sequer  imaginavam  o  que  ocorria  na  Sala  do  Amor  e 
num dado momento, de repente, eles começaram a atirar contra seus próprios filhos.  

A  verdade  é  que  não  foi  um  massacre  comum,  como  o  daquela  cidadezinha  de 
Minas  Gerais,  conhecido  como  o  “Massacre  do  Sertanejo  Sangrento”,  por  exemplo, 
porque  os  pais  das  crianças  de  Piri  não  sabiam  que  estavam  praticando  assassinatos  em 
massa,  isto  é,  um  genocídio,  um  infanticídio,  enfim,  uma  chacina  de  grandes 
proporções,  como  jamais  visto  por  estas  bandas. Eles mataram seus filhos em um espaço 
de  tempo  provavelmente  irregular.  O  que  se  especula,  no  entanto,  é  que  os  casais  sem 
filhos  e  os  idosos  hiperativos  da  cidade,  alguns  descendentes  de  meiapontenses  –  ainda 
quando a cidade se chamava Meia Ponte –, esses cidadãos ajudaram a construir um novo 
cemitério  em  Pirenópolis,  pois  antes  as  criaturas  eram  jogadas  nas  cachoeiras  que  ficam 
ao redor do município. 
Entretanto,  a  única  coisa  que se pode constatar sobre aquele lugar é que ninguém 
é mais o mesmo quando retorna da Sala do Amor. 

23 de outubro de 2004 

No  dia  vinte  e  três  de  outubro,  à  tardinha,  um  garoto  chamado  _________,  de 
quatro  anos,  apareceu  no  Centro  de  Referência  de  Educação  Materno-Infantil,  o 
CEREMATI,  em  companhia  de  seus  pais  que argumentaram que o garoto apresentava, 
simplesmente  da  noite  anterior  para  aquele  dia,  erupções  cutâneas  muito  profundas, 
auréolas  putrefatas  nas  extremidades  de ferimentos com perda da integridade superficial 
da  epiderme  e  que  de  nenhum  modo  se  transformavam  em  equimoses.  Segundo 
constatação  posterior,  dessas  lacerações  desprendiam  uma  certa  “cola  branca”  ou  sebo, 
uma liga mole que liberava um cheiro muito forte por onde quer que passassem com ele. 
Também,  segundo  os  pais  de  _________,  sua  pele  apresentava  diversas  espécies  de 
pênfigos  bolhosos,  e  desatava-se  muito  elástica  tal  como  um  tecido  gelatinoso  pelo 
corpo  inteiro.  De  suas  costas,  panturrilhas  e  membros  nasciam  pelos  grossos  e  com 
farpas,  de  uma  genética  desconhecida.  Nos  olhos  do  garoto,  disseram  eles,  felpas  ou 
pelos  úmidos  não  menos  delicados,  que  pareciam  ser  algo  como  patas  de  moscas 
enegrecidas  de  um  centímetro  de  diâmetro  saíam  dos  orifícios  na  superfície  de  seus 
olhos.  Nas  costas  e  nas  panturrilhas  do  garoto,  nos braços e nos ombros, algumas farpas 
maiores,  outras  menores,  todavia  em  grandes  quantidades  a  ponto  de  ferir  os  dedos  da 
mãe que o fora acariciar. 

