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Reminiscências.
Foi por volta de setembro de 2002 que o Dr. Caligari chegou à cidade. Para sem
mais exato, ele cruzou a entrada de Pirenópolis no mesmo dia do incêndio que destruiu
a Igreja Matriz Nossa Senhora do Rosário e que consumiu o telhado e quase por
completo o interior em estilo barroco-rococó daquele monumento. Lembro que ele
viera passar férias em uma casa de descanso ou chalé, e durante a estadia acabou por
conhecer uma nativa. A professora Adélia Veiga era diretora da escolinha municipal,
empreendimento voltado para o maternal e pré-escolar, mas que posteriormente, após
algum período de expansão, converteu-se em um certo Centro de Referência de
Educação Materno-Infantil, conhecido como CEREMATI.
Na primavera do ano posterior o Dr. Caligari e a professora Adélia se casaram.
Apesar de tal empreitada o casal nunca oficializou a união em âmbito civil, apenas
moravam juntos. No entanto, conforme manda a tradição de diletantismos bucólicos
dos porquês nesta parte do estado, circularam boatos de que o casal, não muito afeito a
extravagâncias, praticavam, juntos, em comunhão, algum tipo de experiência religiosa
ou frequentava alguma seita neo-pagã, ou ainda, murmuravam os pirenopolinos em
êxtase, que eles eram adeptos de uma religião de fato impraticável para a maioria dos
integrantes daquela massa civilizatória. No entanto nenhum rumor se provou
verdadeiro até então; ao contrário, ultrapassava antes os limites de uma suposta mentira,
por se tratar, obviamente, de um burburinho interiorano.
Curiosamente o Dr. Caligari iniciou uma obra grandiosa, concomitante ao seu
casamento. Assim que conseguiu se instalar na cidade ele mexeu no terreno da escolinha,
atraindo mais ainda olhares animados da população de Pirenópolis para si. Primeiro foi
construído um anexo simples, funcionando primariamente como uma
farmácia/enfermaria, apta a atender crianças até os cinco anos de idade – as que
estudavam na escolinha municipal – depois o que viria a ser o Centro de Referência de
Educação Materno-Infantil, o CEREMATI/GO, e que se instalou na Rua do Bonfim,
próximo ao restaurante do Ricardo, após uma compra milionária de um dos
vaqueiros mais ricos da cidade (e que vivia longe dali), passando assim a atender em
definitivo todas as crianças da comunidade ao redor do local.
13 de fevereiro de 2004
O Doutor Caligari, ainda condenado a névoas de sono, atravessa a rua de
paralelepípedos e pedras antigas, caminha tentando apressar o passo por entre ruas
adornadas com residências de janelas coloridas, pontos de arquitetura colonial do séc.
XVIII e calçadas com lampiões a gás que foram transformados em postes. Ele se dirige
até a Rua do Bonfim, retorna à esquerda e penetra silenciosamente os portões do Centro
de Referência de Educação Materno-Infantil, o CEREMATI, sem desejar bom-dia para
quem cruza com a figura magra e felpuda do médico. Ele caminha por corredores
labirínticos até desembocar na cozinha; despeja o café sem açúcar em uma caneca (uma
imitação de porcelana portuguesa), de tamanho mediano e captura um sachê de onde
verte açúcar, enquanto abre o jornal, absorto pela notícia. Segue fac-símile com o
conteúdo da manchete datada à época:
O Quarto-Escuro ou Quarto do Desespero consiste em um local não muito
espaçoso e um tanto abafado, com paredes pintadas de preto e um teto muito baixo.
Nenhum móvel residencial ou comercial decora o espaço. Apenas um tapete caseiro
decora o chão, um tapete multicolorido, feito em um tear manual por tecelãs dos
arredores da cidade. Do outro lado de uma das paredes negras, à esquerda, uma janela
gigante de vidro emoldura a professora Adélia do outro lado, que observa com
curiosidade e apreço os passos de seu marido, que num arroubo despe seu jaleco. A
enfermeira o imita, depois de deixar o bebê no chão, ela tira parte da roupa
dependurando a primeira peça de seu uniforme em um dos ganchos dispostos próximos
a um baú, em um dos cantos do quarto escuro.
