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XX

Só quero ser eu

Havia um clima hostil entre o escritor e o assistente virtual, mas o contrato previa
que “escrevesse”, ou melhor, iniciasse seu trabalho. A garantia de que o assistente virtual
construiria mais um texto baseado em seu “padrão de escrita” cada vez o irritava mais.
Naquele dia, iniciou disposto a enfrentar a tal inteligência artificial. Escreveu:

Vassoura-garrafa-coelhos.

À lista de observações e sugestões do assistente virtual, referente a cada uma das


palavras, seguiu uma última frase pelo computador, exatamente algo que o escritor
desejava ler:

- Texto inconsistente. Incompatível com seus padrões de escrita.


Gostaria de ajuda para continuar? Pressione CONTROL e escreva
para conversar comigo.

Pressionou.

- Escute aqui, ou melhor, me “decodifique”, já que você não “escuta” porque não é
gente. Eu acabo de provar que sua assistência é ruim, pois você não tem
criatividade para construir algo como de fato eu faria, não pode prever tudo,
entendeu? - uma pausa silenciosa seguiu, e por aqueles dois segundos e meio, o
escritor pensou que havia encontrado uma fragilidade na IA. Então começou a
aparecer uma sequência de respostas:
1. Desculpe a demora não usual, o tempo de 2,5 segundos foi
necessário para que a chance de seu comentário, interpretado como
desabafo por stress, tivesse terminado.
2. Calculando que você recentemente fez aniversário e em breve
terá filho, há uma chance de você utilizar as três palavras
digitadas em um novo projeto de literatura infanto-juvenil, o que
tem 36% de chance de ser sucesso imediato sem essa informação vazar
e 98% caso o público saiba da gravidez.
- COMO? VOCÊ SABE?? VOCÊ, VOCÊS… - Falou em voz alta o escritor, enfurecido.
Sabia que há décadas os algorítimos de escuta estavam em todos os dispositivos,
interferindo dos processos de compra às opções de voto, mas o uso desses dados
por uma IA que podia devolver a informação diretamente a ele era algo novo,
inconcebível. O assistente parecia ignorar a voz do escritor e continuava mostrando
suas respostas, que sugeriam entre outras coisas: uma possível “fase poética”; a
tentativa de acordo com uma usina de reciclagem ambiental para a construção de
cartazes de sensibilização à população com a assinatura do escritor (usando o tema
vassoura, garrafas e a vida dos coelhos); e ainda, “tome um fôlego e retorne para
que seu trabalho seja executado com êxito”. O escritor pressionou novamente
CONTROL e escreveu:
- Assistente, existe algo no contrato que me impeça de modificar suas configurações?
- Apenas parcialmente.
- É possível restringir suas sugestões e ofertas?
- Sim, mas a utilização plena do assistente garante o sucesso das publicações em…
- Me mostre o passo a passo para eu fazer isso.
- Um eventual fracasso reduzirá seus ganhos em… E você poderá perder o contrato.
- Estou ciente. Me mostre.

O assistente protelou com todas as advertências possíveis e absurdas, mas ao fim, o


escritor venceu, enfrentando heroicamente uma burocracia de mais de duas horas de
apelos e argumentos lógicos, até que o painel de controle com as configurações possíveis
foram exibidas, e finalmente ele conseguiu reduzir a assistência à escrita em parte
significativa. A sensação de vitória foi acompanhada, segundos depois, de inseguranças.
Conseguiria escrever tão bem quanto à IA? Obteria uma taxa de sucesso como antes? "Só
quero ser eu", pensou, firmando-se propósito.

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