No  mesmo  dia,  porém,  após  o  ocorrido  com  os  pais  de  _________,  o  Dr. 
Caligari  enviou  todas  das  crianças  que  já  tinham  passado  pelos  gabinetes  ou  salas  ou 
quartos  anteriores  diretamente  pela  a  última  sala,  a  Sala  do  Amor.  Ao  tomar 
conhecimento  do  caso  de  _________,  isto  é,  de  que  sua  mudança  genética  havia  sido 
completada  como  esperado  por  ele,  todas  as  outras  crianças  que  já  possuíam  dois  anos 
ou  mais  e que já tinham percorrido os quartos negro e verde do Centro de Referência de 
Educação  Materno-Infantil,  o  CEREMATI,  começaram  a  frequentar  o quarto rosa, do 
amor,  de  onde  saiam  com  a  compleição  em  processo  de  mutação  substancial,  até  se 
transformarem  em  algo  de  constituição  incompreensível;  desfrutando  eles  de  etapas 
vagarosas,  de  irrupções  subdermais  como  goma  ou  cola  e  sebo,  arrastando  pela  cidade 
um  cheiro  fétido  muito  forte  e  insuportável,  além  da  modificação da pele numa textura 
muito  semelhante  a  geleia  mole  bolhosa  e,  ato  contínuo,  aquisição  de  patas  de  moscas 
que  

deliberadamente  brotavam  de  seus  cílios  e  espinhos  em  seus  membros.  Posteriormente, 
foram  verificadas  outras  metamorfoses  no  paradigma  genético  das  crianças:  o  que  era 
simplesmente  a  pele  delas,  agora,  depois que as bolhas estouravam, a cútis esverdeava ou 
azulava  como  carne  bovina  apodrecida  e  aos  poucos  ia  se  tornando  gelatinosa  por 
completo,  deixando  de  ser  somente  uma  liga  ou  cola,  enquanto  suas  mãos  inflavam 
como se tivessem contraído uma espécie ainda desconhecida de elefantíase.  

O  Dr.  Caligari,  ponderava  ele  certa  vez  na  varanda  de  sua  casa,  começou 
alterando  substâncias  químicas  que  agiam  como  mutagênicos  afetando  purinas  e 
piramidinas  de  única  base.  Ele  avaliava  tais  itens  sozinho,  consigo  mesmo, e naquele dia 
de  outubro,  dois  anos  depois,  esse  pensamento  assomou  à  mente  como  um  fantasma, 
enquanto  ele  observava  as  crianças  gosmentas  abrindo  os  portões  do  Centro  de 
Referência  de  Educação Materno-Infantil, o CEREMATI, em direção às casas coloridas 
de  arquitetura  do  séc.  XVIII  e  lampiões  a  gás  que  haviam  se  transformado  em  postes 
com  o  passar  dos  séculos.  As  criaturas  de  compleição  modificada  por  manipulação 
genética  deslizavam  pelas  ruas  em  gelatinosos  metros,  estourando  bolhas  de  sangue  e 
gosma  que  espocavam  no  ar  em  forma  de  estrelas  cadentes com um som estranhamente 
oco.  As  erupções  cutâneas  em  seus  membros  parecem  borbulhar  como  um  pirão 
fervendo  numa panela feita de pele humana, desprendendo larvas saídas de seus ombros, 
joelhos  e  cotovelos,  enlameando  ladeiras  e  monumentos  históricos  tombados  pelo 
patrimônio público.  
Perdendo-se  das  criaturas,  uma  garotinha  de  nove anos que havia entrado em um 
dos  bares  da  Rua  do  Turista,  arrasta  sua  boneca  pelo  chão  de  pedra  batida  como  um 
titereiro  sádico  e,  num  arroubo,  tropeça  na boneca (as patas de mosca que agora tomam 
conta  de  seus  cílios  a  impedem  de  enxergar  com  nitidez),  contudo  ela  mantém  o 
equilíbrio.  Por  vingança,  ela  desce  com  fúria  o  pezinho  adornado  de  larvas  no  rosto  do 
brinquedo.  Todavia,  quando  a  menina  inclina  o  joelho  a  noventa  graus,  seu  pé  se 
desmancha  no  rosto  da  boneca  como  uma  massa  de  bolo  crua  e  ela fica manca. Lá fora, 
os  moradores  da  cidade  sobem  as  ladeiras,  correm  desesperados,  pisoteiam-se  uns  aos 
outros.  