Hoje é seu dia de sorte, brada mais uma vez o Dr. Caligari, perguntando em
seguida para a enfermeira se o bebê está muito bem alimentado. Do outro lado, a
professora Adélia parece soltar um esgar de volúpia.
Certificado sobre todos na sala, Dr. Caligari observa a enfermeira e a criança. As
mãos cruzadas do homem dão um tom muito sério enquanto seu cenho robusto parece
guardar algo mais misterioso do que deveria até então. Sentado, o bebê bate as palmas de
suas mãos no tapete doméstico, como se quisesse chamar a atenção para si. A enfermeira
de cabelos castanhos presos em coque, terno alinhado e batom vermelho, olha de
esguelha a vivacidade da criança com certo receio. Ela caminha até o outro lado da sala e
retira de dentro de um baú antigo um filhote de gato que estava dormindo até então,
levando-o em seguida ao Dr. Caligari. Estava dormindo, gatinho?, questiona ele para o
bichano, porém quem responde é o bebê, urrando coisas incompreensíveis como é
típico das crianças muito novas, sentado no chão, batendo mais forte as mãos no
assoalho, como se estivesse redescobrindo novamente sua voz, desta vez em doses mais
aguçadas de tom.
Agachando lentamente Doutor Caligari deposita o bicho próximo aos pés do
bebê e puxa um dos cigarros de seu bolso. Acende o Hell’s Light com fósforos que
iluminam seu rosto como um flash e então convida a enfermeira a se retirar do quarto
negro com ele.
A sala ao lado do Quarto do Desespero funciona como se fosse um periscópio. A
janela de vidro recebe o Dr. Caligari a enfermeira de cabelos castanhos que se juntam a
professora Adélia que agora, emoldurados, observam com diligência os movimentos
indecisos dos protagonistas do Quarto-Escuro. Do outro lado, após uma pausa de
suas brincadeiras a esmo, o bebê parece declarar algum fascínio pelo felino, ele resmunga
agora com o bichano, porém sem bater as mãos no chão. O gato, em resposta, se
espreguiça espichando as patas dianteiras fazendo suas garras aparecerem por completo,
depois sacode o corpo, encrespando sobre si mesmo, fazendo cair ao chão alguns pelos
cinzentos. Satisfazendo sua curiosidade, num ímpeto quase subconsciente, o bebê
menciona agarrar o bichano, levantando em linha reta as duas mãos para tocar o crânio
do gato, e é então que um barulho metálico e forte explode alto dentro do quarto do
desespero, fazendo o bebê recuar assustado.
Ele olha ao redor, mas nada vê. Balança a cabeça leste-oeste, aturdido, quase um
sopro de horror. O gato parece não ter se incomodado, ato contínuo o bichano vai se
aconchegando mais ainda nas pernas do bebê, arrastando seu corpo nos joelhos da
criança, que, hipnotizada pelo gesto de seu novo amigo, tenta, mais uma vez, acariciá-lo.
Um novo som, mais alto e estridente, como se uma marreta golpeasse uma robusta barra
de ferro é ouvida novamente, por duas, três, quatro vezes seguidas, fazendo o bebê
recuar com mais rapidez do que pela primeira vez e em seguida berrar num choro
explosivo, destilando um grito comparável aos que os que saiam das caixas de som do
quarto, cuidadosamente preparadas para este tipo de situação, fazendo agora o filhote de
gato pular assustado. Do outro lado da sala, enquadrados pela janela gigante, o Dr.
Caligari e a professora Adélia sorriem como cúmplices; contudo a enfermeira de cabelos
castanhos presos em coque não sorri, ato contínuo transfigura-se estática, aturdida pela
reação da criança.
