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O Ki, e também o Aikido

Artigo de: Eduardo Tavares

Falar sobre o Ki não é tarefa fácil. É um conceito oriental, com múltiplas expressões, Pran
na Índia, Qi, na China, Ki no Japão... E para começar pelo princípio... não sei o que é o
i... No entanto, interessa-me o conceito, e procuro respostas. E logo começo a ent
ender que o conceito é muito maior que as suas duas letrinhas parecem indicar.
Por comparação com uma palavra "ocidental", igualmente polissémica e rica, poderíamos fa
lar de "Logos". Não são apenas palavras, têm por detrás de si civilizações, modos de compre
nder o mundo. Talvez daí venha uma grande parte dos mal-entendidos que se podem en
contrar relativamente ao Ki. Dou um exemplo. O Ki é segundo uma acepção da palavra, a
energia vital. Como o Prana, ou como o Ruach hebraico. Na cultura chinesa fala-s
e de Qi, a propósito de acupunctura, no Japão, fala-se dessa energia a respeito do S
hiatsu, ou mais recentemente, a propósito do Reiki. Mas em qualquer uma dessas cul
turas o conceito é também, e apenas, o conceito de respiração, daquele acto de encher e
esvaziar os pulmões... Ter bom Ki, ou Qi, ou Prana, é também ter saúde, é ter energia. Mas
também ter força, ou perseverança... Não é pois evidente, nem unívoco. E há muito interess
es ligações a descobrir, entre conceitos e áreas diversas em que aparecem.
Vejamos o que diz Simon Leys, no livro Ensaios sobre a China, a propósito do Qi, n
a pintura:
Numa pintura medíocre, as formas são separadas por intervalos inertes, os vazios são e
spaços negativos. Numa pintura carregada de qi, pelo contrário, estabelecem-se troca
s de corrente de uma forma para outra através de um vazio animado. Estas ideias fu
ndamentais - a saber, que o pintor deve esforçar-se por fazer da sua pintura uma e
spécie de campo energético em que as formas definem pólos entre os quais se estabelece
m tensões; que estas tensões invisíveis mas operantes asseguram a unidade e o dinamism
o vital da composição - foram exploradas e experimentadas, por exemplo, por um Paul
Klee; e uma das melhores descrições da acção do qi pode-se encontrar numa asserção de André
sson: "A grande pintura é uma pintura em que os intervalos estão carregados de tanta
energia como as figuras que os determinam."
E ainda, agora sobre a literatura, no mesmo texto de Simon Leys, e citando Han Y
u:
"O qi é como a água, e as palavras são como objectos que flutuam à superfície. Quando a qu
antidade de água é suficiente, os objectos, grandes e pequenos, podem mover-se livre
mente: tal é a relação entre o qi e as palavras. Quando o qi está na sua plenitude, tand
o o comprimento das frases como o seu volume sonoro atingem a sua medida perfeit
a".
Por vezes ouve-se falar de Ki, na área do Aikido, com a expressão de uma força misteri
osa, de uma energia vital, saindo da ponta dos dedos, projectando o Uke à distância.
Tal será porventura possível. Não o saberemos sem antes sermos assim projectados... É p
orém interessante que o único mestre de Aikido que falava do Ki como sendo algo norm
al e que afirmava que toda a gente pode desenvolver o seu Ki pelo desenvolviment
o da coordenação entre o corpo e a mente, foi afastado da Aikikai. Além do mais, escre
veu sobre a matéria livros de ordem prática com discursos coerentes... Falamos obvia
mente de Koichi Tohei. No seu site podemos encontrar o seguinte texto:
Numa aula de Shin Shin Toitsu Aikido, começamos por ensinar a postura correcta. Qu
ando dizemos "postura", referimos-nos ao estado geral do corpo. No entanto, em J
aponês, um estado da mente é também expresso por essa palavra. O estado da mente dá form
a ao estado do corpo. Quando a mente está calma, o corpo está naturalmente calmo. Qu
ando a mente fica estável, o corpo fica naturalmente estável. Este fenómeno é chamado de
"fudou-shin fudou-tai" (mente inamovível, corpo inamovível). Porque a sua mente e o
seu corpo estão estáveis, você pode ler a mente do oponente e conduzir-lo.
Koichi Tohei fala também sobre o Ki e a saúde, e portanto, sobre vários aspectos do Ki
. Parece-me aliás que é nos seus livros que encontramos boas pistas para diferenciar
os vários aspectos e sentidos do conceito.
Não é porém apenas nele que se encontra um discurso claro e compreensível sobre o Ki e o
Aikido. Vejamos o texto que está em "Total Aikido, The Master Course", de Gozo Sh
ioda, com Yasuhisa Shioda:
"Ki" é o domínio do equilíbrio.
No aikido frequentemente usamos a palavra "ki", ou energia, mas esta palavra tem
muitos significados. O "Ki" enquanto o que se manifesta na execução de técnicas é o que
temos quando os componente de postura correcta, linha central, respiração, o poder
explosivo da força concentrada, o tempo certo (timing), etc, se unem de forma a qu
e atinjamos o mais alto estado de perfeito equilíbrio equilíbrio. Pode-se dizer que
o "Ki" é o "domínio do equilíbrio".
O sentido de "Ki" na frase "harmonizar o seu Ki", diz respeito à sensibilidade ao
parceiro, e cobre todos os elementos originados no estado em que se encontra o s
eu parceiro, sendo que força, velocidade, tempo (timing) e ritmo fazem todos parte
do Ki, neste sentido.
À medida que se continua o treino, você torna-se mais sensível à forma como o seu parcei
ro vai atacá-lo, em que direcção ela se vai mover, e onde ele vai concentrar a sua força
. Pode-se dizer que a faculdade de "ver/sentir a energia" é um dos principais obje
ctivos do treino.
Aprofundando mais, vemos que o "Ki" é ao mesmo tempo a matéria do universo, e aquilo
que o controla. Harmonizar-se com o Universo significa estar em equilíbrio. Aiki,
isto é, a "harmonização da energia", significa abandonar o próprio ego; é a técnica de se
ubmeter ao fluir natural do Universo. Ao fazê-lo você poderá, sem esforço, compreender o
seu próprio eu natural, de acordo com a situação em que se encontra, e é através do desen
volvimento dessa harmonia que encontramos a compreensão do Aikido.

Sem concluir, porque neste assunto é claro que não devemos nem podemos fazê-lo, podemo
s talvez dizer que, para além dos muitos aspectos a estudar e compreender naquilo
que seja o Ki, a ideia mais simples e clara seja: de uma boa coordenação e relação entre
as partes, entre o Uke e o Tori, entre a nossa mente e o nosso corpo, entre o a
taque e a nossa resposta, permitindo o fluir da energia. Para início de conversa é u
ma forma de descrever o que é o Ki, sem entrar em conceitos vagos e "espirituais"
(como se houvesse no conceito de Ki, separação entre corpo e mente...).
Para finalizar não poderíamos deixar de dar a voz a O Sensei, Morihei Ueshiba:
Aiki!
Um caminho tão difícil de compreender...
Mas basta seguir,
A rotação natural dos Céus...

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