24 de outubro de 2004  

Enfermeira,  cabelos  agora  soltos,  batom  vermelho  desbotado  na  boca  como  um 
palhaço  fracassado,  unhas  da  mesma coloração que começam a descascar nas pontas por 
ansiedade  da  mesma.  Enfermeira,  em  sua casa de janelas coloniais azuis, próxima à Igreja 
Matriz,  um  templo  que  por  dentro  cultua  a  majestade  do  Rosário  em  estilo 
barroco-rococó  e  por  fora  combina  com  a  fachada  da  casa  de  Enfermeira,  que  agora 
retira  o  uniforme  bem  passado  e  alinhado  ficando só de calcinha e sutiã, depois estica os 
braços  sobre  a  janela  e  observa  as  pessoas  passarem  pelas  ruas,  algumas  correndo  no 
anoitecer.  

Enfermeira  caminha  lentamente  até  a  geladeira,  captura  uma  lata  de  leite 
condensado  e  despeja  o  conteúdo  em  um  copo,  fazendo  o  mesmo  com  o  achocolatado 
de  marca,  misturando  os  ingredientes  a  seguir,  até  ficar  homogêneo.  Quase  ao  mesmo 
tempo,  Enfermeira  sente  uma  fissura  incontrolável  que  se  detém,  um  pruído  que  se 
instala  fazendo  com  que  ela  enfie  manhosamente  os  dedos  na  bifurcação  de  sua bunda, 
obrigando-a retirar uma parte da calcinha que a incomoda. 
Ainda  na  cozinha,  Enfermeira  gira  o  botão  do  rádio  empoeirado  que  sussurra 
ruídos  baixinhos,  quase  incompreensíveis  entre  o  estalo  e  o  chiado  das  estações  de  FM, 
que  causam  certo  incômodo.  O  locutor  diz  que  diversas  crianças foram sequestradas da 
casa de seus pais enquanto outras estão sendo brutalmente assassinadas nas cachoeiras ao 
redor  da  cidade,  além  de  mais  algumas  delas  estarem  se  despedaçando  pelas  ruas, 
deixando  um  rastro  de  gelatina  colorida  nas  calçadas,  obrigando  diversos  os  cidadãos 
saírem  armados  pelas ruas, transformando Ricardo, um ex-dono de restaurante, um cara 
muito rico. 

O  corredor  que  sai  da  cozinha  na  casa  colonial  de  Enfermeira  desemboca  pelo 
lado  canhoto  em  seu  quarto,  dando  à  direita  em  um  banheiro.  Em  sua  alcova,  a  TV 
permanece  no  mudo  quando  ela  retorna.  O  celular  em  cima  do  criado-mudo  não  dá 
sinal  de  telefonia  nem  de  rede  de  internet.  Instintivamente  ela  zapeia  outros  canais  em 
busca  de  algo  que  ainda  não  entende,  adiciona  mais  volume,  em  vão,  equilibrando  o 
copo e o controle remoto nas mãos. 

Ruídos  de  maçaneta  vindos  da  cozinha  são  perceptíveis,  unhas  enormes e grossas 
que  arranham  madeira  e  metal  em  zigue-zague passeiam pelo corredor recém percorrido 
por Enfermeira, invadindo quarto adentro como se fossem fantasmas. 

Enfermeira,  estática  como  um  monstro  esculpido,  talvez  para  prestar  mais 
atenção ao som, mexe apenas os globos oculares, quase em círculos. 

Um  estalo  ascende  de  seu  quarto  e  as  cortinas  dançam  assustadas,  compelindo 
Enfermeira  a  fechar  as  janelas,  saltando  da  cama  num  sobressalto,  como  se  estivesse 
sendo  assaltada  por  um  espírito  maligno.  Ao  se  aproximar  da  moldura  da  janela, 
Enfermeira  constata  que  há  um  bilhete  preso  entre  as  venezianas,  escrito  com  letras 
rebuscadas, de alguém que acabou de sair da segunda série. 