Algum tempo depois, os responsáveis pelo Centro de Referência de Educação
Materno-Infantil, o CEREMATI, passaram a utilizar música clássica, trilhas sonoras e
sound effects para inibi-los, como ”Terror in the cellar”, de 1972, de Bruno Nicolai,
para se ter uma ideia. Quando expostas a animais domésticos para entretenimento, as
crianças
não chegavam próximas aos bichos. As maiores já saiam a engatinhar para longe deles,
chorando inibidas.
30 de março de 2004
No cinema cada criança assiste a fotogramas de suas mães e pais juntos, em
silêncio, depois, acompanhados de trilha sonora, os assiste separados: primeiro a foto de
seu pai e por último de sua mãe. Findo o filme, de cerca de vinte minutos, o Dr. Caligari
entra para a antessala de espaço exíguo e ordena que sejam retiradas fotografias sortidas
de um baú antigo. A enfermeira, de cabelos presos em coque, batom vermelho, unhas da
mesma cor e terninho branco alinhado, o obedece e então começa a espalhar as imagens
pelas paredes, fixando-as com ansiedade e suspeita.
No Quarto da Esperança, ainda no cinema, sentada em uma cadeira, está uma
menina de cerca de quatro anos de idade que acabara de assistir um filme sobre seus pais.
A enfermeira retorna ao cine após ter espalhado as fotografias dos pais da espectadora
pelas paredes. Elas saem em direção à antessala, de mãos dadas, e assim que a criança se
senta em um banquinho disposto sobre um tapete colorido fabricado por tecelãs
nativas, a enfermeira abandona o local, rumo a uma sala idêntica a do quarto anterior
onde há uma janela enorme onde se pode visualizar o que ocorre no quarto verde-água.
Três minutos depois é solicitado para que a garotinha caminhe até uma parede
qualquer. A voz atravessa caixas de som estrategicamente instaladas nos quatro pontos
das convergências geométricas nas paredes do quarto verde. A voz que insiste
lentamente por três vezes seguidas, a voz do Dr. Caligari, é um tanto roufenha, o que lhe
causa certo espanto. Nós vamos brincar?, interroga a menina. No entanto todos
parecem ignorá-la, inclusive a enfermeira do outro lado que tenta pronunciar algo,
porém seu tom se abafa, afônico. Indecisa, a menina vai caminhando em um vagar
silencioso, como se estivesse flutuando num balé cuja dança se daria em meio a nuvens.
Ao mesmo tempo em que inclina a cabeça para as fotografias nas paredes, sitiada por
todos os lados, sentindo-se primeiramente desconfortável e em seguida aturdida, ela
suspira mais pausadamente desta vez e segue a passos lentos, sua respiração mais breve e
lenta; pausa o rosto e fixa os olhos numa foto de seus pais na varanda colorida de sua
casa de arquitetura colonial, insinuando-se a raciocinar algo, e o tempo que se mantém
estática dura cerca de sete minutos.
Quando finalmente desperta do transe, demonstrando certa euforia (quase um
êxtase), ela passa as mãos sobre o vestido, como se quisesse desamarrotá-lo e em seguida
faz menção em retirar uma das inúmeras fotografias fixadas na parede e é então que
percebe, quando finalmente suas mãos pequenas tocam o rosto impassível de sua mãe
capturada em alta resolução, um grito agudo e chocante; uma força articulante de voz
humana, macabra e penetrante, como se alguém estivesse andando pela rua e outrem se
jogasse de um prédio a sua frente espatifando-se a seus pés. Um grito de horror!
No susto, a garotinha também grita assustada com sua voz frágil e doce, enquanto
suas pernas dançam num ímpeto e ela cai ao chão, sentada. Antes de se levantar, porém,
ela range os dentes de leite com fúria e medo, enquanto outro grito, desta vez mais
potente, faz-se ouvir, fazendo-a tapar os ouvidos com as mãos, enquanto uma série de
novas vozes aterrorizantes é vomitada pelas caixas de som cuidadosamente manipuladas
naquela sala até atingirem cerca de noventa e oito gritos por minuto, de sussurros
espasmódicos à Wilhelm screams, até ela conseguir tapar os ouvidos com as mãos e fingir
para si mesma que aquilo não passa de um pesadelo.
03 de outubro de 2004
Ninguém jamais teve acesso à Sala do Amor a não ser os poucos empregados do
Centro de Referência de Educação Materno-Infantil, o CEREMATI. O que se sabe
sobre o local é que o Dr. Caligari manipulou geneticamente as crianças, e o fim delas,
como apurado posteriormente pela medíocre imprensa daqui, foi o extermínio. Os pais
das crianças que por lá ficavam sequer imaginavam o que ocorria na Sala do Amor e
num dado momento, de repente, eles começaram a atirar contra seus próprios filhos.
A verdade é que não foi um massacre comum, como o daquela cidadezinha de
Minas Gerais, conhecido como o “Massacre do Sertanejo Sangrento”, por exemplo,
porque os pais das crianças de Piri não sabiam que estavam praticando assassinatos em
massa, isto é, um genocídio, um infanticídio, enfim, uma chacina de grandes
proporções, como jamais visto por estas bandas. Eles mataram seus filhos em um espaço
de tempo provavelmente irregular. O que se especula, no entanto, é que os casais sem
filhos e os idosos hiperativos da cidade, alguns descendentes de meiapontenses – ainda
quando a cidade se chamava Meia Ponte –, esses cidadãos ajudaram a construir um novo
cemitério em Pirenópolis, pois antes as criaturas eram jogadas nas cachoeiras que ficam
ao redor do município.
Entretanto, a única coisa que se pode constatar sobre aquele lugar é que ninguém
é mais o mesmo quando retorna da Sala do Amor.
23 de outubro de 2004
No dia vinte e três de outubro, à tardinha, um garoto chamado _________, de
quatro anos, apareceu no Centro de Referência de Educação Materno-Infantil, o
CEREMATI, em companhia de seus pais que argumentaram que o garoto apresentava,
simplesmente da noite anterior para aquele dia, erupções cutâneas muito profundas,
auréolas putrefatas nas extremidades de ferimentos com perda da integridade superficial
da epiderme e que de nenhum modo se transformavam em equimoses. Segundo
constatação posterior, dessas lacerações desprendiam uma certa “cola branca” ou sebo,
uma liga mole que liberava um cheiro muito forte por onde quer que passassem com ele.
Também, segundo os pais de _________, sua pele apresentava diversas espécies de
pênfigos bolhosos, e desatava-se muito elástica tal como um tecido gelatinoso pelo
corpo inteiro. De suas costas, panturrilhas e membros nasciam pelos grossos e com
farpas, de uma genética desconhecida. Nos olhos do garoto, disseram eles, felpas ou
pelos úmidos não menos delicados, que pareciam ser algo como patas de moscas
enegrecidas de um centímetro de diâmetro saíam dos orifícios na superfície de seus
olhos. Nas costas e nas panturrilhas do garoto, nos braços e nos ombros, algumas farpas
maiores, outras menores, todavia em grandes quantidades a ponto de ferir os dedos da
mãe que o fora acariciar.
No mesmo dia, porém, após o ocorrido com os pais de _________, o Dr.
Caligari enviou todas das crianças que já tinham passado pelos gabinetes ou salas ou
quartos anteriores diretamente pela a última sala, a Sala do Amor. Ao tomar
conhecimento do caso de _________, isto é, de que sua mudança genética havia sido
completada como esperado por ele, todas as outras crianças que já possuíam dois anos
ou mais e que já tinham percorrido os quartos negro e verde do Centro de Referência de
Educação Materno-Infantil, o CEREMATI, começaram a frequentar o quarto rosa, do
amor, de onde saiam com a compleição em processo de mutação substancial, até se
transformarem em algo de constituição incompreensível; desfrutando eles de etapas
vagarosas, de irrupções subdermais como goma ou cola e sebo, arrastando pela cidade
um cheiro fétido muito forte e insuportável, além da modificação da pele numa textura
muito semelhante a geleia mole bolhosa e, ato contínuo, aquisição de patas de moscas
que
deliberadamente brotavam de seus cílios e espinhos em seus membros. Posteriormente,
foram verificadas outras metamorfoses no paradigma genético das crianças: o que era
simplesmente a pele delas, agora, depois que as bolhas estouravam, a cútis esverdeava ou
azulava como carne bovina apodrecida e aos poucos ia se tornando gelatinosa por
completo, deixando de ser somente uma liga ou cola, enquanto suas mãos inflavam
como se tivessem contraído uma espécie ainda desconhecida de elefantíase.