Enfermeira,  silenciosa,  ouve  risadas  que  parecem  soar  da  cozinha  e  ecoam  pela 
casa  inteira,  assomando  unânimes.  Passos firmes aproximam-se pelo corredor com vozes 
em  segundo  plano  que  se  reviram  uns  com  outros  em  questão  de  milésimos.  Pegadas 
pelo  chão  como  se  algum  cidadão  houvesse  uma  dedicação  terrível  a  algum  tipo  de 
mistério  glorioso.  O  bilhete  está  rasgado  de  qualquer  jeito,  sem  esmero,  como  se 
tivessem pressa em confeccioná-lo. 

Por  um  instante,  Enfermeira  tem  a  impressão  de  ter  visto  pássaros  ou  morcegos 
caindo  do  céu  ao  virar-se  para  a  janela  emoldurada  de  azul,  e  então  a  fecha 
definitivamente,  correndo  a  seguir  para  fechar  a  porta  de  seu  quarto. O bilhete de letras 
onduladas  treme  em  suas  mãos.  Sua  respiração  fica  mais  forte;  ofega  e pode agora sentir 
o coração na palma de suas mãos, que minam suor vertiginosamente. 

Trancada  no  quarto,  (duas  voltas  na  fechadura  e  um  salto  para  trás,  recuando), 
Enfermeira  parece  refletir  sobre  as  vozes  que  são  capturadas  por  ela:  as  crianças  do 
Centro  de  Referência  de  Educação  Materno-Infantil,  o  CEREMAT,  que  a  esta  hora  já 
foram  mortas  por  seus  pais.  Seus  corpos  monstruosos,  que  nem  são  mais  corpos  de 
crianças,  pondera  para  si  mesma,  estão  em  alguma  cachoeira  nos  arredores  da  cidade  e 
permanecem  boiando  em  algum  ponto  turístico  de  Pirenópolis.  O  bilhete  possui 
garranchos  escritos  velozmente,  letras  cursivas  pouco  ortodoxas.  Foram  escritas,  muito 
provavelmente, com uma esferográfica que falhava em demasia. 

O  nicho  de  TV  suspenso  na  parede  do  quarto  de  Enfermeira  estala  e  quando  ela 
se  volta  para  a  parede  de  TV,  pois  antes  estava  observando  a  janela  emq  eu  o bilhete foi 
encontrado,  em cima, no vão do forro do teto, o líquido viscoso e escarlate escorre como 
se  ali  houvesse  uma  mina  de  sangue.  A  seiva  flui  rapidamente  por  todas  as  paredes  e 
alcança,  em  algumas  linhas,  o  solo.  Os  desenhos  de  sangue  vazados  das  paredes 
assemelham-se  a  semínimas,  que  aos  poucos  se  transformam  em  semifusas  de  uma 
canção de terror em um pentagrama invisível.  

Do  bilhete,  as  letras  vão  desaparecendo,  escorridas  do  papel  feito  o  sangue  das 
paredes,  similares  a notas musicais e a tinta preta tinge o chão como uma lágrima. O sino 
da Matriz toca num presságio. 

Lá fora, quem chegava pela serra dos Pireneus e via a cidade de longe podia assistir 
a  desfragmentação  do  horrível.  Os  passos  dos  vultos  dentro  da  cidade  pareciam  dançar 
acima do invisível. 
 

 
 

Sobre o texto: 

Escrito no outono de 2016 por ocasião da encomenda de uma antologia 


de terror a ser publicada no ano subsequente. Aparentemente o projeto  
foi cancelado. Em 2019 o autor começou o processo de transformação  
deste texto em uma peça de teatro a ser encenada em 2020 com trilha so- 
nora desde que vos escreve.  

Desenho de capa: Gabriel Mesquita (Revista Samba/Espaço Laje) 

Capa e projeto gráfico: Lucas Daniel T. 

 
 

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