O Dr. Caligari, ponderava ele certa vez na varanda de sua casa, começou
alterando substâncias químicas que agiam como mutagênicos afetando purinas e
piramidinas de única base. Ele avaliava tais itens sozinho, consigo mesmo, e naquele dia
de outubro, dois anos depois, esse pensamento assomou à mente como um fantasma,
enquanto ele observava as crianças gosmentas abrindo os portões do Centro de
Referência de Educação Materno-Infantil, o CEREMATI, em direção às casas coloridas
de arquitetura do séc. XVIII e lampiões a gás que haviam se transformado em postes
com o passar dos séculos. As criaturas de compleição modificada por manipulação
genética deslizavam pelas ruas em gelatinosos metros, estourando bolhas de sangue e
gosma que espocavam no ar em forma de estrelas cadentes com um som estranhamente
oco. As erupções cutâneas em seus membros parecem borbulhar como um pirão
fervendo numa panela feita de pele humana, desprendendo larvas saídas de seus ombros,
joelhos e cotovelos, enlameando ladeiras e monumentos históricos tombados pelo
patrimônio público.
Perdendo-se das criaturas, uma garotinha de nove anos que havia entrado em um
dos bares da Rua do Turista, arrasta sua boneca pelo chão de pedra batida como um
titereiro sádico e, num arroubo, tropeça na boneca (as patas de mosca que agora tomam
conta de seus cílios a impedem de enxergar com nitidez), contudo ela mantém o
equilíbrio. Por vingança, ela desce com fúria o pezinho adornado de larvas no rosto do
brinquedo. Todavia, quando a menina inclina o joelho a noventa graus, seu pé se
desmancha no rosto da boneca como uma massa de bolo crua e ela fica manca. Lá fora,
os moradores da cidade sobem as ladeiras, correm desesperados, pisoteiam-se uns aos
outros.
24 de outubro de 2004
Enfermeira, cabelos agora soltos, batom vermelho desbotado na boca como um
palhaço fracassado, unhas da mesma coloração que começam a descascar nas pontas por
ansiedade da mesma. Enfermeira, em sua casa de janelas coloniais azuis, próxima à Igreja
Matriz, um templo que por dentro cultua a majestade do Rosário em estilo
barroco-rococó e por fora combina com a fachada da casa de Enfermeira, que agora
retira o uniforme bem passado e alinhado ficando só de calcinha e sutiã, depois estica os
braços sobre a janela e observa as pessoas passarem pelas ruas, algumas correndo no
anoitecer.
Enfermeira caminha lentamente até a geladeira, captura uma lata de leite
condensado e despeja o conteúdo em um copo, fazendo o mesmo com o achocolatado
de marca, misturando os ingredientes a seguir, até ficar homogêneo. Quase ao mesmo
tempo, Enfermeira sente uma fissura incontrolável que se detém, um pruído que se
instala fazendo com que ela enfie manhosamente os dedos na bifurcação de sua bunda,
obrigando-a retirar uma parte da calcinha que a incomoda.
Ainda na cozinha, Enfermeira gira o botão do rádio empoeirado que sussurra
ruídos baixinhos, quase incompreensíveis entre o estalo e o chiado das estações de FM,
que causam certo incômodo. O locutor diz que diversas crianças foram sequestradas da
casa de seus pais enquanto outras estão sendo brutalmente assassinadas nas cachoeiras ao
redor da cidade, além de mais algumas delas estarem se despedaçando pelas ruas,
deixando um rastro de gelatina colorida nas calçadas, obrigando diversos os cidadãos
saírem armados pelas ruas, transformando Ricardo, um ex-dono de restaurante, um cara
muito rico.
O corredor que sai da cozinha na casa colonial de Enfermeira desemboca pelo
lado canhoto em seu quarto, dando à direita em um banheiro. Em sua alcova, a TV
permanece no mudo quando ela retorna. O celular em cima do criado-mudo não dá
sinal de telefonia nem de rede de internet. Instintivamente ela zapeia outros canais em
busca de algo que ainda não entende, adiciona mais volume, em vão, equilibrando o
copo e o controle remoto nas mãos.
Ruídos de maçaneta vindos da cozinha são perceptíveis, unhas enormes e grossas
que arranham madeira e metal em zigue-zague passeiam pelo corredor recém percorrido
por Enfermeira, invadindo quarto adentro como se fossem fantasmas.
Enfermeira, estática como um monstro esculpido, talvez para prestar mais
atenção ao som, mexe apenas os globos oculares, quase em círculos.
Um estalo ascende de seu quarto e as cortinas dançam assustadas, compelindo
Enfermeira a fechar as janelas, saltando da cama num sobressalto, como se estivesse
sendo assaltada por um espírito maligno. Ao se aproximar da moldura da janela,
Enfermeira constata que há um bilhete preso entre as venezianas, escrito com letras
rebuscadas, de alguém que acabou de sair da segunda série.
Enfermeira, silenciosa, ouve risadas que parecem soar da cozinha e ecoam pela
casa inteira, assomando unânimes. Passos firmes aproximam-se pelo corredor com vozes
em segundo plano que se reviram uns com outros em questão de milésimos. Pegadas
pelo chão como se algum cidadão houvesse uma dedicação terrível a algum tipo de
mistério glorioso. O bilhete está rasgado de qualquer jeito, sem esmero, como se
tivessem pressa em confeccioná-lo.
Por um instante, Enfermeira tem a impressão de ter visto pássaros ou morcegos
caindo do céu ao virar-se para a janela emoldurada de azul, e então a fecha
definitivamente, correndo a seguir para fechar a porta de seu quarto. O bilhete de letras
onduladas treme em suas mãos. Sua respiração fica mais forte; ofega e pode agora sentir
o coração na palma de suas mãos, que minam suor vertiginosamente.
Trancada no quarto, (duas voltas na fechadura e um salto para trás, recuando),
Enfermeira parece refletir sobre as vozes que são capturadas por ela: as crianças do
Centro de Referência de Educação Materno-Infantil, o CEREMAT, que a esta hora já
foram mortas por seus pais. Seus corpos monstruosos, que nem são mais corpos de
crianças, pondera para si mesma, estão em alguma cachoeira nos arredores da cidade e
permanecem boiando em algum ponto turístico de Pirenópolis. O bilhete possui
garranchos escritos velozmente, letras cursivas pouco ortodoxas. Foram escritas, muito
provavelmente, com uma esferográfica que falhava em demasia.
O nicho de TV suspenso na parede do quarto de Enfermeira estala e quando ela
se volta para a parede de TV, pois antes estava observando a janela emq eu o bilhete foi
encontrado, em cima, no vão do forro do teto, o líquido viscoso e escarlate escorre como
se ali houvesse uma mina de sangue. A seiva flui rapidamente por todas as paredes e
alcança, em algumas linhas, o solo. Os desenhos de sangue vazados das paredes
assemelham-se a semínimas, que aos poucos se transformam em semifusas de uma
canção de terror em um pentagrama invisível.
Do bilhete, as letras vão desaparecendo, escorridas do papel feito o sangue das
paredes, similares a notas musicais e a tinta preta tinge o chão como uma lágrima. O sino
da Matriz toca num presságio.
Lá fora, quem chegava pela serra dos Pireneus e via a cidade de longe podia assistir
a desfragmentação do horrível. Os passos dos vultos dentro da cidade pareciam dançar
acima do invisível.
Sobre o texto: